Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Palavra do pregador empenhada e defendida, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. XI Erechim: EDELBRA, 1998.

PALAVRA DO PREGADOR EMPENHADA E DEFENDIDA:

Empenhada publicamente

NO SERMÃO DE AÇÃO DE GRAÇAS PELO NASCIMENTO DO PRÍNCIPE D. JOÃO,

Primogênito de SS. Majestades, que Deus guarde; defendida depois de sua morte

EM UM DISCURSO APOLOGÉTICO.

Oferecido secretamente à Rainha N. S. para alívio das saudades do mesmo Príncipe.

In ipsa attenuata ipse respiciet et videbit. Volo enim in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire.

§1

O olhado dos olhos de Deus na morte prematura do príncipe Dom João. Fascino, deus tutelar dos meninos e dos imperadores. Os remédios de Deus para livrar do olhado. Razão não esperada nem imaginada por que a Providência divina deu e levou dentro em tão poucos dias o príncipe primogênito. Basta Senhor - com quem falarei, senão com vossa divina majestade, e com quem me queixarei, senão com vossa divina misericórdia? - Basta, Senhor, que também os vossos olhos dão olhado! Prometestes que havíeis de olhar e ver, desempenhastes a vossa palavra, mas empenhastes mais a nossa dor. Desempenhastes a vossa palavra, porque destes à prole atenuada dos nossos reis o filho varão que lhe tínheis prometido; e empenhastes mais a nossa dor, porque, quando começávamos a festejar a primeira e tão suspirada nova de seu nascimento, sobreveio a segunda, e nunca imaginada, que ainda se não atreve a língua a pronunciar, de sua tão apressada sepultura. Vivo e morto! Dado, e outra vez negado! E em espaço de dezoito dias! Menos disse Jó quando mais encareceu a brevidade da vida: Breves dies hominis sunt, numerus mensium ejus apud te est (Jó 14, 5): Se os dias do homem são breves, e o número de seus meses está na vossa mão, que causa pode haver- não sendo ela abreviada - para que àquela inocente beleza lhe abreviasse tanto os dias, que não chegasse a contar um mês? Tudo quanto leio nas vossas Escrituras acrescenta mais o pasmo, que nos tem atônitos e assombrados. Não diz o vosso apóstolo que os vossos dons são sem arrependimento: Sine poenitentia enim sunt dona Dei (Rom. 11, 29)? Por que vos arrependestes logo tão depressa do que nos concedestes tão tarde? Se assim nos havíeis de tomar a tomar o que nos destes, não fora melhor não no-lo ter dado? Oh! quanto melhor nos ia com o engano das nossas esperanças, que agora com o desengano das nossas saudades! Consolava-nos o vosso profeta Isaías, com dizer que dais coroas por cinzas; e agora, que trocastes em cinza a coroa que nos tínheis dado, quem nos poderá consolar, na estranheza desta mudança? Dissestes que olharíeis e veríeis, e parece que os aspectos do olhar e ver nesses dois divinos planetas se encontraram tanto em nossa desgraça, que a benignidade do ver se rendeu à violência do olhar, matando-nos o olhado a mesma vida que nos tinha dado a vista. Pudera dar olhado ao nosso belíssimo infante a sua mesma formosura; pudera-lhe dar olhado a emulação e a inveja; pudera-lhe dar olhado, sobretudo, o extremo de nosso amor; e, se também é espécie de olhado o louvar muito o que muito agrada e se estima, também lhe puderam dar olhado os nossos panegíricos. Mas, sendo o nascimento e o nascimento efeito do olhar e ver dos olhos de Deus, contra cujo poder nenhum outro prevalece, só os vossos olhos, Senhor, como eu dizia, lhe puderam dar olhado.

Os romanos, como refere Plínio, adoravam a um Deus chamado Fascino, o qual, segundo a significação do seu nome, tinha por ofício ou tutela guardar e defender do olhado. E a quem? Coisa maravilhosa! Não só aos meninos, senão também aos imperadores: Fascinus Imperatorum quoque, non solum infantium custos, qui Deus inter sacra romana a vestalibus colitur - são as palavras de Plínio. E verdadeiramente que, se a superstição inventara este Deus para o nosso caso, nem ela o pudera fazer, nem nós desejar com maior propriedade. De maneira, que o cuidado daquele Deus era guardar do olhado não só os meninos, senão também os imperadores: Imperatorum quoque, non solum infantium custos - porque entenderam os romanos que tão sujeitos estavam ao mal de olhado os imperadores pela grandeza de sua majestade, como os meninos pela fraqueza de sua idade. Agora não posso deixar de confessar a minha culpa. Eu fui o que meti neste segundo perigo o nosso príncipe, também nisto fatal; pois, quando celebrávamos o seu nascimento como menino, eu lhe acrescentei o título e prognóstico de imperador, com que dei nova e maior matéria ao olhado que lhe tirou a vida. Mas, se assim o seu nascimento, já cumprido, como o seu império, que estava por cumprir, eu o fundei nas palavras e promessas de Deus, como podia eu temer que os olhos do mesmo Deus, que lhe deram a vida, lhe houvessem de dar o olhado, pois só quem lhe deu o ser lho podia tirar? A força desta razão me obrigou, ou arrebatou no princípio a cuidar que também os olhos de Deus podem ter olhado. Mas, depois que dissipadas um pouco as nuvens da dor e da tristeza, me deram lugar a maior luz, neste caso - que todo é mistérios - descobri outro que nem eu imaginava, nem se podia imaginar facilmente. E qual é? Que não foi olhado de Deus o que tirou a vida ao nosso príncipe, mas que foi Deus o que lhe tirou a vida para que lhe não dessem olhado.

Ouvi agora um segredo da sabedoria e misericórdia divina, que não só nos pode consolar, mas alegrar na consideração desta perda, pela qual não são de menor obrigação as segundas graças que devemos dar a Deus, do que lhe foram devidas as primeiras. Fala a sabedoria divina de um sujeito singular, não só inocente, mas justo, e diz que lhe cortou Deus os fios da vida muito ante-tempo, levando-o para si arrebatadamente: Raptus est[1]. - E por quê, ou para quê? Ambas as coisas diz o texto, porque o amava Deus muito: Placens Deo factus est dilectus[2] - e para o livrar de que lhe dessem olhado: Fascinaria enim nugaciraris abscurat bona[3]. - Pois, Senhor meu, é bom remédio este para livrar do olhado? Para livrar do olhado uma flor, cortá-la antes que os maus olhos a murchem? Para livrar do olhado uma vida, que ainda não sabe o que é viver, sepultá-la para que os maus olhos a não vejam? Se vós matais essa mesma vida, que mais lhe havia de fazer olhado? Muito mais. Tudo aquilo que se encerra nos secretos da presciência divina, os quais só vêem os olhos de Deus, e não podem alcançar os humanos. Oh! quantas lágrimas choram erradamente os olhos dos homens, porque não vêem os futuros! A quantos faltou a fortuna, porque lhes sobejou a vida! E a quantos fez imortal em poucos dias a vida, porque se lhes antecipou a morte! Fascinaria nugaciraris abscurat bana. - O olhado é um eclipse de todo o tempo, e um veneno de todos os bens, que os escurece e mata; e porque só pode escapar deste eclipse, ainda que seja o mesmo sol, quem for estrela do firmamento, por isso Deus se antecipou a pôr no céu o inocente seu mimoso, a quem quis livrar do olhado: Prapter hoc praperavit educere illum de media iniquitatum[4].

De sorte que quando Deus se apressa a tirar deste mundo os que dele são bemvistos, não é porque os seus olhos lhes dêem olhado, mas porque vêem, e prevêem o olhado de que os quer livrar. E esta foi a razão, de nós não esperada nem imaginada, porque a providência divina nos deu e levou dentro em tão poucos dias o desejado de nossos olhos e o prometido dos seus. Estes são os segundos efeitos do olhar e ver de Deus, que não desfazem, mas aperfeiçoam os primeiros. Quis que o nosso infante nascesse a esta vida, para que fosse viver à outra, não morto propriamente, mas trasladado. Assim o diz e celebra o mesmo texto: Placens Deo factus est dilectus, et vivens inter peccatares transilatus est[5]. - O vulgo cego chamou morte a este sucesso, e como tal o chorou, porque não o entendeu: Populi autem videntes, et non intelligentes, nec panentes in praecardiis talia[6]. Porém, suas majestades, que no segundo efeito não desconheceram os mesmos olhos e a mesma misericórdia do primeiro, sendo os mais empenhados no desejo da vida, e no sentimento da morte do seu primogênito, a entenderam, e quiseram que nós entendêssemos tão diferentemente, que el-rei, que Deus guarde, proibiu os lutos, e a rainha, nossa senhora, desejou que se continuassem as festas. Assim havia de ser, e justissimamente: se as primeiras se fizeram ao dia do seu nascimento, façam-se as segundas, e maiores, ao dia da sua traslação: Vivens, translatus est.

§II

O principal intento da presente discursa: concordar a segunda nova da marte da príncipe, que está na céu, com a primeira da seu nascimento. A palavra de Deus e da autor desempenhadas par um texto da Apocalipse. A missão e história da príncipe D. João profetizadas na famosa visão da Evangelista.

Defendidos assim os olhos de Deus, ou desagravados da queixa que lhe imputava a nossa dor, segue-se o principal intento do presente discurso, que é concordar a segunda nova da morte do príncipe, que está no céu, com a primeira do seu nascimento, e sustentar a verdade de tudo o que preguei e prometi no panegírico do mesmo nascimento, sem embargo de termos já morto o mesmo nascido. Ninguém chamará a esta empresa dificultosa, porque todos, e com razão, a terão por impossível. Dividi aquele sermão em duas partes: uma em que desempenhei a palavra de Deus, e outra em que empenhei a minha; e a ambos estes empenhos cortou o cumprimento e a esperança a morte. O empenho da palavra de Deus era que na prole atenuada da décima-sexta geração dos nossos reis havia ele de olhar e ver, isto é, lhe havia de dar um filho varão; mas como o deu e levou tão arrebatadamente, para nós o mesmo foi dá-lo como se o não dera, e para ele o mesmo foi ser, como se não fora: Fuissem quasi non essem, de utero translatus ad tumulum[7]. - O empenho da minha palavra foi que aquele mesmo príncipe, que então festejávamos nascido, não só havia de ser rei, senão imperador, e não imperador de qualquer império particular, senão de toda a monarquia do mundo. E quem não chegou a possuir, e encher os sete pés de terra, que a todos concede na morte a natureza, porque se não estendia a tanto a sua estatura, como há ou pode dominar depois de morto, não só alguma parte, ainda menor, da mesma terra, quanto mais toda? Porque estou vendo que o assunto mais merece riso que atenção, só peço que não seja condenado antes de ser ouvido.

Viu S. João no Apocalipse uma mulher vestida do sol, e coroada de doze estrelas, com a lua debaixo dos pés, e diz que esta mulher pariu um filho varão, o qual havia de dominar todas as gentes do mundo: Mulier amicta sole, et luna sub pedibus ejus, et en capite ejus corona stellarum duodecim: et peperit filium masculum, que recturus erat omnes gentes en virga ferrea[8]. - Nestas duas cláusulas últimas temos o desempenho da palavra de Deus, e também o da minha. O desempenho da palavra de Deus, que era o parto de um filho varão: Peperit filium masculum - e o desempenho da minha, que era o império universal deste mesmo filho sobre todo o mundo: Que recturus erat omnes gentes.

Isto é o que diz o texto por palavras expressas. E a figura maravilhosa, que viu S. João no céu, significava mais alguma coisa? Sim: duas. A primeiras que este filho varão, nascido para imperador universal, havia de ser príncipe cristão, e filho da Igreja Católica. Assim o entendem literalmente todos os expositores do texto, e que por isso a mesma mulher, a quem se atribui o parto, estava vestida do sol, e coroada de doze estrelas. Vestida do sol, que é Cristo: amicta sole - porque a divisa e caráter próprio da Igreja e religião cristã é o batismo, e todos os que se batizam, se vestem de Cristo, como diz S. Paulo: Quicumque en Christo baptizati estis, Christum induistis[9]. -E coroada de doze estrelas, que significam os doze apóstolos: Et en capite ejus corona stellarum duodecim - porque a mesma Igreja não só é e se intitula católica, senão também apostólica.

A segunda coisa que significava a mesma figura, é a circunstância do tempo, em que havia de nascer à Igreja aquele filho varão e dominador do mundo. Esta questão já a excitei, e resolvi no último discurso do sermão passado, onde mostrei com o profeta Daniel, que a exaltação do império universal há de concorrer no mesmo tempo com a ruína do império do turco, porque, quando este cair, então aquele se há de levantar. E porque não quero cansar a memória dos que me ouviram, nem repetir o já dito, diga-nos Davi em poucas palavras o que profetizou Daniel em muitas: Dominabitur a sari usque ad mare, et a flusine usque ad términos orbes térrarum[10] - Fala Davi deste mesmo império - que é o de Cristo - e diz que dominará de mar a mar, até os últimos fins de toda a redondeza da terra. Mas quando? Donéc aufératur luna (SI. 71, 7): Quando for tirada do mundo a lua. - A lua há de durar até o fim do mundo: Erunt signa en sole et luna[11]. - Que lua é logo esta, que há de ser tirada do mundo naquele tempo? É a lua que os maometanos adoram e trazem em suas bandeiras. Assim o declara o mesmo texto na raiz hebréia: Donéc auférantur serve lunae: Até que sejam tirados do mundo os que servem à lua. - E isto é o que significa no nascimento do príncipe dominador do mundo a lua debaixo dos pés da Igreja: Et luna sub pedibus ejus. - Os pregadores, quando explicam este lugar do Apocalipse, dizem que a mulher, figura da Igreja, estava coroada de estrelas, vestida do sol, e calçada da lua. Elegante modo de falar, mas impróprio, e não ajustado ao texto. O texto não quer dizer calçada, senão calcada. Não quer dizer que a lua há de calçar a mulher, senão que a mulher há de calcar a lua, metendo-a debaixo dos pés: Luna sub pedibus éjus. - E esta tão notável e não imaginada circunstância é a que, com admiração do mundo, concorreu neste mesmo ano em que nasceu o nosso príncipe, como bem mostra a experiência presente na torrente continuada de tantas e tão gloriosas vitórias, com que a Igreja e as cruzes cristãs vão metendo debaixo dos pés as luas otomanas.

De maneira que, resumindo toda esta visão do Apocalipse - no qual quis Deus que S. João visse e historiasse todos os sucessos da sua Igreja, principalmente os maiores - diz o mesmo S. João, como profeta, como apóstolo e como evangelista, que a Igreja pariria, e lhe nasceria um filho varão: Peperit filium masculum - e que este filho havia de ser imperador de todo o mundo: Qui recturus erat omnes gentes - e que este nascimento sucederia quando a mesma Igreja metesse debaixo dos pés a lua, e os que a servem, que são os turcos: Et luna sub pedibus ejus. - Pode haver propriedade mais própria e mais ajustada com o nosso caso? Não. E não é isto pontualmente o que eu preguei? Sim. Vejo, porém, que os mesmos que me ouviram, estão respondendo todos, que verdadeiramente, e com grande fundamento, pudéramos esperar uma tal felicidade, se Deus nos não cortara o fio a essa mesma esperança, levando tão arrebatadamente para si o mesmo filho varão, que já nos tinha dado. Assim o confesso eu também, e não pode haver instância mais forte nem mais evidente. Mas agora é que triunfa o famosíssimo texto. Vede as palavras que acrescenta o mesmo S. João: Peperit filium masculum, qui recturus erat omnes gentes: et raptus est filius ejus ad Deum, et ad thronum ejus (Apc. 12, 5): Pariu o filho varão, que havia de imperar sobre todas as gentes, e Deus subitamente o levou para si, e ao seu trono. - Pois, se Deus levou e arrebatou subitamente para o céu esse filho varão tanto que nasceu, como é esse mesmo filho varão o que havia de ser imperador do mundo, e reinar sobre todas as gentes? Haverá agora quem responda, não digo a mim, senão a S. João Evangelista?

O doutíssimo Ribera, da nossa Companhia, por confissão de Espanha e do mundo, o maior escriturário dela, comentando este lugar do Apocalipse, reconhece nele que há de haver um príncipe cristão que seja imperador de todo o mundo, mas não assinala tempo, nação, nem pessoa. O bispo, que depois foi de Elvas, ministro de el-rei D. João o IV em Roma, não duvidou alegar este mesmo texto ao Sumo Pontífice Inocêncio X, em prova de que aos reis de Portugal pertence a primogenitura dos reinos e o império universal do mundo. Mas a dúvida ou implicação de haver de morrer, e ir para o céu em nascendo o mesmo filho varão que houvesse de dominar esse mesmo império, ninguém a desfez até hoje. Que diremos logo ao texto de S. João, e ao sucesso do nosso príncipe?

§ III

Se Deus levou e arrebatou subitamente para o céu o primogênito dos reis de Portugal, como é esse mesmo filho varão o que havia de ser imperador do mundo? Assim como Cristo, enquanto supremo Senhor no espiritual, fez um vice-Cristo com o poder universal da Igreja, que é o Sumo Pontífice, assim enquanto supremo Senhor no temporal, há de fazer outro vice-Cristo com o poder universal do mundo. A propriedade por que, sendo este Império da terra, a posse dele não quis Deus que se tomasse na terra, senão no céu. As circunstâncias do nascimento do príncipe Dom João.

