Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão de Ação de Graças, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. XI Erechim: EDELBRA, 1998

PALAVRA DE DEUS DESEMPENHADA

SERMÃO DE AÇÃO DE GRAÇAS PELO NASCIMENTO DO PRÍNCIPE

DOM JOÃO,

Primogênito de SS. Majestades, que Deus guarde, que pregou o P. Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Majestade, na Igreja Catedral da Cidade da Bahia, em 16 de dezembro, ano de 1688.

Respexit, et vidit[1]

§I

Ação de graças do Reino de Portugal pelo cumprimento das promessas feitas por Deus a el-rei Dom Afonso Henriques.

A vossos olhos - todo-poderoso e todo-misericordioso Senhor - a vossos olhos - posto que debaixo dessa cortina encobertos aos nossos, a vossos olhos vem hoje esta grande e nobilíssima parte de Portugal render as devidas graças pelo fidelíssimo desempenho de vossas promessas. Prometeste que havíeis de olhar e ver: Ipse respiciet, et videbit - e já temos nova certa de que olhastes evistes: Respexit et vidit.

Quatro anos e mais se contam hoje, em que, pregando eu as exéquias da rainha, que está no réu, fiz dois discursos muito encontrados: um de dor, e outro de consolação; um de sentimento, outro de alívio; um triste, outro alegre; um com os olhos no passado, outro com as esperanças no futuro. Aqueles dois varões que o profeta Samuel deu por sinal a el-rei Saul, antes de o ser, que acharia junto ao sepulcro de Raquel: Invenies duos viros juva sepulclirum Rachel[2] - um deles significava o pesar, outro o desengano, porque estes são os dois afetos que só acompanham depois da morte as que mais seguiu o amor e aplauso na vida. Assim eu - posto que com diferente pensamento - também pus duas estátuas racionais aos lados da sepultura da nossa defunta Raquel. De uma parte a estátua da dor, triste e coberta de luto, que representava e chorava a perda passada; da outra parte a estátua da consolação, contente, e vestida de gala, que da mesma tristeza, e da mesma morte presente, tirava e prognosticava a felicidade futura. Lembra-me que, levantando os olhos para o túmulo e mausoléu real: - Agora, tomara eu - disse - porque assim há de ser, que em todo este grande teatro se mudasse e voltasse a cena. Que os lutos trocassem as cores, que as caveiras se revestissem de vida, que os ciprestes se reproduzissem em palmas, que os epitáfios se convertessem em panegíricos, e que as luzes mortais e funestas daquela pirâmide se acendessem em luminárias de alegria, de parabéns, de ação de graças. E não é isto o que toda a Bahia fez tão estrondosamente alumiada nestas três noites? E não é isto o que agora fazemos todos, vindo dar graças a Deus neste venturoso dia? Assim é. Corramos, pois, as cortinas aos segredos da Providência divina, e vejamos nós agora o que só viam então os olhos de sua misericórdia, postos nos nossos reis: Posuit enim in te, et in semine tuo post te, oculos misericordiae suae. - Levou-nos Deus uma rainha para nos poder dar outra; levou-nos a sereníssima de Sabóia, para nos poder dar a Augustíssima de Áustria; levou-nos a estéril, para nos poder dar a fecunda; levou-nos a que, depois de tantos anos de esperança e desengano, nos obrigou a ir buscar fora da pátria a sujeição e vassalagem de príncipe estrangeiro, para nos poder trazer de mais longe, a que dentro do primeiro ano nos restituiu a baronia dos reis naturais, e a que hoje tem alegrado a Portugal, em todas as partes do mundo, com a nova do felicíssimo parto que nesta cabeça da América festejamos, agradecidos eternamente à fidelíssima piedade dos olhos divinos, que, finalmente - como tinha prometido - olhou e viu: Respexit et vidit.

§II

O juramento de et-rei Dom Afonso Henriques. Quem foi a décima-sexta geração de el-rei Dom Afonso Primeiro? Quem foi, ou é, a prole atenuada da mesma geração décima-sexta? Que significa e em que consiste o olhar e ver de Deus? O príncipe primogênito de Portugal, inteiro desempenho dos olhos de Deus.

Para inteligência destas duas palavras, vamos ao texto delas, que é o juramento de el-rei D. Afonso Henriques, e também será o fundamento de quanto dissermos. No mesmo dia em que Cristo, Redentor nosso, desde o trono de sua cruz criou o reino de Portugal, com aquela mesma voz com que criou o mundo, anunciou ao rei, em quem fundava o reino, duas coisas notáveis: a primeira, revelando-lhe uma desgraça futura; a segunda, prometendo-lhe o remédio dela, muito maior que a mesma desgraça. A desgraça revelada foi que na sua décima-sexta geração se atenuaria a prole: Usque ad decimam sextam generationem, in qua attenuabitur proles. - O remédio e felicidade prometida foi, ou é que nessa mesma prole atenuada ele olharia e veria: Et in ipsa attenuata, ipse respiciet et videbit. - Vejamos agora quem foi a décima-sexta geração de el-rei Dom Afonso Primeiro, e quem foi ou é a prole atenuada da mesma geração décima-sexta? A décima-sexta geração de el-rei Dom Afonso, o Primeiro, ninguém duvida que foi el-rei Dom João o IV, de eterna memória; e a prole atenuada de el-rei Dom João o IV, também se não pode duvidar que é el-rei Dom Pedro, nosso senhor, que Deus guarde, porque, depois do falecimento de seus irmãos, nele ficou a décima-sexta geração em um só filho, e por um só fio. Segue-se logo com evidência, que na pessoa de el-rei D. Pedro se cumpriu a atenuação da prole, e que à mesma pessoa de el-rei D. Pedro prometeu Deus o olhar e ver de seus olhos: Et in ipsa attenuata, ipse respiciet et videbit.artes do mundo, com a nova do felicíssimo parto que nesta cabeça da América festejamos, agradecidos eternamente à fidelíssima piedade dos olhos divinos, que, finalmente - como tinha prometido - olhou e viu: Respexit et vidit

Isto suposto com tanta evidência, resta só saber que significa, e em que consiste o olhar e ver de Deus, principalmente quando se fala de gerações, e falta o suplemento delas, como no nosso caso. Já respondi a esta questão, e a declarei no sermão alegado, quando empenhei esta mesma palavra de Deus, e agora é necessário que o repita, quando ela se desempenha. O olhar e ver de Deus, em linguagem do mesmo Deus, e frase da Escritura Sagrada, é fazer Deus mercê de dar sucessão a quem é servido, e não outra, senão de filho varão. Torne também a prova, porque é a única. Ana, mulher de Elcana, príncipe da tribo real e levítica, vivia muito desconsolada, por se ver estéril e sem filho, e mais à vista de uma companheira e êmula sua, que tinha muitos, e por isso a desprezava. Com esta dor, que sempre a trazia triste, se foi Ana ao Templo, e orou a Deus desta maneira: Si respiciens videris afflictionem famulae tuae, dederisque servae tuae sexum virilem, dabo eum Domino omnibus diebus vitae ejus (1 Rs. 1, 11): Se vós, Senhor, olhando virdes a esterilidade de vossa serva, e me derdes um filho varão, eu faço voto de o dedicar a vosso serviço por todos os dias de sua vida. - Notai agora o que pediu Ana, e o que disse Deus. O que pediu foi um filho varão: sexum virilem; o que disse a Deus foi: Se olhando virdes a minha esterilidade: Si respiciens videris afflictionem famulae tuae. - E por que propôs o que pedia e o que esperava de Deus, com tão diferente linguagem, como é: Se me derdes filho varão, e se olhardes e virdes? Porque o olhar e ver de Deus é dar um filho varão. Assim foi. Olhou Deus, e viu a aflição de Ana, e logo, sendo estéril, teve um filho varão, e tal filho, que foi Samuel, que, sendo um, valia por muitos: Donec sterilis peperit plurimos[3].

E que se segue de toda esta demonstração? Segue-se que o nosso belíssimo Infante, nosso enquanto primogênito de Portugal, e mais nosso enquanto Príncipe do Brasil, cujo felicíssimo nascimento hoje celebramos, ele, e unicamente ele, é o inteiro desempenho dos olhos de Deus; ele o esperado e suspirado parto do seu olhar e ver; ele o revelado e prometido ao primeiro rei; e ele o glorioso e fatal reparador de sua descendência. A fé desta estupenda conclusão é evidente, porque, se o efeito do olhar e ver de Deus é dar filho varão, tendo Deus prometido a aquele rei que na prole atenuada de sua décima-sexta geração olharia e veria; e, sendo a prole atenuada da mesma geração décima-sexta manifesta e evidentemente el-rei Dom Pedro, nosso senhor, com a mesma evidência se convence que o filho varão, de que Deus fez mercê este ano a el-rei Dom Pedro, o Segundo, é o que tantos anos e séculos antes revelou e prometeu o mesmo Deus a el-rei Dom Afonso o I. Caso sobre toda a admiração admirável, que em tão remotas distâncias, com o nascimento do reino se ajuntasse o nascimento deste soberano menino! Caso sobre toda a admiração admirável que, quando Cristo em pessoa, desde sua cruz, lançava a primeira pedra neste novo edifício, como ele mesmo disse: Ut initia regni tui super firmam petram stabilirem - juntamente com a pedra fundamental se não lançasse outra estampa, ou outra memória, senão a deste futuro príncipe! Caso outra vez sobre toda a admiração admirável, que havendo na posteridade de Dom Afonso tantos reis, tantos príncipes, tantos infantes famosos, passando todos os outros em silêncio, só deste unicamente fizessem menção as promessas divinas! Se Cristo revelasse a aquele primeiro rei, que viria tempo em que um descendente seu, qual foi o felicíssimo rei Dom Manuel, acrescentando a Portugal tantas partes da África, da Ásia e da América, de reino o levantaria a monarquia, este amplificador dela em todas as partes do mundo, digno objeto podia parecer de semelhante revelação divina. Mas tudo isto calou Deus, e só lhe revelou e prometeu este único parto de seus olhos, para que vejamos, no meio de tantas razões de admiração, quão grandes esperanças deve Portugal conceber deste prodigioso e fatal nascimento e quantas graças devemos dar a Deus, por em nosso tempo, e nesta idade, nos fazer uma tão inestimável mercê, que em tantos anos e séculos nossos antepassados só podiam ler e esperar, mas não alcançaram nem viram.

