Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

As cinco pedras da Funda de Davi em cinco discursos morais, de Padre Antônio Vieira.


Edição de Referência:

Sermões.Vol. X Erechim: EDELBRA, 1998.

AS CINCO PEDRAS DA FUNDA DE DAVI EM CINCO DISCURSOS MORAIS

Pregados à Sereníssima Rainha da Suécia,

CRISTINA ALEXANDRA,

Em língua italiana, na Corte de Roma, traduzidos na portuguesa por ordem e aprovação do Autor

NOTÍCIA PRÉVIA

feita pelo autor, quando traduziu esta obra na língua castelhana, no ano de 1676.

ROMA, que em todos os tempos é cidade santa, no tempo santo da quaresma, se excede a si mesma. Não só os dias, senão também as noites se santificam com contínuos exercícios de piedade e devoção. A este fim, para divertimento espiritual da corte, se instituíram os vulgarmente chamados oratórios, nos quais, por modo de diálogo se representam em excelente música as histórias mais celebradas da Escritura, como o sacrifício de Abraão, as cadeias de José; a tragédia de Amã e outras de semelhante doutrina; e no meio desta suavidade, com que maravilhosamente se dispõem os corações para sazonar o útil com o doce, se ouve um breve sermão. Tais são, leitor católico, os que se oferecem nesta estampa, pregados nas terças-feiras da quaresma à Sereníssima Rainha de Suécia, na igreja de S. Salvador in Lauro, obra de seu grande protetor, o Eminentíssimo Cardeal Azolini. Assistiam a Sua Majestade no coro muitos dos senhores cardeais, e na igreja o mais ilustre e escolhido daquele primeiro teatro do mundo. O pregador só teve que admirar a paciência e humanidade grande com que, falando em língua estrangeira, e mal limada, foram perdoados os seus erros e ouvidos seus discursos, mais largos do que o permite o costume. Eu só te digo por único louvor deles, que mereceram a atenção do mais heróico e sublime juízo da nossa idade, do tesouro universal de todas as ciências divinas e humanas, e daquele espírito soberano, mais que real, em que a menor das suas façanhas é haver posto aos pés de Cristo, e seu Vigário, a coroa de uma tão dilatada e poderosa monarquia, com a maior glória da Igreja e triunfo da verdade católica, que viram os séculos passados, e celebrarão os futuros.

EXÓRDIO

Elegit quinque limpidissimos lapides de torrente: et percussitPhilisthaeum: et infixus est lapis in fronte ejus[1].

Afunda de Davi, e suas cinco pedras, argumento sucessivo destas cinco exortações, fundadas na interpretação do Cardeal Hugo. Os cinco pontos do argumento: o conhecimento de si mesmo, a dor do bem perdido, o pejo do mal cometido, o temor do castigo futuro, a esperança do gosto eterno.

Admirável foi Davi na harpa, e admirável na funda: com a harpa afugentava demônios, com a funda derrubava gigantes. Davi quer dizer manu fortis, e as suas mãos sempre foram de Davi, sempre fortes, sempre guerreiras, sempre vencedoras, porém não sempre com o mesmo impulso. Umas vezes pelejava Davi com toda a mão, e outras só com partes dela - isto é, só com os dedos: - Quidoces manus meas ad praelium, et digitos meos ad bellum[2]. - Com os dedos tocava a harpa, e fugia o demônio; com a mão disparava a funda, e caía o gigante.

Tais são hoje as duas ações, ouverdadeiramente, as duas cenas deste grande teatro, harpa e funda, coro e púlpito, música e sermão. A música, como harpa de Davi, não é só para recrear ou divertir os sentidos, senão para lançar do corpo e alma de Saul o espírito mau, que, como pai de discórdia, ainda por antipatia natural, é inimigo de toda a consonância. O sermão, como funda de Davi, não é para fazer tiro ao ar, ou espantar com o estalo: é para ferir, para derrubar, para prostrar aos pés de Cristo seus contrários, e tanto mais quanto maiores. Dividindo pois estes dois instrumentos, e dando a cada um o que lhe toca, aos cantores deixo a harpa, e para mim tomarei a funda. A funda de Davi, e as cinco pedras, serão o argumento sucessivo destas cinco exortações: Elegit quimque limpidissimos lapides de torrente[3].

Quarenta dias - como se fora uma quaresma inteira - esteve o soberbíssimo gigante em campo, provocando a desafio os exércitos de Israel, e afrontando a Deus em seu povo: temiam e tremiam todos, quando chegou o pastorzinho Davi. E que fez? Desce a um ribeiro, que lhe ficava vizinho, escolhe cinco pedras, ou cinco seixos, os mais bem torneados e lisos, mete quatro no surrão, e um na funda, planta-se animoso na estacada, e, fazendo com duas voltas tiro à cabeça do gigante, de maneira respondeu o sucesso ao valor, que lhe cravou a pedra entre as fontes: Et infixus est lapis in fronte ejus (1 Rs. 17, 49). - Oh! se Deus quisesse que as minhas palavras tivessem tanta sorte e tanta eficácia, que fizessem uma tal ferida! O gigante é o mundo, a cabeça do mundo é Roma, e contra esta grande cabeça se hão de apontar os tiros das minhas pedras.

As pedras de Davi foram tiradas e escolhidas por ele: eegit - eu não quero nem devo querer que a eleição seja minha, porque sou pouco prático do país, e não sei bastantemente quais poderão fazer brecha. Por isso seguirei um intérprete eminentíssimo, e assaz bem-informado da cabeça do gigante, o Cardeal Hugo: Quimque lapides - diz ele - sunt: cognitio sui, dolor amissi, pudor commissi, timor supplicii, Spes aeterni gaudii. - E estes mesmos serão os cinco pontos do meu argumento. Primeiro, o conhecimento de si mesmo: cognitio sui, segundo, a dor do bem perdido: dolor amissi; terceiro, o pejo do mal cometido: pudor commissi; quarto, o temor do castigo futuro: timor supplicii; quinto, e último, a esperança do gosto eterno: spes futuri gaudii.

Cada uma destas cinco considerações, verdadeiramente cristãs e próprias deste tempo santo, bastaria para lançar por terra o maior gigante, como bastou uma só pedra de Davi; mas porque o braço não é o seu, nem sabemos qual das cinco pedras foi a atirada e a que ganhou a vitória, será necessário repetir o golpe, e tentar e provar todas cinco.

Mais ainda, e levantai agora um pouco o pensamento. Nota sinaladamente o texto que as pedras que Davi tirou do rio eram limpas em sumo grau limpidissimos lapides. - E porque uma tão particular advertência não pode ser acaso, e sem mistério, não é bem que esta primorosa circunstância falte às nossas: será, pois, o meu principal cuidado apurar os argumentos, propostos de tal maneira, que tire de cada um deles o mais puro, o mais fino, e o mais heróico. Finalmente os discursos que hei de seguir serão em tudo e por tudo aquilo, nem mais nem menos, que dizem por si mesmas as palavras do tema: no número, cinco: quinque; no sólido, pedras: lapides; no fino e apurado, puríssimas: limpidissimos.

Dos meus ouvintes só uma coisa desejo. Davi cravou a pedra na testa do gigante, porque trazendo todo o corpo armado e coberto de ferro, só a testa trazia desarmada e nua. Assim vos peço, me deis as vossas, nuas de paixão, nuas de afeto, e ainda de curiosidade nuas. Comecemos.

DISCURSO I

A primeira pedra da, funda de Davi: o conhecimento de si mesmo. As obras, filhas do pensamento e da idéia, com que cada um se concebe e conhece a si mesmo. A ,força do conhecimento de si mesmo na vitória de Davi.

Elegit quinque lapides limpidissimos de torrente (1 Rs. 17, 40).

A primeira pedra da funda de Davi atirada - ó Roma - à cabeça do gigante, diz o nosso purpurado intérprete que é o conhecimento de si mesmo: Cognitio sui. - Grande pedra, e com razão a primeira, porque neste mundo racional do homem o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos. As obras são filhas dos pensamentos: no pensamento se concebem, do pensamento nascem, com o pensamento se criam, se aumentam e se aperfeiçoam; e como os filhos recebem dos pais a natureza, o sangue e o apelido, assim se recebe do pensamento todo o bem grande e louvável, que resplandece nas obras. Daqui é que, querendo louvar Davi as obras maravilhosas de Deus, fez o panegírico aos seus pensamentos: Multa, fecisti tu, Domini Deus meus, mirabilia tua; et cogitationibus tuis non est qui similis sit tibi[4]. - Sendo, pois, os pensamentos e conceitos na mente do homem tantos e tão diversos, justamente se pode duvidar de qual ou quais deles sejam filhas as obras. Todos comumente cuidam que as obras são filhas do pensamento ou idéias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da idéia, com que cada um se concebe e conhece a si mesmo.

A primeira coisa, e a maior que jamais se obrou, não no mundo, senão antes do mundo, foi a geração eterna do Verbo; e como foi, não feita, mas produzida, uma obra tão grande, tão imensa, tão portentosa e incompreensível? Não de outra maneira que do conhecimento de si mesmo. Conheceu Deus o seu ser, a sua grandeza, a sua infinidade, a sua onipotência; e o parto que saiu deste imenso conceito de si mesmo foi outro ele; outro mesmo foi e é o Verbo, tão grande, tão imenso, tão infinito, tão onipotente, tão Deus como o mesmo Pai. A imagem mais perfeita, a proporção mais ajustada, e medida mais igual da obra, é o conhecimento de si mesmo em quem a faz. Quando Apeles pintava Alexandre, tinha na mente a Alexandre; quando Alexandre conquistava o mundo, tinha na mente a si mesmo. Na idéia de Apeles cabia Alexandre em um quadro; na idéia de si mesmo não cabia Alexandre no mundo: por isso o conquistou todo.

Quando Davi se pôs em campo contra o Golias, Saul desconfiava da vitória, e Davi não. E por quê? Porque Saul media a Davi com o gigante, e Davi media-se a si consigo mesmo: vede o que respondeu a el-rei: Leonem et ursum interfeci ego: erit igitur et Philisthaeus hic quasi unus ex eis[5]. - Olha, moço - dizia Saul a Davi, apontando para o gigante - olha que aquele é mais que homem, e tu menino; aquele armado, e tu sem armas; aquele exercitado em batalhas, e tu sem exercício de guerra; olha e vê o que fazes, e o que empreendes. - Já o tenho visto e considerado - responde Davi - porque eu não faço comparação de mim ao gigante, senão de mim a mim: Leonem et ursum interfeci ego. - Se Golias é gigante, eu sou Davi; e quem tem desqueixado ursos e leões, também matará filisteus. O força do conhecimento de si mesmo! Considerai de uma parte todo o exército de Israel, da outra só Davi, e o gigante em meio. Ali teme o rei, temem os capitães, temem os soldados; aqui não teme Davi, antes zomba do inimigo, e não por outro motivo, senão porque eles e ele se conheciam a si mesmos: eles atônitos e tremendo, porque se conheciam a si, e à sua fraqueza; ele animoso e risonho, porque se conhecia a si e ao seu valor. No pensamento daqueles triunfava o gigante, no pensamento deste triunfava Davi; e por isso triunfou com as mãos, porque já havia triunfado com os pensamentos: das obras grandes ou pequenas; das ações generosas ouvis, cada um traz na própria cabeça a verdadeira medida. Vede-o em quatro cabeças unidas e diferentes.

Aqueles animais do carro de Ezequiel, cada um tinha quatro cabeças em um só corpo: cabeça de homem, cabeça de águia, cabeça de leão, cabeça de boi: e que farão, ou que fariam no mesmo corpo quatro cabeças com quatro fantasias tão diversas? Eu sou homem, eu sou águia, eu sou leão, eu sou boi: e que posso eu fazer, ou que se pode esperar que eu faça? Quê? Que cada qual daquelas cabeças, ainda que no mesmo corpo, produzam efeitos diferentes, e que todas saiam e se distingam com ações propriamente suas, e proporcionadas à fantasia de cada uma. Assim foi: a águia saiu com asas: Pennae eorum extensae desuper[6]- o homem saiu com mãos: Manus hominis sub pennis[7] - o boi saiu com pés largos e fendidos: Planta pedis eorum quasi planta pedis vituli[8] - o leão saiu com um coração pronto e animoso, que não se via de fora, mas movia-se por dentro: Ubi erat impetus spiritus, illuc gradiebantur[9]. - Assim foi, assim é, e assim será sempre. O coração, os pés, as mãos, as asas, tudo vem da cabeça, que é o molde da própria fantasia. Se esta for de homem, as ações serão racionais; se de águia, altivas; se de leão, generosas; se de boi, vis.

§II

De que modo é possível declarar ou definir ao homem, composto pouco menos que quimérico, o útil conhecimento de si mesmo? Qual será no homem o limpo conhecimento de si mesmo? Por que o homem, visto pela parte do corpo, se ignora, e visto ou considerado pela parte da alma, se conhece? A prova de que o homem é a alma na primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios, e no livro de Jó.

Sendo, pois, o conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si, uma força tão poderosa sobre as próprias ações, e sendo também o homem um composto pouco menos que quimérico, formado de duas partes tão distantes, como lodo e divindade, ou quando menos um sopro dela, eu não sei na verdade como possa declarar ou definir ao homem o útil conhecimento de si mesmo. Se lhe digo que se conheça pela parte inferior e terrena, temo que um conceito tão baixo produza ações vis, como em Adão; se pela parte superior e tão alta, temo que a mesma alteza de seu conhecimento degenere em inchação e soberba, como em Lúcifer. Aquele caiu porque não conheceu a sua nobreza: Homo, cum in honore esset, non intellexit[10]. - Este caiu, porque a conheceu: Perdidisti sapientiam tuam in decore tuo[11]. - E entre um e outro perigo, não sei qual dos dois precipícios seja o maior.

Dir-me-ão que posso, e ainda devo seguir, como mais seguro, o exemplo dos que foram diante, e que, considerando bem as suas pisadas, acharei que todas - como as que mostrou Daniel ao rei idólatra[12] - nos deixaram estampadas em pó e cinza. Abraão: Loquar ad Dominum meum, cum sim pulvis et cinis[13]. - O Eclesiástico: Quid superbit terra et cinis[14]? - Jó, tão ensinado em uma e outra fortuna: Comparatus sum luto, et assimilatus sum favillae et cineri[15]- e, o que é mais, a mesma Igreja, no primeiro dia deste tempo santo,com palavras tiradas da boca de Deus: Pulvis es, et in pulverem reverteris[16] Confesso, senhores, que este é o caminho real, batido e plano, por onde guiaram ao conhecimento de si mesmo os que melhor o conheceram, e se conheceram, cujas pegadas eu beijo e venero quanto merecem. Não posso, porém, deixar de dizer hoje que este modo de conhecimento próprio, posto que tão louvável e pio, não se acomoda quanto eu quisera, nem com o meu juízo, nem com o meu auditório. E muito menos com o meu argumento: com o meu juízo não, porque eu faço um conceito mui alto do homem. E este conhecimento é mui baixo; com o meu auditório também não, porque o meu auditório é o mais nobre, o mais generoso e o mais heróico, e este conhecimento é todo vil; nem, finalmente, com o meu argumento, porque o meu argumento, conforme ao texto, é obrigado a ser mui limpo: Limpidissimos lapides - e este conhecimento não se pode sacudir do pó nem lavar-se do lodo. Qual será logo no homem o limpo conhecimento de si mesmo? Digo que é conhecer e persuadir-se cada um que ele é a sua alma. O pó, o lodo, o corpo, não é meu; eu sou a minha alma: este é o verdadeiro, o limpo e o heróico conhecimento de si mesmo: o heróico, porque se conhece o homem pela parte mais sublime; o limpo, porque se separa totalmente de tudo o que é terra; o verdadeiro, porque, ainda que o homem verdadeiramente é composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece. Não sei se saberei declarar-me. Assim como um espelho se compõe de aço e cristal, assim o homem se compõe de corpo e alma; e que sucederia a quem se visse, ou por um ou por outro lado? Quem olha para o espelho pela parte do aço vê o aço, mas não se vê a si; quem olha pela parte do cristal, vê ao cristal, e no cristal vê-se a si mesmo. Assim neste espelho da natureza humana: quem o olha pela parte térrea e opaca, que é o corpo, vê o corpo, mas não vê o homem; quem o olha pela parte celeste e luminosa, que é a alma, vê a alma, e na alma vê e conhece ao homem, porque vê e conhece o que ele é, e o que o distingue e enobrece sobre todas as criaturas da terra.

Agora se entenderá uma difícil conseqüência daquele lugar dos Cantares, tão escuro como sabido: Si ignoras te, egredere (Cânt. 1, 7): Homem, se te ignoras, se te não conheces, sai fora. - Eu bem sei que a causa de muitas ignorâncias é o não sair: o homem tanto sabe quanto sai, e aqueles que não saíram não sei como podem saber, se não for por ciência infusa, a qual ainda não basta. Das três Pessoas divinas, só aquela que saiu foi a Sabedoria: Exivi a Patre[17] - e, saindo, com três ciências - a divina, a beata, e a infusa - ainda adquiriu e aprendeu a experimental, que é a quarta: Didicit ex üs, quae passus est[18]. - Não é logo muito que ao homem que se ignora se lhe mande que saia: Si ignoras te, egredere. - Mas, donde há de sair? Do corpo - diz Santo Ambrósio: De corporalibus vinculis, de carnalibus integumentis[19]. - Enquanto o homem não sai do corpo, ignora-se, e só quando sai dele se conhece. Os santos dizem que, para que o homem se conheça, há de entrar em si mesmo; e este sair de si é entrar em si, porque é sair do exterior do homem, que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma. Há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista: o aço serve à vista, porque rebate e lança de si as espécies de quem se vê ao espelho; de maneira que o mesmo que impede o conhecimento direto serve ao conhecimento reflexo. Assim é no homem o conhecimento de si mesmo: se pára no corpo, ignora-se; se reflete sobre a alma, conhece-se; saia logo do corpo, e sacuda-se do pó, se quer conhecer-se: Si ignoras te, egredere.

E se alguém me perguntar a razão desta filosofia, por que o homem visto pela parte do corpo se ignora, e visto ou considerado pela parte da alma se conhece, a razão clara e fácil - posto que pareça injuriosa - é porque quem vê o corpo vê um animal, quem vê a alma vê ao homem. Não é distinção ou palavras minhas, antes as palavras e sentido, e a distinção, tudo é da Escritura divina. Estava Daniel no lago dos leões, e, quando depois escreveu a sua história, diz que todos os dias se davam ali a dois leões dois corpos: Dabantur eis duo corpora quotidie (Dan. 14, 31). - Passemos agora de Babilônia a Canaã. Tratando ali el-rei Bará da repartição de certos despojos, disse a Abraão que lhe desse só as almas, e que o mais lhe ficasse: Da mihi animas, caetera toile tibi[20]. - Já temos no texto sagrado almas e corpos; mas que corpos e que almas eram estas? O mesmo texto o diz. Os corpos eram os animais, que cada dia se davam por pasto aos leões; as almas eram os homens, que Abraão vencedor tinha libertado do cativeiro dos inimigos, e não só no sentimento comum do juízo humano, senão na propriedade da História Sagrada, os animais chamam-se corpos, e os homens almas, porque o caráter que distingue o animal do homem, e o homem do animal, é que o animal é corpo, e o homem alma. Verdade é que o homem e o animal, cada um por seu modo, é composto de alma e corpo; mas como a alma do animal é corpórea, e a alma do homem espiritual, o animal, ainda que tenha alma, é corpo: Dabantur eis duo corpora - e o homem, ainda que tenha corpo, é alma: Da mihi animas.

E por que não pareça que me fundo só em palavras, vamos ao fato, e seja a experiência em uma das maiores almas, e em um dos maiores homens que houve nem haverá, S. Paulo: Scio hominem in Christo, sive incorpore, sive extra corpus nescio, Deus scit; scio hujusmodi hominem, quoniam raptus est in paradisum (2 Cor. 12, 2 s): Eu sei um homem - diz S. Paulo, falando de si mesmo - o qual foi arrebatado e levado ao céu; mas, se este homem foi levado ao céu em corpo, ou sem corpo, isso não o sei eu, sabe-o Deus. - Até aqui o apóstolo; e creio que ninguém haverá deixado de reparar muito no que diz, e no modo com que o diz. Duas coisas diz S. Paulo, uma que afirma, outra que duvida; uma que sabe, outra que não sabe. Diz que sabe que aquele homem foi levado ao céu, e diz que não sabe se foi levado em corpo ou fora do corpo: Sive in corpore, sive extra corpus nescio. -Pois, se duvida, e não sabe se o corpo foi ou não foi levado ao céu, como diz e afirma que sabe que foi levado ao céu o homem: Scio hujusmodi hominem, quoniam raptus est in paradisum? - Não sabe que fosse levado o corpo, e sabe que foi levado o homem? Sim, porque sabia Paulo certissimamente, e sem dúvida nenhuma, que a sua alma fora levada ao céu, ainda que ignorava se fora unida ou apartada do corpo; e, uma vez que sabia que foi levada a alma, sabia que foi levado o homem, porque o homem é a alma: se a alma foi levada in corpore, era homem com corpo; se foi levada extra corpus, era homem sem corpo; mas, ou com corpo ou sem corpo, sempre homem, e o mesmo homem: Scio hujusmodi hominem.

Se perguntarmos a Jó que coisa é o corpo, responderá que é um vestido do homem: Pelle et carnibus vestisti me[21] - e como o homem vestido, e não vestido, é o mesmo homem, assim Paulo, ou em corpo, ou sem corpo, era o mesmo Paulo. Quando Elias foi arrebatado ao céu, ao princípio levava a sua capa aos ombros, depois ficou sem capa, porque a lançou a Eliseu; do mesmo modo São Paulo no seu rapto: se foi in corpore, era Elias com capa; se foi extra corpus, era Elias sem capa; mas como Elias, ou com capa, ou sem capa, era o mesmo Elias, assim Paulo, ou com corpo, ou sem corpo, era o mesmo Paulo e o mesmo homem: Scio hujusmodi hominem, sive in corpore, sive extra corpus, quoniam raptus est in paradisum (2 Cor. 12, 3).

§ III

A filosofia de Platão e a doutrina de São Paulo. Se Paulo e Platão dizem o mesmo, como é verdadeira a teologia de Paulo, e falsa e herética a filosofia de Platão? Jeremias, e a diferença entre alma e corpo.

Provado assim o meu argumento, e tão bem recebida, como vejo, a prova, ainda me parece ouço argüir algum escrupuloso douto, que esta doutrina de ser o homem alma, quando menos, sabe a seita e erro de Platão, e que a sua mesma prova, se a interpretação é verdadeira, faz também platônico a S. Paulo; porém, eu estou costumado a temer tão pouco semelhantes instâncias, que para que esta mereça a resposta, quero primeiro dar-lhe novas forças, e essas tiradas do mesmo S. Paulo. Os platônicos diziam que o corpo não é outra coisa que um vestido tecido de carne e ossos, um vaso de barro, uma casa portátil, e um servo, ou escravo do homem, não obediente, mas rebelde; e tudo isto diz também S. Paulo: diz, que é vestido: Nolumus expoliari, sed supervestiri[22] - diz que é vaso de barro: Habemus thesaurum in vasis fictilibus[23] - diz que é casa portátil: In hoc tabernaculo ingemiscimus[24] - diz, finalmente, que é escravo: Castigo corpus meum, et in servitutem redigo[25]. - E para que se veja quanto o apóstolo distingue o corpo do homem, e de si mesmo, exclama: Infelix ego homo, quis me liberabit de corpore mortis hujus (Rom. 7, 74)?

Ai de mim, homem infeliz! Quem me livrará deste corpo mortal: Me de corpore? - Diz: a mim do corpo; logo, Paulo não é corpo, senão uma coisa o corpo, e outra Paulo, como o cárcere, e o que está preso nele? Pois, se Paulo e Platão dizem o mesmo, como é verdadeira e divina a teologia de Paulo, e falsa e herética a filosofia de Platão?

Aqui vereis como as mesmas proposições católicas e divinas podem parecer erros, se se interpretarem contra a mente de quem as diz, ou por ignorância, ou por malícia: crer e entender que o corpo não é parte do homem, é erro de Platão; estimar o corpo e tratar o corpo como se não fora parte do homem, é teologia de S. Paulo, e sabedoria do terceiro céu. Isto é o que ele disse, e o que fez sempre: tratava São Paulo o seu corpo, como se não fora parte sua, senão um escravo rebelde, e como tal o castigava e domava a açoites: Castigo corpus meum, et in servitutem redigo - estimava o seu corpo, não como parte sua, senão como um cárcere penoso, escuro e hediondo, mais terrível que a mesma morte, e como tal suspirava por se desapegar e livrar-se dele: Quis me liberabit de corpore mortis hujus? - Trazia o seu corpo às costas, não como parte própria, que não pesa, mas como uma carga insuportável, e uma casa portátil pesadíssima: e como tal não morava nela, mas gemia debaixo dela: In hoc tabemaculo ingemiscimus. - Andava cercado e coberto do seu corpo, como de vestido, que não é parte nem carne própria, senão lã e fábrica alheia: e assim as afrontas e feridas que recebia nele levava-as tão levemente, como se só lhe tocaram na roupa, repreendendo aos que não querem despir-se do mesmo corpo, e das suas paixões e apetites: Nolumus expoliari, sed supervestiri. - Finalmente, estimava só a alma, como tesouro próprio e único; e do corpo, como se não fora seu, fazia tão pouco caso, como de um vaso de barro vil e frágil: Habemus thesaurum in vasis fictilibus. - Esta é a doutrina de S. Paulo, esta a minha.

Nem me diga a gramática crítica de algum teólogo, que todo este discurso se resolve em uma sinédoque do apóstolo, como se chamasse alma ao homem, tomando a parte pelo todo. Este jogo de palavras não é de matéria tão grave e tão séria. Quando S. Paulo - e eu com ele - chama homem à alma, não fala da parte do homem, senão de todo o homem; mas não do homem físico e natural, senão do homem moral, a quem ele queria instruir e formar, bem assim como em outro lugar distingue no mesmo homem dois homens[26]; a constituição do homem moral é mui diversa da composição do homem natural: o homem natural compõe-se de alma e corpo; o homem moral constitui-se ou consiste só na alma. De maneira que, para formar o homem natural, há-se de unir a alma ao corpo; e para formar ou reformar o homem moral, há-se de separar a alma do corpo. Isto é o que digo, e o que quisera persuadir; e não me creais a mim, senão a Deus, por boca de Jeremias: ouvi um grande texto.[27]

Fala Jeremias da diferença da alma e corpo, como notou em muitos lugares São Crisóstomo[28], e, instruindo o profeta ao bom pregador, lhe diz assim, em nome e pessoa de Deus: Si separaveris pretiosum a viii, quasi os meum eris (Jer. 15, 19): Tu, que tens ofício de ensinar homens, se separares o precioso do vil - isto é, a alma do corpo - será a tua boca como a minha. - Todos estais vendo a dificuldade desta sentença. Que fez a boca de Deus com o corpo e alma do homem? Jazia no Campo Damasceno aquela estátua de barro, que depois se chamou corpo de Adão. Chegou Deus a ela, assoprou-a, e, com a respiração de sua boca, lhe infundiu e uniu a alma, e, por meio desta união da alma ao corpo, foi feito e formado o homem: Inspiravit in fatiem ejus spiraculum vitae, et factus est homo in animam viventem(28).

Pois, se a boca de Deus fez e deu ser ao homem, unindo o precioso ao vil, isto é, a alma ao corpo, como diz o mesmo Deus que será como a sua boca, não o que unir, senão o que separar a alma do corpo, e o precioso do vil: Si separaveris pretiosum a viii, quasi os meum eris[29])? - A razão e diferença é porque falava aqui Deus da formação, não do homem natural, senão do homem moral: aquela é composta, esta é simples; aquela consiste na união do precioso com o vil, e do corpo com a alma, esta na separação; aquela é alma e corpo, esta é só alma; e desta diferença de ser a ser, e de homem a homem, nasce a semelhança da boca de Deus com a boca do pregador: como instrumento da graça, forma ao homem separando a alma do corpo; por isso lhe diz Deus que será como a sua boca, se dividir o que ele uniu, e separar o precioso do vil: Si separaveris pretiosum a vigi, quasi os meum eris.

§ IV

O nobre, o limpo, o heróico e verdadeiro conhecimento de si mesmo: Eu sou a minha alma. Por que não fará a razão desde logo o que a morte há de fazer depois? Os grandes heróis da Escritura, e o conceito e estimação, que faziam de si mesmos. Os benefícios do conhecimento e memória do pó da parte de Deus. Por que razão as maiores e mais heróicas ações de Cristo foram as do fim de sua vida. O gigante Golfas, e o colosso ou estátua de Nabucodonosor.

