Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Voz de Deus ao mundo, a Portugal e à Bahia, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

VOZ DE DEUS AO MUNDO, A PORTUGAL E À BAHIA

JUÍZO DO COMETA QUE NELA FOI VISTO

em  de outubro de , e continua até hoje,  de novembro do mesmo ano.

VOZ DE DEUS

 Não se chama este juízo astronômico, porque não é nosso intento examinar ou definir a natureza, a matéria, o nascimento, o lugar, as distâncias, os aspectos, os movimentos, nem algumas das outras circunstâncias em que curiosamente se empregam as observações da Astronomia, e muito menos a duração e ocaso deste prodigioso meteoro, pois ainda estão pendentes. Também se não chama astrológico este juízo, porque, reputando nós, com os mais sábios e prudentes professores da mesma arte, quão inútil, infrutuosa e vã seja aquela parte da Astrologia, que com o nome de judiciária costuma entreter os discursos e enganar as esperanças ou fantasias dos homens, não só seria crime contra a providência do altíssimo, mas desprezo de seus avisos tão manifestos, diverti-los a considerações ociosas, em que se consumam e percam os efeitos próprios e saudáveis que deve e pode produzir em nós uma causa tão notável e tão notória. Porque, se o poeta gentio, falando dos trovões que cada dia ouvimos, teve justa razão para dizer:

Humanas natura tonitrua mentes –

que ânimo haverá tão duro, que se não mova com a vista de um portento tão extraordinário, e que entendimento tão rude e contumaz, que se não persuada, e conheça claramente que um monstro de tão prodigiosa grandeza não foi criado sem algum fim, nem mandado e mostrado acaso, mas para que os mortais, entrando dentro de si mesmos, e levantando o pensamento ao Autor e Governador do universo, reverenciem seu poder e temam seus juízos? Deste motivo, e não da curiosidade, deve nascer o racional e justo desejo, que todos têm, de saber com quem fala, e o que diz esta portentosa figura, pois a vemos sair ao teatro do mundo quando ele em toda a parte se acha disposto e tão armado para alguma grande tragédia. E esta é - cristão leitor - a razão por que ao juízo do cometa presente, ou ao mesmo cometa interpretado, dei o segundo nome de Voz de Deus. Se acaso não entendes assim, e és do número daqueles que chamam aos cometas causas naturais, e não reconhecem neles outro mistério ou documento mais alto, eu te afirmo que essa mesma incredulidade e dureza é já um efeito fatal do mesmo cometa, e princípio dos castigos que por ele e com ele pode ser nos venham anunciados.

 Nos dias que precederão ao Juízo final, diz a Suma Verdade que haverá alguns homens tão incrédulos, que zombem dos sinais que então serão vistos no céu, e, não fazendo caso deles, continuem a viver no mesmo descuido do fim e passatempos do mundo, como de antes viviam.

 Mas, os verdadeiros efeitos daqueles mesmos sinais castigarão sem remédio esta sua obstinação, por não quererem dar crédito aos avisos do céu. Assim o podem temer hoje os que atribuem a puros efeitos da natureza as que verdadeiramente são vozes de Deus.

 Quando se ouviu em Jerusalém a voz do céu, com que o Eterno Padre respondeu a uma oração pública que Cristo, Senhor nosso, lhe fizera em presença de muito povo, refere o evangelista São João que, sendo aquela voz clara e inteligivelmente de articulada, o vulgo, que a ouvira, dizia que fora um trovão: Turba ergo, quae stabat, et audierat, dicebat tonitruum esse factum (Jo. , ). - Assim era na interpretação dos cometas, não só o vulgo, mas os que se prezam de o não ser: chamam-lhe efeitos das causas segundas, e verdadeiramente são vozes da primeira causa.

 Sobre a suposição desta verdade, e de serem os cometas vozes de Deus, se funda todo o discurso deste papel, a qual suposição, para que ninguém a duvide, é tão certa e recebida, que nela concordam sem discrepância os santos padres, os teólogos, os filósofos, os históricos, os matemáticos, e com eles o consenso universal de todo o gênero humano, fundado na longa experiência e contínua observação dos cometas, depois que começaram a aparecer no mundo, porque em nenhuma história sagrada ou profana se faz memória ou menção de que fosse visto cometa, senão no primeiro ano da Olimpíada setenta e sete, que responde aos anos quatrocentos e oitenta antes do nascimento de Cristo. E daqui se pode formar um novo e não vulgar argumento, de que se prova que os cometas, como dizia, são língua ou voz de Deus, o qual desde aquele tempo começou a falar e avisar aos homens por meio destes sinais do céu, costumando de antes falar-lhes por outros modos, como diz São Paulo, muitos e diversos: Multifariam, multisque modis olim Deus loquens patribus[1]