§ III

Isaías e o encarecimento das promessas antigas de Deus. Como pondera tanto o maior dos profetas maiores que a palavra de Deus, nas suas promessas antigas seja fiel, e não falte ao cumprimento delas, e, assim como antiquissimamente pronunciou as promessas, assim os efeitos depois lhes responderam com os améns. A confusão temerosa e o grande aperto em que se encontrou Portugal por morte de el-rei Fernando. Como mostra a Providência divina, e confirma ser ela a fundadora do reino de Portugal.

Dando graças a Deus o profeta Isaías, e ensinando-nos o que muito devemos ponderar em semelhantes casos ao nosso, diz assim: Domine, Deus meus es tu: Vós, senhor, verdadeiramente sois meu Deus: Exaltabo te, et confitebor tibi: Hei-vos de exaltar, hei-vos de louvar, hei-vos de dar muitas graças. - E por quê? Quoniam fecisti mirabilia: Porque obrastes grandes maravilhas. - E que maravilhas? Cogitationes antiquas fideles (Is. 25, 1): Fazendo que as vossas promessas, sendo tão antigas, fossem fiéis, e se cumprissem. E este seu dito fecha o profeta com uma cláusula extraordinária, acrescentando amen: Cogitationes antiquas fideles. Amen - como se dissera: Assim o prometestes e dissestes tanto tempo antes, e assim o vemos agora. - De maneira que a circunstância que Isaías tanto pondera e encarece nas promessas antigas de Deus, é que a sua antiguidade não diminuísse nem enfraquecesse a sua verdade: antiquas et fideles. - Mas esta circunstância ou advertência, tão ponderada e encarecida, nem parece digna de ponderação, nem de encarecimento, nem ainda de reparo. A verdade infalível das promessas de Deus nenhuma dependência têm do tempo. Tanto importa que sejam antigas como modernas, porque nem a brevidade lhe assegura a firmeza, nem a dilação lha pode fazer duvidosa. Na última noite de sua vida, prometeu Cristo a São Pedro que o havia de negar três vezes, e na mesma noite o negou. No princípio do mundo prometeu Deus à serpente que uma mulher lhe havia de quebrar a cabeça, e daí a quatro mil anos lha quebrou a bendita entre todas as mulheres. Pois, se para a inteireza inviolável da palavra divina tanto importa a brevidade de quatro horas como a dilação de quatro mil anos, como pondera tanto o maior dos profetas maiores que a palavra de Deus nas suas promessas antigas seja fiel, e não falte ao cumprimento delas, e que assim como ele antiga e antiquissimamente pronunciou as promessas, assim os efeitos depois lhe responderam com os améns: Cogitationes antiquas fideles. Amen?

A razão natural, e verdadeiramente admirável, desta circunstância, que o não parece, é porque nos tempos, nos anos, como a variedade e mudança das coisas humanas são tantas como as voltas da roda da fortuna, que nunca pára, é força que, contra a firmeza e estabilidade dos sucessos futuros, ocorram muitos encontros, muitos impedimentos, muitos estorvos, muitas dificuldades, muitos embaraços, e grandíssimas implicações. E quantas vezes Deus desvia esses encontros, desimpede esses impedimentos, desestorva esses estorvos, facilita essas dificuldades, desembaraça esses embaraços e desarma e desfaz essas implicações, tantas são as maravilhas que a providência, sabedoria e onipotência divina obra, para manter a verdade de suas promessas contra a mesma antiguidade delas: Quoniam fecisti mirabilia, cogitationes antiquas fideles. - E se não, vamos ao nosso caso, e vejamos quanto foi a antiguidade da promessa divina, desde que prometeu pôr os olhos na décima-sexta geração dos nossos reis, até que os pôs: Posuit in te, et in semine tuo post te, oculos misericordiae suae, usque ad decimam sextam generationem. -O dia em que Cristo apareceu a el-rei Dom Afonso Henriques, e fundou o reino de Portugal, foi aos 24 de julho de mil cento e trinta e nove; e o dia em que a décima-sexta geração restaurou o mesmo reino, foi ao primeiro de dezembro de 1640, de sorte que entre o fundador e o restaurador, entre el-rei Dom Afonso, o Primeiro, e el-rei Dom João o IV, entre o tronco da árvore dos reis portugueses e a décima-sexta geração do mesmo tronco, passaram pontualmente quinhentos anos inteiros. E nesta cumpridíssima antiguidade de quinhentos anos, qual seria o labirinto de impedimentos e dificuldades que os olhos divinos vigilantissimamente previam, e maravilhosamente venceram e desfizeram, para que o fio da décima-sexta geração se não rompesse, ou, quebrado, se tornasse a atar na mesma sucessão continuada? Só quem não tem lido e compreendido as nossas histórias não pasmará neste caso. Ponho um só exemplo.

Por morte de el-rei Fernando, aquele, como bem disse o nosso Homero, que todo o reino pôs em grande aperto, viu-se a sucessão e coroa do primeiro Afonso em um dos maiores perigos e apertos que se podem imaginar. O legítimo herdeiro, filho de el-rei D. Pedro, preso em Castela; o rei, que o queria ser por força, poderosamente armado; o governo nas mãos de uma mulher, e, sobre mulher, ofendida; os grandes divididos em parcialidades; as cidades duvidosas; as fortalezas, muitas entregues; a segunda nobreza seguindo a primeira, e só o povo favorável, mas povo. Neste estado, porém, e nesta confusão temerosa, em que tudo ameaçava a última e total ruína, que fariam os olhos de Deus, sempre vigilantes sobre Portugal? Assim como Sansão, para derrubar o templo dos filisteus, abraçou duas colunas, assim Deus levantou outras duas, para que o edifício, que ele fundara, se sustentasse, e não caísse. Estas colunas foram o Mestre de Aviz, Dom João, o Primeiro, e o Condestable D. Nuno Álvares, os quais, em tantas e tão desiguais batalhas, e com tantas e tão vantajosas vitórias, defenderam gloriosamente a pátria, e tiveram mão na coroa. Mas não parou aqui a perspicácia daqueles olhos, que não só vêem, como nós, o presente, e sempre se adiantam aos futuros. Para fazer imortais na vida aqueles mesmos dois heróis, que já se tinham feito imortais na fama, casa Deus um filho do rei com uma filha do condestable, e funda neles a Real Casa e Ducado de Bragança, lançando nesta segunda fundação, segundos e dobrados alicerces ao reino seu e nosso. E para quê? Para que, no caso em que faltassem os reis, os pudessem suprir e substituir os duques.

Ora, vede como nesta providência mostrou Deus outra vez, e confirmou ser ele o fundador do reino de Portugal. Um só reino temos de fé que fundou Deus neste mundo, que foi o reino de Judá, no povo que o mesmo Deus naquele tempo chamava seu. Ouçamos agora o que diz por boca de Jacó o texto sagrado, falando, ou fadando os sucessos futuros deste reino: Non auferetur sceptrum de Juda, et dux de femore ejus, donec veniat qui mittendus est (Gên. 49, 10): - Note-se muito a palavra sceptrum e a palavra dux: a palavra sceptrum significava os reis, a palavra dux significava os duques: e diz que não faltariam os reis e os duques da mesma descendência de Judá: Sceptrum Juda, et dux de femore ejus - em fé e profecia certa de que os duques haviam de substituir aos reis em falta deles. Assim foi pontualmente, porque, depois da transmigração de Babilônia ao último dos reis, que foi Joaquim, sucederam os duques, de que foi o primeiro Zorobabel, e depois dele os demais, até os Macabeus. Nos mesmos Macabeus tem a Real Casa e Ducado de Bragança, uma admirável confirmação e demonstração do que digo. Vendo alguns da mesma nação, mas não da mesma família, as grandes vitórias dos Macabeus, êmulos da mesma glória, formaram um pé de exército, e saíram contra os inimigos - que naquela ocasião eram os jamniamitas. - Mas ao primeiro encontro, mortos dois mil, que ficaram no campo, os demais o desampararam, fugindo com as mãos na cabeça. E por que foi este sucesso tão diverso dos que logravam os Macabeus? Dá razão a Escritura com um documento muito notável: Quia non erat de semine virorum illorum, per quos salus,facta est in Israel (1 Mac. 5, 62): Porque não era do sangue e descendência daqueles varões, que Deus reservou para a salvação de Israel. - De sorte que, assim como o general não mete todo o poder em batalha, mas deixa sempre em reserva os que nos exércitos romanos se chamavam triários, isto é, os mais escolhidos e valorosos soldados, para acudir e socorrer onde a necessidade o pedir, assim Deus, quando quer conservar um reino, divide o sangue real dele como em duas linhas, para que, na falta de uma, se defenda e sustente na outra. E esta segunda, não de qualquer geração indiferentemente, posto que da mesma nação, mas escolhida, e de sujeitos sinalados e heróicos, em que fique depositado, e como vivo, o valor de seus ascendentes. Isto é o que Deus fez na Real Casa de Bragança, fundada nos dois famosíssimos heróis D. João o I, e D. Nuno Álvares, deixando nela reservado um como seminário de semine virorum illorum - para que, na falta dos reis, fossem os restauradores do reino, como verdadeiramente o foram, no ano de quarenta, em que o mesmo que entre os duques era D. João o II, foi entre os reis D. João o IV.

§ IV

O perigo em que não só esteve arriscada a décima-sexta geração, mas quase de todo perdida. O cometa de 1580 e as observações do astrólogo Meslino. Como podia um matemático dizer ou predizer o que disse? Em que esteve o acerto da esperança dos portugueses? O que significava a prodigiosa estrela nova aparecida em 1604?

