Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Voz gratulatória, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

VOZ GRATULATÓRIA

SERMÃO DE DIA DE REIS PREGADO

NO COLÉGIO DA BAHIA,

Na festa que fez o Marquês de Montalvão, em ação de graças pelas vitórias e felizes sucessos dos primeiros seis meses do seu governo, ano de 1641.

Procidentes adoraverunt eum: et apertis thesauris suis, obtulerunt munera, aurum, thus, et myrrham[1].

Os três dons ou tributos que hoje se oferecem nesta igreja: o tributo dos Magos a Cristo, e o tributo do Colégio da Bahia à gloriosa e saudosa memória de el-rei D. Sebastião, seu fundador.

Três dons se oferecem hoje – Excelentíssimo Senhor – três dons se oferecem hoje, e três tributos se pagam nesta igreja. O primeiro tributo pagam os reis orientais a Cristo nascido, prostradas as coroas e os tesouros à majestade humilde de seu presépio. Oferecem ouro, incenso e mirra, três dons, como diz S. Gregório, com três mistérios. O ouro a Cristo, como a rei; o incenso, como a Deus; a mirra, como a mortal[2]. Oh! que ofertas tão de reis, e tão para rei! Para

um rei se conservar seguro entre os princípios gloriosos da majestade, quando considerar que é Deus nos poderes, lembre-se que é mortal na condição. Se entre os fumos do incenso se gloriar desvanecido o ouro da coroa, oh! como se comporá humilhado entre as amarguras da mirra! Assim dispensou Deus que andassem unidos no mesmo cetro, para humilhar as grandezas humanas, dois extremos tão contrários: atributos de deidade, e acidentes de imortal. Mui funesto vai este exórdio para dia tão de festa; mas nem a matéria que se segue ajuda muito a melhorar de alegria.

O segundo tributo oferece este colégio à gloriosa e sempre saudosa memória de el-rei de Portugal D. Sebastião, seu fundador, que com católica piedade e real magnificência nos dotou, assim este da Bahia, como outros sete colégios no Brasil, e noutras províncias. Em reconhecida lembrança desta mercê, além dos sacrifícios, e outros sufrágios espirituais, segundo o louvável costume de nossa Companhia, oferece, hoje, este real colégio um círio com as armas de Portugal ao senhor marquês vice-rei em nome de sua majestade Filipe IV, que, com o sangue e com a coroa, herdou juntamente daquele piedosíssimo rei o afeto e particular devoção à nossa Companhia. Herdou, disse, e conforme teologia de S. Paulo, quem diz herança supõe verdadeira morte. que, como fim de uma vida tão suspirada, não é muito que não seja bem querida[3]. Mas por mais que o natural amor queira atentar as esperanças, ou as desesperações, o mesmo gênero da oferta parece que nos desengana e repreende os desejos, porque um círio apagado que oferecemos, mais é cerimônia de defunto que reconhecimento de vivo. Viva, pois, o santo e piedoso rei – que já é passado o ano de 40 – viva e reino eternamente com Deus, e sustente-nos desde o céu com suas orações, o reino que com seu demasiado valor nos perdeu na terra.

O terceiro dom ou tributo que hoje se oferece nesta igreja nos há de gastar todo o discurso do sermão: para vermos qual é, e quão devido, peçamos a graça.

AVE MARIA.

§I

O tributo de louvores e graças do Marquês de Montalvão pelos feliz sucessos dos primeiros meses de seu governo. Por que também não mandou América os seus tributos ao presépio de Cristo? A vitória dos portugueses Espírito Santo e a espada de São Pedro.

Seguramente, posso afirmar que nenhum dia de Reis teve Cristo, Redentor nosso, mais agradável que o de hoje: Glorioso magis placent praecon quam tributa[4]disse avisadamente Cassiodoro: Que aos amigos da honra glória mais lhe agradam os louvores que os tributos. – E como Deus, Senhor nosso, é tão divinamente ambicioso de glórias que, chegando a se dar a si mesmo, só de sua glória se mostrou sempre avaro: Gloriam mear alteri non dabo[5]não há dúvida que muito mais agradáveis serão a Cristo as ofertas que lhe trazemos a seus altares, que as que levaram os reis a seu presépio: os reis ofereceram tributos, nós oferecemos louvores. Dedicou a solenidade deste dia o piedoso zelo do senhor marquês vice-rei, que Deus guarde, aos louvores e graças tão devidas, que pelos felizes sucessos destes primeiros seis meses de seu governo nos está merecendo o céu, já mais brando, já mais benigno a nossos trabalhos. E assim como os tesouros orientais, que os reis ofereceram à divina e humana majestade de Cristo, foi uma agradecida restituição – diz Santo Agostinho – dos bens que de sua liberal mão tinham recebido, assim vem, hoje, S. Excelência restituir aos altares do mesmo Senhor as obrigações com que se vê penhorado de sua divina misericórdia, e oferece em tributo de agradecimento o que recebeu, e recebemos todos na mercê de tantas vitórias.

Já hoje não tem que invejar a nossa América às outras três partes d mundo, que tão conhecidas vantagens lhe fizeram nas soberanas glórias deste dia. Diz a glosa neste lugar: Tres viri, qui offerunt, significant gentes ex tribo partibus mundi venientes[6]: que os três reis, que hoje ofereceram tributos em Belém ao Menino Deus, significam as nações gentílicas, que das três partes do mundo haviam de vir adorar e reconhecer a Cristo. – Um rei significa a África, outro a Ásia, outro à Europa. Pois, a América, por que não foi também oferecer? Faltavam-lhe bálsamos em suas árvores, âmbares em suas praias, ouro finíssimo em suas minas, e, sobretudo, liberalidade em seus moradores? Pois, por que não mandou também tributos ao presépio de Cristo? Alguém diria que por sua natural ingratidão, mas eu digo que por honra e por autoridade. Como cada uma das outras partes do mundo mandou um rei por embaixador, e a América não tinha rei que mandar, que nem fé, nem lei, nem rei havia nestas partes, não quis ir com as companheiras a Belém, por não aparecer lá com menos autoridade. Porém, hoje, que a nossa América se vê tão subida de ponto e de posto, vem adorar o Rei nascido com as demais; tão agradecida como confiada, porque entre as púrpuras reais que as outras partes do mundo arrastam ao presépio de Cristo, deita ela também um bastão, em vez de cetro e de coroa. Oh! que grande autoridade de nossa fé! Oh! que grande glória de Deus e de sua Igreja! Assim como as bandeiras católicas nunca estão mais levanta­das que quando se abatem humildes à presença de Cristo Sacramentado, e se deixam pisar gloriosamente dos pés do sacerdote que o leva nas mãos, assim os bastões e insígnias militares nunca se vêem com mais honra e autoridade, que quando lançadas aos pés de Cristo, supremo Senhor dos exércitos, protestam os generais e capitães vitoriosos, que a Deus, e não a eles, se devem as vitórias; a Deus, e não a eles, as graças; a Deus, e não a eles, as glórias.

E na verdade, senhores, ainda que todos os sucessos prósperos da guerra se devem atribuir a Deus, como a primeira causa, na ocasião e ocasiões presentes, particularmente, são devidas à divina bondade as graças que lhes vimos dar, porque de tal maneira vencemos sempre que, assim como só Deus parece que meneou as armas, assim só a Deus se devem as glórias. Este assunto, e a primeira prova dele, me deu o senhor marquês, quando se serviu de me encomendar este sermão, porque, dizendo, como era bem, que déssemos graças a Deus por estas vitórias que nos dera, acrescentou S. Excelência estas palavras: – Quando chegou o nosso socorro ao Espírito Santo, já o inimigo era retirado, para mostrar Deus que não tem necessidade de nós, e que a vitória foi toda sua. – Assim é. Senhor Excelentíssimo, assim é; mas nem por isso se perdeu a diligência do socorro, nem o merecimento e glória de o haver mandado. Poucas horas antes da Paixão encomendou Cristo aos apóstolos que estivessem apercebidos de armas, e que quem não tivesse espada, vendesse a túnica para a comprar: Qui non habet, vendar tunicam suam et emat gladium (Lc. 22, 36). –Chegou a ocasião do Horto, investiram a Cristo os quinhentos soldados do esquadrão de Judas, disse o Senhor: Ego sum (Jo. 18, 5): Eu sou – e com estas duas palavras caíram todos. Aproveitou-se S. Pedro da ocasião, mete mão à espada, avança-se ao inimigo, começa a cortar orelhas; diz-lhe o Senhor: Tá, Pedro: Mitte gladium tuum in vaginam (ibid. 11): Embainhai a espada. – Pois, como assim, replica Santo Ambrósio: Qui ferire prohibet, cur emere gladium jubet[7]? Se Cristo havia de mandar embainhar as espadas, para que mandou aos apóstolos que fizessem tão extraordinária diligência por elas? – E se com duas palavras podia e havia de lançar por terra aos inimigos, para que tanta prevenção de armas? A razão foi, diz S. Crisóstomo, para que entendamos que fazer Deus o que pode não tira o merecimento aos homens de fazer o que devem[8]. É verdade que Cristo levou a glória de vencer e derribar aos inimigos; mas os apóstolos ficaram com a honra de prevenir as armas para a defensa. Antes, essa mesma diligência dos apóstolos subiu muito de ponto a glória de Cristo, porque nunca são mais gloriosas as vitórias divinas que quando sobejam os socorros humanos. Notai.

