Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Carta do padre reitor do Colégio da Bahia, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

CARTA DO PADRE REITOR DO COLÉGIO DA BAHIA,

Depois de ligados os fascículos das cartas que se devem enviar a Vossa Paternidade, estando a frota prestes a partir, sou obrigado, na ausência do Padre Provincial, a escrever à pressa esta última, que leva a tristíssima notícia da morte do Padre Antônio Vieira, notícia que será recebida por todos os membros da Companhia com um sentimento de pesar não comum, pois, embora já nonagenário, e privado, de alguns meses para cá, da luz dos olhos, e um pouco surdo, parecesse ter preenchido a medida dos seus dias, que lhe fora dada com mão assaz liberal, contudo, os muitos e elevados dotes que Deus nele reunira, tomarão, por muito tempo sensível a saudade de tão grande homem, e a aumentarão extremamente, todas as vezes que a sua lembrança, que viverá eterna entre nós, despertarem nosso espírito a sua imagem, que assiduamente contemplava, o seu trato agradabilíssimo, e os preclaros dotes de sua alma. Aos que, porém, folhearem os seus livros já publicados, e que ansiosamente esperavam pelos prometidos, frustrará toda a esperança, mormente quando se apresentar ao seu espírito, ainda não polida, e nem sequer terminada, a nunca assaz louvada Clavis Prophetarum, que ele ultimamente, com a força do engenho ainda vigorosa, empreendera concluir e limar. E sentirão que lhes tenha sido arrebatado pela inesperada morte um novo e singular auxílio para extrair com a maior facilidade as mais valiosas riquezas dos escrínios das Sagradas Letras. Tinha ele já publicado, além de outros opúsculos não menos preciosos, onze tomos de sermões, elaborados com todo esmero, e procurados por toda a parte com tal avidez, qual o testificamos pedidos dos povos até estrangeiros, e as versões dos mesmos feitas ao correr da pena.

Para se mostrar cumpridor da palavra dada, estava agora para mandar ao prelo o décimo-segundo tomo, a que ele chamava, entre todos, o seu querido Benjamim, mas predizia que seria a sua obra póstuma; e, verdadeiramente, só agora sairá à luz, depois de ele sepultado. E, posto, que vencida finalmente a inveja, não só ocupasse na opinião geral, o primeiro lugar entre todos os oradores, mas também os sobrepujasse com toda a sua fronte cansada, todavia apreciava tanto esta Chave dos Profetas, trabalho de cinqüenta anos, preparado depois de longa leitura dos Santos Padres e de outros gravíssimos autores, defendido com sólidas razões, e com todo o vigor do engenho disposto com sumo critério, e não menor erudição que clareza de linguagem e propriedade de termos, que de boa vontade lançaria ao fogo todas as outras suas obras, contanto que, juiz como era severíssimo no seu exame, pudesse terminar esta, e levá-la ao cabo paulatinamente, empresa que é muito incerto possam outros realizar, conforme os seus desejos, ainda que seja confiada aos mais peritos, como ele mesmo costumava dizer quando ouvia que mão estranha tinha de tocar nela, embora estes últimos tempos confessasse que seria muito auxiliado se pudesse dirigir de viva voz algum escritor, como de fato dirigia um ajudante dos seus estudos, que ultimamente lhe fora dado, e esperava ser auxiliado com outros manuscritos, se, permitindo-o Deus, se recuperassem.

Não poucas coisas podiam consolar-nos nesta dor, se a mesma dor, próxima ao alívio, não recrudescesse com a perda de tanto bem, isto é, a lembrança, assim da sua insigne sabedoria como da sua vida, passada principalmente na missão do Maranhão, e nas longas e freqüentes navegações que empreendera pela libertação e salvação dos índios. A pacificação nas adversidades, o desprezo na prosperidade da risonha fortuna, e o reconhecido amor que lhe era devido, na celebração das suas exéquias, comprovada com todas as demonstrações exteriores possíveis de honras, pois, desde o seu primeiro ingresso na Companhia, na qual mereceu ser admitido fugindo de noite da casa paterna, por singular benefício de Deus, e favor de Sua Mãe Santíssima, sentiu-se logo chamado a maiores causas, e, suplicando ante o seu altar, e desejando ardentemente tomar-se pregoeiro da palavra divina, como que removendo-se-lhe do entendimento um escuro véu, que até aquele dia o molestava, de repente começou a gozar de luz mais clara para compreender tudo com a maior facilidade, e conservar o compreendido no riquíssimo tesouro da memória.