Senhores meus, separemos o precioso do vil: separemos, como S. Paulo, ao homem do vestido, ao senhor do escravo, ao morador da casa, ao preso do cárcere, ao tesouro do barro, enfim, ao corpo da alma; entendamos todos, e diga-se cada um a si mesmo: Eu sou a minha alma: este é o nobre, o limpo, o heróico e verdadeiro conhecimento de si mesmo. Se com verdade me dizem que sou pó, porque o meu corpo foi pó em Adão, e há de ser pó na sepultura, ainda que de presente o não seja, por que não direi eu, com igual e maior verdade, que sou alma, porque o fui, porque o hei de ser, e porque o sou? Separemos logo o precioso do vil, e vivamos como almas separadas. As nossas almas, todos sabem que têm dois estados: um nesta vida, de alma unida ao corpo; outro depois da morte, que é e se chama de alma separada. Este segundo estado é muito mais perfeito, porque, livre a alma dos embaraços e dependências do corpo, obra com outras espécies, com outra luz, com outra liberdade, com outra nobreza; enfim, como desatada e descarregada daquele peso e daquela vil companhia, que sempre a faz tirar ao baixo; se a morte há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade? Por que não fará a razão desde logo o que a morte há de fazer depois? Oh! que vida! Oh! que obras seriam as nossas tão outras do que são! Por que nos parece que faziam os santos obras tão maravilhosas, senão porque viviam como almas separadas, unidas ao corpo, mas independentes do corpo: In carne, non secundum carnem[30] ? - Por isso eram neles tão heróicas, tão fidalgas, e tão limpas as ações, que em nós são tão cheias, ou totalmente de lodo, ou quando menos de pó.

Eu não pretendo negar ao pó a piedade e o útil de seu conhecimento; só quero que nos estimemos pela parte mais nobre, para que também o sejam as nossas obras, pois são filhas - como dissemos - da estimação e conceito que cada um faz de si mesmo. Todas as vezes que Deus quis que os homens fizessem coisas grandes, mudou-lhes os conceitos: o conceito baixo e humilde que tinham de si, em conceitos altos e generosos. Quis Deus que Gedeão triunfasse dos exércitos inumeráveis dos madianitas, e que fez? Quando ele tinha tão baixo conceito de si, que estava prevenindo a fugida, mandou-lhe dizer Deus por um anjo que era o mais valente de todos os homens: Dominus tecum, virorum fortissime[31]. - Estime-se fortíssimo o que se tem por fraco, e fará façanhas tão incríveis como as de Gedeão. Quis Deus que Jeremias mudasse e tirasse coroas, fizesse e desfizesse remos, derrubasse e plantasse monarquias: e que fez também? Quando ele tinha tão desigual opinião de si, que se estimava por um menino, e como tal se escusava, repreendeu-lhe o mesmo Deus o encolhimento e covardia daquele conceito, e disse-lhe: Noli dicere: Puer sum; quoniam ad omnia quae mittam te ibis[32]. - Não pode fazer nem empreender obras grandes quem se conhece e se estima pequeno: se isto parece humildade, é bastarda; se aquilo parece soberba, é santa. - Humilis ad merita, superbus ad vitia[33] - disse Eusébio Emisseno, falando de S. Máximo: não é soberba estimar-se para não fazer baixezas, descuidar-se do pó para se lembrar de si, e conhecer-se alma, para obrar como anjo.

Uma só coisa acho de bem na consideração e conhecimento do pó: ser motivo e incentivo para o perdão, como o foi para a fraqueza. Por que perdoou Deus ao homem, e não ao anjo? Pela fragilidade e miséria do nosso barro: Quoniam ipse cognovit figmentum nostrum, recordatus est quoniam pulvis sumus (SI. 102, 14): Conheceu Deus - diz o profeta - a matéria frágil do nosso corpo, e lembrou-se que somos pó. - Notai muito aquele ipse cognovit, et recordatus est. - O conhecimento e memória do pó é bom da parte de Deus, para o perdão de nossas fraquezas; mas da nossa parte é melhor o esquecimento do pó, e o conhecimento da alma, para incentivo do valor e das obras heróicas e generosas. Do corpo foi princípio e é fim o pó; da alma foi princípio e é fim Deus: e como as obras nascem de seus princípios e caminham a seus fins, só obrará heroicamente quem trouxer diante dos olhos do seu conhecimento, não o vil princípio e fim de seu corpo, senão o princípio e fim altíssimo de sua alma. As maiores e mais heróicas obras, que jamais se obraram no mundo, foram as de Cristo; e, entre todas as obras de Cristo, as maiores e mais, heróicas foram as do fim de sua vida: pôs-se em campo Cristo naquela última batalha, só, e desarmado, contra o mundo, contra a morte, contra o pecado, contra o inferno; e só, e despido venceu em um dia, e triunfou gloriosamente de tudo; mas com que conhecimento de si mesmo vos parece que entrou aquele fortíssimo capitão em um tão estranho e dificultoso conflito? Disse-o e notou-o, com particular advertência, S. João: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit[34]: Sabendo - diz - que o seu princípio e o seu fim era Deus. - Notai. Em Cristo, como verdadeiro filho de Adão, não só concorria este princípio e fim nobilíssimo, que é Deus, pela parte da alma, senão também o outro princípio e fim da extrema baixeza, que é o pó, pela parte do corpo: e naquele termo preciso, em que ia a morrer, parece que devia levar mais diante dos olhos o princípio e fim do pó, como em seu nome havia dito Davi: Et in pulverem mortis deduxisti me[35]. - Pois, por que não entrou Cristo na batalha com este pensamento, e com este conhecimento, senão com o contrário? Porque as ações últimas de sua vida convinha que fossem, e haviam de ser as mais gloriosas e as mais heróicas; e para obrar gloriosa e heroicamente enquanto homem, esqueceu-se totalmente o seu generoso espírito do princípio e fim do mesmo corpo, em que padecia, e só cuidava e tinha sempre firme na mente o princípio e fim da sua alma, donde veio, e para onde ia: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit (Jo. 13, 3).

Este sciens, ó Roma, este sciens, e este alto conhecimento de nós mesmos, ó senhores, é aquele que eu vos prego hoje: não o princípio e fim do corpo, que é terra, senão o princípio e fim da alma, que é Deus; o corpo saiu da terra e vai para a terra: Terra es, et in terram ibis[36] - a alma saiu de Deus, e vai para Deus: A Deo exivit, et ad Deum vadit. - E este é o conhecimento que devemos trazer sempre no pensamento, e revolver altamente na memória, Vede quanto vai de princípio a princípio, de fim a fim, e de conhecimento a conhecimento. Entre bem este sciens, e penetre a cabeça do nosso gigante; e, ainda que ele, como a estátua ou colosso de Nabuco, tenha os pés de barro, eu vos prometo que, uma vez entrado de um tão alto conceito de si mesmo, este será bastante para mudá-lo, e transformá-lo todo de pés à cabeça. O colosso, ou a estátua de Nabuco, teve duas transformações, não notadas, mas notáveis: uma, com que se transformou toda em pó; outra com que se transformou toda em ouro. Transformou-se toda em pó, quando a pedra caída do monte lhe tocou os pés de barro, e a desfez; transformou-se toda em ouro, quando, depois de desfeita, a mandou Nabuco fabricar de novo, não dos mesmos metais vários de que era composta, senão toda de ouro: Fecit statuam auream[37]. - E qual foi a causa desta segunda transformação, tanto mais nobre e tanto mais rica? Não foi outra, que um novo conhecimento que teve Nabuco, e um alto conceito que fez de si mesmo. Interpretou Daniel a Nabuco os membros e metais da estátua, e disse-lhe que ele era a cabeça de ouro: Tu es ergo caput aureum[38]. - E logo que Nabuco teve este tão novo e alto conhecimento de si mesmo, logo que conheceu que ele era a cabeça de ouro, no mesmo ponto toda a estátua foi de ouro: Fecit statuam auream. - O barro dos pés transformou-a toda em pó, o ouro da cabeça transformou-a toda em ouro.

1 Espíritos romanos e generosos: se quereis estátuas no Capitólio, ou deste, ou do outro mundo, sabei que na própria cabeça tendes a mina dos metais; se vos conhecerdes como corpo, toda a estátua será de pó; se vos conhecerdes como alma, toda a estátua será de ouro; conhecei-vos altamente, e isto basta.

§V

O conhecimento da alma. O que faz Deus quando acha homens que não são mais que corpo? Advertência final.

Tenho acabado o meu discurso, e só vejo me poderão dizer contra ele, que pus o conhecimento de si mesmo em uma coisa que se não conhece; é verdade que nós nesta vida não conhecemos a nossa alma, como é em si mesma, ou quidditative, como falam as escolas; mas porque a alma se não conhece a si, por isso mesmo se pode conhecer melhor: não quis Deus que o homem tivesse próprias espécies de sua alma, porque pertencia à dignidade de uma criatura tão nobre, e tão aparentada com Deus, que assim como Deus nesta vida se conhece por fé, assim se conhece por fé também a alma. Não digo que a alma se não conhece naturalmente nesta vida, mas quando se conhece naturalmente é também como Deus pelos efeitos: conhecer a Deus e a alma em seu próprio ser e substância, é felicidade e ciência reservada para a outra vida, e a razão é porque, como a alma é uma imagem perfeitíssima de Deus, só à vista do original se pode conhecer perfeitamente a cópia. Oh! grande perfeição da alma, que não se haja de ver em outro espelho que no da face de Deus!

Andai agora a estimar o corpo, a servir o corpo, a admirar o corpo, a idolatrar o corpo! Mas o corpo se estima, se serve, se admira, se idolatra, porque, devendo o homem ser alma, as almas hão degenerado a ser corpo. Não era todo corpo a alma daquele que, falando com a sua, lhe dizia: Anima mea, habes multa bona posita in annos muitos: requiesce, comede, bibe et epulare (Lc. 12, A 9): Alma, tens muitos bens, e para muitos anos: descansa, come, bebe, regala-te? - A alma que havia de comer e beber, vede se estava transformada em corpo; mas não tardou muito Deus em vingar a nobreza da alma de uma injúria tão brutal: Stulte, hac nocte repetunt animam tuam a te[39]. - Na mesma noite lhe tirou Deus a alma vil e degenerada, para que só ficasse o corpo de quem todo era corpo.

Visitando uma noite Alexandre os seus arraiais, achou uma sentinela dormindo, e matou-a; e, perguntado pela causa, respondeu: Qualem inverti, talem reliqui: Qual a achei, tal a deixei. - Assim faz Deus quando acha homens que não são mais que corpo: para os deixar quais os acha, tira-lhes a alma e a vida subitamente: Hac nocte. - Oh! quanto se pode temer que seja esta a causa de tantas mortes repentinas, quantas se vêem nestes dias, e não se choram quanto devem! E por que não se defenda alguém com dizer que aquele exemplo foi singular, lembrai-vos do dilúvio, e da causa dele. Afogou Deus o mundo, tirando a vida a todo o gênero humano de um golpe; e qual cuidais que foi a razão? O mesmo Deus, que deu a sentença, declarou a culpa: Non permanebit spiritus meus in homine, quia caro est[40]. - Porque não havia na corrupção daquele tempo homem que tivesse alma: todos e tudo era corpo: Quia caro est; mais diz ainda, e pior soa caro que corpo: queira Deus que não seja o nosso século hoje, como foi então o de Noé; tem chegado o mundo a tão infeliz estado nesta matéria, que se a palavra de Deus e o arco do céu nos não segurara, se podia temer outro dilúvio. Mas Deus pode fazer dilúvios com todos os elementos: no ar há pestes, no fogo incêndios, na terra terremotos, que já começam a sorver cidades inteiras, não falando nos dilúvios de sangue com que o inimigo comum e vizinho, e as veias dos mesmos mortos nos ameaçam[41].

Almas, almas, vivei como almas: se conheceis que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite; se conheceis que é imortal, desprezai tudo aquilo que morre e acaba; se conheceis que é celeste, pisai e metei debaixo dos pés tudo o que é terra. Finalmente, se conheceis que é divina, amai, servi, louvai e aspirai só a Deus: este é o verdadeiro conhecimento de si mesmo, e esta a primeira pedra do nosso Davi; mas se ela não bastar, ainda lhe ficam no surrão outras quatro.

DISCURSO II

§1

A segunda pedra da funda de Davi: a dor do bem perdido. Que bens são aqueles que se padecem? Que bens intoleráveis há nesta vida, senão os bens perdidos?

Elegit quinque limpidissimos lapides de torrente[42].

A mão de Davi não perde tiro, e se a minha o perde na pedra que hoje tira, sem dúvida se perderá um grande bem, porque é do bem perdido. Disse com alto sentimento Tertuliano, que nesta vida não só se padecem os males, senão também os bens; e que, assim como há males que excedem a paciência, assim há bens intoleráveis: Quorumdam bonorum, sicut et malorum, intolerabilis patientia est[43]. - E que bens, pergunto eu, são aqueles que se padecem? Que bens há nesta vida intoleráveis, senão os bens perdidos? Os bens que já foram, e se acabaram, e que não nos deixaram de si outra prenda, que a memória e dor. Esta é a segunda pedra da funda de Davi, pedra em tudo proporcionada à cabeça vã do gigante, quero dizer, a ti, ó Roma, tão perdida, hoje mais que nunca, pelos bens que se perdem. Os bens deste mundo, isto é, os falsos bens, adquirem-se com trabalhos, perdem-se com dor: porém a dor é castigo, e não remédio; os bens do céu, isto é, os verdadeiros bens, também se podem perder; porém se te lastima e dói tê-los perdido, a mesma dor da perda é remédio dela. A ferida causa dor, e a dor sara a ferida: tal é a virtude da pedra de hoje, se eu acerto a empregar bem o tiro, e tal também a matéria nobilíssima, que para o discurso ou meditação desta noite nos tem assinado o nosso grande intérprete: Dolor amissi: a dor do bem perdido. Vós, os que tendes perdido algum bem, e aqueles principalmente que têm perdido o sumo bem, se quereis saber o motivo e remédio de vossa dor, e doer-vos heróica e ditosamente, dai-me atenção.

§II

A matéria do presente discurso: dor, perda e bem. A verdadeira causa pela qual o bem perdido, sendo um e o mesmo, ou verdadeiramente é maior, ou sem erro se julga tal. A notável resolução do bom pastor. Qual é ou qual pode ser a razão por que a ovelhinha perdida, e qualquer outro bem perdido, se estima tanto mais depois que se perde que quando se possuía? Adão e o conhecimento do bem. Jó e os benefícios da fortuna. Como mostrou Deus a Moisés os bens de sua glória.

Toda a matéria presente se resolve em três palavras: dor, perda, e bem; porém, a complicação destes mesmos termos é tal, que havendo de tratar da dor do bem perdido, o primeiro perdido sou eu, porque, quando quero combinar a dor com a perda, a perda com o bem, e o bem com a dor, me acho cercado por todas as partes, e preso sem saída, dentro de um círculo por uma parte inevitável, e por outra incrível. Todos crêem que a dor é a medida da perda, e a perda a medida do bem; sendo, porém, certo, como é, que o bem possuído se estima menos, e o mesmo bem perdido se estima mais, daqui se segue que a perda cresce e faz maior o bem, e que o bem perdido, feito maior, faz também maior a dor. De maneira que, caminhando do bem para a perda, e da perda para a dor, o bem, a perda e a dor são menores; porém, tornando da perda para o bem, e do bem perdido para a dor, a dor, a perda e o bem são maiores; e tudo isto, sendo o bem o mesmo, e não diverso. Já vedes a força da dificuldade, que não pode ser mais clara à experiência, nem mais escura à razão. Porém, para sair deste labirinto tão intrincado, a mesma escuridade da razão nos dará a luz, e a mesma dificuldade da experiência o fio: oh! se eu acertara a descobrir a verdadeira causa, pela qual o bem perdido, sendo um e o mesmo, ou verdadeiramente é maior, ou sem erro se julga tal! Vamos à Escritura.

Naquela famosa parábola, que refere S. Lucas no cap. 15, diz Cristo que um bom pastor tinha cem ovelhas, e que tendo perdido uma, deixou as noventa e nove no deserto, e foi buscar a ovelha perdida: Relictis nonaginta novem in deserto, vadit ad eam quae perierat (Le. 15, 4). - Notável resolução de pastor! - exclamam neste caso dois grandes pastores, Crisóstomo e Agostinho. Não vê nem repara este pastor no muito que deixa e no pouco que busca: deixa noventa e nove ovelhas expostas à fome dos lobos, à cobiça dos ladrões, ao perigo de derramar-se e perder-se todo o rebanho e isto por buscar e achar em dúvida uma só? Sim. Não vedes que esta ovelha, ainda que fosse uma só, era perdida: Vadit ad eam quae perierat? - Logo, não é muito que arrisque todas por ela, e que estime tanto esta só, como o rebanho: Grex una charior non erat[44] - diz Tertuliano. Se antes de perder-se esta ovelha, perguntáramos ao pastor quanto a estimava, responderia que como qualquer das outras; porém, depois de perdida, antepôs o preço e cuidado dela ao perigo e ao mesmo preço de todas. Antes de perder-se, estimava aquela uma como uma; depois de perdida estimou aquela só como todas: tão certo e tão natural é no homem dar maior valor às coisas da perda que na posse, e estimá-las mais incomparavelmente depois de perdidas que antes de perder-se.

Esta é a experiência clara, confirmada com o exemplo de Cristo; porém a razão, que a faz escura, ainda não aparece. Qual é logo, ou qual pode ser a razão por que a ovelhinha perdida, e qualquer outro bem perdido, se estima tanto mais depois que se perde, que quando se possuía? Dizem comumente que a razão desta maior estimação é a dor, porque o bem possuído é objeto do gosto, e o bem perdido é objeto da dor, e a dor move o sentido mais eficazmente que o gosto. A filosofia é verdadeira, porém a resposta falsa. - É verdade que a paixão da dor move mais forte e mais eficazmente o sentido que o afeto do gosto; mas que a razão ou motivo da maior estimação do bem depois de perdido seja a dor, é falso, e o provo com evidência do mesmo texto. Aplicando Cristo a parábola, conclui assim: Sic erit gaudium in caelo super uno peccatore poenitentiam agente, quam supra nonaginta novem justis (Lc. 14, 7): - Como aquele pastor - diz - estimou mais a ovelhinha perdida, e se alegrou mais de a ter achado que das outras noventa, que se não perderam, assim é maior o gosto, a alegria e festa que se faz no céu por um pecador perdido e penitente, que por noventa e nove justos. - Logo a maior estimação do bem perdido não provém da dor, porque aquele maior gosto, e aquela maior estimação foi no céu: Gaudium erit in caelo - e no céu não há dor. Qual será pois a verdadeira razão desta diferença tão notável? Eu a direi.

A maior estimação do bem perdido não provém da dor da perda, nem da mesma perda do bem; mas por ocasião da perda provém o maior e verdadeiro conhecimento do mesmo bem, o qual antes de perdido não se conhecia. Entre o conhecimento do bem e o conhecimento do mal há uma grande diferença: o mal conhece-se quando se tem, o bem quando se teve; o mal, quando se padece, o bem quando se perde. Duas coisas prometeu o demônio a Adão: uma a divindade, outra a ciência do bem e do mal: Eritis sicut dii, scientes bonum et malum[45]'. - Ó enganador, ó falso, ó embusteiro, ó mentiroso, ó traidor - clamam aqui todos contra o demônio.. Eu lhe quero fazer justiça, a qual nem ao mesmo demônio se deve negar: digo que em uma coisa mentiu o demônio, em outra não; mentiu em dizer que seriam como deuses: Eritis sicut dii - promessa e suposição não só falsa, mas herética e blasfema, e a primeira origem da idolatria, negando a Deus o caráter da unidade, introduzindo na divindade multidão; porém, em dizer que comendo da maçã conheceriam o bem e o mal, não mentiu o demônio, antes predisse com verdade o que havia de ser; e por quê, ou como? Porque comendo os primeiros pais do pomo vedado, haviam de perder todos os bens que possuíam, e haviam de incorrer em todos os males que padeceram; e o bem não se conhece senão quando se perde, nem o mal, senão quando se padece: enquanto Adão estava no paraíso, não conhecia bem, nem o bem, nem o mal; o bem não, porque possuía todos os bens; o mal também não, porque não padecia mal algum; mas, depois que foi lançado do paraíso, no mesmo ponto teve inteira ciência do bem e do mal: do mal, porque o padecia; do bem, porque o tinha perdido.

Assim foi em Adão, e assim é em todos os seus filhos: quão facilmente estraga o são a saúde, e quão prodigamente dissipa o vão as riquezas! Porém, esperai um pouco: sucederá à saúde a enfermidade, vós conhecereis o bem que tendes na saúde; sucederá à riqueza a pobreza e necessidade, e vós conhecereis o bem que não soubestes estimar na riqueza; por isso, ordenou a Providência que fosse vária e mudável a que vós chamais fortuna. Ela é inconstante, porque vós sois ingratos; troca Deus os bens em males, para que vós conheçais uns e outros: os bens que vos deu na privação, e na experiência os males de que vos livrou. O Filho Pródigo, enquanto esteve em casa de seu pai, não conhecia nem estimava os grandes bens que possuía e lograva nela; porém, depois de dissipados e perdidos os mesmos bens, então os conheceu, dizendo: Quanti mercenarii in domo patris mei abundant panibus, ego autem hic fame pereo[46]! - Na abundância não conhecia nem a felicidade nem a miséria; na fome conheceu a miséria presente, e a felicidade passada. Até Já, aquele grande homem feito por Deus de propósito, ou para triunfo, ou para desprezo de uma e outra fortuna, na experiência da adversa conheceu a diferença da próspera; daqui é que, voltando os olhos atrás, dizia: Quis mihi hoc tribuat ut sim juva menses prístinos, quibus Deus custodiebat me, quando splendebat lucerna ejus super caput meum[47]? - Lede todo aquele capítulo, que é o vinte e nove, e vereis quanto mais via agora Jó nos seus passados bens, do que havia visto e conhecido antes de os perder; as palavras em que mais reparo, são aquelas do verso quarto: Quando secreto Deus erat in tabernaculo meo[48]. - Faz comparação e diferença Jó entre o tempo presente, das suas misérias, e o passado, das suas felicidades, e diz que naquele tempo ditoso estava Deus em sua casa, porém oculta e secretamente: Quando secreto Deus erat in tabernaculo meo. - Chama estar Deus em sua casa, e assistências de Deus nela, aos bens que naquele tempo gozava, porque de Deus e da sua presença vêm todos os bens; mas por que diz que esses bens e essas assistências de Deus então eram secretas? Antes parece que então eram públicas, porque ele, e todos, viam os seus bens e as suas felicidades; e, pelo contrário, agora eram secretas, porque os bens o tinham deixado, e Deus se tinha escondido. Por que diz logo que aqueles bens e assistências de Deus então eram secretas, e agora não? Porque então as lograva, e agora já as tinha perdido. A posse dos bens é um véu que os oculta para que se não conheçam; a perda dos mesmos bens corre o véu, e então se descobre e vê claramente neles aquilo que se não estimava nem conhecia.

Esta é a maior desgraça dos bens, contrária em tudo à natureza dos males: os bens vêem-se de longe, os males de perto; os males quando vêm, os bens quando fogem; os males pelo direito, os bens pelo avesso; os males pelo rosto, os bens pelas espaldas: quando voltam as costas os bens, então se conhecem. Pediu Moisés a Deus que lhe mostrasse a sua glória, e o Senhor lhe respondeu que lhe mostraria todos os bens: Omne bonum ostendam tibi (Êx. 33, - Mas como lhos mostrou? É coisa verdadeiramente admirável, e que nem Moisés nem algum outro a pudera cuidar ou imaginar. Chegando o dia em que Deus havia de cumprir a sua palavra, ou a sua promessa, e Moisés havia de ver todos os bens, sinalou-lhe Deus o modo da vista, e disse-lhe assim: Cum transibit gloria mea, ponam te in, foramine petrae, et protegam dextera mea, donec transeam: tollamque manum meam, et posteriora mea videbis (ibid. 22 s): Eu te porei - diz Deus - detrás de uma pedra, e tu estarás vendo por um resquício; quando passar a minha glória, taparei eu o resquício com a minha mão, e, depois de passar, levantarei a mão, e tu verás as minhas costas. - Admirável caso outra vez! De maneira que mostra Deus a Moisés todo o bem: Ostendam tibi omne bonum - e que este bem o não pode ver Moisés, senão depois de passado: Protegam devera mea, donec transeam? - Nem o pode ver pelo rosto, senão pelas costas: Posteriora, mea videbis? - Sim, porque esta é a condição de todo o bem: nesta vida não se pode ver nem conhecer, senão depois de passado, e pelas costas: Transeam, posteriora mea videbis. - Quando os bens voltam as costas, quando fogem, quando se vão, quando nos deixam, quando, finalmente, passaram e se perderam, então se conhecem. Este é todo o mistério da dor do bem perdido: da perda nasce o conhecimento, do conhecimento a estimação, da estimação a dor: Dolor amissi.

§III

O maior bem do bem é chegar a perder-se. As verdadeiras medidas da dor do hem perdido. Qual será na perda do bem a dor fina e heróica, e em grau superlativo limpa? Distinção e diferença entre os bens mais perdidos e os menos perdidos. Qual foi o pranto mais heróico e mais fino da Madalena? A imagem humana da dor grosseira e vulgar em lágrimas de Davi. A imagem da dor heróica e fina no pranto de Raquel.

Sendo, pois, o motivo certo e próprio do bem perdido a privação do mesmo bem já verdadeiramente conhecido, e como conhecido estimado, de todo este discurso se conclui claramente, contra o que ao princípio se argüía, que a medida da dor do mesmo bem é sempre a mesma, porque enquanto o bem se possui não pode causar dor, e quando se perde, e é matéria de dor, já se conhece com toda a sua amabilidade e formosura; o maior bem do bem, e a sua maior fortuna, é chegar a perder-se; para quem o possui é perda, para o mesmo bem é usura, porque perdido se conhece, e se lhe dá o lugar que merece; enquanto possuído, tinha pequeno e humilde lugar no coração, porque não era conhecido; depois de perdido, porque já se conhece, dá-lhe o coração muito maior e melhor lugar, isto é, igual ao seu merecimento, dignidade e grandeza. Não é mui diverso o lugar e alojamento que se dá a um príncipe incógnito ou conhecido? Pois, assim trata o coração ao bem; e daqui se segue que é muito maior o lugar que ocupa a dor no coração, que aquele que ocupa o gosto. Enquanto possuído o bem, como a incógnito, dava-lhe o coração dentro em si um humilde lugar, pequeno e desigual ao seu merecimento, e este é o que ocupava o gosto depois de perdido; como já se conhece a sua grandeza, compõe-lhe o mesmo coração outro alojamento e outro lugar, muito maior e mais largo, proporcionado a ele, e este é o que ocupa a dor.

Porém, tomadas assim, e tão ao justo, as verdadeiras medidas da dor do bem perdido, não imagine por isso alguém que fica também já conhecida a fineza e a limpeza da mesma dor, que é o ponto principal do nosso argumento. Toda a dor de um grande bem perdido é grande; porém, não basta ser grande, para ser fina: a fineza não é quantidade, nem é o mesmo doer-se muito, que doer-se finamente. Qual será logo na perda do bem a dor fina e heróica, e em grau superlativo limpa: Limpidissimos lapides?

Para satisfazer à curiosidade utilíssima deste ponto, suponho primeiro que nas perdas do bem há mais e menos; há bens mais perdidos, e bens menos perdidos. O bem perdido menos perdido é aquele que depois de perdido se pode recuperar; o bem mais perdido, e totalmente perdido, é aquele que, perdido uma vez, não pode recuperar-se. Perde um homem a Deus, e perde o tempo: qual é maior perda? Em razão de bem é Deus, em razão de perdido é o tempo; porque Deus perdido pode recuperar-se, o tempo perdido não se pode recuperar. Mais: há bens perdidos que com a mesma dor de tê-los perdido se recuperam, e há bens perdidos que com nenhuma dor se podem recuperar depois de perdidos. Morreu a um pai seu filho, dói-se, mas nem por isso ressuscita o filho; perdeu a fazenda, dói-se, mas nem por isso toma a fazenda para casa; pelo contrário, perdeu um homem a graça de Deus, dói-se, e no mesmo ponto recupera a graça; morre o merecimento pelo pecado, dói-se, e no mesmo ponto ressuscita e torna a reviver o merecimento. Suposta, pois esta distinção e diferença de bens mais perdidos e menos perdidos, e de perdas recuperáveis, e que se não podem recuperar, vindo ao ponto: digo que aquela dor que chora a perda de um bem totalmente perdido, e que com nenhuma dor se pode recuperar, esta é a fina, a heróica e limpa dor do bem perdido: se quem o tem perdido o pode recuperar, ainda que a dor seja grande, não é fina; se não pode recuperar-se, e contudo chora a sua perda, e se dói inconsolavelmente quem o tem perdido, aqui está a fineza da dor.