§II

O auxílio divino e as duas espadas dos apóstolos. Por que toma Deus em ponto de honra, ou em ponto de glória, que sobeja ametade do poder humano quando os homens cuidam que nem todo basta? A razão superior e divina por que não chegaram em tempo os socorros da Bahia. A vitória de Davi sobre Golias, e a vitória dos portugueses sobre os holandeses.

Quando Cristo disse aos apóstolos que buscassem armas, responderam eles: Domine, ecce duo gladii hic (Lc. 22, 38): Senhor, aqui temos duas espadas. – Duas espadas! – diz Cristo. – Pois essas bastam: Satis est (ibid.). – Que, dissera neste passo um grande soldado ou capitão destes da valentia em discurso? Que era evidente temeridade querer-se defender com duas espadas contra um esquadrão de quinhentos homens armados, e que, ainda que estavam à sombra de Cristo, que Deus sempre se põe da parte dos mais mosqueteiros. Algum dia mostrarei como esta proposição é herética. Entretanto, baste-nos saber que, sendo as espadas duas. uma só se desembainhou, e outra ficou na bainha, e os inimigos por terra: Abierunt retrorsum (Jo. 18. 6). – Pois, Senhor, se o poder dos apóstolos era tão pouco, por que o não deixastes empenhar todo? Se eram só duas espadas, por que as não deixastes desembainhar ambas? Por que toma Deus em ponto de honra, ou em ponto de glória, que sobeje ametade do poder humano, quando os homens cuidam que nem todo basta? E vós cuidais que não bastam duas espadas onde eu estou? Pois, nem essas duas quero que pelejem ambas: uma há de ficar na bainha, e os inimigos prostrados: Gladius, qui nequaquam vagina exemptus est, ostendit eos nec totem, quod potuere pro ejus facere defensione permissos[9]disse o venerável Beda, e é o que sucedeu no nosso caso. Pediram os do Espírito Santo que os socorrêssemos com armas e munições; partiu um grande socorro no mesmo dia, e, contudo, duvidavam os prudentes que se poderia defender aquela praça a tão desigual poder, e, na opinião de muitos, já estava tomada. Ah! sim – diz Deus – pois dê-se a batalha no Espírito Santo, antes de chegar o socorro da Bahia; e de duas espadas, que podiam assistir à defensa, peleje só a de dentro, e fique a de fora embainhada, para que os mesmos desmaios da prudência humana confessem que se deve a glória ao braço divino.

É verdade que não chegar o nosso socorro teve razão natural; mas debaixo dessa havia outra superior e divina, que foi mostrar Deus que era a vitória sua. Vede-o em Davi. Quando el-rei Saul deu as suas armas a Davi, para que fosse pelejar com o gigante, bem sabeis que não as quis levar ao desafio o alentado pastor: Deposuit ea[10]. Pois, por que razão, saibamos agora, por que não quis sair à guerra Davi com as armas de el-rei? Era melhor entrar naquela singular batalha vestido de uma samarra pastoril, contra um gigante armado e coberto de ferro? A razão natural desta resolução foi a que deu o mesmo Davi: Non habeo usum (1 Rs. 17, 39): Que não tinha uso daquelas armas, e, assim, que se não achava bem com elas. – Porém, debaixo desta razão natural, havia outra divina e misteriosa, diz S. Crisóstomo: Ut virtus Dei aperte monstraretur, et non anais, quae fiebant mira, adscriberentur[11]: Para que a portentosa vitória se referisse conhecidamente à virtude de Deus, e não às armas de Saul. – Se Davi levara ao desafio as armas de Saul, pudera-se atribuir a vitória às armas, e não à virtude e mercê de Deus: pois, para que a vitória se atribua a Deus cuja é, e não às armas do rei, fiquem as armas de fora, não se achem na batalha: Deposuit ea. – O mesmo digo neste caso. Verdade é que não chegar o socorro das nossas armas e munições foi por vir o aviso tarde; mas, debaixo dessa razão natural e humana, havia outra superior e divina, para que a vitória se não atribuísse ao socorro das armas de el-rei, senão à virtude e mercê de Deus: Ut virtus Dei aperte monstraretur, et non armis, quae fiebant mira, adscriberentur.

E não foi só esta razão a que canonizou esta vitória por vitória e mercê de Deus, senão outras muitas, e mui conhecidas. Primeiramente, terem os nossos tão antecedente aviso de que vinha o inimigo, e por via dos mesmos holandeses, que foi, senão mercê de Deus particularíssima? Não há coisa mais ordiná­ria no Testamento Novo, que comparar-se a morte ao ladrão. Em S. Lucas: Si sciret paterfamilias, qua hora fur veniret[12]. – No Apocalipse: Veniam ad te tanquam fur[13]e em outros muitos lugares. A razão da semelhança dá o mesmo Cristo no Evangelho, por que, assim como a primeira treta do ladrão é dar de súbito, e assaltar de repente, quando os homens estão mais descuidados, assim a morte nos assalteia, e nos rouba a vida, sem sabermos o dia nem a hora:.. Quia nescitis diem, peque horam[14]. – O mesmo pensamento temos no nosso texto. Repara S. Pedro Crisólogo em chamar Herodes aos Magos, e se informar deles em segredo: Tunc Herodes, ciam vocatis Magi[15]. – Por que não perguntou o que queria às claras? Por que se não informou dos magos ao descoberto? Advertidamente o Crisólogo: Occulte vocal Magos, quia fur amai noctem: latro in occulto tendit insidias[16]. – Sabeis por que trata o negócio em segredo, e não quer que se lhe saibam os desígnios? Porque era ladrão Herodes, e como tal queria dar em Belém de súbito, e roubar-lhe a Cristo a vida de repente. Pois, se isto fazem os ladrões, se esta é a primeira lei da rapina, rebeldes holandeses, como desdissestes tanto de quem sois nesta ação tão vossa? Quereis roubar, quereis saquear, quereis tomar aquela praça, e mandais o aviso adiante? Patachos à barra, lanchas à terra, que nos avise que ides? Por que não destes de súbito? Por que não nos tomastes de repente? Não há que responder aqui, senão com as mãos levantadas, dando graças a Deus, e dizer com Crisóstomo:Alia est conditio belli, alia est virtus Dei: Não se regulam as mercês de Deus pelas leis ou condições da guerra. – Erraram os holandeses as ordens da milícia, mas acertaram a ordem de Deus; não souberam dispor, a guerra, porque Deus dispunha a vitória; fizeram uma bisonharia tão grande, porque Deus nos queria dar um socorro tão glorioso.

§ III

Os fados ou desenfados do Brasil, e os fados de Tróia e de Sodoma. A invasão dos holandeses e os avisos de Deus antes do Juízo final. A diferença do número dos soldados. A vitória dos trezentos portugueses do Espírito Santo e a história de Gedeão.

Foi grande mercê de Deus esta? Pois, ainda não está ponderado o fino dela. Não esteve o favor de Deus em nos mandar o aviso. Sabeis em que esteve? Em nós nos darmos por avisados. Ouvi-me, que é doutrina mui importante esta. Os fados do Brasil, não sei se por clima da terra, se por castigo do céu, são como os fados de Tróia e de Sodoma; ainda mal, porque tanto lavra o fogo em toda a parte. Antes da destruição de Tróia, tinha el-rei Príamo uma filha chamada Cassandra, a qual, com espírito gentilicamente profético, não fazia senão avisar ao rei e ao reino que se prevenissem, porque havia de ser abrasada Tróia. Zombavam destes avisos os troianos por permissão de Deus, como notou um gentio: Ora Dei jussu non umquam credita Teucris[17]até que vieram os gregos, tomaram por engano a cidade, e numa noite se abrasou e consumiu aquela famosa cabeça de toda a Ásia. Da mesma maneira Sodoma. Depois que os anjos notificaram a Lot a sentença que Deus tinha fulminado contra aquela infame cidade, avisou o santo varão aos vizinhos dela que fugissem, ou se armassem de penitência, porque havia de ser destruída e abrasada: Et visus est eis quasi ludens loqui[18]. – Lançaram a coisa à zombaria aqueles alindados, continuaram a curar e pentear as gadelhas, enfim choveu fogo do céu, e ficaram todos sepultados em suas cinzas. Eis aqui, nem mais nem menos, o fado ou desenfado do nosso Brasil: sempre avisados, mas nunca prevenidos. Lançai os olhos por todas as praças que temos perdido desde o ano de 1624 até ao presente, e nenhuma achareis a que não precedessem aviso, e muitos avisos. Antes de se tomar a Bahia, duas barcas de pescar com cartas de el-rei, que, pela novidade da embarcação fizeram o caso mais misterioso e o aviso mais notório; um mês antes, a mesma capitania da armada holandesa sobre o Morro, que nos mandou avisar pelos prisioneiros de Angola; e nós com a praça aberta, sem fortificação, sem trincheira, como se nos preparáramos para entregarmos a cidade, e não para a defender. E assim foi. Pernambuco da mesma maneira. Tantas cartas de el-rei antecedentes, tantas notícias de Holanda, que haviam de vir, e nomeadamente que haviam de entrar por tal parte. Depois de partida a armada, avisos de Portugal, avisos de Cabo Verde, que já vinham, que já chegavam; e nós a cortar canas, a moer engenhos, e, como se fora nova de alguma grande frota que vinha a carregar de açúcares: e assim o mesmo foi desembarcar que serem senhores da terra.