Por isso, contando apenas dezessete anos de idade, foi-lhe confiado por seus superiores a tarefa de escrever em estilo histórico as cartas ânuas da Província, cartas que exigem não só elegância de elocução, mas também madureza de juízo, que nele admiravam. Por esta mesma razão, no ano seguinte entregou felizmente por escrito aos seus discípulos a interpretação das tragédias de Sêneca, naquele tempo em que os seus comentos, que agora saíram à luz, eram procurados não só no Brasil, mas também na Europa.

Empreendeu também expor os Livros de Josué conforme o genuíno sentido das palavras, ilustrando-os com sentimentos morais, e interpretar, antes dos vinte anos, os dulcíssimos cânticos de Salomão, dando-lhes cinco significações. Depois dos vinte anos, tendo sido chamado das humanidades para estudos mais sérios, preparou por si mesmo o curso de Filosofia, e foi dispensado por seus superiores de escrever as lições teológicas, ao verem com quanta doutrina e erudição tinham sido dispostos por ele os tratados, que ainda se conservam na Província, e que o declaram professor de Teologia, a ele que se confessava humilde discípulo dos outros. Tendo sido destinado por seus superiores, quando apenas contava trinta anos, para reger na Bahia esta mesma Faculdade, desistiu da empresa, por ter sido obrigado a navegar para Lisboa com o filho do Excelentíssimo Governador de todo o Estado da Bahia, que ia apresentar ao Sereníssimo D. João IV, elevado naquele tempo à dignidade real por unânime consentimento de todos, e saudado no Brasil com demonstrações de regozijo e dedicação.

Das viagens que depois empreendeu à França, à Inglaterra, à Holanda e à Itália, por ordem do mesmo Sereníssimo Rei, porque era, entre os poucos, considerado para tratar de negócios de suma importância; das bibliotecas que percorreu, as da Companhia como as dos estranhos, que são os tesouros da sabedoria; e das consultas e conselhos dos padres mais graves de toda parte, e de outros professores de letras, os mais peritos em todo gênero de ciências, adquiriu tais riquezas de conhecimento, quais sói adquirir o que viu os costumes e cidades de grandes nações.

As controvérsias que se costumam agitar entre os católicos e os inimigos da verdadeira religião, bem como a legítima arte de defender e de atacar, conheceu-as profundamente, e delas se serviu freqüentemente com grande fruto, quando foi mister viver no meio deles.

Para adquirir o conhecimento da Historia Sagrada e profana não pouco o ajudaram as muitas e grandes viagens que fez por mar e por terra, e um desejo admirável o inflamou, o de aprender com todo o empenho a Cosmografia e a Cronologia. Não só percorreu várias vezes todo o livro da Sagrada Bíblia, mas quis também docemente ruminá-lo, encantado sobretudo dos vaticínios dos profetas, investigava nestes com diligência o verdadeiro sentido das Escrituras segundo a exposição dos Santos Padres, comparando em seguida atentamente uns lugares com outros, e procurando o nexo entre os antigos e os posteriores, para chegar, não só com as asas do seu engenho, mas também com seguro passo, à genuína inteligência dos arcanos querida por Deus, evitando deste modo prudentemente a ruína que não evitaram os que ousaram voar com asas não concedidas ao homem.

Mas, embora ilustre com os raios de tantas ciências, nas principais cidades da Europa, e nas mais florescentes academias, mormente em Roma, cabeça do mundo, e em Lisboa, cidade a mais célebre das situadas à beira-mar, pudesse chamar sobre si a atenção de todos, e, agradável à corte e aos reis, colher os uberantes frutos da sua prudência, e no púlpito ser considerado o príncipe dos oradores sagrados, contudo preferiu voltar aos índios os seus amores, e no Maranhão dedicar-se à missão, naquele tempo assaz difícil, à qual, desde o noviciado, arrebatado do lucro das almas, sempre aspirava. E como ele, não contando ainda dezessete anos, se houvesse obrigado com voto de passar a vida até a morte com os infiéis, para os conduzir ao culto de Cristo, e, depois de instruídos na fé, informá-los nos bons costumes para a salvação, aprendeu por isso, antes de tudo, a língua dos brasis e a dos cafres de Angola, dos quais muitos no Brasil são excessivamente rudes para aprender os diversos mistérios, e por isso mesmo deviam ser instruídos com sumo desvelo. E como para estes sagrados ministérios basta só aquela doutrina que é suficiente para ensinar bem o catecismo, e administrar convenientemente os sacramentos da Igreja, pediu com repetidas súplicas aos seus superiores para renunciar desde então aos altos estudos, antes de começar o curso filosófico, contente com o último grau da Companhia. Como estes, porém, não quisessem anuir ao seu pedido, esperando dele maiores coisas, e até o Provincial, e depois o próprio Geral, sem hesitação alguma o tivessem dispensado do voto que fizera, ele, contudo, não se quis dispensar a si mesmo; antes, terminada a carreira dos estudos, repetindo as antigas preces, e tendo obtido finalmente os seus desejos, navegou para o Maranhão, não obstante a proibição do rei e a resistência do príncipe, levando consigo trinta companheiros, os quais, com o seu exemplo, iam entusiasticamente trabalhar para a glória de Deus na mesma missão.

