LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
As lágrimas de Heráclito, do Padre Antônio Vieira
Edição referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998
NA ACADEMIA QUE HAVIA EM Roma, 65° no Palácio da Sereníssima Rainha de Suécia Cristina Alexandra, com a assistência de muitos Cardeais, e Monsenhores, se propôs um Problema no ano de 1674, cujo argumento foi este: Se o mundo era mais digno de riso, ou de lágrimas: e qual dos dois gentios andara mais prudente, se Demócrito, que ria sempre; ou Heráclito, que sempre chorava. E encarregando-se estes dois pontos aos Padres Antônio Vieira, e Jerônimo Cataneo, ambos da Companhia de Jesus para cada um defender a parte que escolhesse, deu o Padre Antônio Vieira a eleição ao Padre Cataneo ,o qual tomou para si o riso de Demócrito, e ficando ao Padre Vieira a causa das lágrimas de Heráclito, a defendendo engenhosa e elegantemente em língua italiana, que depois se traduziu na Espanhola e agora na Portuguesa, tirada do original italiano por Dom Francisco Xavier José de Menezes, Conde da Eiriceira, do Conselho de S. Majestade, Sargento General de batalha dos seus exércitos, e Deputado da Junta dos Três Estados.
Em seu lugar apareceu o pranto, porque segue e vem depois do riso. Se fosse o riso como Jano - qui sua terga videt[1]- choraria o mesmo riso. Não desconfia o pranto, não, da sua causa: inveja só ao riso a sua fortuna. Se o pranto e o riso aparecessem neste grande teatro no traje da verdade - sempre nua- sem dúvida seria a vitória do pranto. Mas vestido, ornado e armado de uma tão superior eloqüência, que o riso se ria do pranto, não é merecimento, foi sorte. De tudo quanto ri saiu vestido, ornado, e armado o riso: riem os prados, e saiu vestido de flores; ri-se a aurora, e saiu ornado de luzes; e se aos relâmpagos e raios chamou a antiguidade risus Vestae et Vulcani, entre tantos relâmpagos, trovões e raios de eloqüência, quem não julgará ao miserável pranto cego, atônito, e fulminado? Tal é a fortuna ou a natureza destes dois contrários. Por isso nasce o riso na boca, como eloqüente, e o pranto nos olhos, como mudo. Mas se interdum lacrymae pondera vocis habent[2] - assim mudo, e com lágrimas, assim triste, e vestido de luto - como costumavam os réus no Senado da antiga Roma - se apresenta hoje o pranto diante da majestade do sólio real e tribunal retíssimo dos seus eminentíssimos juízes, não presumindo que há de alcançar vitória ou aplauso, mas esperando a piedade e comiseração, que nunca negaram aos miseráveis e aflitos, os espíritos generosos e magnânimos.
Entrando, pois, na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heráclito, eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma coisa e direi outra. Confesso que a primeira propriedade do racional é o risível, e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o sinal do racional, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero mais prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há de chorar, e quem ri, ou não chora, não o conhece.
Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios, que homem haverá - se acaso é homem - que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são risíveis as feras.
Mas, se Demócrito era um homem tão grande entre os homens, e um filósofo tão sábio, e se não só via este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria, não deste nosso mundo, mas daqueles seus mundos.
E com razão, porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É certo, porém, que ele ria neste mundo, e que se ria deste mundo. Como, pois, se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas coisas que via e chorava Heráclito? A mim, senhores, me parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um a seu modo.
Que Demócrito não risse eu o provo: Demócrito ria sempre; logo nunca ria. A conseqüência parece difícil, e é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração, e cessando a novidade, ou a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário, e se vê sempre, não pode causar admiração nem novidade, segue-se que nunca ria rindo sempre, pois não havia matéria que lhe motivasse o riso.
Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a rir de alguma coisa que visse ou encontrasse de novo, porque sempre e em todo o lugar ria, e quando saía de casa já saía rindo: logo, ria do que já sabia; logo, ria sem novidade nem admiração; logo, o que nele parecia riso não era riso.