Mas não debalde ponderava tanto Isaías nas mesmas promessas divinas a circunstância da eternidade, porque na comprida carreira dos muitos anos se encontram tais tropeços e precipícios, que não só caem neles os estados mais firmes, mas derrubam e levam consigo as mesmas colunas, em que se haviam de sustentar. Este é o segundo e maior perigo, em que não só esteve arriscada a décima-sexta geração, mas quase de todo perdida. Morreu el-rei Dom Sebastião, com licença dos sebastianistas, e sem licença sua morreu também el-rei D. Henrique, ambos sem sucessão. Aqui sucedia natural e legitimamente a casa de Bragança, no direito da senhora D. Catarina; mas, como onde há força se perde o direito, aos reis faltou-lhes a vida, aos duques, que lhe haviam de suceder, faltou-lhes o poder: lá vai o reino a Castela. E que direi eu agora, Senhor, aos vossos olhos? Não são eles os prometidos, e não sois vós o que prometestes que os havíeis de pôr no reino do primeiro Afonso, até a décima-sexta geração: Usque ad decimam sextam generationem? - E onde está esta geração? Nos reis não, que morreram; nos duques não, que estão oprimidos e avassalados, e neles mais dificultosa a esperança do que nos mesmos reis, porque, se nos reis está morta, nos duques está sepultada: que diremos logo aos vossos olhos, ou que nos podem eles dizer? Eu o direi.

Andaram tão vigilantes e tão finos os olhos de Deus neste caso, ao parecer tão desamparado, que, se o direito da senhora Dona Catarina se oprimiu na terra, ele no mesmo tempo o levantou e fixou no céu, e de lá há de vir a décima-sexta geração, que ainda se não conhece, porque ainda não é. Ouvi agora um dos maiores prodígios que nunca se viu no mundo. No ano de 1580, em que morreu o último rei Dom Henrique, e por força dominou o nosso reino Filipe, que depois se chamou o Primeiro de Portugal, apareceu um cometa - que nunca o céu acende debalde - ou fosse outro, ou o mesmo que tinha aparecido e desaparecido dois anos antes, em que também faltou el-rei D. Sebastião. Observou este cometa um astrólogo de não grande fama, chamado Meslino, e imprimiu o juízo que fez dele em um tratado particular, no qual disse que aquele cometa de mil quinhentos e oitenta apontava com o dedo para o ano de 1604, e que neste ano havia de aparecer no céu uma nova maravilha, no mesmo lugar em que o mesmo cometa tinha desaparecido. Riram-se todos os outros matemáticos da audácia deste presságio, senão quando passados vinte quatro anos, no mesmo ano sinalado de mil e seiscentos e quatro, aparece no dito lugar uma estrela novamente nascida, e nunca vista no céu. Quero referir o caso pelas palavras do mesmo Meslino, o qual, triunfando com o seu presságio, e referindo-se ao seu primeiro tratado, de que era testemunha todo o mundo, pede ao mesmo mundo se lembre dele, e, escrevendo no mesmo ano de 1604, à vista da prognosticada estrela, que brilhando no lugar sinalado, levava após si os olhos e admirações de todos, diz assim: Rogo autem legas quae in tractatu meo Meteorastrologo Physico de Cometa, anni millesimi quingentesimi et octogesimi scripserim: invenies, mirabile dictu, cometam dicti anni digitum intendisse in hanc novam stellam: disparuit enim in hoc loco, quo nunc stella fulget.

Suposta a verdade prodigiosa deste sucesso, pede agora a razão e a curiosidade que examinemos como podia um matemático dizer ou predizer o que disse, e qual seja a significação da nova estrela, nascida no mesmo lugar onde morreu o cometa, e não em outro ano, senão no de 1604? Heplero, um dos mais famosos matemáticos deste século, e que escreveu um doutíssimo livro sobre a mesma estrela nova, diz que Meslino, por nenhuma arte, ciência ou razão natural podia argüir, e muito menos conhecer, o que tanto antes escreveu; mas que foi impulso e instinto divino que lhe moveu a pena, e que lhe arrebatou a imaginação a aquele pensamento. E, quanto à significação da estrela, diz que tanto que foi vista e reconhecida pelos astrólogos de Alemanha a novidade dela, todos a uma voz diziam: Stella nova, rex novus: Estrela nova, reino novo; estrela nova, rei novo. - E acrescenta o mesmo autor que foi tal o alvoroço popular, com que esta mesma significação de rei novo se aceitou quase tumultuosamente, que os magistrados mandaram armar as cidades, para que os povos nelas não levantassem, ou alguém se atrevesse a se chamar rei. Mas a astrologia alemã, acertando no nome e dignidade de rei, se enganou em tudo o mais, porque a mesma estrela estava dizendo e apontando que a província havia de ser Espanha, o reino Portugal, e a pessoa el-rei D. João o IV. A província Espanha, porque a estrela apareceu no signo de Sagitário, que domina sobre Espanha; o reino Portugal, porque apareceu no Serpentário, que é o reino que tem por timbre a serpente; e a pessoa el-rei D. João o IV, o qual nasceu no mesmo ano de mil seiscentos e quatro, em que nasceu a estrela. E, assim como a estrela nasceu no lugar onde morreu o cometa, assim ele nasceu para suceder ao lugar em que morreu D. Henrique. E este foi o pensamento e bem entendida propriedade com que o mesmo rei, tanto que sucedeu no reino, tomou logo por empresa uma fênix coroada, porque das cinzas de D. Henrique ressuscitou como fênix a coroa, que nele morto se tinha sepultado.

Uma das finezas ou galantarias de que se preza a liberalidade divina, é dar coroas por cinzas. Lá o disse por boca de Isaías: Ut darem eis coronam pro cinere[4]. - Assim o fez com el-rei D. João, a quem pelas cinzas dos dois reis, que morreram sem sucessão, deu a sucessão da coroa. Os dois últimos reis que morreram sem sucessão, já dissemos que foi primeiro el-rei D. Sebastião, e depois el-rei D. Henrique, e ambos concorreram com as suas cinzas, um para o nascimento, outro para a vida do novo rei. Dom Henrique concorreu com as suas cinzas para o nascimento de el-rei D. João, porque das cinzas de Dom Henrique, como fênix, nasceu D. João ressuscitado; e D. Sebastião concorreu com as suas cinzas para a vida do mesmo rei, porque debaixo das cinzas de el-rei D. Sebastião morto se conservou D. João vivo. Notai uma admirável sutileza da providência e previdência dos olhos divinos, para conservar viva a décima­sexta geração, em que os tinha postos. Sempre os portugueses esperaram por um rei que os havia de restaurar. E em que esteve o acerto da sua esperança? Em errarem o esperado. Se esperaram acertadamente por el-rei D. João, ele e nós éramos perdidos, porque os ciúmes e temor desta esperança, quando o não tirassem do mundo, o haviam de tirar de Portugal. E que fez a Providência divina para o conservar a ele, e nele a nós? Fez que os portugueses dessem em esperar por el-rei D. Sebastião. Para quê? Para que a esperança do rei morto, em que não havia que temer, conservasse sem perigo a sucessão do vivo. Assim se continuou este milagre por espaço não menos que de trinta e seis anos, cegando Deus tanto os que deviam esperar como os que deviam temer, porque desde o ano de seiscentos e quatro, em que el-rei D. João nasceu, até o ano de seiscentos e quarenta, em que nos restaurou debaixo das cinzas do falsamente esperado, se conservou a vida do verdadeiramente prometido. Não se conserva a brasa encoberta e viva debaixo das cinzas que a cobrem e escondem? Pois, assim se conservou a décima-sexta geração de D. Antônio debaixo das cinzas de D. Sebastião, sem ninguém esperar nem imaginar tal coisa. Chegou o ano de quarenta, assoprou Deus as cinzas, e apareceu a brasa viva. Viva para ressuscitar o reino e os vassalos; e brasa, para executar nos contrários, ou contraditores, o que nós vimos, e eles sentiram.

§V

A prole atenuada da décima-sexta geração. A morte dos príncipes D. Teodósio e D. Afonso. As núpcias da Infanta de Portugal com um príncipe da Casa de Sabóia. De que modo se cumpriu a profecia divina com relação à prole atenuada, se el-rei D. Pedro tinha três filhos?

Segura já a décima-sexta geração, e a promessa dela, resta só a da prole, e prole atenuada. Aqui têm os olhos divinos mais que desfazer do que fazer, porque a prole de el-rei D. João o IV não foi atenuada, senão multiplicada. Diz Salomão que o fio, ou cordão de três ramais, dificultosamente se rompe: Funiculus triplex difficile rumpitur (Ecl. 4, 12) - e tal foi a prole de el-rei D. João, multiplicada ou triplicada em três filhos: em D. Teodósio, em D. Afonso, em D. Pedro. Destes três havia de desfazer a Providência divina dois deles, para que ficasse a prole atenuada em um só. E se Deus consultasse ao reino sobre quais haviam de ser os dons que desfizesse, eram cada um dos três tão dignos, por suas qualidades verdadeiramente reais, de que nós lhes desejássemos muito larga vida, que o mesmo reino havia de pedir a Deus no-los conservasse todos.

O primeiro era o príncipe D. Teodósio, aquela grande alma, na qual a perfeição das três potências nem dava nem admitia vantagem: a memória felicíssima, o entendimento agudíssimo, a vontade humaníssima. Excelente em todas as graças da natureza, e igual em todos os dotes da graça; tão santo como sábio, e tão universal em todas as ciências, que em idade de catorze anos disputava com tal compreensão em todas que, tendo-as adquirido sem mestre, admirava os mestres dela. Na lição e eleição dos livros, com tal estudo se aplicava aos sagrados, que nem por isso desestimava os humanos: sempre trazia consigo da parte direita a Bíblia, e da esquerda Homero. Ameníssimo nas virtudes de homem, severo e gravíssimo nas de príncipe. Parece que criou Deus aquele prodígio só para o mostrar ao mundo, e logo o recolher: Ostendet terris hunc tantum, fata neque ultra esse sinent. - Acabou na flor da idade, e naquela flor se secaram as esperanças de Portugal e as invejas da Europa. Era, conforme o seu nome, dado por Deus, que isso quer dizer Teodósio: Deus o deu, e Deus o levou: Dominus dedit, Dominus abstulit.

