Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Voz retórica, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

VOZ RETÓRICA

SERMÃO DO NASCIMENTO DO MENINO DEUS,

PREGADO

Domesticamente no Colégio da Bahia, da Companhia de JESUS

Transeamus usque ad Bethlehem, et videamus hoc Verbum, quodfactum est[1].

A escusa de Moisés e a eloqüência de Arão. Cristo, soberano substituto que hoje havemos de ouvir.

A quem se escusa de falar em público porque não pode, ainda que saiba, aceita Deus a escusa; e a quem, como eu, se escusa porque não pode nem sabe, talvez a não aceitam os que estão em lugar de Deus. Mas nem a Deus, nem aos que estão em seu lugar se podem perguntar os porquês: obedecê-los sim, muda e cegamente. A quem Deus aceitou a escusa, porque não podia, posto que sabia, foi Moisés. Sabia, porque, como diz S. Paulo, era eruditíssimo em todas as ciências do Egito, e, como ele mesmo confessou, eloqüente nelas: Eloquens ab heri, et nudiustertius (Êx. 4, 10) – mas não podia, porque, depois que viu e ouviu a Deus na sarça, ficou com a língua impedida, e quase mudo: Ex quo locutus es ad servum tuum, tardioris et impeditioris linguae sum[2]. – O meio, pois, ou expediente que Deus tomou neste caso, foi dar ao mesmo Moisés um substituto que falasse por ele. E que substituto foi este? Moisés queria, e propôs que fosse o Messias: Mitte quem missurus est[3]. — Mas porque a comissão da liberdade de um povo era muito desigual empresa para quem estava destinado para libertador e salvador de todo o mundo, substituiu o defeito de Moisés a língua e eloqüência de Arão, seu irmão: Aaron frater tuus, scio guia eloquens sita ipse loquetur pro te ad populum, et erit os tuum[4].

Oh! bendita seja a bondade e providência do Altíssimo, tão liberal hoje para comigo! O que Deus deu a Moisés, e o que negou a Moisés, tudo me concedeu a mim. Eu era o que havia de pregar hoje, e não sabia nem podia; mas substituirá a minha ignorância e a minha incapacidade: quem? O Messias e o irmão. O Messias, disse o anjo aos pastores, que nasceu hoje: Quia natus est vobis hodie Salvator[5] e o irmão, também diz o evangelista S. Lucas que nasceu hoje: Impleti sunt dies ut pareret, et peperit Filium suum primogenitum[6]. — Cristo, assim como é Filho único e unigênito de seu Pai, assim é único e unigênito de sua Mãe: e, contudo, diz o evangelista que nasceu primogênito, porque, como hoje nasceu homem, hoje nasceu irmão de todos os homens: Ut sit ipse primogenitus in multis fratribus[7]. – Este é, pois, o soberano substituto que tantas vezes se tem dignado substituir o lugar dos obedientes – este é o soberano pregador que hoje havemos de ouvir e ver: Et videamus hoc Verbum, quod factum est[8]. – Não sou eu o que hei de pregar o nascimento de Cristo: o mesmo Cristo nascido é o que há de pregar o seu nascimento.

O provérbio antigo diz: Poeta nascitur, orator fit. – Mas o orador que hoje se fez: quod, factum est– também hoje nasceu orador: Ego autem constitutus sum Rex ab eo, praedicans praeceptum ejus. Dominus dixit ad me: Filius meus es tu; ego hodie genui te[9]. – O verbo do nosso texto: Videamus hoc Verbum – chama-se logon, com que parece que pertence mais à Lógica que à Retórica e Oratória; mas como a Oratória est ars ornate dicendi[10] depois que o Verbo se vestiu, e ornou da humanidade: Verbum caro factum est (Jo. 1, 14) – mais pertence à Oratória tudo o que há de dizer e pregar. Se o pregador houvera de ser outro, aqui era o lugar de pedir a graça; mas como ele é o que a dá a todos, só tomarei a vênia à sempre Virgem Mãe, em cujos braços o adoraram os pastores, saudando-a com a costumada Ave Maria.

§I

As partes que constituem o perfeito orador e as três Pessoas da Santíssima Trindade.

Transeamus usque ad Bethlehem, et videamus hoc Verbum, quod factum est (Lc. 2, 15).