Confirma-se mais esta verdade com o motivo e intenção de Demócrito, porque não pode haver riso que se não origine de causa que agrade: tudo o de que Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava; logo, não se ria; e se não ria, que era o que fazia, a que todos chamavam riso? Já disse que era pranto, e que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora, vede.
Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso: chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva. Para prova da primeira e segunda diferença de chorar com lágrimas, ou sem elas, é notável o exemplo que refere Heródoto de Psaminito, rei do Egito.
Perdendo Psaminito o reino, viu em primeiro lugar suas filhas vestidas como escravas, e não chorou; viu depois seu filho primogênito descalço e carregado de ferros, com mãos atadas e um freio na boca, e não chorou; e vendo este mesmo Psaminito, e com o mesmo coração, que um seu antigo criado pedia esmola, derramou infinitas lágrimas. Oh! grande rei e grande intérprete da natureza! Chora com lágrimas a miséria do criado, e sem lágrimas a desgraça dos filhos; assim respondeu ele à pergunta de Cambises: Domestica mala graviora sunt quam ut lacrymas recipiant[3]. - Com o mesmo pensamento, não menos régio nem menos varonil, Hécuba, com a coroa perdida e a pátria abrasada, proibiu as lágrimas às damas de Tróia, dizendo-lhes assim:
Quid effuso genas fletu rigatis?
Levia perpessae sumus, si flenda patimur[4].
A dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca. Dor que pode sair pelos olhos não é grande dor; por isso não chorava Demócrito, e, como era pequena demonstração da sua dor, não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofiae da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva cegar; a dor que não é excessiva rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte, a tristeza, se é moderada, faz chorar, se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar, e não só destila as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. Quando Minúcio, livre do cativeiro, apareceu ao seu exército, que era o romano: In laetitiam tota castra effusa sunt, ut prae gaudio militibus omnibus lacrymae manarent[5] - diz Plutarco. Pois, se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza, por que não será causa do riso? A ironia tem contrária significação do que soa: o riso de Demócrito era ironia do pranto: ria, mas ironicamente, porque o seu riso era nascido de tristeza, e também a significava; eram lágrimas transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas, como aquele de quem disse Estácio:
Lacrymosos impia risus audiit[6].
Na guerra morrem muitos soldados rindo, e a razão é, diz Aristóteles porque são feridos no diafragma: não ria Demócrito como contente: ria como ferido; recebia dentro do peito todos os golpes do mundo, e tão mal ferido ria.
Os olhos com injustiça se puderam queixar desta minha filosofia: o pranto chamava-se assim porque se batiam as mãos uma com a outra quando se chorava, porque para chorar não são precisos os olhos, e não seria próvida a natureza se, havendo sido a origem de tantos pesares, lhes desse um só desafogo; e, se choram as mãos, a boca, por que não há de chorar? Heráclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz, e este era o pranto de Demócrito. De sorte que, na minha consideração, não só Héráclito, mas Demócrito chorava, só com a diferença de que o pranto de Heráclito era mais natural, o pranto de Demócrito mais esquisito, e tudo merece este mundo, digno de novos e esquisitos prantos, para ser bastantemente chorado.
Mas porque esta minha suposição me separa do problema, e pode parecer que, como muitas vezes sucede, me aparte da opinião comum para fugir da dificuldade, seja embora o riso de Demócrito verdadeiro e próprio riso, apareçam em juízo um e outro filósofo, para que, ouvidos ambos, se veja claramente a razão de cada um, e confio do merecimento da causa, que será tão justa a sentença, que Demócrito saia chorando, e Heráclito rindo.
Sêneca, no livro De Tranquillitate, falando destes dois filósofos, dá a razão por que sempre ria um, e chorava outro, com estas judiciosas palavras: Hic, quoties in pubblicum processerat, flebat, ille ridebat: huic omnia,quae agimus, miseriae, illi ineptiae videbantur: Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo, maior razão tinha Heráclito de chorar que Demócrito de rir, porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.