Aqui ficou a prole da décima-sexta geração já começada a se atenuar, mas ainda em dois fios. Foi o segundo o infante D. Afonso, depois rei, o sexto do nome. Raro príncipe se achará nos anais da fortuna, que em toda a sua vida a experimentasse tão vária; mas também se não achará outro que mais a sujeitasse no seu reinado, e a lograsse mais próspera e mais constante. Em seu tempo se armaram com todo o poder as maiores forças contrárias; em seu tempo se guerrearam nas nossas campanhas as maiores batalhas; e em seu tempo, sem exceção, triunfou sempre Portugal com as maiores vitórias. Era manco de um pé, era aleijado de um braço, e naquela parte da cabeça padecia o mesmo defeito, porque a força do mal, de que escapou quase milagrosamente, como diziam os médicos, o partiu pelo meio; mas, assim partido pelo meio, o vimos sempre vitorioso, que parece quis mostrar Deus a todas as nações que bastava a metade de um rei de Portugal para resistir e vencer a maior monarquia do mundo. Morreu enfim o felicíssimo Afonso, acompanhando no mesmo dia e na mesma hora o seu enterro e a sua fortuna, por terra o seu povo com lágrimas, por mar as suas frotas sem bandeiras[5].

Assim cortou a Providência divina aquelas duas vidas, dignas de viverem imortalmente, para que em um só e único filho ficasse atenuada a prole, em que Deus tinha prometido de olhar e ver: Et in ipsa attenuata, ipse respiciet et videbit. - Assim ficou el-rei D. Pedro, nosso senhor, desde o dia em que passou desta vida el-rei D. Afonso. Mas, sendo ele a prole atenuada, tão longe esteve Deus então de olhar e ver, que antes parece que cerrou totalmente os olhos: o olhar e ver de Deus, como vimos, consistia em dar à prole atenuada filho varão, e naquele estado, posto que a prole já estivesse atenuada, nem Deus lhe deu filho varão, nem lho podia dar: por quê? Porque el-rei naquele estado achava-se com filha e com mulher, e nem a filha era filho, nem da mulher o podia ter. E porque da mulher não podia ter filho, e da filha podia ter neto, este foi o desengano com que a prudência humana, sem atender à fé da promessa divina, tratou de que o filho, que a rainha não podia dar ao reino, ao menos lho desse o seu apelido, e assim o fomos buscar a Sabóia.

Contratado o casamento com um tão grande príncipe, posto que estrangeiro, fez-se em Lisboa, onde eu me achava, uma soleníssima procissão em ação de graças. E, como ao entrar do Rocio tropeçasse o cavalo de São Jorge, e caísse o santo, caso nunca até então sucedido, lembra-me que ouvi dizer a um sujeito bem conhecido na corte: - Só São Jorge caiu no que isto é: aquela procissão não é procissão, é um enterramento mal conhecido, em que Portugal, com festas e danças, vai sepultar a baronia dos seus reis naturais; mas não havia Deus de permitir tal coisa, porque tinha prometido o contrário. E quando a armada partiu para Sabóia, tão alcatroada de ouro por fora, e tão carregada de diamantes e jóias por dentro, disse o mesmo autor: -Posto que a nossa armada sai tão rica pela barra de Lisboa, ainda há de tornar mais rica. - E, perguntado por quê: - Porque não há de trazer o que vai buscar. - Assim conhece os futuros quem penetra as profecias, e se fia nas promessas de Deus. Que disse Deus? Que na prole atenuada da décima-sexta geração de el-rei D. Afonso, o Primeiro, ele olharia e veria. E quem foi a décima-sexta geração de D. Afonso, o Primeiro? El-rei D. João, o Quarto. E quem é a prole atenuada de el-rei D. João, o Quarto? EI-rei D. Pedro, nosso senhor. Logo, ainda que a infanta, que Deus guarde, tivesse filho, e el-rei de sua filha tivesse neto varão, de nenhum modo se cumpria nele a promessa divina. Por quê? Por que el-rei é geração décimasétima, a senhora infanta é geração décima-oitava, e a prole atenuada, a quem Deus prometeu dar o filho varão, não havia de ser prole da geração décimaoitava, nem da geração décima-sétima, senão da geração décima-sexta: Usque ad decimam sextam generationem, in qua attenuabitur proles, et in ipsa tenuata ipse respiciet et videbit.

Que remédio logo para que os olhos divinos pudessem olhar e ver? O que eu há tantos anos ponderei, e diante destas mesmas testemunhas prometi a Portugal. O remédio era que o matrimônio, de que a prole atenuada não podia ter filho, o desfizesse a morte, para que, tirado aquele impedimento, pudesse a mesma prole atenuada contrair segundas e mais felizes bodas, e assim foi. Com a rainha, que Deus tem, levou a morte a esterilidade ao túmulo; com a rainha, que Deus nos deu, e ele guarde muitos anos, introduziu o mesmo Deus a fecundidade ao tálamo. E no mesmo ponto se abriram os olhos divinos, que parece estavam cerrados, porque dentro do mesmo ano a prole atenuada, que estava em um só fio, se viu fortalecida com outro fio, ou com outro fiador. E este filho varão, com cujo felicíssimo nascimento nos alegramos, é o fruto, é o efeito, e é o desempenho prometido do olhar e ver de Deus: Ipse respexit et vidit.

§ VI

A grande parte que teve São Francisco Xavier no nascimento do novo infante. S. Francisco Xavier nas visões proféticas de el-rei D. Afonso. São Francisco Xavier e a conquista do mundo pelos portugueses. De que modo Xavier, sendo navarro, foi enxertado por Deus em português. Quais foram os frutos deste enxerto?

E porque não é justo que nesta grande mercê, de que damos graças a Deus, nos esqueçamos de São Francisco Xavier, ouça também a Bahia a grande parte que nela teve o seu padroeiro. El-rei D. João, o Terceiro, foi o que chamou de Roma a São Francisco Xavier antes de o conhecer, e, depois de conhecidas em Lisboa suas admiráveis virtudes, o mesmo rei foi o que, não só encomendou a seu zelo a conversão das gentilidades da índia, senão também a reforma dos portugueses, e ainda as mesmas fortalezas e conquistas, e quanto a sua coroa dominava no Oriente. Que muito logo que um santo de tão nobre condição agradecesse as obrigações que devia a D. João o III em D. João o IV, décima-sexta geração, e pai da prole atenuada? Mas vamos ao nosso texto. Quando Cristo apareceu a el-rei D. Afonso, diz ele no seu juramento que a primeira coisa que viu, antes de ver ao mesmo Senhor, foi um raio de luz, que diante dele vinha, e saía da parte do Oriente: Vidi subito a parte dextra Orientem versus micantem radium. - E quem é o raio da luz do Oriente, senão Xavier? Este raio foi o que vinha diante de Cristo, como seu precursor, quando o mesmo Senhor em pessoa veio anunciar ao primeiro rei as felicidades de sua descendência.

Mais diz o mesmo texto e o mesmo Cristo nele em duas partes. Na primeira, que ele, como fundador dos reinos, fundava o de Portugal, para que o seu nome fosse levado a nações e gentes estranhas: Ut deferatur nomen meum in exteras gentes. - Na segunda, que para uma grande messe, que havia de colher em terras muito remotas, tinha escolhido por seus segadores aos portugueses: Elegi eos in messores meos in terris longinquis. - De maneira que na primeira revelação falou Cristo dos pregadores, e na segunda dos segadores: os segadores vão armados de ferros, os pregadores só levam por armas o nome de Deus e a sua palavra: e estes são os dois instrumentos com que os reis de Portugal conquistaram o Oriente para Deus e para si. Para Deus, com a pregação do Evangelho; para si, com as armas de seus soldados e capitães, entre os quais o mais insigne de todos nossos conquistadores foi o mesmo Xavier em ambas as milícias. Na do céu, com a pregação, convertendo tantos reis, tantos remos, tantas nações de gentios. Na da terra com a oração, tendo tanta parte, como lemos em sua vida, nas mais dificultosas batalhas e famosas vitórias dos portugueses. Este foi o presságio com que Xavier nasceu no mesmo ano em que Vasco da Gama se partiu a descobrir a índia; este foi o mistério com que sonhava, que trazia aus ombros um índio agigantado, cujo peso o fazia suar e gemer; esta foi a evidência com que Deus revelou a soror Madalena de Jasso, sua irmã, quando ele estudava em Paris, que havia de ser um apóstolo da índia. Mas isto mesmo já muitos séculos antes estava revelado, porque, assim como em São Paulo se cumpriram as palavras de Cristo ditas a Ananias: Vas electionis est mihi iste, ut portet nomen meum coram gentibus[6]- assim em Xavier se cumpriram as palavras do mesmo Cristo ditas a el-rei D. Afonso: Ut deseratur nomen meum in exteras gentes.

Só tem este ponto uma dúvida, e é que tudo o que Cristo revelou a el-rei D. Afonso, a respeito da conversão das gentes e terras de muito longe: In terris longinquis - o mesmo Senhor disse que havia de ser por meio dos portugueses: Per illos enim paravi mihi messem multam - e o santo Xavier não era português, senão navarro. A isto se pode responder que Santo Inácio, e el-rei D. João o HI, o naturalizaram em português: Santo Inácio, mandando-o a Portugal, e el-rei D. João à índia. Mas não foi o santo patriarca nem el-rei os que fizeram a Xavier português, senão Deus. O que Santo Inácio tinha escolhido e nomeado para aquela missão era outro de seus nove companheiros, chamado Nicolaz de Bovadilha, e a Xavier, que só estava então em Roma, tinha-o destinado para o tinha-o destinado para o ter sempre consigo. E que fez Deus? À véspera da partida, deu uma tão forte enfermidade ao Bovadilha, que ficou totalmente impedido para a jornada, e, arrancando Deus dos braços de Santo Inácio a Xavier, lhe fez conhecer como por força que ele era o que sua providência tinha escolhido para esta grande empresa. Assim foi Xavier substituído para ir a Portugal e à índia, e Deus o que o fez português. Mas de que modo? Altíssimo. Pelo mesmo modo com que Deus fez homem a seu filho. Uma das coisas mais notáveis que escreveu o apóstolo São Tiago, é que enxertou Deus o Verbo Eterno no homem, para poder salvar as nossas almas. Este é o sentido definido pelo Concílio Vienense daquelas palavras: Suscipite insitum verbum, quod potest salvare animas vestras[7]. - De sorte que das três pessoas, ou dos três garfos da Santíssima Trindade, separou Deus o segundo, que é o verbo, e o enxertou no homem, para que desta maneira, unidas em um suposto duas naturezas, uma do céu, e divina, outra da terra, e humana, pudesse o mesmo Verbo pregar, padecer, morrer e salvar o mundo. Ao mesmo modo Xavier. Sendo Xavier navarro, enxertou-o Deus em português, unindo no mesmo sujeito duas naturezas, uma com que era natural de Navarra, e outra com que ficasse natural de Portugal, para que desta sorte pudesse pregar, trabalhar e morrer na conversão do novo mundo, e salvar aquelas almas, para cuja salvação tinha Deus escolhido particularmente aos portugueses: Elegi eos in messores meos in terris longinquis.

Em suma, que São Francisco Xavier foi um navarro enxertado em português. E quais foram os frutos deste enxerto? Dois, e muito grandes. O primeiro, o reino para o avô; o segundo, o nascimento para o neto. El-rei D. João o IV, avô do nosso novo príncipe, quando foi aclamado, e quando reconhecido rei? Aclamado em Lisboa, na véspera de São Francisco Xavier, e reconhecido em Vila Viçosa, no dia do mesmo santo. Cantava-se na capela do palácio de Vila Viçosa a missa de São Francisco Xavier, a que assistiam os duques, quando lá chegou pela posta Pedro de Mendonça, que em nome do reino beijou a mão de joelhos ao duque já rei, falando-lhe por majestade, e, com a mesma cerimônia, como se presentasse à duquesa, que diria aquela grande princesa, como tão pia e tão discreta? O que disse foram estas palavras: - Muitas graças sejam dadas a S. Francisco Xavier, que comecei a ouvir a sua missa duquesa com excelência, e acabá-la-ei rainha com majestade. Nesta forma concorreu Xavier na sua véspera e no seu dia para o reino do avô. E para o nascimento do neto, de que modo, e quando? Ou na mesma véspera, ou no mesmo dia, se lançarmos bem as contas.

§ VII

Como e quando concorreu Xavier para o nascimento do príncipe D. João? O nascimento do novo infante e o nascimento do Batista. Quando foi concebido o novo príncipe? Por que razão o filho alcançado pela intercessão de São Francisco Xavier não havia de ser filha, senão necessariamente filho? O milagre de Comorim.

Sabida coisa é, ainda tão longe de Lisboa, como nós estamos, que a rainha, que Deus guarde, nossa senhora, todas as sextas-feiras ia a São Roque, pedir a São Francisco Xavier este tão desejado filho, e, depois que reconheceu tê-lo alcançado por sua intercessão, não desistiu em continuar a pedir ao mesmo santo lhe felicitasse o parto. Mas, se este mesmo filho, e não outro, era o que mais de quinhentos anos antes estava prometido por Deus, parece que estas orações eram supérfluas, e ainda encontradas com a fé da mesma promessa. Não eram senão muito necessárias, e muito bem entendidas. Por quê? Porque, quando Deus promete sem lhe pedirem, para conceder o mesmo que prometeu, quer que lho peçam de novo; e se o prometido é filho, que lho peçam os mesmos pais. Notai agora todas estas circunstâncias em uma só prova. Também havia quinhentos e tantos anos pontualmente que Deus tinha prometido o nascimento do Batista pelo profeta Malaquias: Ecce ego micto angelum meum, qui praeparabit viam tuam ante te[8]. - Não é o expositor deste texto menos que o mesmo Cristo. Depois de todo este tempo, fazendo sacrifício, e orando Zacarias no Templo, apareceu-lhe um anjo, o qual lhe disse que Deus tinha ouvido sua oração: Exaudita est oratio tua (Lc. 1, 13) - e que Isabel, sua mulher, lhe pariria um filho: Et uxor tua Elisabeth pariet tibi filium (ibid.). - Vede outra vez se pode haver retrato do nosso caso mais parecido. A promessa do filho feita quinhentos e tantos anos antes, o filho prometido concedido nomeadamente pelas orações do pai, e a mãe do filho não outra, ou de outro nome, senão Isabel: Elisabeth pariet tibi filium. - Pois, se o filho estava prometido tantos anos e tantos séculos antes, por que não diz o anjo a Zacarias, que cumprira Deus a sua promessa, senão que ouvira a sua oração: Exaudita est oratio tua? - Porque os filhos, que Deus promete aos pais quando lhos não pediram nem podiam pedir, não lhos concede efetivamente depois, senão por meio das orações com que então lhos pedem. E assim foi em um e outro caso, em um e outro filho, e em um e outro nascimento.

E se alguém notar que no nascimento, que nós celebramos, houve alguma disparidade, porque, para ser igual e semelhante em tudo, havia-se de atribuir o filho às orações de Isabel, e não às de Zacarias, digo que não foi disparidade ou diferença, senão muito maior propriedade, porque, ainda que a rainha Isabel, nossa senhora, foi a que fazia as romarias e as orações a S. Francisco Xavier, o mesmo Xavier foi o Zacarias, a cuja oração e intercessão confessou sempre Sua Majestade que devia aquele filho. Assim o tive eu por duas cartas, em que de boca de seu confessor, reconhecendo-se já mãe Sua Majestade, prometia que ao filho - que não duvidava ser filho - havia de pôr por sobrenome Xavier, porque São Francisco Xavier lho dera. E para que o provemos com efeito, lancemos as contas que eu dizia. Pelos dias do parto e do nascimento se inserem naturalmente os da conceição: e quando nasceu o nosso príncipe? Aos trinta de agosto. Logo, bem se infere que foi concebido ou na véspera ou no dia de São Francisco Xavier, que são o primeiro e o segundo de dezembro. Contemos agora. Dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto: eis aqui pontualmente os nove meses. Digamos logo todos, dando graças a São Francisco Xavier: Exaudita est oratio tua - e, dando o parabém a el-rei, nosso senhor: Uxor tua Elisabeth pariet tibi filium.

Reparando, porém, nesta última palavra filho, ainda que este fruto de bênção, ou a bênção deste fruto, seja sempre efeito dos olhos de Deus: Ipse respiciet et videbit - parece que havia de ser filha, e não filho o que Deus nos desse, pois, sendo filha de tais pais, não podia deixar de ser também a menina dos olhos divinos, que este é o termo mais encarecido do amor, do cuidado e da proteção divina, como Davi dizia a Deus: Custodi me ut pupillam oculi[9] - e Deus aos que mais ama: Qui vos tangit, tangit pupillam oculi mei[10]. - Que melhor desempenho logo podia desejar a geração atenuada, ou que maior favor podia esperar do olhar e ver de Deus, que dar-lhe Deus uma menina dos seus olhos? Bem pudera ser assim; mas, uma vez que S. Francisco Xavier foi o intercessor, não havia de ser filha, senão filho.

Dificultoso assunto, se o mesmo santo de antemão me não tivera dado a prova. Na costa de Comorim, pediu um índio a São Francisco Xavier que lhe desse um filho. Passados não muitos dias, reconheceu a mulher que o santo tinha ouvido a oração do marido, mas com efeito ainda duvidoso e oculto. Enfim, saiu a seu tempo o parto à luz, e o que nasceu era uma menina. Desconsolado, o pai levou a criaturinha à igreja, pô-la sobre o altar do santo, dizendo: - Aqui vos trago, santo meu, o que me destes, mas não é isto o que vos pedi: já que é filha, seja vossa; se me derdes um filho, então o terei por meu. Considero neste passo ao grande obrador dos milagres como o oficial a quem enjeitam a obra. E que faria Xavier? Resolveu-se o índio, não a criar a menina como filha, mas a mandá-la sustentar como enjeitada, senão quando, indo a tirá-la outra vez do altar, viu subitamente que se tinha transformado em menino. Menino! Correm todos os que estavam na igreja a ser testemunhas do milagre, dão em gritos as graças e louvores ao santo, e não o parabém ao índio, que se o índio tinha sido pai da menina, o santo o foi do menino. Razão tenho eu logo para dizer que, se o felicíssimo parto que celebramos, por ser dos olhos de Deus, não houvera de ser filho, senão filha, bastava que fosse alcançado por intercessão de São Francisco Xavier para ser filho: filho, por ser ele o que o pediu, e muito mais filho, por serem os olhos de Deus os que o deram, porque o efeito infalível do olhar e ver de Deus é dar filho varão: Si respiciens videris, et dederis mihi sexum virilem. - Assim o tinha prometido o mesmo Deus à prole atenuada: In ipsa attenuata ipse respiciet et videbit - e assim o vemos cumprido na mesma prole: Ipse respexit et vidit.

§ VIII

A figura do novo príncipe nas profecias de Cristo a el-rei D. Afonso Henriques. Que império é o de que há de ser imperador o fatal mesmo que hoje nasce? O império de Cristo e de Portugal nos sonhos de Nabucodonosor e nas visões de Zacarias.