Vivendo aqui por espaço de nove anos, como se pode ver nos monumentos escritos por ele mesmo, navegando ora para uma parte ora para outra, e para qualquer lugar aonde o chamava a necessidade dos índios, percorreu catorze mil léguas, e muito mais, não contando outras muitas viagens por lugares desertos e florestas inacessíveis, feitas sempre a pé, e as vinte e duas vezes que atravessou o mar Atlântico, terrível por suas freqüentes e horríveis tempestades.

Esta missão, dividida em catorze residências, estende-se por seiscentas léguas, e outras tantas na sua excursão andou o Padre Vieira, partindo dos montes Japamba até o Rio Tapajós, e visitando onze vezes durante esse tempo, todas as residências.

Para instruir os bárbaros das diversas nações, compôs, com trabalho insano, para seu uso, um catecismo em seis línguas totalmente dessemelhantes, a saber: a comum, que chamam geral, dos índios que habitam perto da praia, a dos nheengaíbas, a dos bocas, a dos juninas e as dos tapajós, que usam de dois idiomas. Nestas residências ele mesmo edificou novas igrejas, ornou outras já edificadas, e as proveu de sagradas alfaias, não só com decência, mas até, para promover o culto divino com magnificência e riqueza, por meio das esmolas obtidas do Sereníssimo Rei, e das pensões anuais designadas para manutenção dos missionários, e das prebendas do ofício de pregador régio, que lhe eram dadas como subsídio. Tudo isto reunido durante nove anos, ultrapassava facilmente a quantia de quinhentos mil cruzados, não contando com o devido sustento, subtraído, por unânime consenso, destes rendimentos, a fim de que por este meio se propagasse melhor a fé cristã entre os bárbaros atraídos de um modo maravilhoso por tais espetáculos, enquanto os missionários, trajando uma veste vil, e nutrindo-se de um alimento fácil de preparar, feito de mandioca e de peixe, serviam ao bem público, ao esplendor dos templos e à salvação das almas.

O fruto colhido desta árdua missão, se nos referimos aos índios, ou já convertidos ao conhecimento de Cristo, ou já adultos e adiantados na piedade cristã, foi tal, que pôde chamar para esta messe, das principais cidades da Europa, a varões de grandes qualidades, atraídos de longe ao ouvirem que homens - ou sátiros silvestres - antes ferozes, e agora mansos; antes acostumados aos manjares de carne humana, e depois ocupados em receber com toda a reverência o corpo de Cristo; antes entregues a uma vida desonesta e vergonhosa, arrastados do vedado prazer para todas as devassidões, e depois flagelando-se a si mesmos no tempo da quaresma; enfim, de feras tomados verdadeiros cristãos, e que professam a lei de Cristo não só com os lábios, mas também com ótimos costumes. Daqui só o seu consolo, daqui a sua alegria! Mas, se considerarmos o prêmio obtido da parte dos portugueses que ali vivem, foi uma contínua perseguição contra o Padre Vieira, chefe dos missionários, a quem, entre todos, devotavam ódio mortal, por ter combatido acerrimamente pela liberdade dos índios, que eles queriam reduzir à escravidão, usando para isso de todos os seus recursos e de toda sua indústria. E, o que era mais para sentir, por esta causa fremiam contra ele os governadores, os ministros do rei, os cobradores dos dízimos e dos tributos, os soldados e o povo, amotinado, e até os mesmos sacerdotes das famílias religiosas, nas prédicas e nas confissões, nas praças e nas casas particulares, como se ele fosse um perturbador da ordem pública, principalmente depois que o Sereníssimo Rei D. João IV, conhecendo no Padre Vieira e nos seus companheiros a fidelidade, o amor e o ardente zelo das missões, confiara à nossa Companhia a administração dosíndios, excluídos todos os outros, e impedidos de tirar da arrebatada administração o lucro costumado e desejado para si e para os seus. Tendo, porém, falecido o rei, e ficando o Padre Vieira e os seus companheiros como que privados de todo o apoio humano, eles, depois de terem acometido em vão com inúmeras calúnias ao chefe assim como a seus companheiros, expulsaram-nos finalmente do Maranhão, sob um pretexto mais grave, posto que incrível, dizendo que o Padre Vieira havia de admitir espontaneamente os holandeses, e que com o auxilio dos índios, que por si e pelos seus governava, os havia de conservar no domínio do Maranhão.