Desta maneira se perdeu Pernambuco, desta maneira se perdeu a Bahia, e todas as outras praças menores por este caminho as perdemos: nunca acometidos de súbito, nunca tomados de repente, Perdeu-se o Brasil, como se há de perder e acabar o mundo. Fala S. Pedro do dia do Juízo, e diz assim, na segunda Epístola: Adveniet dies Domini ut fur (2 Pdr. 3, 10): E virá o dia do Senhor súbita e repentinamente. – Súbita e repentinamente? Como pode isto ser? Reparai no que dizeis, Príncipe dos Apóstolos. Não diz Cristo no seu Evangelho: Erunt signa in sole, et luna, et stellis[19]: Que precederão ao dia do Juízo tantos sinais temerosos, tantos avisos manifestos? – Pois, como é possível que sobre tantos avisos haja de vir de repente? Sabeis como? Diz Santo Agostinho, porque, ainda que há de haver muitos avisos, haverá muito poucos que lhes dêem crédito. Verão os homens ensangüentados o sol e a lua; verão turbar-se os elementos, tremer a terra, bramir o mar, caírem as estrelas, e todas as criaturas desordenadas ameaçarem a derradeira ruína; e no meio destes temores haverá corações tão desenfadados, que afirmarão que não são aqueles sinais os do dia do Juízo, e, computando idades com idades, e profecias com profecias, persuadirão credulamente ao mundo, que ainda se não acaba. Desta maneira viverão muitos naqueles últimos dias mui contentes e descuidados, senão quando soará a trombeta do Juízo, e serão levados os miseráveis de repente ao tribunal de Cristo, de repente sobre tantos avisos. Tal aconteceu sempre no Brasil. Nenhuma nova houve nunca tão certa, que não tivéssemos uma esperança para que apelar; nenhum aviso houve nunca tão qualificado que não tivéssemos um discurso com que o desfazer. Que está acabada a Companhia de Holanda; que França não os pode hoje assistir; que Dinamarca tem guerras apregoadas; que baixa com grande exército o imperador; que os tem mui apertados o Cardeal Infante; que se desbaratou a armada que mandaram às Índias; que não há um holandês em Amsterdão que queira vir ao Brasil; finalmente, que estão perdidos, que estão acabados, que estão consumidos. E quando nos não precatamos, ouvimos soar as trombetas holandesas por esses outeiros, acham-nos descuidados e desapercebidos, tomam-nos as nossas terras, e deixam-nos os nossos discursos. É isto assim, senhores? Ainda mal. Sendo, pois, este o natural descuido nosso, sendo este o clima, ou os pecados do Brasil, que se emendassem tanto suas influências nesta ocasião, e se persuadissem aqueles moradores a crer os avisos e prevenir a defensa! Este é sem dúvida o fino da mercê de Deus, este é o milagre por que devemos dar graças, como coisa rara, como coisa superior à mesma natureza.

Mas com a defensa se prevenir, e com trabalharem os homens o que puderam, na prevenção, era tão fraco o número dos nossos, e tão escasso e limitado o poder, que ainda ficou a Deus mui que suprir, e muito em que fundar e segurar suas glórias. Sabida é a história de Gedeão, que, de tantos mil homens que podia pôr em campo contra o podereso exército dos madianitas, só com trezentos quis Deus que entrasse na batalha: In trecentis viris liberabo vos[20]. – A qualquer mediana experiência fará muita dúvida isto dos trezentos homens. Não é a primeira máxima do governo militar não dividir as forças nem repartir o exército? Pois, se Gedeão podia pelejar com tanto maior poder, para que quis e ordenou Deus que pelejasse com forças tão desiguais às do inimigo? O mesmo texto dá a razão. Por que o ordenou Deus assim, e diz que foram ciúmes de sua glória, e resguardos de nossa ingratidão: Ne glorietur contra me Israel, et dicat: Meis viribus liberatus sum[21]. – Se os israelitas pelejaram com o número de soldados que levaram, atribuiriam a vitória ao número de seu exército, dariam as graças às suas mãos, e as glórias ao seu valor. Pois, que faz Deus? Manda que não vão à batalha mais que trezentos homens – que foi pontualmente o número de portugueses que nesta ocasião se acharam: In trecentis viris – para que, sendo o número dos vencedores tão inferior ao do inimigo, não se pudesse levantar a vaidade e ingratidão humana com a glória só devida à onipotência divina: Ne glorietur Israel, et dicat: Meis viribus liberatus sum. – E, na verdade, senhores, se bem se considera o fraco número e desigual poder de gente com que alcançamos esta insigne vitória, que dos trezentos portugueses que havia, repartidos por tantas partes, só os trinta eram soldados pagos, e esses com pouco exercício, que ingratidão haverá tão rebelde, que se atreva a dizer: Meis viribus liberatus sum? – Que ingratidão haverá tão ingrata, que dê a vitória às forças humanas, e a roube ao braço divino?

§ IV

A fraqueza e desigualdade das armas da Bahia. As valentias da onipotência divina: vencer ao inimigo com suas próprias armas. A vitória dos portugueses e a vitória dos filhos de Israel sobre o exército dos siros. Por que razão mandou Deus aos Reis Magos uma estrela, e não um anjo?

E se Deus segurou bem sua glória contra nossa ingratidão no número dos soldados, não a tem menos segura por certo na fraqueza e desigualdade das armas, porque, entrando os nossos na batalha com tão poucas armas de fogo, como sabemos, e muitos com as espadas e capas com que passeavam na praça, que entendimento ou que experiência humana havia de presumir que poderiam sair vencedores de tanto número de holandeses, soldados velhos, costumados a vencer, e tão bem providos de armas? Mas, como o invisível braço de Deus governava a guerra, e nos impossíveis da nossa fraqueza queria justificar os méritos da sua glória, antes de se cerrarem as quatro horas contínuas daquela desigual batalha, estavam tão trocadas as mãos, que já os alfanjes holandeses pelejavam da nossa parte, e as clavinas, que eles carregaram contra nós, nós as descarregávamos neles venturosamente. Ora, pelejai, pelejai poucos mas valorosos portugueses, pelejai, e vencei animosamente, que ainda Deus é por nós. Não peçais socorro de armas à Bahia, não peçais ao Rio de Janeiro; que um e outro há de chegar tarde: pedi o socorro ao céu, pedi as armas a Deus, que é sua divina Providência tão cuidadosamente prevenida para convosco, que nos mesmos armazéns do Recife vos está fazendo provisão de armas, e nos mesmos navios holandeses vo-las manda juntamente com eles, para que cheguem a tempo à milagrosa defensa. Quem dissera aos holandeses, quando estavam alimpando os alfanjes, e preparando as clavinas para esta facção, quem lhes dissera que preveniam os instrumentos de sua ruína, e que, com aquelas clavinas haviam de ser mortos, com aqueles alfanjes degolados! Mas essas são as glórias de Deus, essas as traças de sua sabedoria, essas as valentias de sua onipotência, que dos mesmos inimigos se serve, e de suas mesmas armas se ajuda, para dar as vitórias contra eles, a quem é servido.

Parece-me que vejo aqui retratado o sucesso dos filhos de Israel, quando venceram aquele grande exército dos siros, que capitaneava Górgias, general de el-rei Antíoco. Diz a Escritura que eram os israelitas poucos, e esses desarmados: Qui tegumenta et gladios non habebant[22]. – Mas, acometendo com grande resolução aos esquadrões inimigos, de tal maneira os ajudou Deus, que lhes fizeram voltar as costas descompostamente, e a todos os da retaguarda passaram à espada: Novissimi autem omnes ceciderunt in gládio[23]. –Ceciderunt gladio! Como assim? Não diz a Escritura, imediatamente antes, que estavam os israelitas desarmados, e que não tinham espadas: Gladios non habebant? – Pois, como puderam matar, e passar à espada toda a retaguarda dos inimigos: Novissimi omnes ceciderunt gladio? – A razão literal é muito fácil, porque, como Deus ajudava tanto aos hebreus, ainda que começaram a guerra desarmados, acabaram-na muito bem providos de armas, tomando-as aos primeiros que caíam, e convertendo-as contra os últimos que se retiravam; e desta maneira puderam passar à espada as derradeiras tropas dos desordenados esquadrões dos siros, matando e degolando com suas próprias armas os que tão confusamente fugiam, que, para guardar e conservar as vidas, davam os mesmos instrumentos com que lhas tirassem.

E por que não faltasse ao caso nem esta circunstância, os que governavam aquela guerra eram dois filhos do grande Matatias, um chamado Simão, outro chamado Judas, aos quais de entre todos seus irmãos escolhera o santo velho para o governo do povo, e lho deixara em testamento: Ecce Simon frater veste,; scio quod vir consilii est: ipsum audite. Et Judas Machabaeus fortis viribus a juventute sua, sit vobis princeps militiae[24]. – Pois, assim como os filhos de Israel, debaixo do valor e prudência de um Simão e de um Judas, com as próprias armas de seus inimigos os mataram e venceram animosamente, assim os nossos portugueses nesta ocasião, debaixo do patrocínio dos gloriosos apóstolos São Simão e Judas, em cujo dia sucedeu a batalha, a pelejaram tão alentada, e a venceram tão gloriosamente que, entrando nela mal armados, saíram ricos de mui luzidas armas, provadas e ensangüentadas primeiro no herético sangue de seus donos. Esta sim que é façanha divina, esta sim que é vitória de Deus.