Sendo Belém domus panis[11], não é alheio o lugar, senão muito próprio de uma pregação no refeitório, e, sendo esta cadeira aquela em que, no mesmo tempo em que se dá a refeição ao corpo, se dá à alma a sua, não será ouvido nela e dela com menor atenção e aplauso aquele soberano e tão adiantado Orador, que, no mesmo dia em que nasce, prega seu próprio nascimento. As partes que constituem o perfeito orador são três: Ensinar, Deleitar; Mover – e, assim como antes de Deus se fazer homem se dividiam todas três, por atribuição, nas três pessoas da Trindade, o Filho ensinando, o Espírito Santo deleitando e o Padre movendo, assim, depois que o Verbo se vestiu da natureza humana, se uniram todas três na humanidade de Cristo, como agora veremos pela mesma ordem.

§ II

Cristo infante e a primeira obrigação do perfeito orador: ensinar. Como pode ensinar o divino Orador do presépio se não fala? A diferença entre a voz humana e a voz divina. A razão de as vozes de Deus se perceberem com os olhos, e não com os ouvidos. As palavras feitas e as palavras ditas. Demóstenes e as perfeições do orador: Os brados que dá contra o mundo o Orador mudo do presépio.

Primeiramente ensina, e ensina com seu nascimento o divino Orador de Presépio: mas como ensina, ou pode ensinar, se não fala? Assim o disse o anjo aos pastores: Invenietis infantem (Lc. 2, 12): Achareis um menino que não fala. – Pois, se não falava, nem falou uma só palavra no presépio, como ensina este Orador mudo, ou como podia ensinar? Os mesmos pastores o entenderam e declararam, não rústica, senão altamente: Transeamus – dizem –usque ad Bethlehem, et videamus hoc Verbum (Lc. 2, 15): Passemos até Belém, a ver esta palavra. – Não dizem a ouvir, senão a ver, porque as palavras deste divino Orador – e por isso divino – não são hoje palavras que se ouvem, são palavras que se vêem.

Quando Deus, no Monte Sinai, deu a lei a Moisés, a qual toda pronunciou por sua própria boca, estava o imenso povo de Israel estendido em roda pelas raízes do monte, e diz o texto sagrado que todo o povo via as vozes de Deus: Cunctus autem populus videbat votes (Êx. 20, 18). – As vozes ouvem-se, não se vêem; são objeto dos ouvidos, e não dos olhos, e assim como os ouvidos não podem ouvir as cores, assim os olhos não podem ver as vozes. Como diz logo o texto que o povo via as vozes de Deus? Porque eram de Deus, responde Filo Hebreu. Entre a voz humana e a divina – diz ele – há esta dife­rença: que a voz humana percebe-se com o ouvido, a voz divina com a vista: Humana vox auditu, divina visu percipitur. – E porque a filosofia desta respos­ta parece dificultosa de entender, o mesmo Filo pede a razão, e a dá: Quare? Quia quaecumque Deus dicit, non verba sunt, sed opera, quorum judicium non tantum est penes aures, quam penes oculos. – Excelentemente dito, e evidente. A razão de as vozes de Deus se perceberem com os olhos, e não com os ouvidos, é porque as vozes de Deus não são palavras, são obras; e o juízo das obras não pertence ao ouvido, senão à vista: as palavras ouvem-se, as obras vêem-se.

O dizer de Deus é fazer: Ipse dixit, et facta sunt[12]; logo, a potência deste objeto é a vista: este modo de dizer não pertence aos ouvidos, senão aos olhos: Dixit Deus: Fiat lux. Et facta est lux (Gên. 1, 3): Disse Deus: Faça-se a luz. E fez-se a luz. – E que se seguiu daí? Et vidit Deus quod esset bonum: E viu Deus que era boa. – Onde o dizer é fazer, o ouvir é ver. As palavras que são palavras ouvem-se, as que são obras vêem-se, e tais foram, hoje, as do divino Orador do presépio. Assim o entenderam os mesmos pastores, alumiados do anjo: Et videamus hoc Verbum, quod factum est: E vejamos esta palavra que foi feita. – Não dizem esta palavra dita, senão esta palavra feita; por isso conseqüentemente não disseram ouçamos, senão vejamos: videamus – porque as palavras ditas ouvem-se, as palavras feitas vêem-se. S. Jerônimo, Santo Ambrósio, e outros muitos padres, entendem por este Verbum do nosso tema o mesmo Verbo Eterno, o qual propriissimamente antes de agora não era feito, agora sim: Verbum, quod factum est. – Enquanto Filho do Padre, era Verbo gerado, mas não feito: Genitum, non factum. – Enquanto Filho da Mãe, é Verbo gerado e feito: Verbum caro factum est – e tanto que foi Verbo, e palavra feita, logo pertenceu à vista: Verbum caro factum est, et vidimus gloriam ejus[13]. – Mas, isto que escreveu o evangelista tantos anos depois, conheceram e praticaram os pastores neste mesmo dia: Et videamus hoc Verbum, quod factum est.