E prouvera a Deus que, navegando ele já no alto mar, tivesse cessado a tempestade que se levantara em terra, e que o mar, que tantas vezes não duvidou agredi-lo com o naufrágio, socorrendo-o a Mãe de Deus quando estava já para ser submerso, tivesse ensinado também a outros a depor a ameaças insanas, e mais tormentosas que as tempestades populares. Mas, crescendo as ondas no porto, teve também em Portugal de suportar mais fortes mares, agitados por contrários ventos, principalmente entre aqueles que julgavam prestar obséquio a Deus, perseguindo justamente, como pensavam, ao padre Vieira. Porém, nesta procela de acontecimentos, de que é perigoso até o recordar-se, conservou o Padre Vieira tal serenidade, que a teriam por milagre os que a consideravam, se não tivessem conhecido a sua conformidade com a vontade divina, pela freqüente meditação e leitura dos sagrados livros, e sobretudo, pelos muitos revezes, perseguições, angústias, doenças e incômodos que havia sofrido. Existe ainda entre os seus manuscritos um pequeno comentário, distribuído por anos, meses e dias, no qual, para se lembrar freqüentes vezes de dar as devidas graças a Deus, estão indicadas as tempestades do mar, as navegações penosíssimas, os assaltos dos piratas, as dores do corpo, as enfermidades mortais, os golpes da adversa fortuna, e os perigos de que fora livre, por interesses do céu; e tantas privações penosas e graves ali se enumeram, que é para admirar como tivesse podido chegar àquela idade, que hoje poucos alcançam, no meio de tantas angústias de espírito, e de molestíssimas doenças do corpo.

Retirado, pois, com a sua biblioteca, em um recanto pelo espaço de quase dezessete anos, na casa de campo da Bahia, onde se ocupou assiduamente em imprimir os seus livros, folgava de recordar e ruminar com grande prazer o desprezo do mundo, desde que verdadeiramente aprendeu a desprezar a glória imortal, os aplausos dos monarcas, dos embaixadores, dos príncipes purpurados, e a benevolência dos reis que dominavam na corte.

Da meditação da Paixão do Senhor aprendeu a sofrer muitas coisas, não só com igualdade de ânimo, mas também com valor, a vencer os maus no bem, a triunfar dos ingratos com novos benefícios, e a permanecer muitas vezes com Jesus Cristo no Horto, bradando como ele bradava a seu Pai: "Não se faça a minha vontade, mas a vossa" -jaculatória que sempre usava na oração. Depositava toda a confiança no patrocínio da Virgem Mãe de Deus, a quem, salvo tantas vezes do naufrágio, julgava com razão ser devedor, da própria vida; e por isso esforçava-se por concluir a tarefa do Rosário, que compusera em dois volumes, em honra da mesma grande Mãe de Deus.

Tendo saído, há coisa de um ano, da casa de campo, e vivendo no colégio, tinha-se fixado um tempo certo para as visitas na capela doméstica, a fim de tratar mais livremente com Jesus Cristo oculto na Eucaristia, cujo sacratíssimo corpo, quando não estava de cama, costumava receber reverentemente todos os dias durante alguns meses, para preparar com tempo a viagem para a vida eterna. Muitas vezes, porém, ouvi-lhe dizer com grande conformidade que merecidamente Deus lhe havia tirado há pouco também estes dois consolos, isto é, o de ter sido privado com razão da sua biblioteca, quando de todo lhe foi interditada a leitura, por haver perdido quase a vista, e o de ter sido também privado do seu retiro, porque, sobrevindo as suas antigas doenças um novo, freqüente, e, por causa do intolerável ardor, penosíssimo incomodo de urina, não podia demorar-se senão às escondidas e por pouco tempo na capela doméstica, donde estava acostumado a tirar o maior conforto da divina Eucaristia.