Duas vezes se celebra no Evangelho o pranto da Madalena, tão formosa pelas suas lágrimas como pelo seu amor[49]: a primeira, quando chorava seus pecados aos pés de Cristo; a segunda, quando chorou a morte do mesmo Cristo sobre a sua sepultura; em um e outro pranto foram copiosíssimas as suas lágrimas, em um e outro nascidas de dor e dor excessiva; porém, que dor e que pranto vos parece que foi o mais heróico e mais fino? Dir-me-eis que o primeiro, porque este foi louvado pela boca de Cristo, não só como efeito da penitência, mas como filho legítimo do amor, que é a raiz de toda a fineza, e esse mesmo amor qualificado e canonizado por muito: Quoniam dilexit multum[50]. - Contudo, eu não duvido afirmar que o segundo pranto e a segunda dor foi muito mais heróica e muito mais fina. E por quê? Porque a primeira dor chorava um bem perdido, que se podia recuperar com a mesma dor, e com as mesmas lágrimas; porém, a segunda chorava outro bem perdido, que com nenhuma dor, ainda que excessiva, com nenhumas lágrimas, ainda que mais copiosas, se podia recuperar. É reflexão de Orígenes naquela homilia da Madalena, entre todas as obras do seu grande engenho a mais excelente: Fleverat prius, et lacrymis suis pedes ejus rigaverat pro morte animae suae: veniebat mane ad monumentum lacrymis rigare pro morte Magistri Sui: Com o primeiro pranto - diz Orígenes - chorava Maria a morte da sua alma; com o segundo, chorava a morte do seu Mestre. - A morte da alma pode ressuscitar-se com a dor e com as lágrimas, a morte do corpo com nenhuma dor e com nenhumas lágrimas se pode ressuscitar: logo, este segundo pranto e esta segunda dor foi mais heróica e mais fina, porque chorava Maria, e se doía de um bem perdido, que a sua dor e as suas lágrimas não podiam remediar. Doer-se do bem perdido, que se recupera com a dor, é remédio; doer-se do bem perdido, que com nenhuma dor se pode remediar, é dor.

Deixai-me dividir esta verdade, para que a vejam os olhos em duas imagens, uma da dor grosseira e vulgar em lágrimas de Davi, outra da dor heróica e fina no pranto de Raquel. Enfermou mortalmente em tenra idade o primeiro filho que Davi teve de Bersabé, e não se pode dizer facilmente o excesso da sua dor: vestido de saco, coberto de cinza, prostrado por terra, com rogativas, com lágrimas, com jejuns, e com todas as outras máquinas de penitência, humildade e gemidos, com que ele sabia se rende o céu, batia o aflito rei às portas da misericórdia divina pela saúde já desconfiada do filho; morreu enfim o menino, e diz o texto sagrado que nenhum dos criados de palácio se atrevia a dar a el-rei a triste nova. Se el-rei, diziam entre si, quando o infante ainda vivo, faltou pouco que não morresse de pena; se não falava, nem comia, nem dormia, nem admitia consolação ou trégua a sua dor, que será sabendo que é morto? Entendeu ultimamente Davi pelos olhos e silêncio dos seus aquilo que verdadeiramente era, e logo que soube de certo ser morto o filho, que vos parece que faria? Caso notável! Levanta-se do chão, enxuga os olhos, lança fora o cilício, veste a púrpura, senta-se à mesa, começa a comer e a falar com tanto desafogo, como se nada tivera sucedido. Maravilhados os cortesãos de uma tão repentina mudança, disseram assim a el-rei: Quis est sermo, quem fecisti? Propter infantem, cum adhuc viveret, jejunabas: mortuo autem puero, surrexisti, et comedis (2 Rs. 12,21)? Senhor, quando ainda vivia o infante, fazia Vossa Majestade tantos extremos de dor e sentimento; e agora que morreu, vemos a Vossa Majestade tão aliviado, sem nenhum sinal de tristeza ou desgosto? Que implicância, ou que mistério é este? - Vós - respondeu Davi - fazeis-me uma pergunta, e eu quero fazervos outra. Numquid potero revocare eum (ibid. 23)? Porventura posso eu ressuscitar a meu filho? - Pois, por isso se acabou a minha dor: enquanto vivia, e eu esperava poder-lhe alcançar a vida com as minhas lágrimas, fazia todos aqueles excessos, que vistes; porém, depois que morreu, e não tem remédio, por que me hei de ansiar e afligir? - Oh! razão indigna de um pai, e muito mais indigna de um coração como o de Davi! Por que me hei de afligir, se já não tem remédio? Antes, porque não tem remédio, vos deveis afligir mais. Para as perdas que têm remédio se fez a diligência; para as que não têm remédio, se fez a dor. Quem chora o bem perdido, que se pode remediar com a dor, ama o seu alívio; quem chora o bem perdido, que com nenhuma dor se pode remediar, ama a sua dor, e esta é a dor verdadeira e fina.

Ah! Raquel, que só vós soubestes doer-vos com fineza verdadeiramente heróica! Morreram às mãos de Herodes os filhos de Raquel, isto é, os inocentes de Belém, aonde ela tinha a sua sepultura. Introduz o profeta Jeremias a triste mãe lamentando a sua morte com prantos e clamores, a que respondiam com lastimosos ecos os montes: Vox in Rama audita est, ploratus et ululatus multus: Rachel plorans filios suos[51]. - E que circunstâncias ponderou neste ponto de Raquel aquele grande mestre de dores e prantos? Ouvi o que acrescenta: Ei noluit consolari, quia non sunt: Chorava - diz - incessantemente, e, ainda que via que a causa de sua dor era sem remédio, como o não tem a morte, nem por isso admitiu jamais consolação, nem quis consolar-se: Et noluit consolari, quia non sunt[52]. - Quem soubera ponderar dignamente a força deste quia! Comparai-me este quia de Raquel com aquele numquid de Davi: Numquid potero revocare eum[53]? - Pesai bem a diferença, e quanto vai de pranto a pranto, de dor a dor, e de porquê a porquê. Por que se consola Davi? Porque não tem remédio a morte de seu filho. Por que se não quer consolar Raquel? Porque não tem remédio a morte de seus filhos. De maneira que pela mesma razão Davi se consola, e Raquel não quer admitir consolação? Pela mesma razão Davi enxuga as lágrimas, e Raquel se condena a perpétuo pranto? Sim, pela mesma razão, porque aquela dor era grosseira e vulgar, esta era fina e heróica: a dor que não é fina, morre com quem morre; a dor que professa fineza, com quem morre se faz imortal. Davi na mesma sepultura sepultou seu filho e a sua dor, antes quando sepultou o filho já a dor estava sepultada. Pelo contrário Raquel, quando sepultou aqueles ossos tenros das suas entranhas, na mesma sepultura entrou juntamente todo o seu contentamento, toda a sua alegria, toda a sua consolação, antes a esperança toda, e ainda o pensamento de consolar-se jamais: Et noluit consolari, quia non sunt[54]. - Oh! palavras dignas de se gravarem em uma pirâmide de bronze sobre o mármore daquela sepultura, para que fossem lidas de todos os séculos, como epitáfio eterno à imortalidade da dor!

Assim se dói, quem vulgar ou finamente se dói, e estas são as duas imagens, uma morta, e outra sempre viva, da vulgar e da heróica dor na perda do bem. A dor vulgar chora como Davi, enquanto espera o remédio; a heróica chora como Raquel, porque o não espera; a vulgar, com a impossibilidade do remédio, se consola; a heróica, com a mesma impossibilidade, se afina mais: Amor non suscipit de impossibilitate solatium, nec de difficultate remedium[55] - disse Crisólogo. - E se quereis saber por que a dor do bem perdido na impossibilidade do remédio se afina mais, e totalmente se apura, a razão desta sutilíssima filosofia é porque na impossibilidade do remédio se purifica e alimpa a dor da liga e mistura de toda a paixão ou afeto que não é dor: a dor do bem perdido, que supõe o remédio possível, vai misturada com a esperança, e com o desejo do mesmo bem, e por isso não é dor pura; porém, a dor que conhece o remédio impossível, como o impossível se não pode esperar nem desejar, a mesma impossibilidade leva a esperança e o desejo, e, tirado o desejo e a esperança, fica só a dor pura e limpa: quem se dói do bem perdido, que se pode recuperar, perdeu o bem, mas nem perdeu o desejo nem a esperança do bem; porém, quem se dói do bem perdido, que se não pode recuperar, não só perdeu o bem, mas juntamente com o bem perdeu também o desejo e a esperança; e quem, perdido o bem, e perdido o desejo e a esperança do bem, e perde a sua dor, este só se dói pura e heroicamente; aquilo é amar-se, isto é amar; aquilo é remediar, isto é doer-se.

§ IV

Deus: o maior e melhor bem perdido. Como pode ter lugar na perda da graça divina a dor fina e limpa? Diferenças entre a dor de pecar e de haver pecado nas lágrimas de el-rei Davi. A onipotência da dor. A penitência mais que milagrosa da dor do maior exemplar das dores: Jó. A maior fineza de todas as finezas da dor: doer-se ainda depois de remediada.

Havemos filosofado assaz, e porventura demasiado; mas tudo é necessário ao fim e proveito do nosso discurso. O maior e o melhor bem perdido, senhores, é Deus, e a graça de Deus, que se perde pelo pecado; mas, como Deus perdido, e a graça de Deus perdida se recupera pela dor, parece que sobre a perda deste bem, sendo o maior e sumo, não cabe nem tem lugar a dor limpa e fina. A dor limpa e fina do bem perdido é doer-se de um tal bem, que se não possa remediar com a dor; este pode remediar-se, e se remedeia com a mesma dor; logo, não pode ter lugar nesta perda a dor fina e limpa. Digo que sim pode, e com maior fineza. Ora vede. No pecado há uma coisa que se pode remediar, outra que não tem remédio: e que duas coisas são estas? Uma é o pecado, outra o haver pecado: o pecado pode remediá-lo o pecador com a dor: o haver pecado não o pode remediar com nenhuma dor, nem ainda o justo: porque o pecado pode-o perdoar a misericórdia, o haver pecado não o pode desfazer a onipotência. Daqui vem que, depois de remediado e perdoado o pecado, senão de haver pecado, esta dor é a fina e perdida, se, contudo, o pecador se dói não já do pecado, senão de haver pecado, esta dor é a fina e heróica, a pura e limpa dor do sumo bem perdido; tudo deixo já provado no meu discurso, o que resta é elevá-lo a matéria mais alta. Falo agora convosco, ó almas ditosas, que depois de terdes ofendido e perdido a Deus, vos tendes reconciliado com ele, e depois de perdida a sua graça, por mercê e misericórdia sua a tendes recuperado; doei-vos e chorai agora aquilo que se não pode remediar com a mesma dor, que é o haver pecado, e melhorai com mais nobre e mais sublime impossível os exemplos da Madalena e Raquel; e se não é digna de tão alta imitação aquela dor de Davi, pouco há de mim tão mal reputada, imitai outra do mesmo herói, que para este ponto só reservou as finezas da sua dor. Pecou Davi, e durou na cegueira de seu pecado quase um ano inteiro. Convertido, finalmente, por um sermão do profeta Natã, disse: Peccavi[56] - e o profeta, em nome de Deus, lhe respondeu: Dominus quoque transtulit peccatum tuum[57]. - Eis aqui Davi pecador, eis aqui Davi arrependido, eis aqui Davi perdoado. E que fez depois de tudo isto Davi? Não se esquecendo jamais daquele mesmo pecado, chorava-o todas as noites, e propunha chorá-lo sempre com rios de lágrimas: Lacrymis meis stratum meum rigabo[58]. - Os dias, como rei, dava-os aos negócios públicos; as noites, como pecador, ao pranto oculto de seus pecados. Mas como assim, meu Davi? Que outros pecadores chorem, e não cessem jamais de chorar, é muito justo, porque sabem que pecaram, e não sabem se lhes são ou não perdoados seus pecados; porém vós, que tivestes um oráculo divino e infalível de vosso perdão; vós, que sabeis de certo, e sois obrigado a crer de fé que Deus vos tem restituído à sua graça, por que chorais tanto? Porque não chorava Davi o pecado, mas o haver pecado: o pecado não, porque já estava remediado com a dor, com o perdão e com a graça; o haver pecado sim, porque nem com a dor, nem com o perdão, nem com a graça, nem de alguma outra maneira podia remediar-se. Não chorava a chaga, mas a cicatriz; não a mancha que se tirou, mas a que se não pode tirar; não aquilo que com o pecado perdoado passa, mas aquilo que fica sempre: este sempre chorava ele nas suas lamentações alternadamente a dois coros - música digna de imitar-se hoje, e de que nela se trocassem outras - o primeiro coro fazia-o o seu pecado: Peccatum meum contra me est sem per[59] - o segundo coro fazia-o a sua dor: Et dolor meus in conspectu meo semper[60]. - No pecador justificado uma coisa acaba, que é o pecado, outra não acaba jamais, e dura sempre, que é o haver pecado; e como Davi não chorava o pecado, que já não era, senão o haver pecado, que durava sempre: Peccatum meum contra me est semper - por isso a este sempre do pecado respondia o outro sempre da dor: Et dolor meus in conspectu meo semper.

A dor é o eco do pecado: Peccata nostra responderunt nobis (Is. 59, 12) - disse Isaías. - Se o pecador é impenitente, faz a dor o eco no inferno; se é contrito e arrependido faz o eco no coração: tal era o coração de Davi, e tal foi sempre depois do seu pecado; por isso à voz do pecado respondia sempre o eco da dor; e a um sempre, outro sempre o pecado na memória entoava: Peccatum meum contra me est semper - e a dor no coração respondia: Et dolor meus in conspectu meo semper - E se chorava e devia chorar sempre quem havia pecado uma só vez, que será daqueles que não choram - pode ser - nem se doem de coração uma só vez, tendo pecado, e pecando sempre?

Porém, se chorava o ter pecado, e o ter pecado é mal que não tem remédio, como pedia Davi a Deus o remédio deste mal? Assim parece se devem entender aquelas palavras do mesmo texto: Amplius lava me ab iniquitate mea, et a pecato meo munda me[61]. - A razão que alega o confirma: Quoniam iniquitatem meam ego cognosco, et peccatum meum contra me est semper[62]. -Aquilo que persevera sempre do pecado, como havemos dito, não é o pecado já perdoado, como estava perdoado o de Davi, senão o haver pecado; logo, parece que para o haver pecado pede Davi o remédio, e por isso não diz: Lavai-me, Senhor - senão, lavai-me mais: Amplius lava me - supondo duas purificações, uma maior que outra: sendo, pois, a primeira purificação aquela que lava o pecado, e com que o pecado de Davi estava já lavado, parece que a segunda é aquela com que se lava o haver pecado; mas se isto é impossível, que diremos a esta grande dúvida? Inferimos daqui que o que é impossível à natureza é possível à dor, e que alcança mais a mesma dor da misericórdia do que lhe pode dar a onipotência? E certo que muitas coisas que o entendimento humano julga impossíveis à onipotência, as fez e mostrou possíveis a misericórdia. Digo que a misericórdia divina, por meio da nossa dor, não só pode desfazer o pecado, senão também o haver pecado; não era decente que fosse mais fina a dor do homem em doer-se de haver pecado, que a misericórdia divina em dar poder à mesma dor, para fazer que o pecado feito não seja feito. Ouvi o grande padre S. Gregório Arelatense, o qual no Livro da Penitência diz assim: Laboremus totis vi ri bus curare maculas, lavare culpas, subvenire praeteritis, consulere futuris. - E que mais? Et facere infecta de factis[63]: - Procurai - diz - com toda a força da dor, curar as culpas, lavar as manchas, prevenir o futuro, remediar o passado, e fazer que os pecados feitos não sejam feitos: Et facere infecta de factis - tal é a onipotência da dor, diz este grande padre; e porque ele o não prova, eu o provo.

No capítulo sétimo - notai bem a ordem dos capítulos, e do que se diz neles - no capítulo sétimo diz Jó: Peccavi; quid fatiam tibi, o custos hominum[64]? Eu, Senhor, pequei; e que posso fazer já, se o haver pecado não tem remédio? - Passai agora ao capítulo dezessete, e lereis que diz ali o mesmo Jó: Non peccavi, et in amaritudinibus moratur oculos meus (Jó 17, 2): Eu não pequei, e meus olhos noite e dia não fazem outra coisa senão chorar. - Todos estais vendo a implicância manifesta: Peccavi, non peccavi. - Se antes havia dito peccavi: pequei, como agora diz non peccavi; não pequei? Se antes confessou haver pecado, como agora afirma não haver pecado? Porque assim o tinha feito ou desfeito; assim o podia fazer ou desfazer a penitência mais que milagrosa de sua dor: Et in amaritudinibus moratur oculus meus: a fragilidade fez o pecado, a dor o desfez, e tão desfeito, que não só lhe tirou o ser, senão o haver sido: peccavi - eis aqui o pecado feito: non peccavi - eis aqui o pecado desfeito; peccavi - eis aqui o pecado que foi; non peccavi - eis aqui o pecado que não tinha sido: Et in amaritudinibus moratur oculus meus - eis aqui a dor, que, depois de feito o pecado, fez que não fosse feito: Et facere infecta de factis.

Mas que tenho dito eu? Se a dor heróica e fina desfaz ainda o haver pecado, dir-me-eis, e com razão, que a mesma dor desfaz também a sua mesma fineza, e todo o meu discurso, porque, se a dor fina é aquela que chora e se dói da perda que não tem remédio, e o haver pecado pode enfim remediar-se com a mesma dor, logo a dor que chega a remediar o haver pecado desfaz a sua mesma fineza, e não é dor heróica nem fina? Respondo que não só é fina, senão muito mais fina, se com tudo isto se dói, porque troca com uma fineza grande outra maior, qual é doer-se depois de ter alcançado o remédio. Doer-se para remediar a dor, não é fineza; doer-se quando a dor não tem remédio, sim; porém, se a dor que não tinha remédio, por modo que parecia impossível, enfim se remediou, doer-se ainda assim depois de remediada, é a maior fineza de todas as finezas. E por quê? Por tudo o que havemos dito. Por que não é doer-se por esperança, nem doer-se por impossibilidade, nem doer-se por falta de remédio, senão doer-se por doer-se. O mesmo Jó, e no mesmo texto: Non peccavi, et in amaritudinibus moratur oculus meus (Jó 17, 2): Ainda que depois de haver pecado, não pequei, isto é, desfiz o haver pecado, contudo, persevera a minha dor na amargura dos meus olhos. - Ponderai muito aquele moratur. - Se Jó tinha remediado e desfeito o haver pecado: Non peccavi - porque continua e prossegue a sua dor, e chora tão amargamente, como antes chorava: et in amaritudinibus moratur oculus meus? - Porque o motivo de seu pranto e da sua dor não era o remédio do mal já desfeito, senão o mesmo mal que teve necessidade de se desfazer: a primeira dor, e fina, caiu sobre o pecado feito, que desfez; a segunda caiu sobre o pecado já desfeito, e por isso foi mais fina; o mal remediado é motivo de alegria, e tanto mais quanto o remédio parecia mais impossível; e que, vencido o impossível, e conseguido o remédio depois de deixar de ser, e de haver sido o mal, seja ainda motivo à dor, isto é o mais que fino de fineza; até aqui chegou a dor do maior exemplar das dores, e eu não sei nem posso passar mais adiante.

§V

Qual é o fim para que Deus fez a dor, que parece tão contrária e tão inimiga da natureza? As dores do mundo. Epílogo do sermão: conhecer que a dor é o único remédio do bem perdido, e que o maior bem perdido é a dor que se perde.

Senhores meus: ou mais ou menos fina dor, há para todos; já que por nossa desgraça temos feito os pecados, ao menos saibamos desfazê-los: aqui se deve empregar toda a dor e reduzir a esta só tantas outras dores, tão vãs como as suas causas; entre tanta multidão de abusos, quantos padece hoje o nosso desgraçado século, o maior e mais lamentável é o abuso da dor. As perdas dos bens eternos, que só são dignas de dor, e para cujo remédio foi feita a dor, nem se estimam, nem se choram, nem doem; as lágrimas, as queixas, as lamentações sem fim, todas as leva a dor das perdas temporais, que nem merecem dor, nem se remedeiam com ela. Ouvi o maior pregador da Grécia e da Igreja, Crisóstomo: Luge peccata, et ipsa doleas, propter hoc enim facta est tristitia, non ut in morte, aut in re tali doleamus[65]': Chora - diz - ó cristão, teus pecados, e dói-te só daquilo para cujo remédio foi feita a dor. - Grande, verdadeira e fortíssima razão! Nem a natureza nem Deus fizeram neste mundo coisa alguma ociosa, inútil, e sem fim; e qual é o fim para que Deus fez a dor, que parece tão contrária, e tão inimiga da mesma natureza? Pelos efeitos se vê: nenhum mal se remedeia com a dor, senão o pecado; nenhum bem se restaura pela dor, senão a graça; logo, só para remédio deste mal, e só para restauração deste bem foi feita a dor. O dor! remédio único do sumo mal! O dor! preço único do sumo bem! E que maior dor que ver os abusos em que te desperdiçam os homens, sem utilidade nem proveito! Este se dói da sua pobreza, e nem por isso deixa de ser pobre; aquele se dói da sua enfermidade, e nem por isso se vê são; outro, e tantos outros, se doem da má correspondência dos poderosos, e nem por isso os fazem mais justos, ou menos ingratos. Dói-se o amor e o ódio, dói-se o desejo e o temor, dói-se a esperança e a desesperação, dói-se a miséria e a fome, e o fastio, e a abundância também se doem; dói-se a soberba, dói-se a cobiça, dói-se sobre todas, a inveja, e não pelos males próprios, senão pelos bens alheios: porque o outro cresce, porque sobe, porque pode, porque manda, e ainda porque vive, e porque tarda em lhe vir a morte, gênero de dor que não alcançou a imaginar o pensamento de Crisóstomo, pregando não em Roma, mas em Constantinopla: Ut non in morte, aut in re tali doleamus. - Estas são as dores do mundo, e não sei se também as da cabeça do mundo, menos miserável por aquilo de que se dói, que por aquilo de que não se dói. Que miséria mais miserável, que ver tantas almas que têm perdido a graça de Deus doer-se, e doer-se de outra coisa que não são os seus pecados? Senhores meus: desengano: livrar-se ou escapar-se da dor, nesta vida, é impossível; não há fortuna tão alta, ou estado tão feliz, nem a púrpura, nem a coroa, nem a tiara, que dentro ou fora não pague tributo à dor: que melhor conselho, logo, que reduzir todas as dores a uma só dor, e tantas dores inúteis e vãs, e de maior tormento, a uma só dor, que nesta e na outra vida me livra de todas? Levai este último documento, e sejam epílogo de todo o meu discurso estas duas palavras: Conhecer que a dor é o único remédio do bem perdido, e que o maior bem perdido é a dor que se perde.

DISCURSO III

Elegit quinque limpidissimos lapides de torrentes[66].

A terceira pedra da funda de Davi: o pejo do mal cometido.

Aonde se recebe o golpe, ali se abre a ferida, e, pela mesma porta que abriu a ferida sai e se derrama o sangue. Não é assim o tiro prodigioso que faz hoje a terceira pedra de Davi. O golpe recebe-se na testa, a ferida abre-se no coração, e o sangue sai às faces: Pudor commissi: A vergonha do pecado cometido. - Esta é a matéria assinada para esta noite, digna de se pregar com menos luzes, e uma das mais importantes ao nosso miserável século. Os pecados em outro tempo eram cometidos, e envergonhavam-se de ser vistos; hoje é corte e parte de fidalguia o ser mau publicamente. Saem os vícios à praça, e até se metem pelos lugares sagrados, com a cara tão descoberta, como se na rua foram gala, e no templo sacrifício. Ó tempos, ó costumes! Contra este monstro batizado irão atiradas hoje, com toda a força que eu puder, as minhas razões e as suas afrontas; se umas não bastarem, para que saia convencido, bastarão as outras, para que fique envergonhado: assim o espera da eqüidade dos vossos juízos, mais a justiça da causa, que o meu discurso; ouvi-a.

§I

A vergonha, efeito natural do pecado. Como dá Deus à serpente por castigo aquilo mesmo que já tinha por natureza? A sentença de morte e a vergonha nos primeiros pais. Por que se agrada Deus, e satisfaz mais do sangue com que a vergonha tinge as faces, que do sangue que a morte tira das veias? O batismo das lágrimas e o batismo da vergonha.

É certo que a vergonha é efeito natural do pecado. O primeiro pecado do mundo foi de Adão, e o primeiro efeito daquele pecado foi a vergonha: Abscondit se [67] ; - contudo, eu não posso deixar de duvidar se a vergonha é efeito só da natureza, ou da natureza juntamente e da Providência; favorece a este meu pensamento um exemplo não vulgar do mesmo paraíso. Quando Deus condenou a serpente, disse assim: Super pectus tuum gradieris, et terram comedes omnibus diebus vitae tuae (Gên. 3, 14): Andarás arrastando sobre o teu peito, e te sustentarás de terra todos os dias de tua vida. - Maravilhosa e dificultosa sentença! A serpente antes de enganar a Eva não andava arrastando pela terra, que isso quer dizer serpente, e não se sustentava como depois da mesma terra? Sim. Como logo lhe dá Deus por castigo aquilo mesmo que já tinha por natureza? Dificuldade é esta que tem dado grande trabalho aos maiores Expositores do sagrado texto; porém, eu não quero outra exposição nem outros doutores mais que a experiência e sentimento dos mesmos que me ouvem. Dizei-me, cortesãos de Roma: E não seria grande castigo a muitos uma sentença que dissesse: O que sois sereis? Oh! quantas esperanças, quantas pretensões e quantas cabeças com o colo mui levantado degolada uma tal sentença! A Judas se disse por castigo: Faze o que fazes; - à serpente se dá por castigo: Sê o que és. - O maior benefício que Deus fez aos apóstolos foi confirmá-los em graça; e o maior castigo que deu aos demônios foi confirmá-los na natureza. Todos os dons da natureza, que tinha Lúcifer como anjo, quis Deus que tivesse como demônio, e a que fim? Para que padecesse a sua mesma natureza, para que os seus dons naturais fossem os seus verdugos, e para que o excesso da sua perfeição fosse maior matéria ao seu tormento. Nos homens sucede o mesmo. A quantos homens grandes converteram em instrumento de castigo os dotes mais excelentes da natureza, os quais, como cabelos de Absalão, serviram de laços dourados à sua desgraça? De sorte que com aquilo mesmo que Deus tem dado como criador, pode castigar como juiz; e o mesmo que é efeito comum da natureza pode ser particular da Providência. Assim se houve a Providência com a serpente e com o homem: à serpente deu a justiça a natureza por castigo, ao homem deu a misericórdia a natureza por remédio; a vergonha é efeito natural do pecado, e é remédio como natural do pecado a mesma vergonha. Não será necessário ir buscar a prova mais longe, porque no mesmo paraíso a temos.

Quando Deus impôs aos primeiros pais o preceito do pomo vedado, acrescentou à lei a pena, estabelecendo que no mesmo dia que comessem morreriam: In quacumque die comederis, morte morieris (Gên. 2, 17). - Comeu Eva, comeu Adão, e não morreram; veio Deus em pessoa a sindicar a culpa e executar a sentença, e ambos ficaram vivos; pois, se a pena da lei não só era que morreriam, senão que morreriam no mesmo dia: In quacumque die - por que não morreram? Porque tinha feito antecipadamente a vergonha o que havia de fazer a morte; ora, vede. Os primeiros pais antes de pecar não se envergonhavam: Erat uterque nudus et non erubescebant[68]; - logo que pecaram conheceram a indecência da sua desnudez e a culpa da sua desobediência; envergonhados de si, e de Deus, cobriram-se de folhas, e esconderam-se; e como o pecado estava já castigado com a vergonha, não quis Deus castigá-lo com a morte. Alta e engenhosamente Tertuliano: Maluit sanguinem suffundere quam effundere[69]. - A morte violenta, e a vergonha, ambas tiram e derramam o sangue, cada uma ao seu modo: a morte tira o sangue das veias, e lança-o à terra: isso é effundere; a vergonha tira o sangue do coração, e fá-lo sair à cara: isso é suffundere. - E satisfaz-se Deus mais desta sufusão de sangue que daquela efusão: Maluit sanguinem suffundere quam effundere.