Perguntaram os doutores no nosso Evangelho, por que razão mandou Deus aos Reis Magos uma estrela: Vidimus stellam ejus[25]. – Assim como mandou um anjo aos pastores, não pudera também mandar um anjo aos reis? Pois, por que não mandou senão uma estrela? Judiciosamente S. Pedro Crisólogo: Ut per Christum ipsa materia erroris sic fieret salutis occasio. Hostem proprio mucrone turbare singulare est insigne virtutis[26]: Trouxe Cristo os Magos a seus pés por meio de uma estrela, para que a mesma que fora matéria de seus erros se trocasse em instrumento de sua conversão, que é vitória mui digna da virtude de Deus vencer ao inimigo com suas próprias armas: Hostem proprio mucrone turbare singulare est insigne virtutis. – As armas com que os Magos pelejavam contra Deus eram as estrelas, adorando-as e fazendo-as adorar à cega gentilidade; pois, para que a vitória fosse mui própria da Onipotência divina, venham os Magos aos pés de Cristo por meio de uma estrela; e as mesmas armas luzentes com que impugnavam e ofendiam a Deus, sirvam de sujeitar e render, e de os prostrar por terra a seu império: Et procidentes adoraverunt eum[27].

§V

O venturoso sucesso do Rio Real. Por que mandou Cristo que se fossem seus discípulos quando entrou na batalha de sua Paixão?A vitória dos portugueses em Rio Real e as cortesias de Joab na vitória sobre os amonitas. A divina façanha dos Reis Magos. Em que consiste a gentileza das vitórias de Deus?

Esta foi a vitória do Espírito Santo – que sempre fora do Espírito Santo em qualquer outro lugar que sucedera – uma das mais notáveis que hão tido no Brasil as armas católicas, e de grande importância por suas conseqüências. Mas tempo é já que nos façamos noutra volta, que do Sul passemos ao Norte, e ponderemos o sucesso do Rio Real, que realmente foi felicíssimo, e não menos de Deus que o passado. O que aqui se ponderou muito, foi retirar-se o inimigo, quando já o nosso exército não insistia na empresa: o mesmo pondero eu. Quando Cristo, Redentor nosso, entrou na batalha de sua Paixão, a mais importante que nunca houve nem haverá no mundo, ao tempo que seus inimigos o acometeram no Horto, virou-se o Senhor para eles e para os discípulos, dizendo: Si ergo me quaeritis, sinite hos abire[28]. – Retiraram-se os apóstolos com este mandado ou permissão de Cristo, e deram fundamento aos doutores a duvidarem por que não quis o Senhor que seus discípulos o acompanhassem nesta jornada. Não parece que era muito crédito da doutrina de Cristo, que fossem juntamente com o Mestre divino os discípulos que o seguiam, e, já que havia um Judas, que o negara vilmente, houvesse um João, ou um Pedro, que o confessasse com o sangue? Pois, por que não quis Cristo que o acompanhasse nenhum, por que mandou que se fossem todos? A razão, dizem os expositores, que foi porque, como queria só para si a vitória, não quis ter companheiros na batalha. Assim o dizem Toledo, Salmeirão, e todos comumente[29]; mas muito tempo antes o tinha dito, pelo profeta Isaías, com grande glória sua, o mesmo Cristo: Torcular calcavi solus, et de gentibus non est vir mecum[30]. – O intento desta empresa da Paixão, falando em frase do mesmo Redentor, era desalojar o inimigo do gêne­ro humano, que se tinha apoderado do mundo: Princeps hujus mundi ejicietur foras[31]e, como a vitória era de tanta importância, e Cristo queria só para si a glória dela, por isso mandou que os discípulos se apartassem: Sinite hos abire – porque não era bem que admitisse companheiros à peleja quem queria ser só na vitória. Tal imagino a Deus nesta ocasião, que em todas é mui parecido a si mesmo. Como queria só para si a glória deste felicíssimo sucesso, não quis ter companheiro na batalha. Vir-se antes o nosso exército, foi servir a prudência humana aos intentos da Providência divina, para que, largando o inimigo o posto, quando já a violência das nossas armas o não obrigava, só a Deus se devesse a vitória, só a ele se dessem as graças, e pudesse outra vez sua misericórdia sair nesta ocasião com o mesmo timbre: Torcular calcavi solus, et de gentibus non est vir mecum (Is. 63, 3).

Mas, se bem considerarmos os motivos por que o inimigo desalojou, mais alguma coisa deve a glória divina aos primores da nossa resolução. Tendo sitiada Joab uma cidade dos amonitas, mui parecida no sítio à força do Rio Real, por estar por uma e por outra parte cercada e defendida de um rio, que por isso, conforme Lirano e outros, se chamava urbs aquarum[32], quando já a violência do cerco a tinha reduzido a se entregar, mandou Joab este recado a el-rei Davi: Capienda est urbs aquarum. Nunc igitur obside civitatem, et cape eam: ne, cum a me vastata fuerit urbs, nomini meo adscribatur victoria (2 Rs. 12, 27 s): Está quase rendida a cidade do Rio: pelo que, venha V. Majestade, e acabe-a de render, para que a V. Majestade, e não a mim, se atribua a vitória. – Grandemente encarecem os santos esta ação de Joab; e, na verdade, se foi limpa de lisonja e de interesse, muito tem de fineza: e tal considero eu a resolução do nosso exército. E se não, pergunto: Por que se retirou o inimigo do Rio Real? Por que largou o posto? Não foi pela valente e bem afortunada vitória que tivemos nos campos, onde lhe degolamos trezentos soldados velhos, os melhores campanhistas que tinham? Não foi por verem totalmente frustrados os intentos com que vieram, de senhorear os gados, e de os comboiar a Pernambuco? Não foi por entenderem o grande poder e maior resolução, com que os íamos buscar, rompendo por tantas dificuldades? Não foi pelos contínuos assaltos com que os tínhamos fechados dentro na sua força, mas como em sepultura de mortos, que como em cárcere de vivos? E, sobretudo isto não havia bastantes notícias, ou, quando menos, evidentes discursos, que o inimigo não podia sustentar o posto, e que o havia de desamparar forçosamente? Pois, por que deixamos a assistência da guerra? Por que não esperamos pelo fim da vitória? Deixadas as razões que houve humanas, foram primores, foram cortesias, como as de Joab. Fizemos cumprimento a Deus daquela vitória, que tínhamos quase ganhada, para que a sua divina Majestade, e não a nós, se desse a glória: Ne cum a me vastata fuerit urbs, nomini meo adscribatur victoria, – E foi Deus tão benigno Senhor que não se dedignou de a aceitar: nós apertamos o inimigo, nós dispusemos a vitória, como Joab; Deus veio a colher as glórias, e tomar para si a honra, como Davi.

Mas, como as coisas que se dão a Deus sempre nos ficam em casa muito melhoradas, assim ficamos nesta ocasião com o mais feliz e venturoso sucesso que pudera presumir a esperança, nem ainda inventar o desejo. Pergunto, senhores: Que é o que pretendíamos nesta jornada? Desalojar o inimigo daquela força, franquear a nossa campanha, impedir o retiro dos gados, matar muitos holandeses, e destruí-los? Pois, tudo isso se conseguiu, e tudo sem perdermos dois homens, que é a maior e mais ilustre vitória que se podia alcançar. Por tal a canonizou o grande doutor da Igreja, Santo Ambrósio, nestas sentenciosas palavras: Haec est vera et incruenta victoria, ubi sic adversarius vincitur, at de vincentibus nemo laedatur[33]. Sabeis qual é a verdadeira e inteira vitória? – diz Santo Ambrósio. – É aquela em que de tal maneira se vence o inimigo, que ficam todos salvos os vencedores. – Com muita razão chama o santo padre verdadeira e inteira vitória aquela em que os vencedores ficam todos salvos, porque o exército, que perdeu alguns soldados na batalha, ainda que vencesse o inimigo, não se pode chamar verdadeira e inteiramente vencedor, porque em tantas partes ficou vencido, quantos foram os soldados mortos que deixou no campo. Tais costumam ser ordinariamente as guerras humanas, porque não há pelejar sem morrer, nem vencer sem derramar sangue: mas a Providência divina, que governava nossas armas, nesta ocasião soube concordar a felicidade do sucesso com a conservação das vidas, e a honra da vitória com a desistência da batalha, que, como bem disse o outro a el-rei Filipe III: No es hazaña menos senalada, vencer baianas, sin sacar la espada. – É verdade que as nossas armas em muitos assaltos e ocasiões antecedentes luziram mui bem seu valor; mas a última e total retirada do inimigo, que foi a coroa daquele feliz sucesso, de graça no-la deu Deus, sem se disparar um arcabuz, sem se desembainhar uma espada, por pura mercê e singular glória sua. Para singular glória de Deus, digo, porque a vitória de que Deus mais se gloria em semelhantes casos arriscados, é saber conseguir o intento com evitar o perigo. No nosso Evangelho o temos.

Depois que os Magos adoraram a Cristo, tomaram para suas terras avisados por um anjo; mas diz o texto que tornaram por outro caminho do que vieram: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam (Mt. 2, 12). – Repara S. João Crisóstomo no modo desta jornada, e argúi que não parecia conveniente à reputação e autoridade de Cristo. Se os Magos, quando ainda eram gentios, vieram rompendo as terras de Judéia, e entraram em Jerusalém intrepidamente, como agora, que são soldados do verdadeiro Deus, divertem a jornada por outro caminho? Isto de não ir a Herodes, isto de não ver o rosto ao inimigo parece que encontrava a opinião do novo Rei que adoraram, porque os ignorantes de sua divindade podiam entrar em escrúpulos de sua potência: Si magnum guidom esset hic puer; et potentiae aliquid ohneret, adoratoribus suis quid opus esset fuga, occultusque discessus[34]? – Contudo, mandou Deus dizer aos Magos que voltassem por outro caminho, e não tornassem a Herodes: Ne redirent ad Herodem (Mt. 2, 12) – porque se preza muito Deus de ganhar sem risco, de vencer sem batalha, de triunfar sem sangue. Irem os Magos a Jerusalém era empresa humanamente mui arriscada, porque, ou haviam de descobrir que acharam a Cristo, ou não: se o descobriam, morria Cristo à mão de Herodes; se não descobriam, morriam os mesmos Magos. Pois, que remédio? O remédio foi mandá-los Deus avisar por um anjo que voltassem para sua terra, mas que tomassem por outro caminho; e desta maneira se conseguiu o intento, e se evitou o perigo. Sábia vitória, façanha digna da divindade, diz Crisóstomo: Divinitatis virtute dignum. – Que não consiste só a gentileza das vitórias de Deus em vir às mãos com o inimigo, senão em conseguir o intento que se pretende tanto com mais glória quanto com menos risco: Est autem divinitatis virtute dignum, non modo aperte conterere inimicos, verum etiam cum omni illos facilitate decipere.

§ VI

Quais haviam de estar os portugueses se o inimigo se conservara em Rio Real, e ocupara a Capitania do Espírito Santo. Comparação entre os venturo­sos sucessos dos, fins do ano de 1640 com seus lastimosos princípios.

Este foi o venturoso sucesso do Rio Real, que, quando o conseguíramos com perda de muitos soldados, razão tínhamos de dar muitas graças. Mas a divina bondade quis que fosse ainda da sua parte mais merecida, e da nossa mais alegre esta ação de graças, pois, lançado fora o inimigo, e desimpedida a campanha, nos vemos com os nossos valorosos capitães e soldados todos vivos, todos salvos, todos guardados para maiores empresas. Quando os soldados de Moisés voltaram vencedores dos madianitas, vieram oferecer os despojos a Deus, e a principal razão que deram do seu agradecimento foi esta: Recensuimus numeram pugnatorum, quos habuimus sub manu nostra, et ne unus quidem defuit. Oh hanc causam offerimus, etc. (Núm. 31, 49 s): Fizemos resenha da infantaria com que entramos na batalha, e todos achamos salvos depois da vitória, pelo que vimos oferecer a Deus estes agradecidos despojos. – Isto fizeram os vitoriosos capitães e soldados de Moisés, e o mesmo devem fazer os capitães e soldados do nosso felicíssimo general, e toda esta nobre cidade, em ocasião tão semelhante, oferecendo a Deus, entre o ouro e incenso dos reis orientais, o agradável e religioso tributo desta ação de graças.

Sejamos agradecidos, cristãos, sejamos agradecidos a Deus, não sejamos ingratos. Consideremos o estado em que citamos, e o em que havíamos de estar, se Deus não nos fizera estas mercês. Se o inimigo se conservara no Rio Real, se ocupara a capitania do Espírito Santo, se prosseguira os intentos do Camamu, quais havíamos de estar? Que havia de ser de nós? Cercados pelo norte e pelo sul; os gados e os mantimentos impedidos, a campanha infestada com assaltos e despovoada com receios? Não havia senão cruzar as mãos, e entregar ao inimigo. Pois, que comparação tem este miserável estado com o felicíssimo que gozamos? Comparemos bem os fins do ano de 40, tão pouco parecidos com seus lastimosos princípios, que esta parece uma das monstruosidades das fatais esperanças deste ano. Em janeiro, a armada derrotada, tantos mil homens, tantos gastos, tantos aparatos de guerra perdidos. Em abril, a armada holandesa na Bahia com grandes intentos, mas com maiores temores nossos; não nos esqueçamos que bem nos vimos os rostos. Em maio, saqueado e destruído o Recôncavo: tantas casas, tantas fazendas, tantos engenhos abrasados. Em junho, o Rio Real ocupado pelo inimigo, os campos e os gados quase senhoreados, e as esperanças de os recuperar, não quase, senão de todo perdidas. Porém, de vinte de junho por diante, assim como o sol naquele dia deu volta sobre o trópico de Câncer, assim virou também a folha nossa fortuna, e começaram dentro do círculo do mesmo ano a responder felicidades a infortúnios. Em agosto, vencido o inimigo nos campos, com aquela tão bem afortunada vitória, onde, com morte de um só soldado nosso, de mais de trezentos holandeses apenas escaparam sete. Em setembro recuperado o Rio Real, e desalojado o inimigo à força das nossas armas, e do desengano de seus desígnios. Em outubro – que cada mês parece que tomou à sua conta um bom sucesso, e este muitos – em outubro, os intentos do holandês no Camamu reprimidos, os temores do gentio nos Ilhéus sossegados, e, sobretudo, a gloriosa vitória do Espírito Santo, mais alcançada com o poder de sua graça, que com as forças da natureza. Em novembro, o incêndio das canas, e assolação dos engenhos de Pernambuco, terrível guerra, e a que, mais desespera ao inimigo. Em dezembro, embaixadores do mesmo neste porto a pedir tréguas, a oferecer partidos, a reconhecer a superioridade de nossas armas, de que pouco antes tanto zombavam. Pois, donde imaginais que nos veio esta felicidade? Quem trocou as mãos à fortuna? Quem fez esta tão grande mudança? Nós, ontem, tremendo dos holandeses: eles, hoje, a tremer de nós; nós, ontem, a recear que nos fizessem guerra: eles, hoje, a pedir-nos pazes; os nossos engenhos, ontem, queimados, e os seus em pé: os seus hoje em pó e em cinza, e os nossos reedificados, e moendo todos! Donde tanta felicidade? Donde tão notável mudança?

§ VII

A parte que tiveram as diligências e execuções humanas nas vitórias sobre os holandeses. A ação de graças de Davi, depois de vencer o gigante Golias, e a ação de graças do vice-rei, Marquês de Montalvão.

Bem vejo que me podeis dizer que responde o fruto ao trabalho, e que tem grande parte nestes bons sucessos os cuidados e indústrias, as diligências e execuções humanas. Tantos socorros ao Rio Real, de gente, de munições, de bastimentos por mar e por terra: socorros ao Morro, e suas vilas; socorros à capitania do Espírito Santo. Para divertir o inimigo, tropas e mais tropas à campanha: portugueses por mar, negros e índios por terra. Para intentos do Recôncavo, e para outros grandes usos do serviço de el-rei e alívio dos moradores, tantas embarcações de remo, maiores e menores, barcos, fragatas, galeras. Para maiores desígnios, os navios de alto bordo aparelhados. Para sítio, as fortificações renovadas e emendadas, novos fossos, novos baluartes. Prevenções para artilheria, prevenções para bastimentos, prevenções para uma futura armada. E como em todo o tempo e lugar obram as mãos no mar e na terra, nas nossas terras e nas do inimigo, no presente e para o futuro, não é muito que colhamos às mãos-cheias os frutos de tão diligentes cuidados, e que se logre felizmente em nossas execuções o acerto com que se ordenam e a indústria com que se obram. Bem o vejo, assim como o vêem todos, e confesso que o que se tem trabalhado em seis meses parece obra de muitos anos; mas justo é que eu me conforme, e todos nos conformemos com o desinteressado ânimo e zelo verdadeiramente cristão de S. Excelência, e que, apartando os olhos de todo o concurso e cooperação humana, só a Deus reconheçamos por único e total autor destas felicidades, e, entre os ricos tesouros dos reis orientais, lhe ofereçamos a pobreza de nossos afetos, em humilde ação de graças, em reconhecida confissão de suas divinas misericórdias.

Bem pudéramos, seguindo a justiça de Cristo, dar o de Deus a Deus, e o de César a César; mas o de Deus e o de César, tudo quer o mesmo César que se dê a Deus, que sem Deus não há Césares nem Alexandres. Quando Davi venceu ao gigante Golias, a espada, com que lhe cortou a cabeça, dedicou-a ao Templo, e a funda, que lhe disparou a pedra, pendurou-a em sua casa. A razão desta repartição foi porque, como o braço de Deus e o braço de Davi concorreram para vencer e derrubar o gigante, justo era que entre Deus e Davi se repartissem os despojos e troféus da vitória, e que a Davi ficasse a funda, e a Deus se dedicasse a espada. Esta justa repartição pudera também fazer o nosso vitorioso Davi na ocasião presente: oferecer a espada a Deus nesta igreja, e a funda pendurá-la gloriosamente em seu palácio; dedicar a Deus na espada as execuções de perto, e atribuir-se a si na funda as assistências de longe; mas funda e espada, assistências e execuções, tudo dá, tudo oferece a Deus em perfeito holocausto de agradecimento, penhorando com tão liberal e piedoso desinteresse os favores da divina bondade, para que a estes felizes princípios respondam fins felicíssimos, e por estas primeiras vitórias cheguemos à última tão desejada.

A razão por que venceu Davi tantas vezes, e com tão portentosa felicidade os exércitos dos filisteus, diz um grave autor que foi porque agradeceu a Deus a primeira vitória que deles alcançou, quando, degolado o gigante, dedicou ao Templo a espada: Dignus ut victricibus palmis frequenter ornaretur, qui primam suae victoriae laudem in Deum authorem referebat[35]: Digno verdadeiramente Davi que Deus lhe enchesse as mãos de vitoriosas palmas, pois foi tão agradecido e pontual, que ofereceu a Deus a primeira vitória, e lhe dedicou as primícias de suas façanhas. – Pois, se um agradecimento tão de meias, como o de Davi, mereceu o prêmio de tantas e tão milagrosas vitórias contra os mesmos inimigos, razão temos para seguramente confiar que, na liberalidade deste tão inteiro agradecimento, negoceie S. Excelência com a divina Majestade as seguintes e maiores vitórias contra os holandeses, e a desejada restauração de Pernambuco e do Brasil, por que tanto suspiramos.

§ VIII

O Evangelho do dia e os felizes acontecimentos do Brasil. Os venturosos prognósticos que perturbaram aos holandeses, semelhantes às perturbações e receios de Herodes à chegada dos Reis Magos. Por que havia de entrar o vice-rei no Brasil no dia 20 de junho.

E, na verdade, senhores – dai-me atenção por caridade, que vo-la espero merecer – e na verdade que, se dos sucessos presentes quisermos fazer conjectura para os futuros, nunca eu vi mais fundadas as esperanças da desejada restauração do Brasil. Em dia de santos matemáticos e astrólogos, parece que não satisfazemos à obrigação se não levantarmos alguma figura. Seja assim: e. já que não explicamos o Evangelho no princípio, explicá-lo-emos agora todo a este intento. O Evangelho nos servirá de céu, as ações dele de estrelas, e em tão verdadeiras observações, e tão segura judiciária, sem dúvida podemos esperar o que nos prometerem, por mais que pareça duvidosa, a contingência dos tempos.

Cum natus esset Jesus in Bethlehem Juda in diebus Herodis regis, etc.[36]. – Advertiu um grande juízo matemático o dia vinte de junho, em que o Senhor Marquês Vice-Rei entrou no Brasil, com tantas circunstâncias de felicidade na jornada, e ainda na tardança, e achou que estava o sol no trópico de Cancro, no ponto em que torna a voltar para nós, e começam nesta região a crescer os dias. Fez pois juízo que, da mesma maneira, com a entrada de S. Excelência, se acabavam as minguantes da nossa fortuna, e começavam os aumentos dela. E como juntamente grande teólogo, achou prova na História Sagrada a este pensamento, porque observou Santo Agostinho, que nasceu Cristo em dezembro, quando começam a crescer os dias, e S. João Batista em junho, quando começam a minguar, e uma e outra coisa diz o santo padre que foi prognóstico do que havia de acontecer, porque a fama e glória do Batista havia de diminuir-se, e a de Cristo aumentar-se, em cumprimento do que o mesmo S. João tinha profetizado: Illum oportet crescere, me autem minui[37]As palavras de Santo Agostinho são estas: Humilietur homo, ut exaltetur Deus, secundum illud quod de Domino Joannes dixit: Illum oportet crescere, me autem minui. Ut humiliaretur homo, hoc die natus est Joannes, quo incipiunt decrescere dies; ut exaltetur Deus, eo die natus est Christus, quo incipiunt crescere[38].

Assim se observou o dia matematicamente, mas eu, como menos pontual, se bem mais cingido com o Evangelho, observo os dias: In diebus Herodis regis[39]. – Nos dias em que o Brasil estava mais acabado e desesperado de remédio, a armada perdida, a Bahia abrasada, o inimigo pujante e vitorioso, que significa isto? Sem dúvida significa o que gravemente disse S. Pedro de Ravena. Pondera por que veio Cristo ao mundo in diebus Herodis regis – nos dias em que debaixo do império de Herodes estava o reino hebreu mais tiranizado que nunca, e assim o espiritual como o temporal dele mais perdido, e dá o santo padre esta razão, que servirá de resposta a uma e outra pergunta. As palavras são maravilhosas: Expulsurus tyrannum, vindicaturus patriam, instauraturus orbem, libertarem redditurus adventat[40]: Sabeis por que vem nestes dias e nestes tempos tão cala­mitosos um e outro restaurador? Por isso mesmo, porque o há de ser. Porque há de lançar fora o inimigo: Expulsurus tyrannum; porque há de vingar as injúrias da pátria: Vindicaturus patriam; porque há de restaurar este Novo Mundo: Instauraturus orbem; porque há de restituir a liberdade aos que há tanto tempo, a têm perdido: Libertatem redditurus adventat.

Neste tempo veio Cristo ao mundo, e neste o vieram buscar os Magos, perguntando em Judéia, ou aclamando, como dizem os santos, o nome do Rei nascido: Turbatus est Haerodes, et omnis Jerosolyma cum illo (Mt. 2, 3): Turbou-se Herodes, e toda Jerusalém com ele – que, como o povo é espelho do rei, não é muito que, mudando o rei as cores, as perdessem também os vassalos, e que a perturbações reais respondessem desmaios populares. Mas por que se perturba Herodes? Saibamos. Turba-se e perturba-se – diz S. João Crisóstomo – porque, como era rei estrangeiro, de geração idumeu, injusto e tirânico possuidor do cetro de Judéia, tanto que ouviu falar na vinda do novo Rei, persuadiu-se que o reino havia de tornar a seu legítimo senhor, e ele havia de ser despossuído e lançado fora: Turbatur cum esset genere Idumaeus, ne regno iterum revoluto ad Judaeos, ipse expelleretur[41]. – Ah! Herodes holandês! Ah! Jerosólima pernambucana! Como te vejo turbada e perturbada! Que cores são essas tão inconstantes que se te vão, e se te vêm ao rosto? Já colérica ameaçando guerra, já medrosa oferecendo pazes; já resistindo na campanha, já desesperando da defensa; já acometendo as nossas praças, já prometendo-as, antes de serem tuas; já no norte, já no sul; já pelo mar, já por terra; intentando tudo, e não acabando nada; começando, e não prosseguindo! Que perturbações são estas? Sem dúvida: Turbatur Haerodes, ne regno iterum ad Judaeos revoluto, ipse expelleietur. – Turba-se Herodes porque vê que é chegado o Messias que há de restituir a Israel; turba-se a garça livre, porque reconhece com instinto natural o falcão que a há de levar nas unhas. Turbam-se as águas da piscina, porque é chegado o anjo que há de sarar ao paralítico.

E se não, pergunto eu: Qual foi o motivo desta perturbação de Herodes? O motivo principal, como bem nota o mesmo S. João Crisóstomo, foi o ver Herodes que eram tão poucos homens, e nem todos eles eram brancos – que um dos Magos era negro, e negros os que o acompanhavam, conforme a profecia de Davi: Coram illo procident Aethiopes. Aethiopia praeveniet manus ejus Deo[42]. Ver, pois, que tão poucos homens, brancos e negros, vinham tantas léguas de caminho, marchando confiadamente por suas terras, e aclamando o nome de um novo Rei sem temor de seus exércitos, isto fazia turbar e perturbar a Herodes: Turbatus est Herodes – isto fazia temer e tremer a toda Jerusalém: Et omnis Jerosolyma cum illo. – Pois, se esta resolução dos Magos perturba a Herodes, quanto maiores motivos, ou não menos que iguais, tem o holandês rebelde de se perturbar, vendo as nossas tropas de quatro portugueses e quatro negros marcharem tantas léguas de dificultosíssimos caminhos, sem camelos nem elefantes que lhes levem as bagagens, e andarem livre e intrepidamente em suas campanhas, talando e abrasando tudo, apesar de seus presídios, e aclamando o invicto nome do monarca das Espanhas, e de seu novo general? Oh! como temeram os rebeldes de medir a espada, e de vir às mãos de perto com o valoroso Sansão, que, por meio de tão fraco mas industrioso poder, lhes abrasa suas ricas searas! Bem diz aqui aquela delicada empresa com que saiu o outro: Mais branda é que Marte; mas de filho a pai bem se podem prestar os pensamentos. Pintou um sol em sua esfera, o qual, estendendo e unindo os raios pela interposição de um vidro artificial, feria fogo num coração oposto, e o abrasava em chamas. Animava-se esta figura com uma letra breve, que dizia: Quid propinquior? – Quem tanto queima de longe, quanto abrasará de perto? – A mesma consideração podem fazer os holandeses às experiências da nossa, com que o nosso maior planeta, sem sair da sua esfera, por meio de tão fracas interposições, lhes abrasa toda a campanha: Quid propinquior? – Se tanto queima, se tanto abrasa, se tanto vence, quando só influi de longe, que será quando com competente poder se chegar a investir de mais perto? Se Cristo no presépio, e entre palhas, faz tremer a Herodes e a Jerusalém, diz Crisólogo: Quid faceret, si fultus divitiis, et multitudine[43]: Que seria se viesse com poder, e acompanhado de numeroso exército? – Se com palhas se faz tanta guerra ao inimigo, que quatro palhas são as que queimam as ricas searas e doces minas do Brasil naquela campanha, que será quando as palhas se troquem em lanças, e a guerra se faça, não a lume de palhas, senão a fogo de canhões?