De todo este discurso se segue que o ser infante e mudo o nosso divino Orador de Belém, não lhe é impedimento para poder ensinar. Ensina e fala agora, enquanto homem, como exercitava e falava enquanto Deus: In ea se Deus exercet, in ea delectatur in ea triumphat, dum nos sine strepitu verborum intus alloquitur[14]diz Santo Agostinho, falando da Retórica de Deus; e, assim como Deus, antes de ser homem, ensinava sem estrépito de palavras, porque falava interiormente aos corações, assim, tanto que nasceu Menino, ensina também sem estrépito de palavras, porque fala exteriormente aos olhos: Et videamus hoc Verbum. – Demóstenes, o sumo orador da Grécia, perguntado qual era a primeira parte do perfeito orador, respondeu: Actio. – E perguntado qual era a segunda, tornou a responder: Actio, – E perguntado qual era a terceira, respondeu do mesmo modo: Actio. – Não declarou as perfeições do orador pelas palavras que se ouvem, senão pelas ações que se vêem. O mesmo responderei eu a quem me perguntar que ensina o nosso Orador infante, e como ensina? Não ensina com vozes, mas ensina com ações; não ensina o que diz, mas prega o que faz; não diz palavras, mas fala obras.

Este mesmo Orador infante, que agora ensina sem abrir a boca, virá tempo em que a abrirá para ensinar: Aperiens os suum docebat eos[15]mas o mesmo que então falando há de ensinar com a palavra, é o que, agora, mudo brada com as obras: Clamat exemplo, quod postea docturus est verbo. – Que é o que há de ensinar este Menino, que agora é de um dia, ou de uma noite, quando depois for de trinta anos? Há de dizer com palavras: Beati pauperes: Bem-aventurados os pobres – e isto é o que já está ensinando com o desabrigado do portal, com o presépio, com as palhas, e com a falta de todo o necessário: Non erat ei locus in diversorio[16]. – Há de dizer com as palavras: Beati mites: Bem-aventurados os mansos; – e isto é o que já está ensinando o que dantes era leão, feito agora cordeirinho, e com as mãos atadas, sem se queixar da ingratidão e crueldade com que o receberam os seus no mundo, que também é seu: In propria venit, et sui eum non receperunt. In mundo erat, et mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit[17]. – Há de dizer com as palavras: Beati qui lugent: Bem-aventurados os que choram – e isto é o que já está ensinando com as lágrimas e gemidos de recém-nascido, própria condição da natureza, e não impróprias da miséria e estreiteza do presente estado: Vagit Infans inter arcta conditus praesepia[18]sem outro socorro contra o rigor de uma noite tão fria, como a de vinte e cinco de dezembro, mais que a quentura das mesmas lágrimas, estiladas da fornalha do coração, como devotamente cantou Sanasário: Et lacrymas uda fundens in nocte tepentes[19].

Oh! que exclamações! Oh! que invectivas! Oh! que brados estão dando contra o mundo os silêncios deste Orador mudo! Mas, assim como as suas vozes depois não hão de ser admitidas de muitos surdos com ouvidos, assim agora as suas ações são mal vistas, e pior imitadas, de muitos cegos com olhos. Ditosos os olhos dos nossos pastores, que de tudo o que viram no presépio souberam tirar proveito para si e glória para Deus: Glorificantes et laudantes Deum in omnibus quae audierant et viderant[20]. – E diz o Evangelho não só que viram, senão que ouviram: quae audierant et viderant – sendo que no presépio não ouviram palavra alguma, porque as palavras que são feitas, e não ditas, então se ouvem quando se vêem: Et videamus hoc Verbum, quod factum est.