Mal me atrevera eu a desatar este nó mais que gordiano, se a solução não estivera expressa na Escritura Sagrada. Mas porque é da Escritura, também não duvido afirmar que é a verdadeira. E qual é, ou pode ser, a resolução ou razão que concorde o haver de ser um menino imperador de todo o mundo, com morrer, e o levar Deus para o céu tanto que nasceu? A razão clara e manifesta é porque a posse deste império, com ser temporal, e da terra, não se havia de tomar na terra, senão no céu. E como não se havia de tomar na terra, senão no céu, e o tempo determinado por Deus era chegado, não só foi conveniente, senão necessário e forçoso que o menino, que nasceu para primeiro possuidor deste império, o mesmo Deus o levasse logo para o céu, onde lhe desse a posse e investidura dele. A razão não se pode negar que é tão cabal e adequada quanto e mais do que se podia desejar; mas como ou donde se há de provar que a posse deste império universal não se havia de tomar na terra, senão no céu? Vai a prova admirável, e conforme com tudo o mais. Já vimos no sermão passado como se mostrou Deus ao profeta Daniel em um trono de grande majestade, donde deu o império universal de todas as gentes a um chamado quase-filho do homem: Quasi Filius hominis veniebat, et ad antiquum dierum pervenit: et dedit ei potestatem, et honorem, et regnum; et omnes populi, tribus et linguae ipsi servient[12]. - E quem é o quase-filho do homem? Também isto dissemos. O filho do homem é Cristo; o quase-filho do homem é o quase-Cristo, ou viceCristo. Em suma, que assim como Cristo, enquanto supremo Senhor no espiritual, fez um vice-Cristo com o poder universal da Igreja, que é o Sumo Pontífice, assim enquanto supremo Senhor no temporal, há de fazer outro vice-Cristo com o poder universal do mundo, que é o imperador, de que falamos. E este segundo quase-filho do homem, este segundo quase-Cristo, ou vice-Cristo, com o império temporal do universo, onde tomou ou havia de tomar a posse desse império? É certo que não na terra, senão no céu. O mesmo texto o diz expressamente: Et ecce cum nubibus caeli - notem-se muito as palavras - et ecce cum nubibus caeli quasi Filius hominis veniebat, et usque ad antiquum dierum pervenit. Et in conspectu ejus obtulerunt eum; et dedit ei potestatem et honorem, et regnum; et omnes populi, tribus, et linguae ipsi servient (Dan. 7, 13 s): E vi - diz o profeta - que vinha arrebatado das nuvens do céu o quase-filho do homem, e que chegava até o trono de Deus, onde lho ofereciam e presentavam, e que o mesmo Deus lhe dava o poder, a honra, e o reino universal, para que todas as nações, todas as línguas, e todas as gentes lhe obedecessem e o servissem. De sorte que, sendo o quasi filius hominis o vigário de Cristo e o vice-Cristo na terra, e sendo o império, em que se lhe deram as vezes do mesmo Cristo, o império temporal e universal do mundo, o lugar em que recebeu a posse deste supremo poder foi nomeadamente o céu, onde o levaram e arrebataram as nuvens: Ecce cum nubibus caeli veniebat. - E o lugar do céu, onde Deus lhe deu a mesma posse, foi ante o trono de sua mesma majestade, onde o presentaram: Et in conspectu ejus obtulerunt eum.

E se alguém perguntar a razão desta razão, e a conveniência ou propriedade por que, sendo este império da terra, a posse dele não quis Deus que se tomasse na terra, senão no céu? A verdadeira razão Deus a sabe, que assim o mostrou o profeta; mas a que nós muito verossimilmente podemos conjecturar, é porque, assim como ao primeiro vigário de Cristo no espiritual se deu a posse das chaves do céu na terra, porque Cristo então estava na terra, assim foi conveniente que ao segundo vigário do mesmo Cristo no temporal se desse a posse do império da terra no céu, porque Cristo agora está no céu. Exemplo. Quando os vice-reis e governadores dão homenagem dos reinos e províncias que se lhes encomendam, não se faz esta solenidade nos mesmos reinos e províncias onde eles hão de representar a pessoa e exercitar os poderes do rei, senão no lugar onde está o mesmo rei, ou seja na corte, ou fora dela. A corte de Cristo é o céu, e porque Cristo estava neste mundo, e fora da sua corte quando o primeiro vice-Cristo lhe deu a homenagem do primeiro império universal, que é o da sua Igreja, por isso, ainda que as chaves deste império fossem do céu, a homenagem delas não lha deu no céu, senão na terra, porque Cristo estava na terra: logo, da mesma maneira, estando Cristo hoje, como está, na corte do céu, quando o segundo vice-Cristo lhe houve de dar a homenagem do segundo império, que é o do mundo, ainda que este império e as chaves ou cetro dele seja da terra, não lhe devia dar a homenagem dele na terra, senão no céu, porque Cristo está no céu. E esta foi a razão e novo mistério no nosso príncipe, tanto de morrer logo depois de nascido, como de não nascer morto, a que esteve mui arriscado.

Ao segundo dia do seu nascimento, para que eu, posto que de tão longe, concorresse também à celebridade da ação de graças, o reverendíssimo padre Leopoldo Juess, confessor de Sua Majestade, me enviou um resumo das circunstâncias particulares de que cá não podia haver notícia, entre as quais são as duas que agora direi. Em dezenove de janeiro, ao sair da capela, depois de ouvir duas missas, como Sua Majestade costuma, tropeçando nos aparatos de inverno, de que estava coberto o pavimento, faltou pouco que não caísse de costas, e com todo o peso do corpo, se duas damas, que a acompanhavam, não tomassem e sustentassem a queda nos braços. Em vinte e oito de abril, indo Sua Majestade em liteira, escorregou e caiu um dos machos, e com o abalo e susto, que se deixa ver, tendo o feto já animado os meses bastantes para sentir o fracasso, e não tendo o vigor e forças necessárias, em composição tão de vidro, para o resistir. Em dezoito de agosto, estando já tão próximo ao parto, sobreveio de noite a Sua Majestade um paroxismo de febre veementíssima, a que se seguiram opressões e ânsias do coração, e outros sintomas, que puseram em grandes temores de aborto os médicos, como também os haviam tido nos acidentes passados. Só a rainha, que Deus guardou, e guarde, como havemos mister, se portou em todos com tal sossego, valor e constância, como se não fossem coisa de cuidado, dizendo sempre muito confiada e seguramente que o seu santo - é o nome com que significa a S. Francisco Xavier - assim como lhe dera aquele filho, assim lho havia de livrar de todo o perigo. Esta foi a primeira circunstância, uma segunda, e terceira vez notada no discurso dos nove meses. Mas, como todo o possível se deve temer, para maior cautela, em matéria que importa mais que a vida, freqüentemente fazia Sua Majestade esta oração: Que se houvesse de perigar a vida do filho, ou da mãe, lhe aceitasse Deus, e tirasse a sua, contanto que ele não perdesse a eterna, morrendo sem a graça do batismo. Julguem outros qual fosse mais nobre a natureza neste sacrifício, se a fé e a cristandade, ou o amor. Eu digo que nem Deus podia faltar à piedade de tal petição, nem o santo à confiança de lhe solicitar o despacho. Mas acrescento que nem a nova indulgência de Deus, nem a repetida diligência do santo era necessária, sendo o filho qual era, e para o que nascia. Por quê? Porque, sendo ele o destinado para o império universal, e havendo de tomar a posse do mesmo império no céu, claro está que não podia morrer sem batismo. Isso quer dizer no nosso texto nascer o filho varão, não como filho de outra mãe, senão da Igreja, porque todo o homem antes do batismo nasce filho de Eva, e da natureza, e só depois do batismo nasce filho da Igreja e da graça, e por isso foi logo arrebatado ao céu: Raptus ad Deum, et ad thronum ejus.

Constando, pois, não por discursos, ou conjecturas, senão por textos expressos da Sagrada Escritura, que a posse do império universal do mundo se não havia de tomar na terra, senão no céu, nenhuma implicação, ou contrariedade tem, antes se vê clara e manifestamente, que não podia suceder doutra maneira, senão que o mesmo filho varão, que nascia para imperador do mundo, fosse logo levado ao céu, a tomar posse do império para que Deus o tinha destinado. E isto é o que expressamente viu S. João, e o que nós vemos cumprido no nascimento e arrebatada morte do nosso príncipe: Peperit filium masculum - ei-lo aqui nascido filho varão: Qui recturus erat omnes gentes - ei-lo aqui nascido para imperador do universo: Et raptus est ad Deum, et ad thronum ejus - ei-lo aqui, depois de nascido, subitamente arrebatado ao céu, para receber de Deus a posse do império. Onde muito se devem notar aquelas palavras ad Deum, et ad thronum ejus. - Não diz ad thronum suum - que fosse arrebatado ao céu para o seu trono, que havia e há de gozar como bem-aventurado, senão ad thronum ejus: ao trono de Deus - porque ia apresentar-se ao trono de Deus, onde havia de receber a posse e investidura do império, como expressamente diz Daniel: Donec throni positi sunt, et antiquus dierum sedit: et dedit ei potestatem, et honorem, et regnum: et omnes populi, tribus, et linguae ipsi servient[13].

§ IV

Depois que o primeiro possuidor do império universal tomou posse no céu, quem há de governar e administrar o mesmo Império na terra? O caso maravilhoso com que Deus lançou os primeiros fundamentos à sucessão do reino de Judá, de que ele era o rei, e os fundamentas também primeiros do Império de Portugal, de que o mesmo Deus é imperador. O modo, fatal e maravilhoso pelo qual nos príncipes de Portugal - o já nascido, e o que há de nascer - de dois irmãos, à semelhança de Zara e Farés, se há de compor um só herdeiro, e de um morto e um vivo, à semelhança de Luso e Lísias, se há deformar um só rei e imperador Uma das maiores circunstâncias com que, na batalha de el-rei Dom Sebastião em África, se perdeu o rei e o reino de Portugal.

Assentado e estabelecido, com tão certos e autênticos fundamentos, que o primeiro possuidor do império universal havia de ir tomar a posse dele ao céu, como foi com efeito o nosso príncipe, saibamos agora, depois da posse tomada no céu, quem há de ser o que governe, administre, e exercite o mesmo império na terra. Porventura o mesmo príncipe, que assim como tão depressa se despediu de nós, assim haja de tornar outra vez a este mundo? Não. Ele tomou a posse dele, e o irmão que há de nascer depois dele é o que há de lograr a primogenitura, e o que há de suceder no império. De sorte que o mesmo império há de ser comum de ambos os irmãos: do primeiro, e morto, que foi tomar a posse dele ao céu; e do segundo, e vivo, que o há de administrar na terra. Confesso que parece coisa nova e admirável formar de dois irmãos um só herdeiro, e que seja o primeiro irmão o que tome a posse, e o segundo, que há de vir depois, o possuidor. Mas para mim, ainda que seja maravilha, não é

novidade, porque assim o costuma Deus nos reinos que ele fez, e de que ele é o rei, quais foram unicamente neste mundo, primeiro o reino de Judá, e depois o de Portugal. Descreve S. Mateus a descendência de Judá, e, falando não só do primeiro, senão também do segundo filho, diz assim: Judas autem genuit Phares et Zaram (Mt. 1, 3): Judas gerou a Farés e a Zara. - O estilo do evangelista em todo o catálogo da genealogia de Cristo é passar do pai ao primogênito, sem fazer menção do filho segundo, ainda que ambos fossem nascidos de um só parto, como Jacó e Esaú: Isaac autem genuit Jacob (ibid. 2). - Pois se nesta geração, e em todas as outras, só se nomeia o filho primeiro, e o segundo se passa em silêncio, com que razão ou mistério, na descendência de Judá, pai e fundador da tribo real, não só diz o evangelista que gerou a Farés, senão também a Zara: Judas autem genuit Phares et Zaram? - Na história maravilhosa do nascimento destes dois meninos temos a razão e o mistério. Foi o caso que, ao tempo de nascer, um deles lançou fora o braço, no qual atou a parteira um fio de púrpura, dizendo: Este há de ser o primogênito: Iste egredietur prior (Gên. 38, 28). - Mas, que fez o mesmo menino, que é o que se chamou Zara? Recolheu outra vez o braço, e, dando lugar ao irmão, que era o segundo, e se chamou Farés, este foi o que herdou a primogenitura. Em efeito, que Zara saindo diante só, tomou a posse da púrpura, e Farés, que nasceu depois, foi o que a vestiu e a logrou.

Este foi o caso maravilhoso com que Deus lançou os primeiros fundamentos à sucessão do reino de Judá, de que ele era o rei, e tal é o que temos presente, ou começado, nos fundamentos também primeiros do império de Portugal, de que o mesmo Deus é o imperador: Imperium mihi. - O príncipe nascido, e que logo se retirou para o céu, foi como Zara, que só tomou a posse da púrpura, e recolheu o braço; o príncipe que há de nascer será como Farés, que sucedeu no lugar que lhe deixou o irmão, e logrará a mesma posse, e se vestirá da majestade da púrpura, e estenderá o braço a empunhar o cetro. Os mesmos nomes de um e outro declaram o nascimento do primeiro, e a parte que havia de ter o segundo nesta divisão do império, porque Zara quer dizer oriens: o que nasce - e Farés, divisio, o que divide. E como ambos os irmãos - tão cortês o primeiro, como venturoso o segundo - repartiram entre si estes dois primeiros atos da primogenitura e morgado real, um tomando a posse, e outro sucedendo-lhe nela, por isso S. Mateus, assim como nas outras gerações nomeou um só descendente, e um só filho, do mesmo modo nesta, com novidade singular, nomeou dois. Para quê? Para reservar cada um a parte do direito que tinha à sucessão do cetro, fazendo de dois irmãos um só filho, de dois filhos um só descendente, e de dois descendentes um só herdeiro: Voluit Evangelista honorem illis quodammodo partiri, ita Phares in genealogia Christi enumerans, ut Zaram non penitus excluderet, sed suum illi quod habere videbatur jus, quo uno poterat modo declarando reservare - disse depois dos outros intérpretes, com maior propriedade e elegância, o doutíssimo Maldonado.

Este é pois o estado em que de presente nos achamos entre os dois irmãos, o nascido e o que há de nascer. Bem assim como entre Zara e Farés, ao tempo em que Zara, com a púrpura já na mão, retirou o braço. Não se viu caso nem fineza semelhante, se bem se considera. Tendo já começado a nascer Zara, retirou outra vez o braço, para tornar a desnascer, e com este retiro ceder ao nascimento do irmão segundo a prerrogativa de primeiro. Verdadeiramente que nascer e morrer logo, como aconteceu ao nosso príncipe, é nascer e desnascer; e se de dois irmãos, o primeiro desnascido, para que o segundo nascesse, fez o evangelista um só primogênito, muito mais admirável caso é, ou será, o dos nossos dois príncipes, o já passado desta vida e o futuro, porque um com a posse da púrpura no céu, e outro com o cetro na terra, formarão ambos um imperador nunca visto nem imaginado, composto de dois, um vivo e outro morto. Disse nunca visto nem imaginado, porque fora de Portugal nunca se viu nem imaginou tal coisa, mas em Portugal sim. Ouçamos agora uma antiguidade antiqüíssima do nosso reino, e tão notável como antiga.

Depois da morte de el-rei Luso, de quem os portugueses se chamaram Lusitanos, foram tais as saudades com que o choravam, e a estimação que fizeram daquela perda, que se resolveram todos, pois tinham perdido tal rei, de não admitir jamais outro. Chegou neste tempo a Espanha Baco, celebrando com jogos e festas, e com as lanças laureadas de parra, os seus famosos triunfos; e como passasse o Guadiana, e entrasse em Portugal, contentou-se tanto da terra e da gente, que desejou fazer rei dela um filho que tinha, chamado Lísias. Sabendo, porém, o firme pressuposto em que os portugueses estavam de não aceitar outro rei depois de Luso, que faria Baco? Às outras nações volta-lhes Baco o juízo, com o licor a que deu o nome; porém, aos portugueses - deixemno dizer assim - com que vos parece que os podia embriagar, senão com as saudades de um rei muito amado e morto? Disse-lhes, que, agradecendo Luso ao amor e fidelidade dos portugueses, tão firme que nem a morte o pudera enfraquecer, se resolvera a passar a sua alma, e a introduzir em outro corpo, para tornar a viver entre eles e os governar, e que o sujeito que animava, e em que vivia a alma de Luso, era aquele seu filho, por isso também chamado Lísias. Que não crerá o amor, quando se lhe promete o que deseja muito! Omnia credit[14]. - Creram os portugueses, e, com este engano, aceitaram por rei a Lísias, e assim como dantes em memória de Luso tomaram o nome de lusitanos, assim dali por diante, não mudando, mas continuando a mesma memória de Lísias, se chamaram também lisíades, e a Lusitânia Lísia. Enfim, que os portugueses naquele tempo, segundo a sua opinião, eram governados por um príncipe composto de dois, um vivo e outro morto: o morto, cuja alma vivia em Lísias, e o vivo, cujo corpo somente morrera em Luso.

Todos sabemos que aos triunfos de Baco, pai de Lísias, na índia, sucederam e excederam na mesma índia as vitórias dos portugueses. Não será logo temeridade crer que a mesma Providência divina, que tinha destinado fundar o seu império no mesmo reino de Luso e Lísias, neste caso de Portugal, que sucedeu mil e quinhentos anos antes da vinda de Cristo, já então quisesse historiar ou pintar uma excelente figura do que havia de suceder em outros dois príncipes do mesmo reino, mais de mil e seiscentos anos depois. Nem o fingimento de Baco, e o engano dos portugueses, desfaz ou enfraquece de algum modo a propriedade e verdade do figurado, porque é certo que em muitas figuras do direito Senhor do mesmo reino de Portugal, Cristo, ainda que intervieram enganos, como na bênção de Jacó, nas promessas de Labão e na venda de José, nem por isso deixou de ser verdadeira depois a significação das mesmas figuras. Já vimos, pois, como a alma do primeiro príncipe, que Deus nos deu, tomou a posse do seu império no céu; e, se o segundo, que esperamos nos há de dar o mesmo Deus, for o possuidor do mesmo império na terra, como também lhe está prometido, quem não vê que, assim como o engano da alma de Luso se fez verdadeiro na alma do primeiro irmão, assim a fortuna e reinado de Lísias se verificará no segundo, compondo-se no tal caso, e inteirando-se de ambos um prodigioso imperador? Um morto e outro vivo; mas um no poder, um no cetro, e um na mão que o há de governar. Tal foi a irmandade e império de Moisés e Arão, em que de dois irmãos se compunha um só, e não dois imperadores: um no poder, porque Moisés e Arão ambos mandavam com uma só voz; um no cetro, porque a vara, que era o cetro, uma vez se chamava de Arão, outra de Moisés; um, finalmente, na mão, porque, sendo Moisés e Arão dois príncipes, a mão com que obravam, como diz Davi, era uma só mão: In manu Moysi et Aaron[15]

Resta somente, para último e admirável complemento do nosso caso, que no primeiro irmão fosse a mão do morto, e no segundo, que a meneasse, fossem os impulsos do vivo. Mas também isto nos prometem as esperanças de Portugal em outro sucesso fatal do mesmo reino. Uma das maiores circunstâncias de fatalidade, com que na batalha de el-rei D. Sebastião, em África, se perdeu o rei e o reino, foi que na mesma batalha morreram três reis: Molei Maomet, rei de Marrocos; Molei Abdemelec, que lhe tinha usurpado o reino, e el-rei D. Sebastião, que lho ia restituir. Estes dois últimos foram vencidos e mortos, mas vencidos e mortos pelo primeiro também já morto. E de que modo? Morto de uma bala Molei Abdemelec, sem que o seu exército o soubesse, foi metido assim morto em uma liteira, e com ele um dos seus capitães, o qual lhe meneava a mão morta, e com voz viva dava de dentro as ordens; e deste modo se prosseguiu sem alteração a batalha, e se conseguiu a estupenda vitória, sendo os fatais instrumentos dela a mão de um morto, e o mando de um vivo.