E se alguém me perguntar por que antepõe Deus um castigo ao outro, e por que se agrada e satisfaz mais do sangue com que a vergonha tinge as faces, que do sangue que a morte tira das veias, a razão não pode ser outra, senão porque o sangue da vergonha é muito mais nobre e muito mais fidalgo: aquele é sangue do corpo, este é espírito do sangue; aquele é sangue animal, este é sangue racional; aquele é execução da pena, este é confissão da culpa; aquele derrama-o a violência, este destila-o o afeto; aquele é vingança da justiça, este é vítima da consciência; com aquele castiga Deus ao pecador, com este o pecador se castiga a si mesmo. É verdade que a vergonha é paixáo natural; mas como a água elemental elevada tem virtude de tirar da alma o pecado, assim a vergonha, ainda que natural, elevada, pode ter e tem a mesma virtude; uniram-se ou competiram-se neste ponto a grata e a natureza: a grata instituiu dois batismos, um de água, que é o Sacramento, outro de sangue, que é o martírio: e a natureza, do mesmo modo, instituiu outros dois batismos, um de água, que sao as lágrimas, outro de sangue, que é a vergonha; e se queremos comparar este martírio com o outro, aquele será mais seguro, este mais nobre. E por qué? Porque a morte opóe-se á vida, e a vergonha á honra mais preciosa e mais amável que a mesma vida. 0 soldado antes quer morrer que fugir, porque teme mais a vergonha que a morte: a morte menos, porque lhe tira a vida; a vergonha mais, porque ¡he tira a honra. Nao é maravilha logo que estime Deus mais a sufusáo do sangue que a efusáo: Maluit suffundere sanguinem, quam effundere.

§II

Os trés respeitos da vergonha: envergonhar-se dos homens, envergonhar-se de Deus e envergonhar-se de si mesmo: a vergonha a respeito de Deus. A eficácia maravilhosa da vergonha sobre o pecado cometido. A vergonha mais fina, mais heróica e mais limpa do cristáo. Qual foi a ocasido de envergonhar-se Sáo Pedro, náo antes, seno somente depois da terceira negacáo? A vergonha e os idólatras adoradores do sol e da lua. 0 mais fino e o mais heróico da dor do Filho Pródigo.

Esta é a eficácia maravilhosa da vergonha sobre o pecado cometido: Pudor commissi. - 0 pecado é pai da vergonha, e a vergonha frlha e morte do mesmo pai; mas qual será na mesma vergonha, e sobre o mesmo pecado, o ponto mais fino, mais heróico, e, como fala o nosso texto, o mais limpo: Limpidissimos lapides? - Eu o direi: A vergonha, que toda é uma paixáo, ou afeto respectivo, se divide ou se reduz a tris respeitos: envergonhar-se dos homens, envergonhar-se de Deus, envergonhar-se de si mesmo. A vergonha a respeito dos homens atende á fama, a respeito de Deus á culpa, a respeito de si mesmo á dignidade própria. Isto suposto, digo que a vergonha mais heróica do cristáo, enquanto cristáo, é envergonhar-se de Deus; e a vergonha mais heróica do homem, enquanto homem, é envergonhar-se de si mesmo. A terceira parte da divisao, que é envergonhar-se dos homens, tem necessidade de maior distincao; em seu lugar veremos se pode ser heróica ou nao, e em que consiste.

Comecando por esta primeira parte, parece que a vergonha do pecado cometido a respeito de Deus nao é nem pode ser heróica, porque o heróico é aquilo que pelo difícil e árduo se levanta sobre o obrar comum da natureza, e como a vergonha é filha natural do pecado, e todo o pecado ofensa de Deus, envergonhar-se do mesmo Deus ofendido parece que é coisa natural, e ainda necessária, e de nenhuma maneira árdua nem heróica. Tomo a dizer que sim, e a razao é porque a vergonha natural nasce da vista recíproca, e se forma entre olhos e olhos: entre os olhos do que vé, e os olhos do que é visto. Nós nao vemos a Deus, e ainda que Deus nos veja, contudo nao vemos que nos vé; e que um homem, nao vendo a Deus, nem vendo que é visto de Deus, ainda assim se envergonha de Deus, como se a vista de uma e outra parte fosse recíproca, este é o ato mais heróico da vergonha crista.

Negou Pedro a primeira vez, e nao se envergonhou do seu pecado; nega a segunda, e nao se envergonha; nega finalmente a terceira, e no mesmo ponto foi tal sua vergonha que, cobrindo o rosto com o manto - como diz o texto original de Sao Marcos - corrido, e correndo, foi sepultar-se debaixo da terra em uma coya, e debaixo do mar no seu pranto. Notável mudanca de afetos, sem mudanca nem diferenca na causa! Se Pedro náo se tinha envergonhado de negar a seu Mestre uma e outra vez, por que agora se envergonha, com uma demonstragáo táo súbita e tao estranha? Porventura por ser já a terceira negacáo? Náo: antes ao contrário, porque o primeiro pecado vence a vergonha, o segundo a dissimula, e ao terceiro já se perde de todo. Qual foi logo a ocasiáo de envergonhar-se agora Pedro, e nao antes? 0 mesmo texto o diz: Conversus Dominus, respexit Petrum[70]. - Passava naquele tempo Cristo, para ser presentado diante do pontífice da Sinagoga, e, voltando os olhos para o pontífice eleito da sua Igreja, olhou para Pedro, e viu Pedro que seu Mestre olhava para ele; e ao mesmo ponto que os olhos de Cristo e os olhos de Pedro se encontravam, se seguiu a vergonha: Exivit foras - diz S. Lourenço Justiniano - non valens mentis suae ferre pudorem[71]. – A mente de Pedro foi a causa eficiente da vergonha; a matéria precedente, as negações; os instrumentos, os olhos de um e outro; e a última disposição, a vista recíproca: enquanto Pedro não viu nem foi visto de Cristo, a quem havia negado uma, duas e três vezes, não se envergonhou; e que me envergonhe eu de ofender a Deus, que não vejo, nem posso ver que me vê, esta é a vergonha mais heróica a que pode chegar um homem fel; e se não, vejamos o que fazem ou o que faziam os infiéis.

Os primeiros deuses da gentilidade, isto é, os primeiros ídolos do mundo, foram o sol e a lua; porém, andando o tempo, diz S. Cirilo Jerosolimitano que esta superstição se dividiu em duas seitas: uma que, deixando a veneração da lua, adorava somente o sol; outra que, deixando o sol, adorava só a lua; e qual vos parece que pôde ser o motivo desta divisão, suposto que aqueles homens faziam os deuses à sua vontade, e cada um por sua eleição, e ao seu modo? O mesmo santo o diz, e foi uma política notável: Alü quidem solem ponebant ut, occidente sole, noctis tempore sine deo essent; alii vero lunam, ut inde deum non haberent[72]. - Estes homens queriam ter deus, e queriam juntamente pecar; e como lhes parecia coisa puríssima ver e ser vistos do seu deus, e ofendê-lo no mesmo tempo, que fizeram? Dividiram os tempos e os deuses, e aqueles que adoravam o sol pecavam de noite, e os outros que adoravam a lua pecavam de dia; de maneira que enquanto, ao seu parecer, viam e eram vistos do seu deus, não se atreviam a ofendê-lo; porém, depois que se punha e ausentava o sol ou a lua, e já não viam nem eram vistos daqueles que estimavam e adoravam por deus, então, deposta totalmente a vergonha, pecavam livremente, ou de noite contra o sol, ou de dia contra a lua. Contra a cegueira destes homens argumentava o profeta quando disse: Sicut tenebrae ejus, ita et lumen ejus[73]: que o verdadeiro Deus tanto se vê de dia como de noite; porém, ainda que nós o creiamos assim, não o vemos assim: tão invisível é aos nossos olhos Deus e a vista de Deus, como o sol de noite e a lua de dia. Privada, pois, e destituída a fé destes dois instrumentos naturais da vergonha, assim como é fácil e ordinário não se envergonharem os homens de ofender a um Deus que não vêem, e, ainda que são vistos dele, não vêem que são vistos, assim é ato mais heróico da mesma fé que, debaixo de uma e outra escuridade dos olhos humanos, contudo se envergonhe o homem de ofender a Deus, ou tê-lo ofendido; aquilo é não pecar como gentio, isto é ter pecado como cristão.

Cristão era, ou em realidade, ou em parábola, aquele perdido mancebo, vulgarmente chamado o Filho Pródigo, o qual, envergonhado enfim do seu pecado, disse: Pater, peccavi in caelum, et coram te: jam non sum dignus vocari filius tuus[74] - Grande dizer, mas dificultoso! Que se envergonhe o pródigo, de que sendo o seu nascimento tão ilustre, tivesse chegado, pelos caminhos da sensualidade, a tão indigno e vil estado: Ut pasceret porcos[75] - razão tem, e mais que razão, de envergonhar-se; porém, que o mesmo pródigo, assim envergonhado do seu pecado, diga que pecou em presença de seu pai - coram te - não o entendo. Se ele estava tão longe de seu pai, como diz o texto: Profectus est in regionem longinquam[76]? - Se estava em um lugar e em uma região tão remota, que nem ele podia ver a seu pai, nem seu pai o podia ver, como diz que tinha pecado em sua presença? Isto foi o mais fino e o mais heróico da vergonha do pródigo: não ver nem ser visto de seu pai, e contudo envergonhar-se de tê-lo ofendido, como se o vira e fora visto dele. Quem é o pai, quem é o pródigo, e qual é a região remota? O pai é Deus, o pródigo é o pecador, a região remota é este mundo, em que não podemos ver a Deus, nem também vemos que ele nos vê; e que, sendo invisível Deus, e a vista de Deus também invisível, o pecador se envergonhe de ofendê-lo, como se a vista de uma e outra parte fora recíproca, este é o ponto mais fino e mais heróico a que pode chegar a vergonha cristã; mas passemos de cristão ao homem, isto é, de envergonhar-se de Deus a envergonhar-se de si mesmo.

§III

A vergonha a respeito de si mesmo. Poderá um homem envergonhar-se de si mesmo? Qual é o heróico envergonhar-se de si mesmo? Sêneca e a heróica vergonha do pecado. Por que manda Cristo aos discípulos a pregar de dois em dois, e aos apóstolos um a um? A grande prudência de Gedeão. A fábula de Narciso e a advertência das Escrituras Sagradas.

Nesta consideração ponha-se de parte a fé, e o mundo todo, e fique o homem só: pergunto: Neste estado e nesta solidão poderá um homem envergonhar-se de si mesmo? Se for homem de espírito heróico, sim. Se não houvesse outro homem no mundo, nem por impossível houvesse Deus, ainda o homem heróico se envergonharia de si mesmo. Mais claro. Se os ateus fossem homens, um ateu em um deserto se envergonharia de fazer um pecado. Este é o heróico envergonhar-se de si mesmo. E porque havemos posto de parte a fé, não quero para primeira prova deste ponto autoridade de fé, nem sentença de homem que tivesse fé: ouvi um gentio.

Escrevendo de Roma ao seu Lucílio o vosso e nosso Sêneca, e ensinando-lhe a distinguir e conhecer em si mesmo o grau heróico da virtude, dá-lhe esta regra: Cum tantum profeceris, ut sit etiam tibi tui reverentia, cum te effeceris eum, coram quo peccare non audeas[77]. Não se podia dizer nem mais nem melhor: Lucílio meu, se queres conhecer o teu aproveitamento na virtude, mede-a pela vergonha do vício; porém não fora, senão dentro de ti mesmo. - Envergonhar-se dos homens, e perder reputação com eles, é vergonha vulgar, e que não argúi virtude, senão ambição; envergonhar-se de si, e perder reputação consigo mesmo, esta é a vergonha heróica; assim que então terás chegado ao sumo grau da generosidade humana: Cum tantum profeceris, ut sit etiam tibi tui reverentia - quando chegares a estado que te respeites, e te reverencies a ti mesmo: Cum te effeceris eum, coram quo peccare non audeas. - E quando te fizeres, e fores tal que não te atrevas a pecar diante de ti: Coram quo. - Notai muito aquele coram. Davi, falando com Deus, dizia: Malum coram te feci[78]; o pródigo, falando com seu pai, dizia: Peccavi coram te[79]. - E este gentio verdadeiramente heróico, não respeitando a Deus, porque o não conhecia, nem aos homens, porque não fazia caso deles, quando houve de ensinar a um homem a heróica vergonha do pecado, diz: Coram quo peccare non audeas. - Oh! grande façanha da dignidade e generosidade humana! A vergonha a respeito dos homens é filha da fama e da honra; a vergonha a respeito de Deus é filha da culpa e do temor; a vergonha a respeito de si mesmo - como Minerva do cérebro de Júpiter - é filha única da razão.

Eu não sei se porventura Sêneca, naquele tempo em que se comunicava por cartas com S. Paulo, aprendeu este documento da escola de Cristo; porém sei que o mesmo Cristo o praticou entre seus discípulos, com uma diferença notável. Fez o divino Mestre na sua escola duas eleições, ou duas classes, uma dos doze apóstolos, outra dos setenta e dois discípulos, e enviou-os todos a pregar; mas como? Aos discípulos de dois em dois: Misit illos binos (Lc. 10, 1); aos apóstolos um a um: um à Ásia, um à América, um à Etiópia, um à índia, e assim os demais. E por que os apóstolos sós, e os discípulos não sós, senão acompanhados? Porque os apóstolos, no tempo em que foram enviados, eram já homens de heróica e consumada virtude; os discípulos em seu tempo não. Quem tem chegado a grau heróico e consumado de perfeição, leva em si, e consigo mesmo, o respeito, a reverência, e o seguro das suas ações; quem não tem chegado àquele grau, não leva este seguro em si, e consigo, senão nos olhos e no testemunho do companheiro: é como o cego que para não cair se ajuda dos olhos alheios, aquele faz obras dignas de si, porque se vê; este, porque é visto; aquele, porque se respeita e reverencia a si mesmo; este, porque teme e se envergonha do outro.

Tempo houve em que eu cuidava que Gedeão era um grande herói, depois mudei em parte este conceito, por um caso digno de particular reflexão. Naquela noite tão celebrada, na qual com tão pouco número de homens, e desarmados, desfez Gedeão os exércitos inumeráveis dos madianitas, antes de se dar a batalha lhe falou Deus, e lhe disse estas palavras: - Gedeão, é tempo de que tu em pessoa vás a reconhecer os arraiais do inimigo, e tão de perto que possas ouvir e entender o que praticam entre si os soldados; mas se tens medo, leva contigo o teu criado Fara: Sin autem ire,formidas, descendat tecum Phara puer tuus (Jz. 7, 10). - E que importava levar Gedeão em sua companhia um criado para defendê-lo? Não contra tanta multidão, antes para o segredo e silêncio naquele furto militar, e para não fazer rumor nem ser sentido, era mais do caso que Gedeão fosse só: por que logo lhe diz Deus que leve consigo aquele criado? Porque a ação era dificultosa e de grande risco, e que requeria um grande valor; e se Gedeão, como ia de noite, fosse também só, não tendo de que envergonhar-se, porventura tomaria atrás, e não chegaria ao posto: leve, pois, consigo uma testemunha que o possa ser, ou do seu valor, ou da sua fraqueza, para que não falte nem à obrigação do seu ofício, nem ao decoro de sua pessoa. E que fez Gedeão? Reconheceu o perigo, confessou o temor, levou o criado, e portou-se como devia. Quantas vezes, senhores, aquela fraqueza que se esconde do público, e ainda se oculta à família - se é que se pode ocultar nada a tantos argos domésticos -quantas vezes, digo, se fia o segredo de um criado? Se vos não envergonhais de vós mesmos, envergonhai-vos ao menos como Gedeão, de que saiba o criado a vossa fraqueza. Quem fia de um criado a sua honra, ou perde a honra, ou se faz escravo do criado. Se Gedeão fiara o seu temor de Fara, e ele o não calasse, que se diria ao outro dia nos corrilhos dos soldados? E, se guardasse o segredo, quão sujeito lhe ficaria Gedeão sempre, por que calasse sempre? Grande prudência foi logo vencer aquele temor com este temor, aquele perigo com este perigo, e temer antes os olhos do criado, que não cometer a fraqueza, que haver de temer a sua língua depois de cometida.

Porém, ainda que a ação de Gedeão foi prudente e honrada, nem por isso, como dizia, teve nada de heróica: E por quê? Porque envergonhar-se heroicamente de cometer uma fraqueza há de ser por reverência de si mesmo, e não por temor ou respeito de outro; quem se envergonha do criado mais que de si, estima-se menos que ao criado. Então seria heróico o brio de Gedeão, quando não quisesse aceitar a companhia de Fara, nem de outro algum, e ele só e de noite fosse, só e de noite chegasse ao posto, só e de noite reconhecesse, examinasse tudo, e se temesse naturalmente, como confessou que temia; só e de noite vencesse o seu temor e o seu perigo, não por não perder a reputação com outro, senão por envergonhar-se de si. Homo etiam in solitudine ac tenebris de suis malefactis erubescit, conscientia ipsum accusante[80] - diz Teodoreto. - Como a solidão não aparta ao homem de si, nem as trevas o encobrem ou escondem a si mesmo: solitário e às escuras se envergonha de si quem é homem. - O maior teatro da natureza racional não é o mundo, é a própria consciência: não há de fazer Gedeão o que não deve, porque vai acompanhado de Fara, senão porque é Gedeão. Levar-me a mim comigo, há de ser o mais seguro fiador das minhas obrigações, e não por outro respeito, senão porque são minhas. Valente, generoso, desprezador dos perigos, honrado sem fim, não porque sou visto, senão porque sou eu, basta que eu me veja.

Nisto consiste o fino e o heróico da vergonha de si mesmo, porque, formando-se a vergonha, como temos mostrado, entre os olhos do que vê e os olhos do que é visto, que bastem os olhos próprios, sem concurso nem encontro dos alheios, para formar em mim, e de mim a mesma vergonha, não há dúvida que é fineza do pundonor humano verdadeiramente heróica. E se me perguntar algum filósofo como pode fazer-se tudo isto dentro dos mesmos olhos, e de si para consigo, digo que multiplicando-se o homem, e dividindo-se de si mesmo. Narciso dizem que se namorou de si, porque, sendo um só, julgou que era dois; e assim multiplicado e dividido de si mesmo, ele era o que via e o que era visto. Do mesmo modo quem dividido de si, se vê formoso, namora-se de si, quem dividido de si se vê feio, envergonha-se de si. Não é fábula ou imaginação, senão Escritura Sagrada: Statuam te contra faciem tuam (SI. 49, 21): Para que te envergonhes de ti mesmo - diz Deus - eu te porei a ti defronte de ti: Te contra faciem tuam. - Tu de uma parte, e tu de outra; tu dentro, e tu fora de ti; tu vendo, e tu sendo visto; tu o juiz, e tu o réu das tuas ações; e porque elas são indignas de ti, tu te envergonharás de ti mesmo. Quis Natã que Davi se envergonhasse do seu pecado, e que fez? Dividiu a Davi de si mesmo, e pôs a Davi diante de Davi; contou-lhe o caso do poderoso que havia roubado ao pobre a única ovelhinha, acendeu-se o rei em zelo de justiça contra o autor de tão enorme delito: disse-lhe então o profeta: Tu es iste vir (2 Rs. 12, 7): Vós sois este homem mau. - E no mesmo instante Davi, confuso e envergonhado de si, reconheceu o seu pecado: Peccavi Domino[81]. - De maneira que o mesmo Davi, que primeiro não via, nem se envergonhava da deformidade e publicidade do seu pecado, dividido de si, e posto diante de si, se viu e se envergonhou de si mesmo; por isso dizia ele: Verecundia mea contra me est[82] - não dentro, senão fora, não em mim, senão defronte de mim, está a causa de minha confusão e vergonha; porque, como estou dividido de mim, de cá me vejo, e de lá sou visto; e da parte donde sou visto, que é defronte de mim, dali vem e reflete sobre mim a vergonha: Verecundia mea contra me est.

§IV

A vergonha a respeito dos homens. A respeito dos homens pode haver também vergonha heróica? Por que causa será tão intolerável a vergonha e confusão dos condenados no dia do Juízo? O heróico da vergonha de Isaías em Jerusalém. Como vieram a perder a vergonha os dois velhos de Susana? Advertência aos estrangeiros que se encontravam em Roma.

Declarada já a vergonha heróica do pecado a respeito de si mesmo, para complemento da matéria, e da divisão que temos proposto, resta saber se a respeito dos homens pode haver também vergonha heróica. Respondo com distinção: em Roma não; nas outras cidades, e nas outras cortes do mundo, sim. E por que razão? Porque em uma cidade toda santa, como é Roma, aonde os exemplos de todo o gênero de virtudes são tantos, tão excelentes, e tão públicos, naturalmente se envergonha o vício de aparecer; porém, em outras cidades e cortes do século corrupto, aonde o costume dos vícios se fez lei, e os mesmos vícios canonizados pela multidão - e também por aqueles que não são multidão - já não causam escândalo aos homens, antes lhes servem de regra e de exemplo, se ainda assim em tais lugares, e em tal gente um homem se envergonhasse de seus vícios, esta vergonha seria heróica.

No dia do Juízo será tal a vergonha e confusão dos condenados que pedirão por partido o inferno. Oséias em nome de todos: Dicent montibus: Cadite super nos; et collibus: Operite nos[83]; e Jó, em nome de cada um: Quis mihi hoc tribuat, ut in inferno protegas me, etabscondas me, donec pertranseat furor tuus[84] ? - E por que causa vos parece que será tão intolerável a vergonha e confusão dos condenados naquele dia? Não só porque se verão a si mesmos, e os seus pecados, que sempre se vêem, mas porque se verão a si, vendo juntamente e tendo diante dos seus olhos os justos e os santos: o mau em presença do bom, ainda que seja um condenado, se envergonha; e assim será no vale de Josafá; porém, no inferno, aonde todos são maus, nenhum se envergonha dos outros. Por que há de envergonhar-se um demônio aonde todos são demônios, e um condenado aonde todos são condenados? O mesmo passa nas cidades, nas repúblicas, nas cortes de costumes e vida corrupta, que são os infernos cá de cima: onde a ambição e a sede insaciável de crescer e subir é instituto e profissão pública, quem se envergonhará de ser ambicioso? Aonde a cobiça, a avareza, e o adquirir sobre adquirir seja lícito ou ilícito, se tem por fortuna, e se inveja, quem se envergonhará de ser avaro? Aonde a maior parte é o engano, a dissimulação prudência, a mentira e a lisonja merecimento, quem se envergonhará de mentir? Por isso em uma cidade, e em um povo cheio de tais vícios, se contudo houver alguém que se envergonhe de ser cúmplice neles, esse homem não só será homem de vergonha, mas de vergonha heróica. Eu o busquei em toda a Escritura, e não achei outro, senão Isaías.

Vae mihi, quia tacui, quia vir pollutus labiis ego sum, et in medio populi polluta labia habentis ego habito (Is. 6, 5): Ai de mim - diz Isaías - que tenho a língua impura, e vivo no meio de um povo que também a tem impura. - Notável reflexão! Naquele tempo, como neste, o vício mais comum da corte eclesiástica do povo de Deus era a adulação e lisonja: não só não se condenavam os costumes corruptíssimos dos grandes, mas, como se fossem virtudes, eram louvados; compunham-se poemas à soberba, penegíricos à cobiça, hinos à ambição; e, ainda que Isaías em tudo o mais era homem mui reto, tinha-se deixado levar um pouco da corrente, e em particular - como nota S. Jerônimo - havia dissimulado cem el-rei Osias, não o repreendendo, como devera, por querer confundir a jurisdição temporal com a eclesiástica, e a tiara com a coroa. Esta era a causa por que se envergonhava Isaías de si mesmo, e lamentava dizendo: Vae mihi, quia tacui, quia vir pollutus labiis ego sum: Ai de mim, que calei, e profanei a minha língua, e sou homem de boca impura. - Mas por que acrescenta o profeta que este mesmo vício, de ter impura a boca, era comum a todo o povo de Jerusalém, aonde ele habitava: Et in medio populi polluta labia habentis ego habito? - Porventura para escusar o seu pecado com a multidão e com a corrupção do mesmo vício, universal então em toda a corte? Esta é nas cortes a escusa ordinária e o véu corado com que se cobrem muitos vícios, ainda daqueles que têm o ofício e obrigação de Isaías. Se perguntarmos ao cortesão, e ainda ao ministro, por que cala o que deve dizer, por que fala contra o que entende, por que louva o que reprova, por que agradece o que o ofende, por que veste com indecência, por que passa sem modéstia, por que gasta o que não tem, por que sustenta o que não pode, por que paga o que não deve, e o que deve não paga: responde que faz e vive como os demais, e que na corte não se pode viver de outra maneira. Diremos, pois, que Isaías se escusava do mesmo modo, como se dissera: - Confesso que vir pollutus labiis ego sum[85]; confesso que não falei com a liberdade, com a verdade, com a pureza que devia; mas como podia eu dizer outra coisa, si in medio populi polluta labiis habentis ego habito[86]? - E se este é o estilo e linguagem de Jerusalém, e se no povo onde vivo, todos falam ou calam desta sorte, não é culpa minha, é vício do tempo e da corte: por certo assim o podia dizer Isaías, e este seria o seu pensamento se não fora Isaías; porém, ele dizia: Vae mihi, vae mihi: não se escusava com a multidão, antes por isso se acusava mais; não alegava a corrupção da corte por pretexto à escusa, mas por maior motivo à vergonha; porque todos fazem assim, por isso não devia eu ser como todos; porque eu vivo no meio de um povo de boca corrupta, por isso a minha devia ser incorrupta e incorruptível; não devia eu viver em Jerusalém como jerosolimitano, senão entre os jerosolimitanos como Isaías; mas porque eu em Jerusalém, e no meio dos jerosolimitanos me portei, não como exceção de todos, mas como um deles, por isso me envergonho e me lamento: Vae mihi, quia vir pollutus labiis ego sum, et in medio populi polluta labia habentis ego habito. - Ó varão verdadeiramente heróico! Viver no meio de um povo de boca corrupta, e envergonhar-se de ter o mesmo vício, isto é o heróico da vergonha.

Assim se envergonhava dos homens do seu tempo, e do seu povo aquele grande homem Isaías, verdadeiramente herói da sua e de todas as idades; e a razão de ser heróico este raro modo de envergonhar-se, é porque a vergonha se conserva na diferença dos costumes e se perde na semelhança; e quando ela não se perde, antes se conserva e permanece no seu maior perigo, então se afina e levanta de ponto, e sobe ao grau de heróica. Aqueles dois senadores de Babilônia, vulgarmente chamados velhos de Susana, diz o texto sagrado que ambos andavam feridos da mesma dor; porém, que se envergonhavam de declarar-se entre si, porque nenhum sabia a enfermidade do outro: Erant ambo vulnerati amore ejus, nec indicaverunt vicissim dobrem suum; erubescebant enim indicare sibi concupiscentiam suam[87]. - De maneira, que enquanto cada um deles julgava que o outro era qual devia ser, esta diferença estimada conservava entre os dois a vergonha. E como vieram final mente a perdê-la? O mesmo texto o diz referindo o caso, ou o enredo, mais para fingido em outros anos que para imaginado naqueles. Saíam ambos os velhos do senado, que era em casa de Susana, viram que ela à mesma hora tinha entrado no jardim, despede-se um do outro, com intenção cada qual de tomar logo só, para lograr a oportunidade da ocasião: e que lhes sucedeu? Que como se tinham encontrado com os pensamentos, assim se encontraram com as pessoas; acharam-se juntos, sem o cuidar, no mesmo posto; e logo, tirada a máscara, se declararam, e como eram cúmplices no desejo, se uniram a sê-lo no delito. Pois, se um e o outro eram tão maus antes como agora, por que antes se envergonham, e agora não? Porque antes se julgavam diferentes, e agora se conheceram semelhantes; antes, ainda que um e o outro era mau, um ao outro se tinha por bom; porém, depois que pela correspondência daquele acidente se conheceram enfermos da mesma loucura, a vergonha, que se conservava na opinião de cada um, se perdeu no conhecimento de ambos: como a vergonha vulgar não é outra coisa que o temor de perder o crédito, ou a confusão de o ter perdido, e o vicioso não perde o crédito com o vicioso pela semelhança, com o virtuoso sim pela diferença; esta diferença é a que sustenta a vergonha, e aquela semelhança a que a destrói: assim lhes aconteceu aos dois ministros de Babilônia, ao princípio tão recatados e vergonhosos, porque se imaginavam diferentes, e no fim tão sem vergonha, porque se conheceram semelhantes. Logo, se tanto pode a semelhança do mesmo vício de um homem a outro homem, que será de um homem a uma cidade inteira, e mais a uma corte? Perdido, pois, o descrédito do vício, antes acreditado o mesmo vício pelo exemplo comum de todos os homens, que ainda assim se envergonhe um homem de ser vicioso com os demais, e que o mesmo vício, que tem perdida a vergonha, cause vergonha, esta é a vitória mais ilustre da formosura da virtude contra a fealdade do vício, e a vergonha mais heróica de homens a homens.