As misérias e os trabalhos que padecem os mortais, ou por obrigação da natureza, ou por remédio da fortuna, ou por sustento da vida, ou por conservação do estado particular e público, são misérias, mas não são ignorâncias, porque as governa a prudência, por necessidade, por conveniência, por honra e por decoro.
Pelo contrário, todas as ignorâncias que se cometem no mundo, as que se fazem, as que se dizem, as que se cuidam, todas são misérias, porque todas se cometem, ou por erro do entendimento, ou por desordem da vontade, e este erro e esta desordem, não só é miséria, porque direitamente se opõe à luz e ao império da razão, na qual consiste toda a nobreza e felicidade do homem. Aquelas misérias causam ao homem dores e trabalhos, estas o fazem verdadeiramente miserável e infeliz; e, suposto que umas e outras sejam dignas de lágrimas, e as lágrimas das ignorâncias são lágrimas de pior cor, estas fazem corar o rosto, aquelas não. Foi esta distinção achada com alta filosofia pelo engenho de Ovídio nas lágrimas de Penteu:
Essemus miseri sine crimine, sorsque querenda, Non celanda foret: lacrymaeque pudore carerent[7].
E como nem todas as misérias são ignorâncias, e todas as ignorâncias são misérias, e as maiores misérias, muito maior matéria e muito maior razão tinha Heráclito de chorar que Demócrito de rir; antes, digo que só Heráclito tinha toda a razão, e Demócrito nenhuma. Todas as misérias humanas eram o assunto de Heráclito, e o de Demócrito só uma parte delas; e como toda a miséria é causa da dor, e nenhuma dor pode ser causa do riso, o riso de Demócrito não tinha causa nem motivo algum que o justificasse.
Pode ser que me responda algum metafísico que Demócrito distinguia nas ignorâncias aquilo que é ignorância daquilo que é miséria, e que se ria das misérias não como misérias, mas como ignorâncias. Porém, esta distinção, de mais de ser indigna de um filósofo moral, é falsa e impossível, por ser contra a natureza e essência do riso. O ridículo, ou o objeto do riso, como define Aristóteles: Est turve sine dobre: É uma tal deformidade, que exclui todo o motivo de dor; e como a ignorância precisamente está sempre unida com o motivo da dor, que é a miséria, por isso nem é nem pode ser matéria do riso.
Esta é a verdadeira e sólida razão por que no juízo de todos os filósofos se inventou a comédia. Viram os sábios das repúblicas que para desafogo, divertimento e alegria dos povos era necessária alguma matéria de riso; e porque o riso não podia nascer da deformidade ou vício verdadeiro, pela união natural que tem com a dor, que fizeram? Inventaram sabiamente as ficções da comédia, para que o ridículo da imitação, como suposto, e não verdadeiro, ficasse separado da dor. Um aleijado com um pé de pau, uma velha decrépita e trêmula, um pobre remendado e enfermo, um cego e um frenético, um insensato, no teatro, fazem rir. E por quê? Porque aqueles defeitos são supostos, e não verdadeiros, que, se fossem verdadeiros, seriam motivo de comiseração, e não de riso; e, como os defeitos e vícios de que ria Demócrito eram verdadeiros defeitos e verdadeiros vícios, não tinha o seu riso algum motivo; mas, se não tinha motivo, como ria? Ria-se por abuso intolerável do motivo oposto, colocando o riso sobre o motivo do pranto; ria-se das verdadeiras misérias e do verdadeiro motivo da dor, filosofia humana e contrária a toda a razão, e praticada unicamente na escola da inveja, da qual diz o poeta:
Risus abest, nisi quem visi movere Dolores[8].