§ III

O divino Infante e a segunda obrigação do perfeito orador: deleitar. Como podia deleitar, se os pastores o encontraram mudo e atado? A doce eloqüência do Orador Infante.

Desta maneira satisfez o nosso Orador infante à primeira obrigação de ensinar; mas daqui mesmo se segue, ou parece, que não pode satisfazer à segunda. A segunda obrigação do perfeito Orador, como dizia, é deleitar. Mas como pode ou podia deleitar no modo em que o acharam e viram os pastores? Invenietis infantem pannis involutum, et positum in praesepio[21]. – O pregador não há de ser mudo nem atado. Se víssemos um pregador que não falava palavra, e estivesse envolto, e como amortalhado na sobrepeliz, e posto ou metido no púlpito, como sepultado nele, este pregador não podia deleitar o auditório: enfastiá-lo, esfriá-lo, e desagradá-lo, sim. Pois este é o estado em que os pastores acharam ao nosso Orador do presépio: infantem mudo, e sem dizer ou falar palavra; – pannis involutum: atado e envolto, sem se desenvolver; – positum in praesepio – e posto e metido na manjedoura, sem ação nem movimento; e, contudo, diz o anjo com certeza de evangelista, que haviam de gostar, e gostar muito dele: Evangelizo vobis gaudium magnum[22]e que estas mesmas, que pareciam impropriedades do ofício e lesares da pessoa, eram os sinais certos de acharem o que lhes prometia: Et hoc vobis signum: Invenietis infantem pannis involutum, et positum in praesepio (Lc. 2, 12).

E por que razão tudo isto, parecendo tudo contrário à mesma razão? Porque tudo isto, como perfeitíssimo Orador, era o que pedia o decoro, a energia e a representação viva do que ensinava. Não falava: infantem – porque estava ensinando silêncio, humildade, resignação. Estava envolto, e como amortalhado: pannis involutum – porque entrara no mundo a repreender e estranhar desenvolturas, e estava ensinando modéstia, compostura, mortificação. E estava como sepultado no lugar, posto que vil, onde o tinham posto: positum in praesepio – porque, sobretudo, estava ensinando a perfeição da obediência. Obediência ao Pai, que o mandara vir ao mundo, obediência ao imperador, que o mandara ir a Belém, e obediência à Mãe, que naquele pobre e abjeto lugar o pusera, sem lhe dar razão por que, posto que a tivesse, como notou o evangelista: Quia non erat eis locus in diversorio[23]. – E, se assim posto, não tinha movimento nem ação, essa era a própria e a mais natural ação do que representava, porque o verdadeiro obediente não há de ter movimento nem ação própria. Vejam, agora, se pregava o nosso Orador mudo de modo que houvesse de deleitar?

O maior mestre da Retórica ligada – qual era esta – diz que, para deleitar ensinando, se há de misturar o útil com o doce: Qui miscuit utile dulci, lectorem delectando, pariterque movendo[24]e isto é o que fazia em tão pequeno corpo o nosso grande Orador com a boca cerrada: infantem. – Pois, com a boca cerra­da podia deleitar? Sim, porque assim cerrada, era doce, e estilavam mel. É tão doce a eloqüência do nosso Orador mudo, que não há aspereza tão áspera que não abrande, nem amargura tão amarga que não adoce: Sicut vitta coccinea labia tua, et eloquium tuum Dulce[25]. – Comparam-se os beicinhos da boca de Deus Menino, não a duas fitas encarnadas, senão a uma: sicut vitta – porque estão cerrados e mudos; mas assim cerrados e mudos, o seu falar é doce: Et eloquium tuum dulce – porque tudo o que diz e pretende persuadir, como é passado por ele, é doce. Assim como não há coisa tão desabrida que não fique doce, se se passar pelo mel, assim são todos os rigores, todas as asperezas e todas as amarguras, se são passadas por Cristo, e mais naquele dia em que melliflui facti sunt caeli[26]. – Haja, embora, santo que chame às penalidades do presépio martírios para Cristo, ou leis de martírios para nós: e nós ouçamos ao mais douto de todos os santos quão doces são essas leis e esses martírios, por serem passados e adoçados por Cristo.