Vós, pois, que por graça de Deus viveis nesta santa cidade, aonde o vício, deslumbrado de todas as partes, com tantos resplendores de virtude, é força que naturalmente se envergonhe, se esconda, e fuja como as trevas da luz, contentaivos com a vergonha heróica a respeito de Deus e de si mesmo. A vergonha a respeito dos homens, que também pode ser heróica, fique toda para os estrangeiros; a estes rogo eu e protesto que quando voltarem para as suas pátrias, se por desgraça acharem nelas o que se vê em tantas, isto é, a pureza dos costumes corrupta, e os vícios, pelo mesmo costume, ou sem má reputação, ou, o que é pior, com crédito e autoridade, se lembrem que nem por isso devem compor ou descompor as suas vidas ao espelho e ao exemplo dos mais; mas antes envergonhar-se por isso mesmo de ser semelhantes a eles: se achardes que a vossa pátria é como Hus, vivei como Jó; se como Caldéia, vivei como Abraão; se como Egito, vivei como José; e se, finalmente, passando pelo mundo, o vireis todo tão corrupto como em tempo do dilúvio: Quando omnis caro corruperat viam suam[88] - vivei com a singularidade constante e inexpugnável de Noé: Vir justus atque perfectus in generationibus suis[89].

§V

Como nos havemos e não havemos de envergonhar? Por que há de ser o corado da vergonha como o da aurora, e não como o do crepúsculo? Os conselhos da Igreja e o conselho do pregador Os castigos de Deus e os pecados ocultos. O quase-sacramento da vergonha. Advertência final: Se vos não envergonhais para não pecar, ao menos pecai com vergonha.

E para acabar com algum documento universal, e que sirva a todos, levai todos para casa este conselho breve, não meu, senão de nossa mãe, a santa Igreja: Pudor sit ut diluculum, crepusculum mens nesciat. - Duas vezes no dia se mostra corado o céu, uma de manhã à aurora, outra ao crepúsculo da tarde; e porque o mostrar-se corado é frase e metáfora própria de envergonhar-se, por isso usa aqui a Igreja, com maior propriedade e elegância ainda na sua língua, isto é, na latina, que na nossa: diz pois a Igreja que a cor que a vergonha do pecado puser na cara, há de ser como a da aurora, não como a do crepúsculo: Pudor si ut diluculum, crepusculum mens nesciat. - Não sei se entendeis todos o mistério. Tão belo, tão ardente, tão fino, tão filho do sol é o púrpuro do crepúsculo como o da aurora; por que logo há de ser o corado da vergonha como o da aurora e não como o do crepúsculo? Porque o purpúreo ou vergonhoso da aurora vai das trevas à luz; o do crepúsculo vai da luz às trevas. Tal há de ser a vergonha cristã, que seja do mal para o bem, e não do bem para o mal. Em tempo de Santo Agostinho havia moços tão perdidos, e ele era um deles, que não só tinham vergonha da virtude, porém corriam-se e envergonhavam-se de não ser tão maus como os mais perversos, e de que houvesse outros piores. Oh! provera ao céu que só naquele tempo, e na África, fosse visto o horror destes crepúsculos! A Roma e aos romanos escrevia S. Paulo, quando disse: Promptum est et vobis, qui Romae estis, evangelizare; non enim erubesco Evangelium (Rom. 1, 15 s): Também estou - diz - aparelhado a ir pregar-vos a vós, que estais em Roma, porque não me envergonho do Evangelho. - O mesmo Evangelho, que hoje é a glória da Roma cristã, então era vergonha na Roma gentia; veja, porém, a mesma Roma se se acharão ainda hoje nela alguns vestígios ou cores daquela vergonha, e se pode dizer com o seu apóstolo: Non erubesco Evangelium. - Que ensina o Evangelho? O Evangelho ensina pobreza; e quem há que se não envergonhe de ser pobre? O Evangelho ensina perdão de agravos e esquecimento de injúrias, e quem há que se não envergonhe de se não vingar? O Evangelho ensina desprezo do mundo, e total renúncia de suas pompas e vaidades, e quem há que se não envergonhe de não igualar à grandeza e luzimento do mais vão? Isto não é envergonhar-se do Evangelho? Não é envergonhar-se de ser cristão? Não é envergonhar-se de Cristo pobre, de Cristo humilde, de Cristo injuriado, afrontado, crucificado? O mesmo Cristo o confessa e não sem vergonha: Qui me erubuerit, et meos sermons, hunc filias hominis erubescia[90]: Vós vos envergonhais de mim, e eu me envergonharei de vós, porque, quando o Evangelho é vergonha para o cristão, o cristão é vergonha para Cristo; como se não há de envergonhar Cristo de um cristão, que, professando a sua lei, se envergonha das virtudes que pregou e louvou, e não se envergonha dos vícios que ele condenou e amaldiçoou? Por isso a Igreja nos ensina como nos havemos, e não havemos de envergonhar: envergonharmo-nos como a aurora, para passar das trevas à luz: Eratis aliquando tenebrae, nunc autem lux in Domino[91] - e não nos envergonharmos como o crepúsculo, para passar da luz às trevas: Dilexerunt homines magis tenebras quam lucem[92].

Mas porque a prática deste conselho ou desejo da Igreja não tem fácil execução, e da fraqueza humana se pode com maior certeza temer o contrário, em tal caso, com licença sua, me atrevo a aconselhar a todos, que já que não imitam a aurora em fugir às trevas, e crescer sempre a maior luz, ao menos façam em parte como o crepúsculo, que, quando vira as costas à luz, se esconde e se sepulta nas trevas. Se te resolves a pecar, ó cristão, seja ao menos em secreto: esconde e sepulta o teu pecado, para que ninguém o saiba, porque a mesma vergonha, com que o escondes aos olhos dos homens, te alcançará misericórdia nos olhos de Deus. O confessar o pecado depois de cometido, e escondê-lo quando se comete, quase correm parelhas em ordem ao remédio do pecado. É a vergonha como um oitavo sacramento, ou verdadeiramente uma ampliação maravilhosa do quarto, porque, se o sacramento da penitência tira a culpa, o quase-sacramento da vergonha suspende a pena: vede se é ponto de importância para o tempo presente, e se o provo.

Ameaça Deus pelo profeta Jeremias a ruína de Jerusalém, e o desterro e extermínio de todos os seus cidadãos; mas por que causa? Não só pelos gravíssimos pecados daquela ingrata república, senão porque, pecando, não se envergonhavam. Diz o mesmo profeta: Confusi sunt, quia abominationem fecerunt; quinimo non sunt confusi, et erubescere nescierunt. ldcirco cadent inter corruentes in tempore visitationis suae[93]. - Chove Deus fogo sobre as cinco cidades da infame Sodoma, não ficando dos homens e das pedras mais que as cinzas; e, ainda que não era necessária mais causa, nem tanta para tão extraordinário castigo, acrescenta Isaías que não só foi porque pecaram tão abominavelmente, senão porque não ocultaram nem esconderam o seu pecado: Peccatum suum sicut Sodoma praedicaverunt, nec absconderunt[94]. - De maneira que, quando Deus executa, ou quer executar castigos, atende a sua justiça a duas coisas: a primeira, para a sentença, à multidão e graveza dos pecados; a segunda, para a execução à publicidade ou segredo com que foram cometidos; porque, se os pecados são graves e públicos, executa o castigo, porém, se são secretos, ainda que gravíssimos, suspende a sentença. Por isso os dois profetas, sobre os dois pecados de Jerusalém e Sodoma, acrescentam a publicidade, com que se não envergonhavam deles nem os escondiam. Supondo um e outro nesta condição que, se aqueles homens se envergonhassem de suas maldades, e as escondessem, ainda que Deus por isso não lhes perdoasse a culpa, ao menos suspenderia a pena. Parece que se envergonha Deus de executar o castigo quando o homem se envergonha de cometer o pecado; e se buscarmos a razão desta limitação da divina justiça, ou desta ampliação da sua misericórdia, que a mim me parece verdadeira, e mui conforme às suas mesmas leis, é porque Deus instituiu a confissão do pecado por remédio do pecado; e quem pecando se envergonha do seu pecado, e o esconde, ainda que não confesse o pecado, confessa que é pecado; e basta esta meia confissão para alcançar meia absolvição. A confissão inteira da penitência tira a culpa, a meia confissão da vergonha suspende a pena; nem é grande maravilha que Deus, pela vergonha do pecado sem confissão, suspenda o castigo temporal, quando pela vergonha do pecado na confissão comuta a pena eterna.

Senhores meus - falo com toda a Itália - quando são verdadeiros os discursos não são necessários prodígios; mas quando os prodígios, e tão formidáveis, concordam com os discursos, não temer os avisos e ameaças do céu, não só é faltar à razão, senão também à fé. O primeiro remédio de evitar os castigos é tirar os pecados; o último, escondê-los. Se vos não envergonhais para não pecar, ao menos pecai com vergonha.

DISCURSO IV

Elegit quinque limpidissimos lapides de torrente.[95]

§1

Quarta pedra. o temor do castigo. Como há de ser limpo e heróico este argumento?

Se alguma vez foi terrível, se alguma vez formidável e espantosa a funda de Davi, nunca de maior terror, nunca de maior horror e espanto, que no tiro que faz hoje, e o estalo é um trovão, a pedra um raio: o estalo é tão horrendo e temeroso, que só ouvido fará desmaiar e tremer ao maior gigante; a pedra é tão dura e tão forte, que ainda que a testa esteja armada de aço e de diamante, a romperá sem resistência, e a penetrará até o cérebro: e qual será a ferida tão profunda e tão estranha, que em lugar de tirar o sangue para fora, o retira e recolhe todo ao coração? Este é o efeito natural do temor, e este o argumento terrível que haveis de ouvir nesta hora: Timor supplicii: o temor do castigo.

Porém este argumento, direis, senhores, como se pode concordar com o meu? O meu argumento, como prometi ao princípio, e tenho mostrado até agora, deve ser heróico; e se é do inferno, como há de ser limpo? A pedra de hoje, direis, será dura e duríssima; porém, limpa e limpíssima: Limpi dissimos lapides - desta vez não. Parece-vos que todo o inferno, metido em um alambique afogueado, não poderá destilar uma quinta essência, ou de pena que seja limpa, ou de temor que seja heróico? Eu cuido que sim. Os teólogos dividem as penas do inferno em pena de sentido, que é o fogo, e em pena de dano, que é a privação da vista de Deus; mas quando eu entro com o pensamento nas entranhas mais íntimas do mesmo inferno, considero cá de fora, e a respeito de nós, um tormento e uma matéria de temor mais sensível que toda a pena de sentido, e mais ponderável que toda a pena de dano. E que nova e inaudita pena é esta? Fogo, e eterno, não ver a Deus, e para sempre, podem admitir sobre si outro excesso de pena? Não são estas aquelas duas colunas de fogo e de nuvem: uma de fogo, que eternamente arde; outra de nuvem, que eternamente cega? Como pode logo haver algum temor tão heróico, tão generoso, tão alto, que sobre estas duas colunas se atreva a escrever plus ultra? Isto é o que eu pretendo mostrar hoje. Ouvi o meu sentimento, e espero que há de concordar com o vosso.

§II

De que modo pode Deus estar e padecer no inferno? Se no inferno, como diz Santo Agostinho, há ordem, e suma ordem, como diz Jó que no inferno não há ordem? Eusébio Emisseno e a diferença do fogo do inferno ao nosso. A suma dissonância, a suma confusão e suma desordem que considerava Jó no inferno.

Senhores meus, eu temo, como todos, as penas do inferno; porém, o que me faz maior horror - deixai-me falar assim - não é o que no inferno padecem os homens; é o que no inferno padece Deus. Que Deus por sua imensidade não só esteja no céu, senão também no inferno, todos o sabeis, e credes: Si ascendero in caelum, tu illic es; si descendero in infernum, ades[96]. - Porém, que no inferno também Deus padeça, de modo que Deus pode padecer? Sim. Deus não pode padecer como sujeito de penas, porém pode padecer, isto é, ser ofendido, como objeto de injúrias: e que padece Deus por este modo no inferno? Coisa espantosa! Os condenados padecem no inferno tudo aquilo a que Deus os condena; e Deus padece no inferno aquilo a que não pode condenar os condenados. Deus manda ao meu coração que o ame, à minha língua que o louve, porém, não pode mandar ao meu coração que o aborreça, nem à minha língua que o blasfeme; e este é o exercício contínuo de todos os condenados, aborrecer eternamente, e blasfemar eternamente de Deus; e que eu, eu com este meu coração haja de aborrecer eternamente a Deus! E que eu, eu com esta minha língua haja de blasfemar eternamente de Deus! Deus eternamente aborrecido! Deus eternamente blasfemado! Este é o maior horror do inferno, este é o objeto mais terrível, e mais tremendo, que se deve temer naquele suplício.

Tendo considerado Jó os mais eficazes motivos do temor do inferno, conclui que o mais horrível de todos é não haver ali nenhuma ordem: Ubi nullus ordo, sed sempitemus horror[97]. - Bela definição, se não padecera duas grandes dificuldades: a primeira, medir o horror do inferno, não pelo fogo, nem pela privação de Deus, senão pela desordem; a segunda, supor e dizer expressamente que no inferno não há ordem. Começando por esta última: Ubi nullus ordo teologia certa que no inferno não só há ordem, senão suma ordem; assim o diz Santo Agostinho, e o prova maravilhosamente: Damnatus ibi est, et ita est, ubi esse, etquomodo esse ordinatissimum est[98]: O condenado ali está, e assim está aonde e como é suma ordem que esteja. - Aonde está o condenado? No inferno. E como está no inferno? Ardendo em vivas chamas. Logo, aquele lugar é ordenado, e ordenadíssimo, porque está o condenado aonde e como deve estar; aonde, porque está no inferno; e como, porque está ardendo: ibi est, et ita est, ubi esse, et quomodo esse ordinatissimum est. -Assim discorre Santo Agostinho, no livro sexto da Música, aonde mostra que esta ordem ordenadíssima é uma grande harmonia do universo, concertada por Deus no mesmo inferno; porque, assim como a culpa sem castigo é a maior dissonância, assim o castigo junto com a culpa é a maior harmonia. Boa doutrina para aqueles que fazem o compasso na república. Logo, se no inferno há ordem, e suma ordem, como diz Jó que no inferno não há ordem: Ubi nullus ordo? Para apertar mais a dúvida, e mostrar mais claramente o modo e ordem desta ordem, ouçamos a Eusébio Emisseno, o qual, com profundo juízo chamou ao fogo do inferno fogo racional: Illa non causalos, sed rationabilis, et poenalis exustio, quia culpam jubetur inquirere, substanciam nescit absumere[99]: Aquele fogo - diz - não causal, senão racional das penas do inferno, porque é instituído para inquirir a culpa, não pode consumir a substância. - Grandes palavras! Imitem os príncipes a Deus em moderar o poder aos instrumentos de sua justiça: por isso se vêem tantas substâncias consumidas, e tão poucas culpas emendadas, porque os que têm ofício de inquirir a culpa, têm poder de consumir a substância. Os instrumentos da justiça punitiva hão de ser como o fogo do inferno, o qual, quia culpam jubetur inquirere, substantiam nescit absumere. - Mas por que diz Emisseno que o fogo penal do inferno não é causal, senão racional: non causalis sed rationabilis? - Porque esta é a admirável diferença daquele fogo ao nosso. O nosso fogo é fogo causal, porque como causa natural obra e queima, sem distinção, com toda a força e atividade da natureza; porém, o fogo do inferno é fogo racional, porque nem obra nem queima segundo a atividade e força da sua natureza, senão como instrumento da suprema razão da divina justiça, medindo sempre a pena com a culpa, conforme a regra retíssima da mesma razão: o fogo da terra, sem respeito ao merecimento ou à culpa, tanto queima um mártir como um herege, tanto uma igreja como uma mesquita, tanto o incenso consagrado a Deus como oferecido ao ídolo; porém, o fogo do inferno primeiramente, como o da fornalha de Babilônia, respeita, reverencia, e não chega aos santos; e, se queima e atormenta aos maus, é moderando, ou estendendo a eficácia do seu ardor segundo o merecimento de cada um. Ao gentio menos, perdoando a ignorância; ao cristão mais, em consideração da fé; e ao eclesiástico e religioso muito mais, pela obrigação do seu estado e profissão; e até entre os mesmos demônios, tanto mais abrasa aquele fogo a Lúcifer quanto maior e mais culpável foi o seu delito, como de cabeça de rebelião, e dogmatista da apostasia. Pode haver maior justiça, pode haver maior igualdade, pode haver maior ordem? Prouvera a Deus que fosse tão bem governado e tão bem ordenado o mundo como o inferno; como logo diz Jó que no inferno não há ordem: Ubi nullus ordo?

Já é tempo de responder a esta grande dúvida, não examinada nem resoluta bastantemente até agora, e a solução não é outra senão o que eu dizia. Tudo o que se obra e padece no inferno, ou o faz Deus, ou os condenados: o que faz Deus é ordenadíssimo, o que fazem os condenados é suma desordem. Que faz Deus nos infernos? A sua justiça decreta as penas, a sua misericórdia as modera, a sua sabedoria as distribui e a sua onipotência as executa, e com tal ordem, proporção e medida, que de todas elas juntas, ainda que tão horríveis e espantosas, resulta no mesmo inferno uma consonância e harmonia pouco menos que celestial, e verdadeiramente divina: os tormentos, ou mais ou menos graves, ou mais ou menos agudos, fazem as vozes; a diferença, as figuras; a eternidade, os tempos; a igualdade, o compasso; e o fogo, que é órgão das dores, tanto levanta ou abaixa a pena, quanto é consonante à culpa: Consonam poenam gehennae ignis constituir Deus unicuique[100] - diz S. Máximo; e não era necessário que ele nem outro o dissesse; pelo contrário, que fazem os condenados no mesmo inferno? Não se pode dizer nem imaginar a desordem, a confusão e dissonância horrendíssima daquele caos, concorde só no tumulto perturbadíssimo dos afetos e paixões com o estrondo confusíssimo dos bramidos e alaridos tremendos, com que daquela multidão imensa de línguas sacrílegas é incessantemente blasfemado o céu; arde o ódio, morde-se a inveja, escuma a ira, raiva a desesperação, grita furiosa a dor, e desafoga-se sem nunca desafogar-se a vingança em injúrias, em opróbrios, em maldições contra o sempre mais e mais odiado Deus. De todos os atributos, e de todos os benefícios divinos se ouve ali em desentoados clamores a sua afronta; a justiça se chama injusta, a bondade iníqua; a misericórdia cruel, a liberalidade avara; a piedade ímpia, a sabedoria ignorante, e até a onipotência fraca e covarde, como empregada só contra manietados e miseráveis. No Padre se blasfema a criação, no Filho a redenção, no Espírito Santo a justificação e a graça, e na Humanidade sacrossanta a humildade, a pobreza, a paciência, a obediência, a cruz; e o mesmo sangue de infinito preço, derramado para apagar as chamas do mesmo inferno, as acende, atiça e assopra mais. Esta é a suma dissonância, a suma confusão e suma desordem que considerava Jó; e porque uma tal desordem é própria e natural do inferno, e totalmente infernal, como concebida e nascida, não da justiça de Deus, mas da maldade e protérvia dos mesmos condenados, por isso, com igual propriedade e verdade, diz Jó que no inferno não há ordem: Ubi nullus ordo?

§ III

A proporção e profundo juízo com que Jó mediu o horror pela desordem, e da suma ordem do inferno tirou o sumo horror, que o faz mais temeroso e horrível. S. João Evangelista e o inferno que foi lançado no fogo do inferno. Quais foram as dores e penas do inferno que na cruz cercaram a Cristo? Por que razão o rico avarento, nas chamas do inferno, só da língua se doía, e só para ela desejava refrigério?

Daqui fica já entendida e fácil a outra dificuldade da mesma sentença, e a proporção e profundo juízo com que Jó mediu o horror pela desordem, e daquela suma ordem do inferno tirou o sumo horror, que o faz mais temeroso e horrível: Ubi nullus ordo, sed sempitemus horror[101]. - A razão é manifesta, porque, pesada bem a malícia, deformidade, e atrocidade sacrílega daquela só desordem em comparação de todas as outras penas, tormentos e horrores do inferno, que homem de são entendimento poderá duvidar que ela só é mais horrenda e formidável, e digna, excessiva, e incomparavelmente, ou de maior ou de todo o horror? Que haja eu de arder eternamente no inferno, e carecer eternamente da vista de Deus, e blasfemar de Deus, e maldizer a Deus, isto é o terribilíssimo daquele terrível, e este é o inferno do inferno. Não é proposição minha, senão de S. João.

No capítulo vinte do Apocalipse diz o evangelista profeta que, acabado o dia do Juízo, viu lançar o inferno no fogo do inferno: Mors et infernus missi sunt in stagnum ignis ardentis[102]. - Notável dizer! E se perguntarmos a S. João que inferno é este, que viu lançar e ser lançado no fogo do inferno, do seu mesmo texto se vê claramente que são os condenados, os quais, acabado o Juízo, serão lançados para sempre nas chamas eternas, quando ouvirem da boca do supremo Juiz: Ite maledicti in ignem aeternum[103]'. - Pois, se os que hão de ser lançados no fogo do inferno são os condenados, por que diz S. João que então será lançado o inferno no inferno? Porque os condenados têm consigo e dentro de si outro inferno. No coração da terra há um inferno de fogo, aonde são atormentados eternamente os condenados; e no coração dos mesmos condenados há outro inferno do ódio de Deus, onde Deus é eternamente blasfemado e aborrecido, e este é o inferno, que foi lançado no fogo do inferno; aquele inferno, aonde são atormentados os condenados, é o inferno da terra; o outro inferno, aonde é odiado Deus, é o inferno do inferno; assim como há céu do céu: Caelum caeli Domino[104]- assim há inferno do inferno: Eruisti animam meam ex inferno inferiori[105]- E assim como o céu do céu é aquele em que Deus é eternamente louvado e amado,assim o inferno do inferno é aquele em que Deus é eternamente blasfemado e aborrecido; e por isso se chama inferno inferior, porque é o abismo do abismo, e a parte mais infernal do inferno. E para que se veja que não foi outro o pensamento de S. João, notai nas suas mesmas palavras que só a este segundo e maior inferno chamou inferno, e ao outro não: Mors et infernus missi sunt in stagnum ignis ardentis (Apc. 20, 14): O inferno - diz - foi lançado no lago de fogo ardente. - Ao inferno vulgar chama, não inferno, senão lago de fogo; e ao outro inferno, que foi lançado neste, chama propriamente inferno, porque o inferno, dentro do qual ardem e são atormentados os condenados, é um tanque de fogo; porém, o inferno que arde dentro dos mesmos condenados, e aonde Deus é o odiado e blasfemado, este é propriamente o inferno.

E se não, comparai entre si estes dois infernos, e achareis tanta diferença entre um e outro, quanto vai, não de um mal a outro maior, senão de maior mal ao bem. O mal daquele inferno é mal de pena, que, sendo justa, é bem; o mal deste é mal de culpa, e da maior culpa, que é o maior de todos os males: aquele inferno serve a Deus, e está da parte de Deus: este é rebelde a Deus, e faz guerra a Deus; aquele inferno é santo, porque castiga o pecado: este é ímpio e sacrílego, porque está sempre cometendo o maior de todos os pecados; aquele louva e exalta a divina Justiça, este infama a justiça, e blasfema a misericórdia; aquele faz mal a quem tem feito mal, este quer mal e diz mal do Autor de todo o bem; aquele executa a pena nos condenados, este condena e acusa ao retíssimo Juiz que os condena; aquele persegue a culpa, mas não destrói a natureza: este, sendo a natureza e essência de Deus eterna e imutável, a quisera destruir e acabar, e, porque não pode, o blasfema. Finalmente, aquele consiste na pena de sentido e na pena de dano, e este excede infinitamente quanto se pode padecer ou perder, ainda que o que se padece seja fogo eterno, e o que se perde, a vista de Deus para sempre.

Ouçamos esta verdade da boca do mesmo Cristo na cruz, que foi a balança mais fiel de todas as penas: Dolores inferni circumdederunt me, praeocupaverunt me laquei mortis (SI. 7, 6): Os laços da morte - diz o Senhor - me prenderam, e as dores do inferno me cercaram. - Os laços da morte, que prenderam a Cristo na cruz, foram os cravos, que como laços, o tinham pendente e atado de pés e mãos ao duro madeiro, e como laços de morte lhe abriram quatro feridas mortais, por onde se lhe ia destilando a vida em fios de sangue: isto é fácil de entender; mas quais foram as dores e penas do inferno que na cruz cercaram a Cristo: Dolores inferni circumdederunt me? - É sentimento de graves teólogos, entre eles do cardeal Belarmino, que como Cristo padecia na cruz para pagar pelas penas do inferno merecidas pelo gênero humano, quis também ele que alguns dos seus tormentos e dores fossem semelhantes, quanto podia ser, às que no inferno se padecem: aquela sede ardentíssima que interiormente o abrasava, e de que só se queixava: Sitio[106] - respondia ao fogo, que é a pena de sentido; e aquela ausência ou retiro do Pai, de quem se viu desamparado: Deus meus ut quid dereliquisti me[107]? - respondia à privação de Deus, que é pena de dano. Diremos, pois, que estas foram as dores do inferno de que fala Cristo? A propriedade das palavras não o permite, porque expressamente dizem que aquelas dores não só afligiam ao Senhor por dentro, mas o rodeavam e cercavam por fora: Dolores inferni circumdederunt me - logo, que penas e dores do inferno foram aquelas que o rodeavam e cercavam na cruz? O profeta, que pronunciou as palavras, não o diz; porém, disseram-no os evangelistas, que são os melhores intérpretes dos profetas. Todos os evangelistas dizem que junto da cruz no Calvário estavam os escribas, príncipes dos sacerdotes e fariseus, os quais, como cruéis inimigos de Cristo, e como ímpios sacrílegos, blasfemavam sua divindade: Blasphemabant eum dicentes: Si Filius Dei est, descendat de cruce. Confidit in Deo: liberet nunc, si vult eum: dixit enim: Quia Filius Dei sum[108]. - E como o Senhor por todas as partes ao redor da cruz via odiado e blasfemado a Deus na sua pessoa, este ódio e estas blasfêmias eram as dores e penas do inferno que o cercavam, e estas, que o cercavam, as que mais lhe doíam. É verdade que no mesmo tempo, como dissemos, padecia Cristo na cruz outras duas penas semelhantes às duas em que se divide e compreende todo o inferno vulgar, que nós somente estimamos e chamamos inferno; porém, como entre aquelas penas e estas fazia o seu amor e a sua dor a verdadeira estimação e juízo, a pena de ver blasfemado a Deus, era tormento excessivamente maior, e que mais altamente o afligia; e por isso, fazendo menos caso de todas as outras dores, só às blasfêmias dos que o cercavam chamou por antonomásia dores do inferno: Dolores inferni circumdederunt me.