Busquemos agora a proporção que tem ou pode ter esta fatalidade de Portugal com a felicidade do mesmo reino, que lhe esperamos. E não se agravarão os arcanos da Providência de nós lhe investigarmos ou medirmos as proporções, pois ela, na permissão da fatalidade passada, e na promessa da felicidade futura, observa tal proporção e correspondência, que a fatalidade foi permitida no décimo-sexto rei, e a felicidade está prometida à décima-sexta geração. Suposto, pois, como deixamos tão largamente provado, que o império universal do mundo se há de introduzir nele com a última ruína e destruição do império otomano, parece que a elegante contraposição, que a sabedoria e providência divina costuma observar na retórica de suas obras, quando nelas se quer ostentar mais maravilhosa, parece, digo, que está pedindo ou prometendo que, assim como as armas maometanas com uma mão morta, meneada por um vivo, destruíram naquela fatal batalha o rei e o reino de Portugal, assim o mesmo rei e reino, para se fazer império, com a mão do primeiro príncipe, e morto, que tomou a posse, e com a voz e impulsos do segundo, e vivo, que lhe há de suceder, sejam a destruição e ruína do poder e exércitos otomanos.

§V

Três razões pelas quais o pregador reforça a esperança do nascimento de um segundo príncipe. A razão provável: havendo emprestado Deus, e tomado outra vez, e levado para si o primeiro príncipe, assim não pode Portugal duvidar de que lhe dará outro. - A razão quase certa, fundada na obrigação e primores de S. Francisco Xavier Hélice e o filho de Sunamitis. O báculo milagroso de Eliseu e o barrete de São Francisco Xavier. A energia e força com que Deus prometeu estabelecer, e não edificar, seu império na descendência de Dom Afonso Henriques.

Este é o modo fatal e maravilhoso, pelo qual nos nossos dois príncipes - o já nascido e morto, e o que há de nascer e viver - de dois irmãos, à semelhança de Zara e Farés, se há de compor um só herdeiro, e de um morto e um vivo, à semelhança de Luso e Lísias, se há de formar um só rei e imperador. E se a alguém lhe parecer que esta fábrica tão extraordinária mais parece uma idéia fingida só no desejo, que esperança segura e bem fundada, pois toda depende principalmente do nascimento do segundo irmão, e que é contingente e incerto - como já se experimentou no segundo parto do primeiro matrimônio, tão desejado e esperado, que nunca veio à luz - digo que, quando eu não tivesse outros motivos que grandemente me confirmassem nesta esperança, bastava só aquele ato heróico no amor natural e paterno, com que Suas Majestades, assim como se alegraram com o nascimento do filho, quando Deus lho deu, assim lhe deram graças, e se conformaram com sua divina vontade, quando lho tirou. Bastava, torno a dizer, para que a soberana liberalidade do mesmo Senhor, depois de lhe tirar o primeiro, não haja de faltar em lhe dar o segundo. Caindo a casa de Jó, matou-lhe os filhos, sendo certo, às avessas, bastar que lhe morressem os filhos, para que caísse a casa. E que fizeram Deus e Jó neste notável sucesso? Jó deu graças a Deus, dizendo: Deus os deu, Deus os levou: Dominus dedit, Dominus abstulit: sit nomen Domini benedictum[16] - e Deus pagou-se tanto deste ato tão conforme com a sua divina vontade, que assim como lhe tinha dado e levado os primeiros filhos, assim lhe deu os segundos. Havendo, porém, tanta diferença entre uns e outros, que assim como os primeiros perderam a vida entre os trabalhos da primeira fortuna de Jó, assim os segundos a lograram e estenderam por muitos anos entre as felicidades da segunda.

Mas, deixado este motivo, fortíssimo em qualquer outro coração menor que o de Deus, ainda se reforça a minha esperança em três razões, uma provável, outra quase certa, e a terceira infalível. A provável, fundada no exemplo do nosso texto; a quase certa, fundada nos primores de S. Francisco Xavier; a infalível, fundada na palavra e promessa divina. Quanto ao exemplo do texto, quando Ana, orando, disse a Deus: Si respiciens videris (1 Rs. 1, 11): Se olhando virdes - pediu um só filho varão: Sexum virilem (ibid.) - e se Deus, ouvindo sua oração, lhe não deu um só filho, senão depois dele muitos, por que não teremos nós a mesma confiança, principalmente tendo por fiadora a promessa do mesmo Deus, em que, pelas mesmas palavras de Ana, nos deu e empenhou a sua, de que olhando veria? Entre o ver, olhando ou sem olhar, há uma muito grande diferença. O ver é ação do sentido, o olhar é atenção do cuidado, e isto é o que Cristo prometeu à prole atenuada: In ipsa attenuata ipse respiciet, et videbit. - Depois da morte do príncipe, que Deus nos deu e levou, tão atenuada ficou a prole, como dantes estava: quando o deu, pôs nela os olhos de sua misericórdia: Posuit in te, et in semine tuo oculos misericordiae suae - e quando o levou, ainda que lhe tirou o filho, não tirou dela os olhos, porque no tal acontecimento, se os olhos de Deus deixassem de olhar, sucederia a desatenção e descuido ao cuidado e atenção prometida. De sorte que, tendo-se cumprido o videbit no nascimento do primeiro filho, sempre fica o respiciens, para se não descuidar do segundo.

Quando Ana pediu o filho varão a Deus, fez um voto muito notável, e foi que, se Deus lhe desse o filho, ela o emprestaria a Deus. Esta foi a forma do voto, uma e outra vez repetida: Idcirco ego commodavi eum Domino cunctis diebus, quibus fuerit commodatus Domino[17]. - Quem é o que empresta os filhos nestes casos, não são os pais a Deus, senão Deus aos pais. Bem se viu no nosso príncipe, dado verdadeiramente por empréstimo, e por empréstimo de tão poucos dias, que mal passadas duas semanas, no-lo tornou Deus a tomar e recolher para si. Mas o que eu neste empréstimo de Ana reparo e pondero muito, é o gênero ou espécie do mesmo empréstimo. O contrato do empréstimo, posto que a nossa língua o não distingue, divide-se em duas espécies, uma que se chama commodato, e a outra mutuo: no empréstimo de commodato sois obrigado a tornar aquilo mesmo que recebestes: emprestaram-vos uma espada, haveis de tornar a mesma espada; no contrato de mutuo, não sois obrigado a tornar, ou pagar o mesmo, senão outro tanto: emprestaram-vos dez arrobas de açúcar, não haveis de tornar o mesmo açúcar, senão outro tanto peso. Vamos agora ao mesmo contrato entre Ana e Deus. Da parte de Ana foi empréstimo de commodato: Commodavi eum Domino[18] - porém, da parte de Deus, depois que lhe aceitou e tomou o filho para si, foi empréstimo de mutuo, porque por um filho emprestado lhe deu outro e outros: Donec sterilis peperit plurimos[19]. - E como a liberalidade divina é tão pontual na paga ou restituição destes empréstimos, havendo-nos emprestado Deus, e tomado outra vez, e levado para si o primeiro príncipe, assim como nos deu e levou o mesmo por commodato, não podemos duvidar que nos dará outro por mutuo.

Esta é a razão, posto que tão provada, a que só dei o nome de provável. A que chamei e chamo quase certa, é fundada na obrigação e primores de S. Francisco Xavier, que comparados ficarão melhor conhecidos. Eliseu, primogênito de Elias, como Xavier de Santo Inácio - patriarcas ambos de fogo - agradecido a uma matrona muito sua devota, chamada pela pátria Sunamitis, disse desta maneira a Giesi, criado que era do mesmo profeta: - Temos tantas obrigações, como sabes, a esta Sunamitis; com que lhe pagaremos? Pergunta-lhe se tem algum requerimento com el-rei, ou quer algum privilégio do general das armas para sua casa, e dize-lhe que eu lhe alcançarei logo tudo o que quiser. - Grande confiança, por certo, de um homem vestido de peles, que tão seguramente prometesse as mercês e favores do rei, e dos seus maiores ministros! Mas era Eliseu pregador do mesmo rei, e assim costumavam os reis daquele tempo estimar e deferir aos seus pregadores. Até de Herodes dizem os evangelistas que, sem o Batista lhe pedir nada, fazia muitas coisas só por serem ditames seus: Audito eo multa faciebat[20]. - Mas, tomando ao criado, respondeu Giesi, que não era necessário saber de Sunamitis o que queria, porque era casada, e não tinha filho, e isto é o que sobretudo devia desejar. Então a chamou Eliseu, e lhe prometeu um filho, o que ela, ainda depois de prometido, não podia acabar de crer, e assim lhe disse com palavras cheias de confiança: - Olhai, varão de Deus, não me enganeis: Noli, vir Dei, noli mentiri ancillae tuae (4 Rs. 4, 16). - Cumpriu-se, porém - como não podia faltar - a palavra do profeta; teve Sunamitis o filho prometido, e no tempo sinalado; mas durou-lhe poucos dias este gosto, porque morreu o menino. E que faria a mãe, que tanto o tinha desejado ser, e o logrou tão pouco? Vai-se buscar a Eliseu, que estava ausente, lança-se a seus pés, dizendo com lágrimas: Num quid non dixi tibi; Ne iliudas me (ibid. 28)? E bem, varão de Deus, não vos disse e protestei eu que me não enganásseis? - Se da vossa parte não houve engano, pois me destes o filho que me prometestes, eu me acho muito enganada, porque melhor me fora não o haver tido, para o perder tão depressa - disse a mulher, e o profeta não respondeu palavra. Entregou a Giesi o seu báculo, e mandou-lhe que fosse muito depressa à casa da Sunamitis, e que o pusesse sobre o menino morto, para que o ressuscitasse; mas, como a morte estava obstinada a não se render a outro lenho que o da Cruz, o báculo, e quem o tinha levado, tornaram sem efeito. Então conheceu Eliseu quão bem-fundada era a desconfiança da Sunamitis, quando lhe disse: Nolimentiri ancillae tuae - pois dar um filho a uma mãe para o não lograr, era como desmentir o que tinha prometido, e roubar o que tinha dado; e para acudir o profeta pela verdade da sua palavra, não só orou fortissimamente a Deus, mas ajuntou à oração todos os meios naturais, com que o cadáver frio, tornando a receber calor, se podia dispor outra vez para se lhe introduzir a alma. Enfim, ressuscitou o menino, e Eliseu acabou de desempenhar a sua promessa, e dar de verdade à mãe o filho que tinha dado, porque lho deu outra vez.

Se eu agora esperasse que S. Francisco Xavier nos ressuscitasse o nosso infante, não seria esperança extraordinária, senão muito vulgar nos seus poderes. Eliseu ressuscitou um morto em vida, e depois da morte outro; Xavier ressuscitou em vida vinte mortos, e depois da morte quarenta e seis - além dos que se não sabem; - e, sendo sessenta e seis estes ressuscitados, teria o nosso príncipe o sétimo lugar, ainda depois dos sessenta. Entre estes foram os meninos que ressuscitou perto de trinta, e alguns que os pais tinham alcançado por sua intercessão, com que o santo lhos deu duas vezes. Mas eu não quero que Xavier nos alcance a ressurreição do mesmo príncipe, senão o nascimento de outro, porque este é, como vimos, o modo mais próprio e natural do olhar e ver dos olhos de Deus.É certo que, para alcançar Xavier do mesmo Deus uma segunda vida, não seriam necessários tantos extremos de ações extraordinárias, como as que ajuntou Eliseu à sua oração, porque se uma relíquia de Eliseu - qual era o seu báculo - não pôde comunicar segundo ser ao filho de Sunamitis, bastou uma relíquia de Xavier para influir o primeiro ao primogênito de Sua Majestade. O maior tesouro que veio da índia a Portugal, depois do braço de S. Francisco Xavier, que está em Roma, foi um barrete do mesmo santo, com que, desprezadas as outras riquezas do Oriente, veio mais rico que todos o último vice-rei. Foi pois o caso, que em vinte e um de novembro de mil seiscentos e oitenta e sete, dia da Apresentação da Virgem Maria, pondo na cabeça a rainha nossa senhora este barrete, subitamente lhe correram dos olhos copiosas lágrimas e se lhe inflamou e mudou o rosto de tal sorte, que o seu confessor, que estava presente, ficou admirado. Inquirindo depois a causa, lhe revelou Sua Majestade que desde aquele ponto ficou tão certificada de que o santo lhe havia de alcançar de Deus o filho que por sua intercessão esperava, que nunca mais lhe viera ao pensamento podê-lo duvidar. As palavras do mesmo padre confessor são: Ut nihil amplius haesitaret de impetrando quod petebat - e o efeito foi o que se viu aos nove meses seguintes.Que diremos agora ao báculo de Eliseu, comparando relíquia com relíquia? Não é o meu intento dizer que são mais poderosos para com Deus os barretes que os báculos. Sendo, porém, tal a profissão de S. Francisco Xavier, que fazem nela voto os barretes de não aceitar os báculos, não seria maravilha ser este voto tão grato a Deus, que no concurso de uns e outros sejam menos milagrosos os báculos que os barretes. E, como ao primor e agradecimento de S. Francisco Xavier lhe não falta o poder, antes lhe seja tão fácil qualificá-lo com as obras, não sendo ele menos obrigado aos reis de Portugal do que Eliseu aos de Israel, para os quais oferecia valias, e, sendo tanto maiores que os da Sunamitis, os obséquios com que a devoção da rainha, nossa senhora, tem empenhado o mesmo santo, não só em Portugal na sua imagem, senão em seu corpo na índia, bem se conclui que, se Eliseu alcançou a segunda vida ao filho de Sunamitis, e o faria com igual e maior obrigação se fora filho do rei, assim não faltará o primor e agradecimento de Xavier em alcançar a Suas Majestades o segundo filho. Já me arrependo de ter chamado a esta razão de confiança quase certa, pois o mesmo santo certificou dela a rainha, nossa senhora, sem quase, senão com toda a certeza.

Só resta a última razão, ou argumento a que chamei infalível e é fundado na promessa e palavra divina. Quando Cristo, Senhor nosso, apareceu a EI-rei D. Afonso, as primeiras palavras com que deu princípio ao que determinava fundar naquele dia, foram: Ego aedificator regnorum et imperiorum sum: Que ele é o edificador dos reinos e dos impérios - e sobre este proêmio, passando à promessa, pronunciou a segunda proposição, dizendo que no mesmo rei, e na sua descendência, queria estabelecer o seu império: Volo enim in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire. - Esta última palavra é de grandíssimo peso, e pede igual ponderação. Suposto que no proêmio tinha dito o supremo Senhor que ele é o edificador dos reinos e dos impérios, parece que havia de dizer que em D. Afonso, e na sua descendência, queria edificar o seu império: pois, por que não disse aedificare, edificar, senão stabilire, estabelecer? Porque de edificar a estabelecer vai grande diferença: o que se edifica, pode-se arruinar; o que se estabelece, não pode deixar de permanecer. Enquanto Esaú foi à caça, fingindo Jacó que era Esaú, com as astúcias que sabemos, alcançou de seu pai Isac a bênção e o morgado que pertencia ao mesmo Esaú, e a quem o pai o queria dar. Veio enfim Esaú poucas horas depois, conheceu Isac o engano, e, contudo, não o desfez: omissão estupenda em um homem justo e santo! Pois, se Esaú era o primogênito, e a Esaú pertencia a bênção e o morgado, e o mesmo Esaú descobriu o engano, e o alegou de sua justiça, por que não desfez Isac, nem anulou a doação feita contra sua própria vontade? O mesmo Isac o disse: Frumento et vino stabilivi eum, et tibi post haec, fili mi, ultra quid faciam[21]? - Não disse que tinha dado a bênção e o morgado a Jacó, senão que o tinha estabelecido nele: stabilivi eum - e como a doação estava estabelecida, declarou que já não era possível fazer outra coisa: Et tibi post haec ultra quid fatiam? - Se a bênção fora só dada a Jacó, pudera-lha tirar Isac; mas como a Jacó estava dada, e em Jacó estabelecida, já não podia ser tirada, senão permanecer no mesmo Jacó. Tal é a energia e força daquele stabilire no nosso caso. Se o império de Cristo fora só edificado na descendência de D. Afonso, morto o primeiro descendente da geração atenuada, poderia cair com a sua morte, e arruinar-se nele o edifício; porém, como o mesmo edificador dos reinos e dos impérios prometeu que havia de estabelecer o seu na mesma descendência: In te, et in semine tuo imperium mihi stabilire - assim como deu o primeiro filho para a posse no céu, assim está obrigado a dar o segundo para o estabelecimento na terra.