Fala com este Senhor nos seus solilóquios Santo Agostinho, e diz tão douta como devotamente desta maneira: Tu, Domine, es dulcedo inaestimabilis, per quem omnia amara dulcorantur: tua enim dulcedo Stephano lapides torrentis dulcoravit; tua dulcedo craticulam Beato Laurentio dulcem fecit; pro tua dulcedine ibant apostou gaudentes a conspectu concilii, quoniam digni habiti sunt pro nomine tua contumeliam pati[27]. E se aquelas palhinhas tiveram doçura para adoçar as pedras de Estêvão, e a dureza daquela manjedoura para adoçar as grelhas de Lourenço, e o silêncio daqueles animais para adoçar as injúrias e afrontas dos homens, as palavras mudas, com que todas estas coisas falam, e o nosso infante Orador em todas, como não serão deleitáveis e doces a todos os que assim tiraram delas, não horrores para si, senão louvores para os que, vendo-as, as ouviram: Et reversi sunt pastores laudantes et glorificantes in iis quae viderant et audierant[28], Eles não ouviram nada no presépio, porque nenhuma coisa se lhes disse; mas como o Orador mudo falava aos olhos, o ver foi ouvir, e o que viram, ouviram: Quae audierant et viderant.

§ IV

As coisas novas, admiráveis e engraçadas que nos diz mudamente o nosso Orador do presépio: O casamento de Isac e Rebeca, prenúncio do casamento do riso com a paciência no nascimento de Cristo.

Para deleitarem, as coisas que diz o Orador hão de ser novas e hão de ser admiráveis; e se forem também engraçadas, então deleitará mais. Tais são as que diz mudamente o nosso Orador do presépio. São novas: Usquequo deliciis dissolveria filia vaga? Quia creavit Dominus novum super terram: Femina circumdabit virum[29]. – Deixai, filhas de Sião, de vos deleitar nas velhices da lei antiga; e para que vejais uma coisa tão nova, qual nunca Deus fez nem o mundo viu, não é necessário vagar por outras terras, porque dentro da vossa, e no lugarzinho de Belém, a vereis. Vereis um Menino nascido de um dia, já homem perfeito, e que este homem, sendo tão grande como Deus, coube dentro em uma Virgem. Pode haver coisa mais nova? Não pode: Novum creavit Dominus super terram: Femina circumdabit virum. – São também admiráveis as coisas que ali se vêem, porque, como admira e pondera S. Bernardo, ali se vê a fonte com sede, o pão com fome, a alegria chorando, a sabedoria muda, a fortaleza fraca, a onipotência atada, a riqueza pobre, a imensidade pequena, a imortalidade, finalmente, morta e passível; mas aí mesmo, com segunda e maior admiração, se torna a ver a fome fartando, a sede refrigerando, a tristeza alegrando, o mudo ensinando, o fraco fortalecendo, o atado libertando, o pobre enriquecendo, o pequeno engrandecendo, o mortal, finalmente, dando vida, e o passível glória.

Tão novas e tão admiráveis são as coisas que prega sem falar o Orador do presépio, e são, também, tão engraçadas, que a primeira vez que foram ouvidas todos, não só se alegraram, mas não se puderam ter com riso. Quando foi anunciado o nascimento de Isac, riu-se Sara, riu-se Abraão, e o mesmo Isac se chamou Riso. E qual foi o motivo? Porque naquele nascimento foi significa­do o de Cristo. Santo Efrém: Non propter Isaac risit Sara, sed propter natum ex Maria Virgine. Et sicut Joannes exultavit in utero, ita suo risu Sara gaudium significavit: Riu-se Sara, não pelo nascimento de Isac, que havia de nascer dela, mas pelo nascimento de Cristo, que havia de nascer da sempre Virgem Maria; e, assim como o Batista em sua presença se não pôde ter que não saltas­se, assim Sara se não pôde ter que se não risse. – Riu-se Sara, riu-se Abraão, riu-se Isac, e tiveram muita razão, não só para se alegrar, mas para se rir do que se viu neste dia: Abraham exultavit ut videret diem meum: vidit, et gavisus[30]. – O demônio, o mundo, e o pecado tinham engajado o homem; e, como Deus, para enganar os enganadores, se vestiu ou disfarçou da natureza do mesmo homem, foi tão galante o disfarce, e tão engraçada a invenção, que Sara, Abraão e Isac, homens, mulheres e meninos, não se puderam ter com riso.