E se o fim destes dois filósofos - como verdadeiramente era - foi manifestar ao mundo o desconcerto do seu estado, e persuadir aos homens o erro dos seus juízos, a desordem dos seus desejos e a vaidade das suas fadigas, também para este fim tinha muito maior razão Heráclito de chorar que Demócrito de rir.
A primeira introdução e disposição de quem quer persuadir, ensinada e usada de todos os oradores, é conciliar a benevolência do teatro; esta conciliava Heráclito, e não Demócrito, porque quem chora lastima, e quem ri despreza, e a compaixão concilia amor, o desprezo ódio e aborrecimento; quem ri exaspera, quem chora enternece, e quem quer imprimir os seus afetos e a sua doutrina nos corações não deve endurecê-los, deve abrandá-los. O agricultor, para colher os frutos, rega as plantas; o impressor, para imprimir as letras, molha o papel; e assim o deve fazer com as lágrimas quem quer imprimir os seus afetos e colher o fruto das suas persuasões.
Ulisses, naquela sua famosa oração contra Ajax, na contenda das armas de Aquiles, podendo fiar-se tanto da sua copiosa eloqüência adornou o seu exórdio com lágrimas; e, porque não as tinha verdadeiras, chorava-as fingidas:
Manuque simul veluti lacrymantia tersit lumina[9].
Não de outra sorte devia fazer Demócrito, ainda que fosse contra o jocoso do seu gênio. Devia aproveitar-se da boca, não para rir, mas para umedecer os olhos e fingir as lágrimas; assim o ensina, com a sua natural agudeza, aquele mestre que professou em Roma a arte de conciliar o amor e de abrandar os corações:
Si lacrymae — negue enim veniunt in tempore semper — Deficiant, uncta lumina tinge manu[10]
Quanto à força e eficácia de persuadir, muito mais fortemente apertava e persuadia Heráclito chorando que Demócrito rindo, porque quem ri atenua e alivia os males, quem chora os acrescenta e faz mais sensíveis e pesados; quem ri mostra que são dignos de zombaria, quem chora prova que são dignos de lástima; quem ri, por exemplo e por simpatia, move a rir; quem chora, por exemplo e com razão, ensina a chorar, porque, se os meus males são tais, que movem a contínuas lágrimas nos outros, quanto mais os devo eu chorar, pois os padeço?
Finalmente, Demócrito tia sempre, e Heráclito sempre chorava, e este sempre também era por parte de Heráclito, e contra Demócrito: por parte de Heráclito, porque ser o seu pranto contínuo o fazia mais eficaz; contra Demócrito, porque ser o seu riso contínuo o fazia ridículo. Não é minha a censura, nem é nova, mas apotegma antiquíssimo do filósofo Plistarco: O riso - dizia ele - se é pouco, passa; se é muito, ofende. - Cícero, como se vê nas suas orações, respondia muitas vezes rindo aos argumentos da parte contrária, que é solução muito fácil, quando os argumentos são difíceis; mas que louvores deram a Cícero deste seu riso? Disse-o Plutarco. Sendo Cícero cônsul, e defendendo Murena, riu muito, como costumava, da doutrina dos estóicos, e, não podendo sofrê-lo Catão, lhe disse publicamente: Dii bani, quam ridiculum habemus consulem[11]! - Com muita mais causa Demócrito, porque ria sempre, se fazia ridículo, e, zombando do juízo dos outros, expunha o seu a zombaria.
Os meninos riem-se muito facilmente, e os doutos sempre se riem; e diz Aristóteles que os meninos se riem porque têm pouco siso, e os loucos porque de todo o não têm, e eu creio verdadeiramente que não faço grande ofensa a Demócrito, porque um homem que de um mundo via muitos mundos, era sinal que tinha perturbadas as espécies e enferma a fantasia, e quem se havia de mover a um tal riso?