§ VI

Justificação contra algumas queixas e escrúpulos dos que se não atrevem a esperar O modo fácil e natural com que a posse tomada no céu se pode logo verificar na terra. El-rei Dom Pedro, herdeiro do filho morto. Quando se há de verificar a destruição da estátua de quatro metais, vista por Nabucodonosor? As consonâncias do nome Pedro, primeiro vigário de Cristo, e de el-rei Dom Pedro de Portugal.

Parece-me - se me não engano - que o discurso desta apologia tem bastantemente consolado as nossas saudades, assegurado as nossas esperanças, e

defendido a verdade das minhas promessas, muito a pesar da morte, e a prazer do morto. Só restam, ou podem restar, os escrúpulos de alguma incredulidade nossa, e muitas dos estranhos, a que devo satisfazer. E creio que não faltarei em dar justa satisfação a uns e a outros, se, cerrados os olhos a todo o afeto particular, abrirem os ouvidos livres ao que ditar e provar a razão.

Ainda eu não tinha acabado de pregar, quando já se queixavam alguns ouvintes de que eu dilatasse as felicidades que prometia, para quando pudesse ser o autor delas um menino, de quem então se recebiam as novas de ser nascido, havendo de esperar as dilações da sua infância, os vagares da sua puerícia e adolescência, e os prazos outra vez dobrados da idade de mancebo até de varão, pois, este mesmo nome pedido em umas Escrituras, e repetido em outras, não só significava o sexo, senão também o juízo, o valor, a experiência, e todas as outras qualidades de que se compõe um herói perfeito, e mais para conquistar e sustentar o peso da monarquia do mundo. Confesso que a ninguém tocava mais de perto esta queixa, que aos meus anos, pois todos os velhos nos podíamos despedir de ver aquela felicidade em nossos dias. E a esta razão, ou desesperação, podiam ajuntar os doutos as Escrituras, porque no capítulo sétimo, tantas vezes alegado, de Daniel, se diz que ao Império Otomano tinha Deus prometido: Tempus, et tempora, et dimidium temporis[22]-nas quais palavras, tempus significa um século, tempora dois séculos, et dimidium temporis parte de outro século, que vêm a fazer trezentos e cinqüenta anos e meio precisamente, ou alguns mais, dentro porém no quarto século. Donde se segue que, havendo começado aquele império no ano de Cristo de mil e trezentos, não pode chegar ao de setecentos, em que o príncipe nascido só teria onze anos, idade ainda de nenhum modo suficiente para as batalhas e vitórias que necessariamente hão de preceder à total ruína e extinção de uma tão dilatada e formidável potência. Finalmente, a experiência dos sucessos felicíssimos das armas católicas nestes anos, e a conquista de cidades tão capitais, com o rendimento de fortalezas que sempre se conservaram na reputação de inexpugnáveis, e com a rota de tantos e tão inumeráveis exércitos, e mortandade de tanta infinidade de bárbaros, parece que estão prometendo a breve e total destruição do império do turco, e que os prazos que a Providência tem assinalado ao castigo da cristandade na sua duração, com passos não apressados só, mas precipitados, se vão chegando ao fim, porque adesse festinant tempora.[23]

E se estas dificuldades concorriam com tanta evidência na vida do príncipe, cujo nascimento festejávamos, quanto mais depois da nova de sua morte, com que se amorteceram também as esperanças, quando se não sepultassem de todo. E ainda depois de eu provar que o levou Deus por forçosa conseqüência ao céu, onde necessariamente se havia de tomar a posse do império universal prometido, havendo de suceder à posse tomada no céu outro filho segundo, que receba o domínio, e o exercite na terra, onde está este segundo príncipe? Não só esperado - como hoje é - senão, ainda depois de nascido, por mais que os olhos divinos se apressem a no-lo dar, sempre concorrem nele as mesmas dificuldades, pois se não podem concordar os muitos anos, que há mister para a suficiência do domínio, com os poucos que promete o império que há de ser dominado.

Eu não posso negar que a solução deste argumento, e a concórdia das contrariedades que nele se representam, me puseram em grande cuidado. Nesta suspensão estive, até que o mesmo olhar e ver dos olhos divinos me abriram também os meus, e, subindo com a vista quando eu descia com ela, me mostraram o modo fácil e natural com que a posse tomada no céu se pode logo verificar na terra. E que modo é ou pode ser este? Não sendo o segundo irmão, como sucessor do primeiro, o chamado para a introdução do império, senão o pai vivo, como herdeiro do filho morto. Não é herdeiro natural do príncipe D. João, que Deus nos deu e levou, El-rei D. Pedro, nosso senhor, seu pai vivo, e que muitos anos viva? Sim. Pois, este é logo o príncipe fatal, em cujas prerrogativas e atributos reais não só ficam desvanecidas todas essas dificuldades, mas sobre toda a imaginação satisfeitas e cheias as medidas de quanto neste prometido herói pode fingir o desejo, e pedir a importância da empresa. Que se pode desejar no conquistador do turco, e dominador do mundo? Idade? E que idade, como a de quarenta anos cabais, a própria e consumada de varão perfeito? Forças? E que braços e pulsos tão fortes e robustos como os que, esperando-se no corro a fúria dos brutos mais bravos, com as mãos nuas e desarmadas lhe põe as duas cervices e as agudas pontas aos pés? Valor? E que ânimo mais intrépido, mais senhor dos perigos, e mais desprezador dos temores que o seu, não só quando conhecido, mas disfarçado; nem só na luz do dia, mas no mais escuro da noite, onde os homens todos são da mesma cor, nem distinguem ou valem aos reis os salvo-condutos da majestade? Guerreiro? E que espírito mais filho de Marte, que aquele que de idade de três anos o acalentavam para o sono com a sua espada, e nunca puderam acabar com ele que dormisse senão com ela ao lado, criado entre o estrondo das caixas e das trombetas, e crescido entre os repiques e vivas das vitórias? Experiência? Não só a das observações de toda a vida, mas de vinte e um anos de governo, em tantos acidentes prósperos e adversos, que são os que melhor ensinam, sendo mais dificultoso na paz repartir os prêmios entre os soldados vencedores, que vencer com eles os inimigos na guerra. Juízo e compreensão dos negócios? Digam-no os embaixadores e ministros estrangeiros, na admiração com que se vêm respondidos de repente às propostas que eles trazem mui estudadas, sem mais consultas nem conselho, que a profunda penetração de todas as matérias, cujas resoluções, na certeza dos próprios termos de cada uma, e estilo altíloquo, e verdadeiramente real, tanto persuadem o que dizem, quanto emudecem a quem as ouve. Finalmente, a fé para uma guerra contra infiéis, e a piedade para a recuperação da Terra Santa? E quem é o rei daquele povo, a quem o mesmo Cristo chamou: Fide parum, et pietate dilectum - e o príncipe católico, que com o cuidado, com as leis, com os dispêndios da fazenda, e sobretudo com a eleição de ministros, os mais idôneos e provados no zelo da conversão das almas, tanto como el-rei D. Pedro se empenhe e desvele na propagação da fé, e na piedade, culto e aumento do serviço e glória divina, exortando por si mesmo aos seus enviados, com espírito e motivos mais de apóstolo que recomendações de rei?

Assim que, para substituir desde logo, e entrar à posse do primogênito morto, não é necessário esperar pelo irmão segundo, como sucessor, senão recorrer ao pai, como herdeiro do filho. E, verdadeiramente, que se con siderarmos ao filho tomando a posse no céu, e ao pai conquistando-lhe os súditos e oimpério na terra, ninguém haverá que não reconheça neste império temporal de Cristo uma excelente analogia e correspondência do seu império espiritual. Morreu Cristo, subiu ao céu, e, depois que o Filho esteve no céu, que fez o Pai? O mesmo Pai, falando com ele, o disse: Sede a dextris meis, donec ponam inimicos tuos scabellum pedum tuorum (Sl. 109, 1): Deixai-vos estar no céu, Filho meu, que eu tomo por minha conta sujeitar e meter debaixo dos vossos pés todos vossos inimigos. - Os inimigos do Filho eram todas aquelas gentes que o não adoravam por fé nem reconheciam por obediência, das quais ele só tinha tomado a posse: Postula a me, et dabo tibi haereditatem tuam, et possessionem tuam terminos terrae[24] - mas essas mesmas gentes, rebeldes, contumazes e inimigas, ainda negavam ao mesmo Filho a sujeição e obediência devida, não querendo aceitar o jugo de sua lei, posto que jugo leve e suave, unidos seus reis e príncipes na sua desobediência e rebeldia, como diz o mesmo profeta: Astiterunt reges terrae, et principes convenerunt in unum adversus Dominum, et adversus Christum ejus: Dirumpamus vincula eorum, et projiciamus a nobis jugum ipsorum[25]. - Neste estado, porém, o Pai, assim como tinha tomado por sua conta a conquista do império do Filho, assim o fez com maravilhosa eficácia, sujeitando a todos esses reis e príncipes rebeldes, e obrigando-os, e trazendoos com uma não-forçada, mas voluntária violência, a que viessem reconhecer e beijar o pé na terra ao Vigário do mesmo Filho, como ele mesmo disse: Nemo venit ad me, nisi Pater meus traxerit eum[26]. - E se a Providência divina, que sempre se parece consigo mesma em todas suas ações, estabelecendo a posse do Filho com a conquista do Pai, pôs as coroas do mundo aos pés do seu primeiro vigário, por que não guardará o mesmo estilo com o segundo, sujeitando também o império ao filho pela conquista de seu pai, resultando nesta formosa arquitetura, com igual proporção e graça, não só a correspondência da obra em um e outro império, senão também a consonância do nome em um e outro Pedro?

Quando Nabucodonosor viu aquela estátua dos quatro metais, em que eram representados os quatro impérios do mundo, viu também que uma pedra arrancada de um monte, sem mãos, dando nos pés da estátua, a derrubava, e convertia os metais em cinzas, e ela crescia a tanta grandeza que enchia toda a terra: Lapis autem, qui percusserat statuam, factus est mons magnus, et replevit universam terram[27]. - Que esta pedra fosse ou representasse a Cristo, nenhum expositor católico o duvida; mas em que tempo alcançasse Cristo, ou haja de alcançar esta vitória, em que derrube todos os impérios do mundo, e o seu se estenda e encha o mesmo mundo, é uma dificuldade tão escura e implicada com a experiência, que, depois de ter atormentado a todos os comentadores, nenhum se aquieta na exposição alheia, nem ainda na própria. Uns têm para si que a profecia se há de cumprir na segunda vinda de Cristo; mas então já não há de haver mundo, ao qual se haja de estender e encher a pedra. Outros querem que já se tenha cumprido na primeira vinda de Cristo; mas os pés de ferro, e o barro, com cujo golpe a pedra derrubou a estátua, significavam a última fraqueza do Império Romano, o qual, no nascimento de Cristo, e no edito de Augusto César, se declarou por senhor universal do mundo: Exiit edictum a Caesare Augusto, ut describeretur universus orbis[28]'. - E é certo que no tempo e vida de Cristo de nenhum modo caiu e se desfez o Império Romano, antes cresceu a sua maior grandeza. Pois, se esta profecia se não cumpriu no primeiro advento de Cristo, nem se pode cumprir no segundo, quando se há de verificar que a pedra, que significava e representava Cristo, há de derrubar e desfazer a estátua de todos os outros impérios, e crescer e dominar o seu em todo o universo: Replevit universam terram? - A solução verdadeira desta grande dúvida, é que esta última e total vitória não a havia, nem há de alcançar Cristo neste mundo por sua própria pessoa, nem a primeira vez que veio, nem a segunda que há de vir a ele, senão pela pessoa do seu Vigário, no último e maior aumento da Igreja, que por isso se chama católica, quando todo o mundo, e seus impérios, professarem a fé e obediência do mesmo Cristo. E foi pedra, e não raio, ou outro instrumento, a que derrubasse a estátua, porque não só Cristo era pedra: Petra autem erat Christus[29] - senão também o seu vigário é pedra: Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam[30].

E porque aqueles impérios, não só enquanto gentílicos e idólatras, se opunham ao império espiritual de Cristo, senão também, enquanto políticos, ao temporal, o qual no mesmo tempo há de ter segundo vigário, como vimos; se este segundo vigário se chamasse Pedro, então seria ainda maior a propriedade da pedra, não só pela proporção do império, senão pela consonância do nome. Mas, se o texto exclui esta segunda pedra, maravilhosamente alude a ela. Diz o texto que aquela pedra que derrubou a estátua, se arrancou do monte, e fez o tiro sem mãos: Lapis abscissus de monte sine manibus[31] - e assim foi, porque o império espiritual de Cristo, assim como se começou a conquistar sem armas, assim há de crescer, e conseguir a sua última e consumada grandeza sem elas. Porém, o império temporal, que primeiro há de sujeitar a potência do turco, e depois a contumácia de todos os outros inimigos do nome cristão, e por fim, não violenta, mas voluntariamente há de render o resto do mundo, não pode ser sine manibus, senão com mãos, e muito fortes. Davi quer dizer manu fortis: o forte de mãos; e esta segunda pedra há de ser como a da pedra de Davi. A outra pedra deu nos pés da estátua, esta há de dar na cabeça do Gigante: porque as estátuas mortas têm os alicerces nos pés, as vivas na cabeça. Tudo o que se opõe ao império espiritual de Cristo é morto, porque carece da vida sobrenatural; mas tudo o que se opõe ao temporal é vivo e muito vivo, porque vive na ambição, na soberba, e na cobiça, que são as três potências da alma do mundo. Para Davi vencer este gigante há de disparar a funda e cortar com a espada; e se Cristo, assim como a mandou embainhar a um Pedro, a mandar desembainhar a outro, eu fico que ninguém lhe aperte os punhos com melhores mãos, ainda que o partido contrário seja tão desigual, como a um só Pedro toda a coorte romana.

§ VII

As dúvidas e escrúpulos dos muitos que zombam de crer: se há de haver no mundo um império universal, outras coroas têm o mesmo mundo, cujo âmbito seja mais capaz dessa grandeza, que a de Portugal. A prerrogativa singular da promessa de Deus a Portugal. O pequeno Reino de Portugal e o pequeno Davi. Interpretação da misteriosa visão e profecia de Esdras. A destruição do império do turco confiada a Portugal.

Com estas últimas palavras acabo de satisfazer à primeira dúvida, e tenho entrado na segunda, que não é só dos poucos que se não atrevem a esperar, mas dos muitos, ou de todos os que zombam de crer. Dizem que, se há de haver no mundo um império universal, outras coroas tem o mesmo mundo, cujo âmbito seja mais capaz desta grandeza, que a de Portugal. E certo que eu sou tão amigo da verdade, e tão sem paixão nem lisonja, que também me persuadira e dissera o mesmo por parte de muitas outras nações e remos católicos, se não tivera uma só razão em contrário. Que querem ou podem querer os opositores desta monarquia que eu lhes conceda? Maior antiguidade? Maior grandeza? Maior poder? Maior política? Maior arte militar? Maiores exércitos, e tudo o que pode fazer num ou muitos estados-maiores? Tudo isso concedo sem disputa nem controvérsia. Mas haverá algum reino, ou nação, que tenha seis palavras da boca de Cristo que digam: Volo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire: Eu quero estabelecer em ti, e na tua descendência, o meu império? - Se há algum reino ou rei, ao qual, ou do qual dissesse Cristo semelhantes palavras, funde nelas a sua fé, as suas esperanças e os seus desejos, e exclua a todos os outros. Mas, se esta prerrogativa é singular de Portugal, por que lhe hão de querer tirar o que Deus lhe prometeu? E por que hão de querer outra prova ou segurança de haver de ser, que a mesma promessa? Quando os profetas prometiam outras coisas mais dificultosas, com que provavam a certeza infalível de haverem de suceder? Quia os Domini locutum est (Is. 1, 20): Porque assim o disse Deus por sua sagrada boca. - E se ele, com a mesma boca, e na mesma cruz, com que disse as outras sete palavras, disse também estas seis, que importa que o desdiga ou negue todo o mundo? Isto baste por resposta aos que cortam o vestido às suas esperanças pelas medidas da maior grandeza, ou do seu conceito, ou do seu corpo.

E quanto a ser menor o corpo de Portugal, e a primeira vitória por onde se há de introduzir o império ser a do grande poder do turco, que no mesmo texto sagrado se chama por antonomásia a potência: Ut auferatur potentia, et dispereat usque in finem[32] - não carece verdadeiramente de admiração, vista a matéria com olhos humanos, que de um reino tão pequeno como Portugal, e tão dissipado e diminuto hoje nas suas conquistas, possam sair bastantes forças para efeitos tão grandes e estupendos! E, posto que eu me pudera acolher a sagrado, e responder com o exemplo de Davi, o menor entre todos seus irmãos, e por isso mesmo escolhido por Deus para derrubar o gigante Golias, e humilhar a arrogância e potência dos filisteus, só me contento com a metáfora daquela história, e não quero dela o exemplo. E se me perguntam por quê? Porque me lembro do que outros parece se esquecem, e porque de casa temos outro exemplo maior e melhor, para confirmar a esperança deste grande futuro na experiência do passado. Não era por certo menos Golias o Oceano armado de tempestades e horrores, nem menor gigante o Oriente estendido em tantos e poderosos impérios, e, contudo, para domar a braveza de um, e conquistar a potência do outro, nem Deus escolheu entre os reinos outro reino que o de Portugal, nem entre as nações outra nação que os portugueses. Eles foram para pisar o orgulho do Oceano, nunca arado de outras quilhas, os argonautas; e eles - assim poucos - os que, para deixar muito atrás as conquistas de Baco e Alexandre no Oriente, os capitães e soldados. Mas, porque o mesmo Deus tomou por sua conta responder a esta mesma objeção, de ser o reino de Portugal tão pequeno, ouçamos o que diz por boca de Esdras.