Assim sabe deleitar o nosso Orador, e, ainda que em todas as coisas que prega e ensina no seu presépio hão mister paciência, assim as sabe suavizar e fazer doces aos que as vêem e ouvem: Videamus hoc Verbum. – Este mesmo Isac, de que falávamos, casou-o Deus com Rebeca; e por que razão e mistério com Rebeca? Porque Rebeca quer dizer paciência, como Isac quer dizer riso; e, como no nascimento de Isac era significado o nascimento de Cristo, também se significava nele que, quando Cristo fosse nascido, havia Deus de fazer um casamento tão novo e tão admirável, como casar o riso com a paciência: e assim o fez no presépio. Tudo o que se vê no presépio são coisas ásperas, desabridas e duras, e que hão mister muita paciência para se levar; mas essas mesmas vistas em um Deus feito homem são tão doces e deleitáveis, tão fáceis de se abraçar com alegria, que mais parecem dignas de riso. Digna de riso a pobreza, digna de riso a obediência, digna de riso a mortificação, dignas de riso as lágrimas, e tudo quanto hoje vêem os pastores no presépio, que por isso de Isac e Rebeca nasceu Israel, que quer dizer: Videns Deum[31]. – Videamus hoc Verbum, quod factum est.

§V

O divino Orador e a terceira e última obrigação do ofício: persuadir e mover. A universal moção profetizada pelo profeta Ageu. Se São Lucas escreveu tudo o que fez e ensinou o Senhor, por que não diz que escreveu tudo o que fez e ensinou, senão tudo o que começou a fazer e ensinar? A cegueira dos que, à vista do presépio, tão pouco imitam o que vêem.

Já agora, se não fica provado, ao menos fica fácil de crer quão alta e eficazmente satisfaria o menino e divino Orador à terceira e última obrigação do ofício, que é persuadir e mover. Como este é o fim que o trouxe, ou havia de trazer ao mundo, já muitos séculos antes o tinha Deus anunciado ao mesmo mundo por boca do profeta Ageu, com tanta pompa de palavras, como de prodigiosos efeitos: Commovebo caelum, et terram, et mare, et andam. Et movebo omnes gentes, et veniet desideratus cunctis gentibus (Ag. 2, 7 s): Virá o deseja­do das gentes – que é o nosso Menino nascido – e será tal a emoção que causará com sua vinda, que se moverá o céu, se moverá a terra, se moverá o mar; e as nações que em qualquer parte a habitam e o navegam, ou políticas, ou bárbaras, todas se moverão. – Assim foi ou começou a ser neste dia. Moveu-se o céu, mandando os exércitos dos anjos à terra, e despachando por embaixadora uma estrela nova ao Oriente, e aparecendo arraiado com três sóis, um deles coroado de espigas, em sinal de que com tão multiplicadas luminárias festeja o nascimento do Príncipe nascido em Belém. Moveu-se a terra, brotando em fontes de óleo, em testemunho de que era nascido o Ungido: derrubando ídolos, nomeadamente o de Júpiter Capitolino, em protestação de que só ele era o verdadeiro Deus, e cerrando as portas de Jano, e fazendo cessar as armas, em pregão universal de que vinha pacífico. Moveram-se todas as gentes de todas as nações, de todos os estados, de todas as crenças: os judeus, os gentios, os grandes e os pequenos, os sábios e os ignorantes, significados todos nos pastores e nos Magos, em cujas três coroas se significaram, também, as três partes de que naquele tempo constava o mundo.