 Sêneca, no livro sétimo das questões naturais, atribui estes esquecimentos ou silêncio dos cometas a não se ter ainda observado com certeza o nascimento, curso e ocaso deles. Esta razão, porém, não subsiste nem é verossímil, porque, se em dois mil anos depois se observaram os cometas com tanta pontualidade, muito mais e melhor se podiam observar com três mil e seiscentos anos; que tantos tinham já decorrido desde o princípio do mundo, principalmente sendo as vidas naquele tempo tanto mais largas; e os caldeus - entre os quais nasceu a Astrologia - tão prezados e tão amantes desta ciência, que, como escreve Beroso, tendo por tradição que havia de haver dois dilúvios, um de água, outro de fogo, para que ela se não afogasse ou queimasse em algum deles, e se perpetuasse nos vindouros, a deixaram entalhada em duas grandes colunas de matéria diferente, uma de barro, que se conservasse contra o fogo; e outra de pedra, contra a água. Esta ciência se entende que a receberam os caldeus de Adão, que a tinha infusa por Deus com as demais, e seria imperfeita nesta parte se, havendo cometas, lhe faltasse o conhecimento deles.

 E quando nada disto fosse, ao menos de Salomão, o mais sábio de todos os homens, e da sua escola, que tinha em Jerusalém, não podia deixar de manar e propagar-se esta notícia, e que entre as graves questões, sobre que era consultado de todo o mundo, a dos cometas, e sua significação, não fosse uma delas.

 Digo, pois, que a razão mais verossímil de faltarem as notícias dos cometas no discurso de tantos séculos, não foi por negligência ou desatenção dos históricos, senão porque verdadeiramente em todas aquelas idades não houve cometas, reservando Deus este modo de linguagem para falar por ela ao mundo nos tempos posteriores destinados de sua Providência.

 No princípio falava Deus aos homens por si mesmo, como a Adão, Cairn, Noé, Abraão, Moisés, e outros patriarcas. Depois que se introduziram no mundo os reis, que foi mil e oitocentos anos depois da criação, falava Deus aos mesmos reis por visões e figuras, ou em sonhos, ou acordados, como a Faraó, Abimelec, Nabucodonosor e Baltasar. Mais adiante falava pelos profetas, que duraram alguns séculos, e por meio de seus oráculos mandava anunciar, ou de palavra, aos reis e reino de Israel, ou por escrito, aos de Tiro, Babilônia, Egito, e Assírio, e outros, as calamidades impendentes com que os havia de castigar, e de que estão cheios os livros dos mesmos profetas.

 Finalmente, depois que os profetas cessaram, começou Deus a falar pelos cometas, que é a linguagem universal de maior majestade e horror de que usa extraordinariamente a seus tempos, e em casos graves, como se não pode duvidar seja o presente.

 Confirma-se esta conjectura não levemente com a mesma cronologia dos tempos, porque, depois que acabaram os profetas, então começaram os cometas. Os cometas começaram, como temos dito, no ano de quatrocentos e oitenta antes do nascimento de Cristo, e os profetas tinham acabado quarenta anos somente antes, porque Malaquias, que foi o último dos profetas, profetizou no reinado de Dario Hidaspes, quinhentos e vinte anos antes do dito nascimento. De sorte que, tendo Deus falado primeiro por si mesmo, depois por visões, e mais adiante pelos profetas, ultimamente falou pelos cometas, que também são visões e profetas mudos do que Deus nos quer dizer.

 Nem favorece pouco este pensamento a sentença expressa de São João Damasceno, comum, como parece, na sua idade, o qual, no livro segundo De Fide Ortodoxa, cap. I, diz assim: Aggignuntur frequenter cometae signa quaedarn, quae quidem non sunt ex üs quae ab initio rerum facta sunt, sed jussu divino certis temporibus confantur, ac rursus dissolvuntur. - Quer dizer que os cometas não foram criados no princípio do mundo, como foi opinião de muitos, mas que o mesmo Deus os produz de novo, e os mostra ao mundo como sinais decretórios do que abaixo diremos, e depois os torna a desfazer como e quando é servido.