Conta Esdras, no capítulo onze e doze do seu quarto livro, que viu levantar-se do mar uma águia, a qual tinha três cabeças e doze asas: Vidi, et ecce ascendebat de mari aquila, cui erant duodecim alae pennarum, et capita tria (4 Esdr. 11, 1). - Esta águia, sem outra interpretação, demonstra claramente ser o Império Romano, que sempre teve por insígnia e por armas a águia. E se olharmos para o que foi antigamente, e hoje resta do mesmo império, manifestamente vemos que está dividido em três cabeças, uma em Roma, que é o pontífice, outra em Constantinopla, que é o turco, e a terceira em Viena de Áustria, que é o imperador de Alemanha. Mas, deixada qualquer outra interpretação, vamos à do mesmo Deus: Aquilam quam vidisti ascendentem de mari, hoc estregnum, quod visum est in visione Danieli fratri tuo: Esta águia que viste - diz Deus falando com Esdras - é aquele mesmo império que foi revelado a Daniel teu irmão. - E porque a Daniel foram revelados quatro impérios em quatro feras, logo declarou o divino Oráculo que falava do quarto império, que é o romano, significado na quarta fera, que tinha os dentes de ferro, e era a mais forte e mais terrível de todas: Ecce dies venient, et exurget regnum super terram, et erit timor acrior omnium regnorum, quae,fuerunt ante eum.

As doze asas da águia representavam o poder e grandeza do mesmo Império Romano, estendido e dilatado por todo o mundo até então conhecido; e as penas das asas são os reinos e nações sujeitas e dominadas, de que se compunha a grandeza e vestia a majestade do mesmo império. Destas penas viu o profeta muitos encontros e batalhas que tiveram entre si, e contra a mesma águia, com vários sucessos, cuja história é mui intrincada e confusa, e não serve a nosso propósito. O que só se deve advertir, para inteligência do texto, e de muitos outros da Escritura Sagrada, é que o corpo da águia, em que se continuou o Império Romano, não é o de Roma nem o de Alemanha, senão o de Constantinopla e do turco. E isto pela grandeza sem comparação muito maior das terras, províncias e gentes que dominou e domina na Europa, na Ásia e na África, sujeitas dantes aos romanos. Neste mesmo sentido falou o profeta Daniel, porque, referindo a extinção do cornu parvulum - que é, como vimos, o império do turco - expressamente diz que então morreu e acabou a quarta fera, que representava o Império Romano: Aspiciebam propter votem sermonum, quos cornu illud loquebatur; et vidi quoniam interfecta esset bestia, et perisset cor pus ejus[33] - E diz nomeadamente corpus ejus, porque no império do turco se continuou o corpo do Império Romano, que em Daniel era a quarta fera, como em Esdras é a águia de três cabeças.

Isto posto, vamos ao nosso ponto. Diz o mesmo Esdras que contra esta águia se levantou um leão, o qual, com voz humana, e em nome de Deus, começou a lhe falar desta maneira: Nonne tu es qui superasti de quatuor animalibus, quae feceram regnare in saeculo meo? etc. (4 Esdr. 11, 39). - Não és tu o que só restaste dos quatro animais que eu fiz reinar no meu mundo? - Aqui se confirma outra vez ser o império do turco aquele em que se continuou o romano. - Não és tu - continua - o que sempre reinaste com dolo, e julgaste contra a verdade, e amaste a mentira? Não és tu o que debelaste os muros, e conquistaste as cidades, e destruíste as casas, e roubaste e despojaste os pobres do fruto dos seus trabalhos? Não és o que atribulaste e afligiste os inocentes, e tiranizaste os que te tinham ofendido, e, sobretudo, o que disseste injúrias, afrontas e blasfêmias contra o Altíssimo? Sabe, pois, que as tuas soberbas e maldades subiram até o seu divino conspecto, e por elas te tem condenado a que tu, ó águia, não apareças mais no mundo, nem as tuas asas horríveis, nem as tuas penas péssimas, nem as tuas cabeças malignas, nem as tuas unhas carniceiras, nem o teu corpo todo vão. - Assim acabou de dizer o leão executor desta justiça, e logo viu Esdras que a cabeça, que só restava no corpo da águia, e todo o mesmo corpo - como também tinha visto Daniel - foi queimado e convertido em cinzas, com horror e assombro de toda a terra: Et vidi, et quod superaverat caput, et omne corpus aquilae incendebatur, et expavescebat terra valde (4 Esdr. 12, 1 ss).

Já temos destruído totalmente o turco, e destruído por meio de um leão escolhido por Deus para em seu nome ser o famoso executor desta justiça, e obrador glorioso de tão estupenda façanha. Só resta saber quem seja ou haja de ser este leão. Se é representado em leão, e se chama leão, rei dos animais, claro está que há de ser rei; mas de que reino, ou de que nação? Porventura de algum dos maiores reinos, ou de alguma nação das mais populosas? Não, senão de um reino muito pequeno - que era a nossa objeção - e de uma nação não de muito número de homens, senão poucos. Ouçamos agora o texto, que é admirável, e as palavras não são menos que do mesmo Deus, interpretando a Esdras o que lhe tinha mostrado em visão: Quoniam vidisti duas subalares trajicientes super caput, quod est in dextera parte, haec est interpretatio: Hi sunt quos conservavit Altissimus in finem suum, regnum exile, et turbationis plenum (4 Esdr. 12, 29 s): Viste duas penas debaixo das asas da águia, as quais se levantaram, e passaram por cima da cabeça, que ela tinha da parte direita? Pois, estes são os que conservou e guardou Deus para o seu fim, sendo um reino pequeno, atenuado, e cheio de perturbação. A cabeça da águia, que estava da parte direita – caput quod est in dextera parte - é Constantinopla, cabeça do império do turco, ou se considere desde Roma, que foi o princípio do Império Romano, ou se considere desde Jerusalém, que foi o lugar donde Esdras viu e escreveu a visão; porque, vista Constantinopla desde Roma, está à parte direita de Roma, e vista desde Jerusalém, está à parte direita de Jerusalém. Sobre esta cabeça, pois, que só restava no corpo da águia, e era Constantinopla, viu Esdras, que se levantavam duas penas, das que ela tinha debaixo das asas, e que passavam, ou passeavam por cima da dita cabeça, como pisando-a, e metendo-a debaixo dos pés:Quoniam vidisti duas subalares trajicientes super caput, quod est in dextera parte. - E o que Deus lhe declarou foi que aquelas duas penas eram as duas partes de que constava um reino muito pequeno e atenuado: Regnum exile - cujos homens, porém, tinha Deus reservado e conservado para o seu fim: Hi sunt quos conservavit Altissimus in finem suum. - E qual era este fim de Deus? Era que o rei do mesmo reino pequeno, representado no leão, destruísse a cabeça e corpo da mesma águia, e com a pressa e violência de um fortíssimo vento, derrubasse aquele soberbo império, e libertasse o mundo de sua tirania:

Sicut vidisti et leonem rugientem, et loquentem ad aquilam, et arguentem eam, et injustitias ipsius. Hic est ventus quem servavit Altissimus in finem ad eos: statuet enim eos in judicio vivos: et erit, cum arguerit eos, corripiet eos: nam residuum populum meum liberabit (4 Esdr. 12, 31 ss).

Em suma, que o mesmo Deus tomou por sua conta satisfazer e desfazer a objeção que se podia opor a Portugal de ser um reino pequeno e atenuado, e por isso desigual a uma empresa tão grande ou tão imensa. E de tal maneira definiu Deus este ponto, que o ser reino pequeno, não só não é impedimento, mas é condição necessária para alcançar a vitória do turco, como, pelo contrário, o ser reino grande, não só não seria disposição ou conveniência para a mesma vitória, senão exclusiva dela, porque, havendo de ser o reino vencedor, reino pequeno - regnum exile - se fosse grande, ou dos grandes, a sua mesma grandeza o excluía claramente de ser o vencedor. E, finalmente, que este reino assim pequeno, profetizado e destinado por Deus para tão alto fim, seja Portugal, e não outro, as mesmas circunstâncias e sinais que acabamos de ponderar o demonstram.

Primeiramente, representou Deus este reino pequeno em duas subalares da águia, isto é, em duas penas debaixo de suas asas. E por que não em uma só, ou em mais de duas? Porque já dissemos que as penas, de que se vestia, e tinha debaixo de suas asas a águia ou Império Romano, eram os reinos que ele dominava, e o nosso reino, como se vê no escudo de suas armas, é composto de dois reinos, o de Portugal e o dos Algarves. Nem obsta - note-se muito esta advertência e propriedade do texto: - nem obsta que o mesmo Portugal domine outros muitos reinos e nações na África, Ásia e América, como da Etiópia, índia e Brasil, porque as tais nações e reinos conquistados pelos portugueses, em nenhum tempo estiveram sujeitos ao Império Romano, nem foram subalares da águia, senão só e unicamente os dois de Portugal e Algarves, quando os romanos dominaram toda Espanha.

Também não podemos negar que Portugal hoje não só é pequeno e debilitado, senão cheio de perturbação: Regnum exile, et turbationis plenum - porque toda a grandeza e opulência, que o fazia um dos mais poderosos do mundo, a invasão de quase todas as nações de Europa, assim no mar, como na terra, se lha não tem tirado em muitas partes, lha tem perturbado em todas. E, além deste gênero de perturbação externa, não menos se verifica o texto em outra mais interior e mais natural dos portugueses, os quais, como diz o provérbio castelhano, não só são poucos, senão mal-avindos: poucos: regnum exile - mal-avindos: et turbationis plenum. - Assim se viu tantas vezes em todas as guerras que Portugal teve contra cristãos, como nas de Castela, nas quais, perturbados e passados de uma parte para a outra castelhanos e portugueses, quase tantos portugueses pelejavam por Castela contra Portugal, como castelhanos por Portugal contra Castela. Porém, quando as guerras eram contra inimigos da fé e maometanos, todos os portugueses se achavam sempre tão unidos, como se foram um só homem. E isto é o que ponderou o mesmo Deus, quando, depois de dizer: regnum exile, et turbationis plenum - acrescentou que, sem embargo deste pouco número, e desta muita perturbação, eles eram os que Deus tinha guardado e conservado para os seus fins: Hi sunt quos conservavit Altissimus in finem suum. - Deixo outras perturbações, que em um tempo e mundo tão perturbado como o presente, se podem também introduzir em Portugal, para que depois dessa tempestade se siga a bonança, e, por maravilha singular do Altíssimo, apareça o mesmo reino, depois de tão pequeno, o maior e o mais quieto e sereníssimo, depois de tão perturbado: Regnum exile, et turbationis plenum.

§ VIII

Os testemunhos de todos aqueles autores e autoridades, que a podem dar com fundamentos aos sucessos futuros. Como todos concordam em que a vitória final do império turco, e o universal de todo o mundo, está destinada por Deus a Portugal. O testemunho dos historiadores.

Satisfeitas assim as duas objeções, ou escrúpulos, que de algum modo podiam abalar nos entendimentos e discursos humanos a firmeza do nosso, por que não pareça só nosso, ou meu, nem aos naturais, nem aos estranhos, em graça unicamente dos que se não cansaram de ler o que até agora tenho dito, o quero estabelecer com testemunhos alheios, e sem suspeita. E estes, de quem? De todos aqueles autores e autoridades que a podem dar com fundamentos aos sucessos futuros. Ouviremos, pois, primeiro os históricos, logo os matemáticos, depois os políticos, após estes, e com maior veneração, os santos e varões alumiados por Deus, e, por fim, os mesmos maometanos, e veremos como todos concordam em que a vitória final do império do turco, e a universal de todo o mundo, está destinada por Deus para Portugal.

Começando pelos historiadores em todos os que escreveram a história dos nossos reis, desde seu princípio, se não pode deixar de observar nos mesmos reis um instinto e inclinação natural, ou sobrenatural, contra todos os sequazes da seita de Mafoma. Vemos que a natureza, desde a geração e nascimento, infundiu aquela certa aversão e antipatia em uns animais contra outros, como é nos que servem à caça da volataria contra as aves, e na da montaria contra as feras, e até nos domésticos que vigiam e limpam a casa, contra as sevandijas que a infestam e roubam. E tal é, e foi sempre desde o nascimento de Portugal em reino, a antipatia dos seus reis, e, antes de terem este título, dos que Deus ia preparando para o serem, porque já então tinha semeado e infundido neles esta natural aversão e sobrenaturais espíritos contra mouros e turcos, não como de homens contra homens, mas como de cristãos e professores da fé e lei divina, contra a canalha brutal dos infames seguidores da ímpia e blasfema cegueira maometana.

Foi concebido o reino de Portugal antes de o ser, no conde D. Henrique; e, estando ainda em embrião, já estava animado com os espíritos da conquista de Jerusalém, para onde Henrique caminhava desde França, e para onde foi de Portugal por general do socorro, que el-rei D. Afonso de Leão, seu sogro, mandou ao papa Urbano II, pelo qual foi eleito em um dos doze capitães em que se repartiu o peso de todas as armas católicas. Nasceu o mesmo reino nos Campos de Ourique entre os braços armados de el-rei D. Afonso, o Primeiro, e ali, com tantos impulsos dos mesmos espíritos, como se viu na prodigiosa vitória contra os imensos exércitos dos cinco reis mouros. Tornou Miramolim a inundar o reino com quatrocentos mil cavalos e quinhentos mil infantes, contra el-rei D. Sancho I, que também foram desbaratados, repartindo-se a vitória entre a espada de Deus e a de Sancho, o qual, não contente de ter vencido a Mafoma em Portugal, o mandou vencer fora do reino, pelo seu Mestre de Aviz, na batalha de Alarcos. Contra D. Afonso Segundo se aquartelaram em Elvas, com numerosos exércitos, os dois reis mouros de Sevilha e Jaen; porém, com os espíritos do primeiro Afonso, que viviam no valoroso neto, ele não só venceu em batalha campal aos dois reis mouros, mas, entrando com as armas vencedoras por suas próprias terras, pôs a ferro e a fogo toda Andaluzia.

EI-rei D. Sancho Segundo, posto que infamado de pouco cuidadoso, não se descuidou daquela obrigação, que nos reis portugueses parece maior ainda que a de cuidar dos vassalos; e fez tal guerra aos mouros, que recuperou de sua tirania o reino dos Algarves. Tornaram sobre ele as armas da mourama, e logo viram sobre si a el-rei D. Afonso Terceiro, que não só as desalojou dali, e das relíquias que ainda conservavam em alguns lugares de Portugal, mas os foi conquistando nas suas fronteiras, em que lhes ganhou vilas e castelos. El-rei D. Diniz, posto que ocupado em pacificar as outras coroas de Espanha, e também a sua, ajudou poderosamente a el-rei D. Fernando de Castela, na intentada conquista contra os mouros de Granada. Em socorro destes passou el-rei de Marrocos com as forças de toda África, reinando já em Portugal D. Afonso Quarto, o qual em pessoa marchou logo a Sevilha, onde, duvidando-se da batalha pela multidão imensa dos bárbaros, ele só a aconselhou, e foi o primeiro que a venceu. Em el-rei D. Pedro e D. Fernando parece que estiveram um pouco adormecidos estes espíritos, por não haver já mouros que conquistar ao perto; mas ressuscitaram tão ardentes e generosos em el-rei D. João, o Primeiro, que, indo-os buscar a África, lhes tirou das mãos em um dia, e sujeitou à sua coroa a famosa cidade de Ceuta. Sustentou-a poderosamente el-rei D. Duarte, e logo el-rei D. Afonso Quinto, chamado o Africano, tendo já tomado Alcácer aos mouros, com maior e mais arriscado empenho se fez senhor de Tânger.

Prosseguiu as mesmas empresas el-rei D. João, o Segundo, por mar e por terra, ganhando praças interiores, e fundando fortalezas; e, pondo já os pés sobre o mar, para passar a África em pessoa, bastou a fama desta resolução para conseguir o fim dela. El-rei D. Manuel conquistou muitas cidades africanas, e fez tributárias outras, mas com os olhos em Jerusalém, e na extinção total da seita maometana, representou por seus embaixadores aos Sumos Pontífices, que se fizesse a guerra ao turco juntamente por ambos os mares, e que ele tomaria à sua conta toda a do Mar Roxo, e para a do Mediterrâneo concorreria com trinta galeões. D. João, o Terceiro, ajudou a guerra de Túnis com a pessoa de seu irmão, o infante D. Luís, e competente armada; e, posto que não continuou a conquista da mourama vizinha, foi para mais estender e apertar a remota. El-rei D. Sebastião, solicitado do Papa Pio Quinto que cessasse em França, prometeu que aceitaria o casamento, se el-rei cristianíssimo lhe desse por dote entrar com ele em liga contra o turco; e, finalmente, só, e sem sucessor, se embarcou para África, onde provou com a vida quanto maior era o seu zelo de conquistar aqueles inimigos da fé, que todos os outros respeitos.

Nesta morte se sepultaram com o reino as empresas africanas; mas, assim como o reino ressuscitou na restituição de el-rei D. João, o Quarto, assim nele renasceram também os mesmos espíritos, porque, no meio de tantas guerras, poupava e ia fazendo tesouro para ter - como comunicou a um seu confidente - com que fabricar armada, e passar contra o turco. Com estes gloriosos intentos atravessados no peito, acabou a vida aquele memorável rei, dos quais porém deixou por herdeiro ao príncipe, hoje rei, D. Pedro Segundo, nosso senhor, que Deus guarde, tão ardentemente inclinado a esta guerra sagrada, como já se tem começado a ver no socorro que mando contra o sítio de Orã, e nas duplicadas armadas a sitiar a barra de Argel, e correr e infestar aquelas costas, para que os seus marinheiros e soldados, tão práticos do Oceano, as reconheçam e sondem, e as proas de seus galeões se ensinem a entrar as portas, e cortar as ondas do Mediterrâneo, até o tempo meditado de chegar ao cabo dele, e aparecer formidável lá com sua real presença. A mesma ofereceu Sua Majestade para a presente guerra do turco ao santíssimo e valorosíssimo promotor dela, Inocêncio Undécimo, nosso senhor, sendo o seu socorro, posto que desigual à grandeza do seu ânimo, o primeiro e mais pronto que apareceu em Roma.

Assim que este natural e hereditário espírito dos reis portugueses, tão singular entre todos os príncipes cristãos, e tão constantemente continuado, por mais de quinhentos anos, em tantas batalhas contra maometanos, e tão favorecido do céu em tantas vitórias, é um manifesto sinal de serem eles os destinados por Deus para últimos vingadores das injúrias de sua Igreja, e que para sempre tirem do mundo, e acabem este maior perseguidor e tirano da cristandade, donde lhe veio a Moisés aquela aversão natural contra os egípcios com que, não só depois de homem, vingava neles com a morte as injúrias que faziam aos hebreus, mas, menino ainda e inocente, metia debaixo dos pés a coroa de Faraó, senão porque já Deus ia lavrando nele o cutelo do Egito, e a ruína fatal daquele ímpio rei, e do seu império? E por que foi Sansão tão contrário dos filisteus, e Gedeão dos madianitas, senão porque aos cabelos de um, e aos fios da espada do outro, tinha Deus vinculado o castigo daquelas duas grandes nações, tão poderosas como bárbaras? E, finalmente, entre os doze exploradores das doze tribos, por que só Josué com Caleb foi o que persuadiu e facilitou a guerra e conquista das terras de Canaã, que são as mesmas que hoje domina e possui o turco, e nelas os sagrados lugares da nossa Redenção, senão porque ele as havia de sujeitar com tão milagrosas vitórias, e repartir aos seus exércitos, que eram os católicos daquele tempo? Com razão podemos logo inferir pelos cânones e regras universais da Justiça e Providência divina, que os portugueses e os seus reis hão de ser os Moisés, os Gedeões, os Sansões, e, finalmente, os Josués da potência e tirania do turco, e os libertadores gloriosos da terra e casa santa.

§ IX

O testemunho dos matemáticos e das estrelas. A estrela nova, que nasceu no ano de seiscentos e quatro, e o nascimento de El-rei Dom João. A astrologia, e a vitória total da religião cristã contra a seita maometana. O eruditíssimo livro do famoso matemático Keplero. As previsões do insigne astrólogo português Bocarro.

Das histórias e historiadores, passemos aos matemáticos e às estrelas. Aquela estrela nova que nasceu no ano de seiscentos e quatro, no mesmo lugar onde morreu e desapareceu o cometa do ano de quinhentos e oitenta, já vimos como foi um sinal do céu, que apontava para el-rei D. João, primogênito de Bragança, o qual nasceu no mesmo ano de seiscentos e quatro, para suceder no lugar a el-rei D. Henrique, morto no ano de quinhentos e oitenta. Esta foi a significação da pessoa, e como nela se havia de restaurar o reino, e tornar a coroa aos reis portugueses, o que tudo vimos cumprido no ano fatal de seiscentos e quarenta. E significava mais alguma coisa a mesma estrela nova? Duas coisas, e duas novidades, as maiores que nunca viu, e há muitos anos espera ver o mundo. A primeira, que na cristandade se levantaria uma nova monarquia, que dominaria e seria senhora de todo o universo. A segunda, que esta monarquia e o seu monarca, seria o que destruísse e extinguisse a seita e império maometano. Assim o diz expressamente o já alegado Keplero, matemático famoso deste século, que, com a mesma estrela diante dos olhos, observando todos os movimentos seus, e dos outros astros, compôs dela um eruditíssimo livro, no qual descendo à declaração e juízo de seus efeitos, ou influídos ou significados, o primeiro é este:

Novam ex hoc tempore rempublicam adolescere, cujus império generali regna hodie valde tumultuantia subigantur olim: ut ita mundus nimium inquietus, et ferox aliquandiu sub hujus monarchae tutela conquiescat. - Quer dizer: que desde o ano seiscentos e quatro, em que aquela estrela apareceu no céu, começava a nascer e se levantar na terra uma nova república, a qual, crescendo com a idade, viria a formar a seu tempo um império universal, debaixo de cuja obediência todos os reinos do mundo, que ao presente tumultuavam ferozmente em guerras, deporiam as armas, e ele seria o jugo que os amansasse, e o freio que os contivesse em paz. - É o que antigamente se disse com maior lisonja que verdade, que o império de Roma, enquanto dominou o mundo, foi a âncora do gênero humano. E em prova desta universal sujeição, observou o mesmo autor que, enquanto se não escondeu à vista aquele prodigioso sinal, todos os planetas se vieram pôr debaixo dele, como reconhecendo-se inferiores, e sujeitos à nova majestade doutro poder mais alto e supremo sobre todos. Bem assim como o, tinha já dito Daniel, falando do mesmo império sem metáfora: Et omnes reges servient ei, et obedient[34].

O segundo juízo ou significação da mesma estrela é o que se contém nas palavras seguintes: Circumferuntur passim vaticinia mahometanorum, ex quibus multi evincere volunt hoc esse tem pus, quo sit interitura eorum religio. Quibus placebit Deum hoc ipsum indicare voluisse incensa nova stella in Sagittario, quae est triplicitas Solas, et Martis cum Sol, et Jupiter Christianis favere dicatur ab astrologis - quorum conceptibus Deus uti ponitur - Mars vero Turcis. Et quidem stella magis cum Jove concordavit in latitudinis plaga, Mars vero fuit in maxima latitudine Australi, quae hac vice esse potuit, depressus igitur. Hinc victoria Religionis Christianae supra turcicam astrologice concluditur - Vem a dizer em suma que, segundo os vaticínios que se lêem a respeito da seita maometana, é juízo e parecer de muitos, que o tempo e último período de sua duração se vem chegando. E como Deus, que por muitos modos costuma revelar os seus secretos, o pode também fazer usando com certeza das mesmas regras dos matemáticos, posto que incertas, considerado o sítio em que a estrela nova se achava com o sol e Júpiter, que eles dizem favorecer aos cristãos, e com Marte, que também dizem favorecer aos turcos, se conclui e convence astrologicamente a vitória total da religião cristã contra a seita maometana: Hinc victoria Religionis Christianae supra Turcicam astrologice concluditur. - Esta é a interpretação com que Keplero concordou os astros com os vaticínios, e o seu juízo com o de muitos, inferido festiva e discretamente, que acendeu Deus aquela nova tocha no signo de Sagitário, como pondo luminárias o céu pela mesma vitória. Se não quisermos dizer mais sólida e propriamente que aquele fogo estava já ameaçando e significando a fogueira em que há de ser queimado Mafoma, como dizem em próprios termos Daniel e Esdras. E quanto a aparecer a estrela sinaladamente no signo de Sagitário, e na parte do mesmo signo que distingue a figura do Serpentário, já deixamos dito que, assim como o Sagitário astrologicamente domina sobre Espanha, assim o Serpentário dentro da mesma Espanha sinala a Portugal, por ser a serpente o timbre de suas armas, e as suas armas as chagas de Cristo, a cujo poder e virtude atribuem a vitória e triunfo de Mafoma os mesmos vaticínios.

Só faltou ao juízo deste insigne matemático nomear a pessoa que havia de ser o glorioso instrumento de uma e outra felicidade. Mas esta individuação, que não era tão fácil de ler ou soletrar nos caracteres do céu, supriu pouco depois dele outro professor da mesma ciência na nossa terra, bem conhecido nela, e mais nas estranhas, pelo nome de Bocarro. Além do livro intitulado Fatus Astrologicus, na língua latina, escreveu outro mais breve na portuguesa, com o título de Anacefaleose da Monarquia Lusitana, à qual também promete seguramente que será universal em todo o mundo, e também com vitória do turco, e total extinção do maometismo. Vindo, pois, à individuação da pessoa, diz que a restauração da dita monarquia lusitana estava reservada para a casa e sangue real de Bragança, como descendente de el-rei D. João, o Primeiro; porém, que a pessoa do restaurador não seria o duque D. Teodósio, que naquele tempo era o senhor da casa, senão o seu primogênito D. João, duque de Barcelos, diferença e distinção que então foi muito notada, e depois muito mais notável. A narração é poética e elegante. Descreve o templo da honra, e nele assentado o duque D. Teodósio sobre o globo da Fortuna: introduz uma ninfa, a qual lhe oferece um escudo de bronze, obra de Vulcano, gravado com as quinas de Portugal, que ele não quer aceitar; e logo, passando do pai ao filho, como de Enéias a Júlio Ascânio, em cuja cabeça uma chama de fogo, que lhe não queimava os cabelos, foi prognóstico do futuro império, prossegue assim:

Mas a ninfa dos astros incitada,

Apenas adiante um pé movia

Com o quinante escudo sobraçada

Para dá-lo a quem só lhe competia:

Quando viu junto ao duque sublimada,

Cujo cabelo sem queimar se ardia, Imagem, coruscando a casa toda, Doutro modo girar da sorte a roda.

Troou logo o grão-Jove à parte esquerda Aos lusos abalou de toda a parte,

Da régia e ducal casa o ,sangue que herda, O faz - se ouve uma voz - piedoso Marte: Este restaurará do reino a perda, Levantando por si novo estandarte, Sendo maior que os pais sem vão receio. Assim Aquiles foi mais que Peleu.

A ninfa alvoroçada lhe apresenta

O reino em seu escudo debuxado, O soberano príncipe o sustenta Em seu braço fatal dependurado: Cessar fez logo a mísera tormenta, E da pátria fiel o adverso fado. Amor é tudo já, tudo é bonança. Com esta dos lusos única esperança.

Alvorota-se o templo, e num instante Teatro se, formou à majestade, Que para tanto bem criou Tonante, Aplaude todo o povo a liberdade: Mandou-me logo a ninfa que ao diante Publique o que ali vi, ditosa idade: E eu feliz também - ó caso estranho! -

Servi de precursor de um bem tamanho.

Eu o vi, lusitanos, não me engano.

Já temos o monarca descoberto.

Alvíssaras me dai do soberano

Bem que aqui vos descubro firme e certo.

Eis restaurado o reino lusitano.

O tempo se acelera breve e perto.

Por estes versos, escritos no ano de 1616, esteve preso em Lisboa Bocarro, e se lhe impediu a impressão. Mas ele, passando-se a Roma, lá os imprimiu, e no ano seguinte os mandou a Portugal, com tão constante asseveração e venturoso sucesso, que dali a vinte e quatro anos, que foi o de 1640, oferecendo a nobreza - que era a ninfa - o mesmo escudo ao duque D. João, prometendo de o aclamar e restituir à coroa, ele a aceitou: e não o pai, senão o filho, foi o felicíssimo restaurador da monarquia lusitana. Até aqui as estrelas.

§X

O testemunho dos políticos. Justo Lípsio, varão incomparável nas notícias do mundo antigo e moderno, e a vitória do Império Otomano pela gente mais ocidental do Oceano. Razões pelas quais devem correr do Oriente para o Ocaso os movimentos políticos. As excelências de Lisboa, a mais bem-provida e a mais deliciosa cidade do mundo.

Do céu desçamos à terra, e das observações dos matemáticos às dos políticos, que as fazem de mais perto. Muitos pudera alegar, mas entre todos e por todos me contentarei com o juízo de um, que com as vozes e sentenças de todos professou felizmente ser mestre de política. Este é Justo Lípsio, varão incomparável nas notícias do mundo antigo e moderno, e nenhum mais diligente observador das declinações e aumentos dos reinos e impérios, e das causas por que uns se levantam, outros caem; uns dominam, outros servem; uns crescem, outros diminuem; uns nascem, outros morrem; e, quase debaixo da sepultura, alguns talvez ressuscitam.

No capítulo dezesseis do primeiro Livro da Constância, depois de mostrar este grande autor, com um largo e eloqüentíssimo discurso, que nenhuma coisa há no mundo que tenha firmeza, ou fosse já, ou pareça hoje grande, chegando à potência dos turcos, e acabando com eles, diz assim: Adeste etiam pelliti vos Scythae - ob Turcas Bico, qui ex illis - et potenti manu paulisper habenas temperate Asiae atque Europae. Sed isti ipsi mox discedite, et sceptrum relinquite illi ad Oceanum genti. Fallor enim? An solem nescio, quem novi imperii surgente video ab Occidente? Entrai vós também neste número, ó citas antigamente vestidos de peles, que hoje com o nome de turcos dominais com poderosa mão, e tendes nela as rédeas da Ásia e da Europa. Mas vós esses mesmos, cedo perdereis o lugar que tendes, e o largareis àquela gente habitadora lá do Oceano. Porventura engano-me eu? Ou estou vendo que do Ocidente nasce e se levanta o sol de um novo império?

Não nomeia Lípsio nestas palavras a Portugal, mas é certo e evidente que fala dele. Bem vejo, porém, que não faltará quem diga ou cuide que fala em geral de Espanha, que não só em toda Europa, mas em todo o mundo, é a mais ocidental. Mas o contrário se convence de todas as mesmas palavras: Illi ad Oceanum genti - significa uma só nação, e essa a última, a qual esteja toda metida e rodeada do Oceano, como está Portugal, sendo que Espanha é composta de muitas nações, e por um lado, e o mais principal, com muitos reinos, pertence ao Mediterrâneo. - Solem surgentem ab Occidente - também demonstra o mesmo com a elegância da contraposição em nascer e se levantar no Ocaso o sol, que se levanta e nasce no Oriente. E qual é o Ocidente ou Ocaso em que o sol se esconde e sepulta, senão as terras e mares de Portugal? A cláusula novi imperii exclui claramente a Espanha, cujo império não era novo, nem que de novo se havia de levantar, principalmente estando unida toda ela na sujeição de uma só cabeça, que foi Filipe II, para cuja fortuna, como pondera o mesmo Lípsio, tendo el-rei D. Manuel vinte e dois herdeiros que o excluíam, foi necessário que morressem todos. Finalmente - para que o mesmo autor seja o intérprete deste seu pensamento - no quarto Livro de Magnitude Romana, capítulo último, aludindo a este império universal, com que lida em tantas partes dos seus escritos, e indo a dizer que virá tempo e caso em que assim seja, o companheiro - com quem ali fala em diálogo - lhe foi à mão dizendo: Per ignem sermones tui erunt, et vide ne amburare: Repara, Lípsio, que estas tuas palavras se metem pelo fogo: olha não te queimes. - Donde se segue manifestamente que o fogo e perigo em que se metia, era esperar e prometer outro império dentro em Espanha, porque, sendo ele vassalo seu, como flamengo natural dos estados católicos de Flandres, ficaria suspeitoso, e indiciado de menos devoto e afeto às felicidades e grandeza daquela monarquia, o que de nenhum modo se podia temer, se ele lhe prognosticasse os acrescentamentos do império universal: antes seria o maior obséquio e lisonja que podia fazer aos mesmos reis. Em suma, que em todos estes lugares fala Lípsio do futuro império universal, que se há de levantar como um novo sol na gente mais ocidental do Oceano - que são os portugueses - e que a esta gente se há de passar o cetro, e sujeitar toda a potência do Turco. Torno a repetir, como tão notáveis, as mesmas palavras: Adeste etiam pelliti vos Scythae - ob Turcas dico, qui ex illis - et potenti manu paulisper habenas temperate Asiae, atque Europae. Sed isti ipsi mox discedite, et sceptrum relinquite illi ad Oceanum genti. Fallor enim? An solem nescio, quem novi imperü surgentem video ab Occidente?

E se alguém com razão perguntar de que princípios se pode inferir politicamente que este império universal, e último, se haja de levantar nos últimos fins ou raias do Ocidente, respondo que da experiência havida pelas histórias, que são aquele espelho inculcado por Salomão, em que, olhando para o passado, se antevêem os futuros. E, posto que estes dependam dos decretos divinos, pelos efeitos que os olhos vêem dos mesmos decretos, não só conhece o discurso humano quais eles fossem, mas infere, quase com certeza, quais hajam de ser. Assim o notou em outro lugar o mesmo Lípsio, advertindo - e pedindo se considere - que o poder e o domínio do mundo sempre veio caminhando ou descendo do Oriente para o Ocidente: Nescio quo providentiae decreto res et vigor ab Oriente - considera, si voles - ad Occasum eunt. - O primeiro império do mundo, que foi o dos assírios, e dominou toda a Ásia, também foi o mais oriental. Dali passou aos persas, mais ocidentais que os assírios; dali aos gregos, mais ocidentais que os persas; e como já tem passado pelos romanos, e vai levando seu curso para o Ocidente, havendo de ser, como é de fé, o último império, aonde pode ir parar, senão na gente mais ocidental de todas?

Mas porque o mesmo autor desta advertência confessa ignorar a razão dela, e a da Providência divina em um tal decreto: Nescio quo providentiae decreto - não será temeridade nem consideração supérflua dizer eu a razão que se me oferece: e é que Deus, enquanto governador do mundo, não conforma consigo mesmo enquanto criador dele. A sabedoria com que Deus governa o universo é a mesma com que o criou. Que muito logo que no modo do governo e da criação se pareça a mesma sabedoria e o mesmo Deus consigo? Deus criou o mundo em sete dias, e vemos que no governo do mesmo mundo, nas idades, nas vidas, nas doenças, nos dias críticos, e nos anos climatéricos, observa sempre os períodos do mesmo seteno. Pois, assim como Deus no governo da natureza observa a proporção dos tempos, assim é de crer que no governo dos impérios observe a proporção dos movimentos. O sol, os céus, as estrelas, os mares, todos se movem perpetuamente do Oriente para o Ocidente; e porque a roda que os ignorantes chamam da fortuna, é própria e verdadeiramente a da Providência divina, correndo sempre os movimentos naturais do universo desde o Oriente ao Ocaso, pede a proporção e harmonia do mesmo universo, que também corram do Oriente para o Ocaso os movimentos políticos. Assim que não é totalmente violenta a força que muda e desfaz os impérios antigos, e cria e levanta os novos; mas nessa mesma violência ou força tem muito de natural, pois segue os movimentos e peso de toda a natureza. No Oriente nasceu o primeiro império; no Ocidente há de parar o último. O que eu logo pudera confirmar a Portugal com um famoso texto da Escritura; mas, porque faço conta de acabar com ele, basta que fique aqui citado.