Até aqui tenho falado sobre o que temos por novas do nosso príncipe, de quem nem o nome sabemos. Mas, se não lhe sabemos o nome da pessoa, eu lhe direi o nome da dignidade, levantando agora figura ao seu nascimento. Digo que este príncipe fatal, tantos séculos antes profetizado, e em nossos dias nascido, não só há de ser rei, senão imperador. Dirá alguém que rei, pela geração real de seu pai, e imperador, pelo sangue imperial de sua mãe. Mas não são estas as casas dos planetas em que se funda a minha figura. Tornemos ao nosso texto, do qual me não hei de apartar nem em uma vírgula. Quando Cristo, Senhor nosso, apareceu ao rei ou ao príncipe D. Afonso Henriques, antes de ser rei, disse-lhe assim: Ego aedificator et dissipator imperiorum et regnorum sum: Eu sou o edificador e o dissipador, o que levanto e o que abato, o que faço e o que desfaço os reinos e os impérios. - Nesta palavra impérios reparo muito. O fim deste milagroso aparecimento, como declarou o mesmo Cristo, foi para lançar a primeira pedra na fundação do reino de Portugal: Ut initia regni tui supra firmam petram stabilirem: - foi mais para que o mesmo príncipe não duvidasse aceitar o título real, quando o seu exército o aclamasse por rei antes da batalha: Gentem tuam invenies petentem, ut sub regis nomine in hac pugna ingrediaris, nec dubites. - Pois, se a fundação era somente de reino, e o título somente de rei, parece que bastava dizer o Senhor que ele era o fundador e edificador dos reinos. Por que disse logo, e acrescentou que não só era edificador dos reinos, senão dos reinos e dos impérios? Porque, se de presente queria fundar um reino, e fazer um rei, de futuro tratava de fundar um império, e fazer um imperador. Vamos ao texto: Posuit enim super te, et super semen tuum post te, oculos misericordiae suae: Pôs Deus os olhos de sua misericórdia sobre ti, e sobre a tua descendência depois de ti. - Note-se muito aquele super te e aquele post te. De maneira que no mesmo tempo tinha Deus posto os olhos em Afonso, para então, e na sua descendência para depois: em Afonso para o reino,e na sua descendência para o império; em Afonso para o fazer rei, e em algum descendente seu para o fazer imperador. E quem era este descendente? Manifestamente é o príncipe profetizado, que hoje temos nascido, porque dele, e só dele continua falando o mesmo texto: Posuit super te, et super semen tuum post te, oculos misericordiae suae. - E até quando? Usque ad decimam sextam generationem, in qua attenuabitur proles, et in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit. - E como o objeto do olhar e ver de Deus era o filho varão prometido à prole atenuada, e Deus então só tinha diante dos olhos a Afonso, e a este seu descendente, e só deles falava, assim como ao rei pertencia de presente a fundação do reino, assim a este seu descendente de futuro a fundação do império: Ego enim aedificator sum regnorum et imperiorum.

Tudo o que daqui por diante hei de dizer confirma este mesmo pensamento. E, para que o entendamos melhor, e façamos dele o conceito e estimação que merece, saibamos que império é este, de que há de ser imperador aquele fatal menino que hoje se está embalando no berço. Agora ouvireis muito mais do que tenho dito. Digo que este império não será o de Alemanha, nem outro igual dos que até agora adquiriu o valor ou repartiu a fortuna; mas um império novo, maior que todos os passados, não de uma só nação ou parte do mundo, mas universal, e de todo ele. Que haja de haver este império é certo, e consta de muitas Escrituras Sagradas. Nabucodonosor, aquele grande monarca, pôs-se uma noite a considerar se o seu império seria perpétuo, ou se depois dele sucederiam outros no mundo, e, adormecendo com estes pensamentos, viu aquela famosa estátua, tantas vezes pregada nos púlpitos, cuja cabeça era de ouro, o peito de prata, o ventre de bronze, e daí até os pés de ferro. Viu mais, que uma pedra caída do alto, dando nos pés da estátua, a derrubava e fazia em pó, e a mesma pedra crescendo se aumentava e dilatava em um monte de tanta grandeza, que enchia toda a terra. Este foi o sonho de que Nabucodonosor totalmente se esqueceu, até que o profeta Daniel lho trouxe outra vez à memória, e lhe declarou a significação dele. - A cabeça de ouro - diz Daniel - significa o primeiro império, que é o dos assírios, a que hão de suceder os persas; o peito de prata significa o segundo império, que é o dos persas, a que hão de suceder os gregos; o ventre de bronze significa o terceiro império, que é o dos gregos, a que hão de suceder os romanos; os demais de ferro, até os pés, significa o quarto império, que é o dos romanos, a que há de suceder o da pedra que derrubou a estátua; e a mesma pedra significa o quinto império, a que nenhum outro há de suceder, porque ele é o último: e, assim como a pedra se levantou à altura, e se estendeu à grandeza de um monte que encheu todo o mundo, assim este império dominará o mesmo mundo, e será reconhecido e obedecido de todo ele. Não vos parece que será grande monarca, e muito superior a todos, e mais famoso e glorioso de quantos tem havido, o que for senhor e imperador deste novo e quinto império? Pois este é o que a Providência divina tem destinado para o empenho do olhar e ver de seus olhos, que é aquele grande menino, de quem podemos dizer: Puer datus est nobis, et filius datus est nobis,cujus imperium super humerum ejus[11].

Mas vejo que me estão replicando tantos doutos quantos me ouvem que, assim como estas últimas palavras se disseram literalmente de Cristo, assim o novo e quinto império também é o de Cristo: logo, não é, nem pode ser o do nosso príncipe. Nego a conseqüência. E, posto que o argumento parece forte, tão fora está de fazer objeção ao que tenho dito, que antes o confirma mais. Torne o nosso texto. Que disse Cristo por sua sagrada boca a el-rei D. Afonso? Volo in te et in semine tuo imperium mihi stabilire: Quero em ti, e na tua descendência, fundar e estabelecer um império para mim. Primeiramente, já não fala de reino, senão de império: imperium - e esse império em quem, e para quem? Em ti, e para mim: in te, mihi. - Venham agora todos os doutores do mundo, e todos os intérpretes mais sábios, mais agudos, e mais escrupulosos, e casem-se este te com este mihi, e este mihi com este te. Hei de fundar um império - diz Cristo - em ti - in te - mas para mim - mihi; e que quer dizer em ti e para mim? Quer dizer que será império de Cristo e do rei de Portugal juntamente. Porque é fundado para mim - mihi - é meu; porque é fundado em ti - in te - é teu: Logo, se o mesmo império é meu e teu, é de ambos, e estes ambos, ou estes dois, quais São? Cristo, que o disse, e o rei de Portugal, a quem o disse.

E por que razão, depois de dizer o mesmo Senhor in te: em ti, acrescentou et in semine tuo post te: e na tua descendência depois de ti? Porque era império em promessa e em profecia: em promessa para o rei presente, em profecia para o descendente futuro: fundado agora em ti, e depois levantado nele. Mas em ti, e na tua descendência, sempre império para mim: in te, et in semine tuo imperium mihi - porque, assim como o piloto governa o leme, e o sol governa o piloto, e ambos governa a nau, assim eu desde o céu dominarei e governarei o império como meu, e tu neste mundo o dominarás e governarás como teu. Melhor exemplo ainda. Assim como o mesmo Cristo fundou a sua Igreja em São Pedro e seus sucessores, assim fundou o seu império em D. Afonso, e sua descendência. Que disse Cristo a São Pedro? Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam[12]. - Do mesmo modo, pois, em lugar de Ecclesiam ponde imperium; em lugar de meara, ponde mihi; em lugar de tu es Petrus, et super hanc petram, ponde in te, et in semine tuo - e, assim como a Igreja universal, por ser de Cristo, não deixa de ser de Pedro, por ser de Pedro não deixa de ser de Cristo, assim o império universal, sem deixar de ser de Cristo, por ser de Portugal, e sem deixar de ser de Portugal, por ser de Cristo, será império de Cristo e império do rei de Portugal juntamente.

Bem vejo que todos aprovam a semelhança, que não pode ser maior. E por que a ninguém fique o escrúpulo de ser ou parecer minha, ouçamo-la de boca do profeta Zacarias, na mesma igreja e no mesmo império. Mostrou Deus a Zacarias quatro carroças, pelas quais tiravam outros tantos cavalos, todos diversos nas cores, e que corriam por partes também diversas. Os da primeira carroça eram castanhos, os da segunda pombos, os da terceira murzelos, os da quarta remendados, e acrescenta o texto que fortes: Equi varii et fortes (Zac. 6, 3). - Estas quatro carroças significavam os quatro impérios, que sucessivamente precederam ao quinto, simbolizando nas rodas sua perpétua revolução e inconstância, e nos cavalos não serem governados de homens, e por razão, mas sem uso dela, levados e arrebatados por brutos. Tal era a brutal ambição e soberba dos que as dominavam, cada um segundo a idéia das próprias paixões, que também se retratavam na diversidade das cores. A primeira carroça era o império dos assírios, a segunda o dos persas, a terceira o dos gregos, a quarta o dos romanos. Restava somente o quinto e último império, e este declarou Deus ao profeta, ou mandou que o representasse na forma seguinte: Sumes aurum et argentum, et facies caronas, et pones in capite Jesu filii Josedech (ibid. 11): Tomarás Zacarias ouro e prata, e destes dois reis dos metais farás duas coroas, as quais porás na cabeça de Jesus, filho de Josedec. - Jesus, filho de Josedec, era figura de Jesus Cristo, Senhor e Redentor nosso, filho do Eterno Padre. E as duas coroas figuravam também os dois poderes soberanos, que competem ao mesmo Senhor, como filho de tal Pai: a de ouro, e mais preciosa, o poder espiritual, com que é Pontífice sumo e universal da Igreja: a de prata, e de segundo e menor preço, o poder temporal, com que é imperador supremo e universal do mundo.

Até aqui não há controvérsia nem dúvida entre os expositores sagrados. Nas palavras que se seguem, e muito notáveis, só parece que a pode haver: Et sedebit - diz Deus - et dominabitur super solio suo, et erit sacerdos super solio suo, et consilium pacis erit super illos duos (ibid. 13): Assentar-se-á e dominará sobre o seu sólio, e o sacerdote também se assentará sobre o seu, e haverá grande paz e concórdia entre estes dois. - De maneira que diz Deus ao profeta que há de haver dois sólios, e que nos dois sólios se há de assentar dois que neles presidam, e que entre estes dois há de haver grande união e concórdia. Pois, se Jesus, filho de Josedec, era um só, e Jesus, filho de Deus, a quem ele representava, é também um só, como, sendo um, se há de assentar em dois sólios, e depois de se assentar em dois sólios, ele também há de ser dois: et consilium pacis erit inter illos duos? - Não se pudera dizer nem mais admiravelmente, nem com maior propriedade. Assim como Cristo, sendo um só, tem duas coroas, assim há de vir tempo em que tenha dois vigários que o representem na terra: um coroado com a coroa de ouro, que é o poder e jurisdição espiritual, outro coroado com a coroa de prata, que é o poder e jurisdição temporal. O coroado com a coroa espiritual é o Sumo Pontífice, que tem o poder e jurisdição universal sobre toda a Igreja; o coroado com a coroa temporal há de ser o novo imperador, que terá o poder e jurisdição universal sobre todo o mundo. Este é o sentido mais próprio e literal deste grande texto. E, quanto ao império temporal e universal do mundo, que pode parecer novidade, tenho mais de trinta autores que falam expressamente deles, uns antigos, outros modernos, uns por conhecido espírito de profecia, outros por inteligência das Sagradas Escrituras, outros por discurso historial e político. Por sinal que boa parte dos mesmos autores põe a cabeça deste império em Portugal, sinalando os lugares ou metrópoles dos dois sólios, e dizendo que, assim como o sólio e trono pontifical está em Roma, assim o sólio e trono imperial há de estar em Lisboa. - Vede se terão melhor preço então os vossos açúcares?

§ IX

A circunstância certa e infalível donde se pode conhecer claramente quando acontecerão estas coisas. Os quatro impérios do mundo nas visões de Daniel e o quinto império, que os há de suceder. Quem é ou há de ser o tirano que o profeta chama cornu parvulum? A infame seita de Mafoma e o Império Otomano, na segunda parte da visão de Daniel. Quem é o quase filho do homem, de quem fala o profeta?

E se alguém me fizer a pergunta que os discípulos fizeram a Cristo: Dic nobis quando haec erunt? - eu não direi com certeza o ano, mas não deixarei de dizer outra circunstância certa e infalível, donde o tempo se pode conhecer claramente. E que circunstância é esta? Que quando Deus extinguir o império do turco, que tão precipitadamente vai caminhando à sua ruína, e que tantas terras domina nas três partes do mundo, então há de levantar este império universal, que domine em todas as quatro. Ouvi um famoso texto, tão antigo como o profeta Daniel, e a inteligência dele, que sei de certo não a ouvistes. Toma Deus a revelar terceira vez os quatro impérios do mundo, para declarar mais o quinto e último, e mostrou a Daniel, não já quatro metais, nem quatro carroças, senão quatro bestas feras: Et quatuor bestiae grandes ascendebant de mari (Dan. 7, 3). - A primeira era semelhante a uma leoa com asas de águia: Prima quasi leaena, et alas habebat aquilae - e esta significava o império dos assírios. A segunda era semelhante a um urso com três ordens de dentes: Et ecce bestia alia similis urso, et tres ordines erant in ore ejus, et in dentibus ejus - e esta significava o império dos persas. A terceira era semelhante a leopardo, com quatro asas de ave, e quatro cabeças: Et ecce alia quasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se, et quatuor capita - e esta significava o império dos gregos. A quarta era tão extraordinária e tão terrível, que não se lhe achou semelhança entre todas as feras, e só diz dela o profeta que tinha os dentes de ferro muito grandes, com que tudo comia, e o que lhe sobejava pisava com os pés, e na testa tinha dez pontas: Bestia quarta terribilis atque mirabilis, et fortis nimis: dentes ferreos habebat magnos, etc., et cornua decem - e este era o império dos romanos.

Pelas pontas, que são as armas dos animais feros e bravos, se significam as forças e potência romana, e pelo número de dez, que é universal, se entende a multidão dos reinos e províncias, em que a mesma potência, armada e defendida das suas legiões, estava dividida na Europa, na África e na Ásia. Diz pois o profeta que do meio destas dez pontas se levantou uma muito pequena - que ele chama cornu parvulum - a qual cresceu a tanto poder, e se fez tão forte, que arrancou três das outras, e as sujeitou e ajuntou ao seu domínio. E que assim poderoso e soberbo se atreveu a pronunciar injúrias e blasfêmias contra Deus, e que perseguiu e fez grandes estragos nos que professavam a sua fé, e que entrou em pensamento de dar novas leis novos tempos ao mundo. Tudo isto se refere no mesmo capítulo de Daniel, que é o sétimo, com grande pompa de palavras, que eu por brevidade resumi a estas poucas. O que suposto, é grave questão entre os expositores quem seja ou haja de ser este tirano, que o profeta chama cornu parvulum. Os expositores antigos - exceto Santo Agostinho, que em parte o duvida - todos concordam que havia de ser o anticristo. Mas, depois que veio ao mundo Mafoma e a sua seita, que os antigos padres não conheceram, porque teve seu princípio seiscentos anos depois da vinda de Cristo, e muito menos conheceram o Império Otomano, que o teve no ano de mil e trezentos, o mais comum sentimento de gravíssimos e eruditíssimos intérpretes é que aquele cornu parvulum significa a Mafoma, e a sua infame seita. Esta, como todos sabem, começou de baixíssimos e vilíssimos princípios; ela na África, na Ásia e na Europa conquistou e dominou três partes tão consideráveis do que pertencia ao Império Romano; ela pronuncia e ensina tantos erros e blasfêmias contra a divindade de Cristo; ela tem perseguido e persegue tão cruelmente os que professam a sua lei, que é toda a cristandade; ela, finalmente, trazendo por empresa na meia-lua das suas bandeiras donec totum impleat orbem[13] - presume que, senhoreando todo o mundo, há de mudar nele as leis e os tempos. As leis, extinguindo todas as outras, e introduzindo por força só a maometana; e os tempos porque, medindo-os todas as outras nações pelo curso do sol, só eles os distinguem e contam pelo número das luas.

Esta é a primeira parte da visão de Daniel, e os autores que com tanta propriedade a entendem de Mafoma, e do Império Otomano, são Vatablo, Clitoveu, João Ênio, Fevardêncio, Cantipratense, Heitor Pinto, Sá, Hilarato, Salasar Beneditino, e muitos outros, aos quais, e sobre todos eles, se ajunta a mesma narração do texto, maravilhosamente proporcionada com a experiência das coisas, que é o melhor intérprete das profecias.

A segunda parte ainda é mais admirável. Diz o profeta que viu formar no céu um tribunal de juízo, em que presidia o Eterno Padre, cercado de infinita multidão de ministros que o assistiam. O trono, em que estava assentado, era de fogo, e da boca lhe saía um rio arrebatado, também de fogo. Vieram e abriram-se os livros, leram-se as culpas, e o cornu parvulum, que era Mafoma e o Império Otomano, e a parte mais poderosa que restava do romano, pelo que dele tinha usurpado, em pena de suas blasfêmias, e por todas as outras maldades que tinha cometido, foi condenado a que morresse queimado, e que ele, e toda a sua potência, se extinguisse para sempre. Assim o diz o texto da visão: Aspiciebam propter votem sermonum grandium quos cornu illud loquebatur; et vidi quoniam interfecta esset bestia, et perisset corpus ejus, et traditum esset ad comburendum igni[14]. - E o anjo que falava com Daniel, explicando a mesma visão, declarou o mesmo: Sermones contra Excelsum loquetur; et sanctos Altissimi conterei, et putabit quod possit mutare tempora, et leges; et judicium sedebit ut auferatur potentia, et conteratur, et disperiat usque in finem[15]. - Sentenciado assim Mafoma, e executada a sentença, e extinto para sempre o Império Otomano, ainda se não acabou o juízo. E que se seguiu? Diz o profeta que no mesmo ponto apareceu diante do supremo Juiz o Filho do Homem, e que o Eterno Padre lhe deu o supremo poder, a suprema honra, e o supremo reino do mundo, com tal soberania, que todas as nações, e todas as línguas e gentes do universo lhe obedeçam e o sirvam: Ecce in nubibus caeli quasi Filius hominis veniebat, et usque ad antiquum dierum pervenit: et dedit ei potestatem, et honorem, et regnum; et omnes populi, tribus et linguae ipsi servient[16]. - E porque este reino há de ser todo cristão e do cristianismo, assim o declarou também o anjo, com maior expressão ainda, da grandeza do novo império: Regnum autem, et potestas, et magnitudo regni, quod est subter omne caelum, detur populo sanctorum Altissimi[17]. - De maneira que o tempo que Deus tem destinado para levantar o império universal do mundo, e o sinal certo por onde se pode conhecer este segredo da sua providência, é quando se acabar e extinguir o império do turco e a potência maometana.

Mas aqui se oferece uma grande dúvida, em que eu antes quisera ouvir a resposta que dá-la. Este império, que sucedeu aos quatro primeiros, é o quinto e último, e, por conseqüência, o império de Cristo, como consta de todas as outras visões, e desta mesma, em que o poder universal sobre todas as nações e remos do mundo foi dado ao Filho do Homem, que é o mesmo Cristo. Cristo, desde o instante de sua conceição, teve todo o domínio supremo espiritual e temporal do mundo enquanto Filho de Deus; e enquanto Filho do Homem teve o mesmo domínio, ao menos depois da ressurreição, como ele mesmo disse: Data est mihi omnis potestas in caelo et in terra[18]. - Pois, se o Filho do homem teve todo este poder seiscentos anos antes de Mafoma, e mil e trezentos anos antes do Império Otomano, e a mesma seita de Mafoma, e o mesmo Império Otomano dura ainda hoje, mais de mil e seiscentos anos depois de Cristo, como não deu, ou não há de dar o Eterno Padre este império universal ao Filho do Homem, senão depois da extinção do império do turco?

Grande dúvida verdadeiramente. Mas a razão clara desta diferença de tempos consiste na diferença do mesmo Império universal do mundo, o qual, posto que sempre foi de Cristo, quanto à jurisdição e domínio do Senhor, nem foi nem é ainda universalmente do mesmo Cristo, quanto à sujeição e obediência dos vassalos. Isto significam expressamente aquelas palavras: Et omnes populi, et tribus, et linguae ipsi servient. - Já todos são seus, mas ainda o não servem. Porém, depois da extinção e total ruína do turco, será tal a fama, tal o terror, e tais os efeitos daquela vitória dos cristãos, que não só todos os que na Europa, na África e na Ásia seguem a lei de Mafoma, mas todos os outros sectários e infiéis de todas as quatro partes do mundo se sujeitarão a Cristo, e receberão a fé católica. Isto querem dizer as outras palavras: Regnum autem, et potestas, et magnitudo regni, quod est subter omne caelum, detur populo sanctorum: Que o reino, poder e grandeza de tudo o que está debaixo do céu se dará ao povo dos santos. - E qual é o povo dos santos? É o povo cristão, e dos cristãos, os quais, em frase da Escritura, e da primitiva Igreja, todos se chamavam santos, como se vê nas epístolas de São Paulo, e nos Atos dos Apóstolos. E esta é a primeira razão, ou a primeira parte desta diferença.

A segunda é porque todo este texto de Daniel não se entende da pessoa propriamente de Cristo, senão da pessoa do seu segundo vigário no império temporal, o qual império se levantará depois de vencida a potência do turco, com nome, com dignidade, com majestade, e com reconhecimento de imperador universal do mundo. A prova no mesmo texto é milagrosa: Ecce quasi Filius hominis veniebat, et ad antiquum dierum pervenit, et dedit ei potestatem et honorem: E veio - diz - o quase Filho do homem, e se presentou diante do Eterno Padre, o qual lhe deu o reino, a honra e o império universal sobre todas as gentes. - Note-se muito muito o quasi Filius hominis. - Quem é o Filius hominis, e quem é o quasi Filius hominis? O Filho do homem é Cristo; o quase Filho do homem é o quase Cristo, ou Vice-Cristo. De sorte que, assim como o primeiro Vigário de Cristo, que é o Sumo Pontífice, pela jurisdição universal que tem sobre toda a Igreja, se chama Vice-Cristo no império espiritual, assim o segundo vigário do mesmo Cristo, pelo domínio universal que terá sobre todo o mundo, se chamará também no império temporal Vice-Cristo: Quasi Filius hominis. - E este é o império quinto e último, que se há de levantar depois da extinção do turco, não na pessoa de Cristo imediatamente, senão na de um príncipe seu vigário.

§X

O Cântico de Ana, cláusula do discurso. A evidência com que se conclui ser o príncipe nascido o desempenho da palavra de Deus, e o rei seu, a quem há de dar o império.

Resta agora saber que príncipe é ou será este. E posto que pareça coisa dificultosa, e ainda impossível de averiguar, a mesma Ana, que nos deu a matéria a todo o discurso, nos dará também a cláusula dele. Em ação de graças pelo nascimento de Samuel compôs Ana, sua mãe, um cântico a Deus, o qual contém duas partes, uma gratulatória, outra profética, e no fim da profética conclui assim: Dominus judicabit fines terrae, et dabit imperium regi suo: O senhor julgará os fins da terra, e dará o império ao seu rei: - Alguns autores cuidaram que falava aqui Ana do juízo final; mas, assim neste lugar, como em outros, é pouca inteligência das Escrituras. Todas as vezes que Deus muda reinos e impérios, e o quer manifestar, representa-se na Escritura fazendo juízo. Assim o viu o profeta Miquéias, quando Deus quis tirar a vida e o reino ao rei Acab: Vidi Dominum sedentem super solium suum, et omnem exercitum caeli assistentem ei[19]. - E assim o viu o profeta Daniel no nosso próprio caso, como acabamos de ponderar, quando condenou a fogo o cornu parvulum - e deu o império universal ao quase Filho do homem: Aspiciebam donec throni positi sunt, et judicium sedit, et libri aperti sunt[20]. - Profetizando pois isto mesmo Ana, mais de quinhentos anos antes de Daniel, diz que fará Deus um juízo em que julgará todo o mundo: Dominus judicabit fines terrae - e que então dará o império ao rei: Et dabit imperium regi suo. - E quem é o seu rei? - pergunto eu agora. Claro está que o rei de Portugal, e nenhum outro. Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feitos pelos homens: o rei de Portugal é de Deus, e feito por Deus, e por isso mais propriamente seu. E como Deus, depois de dizer que ele é o edificador dos reinos e dos impérios: Aedificator regnorum, imperiorum sum - fez rei ao primeiro rei de Portugal, e então lhe prometeu que nele, e na sua descendência, havia estabelecer o seu império: Volo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire - evidentemente se segue que o rei seu, a quem diz Ana que havia de dar o império: - Dabit imperium regi suo - é o rei de Portugal. Mas qual rei de Portugal, que podem ser muitos, e este é nosso ponto? Digo que é, e não pode ser outro, senão o que agora nasceu. Por quê? Porque, além dessa promessa universal, fez Deus outra particular ao mesmo rei, em que lhe prometeu que na prole da sua décimasexta geração atenuada poria os olhos de sua misericórdia olhando e vendo: Usque ad decimam sextam generationem, in qua attenuabitur proles, et in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit. - E como o efeito do olhar e ver de Deus é dar filho varão, e o filho varão da prole atenuada é evidentemente o príncipe que agora nasceu, com a mesma evidência se conclui ser ele o desempenho da palavra de Deus, e o rei seu, a quem há de dar o império: Dabit imperium regi suo.

Mas, como o mesmo Deus, posto que não pode faltar à sua divina palavra, quer que nós lhe peçamos o mesmo que nos tem prometido, acabemos esta ação de graças com a petição que já antigamente lhe fez Davi, como tão interessado no mesmo império: Da imperium tuum puero tuo, et salvum fac filium ancillae tuae (SI. 85, 16): Dai, Senhor, o vosso império ao vosso menino - vosso, e de vossos olhos - e guardai o filho de vossa serva: Et salvum fac filium ancillae tuae: filho de vossa serva., diz com grande propriedade e particular energia, porque a rainha, nossa senhora, como tão grande serva de Deus, é a que com suas orações alcançou o mesmo filho para el-rei, para si, para nós, e para o mesmo Deus, porque no seu império, que é o de Cristo, ficará sublimada a potência do mesmo Cristo, como diz a última cláusula do mesmo texto: Et sublimabit cornu Christi sui[21]. - Onde se deve notar muito que esta é a primeira vez que na Escritura se nomeia o nome de Cristo, como se até o cumprimento desta profecia o não fora, porque até agora consistiu o seu império universal só na extensão do domínio, e então o será cabalmente na inteira sujeição e obediência dos súditos. E este é o perfeito, perpétuo e firme estabelecimento do seu império: Volo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Olhou e viu.

[2] Acharás dois homens junto ao sepulcro de Raquel (1 Rs. 10, 2).

[3] Até que a estéril teve muitos filhos (1 Rs. 2, 5).

[4] Para dar-lhes coroa por cinza (Is. 61, 3).

[5] Quando foi a enterrara Belém, entrava a frota do Brasil.

[6] Este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante das gentes (At. 9,15).

[7] Recebei a palavra que em vós foi enxertada, e que pode salvar as vossas almas (Tg. 1, 21).

[8]Eis aí mando eu o meu anjo, que preparará o caminho diante de ti (Mal. 3, 1).

[9] Guarda-me como a menina do olho (SI. 16, 8).

[10]  Aquele que toca em vós, toca na menina do meu olho (Zac. 2, 8).

[11] Um pequenino foi dado para nós, e um filho nos foi dado a nós, e foi posto o principado sobre o seu ombro (Is. 9, 6).

[12] Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (Mt. 16,18).

[13] Até que toda a terra fique dominada.

[14] Eu olhava atentamente, por causa do estrépito das arrogantes palavras que este corno proferia, e vi que a alimária fora morta, e que o seu corpo perecera, e fora entregue ao fogo para ser queimado (Dan. 7, 11).

[15] E falará insolentemente contra o excelso, e atropelará os santos do Altíssimo, e imaginará de si que pode mudar os tempos e as leis; mas depois se assentará o juízo, a fim de que lhe seja tirado o poder, e ele seja inteiramente desfeito, e pereça para sempre (ibid. 25, s).

[16] E eis que vi um como o Filho do homem, que vinha com as nuvens do céu, e que chegou até ao antigo dos dias; e ele lhe deu o poder, e a honra, e o reino; e todos os povos, todas as tribos, e todas as línguas o servirão (ibid. 13).

[17] Que se dê o reino, e o poder, e a grandeza do reino que está debaixo de todo o céu, ao povo dos santos do Altíssimo (ibid. 27).

[18] Tem-se-me dado todo o poder no céu e na terra (Mt. 28, 18).

[19] Eu vi o Senhor assentado no seu trono, e todo o exército do céu assistindo-lhe (2 Par. 18, 18).

[20] Eu estava atento ao que via, até que foram postos uns tronos, e assentou-se o juízo, e abriram-se os livros (Dan. 7, 9 s).

[21] E sublimará a glória do seu Cristo (1 Rs. 2, 10).