§ IX

A consulta de Herodes aos escribas e fariseus e o conselho secreto com os Reis Magos. A estrela dos Magos e a causa de se esconder a estrela aos portugueses no Brasil. Donde vêm as principiadas felicidades da Bahia?

Estes venturosos prognósticos são os que perturbam ao holandês, semelhantes às perturbações e receios de Herodes, o qual, para saber o que rezavam as Escrituras em caso de tanta importância, mandou chamar os escribas e príncipes dos sacerdotes, que cada um sabe o que estudou. Tempo e lugar sei eu em que talvez para dúvidas eclesiásticas se mandaram consultar capitães, e para negócios militares se pediu conselho aos bispos; por isso o mundo vai como vai. Resolveu o cabido dos sacerdotes e escribas, que, segundo profecia expressa de Miquéias, havia Cristo de nascerem Belém. E Herodes, que já lhe traçava a morte antes de lhe averiguar o nascimento, fechou-se em secreto com os Magos, para colher as notícias necessárias a seu desígnio. O que neste caso me admira por agora é que não houvesse um daqueles escribas ou sacerdotes repúblico que notasse ao rei de ter trato secreto com homens estrangeiros. O rei com estrangeiros em secreto: Ciam vocatis Magis[44]! – Perigoso trato, arriscada confiança parece! Contudo, nada estranharam nem murmuraram aqueles letrados, sem dúvida porque o eram. Eram homens que entendiam as Escrituras, como bem mostraram no entendimento que deram ao texto de Miquéias; e quem lê os livros, e os entende, sabe quão lícitos e quão usados são na guerra, e quão proveitosos à república semelhantes tratos. No mesmo caso nosso o temos. Por este trato alcançou o rei muitas notícias necessárias ao intento da conservação de seu reino: Diligenter didicit ab eis tempus stellae, etc.[45]. – E por este trato, como aqui nota um autor, chegou a intentar que os Magos fossem espias contra o mesmo príncipe que aclamavam:Ite, interrogate diligenter de puno: et cum inveneritis, renuntiati mihi (Mt. 2, 8): Ide, perguntai, sabei, informai-vos, e como tiverdes notícias, tomai, e avisar-me-eis. –É verdade que os Magos não o fizeram assim; mas nem todos têm tanta fé nem tanta fidelidade; e, finalmente, entenda cada um no que lhe toca.

Com este despacho do rei saíram da cidade de Jerusalém os Magos, e tanto que estiveram fora, apareceu-lhes logo a estrela que se lhes tinha escondido: Et ecce stella, quam viderant in oriente, antecedebat eos[46]. – Notai comigo por caridade: que enquanto os reis andaram pela campanha, tiveram estrela; tanto que se meteram na cidade, logo desapareceu; e enquanto estiveram na corte, nunca mais a viram. Cuidarem os Reis que hãò de ter estrela, que hão de conservar em felicidade seus reinos, estando nas cortes, e não saindo nunca delas! Não o entenderam assim os felicíssimos reis de Portugal, não o entendeu assim o famosíssimo imperador Carlos V, nem o entende assim o invictíssimo monarca Filipe IV, o Grande. Em muita suspensão tem posto a Espanha o . levantamento de Catalunha; mas como Sua Majestade – Deus o guarde – sai à campanha, a estrela escondida aparecerá, e grandes esperanças podemos ter de mui feliz sucesso. Do Brasil sei eu dizer, ao menos, que a causa de se esconder a estrela aos portugueses: Stellam, quam viderant in Oriente – aquela estrela que com tanta glória de Deus e de Portugal viram no Oriente nossos antepassados, a causa de se nos esconder muitas vezes esta estrela no Brasil, é porque nos metemos nas cidades, como fizeram os Magos em Jerusalém. Era ditame mui antigo, e mui ordinário, que el-rei mandava defender esta ou aquela praça, e interpretavam-se essas ordens tão estreitamente, como se a Bahia não fora mais que das portas de São Bento até às do Carmo, e aqui dentro nós estávamos. A verdadeira guerra defensiva é a que ofende ao competidor dentro em suas terras; e nunca as cidades estão mais seguras ao perto que quando o inimigo se divide, e se entretém ao longe. Sabeis, senhores, por que temos já ocasiões de graças, tendo tantas até agora de lágrimas? Sabeis donde nos vêm estas principiadas felicidades? É porque não esperamos a estrela dentro de Jerusalém, senão porque a imos buscar à campanha. Porque marcharam terços e exército ao Rio Real; porque se mandou infantaria ao morro, e às outras vilas; porque partiram repetidamente tropas e mais tropas à campanha de Pernambuco: por isso tornou a aparecer, e se nos mostra já a estrela, que há tantos dias tinha desaparecido: Et ecce stella, quam viderant in oriente, antecedebat eos.

Vendo outra vez a estrela, diz o texto sagrado que a festejaram com grande encarecimento os Magos: Gavisi sunt gaudio magno valde (Mt. 2, 10): Alegraram-se com gosto grande. – Não vos gabo a colocação das palavras, mas esse mesmo desconcerto foi ordenado com divina retórica, que quem se soube alegrar concertadamente, não lhe saltava o coração deveras. Festejaram os Magos a estrela extraordinariamente, e com estas alegres demonstrações nos canonizaram as festas públicas e touros reais, com que hoje em universal aplauso se solenizam estes felizes sucessos: que ainda que não chegamos à desejada Belém, ainda que não restauramos Pernambuco, bastante ocasião é de alegria e festa ver recuperada a estrela em cujo seguimento havemos de chegar.

Seguindo a sua chegaram, finalmente, os Reis ao presépio, e adoraram ao Menino Deus em muito mais levantado trono que o que deixou no céu, porque estava nos braços da Virgem: ofereceram a seus pés os presentes que traziam: Et obtulerunt ei munera (ibid. 11). – Pois, que novidade é esta? – repara Santo Agostinho: – Numquid non reges ante in Judaea erant nati? Quare iste adorandus, et ab alienigenis adorandus, non terrente exercitu[47]? – Porventura não nasceram e viveram em Judéia outros reis nos tempos passados? Pois, por que não vieram adorar e reconhecer com presentes os estrangeiros, senão a este novo Rei, não tendo ele poderoso exército, como os demais, a cujo terror e assombro se humilhassem: Ab alienigenis, non terrente exercito? – A razão verdadeira é tão clara que não tem necessidade de expositor, e foi, diz Santo Agostinho, porque nenhum dos outros reis, senão este, era o Messias, e só Ele havia de encher as esperanças de Israel, e nelas as de todo o mundo. Em profecia destas futuras glórias vieram adorar a Cristo com tributos e presentes os embaixadores da gentilidade – que assim chama Davi aos Magos: – Venient legati ex Aegypto. Aethyopia praeveniet manus ejus Deo[48]. E que outras conseqüências posso eu fazer, senão estas mesmas, quando vejo no meio daquela Bahia o que em nenhum outro tempo vimos, nau holandesa com embaixadores, com presentes: Et obtulerunt ei munera? – Sem dúvida, que estes presentes significam os futuros que eles temem, e nós esperamos[49]. Conjecturam os fins pelos princípios, e, porque experimentam o que é, temem o que há de ser: Vidimus stellam ejus, et venimus adorare eum (Mt. 2, 2): Vimos a sua estrela, e por isso o vimos a adorar. – Viram e experimentaram os rebeldes, em todas as ocasiões próximas, que sempre levaram a pior de nossas armas, ou no Norte, ou no Sul, ou no mar, ou na terra, ou nos seus países, ou nos nossos; e o reconhecimento desta estrela os traz humildes a tributar adorações e oferecer concertos, parecendo-lhes a que a nós estrela feliz, a eles cometa temeroso e sanguinolento, que sobre tanto sangue derramado lhes ameaça a derradeira ruína.

§X

Por que se perde o mundo todo, e por que se perdeu o Brasil? Por que dá Deus ao Brasil as vitórias às mãos lavadas? O caminho por que tornaram os Magos para as suas terras, e os caminhos por onde os portugueses retornarão ao Pernambuco.

E, na verdade, se minha observação não me engana, ainda os aspectos do nosso Evangelho trinam e quadram em favor desta conjectura. Não sei se advertis que diz o texto: Et apertis thesauris suis, obtulerunt ei munera, aurum, thus, et myrrham[50]e não diz mais. Diz que lhe ofereceram tesouros, mas não diz que os aceitou o Senhor[51]. Este, para mim, é o mais verdadeiro prognóstico, e o mais firme fundamento deste juízo. Senhor, de quem se diz que lhe ofereceram, e não se diz que aceitou, ele restaurará o mundo[52]. E se não, pergunto: Por que se perde o mundo todo, e por que se perdeu o Brasil? Ouvi-o ao profeta Isaías, que em cabeça de Jerusalém, parece que está falando conosco, no capítulo primeiro: Terra vestra deserta, civitates vestrae succensae igni: regionem vestram coram vobis alieni devorant[53]. – Menos há de oito meses, que tudo isto vimos com nossos olhos. Olhai, portugueses do Brasil – diz Deus – para vossas terras desertas e despovoadas: Terra vestra deserta. – Olhai para vossas cidades abrasadas e consumidas a fogo: Civitates vestrae succensae igni. – Olhai para vossos campos e ricas lavouras, que as andam desfrutando os estrangeiros, e logrando, a vosso pesar, os grossos interesses delas: Regionem vestram coram vobis alieni devorant. E o pior é que ainda a espada de minha vingança não está satisfeita, ainda o castigo há de ir por diante: Et desolabitur sicut in vastitate hostili[54]. – Pois, Senhor, o Brasil não é uma parte, e não a menor, de Portugal, reino tão católico, tão pio, tão religioso? Não se vos oferecem a este fim tantas orações, tantos jejuns, tantas penitências, tantos sacrifícios? Pois, estas obras de culto divino e de piedade cristã, como vos não abrandam? Vede o que responde o Senhor: Incensum abominatio est mihi. Neomeniam et sabbatum, et festivitates alias non feram. Calendas vestras, et solemnitates vestras odivit anima mea; facta sunt mihi molesta, laboravi sustinens[55]: Abomino vossas orações, não quero vossos sacrifícios, aborrecem-me vossas festas e solenidades; o culto divino com que me adorais, não o posso ver, enfastia-me: Et cum multiplicaveritis orationem, non exaudiam (Is. 1, 15): E por mais que bradeis ao céu, não vos hei de ouvir. – Vai a causa de todos estes males: Manus enim vestrae sanguine plenae sunt (ibid.): Porque as vossas mãos estão cheias de sangue. – Cheias do sangue do povo, cheias de sangue do órfão, cheias de sangue do pobre e miserável, que está cada dia mendigando com o suor do seu rosto. Eis aqui por que se perdeu o Brasil, eis aqui por que se perde o mundo, e por que os castigos do céu vão por diante. Pois tem este mal algum remédio? Sim, muito fácil: Lavamini, mundi estote; et venite, et arguite me, dicit Dominus (ibid. 16, 18): Lavai as mãos, haja limpeza de mãos – diz Deus – e se eu não levantar mão do castigo, se eu não vos ajudar e favorecer em tudo, se eu vos não der vitórias contra vossos inimigos: Venite, et arguite me, dicit Dominus: Vinde, argüi-me, dizei que sou injusto, que eu vos dou licença. – E bem o vemos. Sabeis por que nos dá Deus as vitórias às mãos lavadas? Assim o foram todas as que nestes dias tivemos, porque, matando sempre tantos centos de holandeses, da nossa parte, entre todos, apenas, se contam quatro ou cinco mortos. Sabeis por que é isto? Eu vo-lo direi em uma palavra. Dá-nos Deus as vitórias às mãos lavadas, porque se lavaram as mãos; porque há limpeza de mãos, porque se não tingem as mãos no sangue do povo, por isso as vemos ensangüentadas gloriosamente no sangue dos inimigos; por isso tudo luz, por isso tudo cresce, por isso tudo vai por diante, e, como por falta disto se perdeu o Brasil, assim por isto se há de recuperar, que é o que só resta no Evangelho: Reversi sunt in regionem suam[56].

Tornaram os Magos para as suas terras, e da mesma maneira tornaremos nós, finalmente, para as nossas; porque, se foi oráculo da tornada voltar por outro caminho: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam[57]bem diferente caminho leva a restauração do Brasil do caminho ou descaminho por onde se perdeu. Não há muitos meses que mostrei, se me não engano, que por falta de injustiça nos falta, hoje, a primeira e maior parte deste estado: Regnum de gente in gentem transfertur propter injustitias[58]e como pela misericórdia do céu temos tanta justiça na terra, castigando-se os criminosos, premiando-se os beneméritos, reprimindo-se as violências dos grandes, acudindo-se aos gemidos dos pequenos, não há dúvida que, se pelas portas da injustiça saímos e fomos lançados da nossa região, pelas portas da justiça tornaremos, e seremos restituídos a ela: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam.

Mas, como nas causas públicas e comuns não bastam as influências da cabeça se discorda a cooperação dos membros, lembremo-nos todos, cristãos, do que a todos diz neste passo Santo Eusébio Emisseno: Revertamur et nos per aliam viam in regionem nostram, guia per illam, qua exivimus, redire non possumus[59]: Tornemos por outro caminho à nossa região – ao nosso desejado Pernambuco – porque não podemos tornar por aquele por onde saímos. – Se saímos pelo caminho das soberbas, dos homicídios, dos ódios, dos adultérios, e dos outros pecados, tornemos, para que Deus nos deixe tornar, pelo caminho da virtude, pelo caminho da penitência, pelo caminho do arrependimento, pelo caminho da graça, penhor da glória, quam mihi, et vobis, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística


            [1] Prostrando-se, o adoraram, e abrindo os seus cofres lhe fizeram suas ofertas de ouro, incenso e mirra (Mt. 2, I I ).

[2] Greg. homil. 10 Mn Evang.

[3] Epist. ad Hebr. 9, 17.

[4] Cassiodor. 1. 9, Varia:. 25.

            [5] Eu não darei a outrem a minha glória (Is. 42, 8).

[6] Glos. apud Cath. D. Th. Mc.

[7] Ambr. 1. 10. Comm. in Lucam.

[8]  Chrysost. hic apud Cathen.

[9] Beda in hunc tocam.

[10] Largou as armas (1 Rs. 17. 39).

[11] D. Ch. Homit. 36 in Genes.

[12] Se o pai de família soubesse a hora em que viria o ladrão (Lc. 12, 39).

[13] Virei a ti como um ladrão (Apc. 3, 3).

[14] Porque não sabeis o dia nem a hora (Mt. 25, 13).

[15] Então Herodes. tendo chamado secretamente os Magos (Mt. 2, 7).

[16] Chrys. Serm. 158.

[17] Virg. Eneid, lib.II, 247.

[18] E a eles lhes pareceu que Lot falava zombando (Gên. 19, 14).

[19] Haverá sinais no sol, e nas estrelas (Lc. 21, 25).

[20] Com trezentos homem vos livrarei (Jz. 7, 7).

[21] Para que não se glorie Israel, e diga: Por minhas forças fui livre (Jz. 7, 2).

[22] Que não tinham nem escudos nem espadas (1 Mac. 4, 6).

[23] Os que ficaram atrás caíram mortos, passados todos a espada (ibid. 15).

[24] Aqui tendes Simão, vosso irmão; eu sei que ele é homem de conselho; ouvi-o. E Judas Macabeu, de grande valor desde a sua mocidade, seja o general das vossas tropas (1 Mac. 2, 65 s).

[25] Vimos a sua estrela (Mt. 2, 2).

[26] Chrys. Serra. 157.

[27] E prostrando-se o adoraram (Mt. 2, 11).

            [28] Se a mim pois é que buscais, deixai ir a estes (Jo. 18, 8).

[29] Tolet. Salm. et alii in hoc loco.

[30] Eu calquei o lagar sozinho, e das gentes não se acha homem algum comigo (Is. 63, 3).

            [31] Será lançado fora o príncipe deste mundo (Jo. 12, 31).

[32] Cidade das águas (Lyran. Sanch. et alii hic).

[33] Ambr: Serm. l de Epiph.

[34] Chrysost,

[35] Mendoç. in Reg. c. 7, n. 14, annot. 28, c. liter. sect. 4, tom. 2.

[36] Tendo nascido Jesus em Belém de Judá, em tempo do rei Herodes (Mt. 2, 1).

[37] Convém que ele cresça, e que eu diminua (Jo. 3, 30).

[38] D. Aug, hom. 2 de Nat. Joann.

[39] Em tempo do rei Herodes (Mt. 2, 1).

[40] Chrysol. Ser I de Epiph.

[41] Chrysost. sup. Matth. apud Cat. D. Thom.

[42] Diante dele se prostrarão os da Etiópia (SI. 71, 9). A Etiópia se levantará para levantar as suas mãos a Deus (SI. 67, 32).

[43] Chrys. Serm. 158

[44] Tendo chamado secretamente os Magos (Mt. 2, 7).

            [45] Inquiriu deles, com todo o cuidado, que tempo havia que lhes aparecera a estrela (ibid.).

[46] E logo a estrela, que tinham visto no oriente, lhes apareceu (Mt. 2, 9).

[47] August. Ser. 67.

[48] Psl. 67, juxta lnterpr. Eccles.

[49] Ita philosoph. Euth. in hmc locum.

[50] E abrindo os seus cofres, lhe fizeram suas ofertas de ouro, incenso e mirra (Mt. 2, 11).

[51] Sic notar Abul. hic.

[52] Maldon. et alii.

[53] A vossa tela está deserta, as vossas cidades abrasadas de fogo, os estranhos à vossa vista devoram a vossa região (Is. 1, 7).

[54] E ela será devastada como numa assolação de inimigos (ibid.).

[55] 0 incenso é para mim abominação. Neomênia e sábado, e outras festividades, não sofrerei. A minha alma aborrece as vossas calendas e as vossas solenidades; elas se me têm feito molestas, cansado estou de as sofrer (ibid. 13 s).

[56] Voltaram para a sua terra (Mt. 2, 12).

[57] Voltaram por outro caminho para a sua terra (ibid.).

[58] Um reino é transferido de uma nação para outra por causa das injustiças (Eclo.10, 8).

[59] In Exposit. jus Evangel.