É tão certo, e o deve ser para conosco este heróico juízo, que se as trevas escuríssimas do inferno não cegaram totalmente os condenados, e eles tiveram o uso do entendimento e da vontade tão livre e inteiro, como nós temos, esta pena só de blasfemar a Deus, entre todas, e sobre todas, havia de ser a sua maior dor e tormento. Vamos ao inferno. Sabida é de todos a famosa história do rico avarento, a prática que teve com Abraão, e as petições que lhe fez sobre o remédio de seus irmãos e seu. Esta é uma das maiores dificuldades que se acha em todo o Testamento Novo, porque no inferno, como ensina a Teologia, os miseráveis, condenados pela cegueira do seu entendimento e pela obstinação da sua vontade, nem para si, nem para outro podem pedir nem desejar coisa que seja moralmente boa; como, logo, se pode verificar que pedisse e desejasse o avarento o seu alívio, e muito mais a salvação de seus irmãos? Entre os padres antigos, Eutímio, e, entre os expositores modernos, Maldonado, dizem que a narração de Cristo não foi toda história, senão parte história, parte parábola, e esta é a verdadeira inteligência daquele texto[109]. Que aquele homem rico e avarento estivesse no inferno, é história; que desejasse ou dissesse aquilo que se refere, é parábola; e acrescentou Cristo para nossa doutrina ao verdadeiro da história o verossímil da parábola - como se o mesmo condenado no mesmo tempo estivesse juntamente dentro e fora do inferno: dentro pelo que padecia, e fora pelo que desejava - não porque efetivamente desejasse ou pedisse tais coisas, senão porque assim o devia fazer, se discorresse e obrasse como nós, com perfeita liberdade e uso da razão. Isto suposto:

É coisa digna de grande reparo que, estando aquele homem ardendo de pés e cabeça, e padecendo não um, senão muitos tormentos: Cum esset in tormentis[110] - só da língua se doesse mais, e só para a língua desejasse remédio: Ut intingat extremum digiti sui in aqua, ut refrigeret linguam meam[111]. - Cresce mais esta admiração, porque os pecados de que o vemos acusado nenhum é particular e próprio da língua: se era avarento, padeça mais nas mãos; se duro, e sem misericórdia, no coração; se dado à gula, no paladar e no estômago; se demasiadamente delicado e vão em vestir púrpuras e holandas, no tato e no cérebro; por que logo se dói mais, e se queixa só da língua? Porque com a língua, como fazem todos os condenados, blasfemava de Deus; e como ele só entre todos os outros, em suposição da parábola, obrava com inteiro juízo e uso da razão, como se estivera dentro do inferno para padecer, e fora, como nós, para julgar, por isso, entre todas as suas penas e tormentos, a dor que julgava mais terrível e intolerável era a de sua língua blasfema. Não se queixava das penas dos pecados passados, repartidas por todos os outros membros, mas do pecado presente, que cometia a sua língua sacrílega, digno - porque o via com juízo - de maior horror que todas as penas: cuspia chamas a sua língua ao céu, e fulminava raios de blasfêmias contra Deus; e o ardor furioso e raivoso desta mesma chama era o que mais lhe abrasava e atormentava a mesma língua: Ut refrigeret linguam meam, quia crucior in hac flamma[112]. - In hac - nesta chama, diz, para distinção das outras chamas do inferno: as outras chamas do inferno queimam e abrasam ao condenado; as chamas da blasfêmia, que saem da boca do condenado, intentam, se puderam, abrasar e queimar ao mesmo Deus; as outras chamas do inferno, como justas e racionais, contêm-se nos limites do centro da terra; as chamas da blasfêmia, como furiosas e sem freio de lei nem razão, não só penetram e passam a terra, mas sobressaem e chegam até ao céu: Posuerunt in caelum os suum[113]. - Que muito logo que o fogo e ardor de uma tal chama, não escurecida com as trevas do inferno, senão vista à luz clara da razão, o atormentasse mais que todas as suas penas, e só para ela desejasse ou devesse desejar refrigério: Ut refrigeret linguam meam?

§ IV

As três partes do inferno, e o horror com que se deve temer cada uma delas. Em que consiste o desejo f no e heróico do céu? Que fazem no céu os dois famosos serafins que viu e ouviu Isaías? O que teme sobretudo quem limpa e heroicamente teme o inferno.

Este é, senhores, o inferno destilado; isto o limpo, o puro das penas do inferno; e isto o mais fino e heróico do temor das mesmas penas: assim se divide a respeito de nós todo o terrível daqueles tormentos, não já em duas, senão em três partes; e não é minha a divisão, senão do teólogo mais angélico e mais sutil das coisas eternas, Davi. Ignis et sulphur, et spiritus procellarum pars calicis eorum[114]. - Fala literalmente das penas do inferno, e diz que o cálix dos condenados é composto e temperado de três ingredientes: fogo, enxofre e tempestades; o fogo é a pena do sentido; o enxofre, que o faz mais ardente e mais escuro, é a pena de dano; e as tempestades são as blasfêmias, as injúrias, as maldições, que por sumo furor, raiva e ódio de Deus se fulminam, e sobem perpetuamente do inferno ao céu: Superbia eorum qui te oderunt ascendit semper[115] - diz o mesmo Davi; e não podia declarar com semelhança ou metáfora mais própria que de tempestade. Não só os poetas, mas ainda os profetas, quando querem descrever a tempestade mais horrível, dizem que a braveza e fúria dos ventos já levantam as ondas ao céu, já as precipitam ao inferno: Ascendunt usque ad caelos, et descendunt usque ad abyssos[116]. - E isto, que nas tempestades do mar é hipérbole, na tempestade do inferno não chega a dizer tudo o que verdadeiramente é, porque os trovões e os raios daquela tempestade de blasfêmias, injúrias e maldições, não só sobem e se levantam desde o inferno até o céu, senão sobre o céu do céu até o mesmo Deus.

Comparando, pois, entre si estas três partes do inferno, e o horror com que se deve temer cada uma delas, isto é, a pena do sentido, a pena de dano, e o ódio e blasfêmias contra Deus, assim como a segunda é muito mais terrível que a primeira, assim a terceira excede infinitamente a segunda: a segunda é muito mais terrível que a primeira, porque, sendo o fogo mal finito, e Deus bem infinito, muito maior e mais terrível pena é não ver a Deus que padecer o fogo; e a terceira excede infinitamente a segunda, não por esta, mas por outra razão mais alta, porque não ver a Deus é pena minha, aborrecer e blasfemar de Deus é injúria de Deus; e quanta diferença há de mim a Deus, tanta há do horror de um tormento a outro. Temer o inferno por não ver a Deus, é temê-lo por amor de mim; temer o inferno por não blasfemar de Deus, é temê-lo por amor de Deus; e por isso este temor é mais fino e heróico: pelo seu contrário o vereis claramente. O contrário do temor é o desejo, e o contrário do temor do inferno é o desejo do céu. Agora pergunto: O desejo fino e heróico do céu, em que consiste? Porventura em desejar ver a Deus? Não. Consiste não em desejar vê-lo, senão em desejar louvá-lo eternamente. É conclusão expressa de uma alma coroada e desconfiada desta vida, el-rei Ezequias.

Domine, salvum me fac (Is. 38, 20): Senhor, salvai-me - e, se persistis na sentença de que morra amanhã, e no meio dos meus dias deixe a vida e a coroa, dai-me o céu. Bem; mas para que, santo rei, desejais e pedis o céu? Para ver a Deus, e gozá-lo eternamente? Não é isso o que eu digo, continua Ezequias: Salvum me fac - digo - et psalmos nostros cantabimus omnibus diebus nostris in domo Dominê[117], - Se vos peço, Senhor, e desejo o céu, o meu fim principal não é para ver-vos, senão para louvar-vos, e cantar eternamente vossos louvores no coro das moradas eternas. -Tal é o desejo fino e heróico do céu: querê-lo e desejá-lo, não para ver a Deus, que é glória minha, senão para louvá-lo, que é honra sua. E se não, adverti o que fazem no mesmo céu aquele par de heróis sem par, os dois famosos serafins que viu e ouviu Isaías: Velabantfaciem ejus, et clamabant alter ad alterum.Sanctus, Sanctus, Sanctus (Is. 6, 2 s): Assistiam sempre ao trono da majestade de Deus, com duas asas cobriam sua divina face, e não cessavam jamais de cantar e repetir alternadamente: Santo, Santo, Santo. - Pois esta é a fineza dos mais elevados espíritos da suprema jerarquia? Sim, esta é: cobrir os olhos, e dizer santo: louvar a Deus sem cessar, e cuidar mais dos seus louvores que da sua vista; e como o desejo fino e heróico do céu é desejá-lo, não para ver, senão para louvar a Deus, assim o temor fino e heróico do inferno é temê-lo, não por não ver Deus, mas pelo não blasfemar. Não vê-lo é dano meu, blasfemá-lo é injúria sua. E isto é o que teme sobretudo quem limpa e heroicamente teme o inferno.

§V

O maior horror do inferno: a consideração de ver a Deus blasfemado. Três considerações sobre a razão adequada desse horror. Por que quis a divina Providência que as blasfêmias do inferno não fossem castigadas com penas novas.

Bastava o que está dito para desempenhar o meu argumento, mas não basta para satisfazer à minha consideração. A consideração de ver a Deus blasfemado é o maior horror do inferno; mas ainda há mais que acrisolar neste mesmo horror do inferno, se me dais licença para que me detenha um pouco em refiná-la. Bem vejo que passarei os termos da costumada brevidade; porém, o ser largo também é propriedade do inferno. Que novo motivo, pois, ou que nova circunstância de horror é esta? Sobre ver a Deus blasfemado pode haver consideração ainda mais terrível? Sim, e nas mesmas blasfêmias. Não sei se quis significar tanto o mesmo Autor divino, que na divisão dos tormentos do inferno acrescentou a terceira parte, e no crisol daquele cálix destilou o mais apurado e fino dos seus horrores: Ignis et sulphur, et spiritus procellarum, pars calicis eorum[118]. - Dos materiais que se destilam, as partes mais puras e sutis se chamam espíritos; sendo, pois, as blasfêmias e injúrias de Deus, como temos visto, as tempestades e furacões do inferno, os espíritos das tempestades: Spiritus procellarum - o mais fino, o mais puro, o mais sutil, o mais espirituoso destas injúrias, em que vos parece que pode consistir? Eu digo que na impunidade: em ser injúrias de Deus, sim; mas muito mais em ser injúrias não vingadas.

Para inteligência deste pensamento havemos de supor, com a sentença comum dos teólogos, que no inferno só são punidos e castigados os pecados cometidos nesta vida. Os outros pecados, que se cometem no inferno, como são as contínuas blasfêmias e injúrias de Deus, não se castigam lá com pena nova: e que é o que se segue desta suposição? Segue-se que nesta terceira parte do inferno cessa totalmente aquela harmonia que considerava Santo Agostinho, e resulta uma nova dissonância e circunstância de horror incomparavelmente mais tremenda. Os pecados cometidos nesta vida por isso fazem harmonia no inferno, porque a pena proporcionada está sempre junta à culpa; porém, os pecados que se cometem no inferno, como à nova culpa não corresponde nova pena, em lugar daquela harmonia fazem uma nova dissonância, tanto maior, e tanto mais horrenda, quanto o ódio e desprezo de Deus é maior pecado, e o pecado sem castigo é a maior afronta. Ali está Deus ofendido, mas vingado: aqui, não vingado, e muito mais ofendido; ali triunfa a justiça, e desagrava-se o poder: aqui prevalece o delito, e eterniza-se o agravo; ali o fogo da pena apaga a ofensa: aqui a impunidade da culpa acende a injúria. E que haja eu de ver - não digo fazê-lo, porque não admite o coração cristão tal suposição - e que haja eu de ver a meu Deus blasfemado, e os blasfemos sem castigo! A sua majestade infinitamente lesa, e o seu respeito perdido, a sua honra desacatada, a sua bondade aborrecida, os seus atributos divinos cheios de opróbrios e maldições eternamente, e todas estas injúrias não vingadas! Se isto não é o último assombro e pasmo do horror, não temos fé.

A razão adequada deste horror só Deus a compreende; o pouco que eu considero, tirado das Escrituras, é tão muito e tão grande, que só dividido por partes se pode conceber. A primeira consideração é porque a honra lesa e ofendida, não só a humana, senão ainda a divina, não tem outro reparo ou consolação, senão a vingança executada no autor da ofensa; isto se entende quando a vingança é justa, como são as de Deus, e por isso o mesmo Deus ofendido não duvidou de o confessar assim: Heu! consolabor super hostibus meis, et vindicabor de inimicis meis (Is. 1, 24): Eu - diz - me consolarei, eu me vingarei de meus inimigos - porque, se Deus fosse capaz de desconsolação, só a sua honra ofendida e não vingada o poderia desconsolar. Que mais? A segunda consideração é porque, entre todas as ofensas da divina majestade, a que Deus jamais deixou de vingar é a blasfêmia, como aquela que mais direitamente se opõe à regalia do seu mesmo ser. O homicídio, o adultério, a traição e aleivosia cometida contra o inocente Urias, já Deus tinha perdoado a Davi: Verumtamen - replica o mesmo Deus - quia blasphemare, fecisti nomen Domini, non recedet gladius de domo tua (2 Rs. 12, 10-14): Mas porque tu, com o teu mau exemplo, fizeste blasfemar o meu nome, nunca a minha espada se levantará da tua casa. - Davi não havia blasfemado de Deus, e só com o seu pecado, como pecado de rei, tinha dado ocasião a que fosse blasfemado de outros; porém, é Deus tão zelador da sua honra na vingança das blasfêmias que, perdoando a Davi os pecados próprios, vingou no mesmo Davi as blasfêmias alheias. Finalmente, a terceira consideração, e que bastava por todas, é porque pesa mais diante de Deus a reparação da sua honra, e a vingança das suas ofensas, que a condenação e inferno de todos os homens. Por que cuidais que encarnou e morreu o Filho de Deus? Porque a injúria infinita da honra divina lesa não se podia vingar senão com sangue divino, nem a condenação do gênero humano remir-se com menor preço. Estes foram os dois fins da Encarnação do Verbo; mas o primário a vingança, o secundário a redenção. Isaías: Ecce Dominus adduccet ultionem retributionis, ipse veniet, et salvabit nos[119].

Fala expressamente da vingança da honra divina, e da redenção do mundo; porém, notai a ordem: Ecce Dominus adduccet ultionem retributionis: eis aqui a vingança, e o primeiro fim: Ipse veniet, et salvabit nos: eis aqui a redenção, e o fim segundo; porque pesa mais a honra de Deus ofendida, e a sua vingança, que a condenação e inferno de todos os homens. Logo, se as blasfêmias de Deus por si só são maior inferno que o mesmo inferno, e essas mesmas blasfêmias não vingadas são de maior peso e atenção que o inferno de todo o mundo, que coração haverá com fé e juízo que não trema de horror e não desmaie de assombro, considerando a Deus blasfemado eternamente, e sobre blasfemado não vingado? Não é cristão nem humano o coração que o não sentir assim.

Ao menos eu creio do meu - se me não engana - que não só se atreveria a padecer no inferno todas as penas dos pecados desta vida, mas que a harmonia de vê-los assim justamente punidos seria bastante - como se diz da cítara de Orfeu - para suspender as mesmas penas. Diria em tal caso - que Deus não permita: - Justus es, Domine, et rectum judicium tuum[120] - e pregaria a todas aquelas almas justissimamente condenadas, que ao som dos mesmos tormentos cantássemos juntos: Merito haec patimur, quia peccavimus[121]. - Até aqui me parece que se conformaria a paciência com a razão; porém, passando à conseqüência mais dura, e verdadeiramente intolerável, daquele infeliz estado, isto é, às blasfêmias contra Deus, então desmaiaria toda a força do valor e da constância, e, prostrado o ânimo, e caído no profundo do mesmo inferno, pediria partido ao céu, e diria assim: Senhor, e Deus ainda meu, se o inferno é lugar e instrumento rigoroso da vossa justiça, não vos peço misericórdia, não, que a não mereço; o que desejo unicamente é que ao menos este inferno seja por todas as partes justo. Padecer eu no inferno é suma justiça, serdes vós blasfemado no inferno é suma injustiça, porque eu mereço ser eternamente atormentado, e vós mereceis ser eternamente louvado; comutai, pois, estas minhas blasfêmias em dobradas chamas, de maneira que juntamente padeça e vos louve, e assim de uma e outra parte seja justo o inferno: justo da vossa parte, por que eternamente me atormentais, e justo da minha, por que eternamente vos louve. Se este partido, cristãos, é possível, não deixando o inferno de ser inferno, eu o não sei; porém, creio que não fui mui dessemelhante ao afeto de Moisés e de S. Paulo, quando parece se ofereceram às penas do inferno, isto é, à do sentido e dano, porque a conseqüência intrinsecamente má de blasfemar a Deus não a podiam desejar nem consentir, ainda que juntamente com a impunidade de outra pena. E se me perguntais por que Deus não castiga as blasfêmias dos condenados, acrescentando-lhes sempre tormentos sobre tormentos, como pudera a sua onipotência, sem injustiça, ainda que estejam fora do estado de viadores, duas razões me ocorrem ao nosso propósito, para o haver ordenado assim sua divina providência. A primeira, para que este maior horror nos servisse de freio aos pecados, e nos retraísse do inferno. A segunda, para que este mesmo horror e temor santo do inferno fosse mais meritório e mais heróico. Se as blasfêmias do inferno fossem castigadas com penas novas, seriam temidas por amor de nós, e não por reverência de Deus. Quis, pois, sua divina Providência que fossem impunidas, para que nas suas mesmas injúrias se afine o nosso temor, e na mesma impunidade cresça e se apure a fineza.

§ VI

O temor fino, limpo e heróico do inferno, grande sinal de predestinação, e seguro infalível da vida eterna. O inferno limpo e o inferno não limpo nos Salmos de Davi. Por que chama Davi santos a todos os que têm o nobre e verdadeiro horror às blasfêmias do inferno? A razão da diferença entre os santos da terra e os pecadores da terra. A morte do sumo sacerdote Eli e o cativeiro da Arca de Deus. A promessa do céu mais expressa e mais canônica de quantas Cristo fez a nenhum homem particular.

Declarado assim - ainda que nem tão bem, nem tão brevemente como eu quisera - o limpo e heróico horror do castigo eterno, isto é, limpo da parte do inferno, e heróico da parte do temor, resta só persuadi-lo; e para que a vossa paciência mo permita, eu a quero subornar com uma grande e porventura não esperada promessa. E qual é? Que um tal temor do inferno, tão limpo, tão heróico e tão fino, é um grande sinal de predestinação, e um seguro infalível da vida eterna. O inferno fez-se para aqueles que o não temem, ou o temem só pelo horror das penas; porém, aqueles que temem o inferno pelo horror do ódio, das blasfêmias, e das injúrias de Deus, estes espíritos fidalgos, generosos, e verdadeiramente cristãos, não foram criados para o inferno: vede se o provo, com tanto fundamento quanto gosto meu.

Viu Davi a Deus como supremo Juiz, e diz que tinha na mão um cálix cheio de vinho, parte do qual era limpo, puro e defecado, e a outra parte turva, impura e cheia de fezes: Calix in manu Domini vini meri, plenus mixto (SI. 74, 9). - E que fez Deus com este cálix? Inclinavit ex hoc in hoc, verumtamen faex ejus non est exinanita (ibid.): Inclinou - diz - e lançou a parte limpa e defecada deste cálix em outro, e no que estava cheio ficaram as fezes. - Agora saibamos que cálix é este, que licor puro e impuro, e quem são aqueles que bebem de um e outro. O cálix dizem comumente os padres e expositores que é o inferno, do qual disse acima o mesmo profeta: Ignis et sulphur, et spiritus procellarum, pars calicis eorum (SI. 10, 7). - O licor deste cálix parte é limpo e puro, e parte impuro, turvo e cheio de fezes, porque há inferno limpo e não limpo, conforme as duas considerações em que até agora temos falado: os que bebem, ou não bebem, de um e outro, parece mais difícil de resolver; porém o mesmo texto, se bem se pondera, o diz: Inclinavit ex hoc in hoc, verumtamen faex ejus non est exinanita; bibent omnes peccatores terrae: Lançou Deus o licor puro e limpo em um cálix, e deixou as fezes no outro, e deste beberam todos os pecadores da terra. - Não sei se reparais no que diz o profeta, e no que não diz. Os cálices são dois: Inclinavit ex hoc in hoc - as fezes ficaram todas em um: verumtamen faex ejus non est exinanita; este, das fezes, hão de beber os pecadores da terra: bibent omnes peccatores terrae. - Pois, se diz quem há de beber este cálix, por que não diz quem há de beber o outro? Um e outro cálix é do inferno: um do inferno limpo, outro do infernoo não limpo. Pois, se diz quem há de beber este cálix, por que não diz quem há de beber aquele? Porque o inferno limpo ninguém o há de beber. A separação que o profeta viu fazer de cálix a cálix é a que nós fazemos de inferno a inferno: uns temem baixamente o inferno pelas penas e tormentos, que são as fezes do inferno; outros o temem heroicamente, não pelas penas, senão pelas injúrias de Deus, que é o inferno defecado e puro; e porque este temor heróico é sinal de caráter de predestinação, e nenhum predestinado há de ir ao inferno, por isso, sinalando o profeta os que hão de beber o outro cálix, não diz quem há de beber este, porque os que temem este nenhum o há de beber: Has faeces amarissimas gustabunt, nec umquam epotare desinent in aeternae damnationis loco cuncti peccatores terrae - comenta com S. Jerônimo, S. Gregório Nazianzeno, S. Bruno, Procópio, e entre outros o doutíssimo Lorino; e, se o cálix das fezes do inferno é aquele que hão de beber todos os condenados e precitos, bem se segue que o outro cálix, do inferno limpo, e que não há de ser bebido, pertence aos predestinados, os quais, ainda que sejam pecadores, se podem chamar pecadores do céu, assim como aqueles se chamam pecadores da terra: Bibent omnes peccatores terrae. - Donde também se infere que a mão que ficou com o cálix das fezes era a esquerda de Deus, que é a mão dos precitos; e a que tinha o outro cálix, a que se passou o inferno limpo, era a direita, que é a mão dos predestinados.

E para que ninguém duvide da probabilidade gostosa destas conseqüências, ouçamos outra vez a Davi, e seja ele o expositor e intérprete de si mesmo. No Salmo setenta e dois, conforme o texto caldaico, falando Davi das blasfêmias do inferno, diz assim: Posuerunt in caelum os suum, et língua eorum ussit sanctos terrae: Puseram os condenados a sua boca no céu, e a sua língua ímpia e sacrílega queimou os santos da terra. - A sentença é fácil; o atado dela não parece que havia de dizer: Puseram a sua boca no céu, e a sua língua queimou os santos do céu; mas, puseram a sua boca no céu, e a sua língua queimou os santos da terra? Sim, porque as blasfêmias do inferno, ainda que vão atiradas e fulminadas contra o céu, não tocam nem podem tocar aos santos do céu, e muito menos ao Santo dos santos, que é Deus; tocam, porém, essas mesmas blasfêmias, e queimam os santos da terra, porque, como estes amam sobretudo a Deus, e muito mais que a si mesmos, aquilo que mais temem e lhes faz maior horror na consideração do inferno, aquilo que mais os fere, penetra e queima o coração, não é o fogo do mesmo inferno, senão as injúrias, opróbrios e maldições, com que por suma impiedade, e horrendos sacrilégios é ali blasfemado Deus. Bem; mas este mesmo conceito, esta mesma estimação, e esta mesma distinção de penas a penas, e de horror a horror, a pode fazer qualquer homem de alto juízo, ainda que não seja santo, temendo mais o inferno pelas blasfêmias de Deus, que pelo fogo e outros tormentos; como logo chama Davi santos a todos os que têm este nobre e verdadeiro sentimento: Et lingua eorum ussit sanctos terrae? - Porque, como este é um grande sinal, e como caráter certo de predestinação, e os predestinados, ainda que atualmente não sejam santos, hão de ser santos, justamente os canoniza a todos Davi, e lhes dá o nome de santos já na terra: Et lingua eorum ussit sanctos terrae.

Combinai agora este sanctos terrae com aquele peccatores terrae, e reparti os dois cálices do inferno puro e limpo e não limpo: aqueles que bebem o inferno, e lhes amarga pela parte das fezes, isto é, pelo fogo e tormentos, estes são os pecadores da terra, isto é, os réprobos: Bibent omnes peccatores terrae; porém, aqueles que o não podem tragar pela parte limpa, isto é, pelo horror das blasfêmias e injúrias de Deus, estes são os santos da terra, isto é, os predestinados: Et lingua eorum ussit sanctos terrae.

E se alguém me perguntar a razão desta diferença, eu lha darei, e a confirmarei com efeito. A razão é porque quem teme o inferno pelas penas do fogo, teme-o por amor de si; quem teme o inferno pelas injúrias de Deus, teme-o por amor de Deus; e quem teme o inferno, não por amor de Deus, senão por amor de si, vá para o inferno: porém, quem teme o inferno, não por amor de si, senão por amor de Deus, não o pode Deus lançar no inferno. Esperava à porta do Templo o sumo sacerdote Eli o sucesso da batalha, em que naquela ocasião se combatiam israelitas e filisteus, quando chegou a triste nova com três circunstâncias terríveis. A primeira, que o exército de Israel era roto e perdido; a segunda, que os dois filhos do mesmo Eli, Ofni e Finéias, ambos ficavam mortos; e até aqui esteve ele animoso e constante, sem se turbar um ponto; a terceira, finalmente, que também a Arca de Deus fora tomada, e estava cativa em poder dos inimigos; e em ouvindo isto Eli, caiu desmaiado, e subitamente expirou: Cumque ille nominasset arcam Dei, cecidit de sela retrorsum, et mortuus est (1 Rs. 4, 18). - Tal foi a improvisa morte daquele pontífice; e porque na sua vida nota a Escritura alguns defeitos não leves a respeito do governo eclesiástico, disputam os intérpretes se se salvou ou não. Muitos têm para si que se condenou, e fundam o seu parecer nas culpas do mesmo Eli, verdadeiramente graves; porém, S. Jerônimo, S. Gregório Magno, S. Crisóstomo, e Ruperto, Cartusiano, Caetano, Abulense, e outros, defendem que se salvou Eli, ainda que cometeu aqueles pecados. E por quê? Pelo que sucedeu na sua morte. - Não vedes, dizem, que sabendo Eli a perda do exército e morte de seus filhos, não se turbou; e em ouvindo o cativeiro da Arca, foi tão excessiva a sua dor, que caiu morto? Pois, homem que sente mais a injúria de Deus, que os dois maiores golpes da natureza, não podia Deus deixar de salvá-lo: Qui ergo sine arca Dei vivere non poterat, quomodo sine Deo ipsius arcae moreretur[122]? - assim conclui com os padres e doutores alegados o mais diligente comentador dos Livros dos Reis. O mesmo digo eu no nosso caso. Quem teme de tal maneira o inferno, que lhe fazem maior horror as blasfêmias e injúrias de Deus, que todas as outras penas, que são tormentos próprios, não pode o mesmo Deus não o livrar do inferno: temer assim é ato de contrição do temor, e quem vive e morre assim contrito, não pode deixar de salvar-se.

Ouvida já a razão, ouvi agora o efeito. A promessa do céu mais expressa, e mais canônica de quantas Cristo fez a nenhum homem particular, foi aquela do Bom Ladrão, o qual em toda a sua vida tinha tão merecido o inferno, como o outro seu companheiro; ainda assim lhe diz Cristo: Hodie mecum eris in paradiso (Lc. 23, 43): Hoje estarás comigo no paraíso. - Pois, a um ladrão, a um malfeitor, a um justiçado e enforcado por seus delitos, tão geral absolvição, tão plena indulgência! Por que merecimentos? Doutissimamente, e com grande advertência, Orígenes: Ad eum, qui increpaverat blasphemantem, dixit: Hodie mecum eris in paradiso[123]. - Se quereis entender a conseqüência, reparai nas premissas. Que fez o Bom Ladrão na cruz? Antes de dizer: Domine, memento mei[124] - e antes de tratar da sua salvação, ouvindo que o companheiro blasfemava, voltou-se contra ele, defendendo a honra de Cristo, e o fez calar: Unus ex his qui pendebant, latronibus, blasphemabat. Respondens autem alter increpabat eum[125]. - E um homem, que, posto em uma cruz, e em meio de seus tormentos, e, o que é mais, em perigo de sua condenação eterna, o que mais sente, o que mais lhe dói, e o que lhe faz maior horror, não são as penas que padece nem as que pode padecer, senão o ouvir blasfemar de Deus, este homem é predestinado, este homem não se pode perder, e, ainda que seja um grande pecador, alcançará sem dúvida uma indulgência plenária: Ad eum, qui increpaverat blasphemantem, dixit: Hodie mecum eris in paradiso.

§ VII

Conclusão e conselhos finais.

Isto, isto é, ó almas fiéis; isto é, ó espíritos heróicos e generosos, o que mais deveis sentir, e o que maior horror vos deve fazer em todo o inferno. Sintamos e temamos assim, e este mesmo sentimento e temor seja em nós uma firme esperança de nossa salvação. Firme, porque firmemente nos resolveremos a não ofender a Deus nesta vida, pelo não blasfemar na outra; e firme, porque este é o mais firme e o mais forte escudo contra todas as tentações. Os padres antigos ensinaram por eficacíssimo remédio contra as tentações, que todas as vezes que alguém se visse tentado, aplicasse a mão ou um dedo ao fogo, para que, provando por experiência que não podia sofrer um momento aquele ardor, temesse a eternidade do fogo do inferno, e se abstivesse de pecar: bom conselho, mas eu não digo assim. Cristãos, quando o demônio, o mundo, ou outro inimigo vos tentar, fazei a vossos corações esta pergunta: Atreves-te, alma minha, a blasfemar eternamente da Santíssima Trindade? A blasfemar do Pai, a blasfemar do Filho, a blasfemar do Espírito Santo? Atreves-te a blasfemar eternamente de Jesus e seu sangue, e de sua Santíssima Mãe? Se te atreves, não temas o inferno; se te não atreves, teme o pecado.

DISCURSO V

Elegit quinque limpidissimos lapides de torrente[126].

§I

Quinta e última pedra da funda de Davi.

Resta já à funda de Davi uma só pedra: se esta não faz efeito, e emprega o tiro, ficará a cabeça do gigante tão vã e soberba como dantes, e assim o creio eu. A pedra verdadeiramente é de boa cor: não é esmeralda, mas verde. A primeira foi branca e transparente, qual a pedia o conhecimento de si mesmo; a segunda negra, pela dor do bem perdido; a terceira vermelha, da cor da vergonha; a quarta, da cor do temor, pálida ou amarela; e esta última, como dizia, verde, da cor da esperança: Spes aeterni gaudii. - A maior façanha que fizeram os argonautas da minha nação, foi descobrir o Cabo de Boa Esperança; muito maior e muito mais difícil empresa é hoje a minha, porque é de descobrir o cabo, não da boa nem da melhor esperança da terra, senão da mais limpa, da mais fina e da mais heróica do céu: e se foi demasiada a ousadia daqueles descobridores, em levar as âncoras do Tejo com tão novo e formidável acometimento, confesso que maior temeridade tem sido a minha, em ter navegado por mar para mim tão novo e tão estranho, até lançar a âncora da esperança no Tibre, e no lugar aonde é mais alto e mais profundo. Esta confissão me servirá de desculpa: dai-me a última atenção.

Matéria do presente discurso; a esperança do gosto e prêmio eterno. A esperança do prêmio nos salmos de Davi. Por que razão o gosto da bem-aventurança do céu faz da eternidade tempo?

Spes aeterni gaudii: A esperança do gosto e prêmio eterno - esta é a matéria de hoje; mas nem o gosto nem o eterno parece que se atam bem com a esperança: o gosto não, porque a esperança é tormento; o eterno tampouco, porque a esperança é virtude desta vida, e do tempo, e não chega à eternidade. Assim parece no sentimento comum; porém, no meu não é assim: o gosto eterno, isto é, a bemaventurança do céu, consiste em ver e amar a Deus eternamente; o ver responde à fé, o amar à caridade, e o eternamente, digo eu que à esperança. Não se atará a esperança ao gosto enquanto gosto; mas enquanto eterno sim, e por quê? Porque Deus é justo remunerador, e quando paga a esperança com o gosto eterno, ou com o eterno do gosto, paga uma eternidade com outra: a eternidade do esperar com a eternidade do gozar. Ouçamos ao nosso Davi, que até ao fim nos hão de ajudar os seus impulsos, e nunca mais galhardos que hoje. - Inclinai cor meum ad faciendas justificationes tuas in aeternum, propter retributionem (SI. 118, 112): Eu - diz o grande rei - inclinei e afeiçoei o meu coração a servir a Deus eternamente pela esperança do prêmio. - Parece que estão trocados os termos, e que diz ou supõe Davi um impossível. Nos serviços que fazemos a Deus, o prêmio é o eterno, e não o servir, que não passa desta vida: parece logo que havia de dizer o profeta: - Inclinei-me a servir a Deus pelo prêmio eterno; e não inclinei-me a servi-lo eternamente pelo prêmio. Mas, se o servir nesta vida pudera ser eterno, era mui boa a proporção do merecimento ao prêmio, porque ao merecimento de servir eternamente responderia o prêmio de gozar eternamente. Mas isto é impossível, porque não pode haver uma eternidade antes e outra depois. Que eternidade era logo esta, em que Davi havia de servir a Deus eternamente: Inclinavi cor meum ad faciendas justificationes tuas in aeternum? - O mesmo Davi o disse, acrescentando que servia pela esperança do prêmio: Propter retributionem. - Quem serve pela esperança do prêmio, serve e espera juntamente. E a mesma duração, que no servir é tempo, no esperar é eternidade. Para ser proporcionado o prêmio ao merecimento, e o servir ao gozar, convinha que, havendo de ser eterno o gozar, fosse também eterno o servir: prometa-se, pois, à esperança nesta vida o gosto eterno da outra, para que se mereça e se pague uma eternidade com outra eternidade, e responda o eterno do gosto ao eterno da esperança: Spes aeterni gaudii.

Para prova da eternidade ou eternidades do esperar, bastavam os trenos de tantos Jeremias, quero dizer, as lamentações de todos estes senhores que Roma eterniza em esperanças. Mas porque as suas queixas não são cridas, ouçam os que não as ouvem a Escritura divina. Antes de vir o Messias ao mundo, o nome com que o chamavam as vozes dos profetas, e com que o suspiravam os clamores dos patriarcas, era: Desiderium collium aeternorum (Gên. 49, 26): O desejo e esperança dos montes eternos. - Os montes, ou começaram, como alguns filosofam, nas ruínas do dilúvio ou, como é mais certo, na mesma criação do universo: logo, que montes eternos são estes? Dirão os doutos que debaixo desta metáfora estão significados os mesmos profetas e patriarcas antigos: assim é, mas se eles eram menos antigos que os montes, por que se chamam montes eternos? Chamam-se montes, porque se levantavam da terra, e olhavam sempre para o céu; e chamam-se eternos, porque não faziam outra coisa senão suspirar e esperar a vinda do Messias: a sua elevação os fazia montes, e a sua esperança eternos. Naquele tempo, como a fé era de poucos, os patriarcas e profetas esperavam, os outros homens não esperavam: a vida dos que não esperavam era tempo, a vida dos que esperavam era eternidade: Desiderium collium aeternorum. - E como a esperança é um afeto que do tempo faz eternidade, pertencia à justiça e liberalidade de Deus que pagasse a esperança desta vida com a bem-aventurança da outra, e isto por duas razões: A primeira, como até agora dizia, para premiar uma eternidade com outra eternidade. A segunda, e mais admirável, para pagar um tormento, que do tempo faz eternidade, com um gosto, que da eternidade faz tempo.

Bem vejo que vos parecerá coisa estranha, e ainda impossível, que o gosto da bem-aventurança do céu faça da eternidade tempo. Não me creiais se o não provo. Fala o nosso profeta do gosto da vista de Deus na bem-aventurança, e diz assim: Mille anui in conspectu tuo sicut dies hesterna quae praeteriit (SI. 89, 4): Mil anos, Deus meu, em vossa presença são como o dia de ontem, que passou. - Cada palavra deste texto é uma contradição. A eternidade, como define Boécio, é uma duração simultânea, que não tem antes nem depois; é um instante perpétuo, que não admite ano nem dia; é um hoje permanente, que nem conhece ontem nem amanhã; é um presente contínuo, que não teve pretérito nem há de ter futuro: pois, se na eternidade não há ano nem dia, como supõe Davi na eternidade anos: Mille anni in conspectu tuo? - Se na eternidade não há ontem nem amanhã, como supõe na eternidade ontem: Sicut dies hesterna? - Se na eternidade não há pretérito nem futuro, como supõe na eternidade pretérito: quae praeteriit? - É porque não falava Davi de qualquer eternidade, senão daquela eternidade beatíssima, que se goza na vista de Deus: In conspectu tuo. - E tal é a grandeza e a imensidade daquele excessivo gosto, que, sendo sempre permanente, e não passando jamais, como se fosse sucessivo, e verdadeiramente passasse, do presente faz pretéritos, de muitos séculos poucos instantes, de milhares de anos um dia, e da mesma eternidade breve tempo: Mille anni in conspectu tuo tanquam dies hesterna quae praeteriit. - E para que vos não pareça impossível esta filosofia, a razão dela é porque a duração, qualquer que seja, tem duas medidas: uma com que se mede pela realidade, outra com que se mede pela apreensão. Assim media Jacó o tempo que serviu por amor de Raquel, em que o trabalho contava muitos anos, e o amor poucos dias: Videbantur illi pauci dies prae anwris magnitudine[127]. - Se a duração se mede pela realidade, é sempre igual e a mesma; porém, se se mede pela apreensão, nela se varia e desiguala de tal sorte, que se é do gosto, o gosto a estreita e faz breve, e se de pena, a pena a dilata e faz larga, e tanto mais breve ou mais larga, quanto é maior o gosto ou a pena. Ponde uma ponta do compasso no centro, e outra na circunferência, e vereis que, movendo-se ambas no espaço da mesma duração, uma ponta faz um círculo mui breve, e quase imperceptível, e a outra mui largo, e, se quiserdes, imenso. O mesmo sucede na apreensão, ou do gosto do que se possui ou do tormento do que se espera. O círculo do gosto, porque se move dentro, e com deleite, é brevíssimo; o círculo da esperança, porque se move de fora, e com tormento, é imenso. Não é logo maravilha incrível, nem que a bem-aventurança, pelo excesso do gosto, abrevie os espaços imensos da eternidade, nem que a esperança, pelo excesso da pena, estenda imensamente os termos breves do tempo, e que aqueles na apreensão passem como temporais, e estes durem como eternos. Sendo, pois, o tormento da esperança tal, que do tempo faz eternidade, e tal o gosto da bem-aventurança, que da eternidade faz tempo, justamente se mede, e se corresponde o gozar da outra vida com o esperar desta, e se paga o eterno da esperança com o eterno do gosto: Spes aeterni gaudü.

§III

A dificuldade do presente discurso: tirar do puro o puríssimo, e do límpido o limpidíssimo. A esperança do céu fina e heróica. O profeta Jeremias e os dois modos ou graus da esperança. A singularidade da esperança de Davi, pela qual diz que foi singularmente sublimado na esperança. Como há de ser o nosso coração, se queremos esperar fina e heroicamente? O singular e heróico, o limpo e o limpidíssimo da esperança de Davi.

Composta assim a esperança do eterno gosto, e reduzida à proporção a mesma esperança com o gosto e com o eterno, a necessidade do nosso argumento nos chama a outra dificuldade maior, porque, sendo o objeto desta esperança todo celestial e todo eterno, limpo pelo celestial de tudo o que é terra, e limpo outra vez pelo eterno de tudo o que é tempo, parece que não pode limpar-se mais. As esperanças do mundo todas têm muito que purificar e limpar; porque, como todas são terrenas e temporais, por mais que remontem o vôo, sempre vão misturadas com os vapores da terra, e turvas com as mudanças do tempo. Porém, nós, para não faltarmos ao nosso argumento, nem havemos de comparar as esperanças da terra entre si, nem a esperança da terra com a esperança do céu, senão que dentro da esperança do céu somos obrigados a buscar o mais puro e o mais limpo; antes, do puro, acrisolar e tirar o puríssimo, e do limpo o limpíssimo: Limpidissimos lapides. - Esta é a dificuldade presente, e a maior que até agora tivemos, quanto vai da terra ao céu. Contudo, no mesmo céu, e a respeito dos mesmos bens celestiais e eternos, digo que pode haver duas esperanças, ambas puras e limpas; porém, uma mais pura, mais limpa ou fina, e mais heróica que a outra, isto é, uma limpa e outra limpíssima: e que duas esperanças são ou podem ser estas? Vamos ao céu. Na bem-aventurança do céu - que é o objeto da esperança, e, como definem os teólogos, um agregado perfeitíssimo de todos os bens - não só há um sumo bem infinito e incriado, que é Deus, senão outros muitos bens criados sobrenaturais e quase divinos, digníssimos por si mesmos de ser desejados e estimados sobre tudo o que não é Deus. E que faz à vista de todos estes bens a esperança? Se ela é só pura e limpa, espera a Deus, e juntamente com Deus espera também todos aqueles bens; mas, se ela é puríssima e limpíssima, aparta e fecha os olhos a todos os outros bens, ainda que celestiais, sobrenaturais, e quase divinos, e olha e espera só a Deus. Esta é a esperança do céu fina e heróica: na mesma bem-aventurança, não querer nem esperar de Deus mais que a Deus.

181.O profeta Jeremias, falando da esperança em Deus, diz assim: Bonus est Dominus sperantibus in eum, animae quaerenti illum (Lam. 3, 25): Bom é Deus para os que esperam nele, e para a alma que o busca. - Nestas palavras distingue o profeta dois modos ou graus de esperança, e faz grande diferença de esperança em Deus, e buscar a Deus? Sperantibus in eum, animae quaerenti illum. - Quem, esperando em Deus, quer ou deseja mais que a Deus, espera em Deus, mas não busca a Deus; porém, quem, esperando em Deus, não quer nem deseja de Deus outro bem mais que a Deus, este só busca a Deus. E para que vejais que este modo de esperar é o fino, heróico e o singular da esperança, ouvi o reparo de S. Bernardo. Nota ele e manda notar que, quando o profeta propõe o primeiro modo de esperança, fala em plural, e de muitos: Sperantibus in eum. - Mas quando distingue o segundo modo, fala em singular, e de uma só alma: Animae quaerenti illum. Ipsam numeri discretionem prudenter adverte. Sperantes pluraliter dixit: quaerentem eum singularitert[128]. - E por que varia o profeta o número, e passa da multidão à unidade, quando distingue uma esperança da outra? Porque esperar em Deus, e querer de Deus outra coisa que não seja Deus; esperar em Deus, e buscar em Deus, não só a Deus, senão a si mesmo, esta esperança é vulgar e de muitos: Sperantibus in eum; - mas esperar em Deus, e não querer de Deus mais que a Deus; esperar em Deus, e não se buscar a si, nem outro bem, senão ao mesmo Deus, essa é a esperança fina e heróica, e por isso tão rara e singular, que apenas se acha no mundo uma alma que espere tão pura e limpamente: Animae quaerenti illum. - Excelentemente S. Bernardo: Quod singulares sitpuritatis, singularisgratiae, singulares perfectionis, non solumnihil sperare nisi ab eo, sed nihil quaerere nisi eum: Disse o profeta: alma, e não almas; disse uma, e não muitas; calou o plural, e pôs o singular, porque não buscar em Deus mais que a Deus, nem esperar do sumo bem outro bem que o sumo, é a graça singular, a pureza e limpeza singular da esperança; e a alma que assim esperar será singular, e única como a fênix: Animae quaerenti illum, quaerentem eum singulariter:

E por que não seja singular este testemunho, ainda que maior que toda a exceção, qualifiquemos o singulariter de Bernardo com outro singulariter de Davi: Singulariter in spe constituisti me (SI. 4, 10): Eu - diz o mais alumiado e mais humilde de todos os profetas - em outros dons de Deus serei inferior a muitos, e ainda a todos; porém, na virtude da esperança, o Senhor me tem levantado e constituído em um grau tão alto e tão sublime, que entre todos me faz singular: Singulariter in spe constituisti me. - E qual foi, saibamos, a singularidade da esperança de Davi? Porventura foi singular Davi na esperança, porque, sendo tão valente capitão, não punha a esperança na sua lança nem na sua espada, senão em Deus: Non enim in arcu meo sperabo, et gladius meus non salvabit me[129]? - Porventura porque, sendo tão santo, e conhecendo que o era, não se prometia a salvação pela sua inocência, senão pela sua esperança: Custodi animam meam, quia sanctus sum; salvum fac servum tuum, Deus meus, sperantem in te[130]? - Porventura porque, sendo perseguido de dois reis, um grande inimigo, porque era competidor, e outro maior inimigo, porque era filho, jamais temeu o seu ódio nem o seu poder, porque esperava em Deus mais poderoso: In Deo speravi; non timebo quid faciat mihi homo[131]? - Porventura porque, fundando-se a esperança na palavra e promessas divinas, a sua esperança passava adiante, e, sobre o que Deus lhe tinha prometido, ainda esperava mais: In verba tua supersperavi[132]? - Porventura, finalmente, porque, começando a esperança em Deus, quando começou a viver: Tu es spes mea ab uberibus matris meae[133] - ainda depois da morte e da sepultura esperava: Insuper et caro mea requiescet in spe[134]? - Grandes atos de esperança, e verdadeiramente heróicos foram estes de Davi; mas nem por isso singulares, porque, ainda que juntos se não achem em ninguém, divididos se acham em outros. O primeiro em Judas Macabeu, o segundo em Ezequias, o terceiro em Daniel, o quarto em Moisés, o último em Jó. Qual é logo esta singularidade, pela qual diz Davi que foi singularmente sublimado na esperança: Singulariter in spe constituisti me (SI. 4, 10)? - Antes que ele o diga, o direi eu. Foi sublimado singularmente na esperança Davi, porque depois de subir por todos os graus da esperança, que temos visto, chegou a esperar tão pura e limpamente, que nem na terra nem no céu esperava de Deus mais que a Deus. Agora diga-o ele mesmo: Quid mihi est in caelo? Et a te quid volui super terram, Deus cordis mei, et pars mea, Deus in aeternum[135]? - A terra, diz Davi, para mim é nada, o céu outro nada; a terra um nada baixo, o céu um nada alto; porém, um e outro nada: tudo quanto pode dar ou negar a terra, tudo quanto pode dar e prometer o céu: Quid mihi? - Que é isso para mim: Quid mihi? - Que Davi tenha por nada a terra, e não queira nada da terra, seja embora; porém, não só da terra, senão também do céu? Sim. Agora entendereis por que disse Deus deste grande herói: Inveni virum secundum cor meum (At. 13, 22): Tenho achado um homem feito à medida do meu coração. - Notai: No princípio criou Deus o céu e a terra: In principio creavit Deus caelum et terram (Gên. 1, 1). - E, antes do princípio, havia céu e terra? Não. E, antes de haver céu e terra, estava o coração de Deus tão contente, e era o mesmo Deus tão feliz como depois de haver céu e terra? Sim: tão contente e tão feliz Deus com céu e terra, como sem céu nem terra. Pois, eis aqui por que o coração de Davi era como o coração de Deus: Quid mihi est in caelo, et a te quiri volui super terram? - Ao meu contentamento e à minha felicidade, nenhuma coisa pode tirar ou acrescentar, nem toda a terra nem todo o céu. E por quê? Pela mesma razão em Deus e em Davi: em Deus, porque Deus tinha toda a sua felicidade em si mesmo: e em Davi, porque Davi tinha toda a sua felicidade em Deus. Não é razão minha, senão sua: Deus cordis mei, et pars mea, Deus, in aeternum. - Nem para o tempo na terra, nem para a eternidade no céu, quer o meu coração outra coisa senão a Deus, e não a Deus enquanto Deus da terra e céu, senão enquanto Deus do meu coração: Deus cordis mei. - Porque, se o meu coração é semelhante ao seu, assim como Deus sem terra nem céu tem toda a sua felicidade, assim eu, sem nada da terra nem do céu, tenho toda a minha: ele, porque eternamente tem tudo em si; eu, porque eternamente terei tudo nele: Et pars mea, Deus in aeternum.

Eis aqui, senhores, como há de ser o nosso coração, se queremos esperar fina e heroicamente: há de ser o nosso coração para com Deus como o coração de Deus para conosco. Que quer ou espera Deus de nós? Nenhuma coisa, senão a nós mesmos: Te, et non tua - diz Santo Agostinho: Te, et non tua - diz S. Gregório; logo, se Deus não quer de mim mais que a mim, eu não devo querer de Deus mais que a ele. Assim como os que se combatem ou desafiam medem as espadas, assim nós, se queremos obrar generosamente, havemos de medir com Deus os corações: ele de uma parte com a sua soberania, e eu da outra com a minha esperança; este sim, que foi o maior duelo de Davi, e não o outro do gigante. Entraram como em estacada de uma parte a esperança de Davi, e da outra a soberania de Deus, combatendo-se como de corpo a corpo, de generosidade a generosidade, e de independência a independência: o cartel deste desafio é o princípio do Salmo décimo-quinto: Conserva me, Domine, quoniam speravi in te[136]: eis aqui a esperança de Davi; Dixi Domino: Deus meus es tu, quoniam bonorum meorum non eges[137] - eis aqui a soberania e independência de Deus. E por que opõe ou contrapõe Davi a sua esperança à soberania de Deus, e a sua independência à independência divina? Porque isto era o singular e heróico, o limpo e o limpíssimo da sua esperança. A soberania de Deus, independente dos bens de Davi, porque os não há mister: quoniam bonorum meorum non eges; a esperança de Davi, independente dos bens de Deus, porque espera nele: quoniam speravi in te; como se dissera Davi: Se Deus não quer os meus bens, porque os não há mister, eu não hei mister os seus, porque os não quero: a sua soberania é independente dos meus bens, porque tem tudo em si; e a minha esperança é independente dos seus, porque tenho tudo nele. Aquela é a maior felicidade da sua natureza; esta é a maior fineza da minha esperança.

Bem creio que a esperança romana não fia tão delgado; mas é necessário que advirta e considere a mesma Roma que este homem chamado Davi não era ermitão, nem monge, nem eclesiástico: era um rei com o cetro na mão, era um soldado com a espada na cinta, era um mestre de política, tão destro nesta esgrima, que na sua idade pudera pôr escola à nossa; e, sendo um homem que parecia tanto do mundo, tinha debaixo de um pé todo o globo da terra, debaixo do outro toda a esfera do céu: Quid mihi est in caelo, et a te quid volui super terram (SI. 72, 25)? E os olhos da sua esperança fitos, sem pestanejar, só em Deus: Deus cordis mei, et pars mea, Deus, in aeternum (ibid. 26).

§ IV

Que mau será querer, ou ter a Deus, e juntamente com Deus, também, as outras coisas, não coisas más, senão boas? Os bens da terra e a pureza da esperança. Qual é maior bem: Deus só, ou Deus juntamente com todos os bens criados? A perfeição da esperança em São Paulo. Por que devemos imitar a Josué se queremos esperar heroicamente em Deus. Como tenta o demônio a esperança em Roma? Outros três modos de esperar Por que não devemos esperar nos homens? Roma, hospital comum de todas as nações, e a piscina probática. Os mártires da e os mártires da esperança. Advertência final.

Porém, vejo que me estão dizendo: E que mau será querer ou ter a Deus, e, juntamente com Deus, também as outras coisas, não coisas más, senão boas? A Escritura está cheia destes exemplos. Que mal fará ter a Deus, não digo com cem mil cruzados de renda, senão com todas as minas de Ofir, como tinha Salomão? Que mal ter a Deus, e quarenta milhas de terra, cobertas de gados e lavouras, e mais de trezentos criados, como tinha Abraão? Que mal ter a Deus no coração, e na cabeça uma tiara com o domínio espiritual, e uma coroa com o temporal, como tinha Melquisedeque? Que mal, finalmente, ter a Deus, e uma vara onipotente na mão, com que confundir e revolver o mundo, como tinha Moisés? Tudo isto, ou parte disto - se vos contentais com parte - que mal fará juntamente com Deus?

Primeiramente, senhores, eu não acho estes exemplos no Evangelho que nós professamos: todos são da lei velha, quando Deus pagava de contado com os bens da terra, porque estavam fechadas as portas do céu. Mas, ainda que todos estes bens, e quaisquer outros, fossem do céu, e nós os desejássemos, não por si sós, senão juntamente com Deus, ainda assim fariam grande dano à fineza da esperança, e argüiriam menos estimação da sua pureza. Prova-se esta verdade pela mesma razão que parece a contradiz: porque toda a esperança de sua natureza é afeto interesseiro, e tanto mais interesseiro quanto mais fina, porque atende ao maior interesse: logo, maior, mais interesseira, e mais fina esperança é a que aspira juntamente a Deus e aos outros bens do céu, que a que se contenta só com Deus. Porque, ainda que Deus seja o sumo bem, e incomparavelmente maior que todos, os outros bens do céu também são bens, e grandes bens, e mui dignos de ser apetecidos e estimados: logo, mais interesseira e maior esperança é a que deseja todos estes bens juntamente com Deus, que a que deseja só a Deus sem eles. Tomo a dizer que não, e pela mesma razão. Mais interesseira é, e maior interesse busca a esperança que não quer mais que a Deus, que a que aspirava a Deus e juntamente a todos os outros bens, ainda que sejam do céu. E por quê? Porque, a respeito de nós e de nossos afetos, quem não deseja mais que a Deus, deseja mais; e quem deseja mais que a Deus, deseja menos. Perguntam os teólogos qual é maior bem, se Deus só, ou Deus juntamente com todos os bens criados. Ponde de uma parte a Deus só, e da outra todos os bens da terra e do céu juntamente com o mesmo Deus: qual é o maior bem? Resolve Santo Tomás que tão grande bem é Deus só, como Deus juntamente com todos os bens criados: e assim é, absolutamente falando; porém a respeito de nós e do nosso afeto, maior bem é Deus só, que Deus juntamente com todos os bens criados[138]. Antes, digo que basta qualquer bem da terra ou do céu, se o ajuntamos com Deus, para que Deus a respeito de nós seja menor bem. Santo Agostinho disse que quem ama outra coisa com Deus, ama menos a Deus: Minus te amar, qui tecum ali quiri amar - e pudera acrescentar o mesmo Agostinho que quem ama outra coisa com Deus, não só ama menos a Deus, senão que ama menos de Deus, porque quanto a nossa vontade ama e deseja de outros bens, tanto se tira de Deus, e tanto se diminui e perde do sumo bem. Notai. Todos estes bens criados, ainda que sejam sobrenaturais, e do céu, são inferiores a Deus; e se nós os amamos por si mesmos, são superiores a nós: e quanto estes bens se metem entre Deus e nós, tanto nos eclipsam e tiram do sumo bem. A terra, porque se mete entre nós e a lua, eclipsa a lua; a lua, porque se mete entre nós e o sol, eclipsa ao sol: assim passa na esperança. Os bens da terra eclipsam os bens do céu, como a terra à lua; os bens do céu eclipsam ao sumo bem, como a lua ao sol: e, assim como o sol não fica eclipsado ou diminuto em si, senão a respeito de nós, assim o sumo bem não padece eclipse ou falta alguma em si mesmo, senão a respeito dos olhos de nossa esperança e vontade, a qual tanto perde de Deus e do sumo bem quanto atende a outros bens, ainda que sejam do céu. Ouçamos ao maior doutor da escola do mesmo céu.

S. Paulo, como tão ardente amante ou namorado de Deus, quis uma vez sustentar em público as suas finezas, e escreveu aquele breve e bravo cartel: Quis nos separabit a charitate Christri[139]? - E aonde o fixou? No meio da terra, nas portas do inferno, e nas do céu. Assim o diz ele mesmo em muitas palavras, e o resumiu em poucas o seu grande comentador Crisóstomo: In caelo, in terra, sub terra. -No inferno - que isto quer dizer profundam - desafiou os demônios com todo o seu poder, tentações, astúcias e ciladas; na terra, a todos os homens armados de ferro, de ódio, de crueldade, de tormentos, de morte, e ainda da mesma vida, talvez mais insofrível que a morte: neque mors, neque vita[140]. - No céu, aos anjos, os principados, às potestades, e todo alto e sublime que lá se goza, e de cá se espera: Certus sura quia neque angeli, neque principatus, neque virtutes, neque altitudo, neque creatura aliqua poterit nos separare a charitate Dei[141]. - Aqui é o meu reparo. Que suponha Paulo que o inferno e os demônios, com as suas sugestões e astúcias, possam quebrar as lanças com ele, e contrariar as finezas do seu amor, bem está. Que suponha o mesmo da terra e dos homens, ou com as vaidades e delícias da vida, ou com os tormentos e horrores da morte, também. Porém, os anjos, os arcanjos, os principados, as virtudes, e os mesmos bens do céu, que ele tinha visto e provado? Aqueles bens puríssimos, e gloriosíssimos, quae praeparavit Deus às qui diligunt illum[142]? - Aqueles bens sobre todos os sentidos, e sobre toda a imaginação, quod non oculus vidit nec auris audivit, nec in cor hominum ascendit[143]? - Aqueles bens altíssimos e inefáveis, quae non licet homini loqui[144]? - Sim, porque não há criatura no céu tão celestial, tão angélica, tão seráfica; não há bem no céu tão celestial, tão espiritual e tão puro, que, se se mete entre Deus e nós, não separe de Deus alguma coisa do nosso coração, ou não separe o nosso coração alguma coisa de Deus: os bens do céu, por mais celestiais e sobrenaturais que sejam, todos são criados; isso quis advertir o apóstolo, quando acrescentou: Neque creatura aliqua[145] - e quantas são as criaturas que amamos juntamente com Deus, tantos são os eclipses que opomos ao nosso amor e ao mesmo Deus amado; porque, tanto nos rouba o nosso afeto, e nos tira do sumo bem, quanto se aplica e diverte em outros bens.

Por isso é necessário que, para evitar estes eclipses, nos recatemos também do mesmo céu; e se me perguntais de que modo, digo que imitando a nossa fineza a prudência e cautela de Josué em caso semelhante. Mandou Josué ao sol que parasse; obedeceu o sol, e parou no mesmo ponto; porém, ele não se contentou com isso; voltase para a parte oposta, e manda juntamente à lua que se não mova: Sol, contra Gabaon ne movearis, et luna contra vallem Aialon[146]. - Notável caso! Que Josué, para dar ao céu parte da sua vitória, ou para que o céu lha desse toda, mande fazer alto ao sol, como se fora um dos seus soldados, bem se entende, porque o sol já então se precipitava ao ocaso, e, faltando o dia e a luz, debaixo da capa da noite lhe podiam escapar os inimigos, e ele não acabar com eles, nem prosseguir a vitória; porém, se a luz e o dia dependia do sol, e ao sol o tinha parado e imóvel, por que manda também à lua que não se mova? Porque temia, como sábio capitão, que lhe podia tirar a lua o mesmo que lhe dava o sol. Se, estando parado o sol, não parasse juntamente a lua, movendo-se esta, podia eclipsá-lo: pare, pois, a lua, e fique detrás das costas de Josué, para que não haja coisa no céu, que, metendo-se entre Josué e o sol, lhe possa tirar ou diminuir a luz; assim deve fazer a nossa vontade, se quer esperar heroicamente em Deus: recatar-se até do céu, voltar as costas a todos aqueles bens do mesmo céu, que lhe possam fazer eclipse ao sumo bem, e querer só a Deus, e esperar só a Deus, e nem de Deus nem com Deus outra coisa que Deus.

Mas porque esta esperança heróica e limpíssima é tão singular, como Davi confessava de si, e tão rara, como Jeremias dizia de todos, passando da esperança às esperanças, e da unidade à multidão, seja o último documento, e para todos, a primeira parte da sentença de S. Bernardo: dizia ele: Non solum nihil sperare nisi ab eo, sed nihil quaerere nisi eum[147]. - Eu digo que, se a nossa esperança não chegar à perfeição de nihil quaerere nisi eum - ao menos contenha-se e contente-se com nihil sperare nisi ab eo. - Se quereis esperar outra coisa que não seja Deus, não a espereis de outro, senão de Deus. Pintai unia nau com as âncoras no céu, e uma letra que diga: Nihil sperare nisi ab eo - e esta seja a empresa das nossas esperanças.

A vossa corte, senhores, assim como excede a todas as do mundo na dignidade, assim as excede incomparavelmente nas tentações da esperança. Nas outras cortes pode a esperança particular prometer-se um grande lugar: o supremo só em Roma. Entre as obras famosas de Jerusalém, fabricou Salomão um trono, ao qual se subia por degraus cobertos de púrpura; no alto estava uma cadeira ou reclinatório de ouro, e ao pé da subida uma imagem da caridade: Ferculum fecit sibi rex Salomon; reclinatoriuni aureum, ascensum purpureum; media charitate constravit (Cânt. 3, 9 s) - Esta mesma fábrica, que desenhou em figuras Salomão, passou em realidade Cristo da Jerusalém velha para a nova, senão é que a fantasia dos pintores lhe tem mudado a imagem: viase lá a da caridade, aqui a da esperança; como a púrpura é a escada do reclinatório: Reclinatorium aureum, ascensum purpureum - ninguém desconfia tanto da sua esperança, que não lhe pareça pode aspirar a um degrau, e ninguém se vê já no degrau, que não possa aspirar e subir ao reclinatório. Nas outras cortes não é assim: em Babilônia, corte da Assíria, poderá prometer esperança a púrpura de Daniel, mas não a cadeira de Baltasar; em Susa, corte da Pérsia, poderá prometer o poder e autoridade de Amã, mas não o trono de Assuero; em Mênfrs, corte do Egito, poderá prometer o grau e agrado de José, mas não o sólio de Faraó: Uno tantum regni solio te praecedam[148]. - Porém, em Roma pode prometer a esperança sem engano, e dar a fortuna sem milagre, o sólio, o trono, a cadeira; isto é, o mesmo reclinatório, o qual por isso se chama assim, porque nele descansa a esperança, não havendo mais a que aspirar nem subir.

Julgai agora se em outra parte ou corte do mundo pode ser tão fortemente tentada ou tão fortemente tentadora a esperança, a qual tantas vezes ressuscita a morte, quantas neste grande teatro muda brevemente a cena. As duas maiores tentações com que o demônio tentou aos dois maiores homens do mundo, isto é, o primeiro Adão e o segundo, são as mesmas com que pode tentar e tenta a esperança em Roma. Como tentou o demônio a Adão? Prometendo-lhe que seria como Deus: Eritis sicut Dii[149] - Como tentou o demônio a Cristo? Prometendo-lhe que lhe daria todos os reinos do mundo: Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me[150]. E as promessas destas tentações, não falsas, senão verdadeiras, não ímpias, senão religiosas, são as mesmas com que tenta a esperança em Roma: ser como Deus, e o império universal sobre todos os reinos do mundo: Tibi tradidit Deus omnia regna mundi. - São tão grandes e tão fortes estas duas tentações, que nem ao primeiro Adão nem ao segundo tentou o demônio com ambas juntas, senão divididas: com a primeira caiu Adão do estado da inocência; com a segunda imaginou o demônio que podia cair a mesma inocência: Si cadens adoraveris me. - Tentando, pois, a esperança com ambas juntas, e não uma, senão muitas vezes, e não a um, senão a qualquer, e não com ambição declarada, senão com piedade e devoção, e com zelo do bem universal, quem poderá escapar da tentação, se põe a sua esperança em outro, ou em outros, senão só em Deus?

Deixada à parte a esperança, que não quer de Deus mais que a Deus, ainda há três modo de esperar: esperar em Deus, esperar de Deus, e esperar naqueles e daqueles que não são Deus. Esta última esperança é a que aprendem na escola do mundo os filhos deste século, tanto mais ignorantes quanto mais sábios nela: tantas artes, tantas astúcias, tantas políticas, tantas invenções para ganhar as vontades falsas e fracas dos homens, sendo tanto mais fácil e certo pôr a esperança em uma só vontade que tudo pode, e só não pode faltar ou enganar: ouvi ao Mestre singular da esperança: Bonum est sperare in Domino, quam sperare in principibus (SI. 117, 9): Melhor é esperar em Deus, que esperar nos príncipes. - Por quê? Nem eu o digo nem vós o direis, porque é lei dos que esperam neles esperar, desesperar e calar. Por isso o disse e declarou o mesmo Davi: Nolite confidere in principibus, in filiis hominum, in quibus non est salus[151]. - Há-se de esperar em Deus, e não nos príncipes, não porque são príncipes, Senão porque são homens: In filiis hominum: homens, e filhos de homens. Esperar no Filho do homem, sim; nos filhos dos homens, de nenhum modo, porque o Filho do homem é Deus como seu Pai; os filhos dos homens são homens como os seus: e isto basta para não esperar neles nem fiar deles.

Porém, não nos passe sem reparo o apêndix da mesma razão do profeta: In filiis hominum, in quibus non est salus. - Não espereis - diz - nos homens, porque não há neles saúde. - E que tem que ver a saúde com a esperança? Eu diria antes: Não espereis nos homens, porque não há neles justiça para o merecimento nem agradecimento para o benefício, nem fidelidade para as promessas, nem constância na amizade, nem respeito ou atenção a outras esperanças que as suas; mas por que não há neles  saúde: in quibus non est salus? - Sim: e não sabeis que a esperança é enfermidade, e todos os que esperam enfermos? Assim o disse o Espírito Santo no texto hebraico; por isso poderá ser o não entendam os latinos: Spes quae differtur aegritudo cordis (Prov. 13, 12). - Que coisa é Roma, senhores cortesãos, senão um hospital comum de todas as nações, cheio de enfermos, uns incuráveis, outros malcurados, todos sem quietação, sem sossego, sem respiração, sempre queixosos, sempre melancólicos, sempre gemendo, sempre agonizantes, e não de outra enfermidade, que daquele engano habitual, que chamais esperança? Esta é aquela piscina universal de Jerusalém, onde havia multitudo languentium, expectantium aquae motum (Jo. 5, 3): A multidão grande, todos enfermos, e todos esperando: quando se moviam as águas, corriam todos, atropelando-se uns aos outros; porém, não sarava mais que um, e a saúde que levava este era nova enfermidade para os outros. Não é isto o que sucede aqui a todos os pretendentes? Passam os dez, os vinte, e mais anos, e as queixas e lamentações de todos são como as daquele que havia trinta e oito anos que esperava: Hominem non habeo (ibid. 7). - Todos dizem: Não tenho homem - e, porque põem a sua esperança nos homens - in quibus non est salus - por isso não acham remédio esperando, e desesperados.

Verdadeiramente, eu não admiro tanto a vossa esperança quanto a vossa paciência. Aquela piscina se chamava Probática, porque nela se purificavam as vítimas que iam ao sacrifício; e esta se pudera chamar Probática, porque nela se prova a paciência. Neste mesmo lugar se fizeram em outro tempo as maiores provas da paciência cristã; e quando eu considero a Roma presente, não posso esquecer-me da antiga. Em tempo de Nero e Diocleciano eram muitos os mártires em Roma, hoje são muito mais; aqueles eram os mártires da fé, estes são os mártires da esperança: vede se são muito mais, porque são todos. Cada casa é uma catacumba, cada antecâmara uma catasta, cada carroça um ecúleo, cada cortejo um satelício, cada palácio um anfiteatro, e porque não quero falar das feras, cada esperança um martírio. Só uma diferença acho daquele tempo a este: naquele tempo, o que incensava alcançava vida e honras: vós estais incensado de dia e de noite, e a honra se envilece, a vida se consome, o incenso pede-se como dívida e paga-se como fumo; e se talvez do ídolo adorado se ouve um oráculo, sempre é equívoco, e nunca verdadeiro.

Senhores meus, enfermos por vontade, e mártires por força, se para a vossa enfermidade não há saúde, nem para o vosso martírio coroa; se a vossa esperança é cheia de tantos desgostos, de tantos trabalhos, de tantos tormentos, de tantas desesperações, trocai esta esperança infeliz com a esperança felicíssima do gosto eterno: e se quereis ver a usura desta comutação, considerai a diferença de uma esperança à outra: aqui a esperança é eterna, e o gosto nunca chega; lá o gosto é eterno, e a esperança não pode durar muito; a esperança aqui sempre é eterna, ou porque não tem fim, não alcançando o fim desejado, ou porque o fim de uma esperança, quando chega a alcançar-se, é princípio de outra esperança maior, e por isso mais difícil. Daqui se segue que o gosto do que se esperava nunca chega, porque, encadeada uma esperança com outra, o trabalho e tormento da segunda suspende o gosto da primeira. Pelo contrário, na esperança do gosto eterno, o gosto é verdadeiramente eterno, porque há de durar por toda a eternidade da bem-aventurança; e a esperança, ainda que dure toda a vida, dura pouco; porém, nem esse pouco tarda o gosto à esperança, porque, como o bem esperado não depende dos homens, senão de Deus, e é esperança certa, e não contingente, o mesmo princípio de esperar e já princípio de gozar: Spe gaudentes[152] - diz S. Paulo: a esperança do gosto eterno não é esperança sem gosto; é gosto com esperança juntamente. Quem assim espera, não espera: espera, porque o gosto há de ser sem fim na eternidade; e não espera, isto é, não aguarda, porque já o mesmo gosto tem o seu princípio na esperança: Spes aeterni gaudii.

PERORAÇÃO

O pregador, e o efeito das cinco pedras na cabeça do gigante. Os cinco sermões do autor e as cinco fontes de misericórdia das chagas de Cristo.

Tenho acabado com a última pedra, e, como disse no princípio, creio que a cabeça do gigante ficará como de antes: se culpais a fraqueza do braço, e a pouca força e eficácia da funda, eu o confesso; mas não poderei negar, sem fazer agravo, senhores, ao vosso juízo, que o não haver respondido o sucesso ao desejo, mais tem sido desatenção vossa que negligência minha: a funda atirou à testa do gigante; a que lhe cortou a cabeça foi a sua própria espada; por isso Davi dedicou a espada ao Templo, e da funda não fez caso. Queixai-vos dos fios embotados da vossa própria espada, e não da minha funda: que importam os golpes de fora, se prevalecem as paixões de dentro? Nota o texto que o gigante, aturdido com o golpe, caiu para diante, e com a boca para a terra: Cecidit in faciem suam (1 Rs. 17, 49). - Parece que não havia de ser assim, senão ao contrário, porque a força e impulso da pedra na testa havia de empuxar-lhe a cabeça para trás, e com a cabeça o corpo; por que logo, com movimento contrário ao impulso, não caiu de costas, e para trás, senão de peitos, e para diante? A razão natural foi porque estava diante o seu inimigo, e ele irado; e pôde mais a cólera e paixão que tinha dentro que o golpe que recebeu de fora: estava o gigante naquele ponto cheio de raiva e de ódio contra Davi, prometendo fazê-lo pedaços, e, dá-lo a comer às aves e às feras, pelo desprezo com que havia saído ao desafio, sem outra arma na mão que um pau, como se saíra a um cão; e como tinha diante a causa de sua paixão e a ira, ainda que a força do golpe o empuxasse para trás, pôde mais o ímpeto da própria paixão que o impulso da pedra. Por isso eu, se bem vos lembra, vos pedi no princípio que me désseis as testas nuas de afetos e paixões. Estas são as que têm resistido e impedido o efeito, e não a fraqueza do impulso; contudo, como o dia é da esperança, ainda não desespero. Davi não tirou a pedra da cabeça do gigante, mas deixou-lha dentro do cérebro: assim o faço eu: levai na memória a pedra do conhecimento próprio, e lembrai-vos que sois almas, e almas imortais; levai a pedra da dor do bem perdido, e doei-vos do pecado e de haver pecado; levai a pedra da vergonha do mal cometido, e envergonhai-vos de Deus e dos homens, e de vós mesmos; levai a pedra do temor do castigo eterno, e temei, mais que todas as penas do inferno, o ódio e blasfêmias contra Deus; levai, finalmente, a pedra da esperança do céu, e vivei como quem espera salvar-se e gozar o sumo bem eternamente. Se levardes na memória estes cinco pontos, e particularmente nestes dias tão sagrados os meditardes com a devida atenção, eu espero da sua virtude e eficácia que ainda façam o que não têm feito até agora. Quantas vezes a garça ferida da seta, ainda que não caia logo, e continue o vôo, como leva dentro em si o ferro, enfim se rende e cai? Levai na memória o que tendes ouvido, dai-lhe uma e outra volta no entendimento, e fará a vossa consideração o que não pode a minha funda. Na narração do caso de Davi troca a Escritura os termos, e fala com uma misteriosa impropriedade propriíssima do que vou dizendo: Tulit unum lapidem, et funda jecit - notai - et circumducens percussit Philisthaeum (1 Rs. 17, 49): Tomou - diz - uma pedra, atirou com ela, e, revolvendo-a, feriu o filisteu. - Primeiro diz que atirou com a pedra, e depois acrescenta que a revolveu, e que revolvendo-a feriu. As pedras já estão atiradas: se quereis que firam e que derrubem o gigante, a vós toca, e, não a mim, o revolvê-las; dai-lhes uma e outra volta na consideração; e digo uma e outra, porque não basta uma. Por que diz Jeremias, que está perdido o mundo? Quia nullus est qui recogitet cordé[153]. - Não basta cuidar para a vitória dos vícios; é necessário cuidar e recuidar, considerar e tomar a considerar: recogitet. - Finalmente, para que a vossa consideração e meditação, ajudada da divina graça, tenha maior eficácia, aplicai devotamente estas cinco pedras às outras cinco mais fortes, que nestas foram representadas. Cristo crucificado foi o verdadeiro Davi, que com o báculo da cruz, e com as cinco pedras de suas santíssimas chagas, venceu o mundo, o pecado e o inferno: aplicai e metei estas cinco pedras naquelas cinco fontes de misericórdia; tingi-as e banhai-as muitas vezes na torrente daquele preciosíssimo e potentíssimo sangue, por que, banhadas naquela torrente e santificadas naquela torrente, e naquela torrente purificadas, suprirão abundantissimamente os meus defeitos, e serão limpidissimos lapides de torrente[154]

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Escolheu da torrente cinco pedras mui limpas, e feriu o filisteu na testa, e a pedra se encravou na sua testa (1 Rs. 17,  49).

[2] Que adestras as minhas mãos para a batalha, e os meus dedos para a guerra (SI. 143, 1).

[3] Escolheu da torrente cinco pedras mui limpas (1 Rs. 17, 40)

[4] Senhor Deus meu, tu tens feito muitas obras maravilhosas, e não há quem te seja semelhante nos teus conselhos (SI. 39, 6).

[5] Matei um leão e um urso, e o mesmo que fiz a eles farei a este filisteu (1 Rs. 17, 36).

[6] As suas asas se estendiam ao alto (Ez. 1, 11).

[7] Tinham mãos de homem debaixo das suas asas (ibid. 8).

[8] A planta do pé deles era como a planta do pé de um novilho (Ez. 1, 7)

[9] Onde estava o ímpeto do espírito, para ali caminhavam (ibid. 8).

[10] O homem, quando estava na honra, não o entendeu (SI. 48, 21).

[11] Perdeste a tua sabedoria na tua formosura (Ez. 28, 17).

[12] Dan. 14, 19.

[13] Falarei ao meu Senhor, ainda que eu seja pó e cinza (Gên. 18, 27).

[14] Por que se ensoberbece a terra e a cinza (Eclo.10, 9)?

[15] Sou comparado ao lodo, e sou semelhante ao pó e à cinza (Jó 30, 19).

[16] És pó, e em pó te hás de tornar (Gên. 3, 19).

[17] Eu saí do Pai (Jo. 16, 28).

[18] Aprendeu pelas coisas que padeceu (Hebr. 5, 8).

[19] Ambros. de Isaac et anima

[20] Dá-me as almas, o mais toma para ti (Gên. 14, 21).

[21] De pele e de came me vestiste (Jó 10,11).

[22] Não que desejemos ser despojados dele, mas sim ser revestidos por cima (2 Cor. 5, 4).

[23] Temos este tesouro em vasos de barro (2 Cor. 4, 7).

[24] Os que estamos neste tabernáculo gememos (2 Cor. 5, 4).

[25] Castigo o meu corpo e o reduzo à servidão (1 Cor. 9, 27).

[26] 2 Cor 4,16.

[27] Chrysost. Homil. 3 in Gen. orai 5 contra Judaeos

[28] Inspirou no seu rosto um assopro de vida, e foi feito o homem em alma vivente (Gên. 2, 7).

[29] Se apartares o precioso do vil, serás como a minha boca (Jer. 15, 19).

[30] Na carne, não segundo a carne (Rom. 8, 3 s).

[31] O Senhor é contigo, ó homem o mais valente de todos (Jz. 6, 12).

[32] Não digas: Sou um menino - porquanto a tudo o que te enviar, irás (Jer. 1, 7).

[33] Serm. de S. Maximo

[34] Sabendo que saíra de Deus, e ia para Deus (Jo. 13, 3).

[35] E me tens conduzido até ao pó da sepultura (SI. 21, 16).

[36] Genes 2, juxta 70

[37] Fez uma estátua de ouro (Dan. 3, 1).

[38] Tu pois és a cabeça de ouro (Dan. 2, 38).

[39] Néscio, esta noite te virão demandar atua alma (U. 12, 20).

[40] 0 meu espírito não permanecerá no homem, porque é carne (Gên. 6, 3).

[41] Alude ao braço de São Nicolau de Tolentino, que naqueles dias vertia muito sangue.

[42] Escolheu da torrente cinco pedras mui limpas (1 Rs. 17, 40).

[43] Tertul. de Patient

[44] Tertul. lib. de Poenit. cap. 8.

[45] Sereis como uns deuses, conhecendo o bem e o mal (Gên. 3, 5).

[46] Quantos jornaleiros há, em casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu aqui pereço à fome

(Lc. 15, 17).

[47] Quem me dera ser como eu fui nos meses antigos, em que Deus me guardava, quando a sua alâmpada luzia sobre a minha cabeça (Jó 29, 2 s).

[48] Quando Deus habitava secretamente em minha casa (ibid. 4).

[49] Lc. 7, 44; Jo. 20, 15.

[50] Porque amou muito (Lc. 7, 47).

[51] Em Ramá se ouviu um clamor, um choro, e um grande lamento: vinha a ser Raquel chorando a seus filhos (MI 2, 28).

[52] Sem admitir consolação pela falta deles (ibid.).

[53] Acaso posso eu fazê-lo ainda viver (2 Rs. 12, 23)?

[54] Sem admitir consolação pela falta deles (Mt. 2, 28).

[55] 0 amor não se consola com a impossibilidade, nem se remedeia com a dificuldade (Chrysol. Ser. 147).

[56] Pequei (2 Rs. 12,13).

[57] Também o Senhor transferiu o teu pecado (ibid.).

[58] Regarei com minhas lágrimas o meu estrado (SI. 6, 7).

[59] O meu pecado diante de mim está sempre (SI. 50, 5).

[60] E a minha dor está sempre diante de mim (SI. 37, 18).

[61] Lava-me mais e mais da minha iniqüidade, e purifica-me de meu pecado (S1.50, 4).

[62] Porque a minha maldade eu a conheço, e o meu pecado diante de mim está sempre (ibid. 5).

[63] Gregor. Arelat. lib. de Poenit

[64] Pequei: que te farei eu, ó libertador dos homens (Jó 7, 20)?

[65] Chrysost. homil. 5 ad popul

[66] Escolheu da torrente cinco pedras mui limpas (1 Rs. 17, 40).

[67] Escondeu-se (Gên. 3, 8).

[68] Estavam ambos nus, e não se envergonhavam (Gên. 2, 25).

[69] Tertul. Apolog. 4

[70] Voltando-se o Senhor, pós os olhos em Pedro (Le. 22, 61).

[71] Laurent. Justin. de Christ. Agon. 6. 8.

[72] Cyril. Jerosol. Cathec. 3.

[73] Como as trevas daquela, assim são também a luz deste (Si. 138, 12).

[74] Pai, pequei contra o céu, e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho (Lc. 15, 18 s).

[75] A guardar os porcos (ibid. 15).

[76] Partiu para uma terra muito distante (ibid. 13).

[77] Senec. Epist. 25.

[78] Fiz o mal diante dos teus olhos (SI. 50, 6).

[79] Pequei diante de ti (Lc. 15, 18).

[80] Theod. M. C. 17. Epist. ad Roman.

[81] Pequei contra o Senhor (2 Rs. 12, 13).

[82] A minha ignomínia está diante de mim (SI. 43,16).

[83] Dirão aos montes: Cobri-nos; caos outeiros: Caí sobre nós (Os. 10, 8). -Vieira inverteu uni pouco a frase da Escritura.

[84] Quem me dera que tu me encobrisses no sepulcro, e me escondesses nele, até ter passado o teu furor (Jó 14, 13).

[85] Sou um homem de lábios impuros (Is. 6, 5).

[86] Se eu mesmo habito no meio de um povo que tem os seus lábios também impuros (ibid.).

[87] Eles estavam ambos feridos do amor de Susana, mas não declararam um ao outro a sua paixão, porque se envergonhavam de descobrir um ao outro a sua concupiscência (Dan. 13, 10 s).

[88] Quando toda a terra tinha corrompido o seu caminho (Gên. 6, 12).

[89] Homem justo e perfeito nas suas gerações (ibid. 9).

[90] Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele (Lc. 9, 26).

[91] Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor (Ef. 5, 8).

[92] Amaram mais as trevas do que a luz (Jo. 3, 19).

[93] Confundiram-se porque fizeram abominação; antes, nem a mesma confusão os pôde confundir, nem souberam que coisa era envergonhar-se; por isso cairão entre a turba dos mortos no tempo da sua visitação (Jer. 6, 15).

[94] Fizeram, como os de Sodoma, pública ostentação do seu pecado e não o encobriram (Is. 3, 9).

[95] Escolheu da torrente cinco pedras mui limpas (I Rs. 17, 40).

[96] Se subir ao céu, tu ali te achas; se descer ao inferno, presente nele estás (SI. 138, 8).

[97] Onde não há nenhuma ordem, senão um sempiterno horror (Jó 10, 22).

[98] Aug 1. 6 de Music.

[99] Euseb. Emiss. hom. I ad Monach.

[100] S. Maxim. supra c. 8 Luc

[101] Onde não há nenhuma ordem, senão um sempiterno horror (Jó 10, 22).

[102] A morte e o inferno foram lançados no tanque de fogo ardente (Apc. 20,14). - Falta na versão da Vulgata a palavra ardentis.

[103] Ide-vos malditos para o fogo eterno (Mt. 25, 41).

[104] O céu do céu é para o Senhor (SI. 113, 16).

[105] Livraste a minha alma do inferno inferior (SI. 85,13).

[106] Tenho sede (Jó 19, 28).

[107] Deus meu, por que me desamparaste (Mt. 27, 46)?

[108] Blasfemavam dele dizendo: Se és Filho de Deus, desce da cruz. Confiou em Deus; livre-o lá agora, se é seu amigo; porque ele disse: Eu pois sou o Filho de Deus (Mt. 27, 39 s 43).

[109] Euthym. et Maldon. hic n. 23.

[110] Quando estava nos tormentos (Lc. 16, 23).

[111] Para que molhe em água a ponta do seu dedo, a fim de me refrescar a língua (ibid. 24).

[112] A fim de me refrescar a língua, pois sou atormentado nesta chama (ibid. 24).

[113] Puseram no céu a sua boca (SI. 72, 9).

[114] O fogo, e o enxofre e as tempestades são a parte que lhes toca (SI. 10, 7).

[115] A soberba daqueles que te aborrecem sobe continuamente (SI. 73, 23).

[116] Sobem até aos céus, e descem até aos abismos (S. 106, 26).

[117] Senhor, salva-me, e nós cantaremos todos os dias da nossa vida os nossos salmos na casa do Senhor (Is. 38, 20).

[118] O fogo, e o enxofre, e as tempestades são a parte que lhes toca (SI. 10, 7).

[119] Eis trará o Senhor a vingança da retribuição; ele mesmo virá, e vos salvará (Is. 35, 4)

[120] Tu és justo, Senhor, e é reto o teu juízo (SI. 118, 137).

[121] Justamente padecemos estas coisas, porque pecamos (Gên. 42, 21).

[122] Mendoç. ibid. n.18, ann.13, sect. 3

[123] Orig. homil. 35 in Matth.

[124] Senhor, lembra-te de mim (Lc. 23, 42).

[125] E um daqueles ladrões que estavam pendurados blasfemava. Mas o outro, respondendo, o

repreendia (ibid. 39 s).

[126] Escolheu da torrente cinco pedras mui limpas (1 Rs. 17, 40

[127] Estes lhe pareciam poucos dias, pela grandeza do amor que lhe tinha (Gên. 29, 20

[128] Bernard. Serin. 9 in Psal. Qui habitat.

[129] Porque não esperarei no meu arco, e a minha espada não me salvará (SI. 43, 7).

[130] Guarda a minha alma, porque sou santo; salva-me Deus meu, a mim teu servo, porque espero em ti (SI. 85, 2).

[131] Em Deus esperarei: não temerei o que o homem me possa fazer (SI. 55, 11)

[132] Pus toda a minha esperança nas tuas palavras (SI. 118, 74).

[133] Tu és a minha esperança desde os peitos de minha mãe (SI. 21, 10).

[134] E, além disso, também a minha carne repousará em esperança (SI. 15, 9).

[135] Que tenho eu no céu? E, fora de ti, que desejei eu sobre a terra, Deus do meu coração, e minha porção, Deus, para sempre (SI. 72, 25 s)?

[136] Guarda-me, Senhor, porque eu esperei em ti (SI. 15, 1).

[137] Eu disse ao Senhor: Tu és o meu Deus, porque não tens necessidade dos meus bens (ibid. 2).

[138] D. Thom. I p. q. 105, art. 3 ad 3 et 2.2, q. 34, artic. 3 ad.

[139] Quem nos separará do amor de Cristo (Rom. 8, 35)?

[140] Nem a morte, nem a vida (ibid. 38).

[141] Eu estou certo que nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem a altura, nem outra criatura alguma nos poderá apartar do amor de Deus (ibid. 38, s).

[142] O que Deus tem preparado para aqueles que o amam (1 Cor. 2, 9).

[143] Que o olho não viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais veio ao coração do homem (1 Cor. 2, 9)

[144] Que não é permitido a um homem referir (2 Cor. 12, 4).

[145] Nem outra criatura alguma (Rom. 8, 39).

[146] Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu, lua, pára sobre o vale de Ajalon (Jos. 10, 12).

[147] Não só nada esperar que não seja de Deus, mas nada procurar que não seja Deus (S. Bem.)

[148] Somente te precederei no sólio do reino (Gên. 41, 40).

[149] Sereis como uns deuses (Gên. 3, 5).

[150] Tudo isto te darei, se prostrado me adorares (Mt. 4, 9),

[151] Não queirais confiar nos principes, nos filhos dos homens, em quem não há salvação (SI. 145, 2 s).

[152] Alegres na esperança (Rom.12,12).

[153] ) Porque não há nenhum que considere no seu coração (Jer. 12, 11). 29)

[154] Limpidíssimas pedras da torrente.(1 Rs. 17, 40).