 Esta sentença diz Tanero que é digníssima de todo o filósofo cristão, e como tal a seguem Oviedo e Arriaga, todos três insignes filósofos deste século; e, antes e depois deles, muitos matemáticos de grande nome, os quais coerentemente acrescentam que os cometas nos seus cursos são governados por anjos, com que fica tirada a dificuldade até agora invencível do movimento irregular dos cometas, e desfeita juntamente na Escola de Aristóteles a opinião da matéria e modo com que diz são formados, não sendo fácil de crer nem de entender que os vapores da terra, e exalações do mar, subindo de tão diversos lugares de um e outro elemento, sem causa superior que os disponha e ordene, eles naturalmente, e por si mesmos, se ajuntem e se ajustem entre si, e se condensem e acendam em tal lugar, e em tal composição, e em tal figura, e que esta a conservem ou variem com tal uniformidade, como se vê nos cometas. E como Deus, e não a natureza, é o supremo Artífice destas grandíssimas estátuas ou gigantes de fogo, e lhes dá a matéria e forma como e quando é servido, não é muito que lhes destinasse o nascimento para certa idade do mundo, em que os expusesse a nossos olhos, e que esta seja a razão de faltar em tantos séculos a memória e notícia dos cometas.

 Mas porque o nosso intento não é disputar questões, posto que esta não seja tratada, o certo e indubitável é que de qualquer sorte que os cometas se formem, e ou os houvesse ou não desde o princípio do mundo, Deus, como autor da natureza, e supremo Senhor e governador do universo, usa deles a seu beneplácito, e que por meio destes sinais nos fala e nos avisa. Assim como, para fé e testemunho de não haver outro dilúvio, tomou Deus, e nos deu por sinal o arco celeste - ou houvesse de antes o dito arco, ou começasse desde então, como quer a glosa, e outros autores - da mesma maneira, ou haja havido cometas ou não até aquele tempo, estes foram de muitos anos a esta parte, e estes são hoje os sinais e caracteres grandes do céu, com que Deus nos significa e notifica seus decretos.

 Donde também se segue que o conceito comum, que o mundo tem formado das significações destes sinais do céu, é o verdadeiro significado deles, porque de outra maneira seria ociosa e inútil a ostentação dos mesmos cometas. Nem se pode presumir da sabedoria e providência divina queira falar e admoestar aos homens por linguagem que eles não entendam.

 Assim falou aos Magos por meio da estrela, a que Santo Agostinho chama lingua caelorum, língua do céu, e assim falava aos filhos de Israel, como diz Davi, pela coluna da nuvem: In columna subis loquebatur ad eos[2] - não porque a estrela ou coluna falassem com vozes desarticuladas, mas porque eram sinais de Deus, cujo verdadeiro significado entendiam os homens. Neste mesmo sentido diz o profeta que os prodígios do Egito foram palavras dos sinais de Deus: Posuit in eis verba signorum suorum[3]- e porque os egipícios, e o seu rei Faraó endurecido, não quiseram entender as palavras daqueles prodigiosos sinais, por isso pereceram todos, o rei e o reino.

 Fique logo assentado, como suposição certa, e infalível, que o presente cometa é uma voz de Deus, do gênero daquelas que Davi dividiu em suas espécies: Vox Domini super aquas, Deus majestatis intonuit; Vox Domini in virtute; Vox Domini in magnificentia. Vox Domini confringentis cedros. Vox Domini intercidentis flammam ignis. Vox Domini concutientis desertam, etc. [4].

 As vozes formadas no Monte Sinai ardente, quando Deus estava e falava nele, diz o texto que as via todo o povo: Populus autem videbat votem - e não diz que as ouvia, senão que as via, porque estas vozes de Deus ouvem-se com os olhos; e pois os olhos de todo o mundo estão vendo este grande sinal e portento do céu, ouça primeiro o mundo o que lhe dizem as suas vozes; depois as ouvirá Portugal, e ultimamente a Bahia.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Tendo Deus falado muitas vezes e de muitos modos a nossos pais (Hebr. , ).

[2] Em coluna de nuvens lhes falava (SI. ,).

[3] Pôs neles as palavras de seus sinais (SI. ,).

[4] Voz do Senhor sobre as águas; o Deus da majestade trovejou. Voz do Senhor em poder; voz do Senhor em magnificência. Voz do Senhor que quebra os cedros. Voz do Senhor que divide a chama do fogo. Voz do Senhor que abala o deserto (SI. , ss.  s).