Não assim o pranto de Heráclito, que, por ser contínuo, se fazia mais forte e eficaz: Lacryma cito siccatur, praesertim in alienis malis[12] - diz Túlio. E, sendo o pranto de Heráclito pelos males alheios, sem que nunca se secassem as suas lágrimas, que coração haveria tão duro e obstinado, que se não abrandasse e rendesse a um tal pranto? Eram as lágrimas de Heráclito como a água, que, caindo pouco a pouco, vai limando suavemente os mármores, e enfim os rompe. Não digo eu somente os mármores:
Lacrymis adamanta movebis[13].
diz atrevida mas verdadeiramente Ovídio. As lágrimas, como lhe chamou o melhor filósofo de Grécia, são sangue da alma, e este - não o outro fabuloso - é o que lavra os diamantes. O coração mais diamantino, como tantas vezes se queixava Agamenão, foi o de Aquiles; e contudo, confiava e presumia Briscidi que, sem dizer uma só palavra - como fazia Heráclito - com as suas lágrimas somente o despedaçaria e o desfaria em pó; assim o diz ela na discreta carta escrita ao mesmo Aquiles!
Sic licet immitis, marisque ferocior undis, Ut taceam lacrymis comminuere nieis[14].
Tal era a eficácia invencível do pranto de Heráclito, e tal a debilidade ridícula do riso de Demócrito.
Não quero, contudo, que seja minha a sentença entre estes dois filósofos: seja de outro filósofo, que os iguale em autoridade e ciência. O grande filósofo Dion, como refere Estobeu - falando do pranto e do riso, conclui assim: Mihi sane faties magis videtur ornari lacrymis quam risu: lacrymis enim ut plurimum bona aliqua doctrina conjungitur, riso vero lascivia, et flendo quidem nemo sibi conciliavit authorem contumeliae, ridendo autem spem decoris auxit[15] - Esta é a sentença.
Mas, deixando já o riso de Demócrito afogado no pranto de Heráclito, para acabar o meu primeiro argumento, busco outra vez a prova universal do mundo. Que esperança, que lugar pode ter neste mundo o riso, se todo o mundo chora e ensina a chorar? Choram os homens, como racionais e sensitivos, e ainda as coisas sem razão e sem sentido choram; estas são as lágrimas que o príncipe dos poetas chamou, profundamente, lágrimas de todas as coisas:
Sunt lacrymae rerum, et mentem mortalia tangunt[16].
Não residem as lágrimas só nos olhos que vêm os objetos, mas nos mesmos objetos que são vistos: ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui correm; e se as mesmas coisas que não vêem choram, quanto mais razão tem o homem que vê, e se vê? Não quero o testemunho dos miseráveis, não; só quero o dos mais ditosos.
Quem há neste mundo tão favorecido ou tão divinizado pela sua fortuna, que possa presumir de não ter que chorar. Aqueles mesmos que mais se riem por fora mais choram por dentro. Aqui tínhamos antigamente em Roma um cortesão chamado Heros, o qual chorava sempre, não tanto os males próprios, quanto os bens alheios, e diz assim Marcial:
Quam multi faciunt, quod Heros sed lumine siccol Pars major lecrymas videt, et intus habet[17]
Oh! se este intus se visse! São as lágrimas como as águas do rioAlfeu: este rio umas vezes caminha descoberto, outras se oculta por debaixo da terra, mas sempre corre: as lágrimas plebéias deixam-se ver; as lágrimas eqüestres, senatórias e consulares são invisíveis, mas lágrimas. Das lágrimas que se derramaram nas exéquias de Germânico dizia Tácito: Periisse Germanicum nulli jactantius moerent, quem qui maxime laetantur[18]. - O contrário é mais comum e mais verdadeiro: Qui jectentius laetentur, maxime moerent[19].- Mas, quando ninguém chorasse, nem por fora nem por dentro, quando este mundo e todos oshomens rissem, então todo o mundo e todos os homens seriam mais dignos de comiseração e de lágrimas: Quid enim miserius misero non miserente seipsum[20]?
E se tudo isto não basta, senhores, para que a causa do pranto tenha merecido a seu favor os vossos votos, em nome do mesmo pranto apelarei eu da sentença para aquele justíssimo tribunal para quem apelou Apeles. Vencido Apeles em um concurso de pintores: Appello - disse - ad tribunal neturee. - E porque os animais vivos se enganavam com os que ele havia pintado, e as aves com os frutos, a natureza fez a Apeles a justiça que lhe tinham negado os homens; assim o faço eu, se não venceu o pranto: Appello ad tribunal neturee. - Seja meu intérprete o historiador da mesma natureza:
Flens animal caeteris imperaturum a suppliciis vitam auspicatur; unam tantum ob culpam, quia natos est[21]. - Nasce o homem - diz Plínio - já chorando, e, sem outra culpa mais que haver nascido, fica condenado a perpétuo pranto, começa a vida e o pranto juntamente, para que saiba que, se vê a este mundo chorar, vem para chorar. - O mais aprenderá depois, porque é arte; para o pranto nasce já ensinado, porque é natureza: Non aliud neturee sponte quam flere. Esta é a sentença irrefragável da natureza, e esta a natureza dos mortais: é o homem risível, mas nascido para chorar, porque, se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional, e o uso da razão, é o pranto.
E se alguém me replicar que, se o homem não risse, ficaria ociosa a potência do rir, contra o fim da mesma natureza, a uma instância tão forte não posso responder só como filósofo natural - como observei em todo este discurso - mas responderei como filósofo cristão. Respondo, e pergunto: Se o homem, pela transgressão, não tivesse perdida a felicidade e em que foi criado, choraria ou não? É certo que nunca chorariam os homens, se fossem conservados naquele estado, e as lágrimas, que agora há, não as haveria então: logo, se na felicidade daquele tempo estaria ociosa a potência do chorar, na miséria deste tempo esteja ociosa a potência do rir, etc.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
[1] Que vê as próprias costas
[2] Às vezes as lágrimas têm a eficácia da voz.
[3] As desgraças domésticas são por demais cruéis para serem choradas.
[4] Por que umedecer a face com tanto pranto? Nossos males são muito pequenos, se nos deixam forças para chorar (Senec. in Tread, 410).
[5] Todo o exército se alegrou tanto, que vieram lágrimas aos olhos dos soldados (Plutarc. in Fab.).
[6] A ímpia (Eurídice) ouviu teu riso mesclado de lágrimas (Estácio, Tebaid., liv. VI, 165).
[7] Nossa infelicidade não nos seria vergonhosa; poderíamos lamentar nossa sorte sem nos esconder, e nossas lágrimas correriam sem acanhamento (Ovid., Met., lib.111, 551).
[8] Ovídio, Met.
[9] E com a mão enxugou os olhos, como se estivesse chorando (Ovid., Met. lib. XIII).
[10] Se faltarem lágrimas - pois nem sempre vêm quando são necessárias - umedece os olhos.
[11] Deuses do céu, que cônsul mais ridículo temos nós (Plutarc. relatas ibidein)!
[12] As lágrimas se secam depressa, mormente nos males alheios (Cicer. de Partir. 3).
[13] Comoverás com as lágrimas a mais dura pedra.
[14] Ovid. in Ep. Briscid. ad Acbil.
[15] Para mim, na verdade, o rosto me parece mais ornado com lágrimas do que com risos, pois, na maior parte das vezes, às lágrimas se liga algum bom ensinamento, ao passo que o riso subentende prazer; e se chorando ninguém conseguiu reconciliar-se com o autor de uma ofensa, rindo só consegue aumentar o poder do desprezo.
[16] Virgil., Aeneid. lib. l.
[17] Martial.
[18] Ninguém chorou mais sua morte do que os que mais se alegraram (Annal.).
[19] Os que mais se alegram, esses são os mais tristes.
[20] Que há de mais miserável que o miserável que não tem pena de si?
[21] Plín. in Praef. lib. 7.