E certamente que não haverá juízo político alheio de paixão, que, medindo geometricamente o mundo, e suas partes, na suposição em que imos, de que Deus haja de levantar nele império universal, não reconheça neste cabo ou rosto do Ocidente, assim lavado do Oceano, o sítio mais proporcionado e capaz que o supremo Arquiteto tenha destinado para a fábrica de tão alto edifício. Como o sangue, nos corpos viventes e sensitivos, é o humor e instrumento principal, sem o qual se não puderam sustentar nem viver, assim neste vastíssimo corpo do universo, em que a terra e os penhascos são a carne e os ossos; o mar, os portos, e os rios são o sangue e as veias, por onde nas mais remotas distâncias, se pode unir o coração com os membros, e por meio dele lhes comunicar a vida, e reparar as forças, com aquela distribuição igual e contínua, sem a qual se não pode conservar, e muito menos ser um. As naus grandes e poderosas são as pontes do Oceano; as embarcações menores, as dos rios caudalosos e navegáveis; com estas se unem as províncias, com aquelas o mundo se não divide em partes, e até as mesmas ilhas se fazem continente. E que outro lugar há no universo, tão acomodado a receber ele, como de uma só fonte, todos estes benefícios vitais, mais breve e facilmente que Portugal, situado quase na boca do Mediterrâneo, não longe das gargantas do Báltico, e para o Atlântico e Etiópico, para o Eritreu e o Índico o mais vizinho? Ali se deságua o Tejo, esperando entre dois promontórios, como com os braços abertos, não os tributos, de que o suave jugo daquele império libertará todas as gentes, mas a voluntária obediência de todas que ali se conhecerão juntas, até as da terra hoje incógnita, que então perderá a injúria deste nome.

Lava o celebradíssimo Tejo, ou doura com as suas correntes as ribeiras, e faz espelho aos montes e torres de Lisboa aquela antiqüíssima cidade, que na prerrogativa dos anos excede a todas as que os contam por séculos. Em seu nascimento foi fundada por Elias, filho de Javão, e irmão de Tubal, ambos netos de Noé, donde começou a ser conhecida pelo nome de Elísia; e depois, tão amplificada por Ulisses, que não duvidou a grega ambição de lhe dar, como obra própria, o nome de Ulíssipo. Tanto pelo fundador, como pelo amplificador, lhe compete a Lisboa a precedência de todas as metrópoles dos impérios do mundo, porque, enquanto Elísia, é duzentos e vinte e dois anos mais antiga que Nínive, cabeça do primeiro império, que foi o dos assírios, e enquanto Ulíssipo, quatrocentos e vinte e cinco anos mais antiga que Roma, cabeça também do último, enquanto o dominaram os romanos. Ambas, caminhando ao Ocidente, trouxeram das ruínas de Tróia as pedras fundamentais de sua grandeza; mas romana descendência de Enéias, ou vencido, ou fugitivo, e Ulíssipo, na pessoa do mesmo Ulisses, não só vencedor de Tróia, mas o que a sujeitou a poder ser vencida com o despojo da imagem de Palas, a cujo agradecimento edificou na mesma Lisboa o suntuoso templo, que hoje se vê mudado, ou convertido no insigne convento de Chelas.

O céu, a terra, o mar, todos concorrem naquele admirável sítio, tanto para a grandeza universal do império, como para a conveniência também universal dos súditos, posto que tão diversos. O céu na benignidade dos ares os mais puros e saudáveis, porque nenhum homem, de qualquer nação ou cor que seja, estranhará a diferença do clima: para os do pólo mais frio com calor temperado, e para os da zona mais ardente com moderada frescura. A terra, na fertilidade dos frutos e na amenidade dos montes e vales, em todas as estações do ano sempre floridos; por onde, desde o nome de Elísia, se chamaram Elísios os seus campos, dando ocasião às fabulosas bem-aventuranças e paraíso dos heróis famosos. O mar, finalmente, na monstruosa fecundidade de suas águas, porque naquela campina imensa, que nem seca o sol, nem regam as chuvas, assim como nos prados da terra pastam os rebanhos dos gados maiores e menores, assim ali se criam sem pastor os marítimos, em inumerável multidão e variedade, entrando pela barra da cidade em cotidianas frotas quase vivos, tanto para a necessidade dos pequenos, como para o regalo dos grandes: sendo também nesta singular abundância Lisboa, não só a mais provida, senão a mais deliciosa do mundo.

§ XI

O testemunho dos santos. As predições de Frei Bartolomeu Salutivo, religioso da Ordem Seráfica, venerado em Roma e toda a Itália por suas grandes virtudes e zelo apostólico. Os dois vaticínios de Santo Egídio, da sagrada Ordem dos Pregadores.

Subamos agora a outra atalaia mais alta, da qual com lume mais claro descobre Deus os futuros a quem é servido, e mais ordinariamente aos que melhor o servem. Deste número foi insigne em uma e outra graça frei Bartolomeu Salutivo, ou de Salúcio, religioso da Ordem Seráfica, tão venerado em Roma, e toda Itália por suas grandes virtudes e zelo apostólico, como pelas luzes do céu, que resplandecem em um pequeno volume e grande livro de suas predições, reputadas comumente por profecias. O seu principal assunto são os castigos da cristandade pelas armas e tiranias do turco, como açoite de Deus; e no meio de grandes e lastimosas lamentações, que fazem horror, arrebatado do mesmo espírito, passa subitamente ao remédio que viu vir de longe, como repentino e não-esperado, e rompe nestas palavras:

Má, si volete odire una cansona,

Verrá de Lisbonna

Chiara, e illustre personna,

Adorna di ogni opera buona:

La cui.fama risona

In tutta parte elido

Nel mondo dá gran grido.

Quer dizer que, para remédio daqueles males e opressões do turco, irá de Lisboa uma clara e ilustre pessoa, adornada de todas as boas obras, cuja fama soará por todas as partes do mar e da terra, e dará grande brado no mundo, que é o próprio termo, ou frase, com que falam os nossos vaticínios.

Cantou estas predições Salutivo na Igreja de Ara Caeli, de Roma, diante do Santíssimo Sacramento, no ano de 1606, e se tem provado com os efeitos, dos quais referirei somente dois, por tocarem a Portugal: o primeiro é:

Divisa sará Ia Hespagna,

Che adesso é tanto magna.

Nestas palavras prognosticou o que naquele tempo, que era o de Filipe III, de nenhum modo se podia imaginar, e querem dizer que a Espanha, que então era tão grande, seria dividida, como verdadeiramente se cumpriu no ano de quarenta, dividindo-se dela Portugal, e perdendo aquela monarquia em umas e outras Índias a metade da sua grandeza, e dentro da mesma Espanha uma parte tão considerável como estes reinos.O segundo efeito das mesmas predições, posto que em menor matéria, também tocante a Portugal, não é, nem foi em Roma menos admirável, porque diz assim:

Para, para, amassa, amassa,

O tu che porta in capo una gran piassa,

Contro di se grida amassa, amassa,

Dime, Bernardo santo,

S'é vero questo che io canto.

Que em nosso vulgar vem a ser:

Pára, pára, mata, mata,

O tu que trazes na cabeça uma grande praça,

Contra ti se grita, mata, mata,

Dize-me, Bernardo santo,

Se é verdade isto que eu canto.

Foi o caso que, sendo mandado a Roma D. Miguel de Portugal, Bispo de Lamego, para dar obediência ao Papa Urbano VIII em nome de el-rei D. João, o Quarto, no princípio do seu reinado, o Marquês de los Veles, então embaixador de Castela na Cúria, afrontando-se de que nela passeasse um português com nome de embaixador de Portugal, quis impedir e desfazer com mão armada este que tinha por agravo. Para isso, encontrando-se de propósito com a carroça do bispo, saiu das ruas muita gente, dizendo, mata, mata, e disparando muitas armas de fogo, em que houve de uma e outra parte mortos e feridos; mas o bispo, que se portou com grande valor e segurança, não teve perigo. As circunstâncias notáveis que teve esta predição, foram três: A primeira, antever que aquele português, contra quem disseram mata, mata, era eclesiástico e bispo, distinguindo-o pela grande praça que trazia na cabeça, isto é, pela grande coroa, porque as dos outros clérigos em Roma são do tamanho de um tostão. A segunda que, falando em italiano, e havendo de dizer ferma, ferma, disse, pára, pára, em língua castelhana, quais eram os agressores desta assaltada. A terceira, que não só assinalou o dia deste caso, senão também o caminho que o bispo fazia, e o fim dele, porque era dia de S. Bernardo, cuja Igreja ia visitar: e por isso tomou a este santo por testemunha da sua verdade. Donde se colhe com evidência, que só por lume sobrenatural podia antever todo este sucesso, e suas circunstâncias, quem as disse tantos anos antes, quando o rei que mandou, ou havia de mandar o embaixador, ainda não tinha dois. Nem é matéria digna de menor consideração e consolação de Portugal, conhecer a singular providência com que Deus o assiste e favorece, ainda em coisas tão miúdas e particulares, e as revela a seus servos, aos quais também consola com as notícias antecedentes do que tem determinado obrar pelos portugueses e seus príncipes, em socorro e remédio eficaz das calamidades que padece sua Igreja, sendo a luz destes futuros, o manifesto e certo motivo por que o mesmo Salutivo, com tantas demonstrações de júbilo e alegria, diz que de Lisboa há de ir contra o turco aquela notável pessoa, que no mundo por mar e terra dará grande brado.

A esta predição tão ilustre ajuntarei agora outras duas, tanto mais antigas no tempo, como menos distantes no lugar, pois ambas quis Deus que desde a mesma antiguidade ficassem depositadas, não só por memória e tradição, mas por escritura de seus próprios autores nos arquivos de Portugal. A primeira é de Santo Egídio, vulgarmente S. Frei Gil, da sagrada Ordem dos Pregadores, conservada no real convento de Santa Cruz de Coimbra, na qual distintos os vaticínios por números, desde o número 11 até o 17, dizem desta maneira:

11 Lusitania sanguine orbata regio, diu ingemiscet, et multipliciter

patietur, sed propitius tibi Deus, salus a longinquo veniet, et insperate ab

insperato redimeris.

12 Africa debellabitur

13 Imperium Othomanum ruet.

14 Ecclesia martyribus coronabitur

15 Byzantium subvertetur.

16 Domus Dei recuperabitur:

17 Omnia mutabuntur:

Cujo sentido, mais fácil do que costumam as Escrituras deste gênero, é o que se segue:

Portugal, órfão do sangue real, gemerá por muito tempo, e padecerá por muitos modos. Mas Deus -falo com o mesmo reino - te será propício: virá a salvação de longe, e serás remido não esperadamente por um não-esperado.

A primeira parte deste vaticínio se cumpriu na sujeição de Portugal a Castela, em que gemeu por espaço de sessenta anos, e padeceu por tantos modos, que não pôde mais sofrer. No fim dos ditos sessenta anos, que se cumpriram no de mil e seiscentos e quarenta, se cumpriu também a segunda parte do mesmo vaticínio, sendo Deus tão propício a Portugal, que se viu restituído à sua coroa e liberdade em uma hora, tão pacífica e concordemente, como se D. João, o Quarto, sucedera a D. João, o Terceiro; e nota o texto, com admirável advertência, que seria o reino remido não esperadamente por um não-esperado, porque o esperado era el-rei D. Sebastião, e não o duque de Bragança, o qual, e o mesmo reino, estava tão longe deste pensamento, como se Vila Viçosa estivesse no cabo do mundo: e isto quer dizer com energia portuguesa: Salus a longinquo veniet.

Sobre este fundamento tão fidedigno por todas suas circunstâncias e cumprimento delas, prossegue o santo português as felicidades da sua pátria, e as conseqüências da coroa remida e restaurada, prometendo-lhe as vitórias da África debelada, do Império Otomano caído, de Bizâncio - que é Constantinopla - destruída, da Casa Santa recuperada, e da Igreja, coroada, não só de triunfos, mas de martírios, que não podem faltar naquela conquista; enfim, a mudança de tudo: Omnia mutabuntur

A outra predição, também doméstica de Portugal, posto que de estranha origem - se assim se pode dizer - de pai e de mãe, foi achada no antigo e sempre religioso convento de Alenquer, e escrita - como é tradição - por seu fundador, o santo Frei Zacarias, discípulo do patriarca S. Francisco, o qual, de Guimarães, onde então estava, o mandou edificar aquele convento: referindose, pois, a dois oráculos mais antigos, os declara por estas palavras:

Isidorus, et Cassandra,filia Priami, regis Troianorum, concordati in unum dixerunt: In ultimis diebus in Hispania maiori regnabit rex bis pie datus: et regnabit per faeminam, cujus nomen inchoabitur per Y graecum, et terminabitur per L; et dictus rex ex partibus orientalibus veniet, et regnabit in juventute; ipse expurgabit spurcitias Hispaniarum, et quod ignis non devorabit, gladius vastabit: regnabit super domum Agar; et obtinebit Jerusalem, et super sanctum sepulchrum signum Crucifixi ponet, et erit monarcha maximus. - Até aqui a tradução latina tirada do grego. A portuguesa, tirada do latim, diz ao pé da letra: Isidoro, e Cassandra, filha de Príamo, rei dos troianos, unidos no mesmo sentido, disseram: Nos últimos dias, na Espanha maior, reinará um rei duas vezes piamente dado, e reinará por uma mulher cujo nome começará em I, e acabará em L, e o dito rei virá das partes orientais. Reinará na sua mocidade, e alimpará a Espanha dos vícios imundos, e o que não queimar o fogo, devastará a espada. Reinará sobre a casa de Agar, conquistará Jerusalém, fixará a imagem do crucificado sobre o Santo Sepulcro, e será o maior de todos os monarcas.

São tantos e tão particulares, ou individuais os mistérios destas palavras, que só comentadas se podem bem entender, e assim o farei cláusula por cláusula.

Isidoro e Cassandra. - Isidoro foi Santo Isidoro, Arcebispo de Sevilha, cujas profecias são famosas em Espanha, e o principal sujeito delas, o rei que chama encoberto, e diz que há de dominar o mundo. Cassandra, filha de Príamo, também foi igualmente famosa na certeza de seus vaticínios, como na fatalidade de não serem cridos, sinal, neste caso e união de Cassandra com Isidoro, que as coisas que ambos prometem, ou são incríveis, ou quase, posto que sejam certas. Diz que se uniram e concordaram no que ambos aqui afirmam, o que de nenhum modo deve fazer dúvida, por Isidoro ser cristão e santo, e Cassandra gentia, porque também as sibilas - entre as quais alguns contam a mesma Cassandra - eram gentias, e muitas muito mais antigas que os profetas - como também Cassandra, em comparação de Isidoro, - e os seus oráculos são tão concordes com os dos mesmos profetas, como se pode ver em Santo Agostinto, Lactâncio Firmiano, e outros doutores católicos.

Disseram que nos últimos dias. - Últimos dias não quer dizer o fim do mundo, senão depois de muitos anos. É o termo de que usam as Escrituras, falando da vinda e mistérios de Cristo, que há mais de mil e seiscentos anos que veio, e, porque ainda faltavam muitos para vir, diziam que viria in novissimis diebus.

Na Espanha maior - Espanha, divide-se em três Espanhas: Terraconense, Ispalense e Lusitana, e esta antigamente era maior e mais estendida que hoje, como consta de todos os cosmógrafos e historiadores.

Reinará um rei duas vezes piamente dado. - Do que acima deixamos dito, aparece facilmente quem será este rei dado duas vezes, porque já Deus no-lo deu uma vez, no príncipe que levou para o céu a tomar a posse do império, e no-lo dará outra vez, como esperamos, no que está reservado para o domínio; e uma e outra vez piamente dado, porque dado por orações.

E reinará por uma mulher; cujo nome começará em I e acabará em L. - Claramente é o nome de Isabel, e não em outra língua, senão na portuguesa, qual é o da rainha, nossa senhora. E se me perguntam a razão por que se nomeia a mãe, e não o pai, é porque foi e será duas vezes piamente dado, ambas pela piedade, devoção e oração da mãe. Podendo-se dizer propriissimamente de Sua Majestade, o que S. João Crisóstomo disse de Ana, tema e figura de toda a nossa história e esperança: Nequaquam aberrabit qui hanc mulierem pueri simul et matrem et patrem appellarit: quanquam enim et vir addiderit semen, hujus tamen deprecatio vim, efficaciamque praebuit, effecitque ut Samuel auspicioribus exordiis nascerentur: De nenhum modo errará - diz o mais eloqüente doutor da Igreja - quem chamar a esta matrona mãe e pai juntamente deste menino, porque, ainda que o pai concorreu para a geração do filho, a virtude e eficácia da oração da mãe foi a que lho deu.

O dito rei virá das partes orientais. - Quem tal pudera entender antes de o mostrar o efeito? Porque se, dado a primeira vez, veio de Goa na relíquia e barrete de S. Francisco Xavier, como já referimos, também dado a segunda vez virá da mesma parte oriental por intercessão do mesmo santo, de cujo poder e favor tão experimentado o esperam as orações e novenas de Sua Majestade. Nos dias em que tiveram princípio os nove meses do primeiro parto, foi levada de S. Roque ao paço a imagem de S. Francisco Xavier, com a qual falando a rainha, nossa senhora, lhe disse com palavras muito portuguesas: - Meu Santo, dai-me um filho se Deus quiser. - Quis Deus, e não só quis que fosse dádiva sua, senão do mesmo santo. Torne ao teatro a nossa figura. Referindo o texto sagrado como Deus deu a Ana o filho que lhe pedira, diz: Visitavit Dominus Annam, et concepit (1 Rs. 2, 21): que visitou Deus a Ana, e concebeu. - E não é isto o mesmo que fez a imagem de Xavier, indo visitar a Sua Majestade ao paço? Oh! maravilha, e favor mais que singular! De sorte que concebeu Ana, porque visitou Deus a Ana; e concebeu a rainha de Portugal, porque a imagem de Xavier visitou a mesma rainha.

Reinará na sua mocidade. -Bom desengano, e bem necessária advertência para a imaginação vulgar dos que esperam o mesmo rei prometido, não só velho, mas depois da idade mais que decrépita.

Ele alimpará as Espanhas dos vícios imundos, usando de ferro e fogo, - No que se demonstra a justiça verdadeiramente real, e sorte deste grande príncipe, sem os respeitos e dissimulações que tanto a enfraquecem, e que na expurgação dos vícios seguirá o aforismo de Hipócrates: Quod medicamentum non curat, ferrum curat: quod ferrum non curat, ignis curat: quod ignis non curar, immedicabile censetur[35]. - E note-se que, dizendo acima Espanha, agora diz Espanhas: diferença, que posto se não deva desejar como provável, se infere não ser impossível.

Finalmente, que reinará sobre a casa de Agar - que são os agarenos e turcos - que conquistará Jerusalém, e porá a imagem do crucificado sobre o Santo Sepulcro, e que será o maior monarca do mundo. O que tudo vem a ser uma breve e expressa confirmação de quanto tem procurado provar o discurso desta apologia.

§ XII

As tradições e instintos dos mesmos maometanos. O que diz o prognóstico de Acã Burulei.

Prometeu ela por último complemento - posto que não necessário - que, depois dos oráculos dos santos, ouviríamos também as tradições ou instintos dos mesmos maometanos, como são prognóstico da vitória os medos dos inimigos. Assim foi, porque, quando eles deviam estar mais soberbos com a maior vitória de Portugal, nos consta que não duvidavam confessar aos mesmos portugueses vencidos esta volta fatal e futura, com que as nossas armas, não só haviam de sujeitar aquela pequena parte da África, mas todo o poder maometano. Francisco de Meneses, e Jorge de Albuquerque, que ficaram cativos em Berbéria na perda de el-rei D, Sebastião, contavam que um alcaide mouro, em cujo poder estiveram, lhes dissera por muitas vezes, que nos seus mosefos, ou livros de tradições, estava escrito que em Portugal havia de nascer uma cobra, a qual seria muito arrogante, e quereria tragar todo o mundo; e que depois de muito adelgaçada por vários acontecimentos, tomaria a engrossar como a nuvem que toma água, e conquistaria a África, e seria senhora da maior parte do mundo.

Quatro coisas contém esta predição, ou uma e a mesma com quatro circunstâncias. A cobra ou serpente, o adelgaçar-se, o tornar a engrossar, e o dominar os turcos. Neste último estado se vê pintada a serpente nas tabelas ou painéis célebres de Geórgio Jordão Veneto, tabela sexta, onde ele declara toda a pintura por estas palavras: Imperatorum Turcicorum capitibus imminet serpens sese in gyrum revolvens: supra hos vero novi imperadores christiani conspiciuntur, qui, extincta Turcarum Monarchia Constantinopoli, denuo rerum potientur -Isto é, que sobre as cabeças dos imperadores turcos está eminente e superior a serpente, enroscando-se, e dando muitas voltas; e que do mesmo modo se vêem pintados sobre eles os novos imperadores cristãos, os quais, extinta a monarquia maometana, tornarão de novo a dominar em Constantinopla. E acrescenta o mesmo autor, que no sepulcro do mesmo Constantino, que fez imperial a cidade de Constantinopla, e lhe deu o seu nome, se achou o referido em uma lâmina de prata. Onde o que mais se deve admirar é que assim estivesse já escrito ou esculpido perto de trezentos anos antes de sair ao mundo Mafoma.

Vindo pois à cobra ou serpente, primeiro adelgaçada, e depois engrossada, e ultimamente dominadora dos turcos: a serpente, como se vê nas suas armas, é Portugal; o adelgaçar-se, foi quando na décima-sexta geração dos reis portugueses se atenuou a prole; o tornar a engrossar foi na restituição dos mesmos reis naturais à sua coroa, que começou em el-rei D. João o Quarto. E esta mesma serpente, que os turcos e mouros dizem foi tão arrogante que quis dominar o mundo, têm eles por tradição e coisa certa, que depois de engrossada os há de conquistar, não só senhoreando toda a África, mas a maior parte do mesmo mundo. E daqui nasceu que no fim do ano de 1640, e princípios do seguinte, quando se soube em Berbéria a aclamação do novo rei português, se renovou de tal sorte entre aquela gente a memória e apreensão destes seus fados, que já as mães começavam a chorar os filhos, e os velhos, os netos, de que tirou testemunhos autênticos Rui de Moura Teles, e os apresentou a Sua Majestade, quando veio do governo de Masagão.

Donde manassem estas tradições entre homens sem verdadeira fé daquela eterna Sabedoria, que só tem presentes, e pode manifestar os futuros, nem eles o sabem com certeza. Mas o mesmo Deus, que dá instinto à garça para conhecer o falcão que a há de tomar, também o terá dado a estes bárbaros. Quando não digamos que fosse revelação feita a algum dos grandes santos cativos, ou livres, que entre eles viveram e padeceram. Podendo também ser que a divina Providência concorresse para este juízo por meio da observação de seus astrólogos, que, na Arábia principalmente, foram insignes nesta arte. Entre estes se acha o prognóstico de um chamado Acã Burulei, que ele deixou escrito no ano de 1200 em língua arábica, no qual, depois de se professar grande zelador da lei do seu falso profeta, lhe prognostica o fim, dizendo expressamente que será arruinada e destruída por um rei nascido en los ultimos fines del poniente, que é o mesmo que se dissera em Portugal. Este rey - diz - será el castigo del pueblo de Mahoma, y açote del pueblo de Ismael, el qual con el favor de su religión empeçará a perseguir los moros, echandolos de sus tierras, y haziendo grandes armadas contra ellos, y será el estrago que en ellos hará tan grande, que se tendrá por bienaventurada Ia esteril, viendo perecer los hijos de otras con diferentes muertes. La espada cortadora de la Morisma estará embotada de suerte, que no cortará en aquel tiempo. El cetro deste rey será la vara de Jupiter y la espada de Marte: Jerusalém saldrá de la casa y poder de Ismael, y entrará en ella el Monte Calvario, y los estandartes de Poniente.

Isto diz, e outras muitas coisas do mesmo gênero, o prognóstico daquele mouro, em que concorda com a opinião e temor de todos. E eu, com esta última demonstração, creio que tenho descoberto bastantes fundamentos, tanto à curiosidade dos que o quisessem saber, como à incredulidade dos que o duvidassem, confirmando, como prometi, e fazendo certa, ou quando menos provável, a contingência da minha conclusão, com a fé dos históricos, com o juízo dos matemáticos, com o discurso dos políticos, com as profecias dos santos, e até com as tradições dos mesmos maometanos, concordes todos em que a exaltação da monarquia universal do mundo, e extinção da potência do turco, a tem reservado a verdadeira fortuna, que é a Providência divina, para as vitórias e triunfos de Portugal, e para o estabelecimento nele do império de Cristo: In te, et in semine tuo imperium mihi stabilire.

§ XIII

O oráculo de Isaías e o pequeno número dos portugueses.

E para que fechemos esta apologia com aquela mesma chave, debaixo da qual tem Deus encerrado os segredos de suas maravilhas, e escritos os nomes fatais dos heróicos instrumentos que destinou para elas, ouçamos o famoso texto que reservei para este lugar, tão temeroso nos horrores com que começa, como alegre e glorioso nas felicidades com que acaba. Nos vaticínios de Portugal se referem muitos ditos dos profetas canônicos, e entre todos se nota particularmente, e se aponta um só capítulo, que é o vinte e quatro de Isaías. Este capítulo mandava recitar a Igreja na Escritura corrente em dez de dezembro de 1688, dia da oitava de S. Francisco Xavier, para mim com notável encontro, porque atualmente o estava lendo quando chegou e se ouviu na Bahia a alegre nova de que tinha nascido a Suas Majestades o filho primogênito. E que diz o oráculo de Isaías naquele capítulo? Na primeira, na segunda, e em parte da terceira lição, com temerosíssima eloqüência, descreve e amplifica as horrendas calamidades e gêneros de mortes com que Deus quase despovoará o mundo, em castigo e expiação de suas maldades, que encarece com o nome de doidices. Particularmente, diz que padecerá estes grandes detrimentos a cidade da vaidade: Attrita est civitas vanitatis[36]- para que vejam as maiores e mais soberbas cidades do mundo, a qual delas compete ou pode competir mais propriamente a antonomásia deste sobrenome, tão alheio de toda a razão e juízo. Em suma, afirma o profeta que serão poucos os homens que ficarão vivos: Ideo insanient cultores ejus, et relinquentur homines pauci[37] - e que estes serão tão poucos como, depois de varejado o olival, e vindimada a vinha, são poucas as relíquias que escapam de uma e outra colheita: Quomodo si paucae olivae, quae remanserunt, excutiantur ex olea, et racemi, cum fuerit finita vindemia[38].

Oh! Deus! Oh! sabedoria, e onipotência do Altíssimo, que diferentes são os juízos humanos, dos segredos e decretos divinos! Opunha-se contra o assunto desta apologia serem poucos os portugueses, e agora diz o profeta que ainda hão de ser menos aqueles para quem Deus tem reservado a mesma empresa. Note-se muito muito a conseqüência do texto, porque, depois de dizer que os homens que ficarem serão poucos: Relinquentur homines pauci - e, depois de declarar este pouco número com a comparação e encarecimento do olival varejado, e da vinha vindimada depois da colheita: Quomodo si paucae olivae, quae remanserunt, excutiantur ex olea, et racemi, cum fuerit finita vindemia - imediatamente prossegue dizendo: Hi levabunt votem suam, atque laudabunt: cum glorificatus fuerit Dominus, hinnient de mari. Propter hoc in doctrinis glorificate Dominum; in insulis maris nomen Dei Israel. A finibus terrae laudes audivimus, gloriam justi[39]. - Tudo isto, sendo tanto, diz o profeta que farão aqueles ou estes poucos: Hi.

Hi: estes poucos são os que em louvor e honra de Deus levantarão a voz: Hi levabunt vocem suam, arque laudabunt - porque eles serão os soldados do príncipe que irá de Lisboa, dando grande brado em todas as partes do mundo. Hi - estes poucos são os que, quando Deus for glorificado, rincharão do mar: Cum glorificatus fuerit Dominus, hinnient de mari - porque, como diz Santo Isidoro, o futuro imperador universal irá à sua conquista em cavalos de madeira, entendendo por cavalos de madeira as naus da sua armada: Classique immitit habenas - os rinchos dos quais cavalos serão o estrondo da artilharia com que atroarão os mares e costas de Levante. Hi - estes poucos, serão os que glorificarão a Deus, e seu nome nas ilhas do mar, não só com as armas, senão com a doutrina: Propter hoc in doctrinis glorificate Dominum, in insulis maris nomen Dei Israel - porque as ilhas do mar são as muitas do arquipélago, de que está rodeada e como murada a barra de Constantinopla, para onde levará sua derrota a armada cristã, e a principal vitória que ali alcançará será a da fé e doutrina, com que converterá a Cristo os mesmos turcos. Assim se vê pintada entre as tabelas acima referidas, na tabela oitava, onde diz a declaração que, vencido o imperador turco pelo imperador católico: Divina clementia spiritus sui lute animum ejus iliustrante, christianam religionem cum omnibus suis amplectetur - E, finalmente, hi - estes poucos, serão manifestamente os portugueses, porque os instrumentos deste louvor e glória do Justo, que é Cristo - não só justo na severidade dos castigos, senão na benignidade das misericórdias - estes, conclui o profeta, irão, e se ouvirão desde os últimos fins da terra, que é Portugal: A finibus terrae laudes audivimus, gloriam Justi.

§ XIV

Razões e intentos do presente discurso, e do excesso e singularidade das esperanças do pregador:

Isto diz o famoso texto de Isaías, e este será o felicíssimo fim das nossas esperanças, para que Deus nos habilitará com os antecedentes castigos, nos quais perecerão os muitos que o mesmo profeta chama doidos: Insanient cultores ejus - e ficarão só os poucos que tiverem juízo, e obrarem com juízo como homens: Relinquentur homines pauci.

Se este papel houvera de passar às mãos dos mesmos portugueses, dissera-lhes eu que, postos entre o perigo e esperança, em que atualmente nos põe esta profecia, visse e considerasse bem cada um se lhe estará melhor emendar as loucuras, e viver com os poucos, ou continuar nelas, e perecer com os muitos. Mas o intento desta Escritura secreta, foi só apresentar nela à rainha, que Deus guarde, nossa senhora, posto que rudemente ideada, a grandeza universal da monarquia, e a sublimidade do novo trono imperial, destinado para o segundo e felicíssimo príncipe, sucessor do primeiro, que há de dar a Portugal Sua Majestade.

A razão deste mesmo segredo me escusa de dar satisfação aos outros reinos e nações católicas - as quais eu venero quanto devo - do excesso ou singularidade desta minha esperança. Cada um sabe mais de sua casa que das alheias. Escrevi da minha pátria como português sem lisonja, e ouvirei sem inveja quanto os outros escreverem da sua. Digo, contudo, que quando o presente discurso houvesse de passar dos olhos da rainha, nossa senhora, a outra mão menos portuguesa, debaixo das palavras divinas tantas vezes repetidas: dolo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire - leva este papel consigo um salvo conduto tão seguro, que ninguém lho poderá contrariar. Porque, como disse com alta sentença Plínio, falando do imperador Trajano - posto que mal aplicada a ele - nenhum juízo pode haver tão alheio da razão, que não admita, reconheça e confesse diferença entre um imperador feito por Deus, e os que fazem os homens: An fias erat nihil differre inter imperatorem quem homines, et quem dii,fecissent?

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Foi arrebatado (Sab. 4, 11).

[2] Tendo-se tornado agradável a Deus, foi por ele amado (ibid. 10).

[3] Porque a fascinação das frivolidades escurece o bem (ibid. 12).

[4] Por isso ele se apressou a tirá-lo do meio das iniqüidades (ibid. 14).

[5] Tendo-se tomado agradável a Deus, foi por ele amado, e foi transferido do meio dos pecadores (ibid. 10).

[6] E os povos estão vendo isto, e não entendem nem refletem nos seus corações (ibid. 14).

[7] Que tivera sido como se não fora, desde o ventre trasladado para a sepultura (Jó 10, 19).

[8] Uma mulher vestida do sol, que tinha a lua debaixo de seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça; e pariu um filho varão, que havia de reger todas as gentes com vara de ferro (Apc. 12, 1. 5).

[9] Todos os que fostes batizados em Cristo, revestiste-vos de Cristo (Gal. 3, 27).

[10] Dominará de mar a mar, e desde o rio até aos contins da redondeza da terra (SI. 71, 8).

[11] Haverá sinais no sol e na lua (Lc. 21, 25).

[12] Eis que vi um como o Filho do homem que vinha, e que chegou até ao antigo dos dias; e ele lhe deu o poder e a honra e o reino; e todos os povos, todas as tribos e todas as línguas o servirão (Dan. 7, 13 s).

[13] Até que foram postos uns tronos: e ele lhe deu o poder, e a honra, e o reino; e todos os povos, todas as tribos, e todas as línguas o servirão (Dan. 7, 9. 14).

[14] Tudo crê (1 Cor. 13, 7).

[15] Pela mão de Moisés e de Arão (SI. 76, 21).

[16]  O Senhor o deu, o Senhor o tirou: bendito seja o nome do Senhor (Jó 1, 21).

[17] Portanto eu o entrego também ao Senhor, por toda a vida que o Senhor for servido conceder-lhe (1 Rs. 1, 28).

[18] Eu o entrego ao Senhor (1 Rs. 1, 28).

[19] Até que a estéril teve muitos filhos (1 Rs. 2, 5).

[20] Pelo seu conselho fazia muitas coisas (Mc. 6, 20).

[21] Estabeleci-o na posse do trigo e do vinho, e depois disto, meu filho, que te posso eu dar (Gên. 27, 37)?

[22] Até um tempo, e dois tempos, e metade de um tempo (Dan. 7, 25).

[23] Os momentos dela se apressam por chegar (Dt. 32, 35).

[24] Pede-me, e eu te darei as nações em tua herança, e em tua possessão as extremidades da terra (SI. 2, 8).

[25] Os reis da terra se sublevaram, e os principes se coligaram contra o Senhor e contra o seu Cristo. Rompamos os seus laços e sacudamos de nós o seu jugo (SI. 2, 2 s).OS reis da terra se sublevaram, e os principes se coligaram contra o Senhor e contra o seu Cristo. Rompamos os seus laços e sacudamos de nós o seu jugo (SI. 2, 2 s).

[26] Ninguém pode vir a mim se o Pai não o trouxer (Jo. 6, 44).

[27] Mas a pedra que tinha dado na estátua fez-se um grande monte que encheu toda a terra (Dan. 2, 35).

[28] Saiu um edito emanado por César Augusto, para que fosse alistado todo o mundo (Lc. 2, 1).

[29] E esta redra era Cristo (1 Cor. 10, 4).

[30] Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja(Mt.16,18).

[31] Pedra arrancada do monte, sem intervirem mãos de homem (Dan.2,34).

[32] A fim de que lhe seja tirado o poder, e pereça para sempre (Dan. 7, 26).

[33] Eu olhava atentamente, por causa do estrépito das arrogantes palavras que este corno proferia, e viu que a alimária fora morta, e que o seu corpo perecera (Dan. 7, 11).

[34] Ao qual servirão e obedecerão todos os reis (Dan. 7, 27).

[35]  O que o remédio não cura, o ferro cura; o que o ferro não cura, o fogo cura; o que o fogo não cura é tido como incurável.

[36] A cidade da vaidade está demolida (Is. 24, 10).

[37] Por isso enfatuar-se-ão os seus cultores, e serão deixados poucos homens (ibid. 6).

[38] Como se algumas poucas de azeitonas, que ficaram, se sacudiram da oliveira, e algum par de cachos do rabisco, depois de acabada a vindima (ibid. 13).

[39] Estes levantarão a sua voz, e cantarão louvores; darão rinchos desde o mar, quando o Senhor for glorificado. Por esta causa, com as verdadeiras máximas de doutrina, glorificai ao Senhor; nas ilhas do mar, ao nome do Deus de Israel. Desde as extremidades da terra nós ouvimos os louvores (ibid. 14 ss).