Não desistindo, porém, do assíduo trabalho, ou de ditar, ou de pôr em ordem o que outros deviam escrever, começou a passaras noites sem dormir, recuperando durante o dia um pouco de descanso, mas perdendo pouco a pouco a vontade de comer. Desde então, além das freqüentes repetições da erisipela, e do agudo prurido das impigens, atacado de uma febre lenta, embora de alguns dias, deitando-se de novo, recolheu-se de repente ao seu quarto, quando conversava com dois padres na galeria do colégio, com maior veemência das dores produzidas pelo ardor de urina, dores que o acometeram de modo extraordinário. E, diminuindo-se lhe sensivelmente as forças, deu sinais de um perigo algum tanto grave, que naquela idade não era para desprezar. Os médicos não ousaram sangrá-lo, empregando somente poções refrigerantes, depois das quais pareceu outra vez tomar alento, e ser aliviado como de um novo e instantâneo vigor. Imediatamente foi munido da Sagrada Eucaristia; depois, tendo concebido maior esperança de salvá-lo do que deviam, esforçaram-se por expelir a causa da doença com um simplicíssimo remédio, após o qual sucumbiu no mesmo dia em que o havia tomado, mas, de modo que também ele conheceu o seu perigo iminente, e, prestes a partir desta vida, pediu o conforto da Extrema-Unção. Ao começar o quinto dia depois que caiu de cama, isto é, aos 18 de julho, na primeira hora depois da meia-noite, que anuncia a primeira luz, adormeceu tranqüilamente no Senhor, como é de esperar, contando noventa anos de idade, felizmente começada no dia 6 de fevereiro de 1608, e setenta e cinco de Companhia, na qual entrou aos 5 de maio de 1623, e depois da profissão de quatro votos que nela fizera aos 25 de maio de 1644.

Os que choraram a sua morte com abundantes lágrimas, nunca assaz para os méritos de tão grande varão, puderam tirar algum alívio das honras que todos lhe prestaram celebrando as suas exéquias. Os cônegos e os cantores, juntamente com os nossos, acompanharam o seu corpo, transportado da capela doméstica para o templo da Sé Metropolitana, e, depois de cantadas, segundo o rito, Matinas e Laudes, ofereceram pela sua alma a Missa solene; e, entregue à sepultura, tendo invocado sobre ele o descanso eterno, todos lhe deram tristemente o último adeus.

O Excelentíssimo D. João de Lencastre, governador geral do Brasil, e seu filho, bem como o designado bispo de São Tomé, e o Vigário Geral do Ilustríssimo e Reverendíssimo Arcebispo, juntamente com o Reverendíssimo Padre Provincial da Ordem de São Bento, e o Reitor do nosso colégio, levaram à sepultura no esquife o seu cadáver. Não pôde oferecer a Missa por ele o Ilustríssimo Senhor Arcebispo, embora manifestasse tê-lo desejado sumamente por causa do incômodo de saúde que ainda o impedia de qualquer comunicação. Os principais sacerdotes, e os superiores de todas as ordens religiosas, ou celebraram por ele, ou assistiram às suas exéquias. Nem faltaram os senadores e o supremo Chanceler, juntamente com o Mordomo-mor do rei, e outros varões ilustres, ainda que nem todos fossem chamados pela notícia de sua apressada morte.

Foi pintado em um quadro o seu retrato o melhor que se pôde achar, mas muito inferior àquele que ele mesmo nos deixou de si nos livros que publicara, e que milagrosamente nos reproduz o seu ânimo interior, e que não se pode delinear com nenhumas cores.

Os seus escritos, depois de promulgada a ordem de Vossa Paternidade, conservam-se em duas caixas, fechadas com diversas chaves. O índex desses escritos, que vai junto a essa carta, fará conhecer a Vossa Paternidade o achado tesouro que se deve guardar conforme a vontade de Vossa Paternidade.

Estas coisas que acabo de escrever ao correr da pena, se assim aprouver a Vossa Paternidade, serão descritas em estilo mais elegante, e, observadas as leis da história, em latim pelo padre Leopoldo Fuez, confessor da nossa Sereníssima Rainha, em português pelo padre Luís Severino, íntimo amigo do Padre Vieira durante a sua vida, e em italiano pelo padre Antônio Maria Bonustio, o último ajudante que lhe fora dado para terminar a Chave dos Profetas; e, assim, postas as coisas em sua verdadeira luz, e reunidas de um tesouro mais rico outras que foram omitidas, receberão os feitos do Padre Antônio Vieira, por meio destes, uma vida melhor e mais duradoura, para lembrança sempiterna dos vindouros, e para maior louvor e glória de Deus, que nos conserve por muito tempo são e salvo a Vossa Paternidade.

Bahia, 10 de julho de 1697.

De Vossa Paternidade

indigníssimo servo e filho em Cristo,

João Antônio Andreoni

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística