Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Sermão a São Roque , de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. XI Erechim: EDELBRA, 1998

SERMAO QUE PREGOU O P. ANTONIO VIEIRA

da Companhia de Jesus,

na Casa Professa da mesma Companhia de Lisboa.

NA FESTA QUE FEZ

A SÃO ROQUE

ANTÔNIO TELES DA SILVA,

no ano de 1642.

UT, CUM VENERIT ET PULSAVERIT,

CONFESTIM APERIANT EI[1].

O fim e intento do Evangelho do dia: querer Cristo seus servos vigilantes e preparados para quando lhes bater à porta. Quando e de que maneira bate Cristo às portas de nossas almas? Quando e de que maneira abrimos com pontualidade a Deus? A correspondência maravilhosa que teve a caridade de São Roque com suas enfermidades.

Verdadeiramente que, se alguma hora preguei sobre tema forçado, se alguma hora não tive liberdade de eleição sobre as palavras do Evangelho, foi na ocasião presente. Nem eu pudera tomar outro tema que o que propus, nem

poderei seguir nele outra exposição que a que logo direi, de São Gregório. O fim e intento de todo o Evangelho é querer Cristo seus servos vigilantes e preparados, para quando lhes bater à porta. Isso vêm a dizer em suma as nossas palavras: Ut, cum venerit et pulsaverit, confestim aperiant ei. - Se perguntarmos aos doutores quando e de que maneira bate Deus às portas de nossas almas, responde São Gregório Papa no sentido mais literal, que todos seguem: Pulsat, cum per aegritudinis molestias, esse mortem vicinam designat: que nos bate Deus às portas da alma por meio das enfermidades do corpo. - Se perguntarmos mais, quando e de que maneira abrimos com pontualidade a Deus, responde o mesmo santo doutor, e com ele muitos outros: Cui confestim aperimus, si hunc cum aurore suscipimus: que abrimos a Deus com pontualidade quando o recebemos com amor. - De sorte que o bater e o abrir das portas de nossa alma consiste em bater Deus, e em abrirmos nós por caridade: Pulsar per aegritudinis molestias: aperimus si cum amore suscipimus. - Bem disse eu logo que nem pudera tomar na ocasião presente outro tema, nem seguir nele outra exposição. Celebramos hoje as gloriosas memórias do ilustríssimo confessor de Cristo, São Roque, cujas portas formosíssimas da alma se estão vendo tão batidas e tão abertas, que duvido qual mais quisesse fazer nelas a Providência divina, se teatro de sua paciência ao céu, se exemplar de sua caridade à terra. Encontram-se às portas daquela alma ao mesmo tempo duas mãos, por fora a de Deus batendo, por dentro a de Roque abrindo, e ainda que o amor não se conquista com golpes, quão rigoroso insista Deus no bater, tão amoroso se mostrava Roque no abrir: Deus batia por enfermidades: Pulsar per aegritudinis molestias - Roque abria por caridade: Aperimus si cum amore suscipimus. - Suposta esta conformidade fácil do Evangelho, parece que se encaminhará o nosso discurso a São Roque pela correspondência maravilhosa que teve sua caridade com suas enfermidades. E ainda que eu estava mais para pedir ao santo remédio das próprias, que para ponderar finezas das suas, diremos enquanto pudermos, com o favor da divina graça: Ave Maria.

§1

Foi tão vigilante servo São Roque, que não só acudiu pontualmente a Deus quando lhe batia às portas próprias, senão também quando batia às alheias: das enfermidades alheias tirava doença para si, e das enfermidades próprias tirava remédio para nós.

Ut, cum venerit et pulsaverit, confestim aperiant ei (Le. 12, 36).

Suposto que nos bate Deus às portas da alma por meio das enfermidades do corpo, uma coisa mui singular acho no glorioso sujeito de nossa oração, e é que foi tão vigilante servo São Roque em acudir ao bater de Deus, que não só acudiu pontualmente quando lhe batia às portas próprias, senão também quando batia às alheias. Lá bateu uma vez o Esposo às portas da alma santa, e, com ser santa, acudiu tão pouco diligente, que quando chegou a abrir, já o Esposo, cansado de esperar, se tinha partido: Surrexi ut aperirem dilecto meo, at ipse declinaverat, atque transierat[2]. - Verdadeiramente que se a Esposa dos Cantares não representara as almas de toda a Igreja, creio que deixara Deus a alma santa, e se desposara com a alma de Roque. A alma santa talvez acode a Deus, quando lhe bate às portas próprias: Roque, ou lhe bata Deus às próprias, ou às alheias, sempre acode diligente.

E se me perguntam quando aconteceu isto a São Roque, quando acudiu com esta pontualidade a um e outro bater de Deus, digo que sempre, em duas ocasiões: ou quando lhe batia Deus às portas próprias por meio de enfermidades suas, ou quando batia às portas alheias por meio das enfermidades dos próximos: Pulsat per aegritudinis molestias. - Andando tão fervorosa em um e outro abrir sua caridade: Aperimus si cum amore suscipimus - que das enfermidades alheias adoecia, e com as enfermidades próprias curava: das enfermidades alheias tirava doença para si, das enfermidades próprias tirava saúde para nós. Não é modo de encarecer, senão verdade lisa. Quando São Roque saiu de França para Itália, o exercício e instituto de vida que tomou, foi servir aos enfermos nos hospitais, donde - posto que curou muitos milagrosamente - saiu com uma grave enfermidade, que lhe deu larga matéria de paciência. Voltando à pátria, e chegando-se-lhe o fim ditoso de sua peregrinação, permitiu o Senhor que fosse ferido de peste, de que morreu em breves dias, mas, depois de morto, foi achado com uma tábua nas mãos, escrita por ministério de anjos, na qual prometia que todos os enfermos de peste, que se encomendassem em sua intercessão, sarariam daquele mal. Assim que das enfermidades alheias tirava doença para si, e das enfermidades próprias tirava remédio para nós. Quando serve aos enfermos toma por prêmio a doença, quando morre da enfermidade deixa em testamento a saúde. Até aqui pontualidade de acudir a Deus, até aqui engenhoso artifício e artificioso extremo de caridade: adoecer com as enfermidades alheias, e curar com as enfermidades próprias. Excelência é esta que só duas vezes acho escrita, uma vez junta, outra dividida: se dividida, em São Paulo e Cristo; se junta, no glorioso São Roque.

§II

O notável dizer de São Paulo: Que homem há que adoeça que não enferme eu também com ele? De que modo o que faltou em Deus, enquanto causa primeira, por perfeição de sua simplicidade, supriu São Paulo e São Roque por perfeição de sua caridade. O brasão da onipotência divina e o brasão da caridade de São Roque.

Vai contando São Paulo o muito que tinha padecido em serviço dos próximos, e diz assim aos coríntios: Quis infirmatur, et ego non infirmor (2 Cor. 11, 29): Que homem há que adoeça, que não enferme eu também com ele? - Notável dizer! Parece que ou a caridade é um bem contagioso, que se pega a todos os males, ou todos os males são contagiosos em respeito da caridade, que se pegam a quem tem: Quis infirmatur, et ego non infirmor? - Mas como pode ser - vamos à razão - como pode ser que adoecesse São Paulo das enfermidades alheias, e que, sentindo cada um as suas, Paulo padecesse as de todos? Lá os outros enfermavam, e cá Paulo adoecia? Como pode isto ser? Na caridade do apóstolo temos a solução da dúvida. Como a caridade essencialmente é união, e união perfeitíssima, de tal maneira une os próximos entre si, que se eu tenho caridade, cada próximo é outro eu: Ut sint unum, sicut nos unum sumus[3] - e como por estes laços sobrenaturais os homens se unem entre si, e se identificam reciprocamente, daqui vem que pode, antes deve cada um adoecer das enfermidades do outro porque necessariamente hão de ser os acidentes comuns onde o sujeito é o mesmo. Por isso São Paulo - e o mesmo digo de São Roque - adoecia das enfermidades alheias, e, sentindo cada um as suas, ele padecia as de todos, tudo por benefício de sua caridade. Adoecia das enfermidades alheias, porque a união recíproca do amor as fazia próprias, e, sentindo cada um o seu mal, ele padecia o de todos, porque, sendo um só por natureza, era todos por caridade: Quemadmodum si universa orbis Ecclesia esset, sic in unoquoque membro discruciabatur - diz São João Crisóstomo. - Adoecia em todos por sentimento, porque vivia em todos por amor: Quis infirmatur, et ego non infirmor?

Donde a mim me parece, podemos dizer por uma certa analogia, que o que lhe faltou a Deus enquanto causa primeira, por perfeição de sua simplicidade, supriu São Paulo e São Roque por perfeição de sua caridade. Deus nosso Senhor - como ensinam os teólogos - é primeira causa ativa, mas não é primeira causa passiva. É primeira causa ativa, porque por sua imensidade e onipotência obra com todos os que obram, concorrendo juntamente com eles; e não é primeira causa passiva, porque por sua simplicidade e imutabilidade não pode padecer em si, nem receber acidentes estranhos. De maneira que obra Deus com todos os que obram, mas não padece com os que padecem. Pois, esta generalidade e extensão que tem Deus enquanto causa primeira, por perfeição de sua simplicidade, esta supriu São Roque com São Paulo por perfeição de sua caridade. Deus, como primeira causa ativa, obra com todos os que obram; Roque, como primeira causa passiva, padece com todos os que padecem; e, assim como é brasão da onipotência divina que ninguém pode obrar sem Deus: Sine me nihil potestis facere[4] - assim é brasão da caridade de Roque que ninguém pode padecer sem ele: Quis infirmatur, et ego non infirmor (2 Cor. 11, 29)?

§ III

A casa dos religiosos da Companhia de Jesus em Lisboa e o patrocínio e exemplo de São Roque. Por que razão devem os religiosos desta casa os fervores de sua caridade mais a São Roque que a Santo Inácio? São Roque professo da Companhia em espírito, e filho de Santo Inácio em profecia. Rebeca, e a perfeição e profissão apostólica. A caridade de São Roque e a caridade de São Paulo.

Este sois, divino Roque, este ao mundo todo por benefício, e este aos religiosos desta casa por imitação, que pouco fora recebê-los debaixo de vosso patrocínio, se lhes não comunicáreis juntamente as gloriosas participações de vosso fervoroso espírito. Verdadeiramente que, quando considero - seja-me lícito, ao menos, pelos privilégios de estranho, dizer o que venero e o que admiro - quando considero a verdade com que pode dizer a casa de São Roque: Quis infirmatur; et ego non infirmor? Que enfermidade, que males, que trabalhos há em Lisboa, que a caridade desta casa não participe? Nos hospitais, nos cárceres, nas aflições e sentimentos particulares, que sempre são mais que os públicos, quem os padece neste grande povo, que não reparta a sua paciência com a caridade dos religiosos desta casa? Que enfermo que os não tenha à cabeceira? Que preso que os não ache à grade? Que condenado que os não leve consigo ao lugar do suplício? Finalmente, que necessidade espiritual ou temporal, que não venha buscar aqui, ou o remédio, ou o alívio, ou a companhia? Quando tudo isto considero, me persuado que deve esta graça a Companhia ao glorioso padroeiro desta casa, e que a gozam os religiosos dela mais por padres de São Roque que por filhos de Santo Inácio. Lá, quando aqueles anjos peregrinos se agasalharam em casa de Abraão, louva muito Lipomano a caridade com que Sara e Ismael os serviam, mas não conhece neles esta virtude pelo que tinham de parentes, senão pelo que tinham de domésticos de Abraão: Uxor accelerat, puer festinat: nullus piger est in domo sapientis. - De maneira que era filho Ismael de Abraão, mas aquela diligência e caridade não resplandecia nele porque nascera de seu sangue, senão porque vivia em sua casa: era filho diligente e caritativo, mas não era diligente e caritativo por filho, senão por doméstico: Nullus piger est in domo sapientis. - Alguma razão tenho eu logo para dizer que devem os religiosos desta casa os fervores de sua caridade a São Roque, mais que a Santo Inácio, porque de Santo Inácio são filhos, mas de São Roque domésticos. Não são isto privilégios da filiação, são proveitos da moradia: no instituto são obrigações da vida que professamos, no exercício são influências da casa em que vivemos.

Nem cuido que se poderá agravar meu padre Santo Inácio de eu o considerar assim, porque estas graças, ou estas glórias, todas tornam a demandar a fonte de onde manaram, e São Roque também foi filho de Santo Inácio. Não digo isto por querer imitar a devoção com que algumas religiões perfilham os santos alheios, porque estes piedosos latrocínios só se podem dissimular - posto que não encobrir - na confusão das antigüidades, e a nossa religião é tão pouco antiga, que mais se conhece de vista que de memória. O que digo e o que entendo é que São Roque foi professo da Companhia em espírito, e filho de Santo Inácio em profecia. A forma de vida, que por morte de seus pais tomou São Roque foi esta: renuncia seus estados, que era senhor de Montpellier[5], reparte com os pobres suas riquezas, parte à Itália, e ali, como dissemos, aplica-se a servir aos enfermos, tratando do remédio de seus males como se foram próprios. Pois, glorioso Roque, francês divino, que ímpeto de espírito é este vosso? Que trocados de vida são estes tão contrapostos? Aqui renunciais os bens próprios, ali tomais à vossa conta os males alheios? Sim, que isto é ser professo da Companhia. O instituto da Companhia professa consiste em renunciar os bens próprios, e fazer próprios os males alheios. Consiste em renunciar os bens próprios, porque nenhuma casa professa da Companhia pode ter propriedade alguma, nem ainda para o culto divino, de que é tão zelosa, e consiste em fazer próprios os males alheios, porque esse é o voto e obrigação dos professos: acudir aos males comuns e dos próximos, como se foram próprios e particulares. Este é o instituto da Companhia professa, e esta a vida que professou São Roque, seguindo em profecia os exemplos de seu e nosso padre Santo Inácio; e, para que não cuide alguém que perverto a ordem dos tempos, e chamo exemplares ao que devera chamar imitações, fiar-me-á o pensamento Santo Isidoro Pelusiota, que ainda em mais antecipada ação o considerou assim.

Considera Santo Isidoro Pelusiota o amor e resolução com que Rebeca,para granjear a bênção a Jacó, se expôs ao perigo da maldição, que ele temia, e diz desta maneira: Rebecca, apostolici animi magnitudine praedita: verdadeiramente

Rebeca com grandeza de ânimo apostólico. - Notai. Rebeca foi antes da vinda de Cristo mais de dois mil anos, e já então diz Santo Isidoro que seguia as  pisadas dos apóstolos, e que copiava em antecipadas imitações os futuros exemplares de seu espírito. E isto como, ou em quê? Advertidamente o Pelusiota: Ut ipsius filius benedictionem consequeretur, bonis quidem ipsi cedebat, mala autem ipsa sola sufferre parata erat: Consistia esta imitação do espírito apostólico em que Rebeca, para negociar a bênção a Jacó, renunciava nele todos os bens, e tomava para si todos os males: Bonis quidem ipsi cedebat, mala autem ipsa sola sufferre parata erat. - Esta é a suma da perfeição e profissão apostólica: fazer alheios os bens próprios, e fazer próprios os males alheios. E se, porque o fez assim Rebeca, diz Santo Isidoro que imitou em profecia o espírito dos primeiros apóstolos, que muito que, fazendo o mesmo São Roque, diga eu também que imitou em profecia o fundador dos apóstolos segundos? Mas seja embora como a devoção de cada um o quiser considerar, o certo é que de São Roque mais imediatamente se deriva aos religiosos desta casa aquele fervoroso espírito de caridade, com que, depois de alienarem de si todos os bens próprios, se apropriam tão intimamente dos males dos próximos, que puderam bem dizer, se o não calara sua modéstia, com o apóstolo: Quis infirmatur; et ego non infirmor?

Assim dizia São Paulo, e melhor que assim o pode dizer São Roque, porque, ainda que São Paulo diga a boca cheia que adoecia de enfermidades alheias: Quis infirmatur, et ego non infirmor? - é certo que todos os doutores interpretam assim, que só adoecia espiritualmente por sentimento, e não corporalmente por enfermidade. Porém, o zelo sem exemplar de Roque, de tal maneira o entranhava nos males dos próximos, que não só adoecia na alma por sentimento compassivo, senão que chegou a adoecer no corpo, como vimos, por enfermidade verdadeira, vencendo nesta circunstância de caridade a mesma caridade de São Paulo. Dizia de si o profeta rei: Tabescere me facit zelus meus, idest charitas mea (SI. 118, 139): O meu zelo, a minha caridade, me faz andar pálido, andar enfermo, andar tísico, andar minado. - Pois, como, se o zelo caritativo é uma virtude que está na alma, como adoecia de zelo Davi, e se entisicava no corpo: Zelo cor gore tabescit? - glosa aqui a Interlineal. A razão deste excesso é porque os afetos de nossa alma, se são extremamente intensos, ateiam-se pela vizinhança ao corpo, chegando o corpo a padecer por enfermidade o que a alma padece por sentimento. O calor naturalmente dilata, e, como a caridade é um afeto ardente, chega talvez a dilatar-se tanto, que não cabendo na estreiteza onde nasceu, ou rebenta o coração, e morrestes, ou se comunica ao corpo, e enfermastes: Tabescere me facit charitas mea. - Tal foi a caridade de Roque, não chegando a ser tal a caridade de Paulo, para que se veja quão vigilante servo se mostrou em abrir a Deus, quando lhe batia às portas alheias por meio das enfermidades dos próximos: Ut, cum venerit et pulsaverit: pulsat per aegritudinis molestias: confestim aperiant ei: aperimus, si cum amore suscipimus.

§ IV

O amor de São Roque quando Deus lhe batia às portas. Por que em Cristo curar enfermos e padecer enfermidades era a mesma coisa? Se São Roque sarou de peste a tantos, por que se não cura também a si? As chagas de Cristo e a incredulidade de Tomé. As chagas de São Roque e os milagrosos privilégios de sua virtude.

E amor que era tão argos em acudir a Deus quando batia às portas de outros, já se vê quão vigilante seria em abrir quando lhe batia às suas. Andou tão engenhosa também aqui a caridade de São Roque, que se lá, em emulação de São Paulo, soube adoecer com as enfermidades alheias, cá, em imitação de Cristo, soube curar com as enfermidades próprias. Fazer das enfermidades próprias medicina, é privilégio soberano, que só em Cristo, Senhor nosso, se acha, de quem diz o profeta Isaías: Livore ejus sanati sumus (Is. 53, 5): que suas enfermidades, ou dores, foram nossa saúde. - Com menos facilidade, mas com mais galantaria, o disse o evangelista São Mateus, e é um dos textos de sua história que reconhecem os intérpretes por mais dificultoso. Sarou Cristo em Cafarnaum grande multidão de doentes de diversas enfermidades, e, referindo São Mateus este milagre, diz assim: Omnes male habentes curavit: ut adimpleretur quod dictum est per Isaiam prophetam, dicentem: Ipse, infirmitates nostras accepit: et aegritudines nostras portavit (Mt. 8, 17): Curou Cristo todos os enfermos que lhe apresentaram - diz São Mateus - e aqui se cumpriu o que disse o profeta Isaías, que tomaria Cristo em si nossas penas, e padeceria nossas enfermidades. - Notável alegar de profecias por certo! Se Cristo estava curando enfermos, e a profecia diz que havia de padecer nossas enfermidades, como se cumpriu neste caso a profecia? Padecer enfermidades e curar enfermos é a mesma coisa? Em Cristo sim: a mesma coisa é em Cristo padecer enfermidades que curar enfermos, porque a paciência das suas dores foi o remédio e medicina das nossas: Livore ejus sanati sumus. - Por isso o evangelista, quando viu a Cristo milagrosamente médico, logo o considerou infalivelmente enfermo, porque aqueles efeitos de curar eram certezas de adoecer: onde a enfermidade era medicina, não podia ter saúde quem a dava: Et defuit sanitas, ne nobis deesset - disse com propriedade o Oleastro.

Tal o grande imitador da caridade de Cristo, São Roque, que dos sofrimentos de suas enfermidades fez merecimento de nossa saúde, e morreu ferido de peste sem remédio, para que tivessem remédio os feridos de peste. Quem visse estar morrendo do mal de peste a Roque, e o tivesse visto curar milagrosamente a tantos do mesmo mal, parece que se pudera dizer ao santo por admiração o que no Calvário disseram a Cristo por afronta: Alios salvos fecit, se ipsum non potest salvum faceie (Mt. 27, 42): Pôde salvar aos outros, e a si não se pode salvar. - Pois, se sarou de peste a tantos, por que se não cura também a si? Sabeis por quê? Não se curou São Roque a si, porque quis que sarássemos nós: Et defuit sanitas, ne nobis deesset. - Ofereceu a Deus sua enfermidade por nossa saúde, sua vida por nossa morte; adoeceu para que sarássemos, morreu para que vivêssemos; e, ainda que tinha virtude milagrosa para curar de peste, não quis empregar esta graça em sua vida, para poder testar dela na morte. Assim o diziam as tábuas de seu testamento. Há mais fino amor dos próximos? Há mais perfeita, há mais divina caridade que esta? Julgo-a por tão divina, que não foram menos que demonstrações de divindade em Cristo os que foram efeitos de caridade em Roque.

Estava São Tomé incrédulo da ressurreição, com os outros discípulos, entra Cristo com as portas fechadas, abre as das mãos e do lado, chega Tomé, e apenas tinha visto ou tocado as chagas, quando cai aos pés do Senhor, dizendo: Dominus meus, et Deus meus: Reconheço, Senhor, que sois meu Senhor, e creio que sois meu Deus. - Mais crê São Tomé do que duvida, porque só duvidava de um homem ressuscitado, e reconhece-o mais por Deus verdadeiro. Pois, discípulo incrédulo, até agora não críeis tão obstinado, como já, credes tão resoluto? E se nunca reconhecestes em vosso Mestre mais que a humanidade, como o confessais por Deus tão subitamente? Que é o que vistes nele? Que é o que descobristes de novo? - Vi - diz Tomé - que deixou este Senhor as mãos e lado aberto, para render minha incredulidade; e quem não fecha as suas chagas, para ter com que curar as minhas, é mais que homem, é Deus: Dominus meus, et Deus meus. - Novo genere vestigia vulnerum divinitati perhiberent testimonium -exclama Santo Agostinho: Coisa nova e prodigiosa, que chagas de um corpo humano sejam testemunho de natureza divina. - Mas, que menos se pode argüir que divindade, em quem deixa abertas as chagas próprias para ter com que curar as alheias? Vol uit exibere in illa carne cicatrices vulnerum, ut vulnera sanaret incredulitatis - diz o mesmo Santo Agostinho. - Estes, pois, que foram argumento de divindade em Cristo, foram efeitos de caridade em Roque, o qual, podendo sarar do mal de que estava ferido, não quis fechar as suas chagas, para ter com que curar as nossas, e, renunciando com maior milagre os milagrosos privilégios de sua virtude, quis morrer indefenso às mãos da peste, para que a peste morresse às suas mãos. Assim abria Roque por caridade, quando assim batia Deus por enfermidades: Pulsat per aegritudinis molestias: aperimus, si cum amore suscipimus.

§V

Com que mais igualmente se havia de premiar um hem contagioso, que com dominar males contagiosos? Os contágios da capa de José, e dos vestidos de Santo Estêvão. Por que deixou José a capa nas mãos da egípcia? Os contágios da caridade de São Roque.

Em mãos de Roque morreu e morre a peste, ou reconhecendo a virtude, ou obedecendo à violência de sua intercessão, onde eu noto quão bem se corresponde aqui o prêmio e o merecimento, porque este segundo curar foi prêmio daquele primeiro adoecer. Sobre o praecinget se[6], et sint lumbi vestri praecincei[7] do Evangelho, notou com agudeza São Pedro Crisólogo, que paga Deus na mesma moeda os serviços que lhe fazem os homens. - Cingi-vos para me servir a mim - diz Cristo - que eu me cingirei - quem se não assombra? - para vos servir a vós. - E como a liberalidade de Deus é tão pontual nas correspondências, com que mais igualmente se havia de premiar um bem contagioso, que com dominar males contagiosos? Lá dissemos no princípio que a caridade de São Roque, em emulação de São Paulo era um bem contagioso que se pegava aos males; pois, em satisfação de uma virtude, que é bem contagioso, dê-se a São Roque virtude de curar males contagiosos. Alguma coisa disto temos em José.

Amava sua senhora a José tão perdidamente como sabemos; passou o afeto a loucura, passaram as significações a violência; deixou-lhe, enfim, o casto moço a capa nas mãos, e daqui se trocou aquele excessivo amor em tais excessos de aborrecimento, que dos laços desejados se forjaram prisões executivas, e foi posto em ferros José. Pois, egípcia infiel, que mudança é esta tão repentina? Pouco há tanto amor, e agora tanto aborrecimento? Se querias conquistar a vontade de José, princípio foi de vitória ficar com os despojos nas mãos. Pois, por que não continua teu amor a empresa? Por que aborreces tanto a quem amavas há tão pouco? Quereis ouvir com admiração por quê? Porque lhe ficou nas mãos a capa de José. Assim como se pegam as enfermidades, também se pega a saúde. Se bastam os vestidos de um enfermo para se pegarem os achaques do corpo, também bastam os vestidos de um santo para se pegarem os afetos da alma. Qual cuidais que foi o princípio da conversão de São Paulo? Altamente o penetrou o juízo de Bernardo. Entre os que apedrejavam a Santo Estêvão, andava também São Paulo antes de convertido, o qual foi tão venturoso, que lhe coube à sua conta guardar os vestidos do mártir: Deposuerunt vestimenta sua secus pedes adolescentis qui vocabatur Saulus[8]. - E que se seguiu daí? Seguiu-se - diz São Bernardo - que pelo toque daquelas roupas começou Deus a lhe tocar na alma, e dos vestidos de Estêvão, a quem apedrejava, se lhe pegou a mesma fé por que Estêvão morria: Deponuntur vestimenta martyrum ad pedes persecutoris, qui ad tactum sacrarum vestium fuerat convertendus: Com particular providência do céu se entregara ao perseguidor os vestidos do mártir, para que, tocando-os, se lhe pegasse a fé, e vivesse a seguir, como veio, a lei que perseguia: Qui ad tactum sacrarum vestium fuerat convertendus. - Assim se converte Saulo em Paulo, e assim se trocou o amor da egípcia em aborrecimento. Ficou a egípcia com a capa de José nas mãos: Relicto in manu ejus pallio fugit[9] - e, como pelos vestidos dos santos se pegam as inclinações e afetos da alma, aborreceu logo a egípcia a José, porque José aborrecia a egípcia. Comunicou-se-lhe o aborrecimento ao coração pelo tato, e pegou-se-lhe a desafeição de José, só porque pegou em suas roupas sagradas: Ad tactum sacra rum vestium.

Mas donde mereceu José - ainda não fechamos o pensamento - donde mereceu José que se lhe concedesse já então o que foi privilégio singular do protomártir, e que ao toque santamente contagioso de suas roupas se produzissem tão maravilhosos efeitos? Se hei de dizer o que entendo, acho que nesta mesma ação teve José o merecimento e o prêmio. E se não, pergunto: Por que deixou José a capa nas mãos da egípcia? Deixar em poder de seu inimigo uma testemunha falsa contra sua inocência, mais é temeridade que confiança. Pois, por que não faz força para trazer a capa consigo, por que não resiste, por que a larga de mãos? Venturosamente ao intento Santo Ambrósio: Contagiumjudicavit, si diutius nwraretur, ne per manus adulterae libidinis incentiva transirent, itaque vestem exuit: Largou José a capa nas mãos da egípcia, porque julgou que era mal contagioso seu torpe amor, e não quis que pelas roupas se lhe pegasse a peste: Contagium judicavit, itaque vestem exuit. - E José tem por mal contagioso o amor da egípcia? Pois seja bem contagioso o desamor de José. Vós tendes por mal contagioso sua impureza? Pois seja bem contagioso vossa castidade. De sorte que juntamente naquela capa havia um mal e um bem, ambos contagiosos: o torpe amor da egípcia, de cujo contágio fugiu José; e o casto amor de José, cujo contágio em parte se pegou à egípcia. Pois, assim como Deus concedeu a José que fosse bem contagioso sua virtude, porque teve por mal contagioso o vício alheio, assim concedeu a São Roque que sarasse de males contagiosos sua intercessão, porque fora bem contagioso sua caridade. Foi a caridade de São Roque um bem tão contagioso, que se lhe pegavam os males e doenças de todos: Quis infirmatur, et ego non infirmor? - Pois, seja digno prêmio desta contagiosa virtude que todos os males se rendam a seu império, e que não haja contágio nem peste no mundo onde chegar a intercessão e nome de Roque.

§ VI

Petição do orador ao santo: que livre o Reino de Portugal de duas pestes mui perigosas: pouca e muita fé; pouca fidelidade, e muita confiança. O perigo da peste e o perigo da guerra. Portugal, apestado de pouca fé. A fé prática e a liberalidade das mãos. Por que razão representa Cristo a ,fé em figura de tochas? A e liberalidade dos Magos. Fé e liberalidade, virtudes sinônimas. O exemplo da liberalidade de São Roque para com a pátria. A lealdade e fidelidade do cão de São Roque.

Estes são os merecidos prodígios de vossa caridade, glorioso e poderoso santo; e, pois, como divino advogado da peste, exercitais tão obedecido domínio sobre todos os males contagiosos, uma petição vos quero fazer, que será matéria desta segunda parte; fio que não vos seja menos agradável que a primeira, porque os ânimos desejosos de fazer bem, mais os lisonjeia quem lhes pede que quem os louva: A petição que faço, e a mercê que vos peço, divino Roque, é que livreis o nosso reino de duas pestes mui perigosas, que não sei se vão já corrompendo o saudável clima de seus ares. São conseqüências da guerra estas tão certas como danosas: Surget gens in gentem, et regnum adversus regnum, et erunt pestilentiae[10]. - Alguns haverá que, seguindo a resolução de Davi, desejariam antes remédio para a guerra que para a peste; mas eu, pela mesma razão, temo mais os rebates da peste que os rebates da guerra. Pôs Deus a Davi em sua eleição, que de dois ou três males, que lhe ameaçava, escolhesse livremente o que mais quisesse; e, com ser tão grande soldado Davi, quis antes peste que guerra. A razão deu o mesmo rei, como aponta o texto: Quia melius ut incidam in manus Domini quam in manus hominum[11], - Porque a guerra estava nas mãos dos homens, e a peste nas mãos de Deus; sempre são menores os males que se dispensam pela mão de Deus que os que se executam pela mão dos homens. Por esta razão temeu Davi mais a guerra que a peste, e pela mesma temo eu mais a peste que a guerra: porque, se lá a guerra estava nas mãos dos homens, e a peste nas mãos de Deus, cá a guerra está nas mãos de Deus, e a peste nas mãos dos homens. A guerra está nas mãos de Deus porque Deus a tomou à sua conta, e nos dá tão milagrosos sucessos, como cada dia vemos; e a peste está nas mãos dos homens, porque os homens são os que encontram - não falo das tentações, senão dos efeitos - ou ao menos desajudam o bem da pátria.

Ora, eu me pus a considerar como chamaria a estas duas pestes que digo de Portugal, e, por lhe não fazer as definições compridas, defini-as assim: Pouca fé e muita fé. Pouca fé, isto é, pouca fidelidade; muita fé, isto é, muita confiança. Muito confiados e pouco confidentes são em Portugal os feridos da peste de que Deus nos livre. Mau é que tenhamos ocasião de dizer isto entre portugueses, mas pior fora se se não estranhara. Cuido que o mostrarei, de maneira que ao menos, se não persuadir o remédio, hei de justificar a queixa. Que esteja apestado de pouca fé Portugal, o povo diz comumente, e cuida que o prova; mas, ainda que a autoridade de povo é tão grande, que ela só bastou para canonizar a São Roque, julgue Deus os corações de cada um, que eu só das mãos quero fazer juízo. Argumento assim: é certo que certas cortes passadas se prometeram subsídios para a guerra, quantos fossem necessários à conservação do reino. Também é certo que se intentaram donativos, que se multiplicaram tributos, que se introduziram décimas, que se acrescentou à moeda o cunho e o preço, e, contudo, vemos que é necessário repetir cortes, para arbitrar novos modos de tirar dinheiro efetivo, porque cada um guarda o seu, e há mui poucos que paguem o que lhes toca. Os muito poderosos por privilégio, os pouco poderosos por impossibilidade, cada um trata de lançar a carga aos ombros do outro, e talvez cai no chão, porque não há quem a sustente. Isto é assim? Ainda mal. Bem digo eu logo que há pouca fé em Portugal. Fé tão apertada de mãos, não é verdadeira fé.

Diz Cristo no nosso Evangelho: Lucernae ardentes in manibus vestris: Que tenhamos tochas acesas nas mãos. - Suposto que o lume destas tochas significa o lume da fé, por que diz Cristo que o tenhamos nas mãos: In manibus vestris? - Os atos da fé, no entendimento se produzem, no entendimento se recebem; pois, se a fé está no entendimento, como a põe Cristo agora nas mãos: Lucernae ardentes in manibus vestris? - Uma razão mui verdadeira é porque a fé prática, que Cristo aqui ensinava, não consiste tanto em verdades do entendimento, quanto em liberalidades das mãos. Não é mais fiel quem melhor discorre, senão quem concorre melhor. Por isso nos representa Cristo a fé em figura de tochas, porque a tocha, se está acesa, gasta-se, e, se não se gasta, está apagada. Oh! quantas tochas, que puderam luzir gloriosas, se vêm nesta ocasião apagadas miseravelmente! Lucernae ardentes in manibus vestris. - Portugueses, se a fé é tão ardente como deve ser, veja-se luzir nas mãos. Apertarem-se as mãos é sinal de frieza, e que não arde fogo no coração. Amavam muito os Magos, e criam verdadeiramente naquele rei que aclamaram em Jerusalém, e como sábios, vede a protestação que fizeram da sua fé: Procidentes adoraverunt, et apertis thesauris suis obtulerunt (Mt. 2, 11): Prostrados por terra adoraram, e abrindo seus tesouros ofereceram. - São Leão Papa: Quod cordibus credunt, muneribus protestantur: Na liberalidade com que davam, protestaram a verdade com que criam - e, porque aí costuma estar o coração onde está o tesouro, fizeram os seus tesouros intérpretes de seus corações: Quod cordibus credunt, muneribus protestantur - Se víssemos que entravam os Magos no presépio, e que, vendo naquele estado a seu rei, lhe não faziam serviço de suas riquezas, que diríamos? Diríamos com muita razão que não criam nele verdadeiramente, e que aquelas cortesias foram enganosas, e aquelas adorações fingidas. Adorar, e não oferecer, quando o príncipe está em necessidade; dobrar os joelhos, e não abrir os tesouros, não é vício de avareza, é crime de infidelidade. Fé e liberalidade são virtudes sinônimas; e quem está duvidoso no dar não está firme no crer. O que os Magos ofereceram a Cristo foi ouro, incenso e mirra, e dizem todos os padres, e com eles conformemente a Igreja, que no ouro confessaram que era rei, no incenso que era Deus, na mirra que era homem: Auro regem, thure Deum, myrra mortalem. - Oh! grande confirmação do que dizemos! De sorte que interpretaram os Magos a fé pela liberalidade, e para confessarem três artigos ofereceram três donativos: Auro regem, thure Deum, myrrha mortalem.

Pois, se a fé se explica pela liberalidade, se o dar é sinônimo do crer, e a obediência dos reis se protesta com ouro das mãos: auro regem - como não temerei eu que há rebates de peste, ou suspeitas de pouca fé em Portugal, quando a liberalidade se perverteu em cobiça, e em lugar de se pagarem tributos pode ser que se multipliquem latrocínios? É bom gênero de fé esta? Eu o direi. Perguntaram os ministros reais a São Pedro se havia seu Mestre de pagar tributo a César, e respondeu que sim. Mandou Cristo a Pedro que fosse pescar, que na boca do primeiro peixe acharia a moeda que se pedia: Et da eis pro me et te (Mt. 17, 26): E pagai Pedro por mim e por vós. - Notai. Cristo era Senhor do mundo, São Pedro era príncipe da Igreja, e contudo diz o Senhor: Pagai por mim e por vós: Da eis pro me et te - porque os tributos dos reis, principalmente em tempo de necessidades grandes, também os grandes senhores é bem que os paguem. Nos bens e males comuns ninguém é privilegiado: sintam todos o mal que toca a todos. Mas não era isto o que eu queria ponderar. O em que muito reparo é em mandar a providência de Cristo que São Pedro pagasse tributo. Pagar o tributo, parece que tocava, em razão do ofício, ao apóstolo que tinha o dinheiro; pois, se Judas era tesoureiro, ou procurador, se Judas era que tinha a bolsa do Colégio Apostólico, por que não manda Cristo pagar o tributo a Judas? Direi o porquê. Porque quem tinha ânimo para vender a seu Senhor, não tinha sítio para pagar o tributo. Não pagou o tributo Judas, porque os Judas não pagam tributos. Veja-se agora se há suspeitas de pouca fé, se há feridas de infidelidade em Portugal.

Glorioso santo, esta é a primeira peste de que vos peço nos livreis este reino; e, se não fora por temor de alguma irregularidade, não sei se vos pediria também que a curásseis, como a curou São Pedro. Defraudou Ananias a parte do preço que devia pôr todo aos pés dos apóstolos, como agora fazem alguns, que pagam a décima, mas dezimada; manda-o vir diante de si São Pedro, julga o crime sumariamente, notifica-lhe a sentença em três palavras, e foram tão rigorosas e executivas, que no mesmo ponto, que assombro e tremor dos circunstantes, caiu morto a seus pés Ananias. Tanto rigor em um discípulo de Cristo, na piedade de um apóstolo, nas entranhas de um São Pedro, por uma culpa ao parecer não pesada? Sim, diz Santo Ambrósio, e dá a razão: Tanta erat infectus avaritiae pestilentia, ut sanctus eum Petrus, non tam emendare voluerit, quam damnare: Deu sentença de morte repentina São Pedro a Ananias por defraudador somente do preço prometido, porque, como estava infeccionado com a peste da avareza, e podia infeccionar e apestar os outros, teve por melhor tirar-lhe a vida que esperar-lhe com perigo a emenda. - Com este rigoroso remédio se curou já alguma infidelidade em Portugal, exemplo que é bem ande nas memórias sempre vivo; mas aos fielmente portugueses, baste-vos o do glorioso São Roque, para que, assim como ele deu estado, riquezas e quanto possuía pela pátria do céu, demos nós também com apostada resolução quanto temos pela defensa da nossa. Ainda há comendas, ainda há rendas, ainda há jóias, ainda há coches, ainda há galas e regalos, e, enquanto houver sangue nas veias, haverá muito que dar. Dê-se tudo pela pátria, que nela fica, assim como deu São Roque tudo, para nela o achar. E se o exemplo de São Roque, por alto, nos desmaia, e há olhos fracos que cegam com tanta luz, abaixemos um pouco a vista, e veremos retratada aos pés do santo uma ação irracional, mas generosa, que, quanto mais falta de uso da razão, estranha e repreende mais justamente as sem-razões de infidelidade humana. Todos os autores antigos fizeram ao cão símbolo da fidelidade, e quando esta nobreza não fora tão antiga naquele animal, o de São Roque pudera ganhar este título para toda a sua espécie. Estava São Roque deitado no campo ao pé de uma árvore, pobre desconhecido, solitário, enfermo, e no meio deste desamparo tinha um cão, que, levando todos os dias um pão na boca, sem comer dele bocado, o sustentava, Isto sim que é ser leal, isto sim que é ser exemplo da verdadeira fidelidade: chegar a tirar o pão da boca, para sustentar com ele a seu senhor. Lástima é que carecesse tal generosidade de uso de razão, quando vemos tantas almas racionais tão mal empregadas em sujeito de menos honrados procedimentos.

§ VII

A segunda peste de Portugal: muita fé e muita confiança. Os que têm por afronta ou por ociosidade o exercício das armas. A moderada confiança não é achaque, senão esmalte da valentia. O exemplo de São Roque e o medo e ousadia de Elias. A sábia advertência do Evangelho.

A segunda peste - muito me detive na passada, será esta a peste pequena - a segunda peste define-se: Muita fé, ou muita confiança - e deste mal está infeccionada muita gente, que se chamam os demasiadamente confiados. Há cidades em Portugal, que, sem estarem tão longe de Castela, como Roma de Cartago, nem as dividir um mar, senão um pequeno rio, e a algumas uma linha matemática, tão confiadas estão de si mesmas que por mais que são mandadas fortificar, não se fortificam, havendo - à maneira dos espartanos - que onde estão os peitos dos seus cidadãos não são necessárias muralhas. Há homens em Portugal que, sem terem gastado os anos nas escolas de Flandres, nem campeado nas fronteiras de África, por mais que os mandam ter armas, e exercitá-las, têm por afronta ou por ociosidade este exercício, como se fora contra os foros da nobreza prevenir a defensa da pátria, ou puderam, sem exercitar as armas, entrar naquele número ordenado, de gente, que, por constar de homens exercitados, se chama exército. É boa confiança esta com o inimigo à porta? É mui demasiada e mui errada confiança: desconfiar por temor é covardia, mas desconfiar por cautela é prudência. Não quero desconfiança que faça desmaiar; desconfiança que faça prevenir sim. E este segundo modo de desconfiar é mui necessário, principalmente aos portugueses, cujo demasiado valor os fez algumas vezes tão confiados, que o vieram a sentir mal prevenidos. A moderada desconfiança não é achaque, senão esmalte da valentia. O valente dizem que há de ser desconfiado; ao menos um soldado francês sei eu, e na milícia de sua profissão soldado de fama, o qual sempre foi valente ao desconfiado: São Roque. O que pondero é que deixou São Roque uma vez a pátria, e depois se tornou para ela. Que deixasse a pátria quem queria seguir a Cristo, com seguro ditame obrava, que no remanso perigoso da pátria, principalmente os poderosos, como São Roque, mais ocasião têm de ofender que de servir a Deus; pois, se deixa a pátria, e foge dela, por que a torna a buscar? Em uma e outra resolução obrou como desconfiado São Roque. A primeira vez fugiu da pátria, porque desconfiou de sua virtude; a segunda vez tornou para a pátria, porque desconfiou de sua fugida. Como se fizera este discurso o santo, entre valente e desconfiado, consigo. Eu, se fico na pátria, as ocasiões são muitas: se me falta virtude para as resistir, fico vencido. Pois, que remédio? Não há outro senão fugir: alto, deixemos a pátria. E, depois de a ter deixado, como se tornara sobre si: Fugir - diz Roque - é covardia; não querer vir às mãos com o inimigo, é pouco valor. Pouco valor em um soldado de Cristo? Não há de ser assim: ânimo, voltemos outra vez para a pátria. - E assim o fez. Elias retratado. Foge Elias de Jesabel, que lhe queria tirar a vida, chega ao deserto, e começa a chamar e desafiar a morte: Petivit animae suae ut moreretur[12]. - Tudo sucedeu no mesmo dia, para ser mais achada a repugnância. Se teme o profeta a morte, como a chama? E se foge dela na cidade, como no deserto a desafia? São desconfianças de um bem-entendido valor. Na cidade fugiu da morte, porque desconfiou de sua fortaleza; no deserto desafiou a morte, porque desconfiou de sua fugida. O meio em que consiste a fortaleza é entre o temor e a ousadia: temeu e ousou Elias, sempre desconfiado, para em uma e outra ação se mostrar valente. Tão longe está de valente o tímido como o temerário; e se em alguma parte está mais perigosa a conservação, é na presunção de segura. Nem aqui nos faltará o Evangelho.

Quer Cristo que estejamos em vela, bem assim como o fazem os servos diligentes que esperam por seu Senhor: Ut, cum venerit et pulsaverit - aqui reparo: para que quando vier a bater. - Bater? Logo, fechadas hão de estar as portas? Pois, se fazem tantas diligências por pressa e mais pressa, se hão de estar as roupas na cinta, se hão de estar as tochas nas mãos, e essas já acesas, por que não estarão também as portas abertas? Porque ensinava Cristo a seus discípulos a ser vigilantes, e não basta para a segura vigilância olhos abertos com portas abertas, senão olhos abertos com portas fechadas: Ut, cum venerit et pulsaverit. - Para que, quando vierem de fora, achem em que bater primeiro. E se não bastam olhos abertos com portas abertas, que seria portas abertas com olhos fechados? Por semelhante descuido se perdeu Tróia: Panduntur portae[13] - eis aí as portas abertas. - Invadunt urbem somno vinoque sepultam[14] - eis aí os olhos fechados. O que importa é moderar a confiança com a cautela, e segurar o valor com a vigilância: vigiar, armar, fortificar, exercitar e trabalhar, que, ainda que se tem trabalhado tanto, a empresa foi muito grande, e é necessário mais.

§ VIII

As más interpretações da bondade divina. Confiar em Deus ofendendo-o é venerar um atributo com ofensa de outro, e presumi-lo tão misericordioso que possa ser menos bom. Por que está Deus irado contra Castela, e a castiga tão rigorosamente? Se Deus em Castela castiga pecados, como há de premiar pecados em Portugal? Oração.

E o que mais necessário é que tudo - até agora como a portugueses, agora como a cristãos - é que as negligências de dentro não desanimem e descomponham as diligências de fora. Quem me dera neste passo as forças e o espírito que não tenho? É possível que quando estamos recebendo enchentes de benefícios da divina misericórdia, não façamos senão provocar com pecados a divina justiça? Que quando devêramos andar humildes e agradecidos a tantas mercês, armemos os favores do céu contra o mesmo céu, e façamos guerra a Deus com seus benefícios? Que ainda se guarde pouca justiça? Que ainda se trate pouca verdade? Que agora reinem mais as invejas? Que agora estejam mais em seu ponto as ambições? Que agora, porque Deus está por nós, nos ponhamos nós contra ele? É boa confiança esta? Grande motivo nos tem dado Deus de grande confiança, mas antes nos quer menos confiados de suas misericórdias que pouco atentos a nossas obrigações: Et vos estote parati - diz Cristo por conclusão do Evangelho - quia qua hora non putatis, Filius hominis veniet. Estai preparados e prevenidos, porque na hora em que menos imaginais vos pedirão conta da vida. - Muito é dificultar Cristo o remédio em uma hora, a quem o pode ter em um instante! Se um instante basta - que tal é a bondade de Deus - para um arrependimento final, como nos atemoriza o Senhor com as brevidades de uma hora? Parece que é estreitar os limites, e diminuir a opinião gloriosa de sua misericórdia infinita. Assim parece, não há dúvida; mas quer Deus antes menos reputada a sua misericórdia, que demasiadamente confiada nossa esperança. Confiar em Deus ofendendo-o, é venerar um atributo com injúria de outro, e presumi-lo tão misericordioso, que possa ser menos bom. - Absit ut ita aliquis interpretetur: Deus nos livre de sermos tão mal intérpretes de sua bondade - diz Tertuliano - quasi ex redundantia clementiae caelestis, iibidinem. faciat humanae temeritatis - que nos sirva de tentação a liberalidade divina, e façamos costas a nossas temeridades com os exemplos contínuos de suas misericórdias.

Miséria é, e cegueira de entendimento grande, que nos traga desvanecidos e descuidados o que nos devera fazer humildes e temerosos. Porque Castela se vai precipitando a tão conhecida ruína, nos damos nós por seguros? Ó miséria! Porque Castela se vê em estado que já não pode resistir a seus inimigos, nos imaginamos vencedores dos nossos? O cegueira! Alegra-nos vãmente o que nos devera confundir, anima-nos o que nos devera assombrar, e enche-nos de confiança o que nos devera encher de temor. Não falo do temor que faz tímidos, senão do temor que faz timoratos; não do temor que faz temerosos dos homens, senão do temor que faz tementes a Deus. Pergunto, senhores: Por que está Deus irado contra Castela, e a castiga tão rigorosamente? Não há dúvida que por seus pecados, por suas maldades, por suas injustiças, por suas soberbas, por suas incontinências; boas testemunhas somos, como cúmplices um tempo dos mesmos delitos. Pergunto mais: O Deus de Castela é o mesmo que o de Portugal, ou outro? Esta pergunta não tem resposta. Pois o Deus é o mesmo, e em Castela castiga pecados, como há de premiar pecados em Portugal? Se Castela tem a ruína em seus vícios, como havemos nós de ter a segurança nos nossos? Oh! que bem apertou a força desta razão o profeta Naum, falando com a cidade de Tiro! Num quid melior es Alexandria populorum, quae habitat in fluminibus, etc.? Porventura, ó Tiro, sois vós melhor que a grande cidade de Alexandria, cabeça de tantas províncias? - Porventura, ó Portugal, sois vós maior e mais populoso que Espanha, todo de quem éreis parte? Et tamen ipsa abüt in transmigrationem: E, contudo, Alexandria, ó Tiro, foi destruída; e, contudo, Espanha, Portugal vai-se acabando. - Pois, se a monarquia famosa das Espanhas, se aquela que pouco há dominava facilmente o mundo, assim castiga e aniquila Deus por seus pecados, se lhe não vale a Espanha seu dilatado império; se não se sustenta nos estribos de sua grandeza; se de suas próprias entranhas brotam as labaredas, com que se vai consumindo este Etna; se tantos exércitos espalhados pelo mundo a não defendem; se tantas frotas e tantos milhões a não socorrem; se tantas orações - que é mais - e tanto culto divino; se tantas penitências e sacrifícios não bastam a ter mão no braço irado da divina justiça; se tanto provocam a Deus os pecados de Espanha, por que não teme Portugal os seus? Por que os não teme, e os não chora? Não nos fiemos indiscretamente em milagres e favores do céu, porque em grandes misericórdias ensaia Deus grandes castigos; e todo este bem perderemos, se formos ingratos. Com grandes milagres e prodígios livrou Deus ao povo de Israel do cativeiro de Faraó, em que estavam; e, contudo, de tantos mil que saíram do Egito, porque pecaram depois de tão grande mercê, só dois entraram na Terra de Promissão. Libertou-os Deus por aflitos, e depois castigou-os por ingratos. Fique-nos esta advertência, cristãos, consideremos bem esta verdade, obremos pelos ditames deste desengano, para que saibamos o que principalmente devemos temer, e sobre que bases podemos fundar segura a firmeza de nossas confianças. Agradar e servir a Deus, e logo confiar animosamente.

E para que sejam eficazes estes remédios, Roque divino, debaixo de vossa proteção e favor esperamos os efeitos de virtude. Francês e português sois, glorioso santo, e em um e outro título estão bem-fundadas nossas esperanças. Quem melhor nos socorrerá que um francês, quando as florentes lises de França, com tão irmanada correspondência, assistem ao lado das quinas portuguesas? E quem mais natural português, e mais verdadeiro que aquele que nasceu com o hábito de Cristo sobre o peito esquerdo, publicando que era cavaleiro francês por geração, mas português por nascimento? Todo o Reino de Portugal vos encomendo, divino Roque, pois tão duplicadas são as razões com que confia em vosso favor. Encomendo-vos esta cidade, que com tanta devoção e freqüência soleniza vossas sagradas memórias. Encomendo-vos esta casa, que tão autorizada está com vosso patrocínio, e tão rica e tão santificada com o tesouro de vossas preciosas relíquias. Encomendo-vos - mas não vos encomendo, que não é necessário - a vossa real e ilustríssima irmandade, em que vos serviam os reis, e vos serve a melhor nobreza; e particularmente, como tão particular nele, vos encomendo, glorioso santo, a quem hoje com tão lembrada prevenção, e com tão antecipada liberalidade celebra vossa festa ausente. A pessoa, a causa, os benefícios pedem que tenhais boas ausências, com quem as sabe ter pontuais, e, ainda que em distância tanta, lá chega também a jurisdição milagrosa de vossos poderes, que a hostilidade de nossos mal-reconhecidos amigos, que ainda ali não cessa, peste foi daquele Estado, e peste do mundo. Deste mal tão pernicioso nos ajudai a livrar, poderoso santo, aquela tão dilatada província, a mais rica e mais preciosa jóia desta coroa, para que, ou no descanso da verdadeira paz, ou na superioridade de vitoriosa guerra, luza a conhecida prudência e valor de quem vos serve e governa, e o sempre e em toda a parte eficaz patrocínio de vossa sagrada intercessão, pela qual esperamos também, mediante a graça, o prêmio da glória. Quam mihi, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Para que, quando vier e bater à porta, logo lha abram (Lc. 12, 36).

[2] Eu me levantei para abrir ao meu amado. mas ele já se tinha ido, e era já passado a outra parte (Cânt. 5, 5 s).

[3] Para que ele seja um, como nós somos um (Jo. 17, 22).

[4]Vós sem mim não podeis fazer nada (Jo. 15, 5).

[5]Mompelher, é a grafia usada por Vieira.

[6] Ele se cingirá (Le. 12, 37).

[7] Estejam cingidos os vossos lombos (ibid. 35).

[8] Depuseram os seus vestidos aos pés de um moço que se chamava Saulo (At. 7, 57).

[9]Deixada na sua mão a capa, fugiu (Gên. 39,12).

[10] Levantar-se-á nação contra nação, e reino contra reino, e haverá epidemias (Lc. 21, 10 s).

[11]Melhor é que eu caia nas mãos do Senhor do que nas mãos dos homens (2 Rs. 24, 14).

[12]Desejou para si a morte (3 Rs. 19, 4).

[13] Abrem-se as portas.

[14] Invadem a cidade sepultada no sono e no vinho.