E se perguntarmos ou inquirirmos a causa de tão universal moção, consta que não foi outra, senão a que tiveram os pastores de Belém: Et videamus hoc Verbum, quod factum est. – Isto é, verem o Verbo feito. Não digo feito homem, mas feito, como argutissimamente ponderou S. Bernardo: Ante non se movebant homines, dum Verbum erat tantum apud Deum[32]: Antigamente, enquanto o Verbo somente era: In principio eras Verbum (Jo. 1, 1) – não se moviam os homens. –At ubi Verbum, quod erat, factum est: mas, tanto que o Verbo, que somente era, foi feito: Tunc venerunt festinantes, tunc concurrerunt: então se moveram, então vieram e concorreram. – Tanta foi a eficácia que teve no Verbo divino o fazer-se: não o ser palavra dita, posto que dita por Deus, mas o ser palavra feita: Verbum, quod factum est. – Referindo S. Lucas, no princípio dos Atos dos Apóstolos, como tinha escrito o seu Evangelho, diz uma coisa muito notável, e é que nele escrevera tudo o que Cristo começou a fazer e ensinar: Primum quidem sermonem feci de omnibus quae coepit JESUS facere et docere[33]. – Se lermos este mesmo Evangelho de que fala S. Lucas, acharemos que escreveu nele toda a vida, doutrina e ações de Cristo, desde o instante da sua Encarnação até à hora em que subiu ao céu, e mandou de lá o Espírito Santo. Pois, se escreveu tudo o que fez e ensinou o Senhor, por que não diz que escreveu tudo o que fez e ensinou, senão tudo o que começou a fazer e ensinar? Porventura deixou Cristo a sua obra imperfeita, e somente começada? Não, senão acabada, perfeitíssima e consumada, como ele mesmo declarou ou,protestou, dizendo: Consummatum est[34]. – Pois, se as obras de Cristo, enquanto fez e ensinou, foram perfeitas e consumadas, como lhes chama o evangelista principiadas somente, e não diz o que fez, senão o que começou a fazer, nem o que ensinou, senão o que começou a ensinar: Quae coepit facere et docere? – Excelentemente Anselmo Laudunense: Quia omnia quae fecit et docuit incaeptio quaedam fuit, eadem postea apostolis facientibus, et docentibus, et eorum sequacibus: O que Cristo fez e ensinou, ou ensinou fazendo, teve tanta força e eficácia para mover, que já nas suas obras estavam começadas as que depois se haviam de seguir. – O exemplo das suas era já o princípio das nossas: Incaeptio quaedam fuit. – E foram tão certos e infalíveis os efeitos desta moção, como se as nossas imitações não fossem obras distintas e movidas, senão as do mesmo Cristo continuadas: ele foi o exemplar, e nós os imitadores; ele as ensinou, e nós as aprendemos: nós as continuamos, mas ele as começou: Coepit facere et docere.

E se esta eficácia lhe vinha da parte de Cristo, por serem palavras não ditas, mas feitas: Verbum quod factum est – ainda se acrescentava, e era maior da parte dos homens por não serem ouvidas, mas vistas: Et videamus. – A razão notável desta maior eficácia não só os filósofos a conheceram, senão também os poetas – se pode haver poeta que não seja filósofo.

Segnius irritant avimos demissa per aures,

Quam quae sunt oculis subjecta fidelibus[35].

Diz Horácio: O que entra pelos ouvidos, como tem menos evidência, move com menos força; mas o que entra pelos olhos recebe a eficácia da mesma vista, e move fortissimamente. – Tal foi a moção do que viram os pastores no presépio, e tal a do que viram os Reis, e não por outra razão, senão porque viram. Os Reis vieram alumiados pela estrela, os pastores alumiados pelo anjo; mas nem a luz das estrelas, nem a luz dos anjos igualaram a luz da vista para mover. Argumentemos de Deus para Deus, de Deus na terra para Deus no céu, e de Deus visto para Deus não visto. O mesmo Deus que cremos na terra não é o que se vê no céu? Sim: pois, por que no céu todos o amam, e ninguém o ofende, e na terra não há quem o não ofenda, ainda dos que mais o amam? Por que na terra é Deus ouvido, no céu é Deus visto; na terra é Deus conhecido pela fé, e pelos ouvidos somente, no céu é conhecido pela vista e com os olhos: por isso o nosso divino Orador, querendo perorar movendo, dão quis falar aos ouvidos, senão à vista: Et videamus hoc Verbum.

E que escusa tem ou pode ter a cegueira dos que, à vista do presépio, e de tantos presépios, tão pouco imitam o que vêem? Não imagino tal na religião, mas no mundo ainda mal, que é tão certo. Filius hominis – exclama Santo Agostinho – non habet ubi caput reclinet, et tu ampla palacia, et ingentes porticus metiris[36]: – O Filho de Deus não tem onde reclinar a cabeça, e cabe em uma gruta de brutos; e tu edificas palácios magníficos, e medes os pórticos com a tua vaidade, quando fora maior proporção medi-los contigo. – Conditor angelorum – exclama S. Pedro Damião – in praesepio vagiens reclinatur, non ostro, sed vilibus panniculis involutus: erubescat igitur terrena superbia, et arrogantia redempti hominis: O Criador dos anjos reclinado no presépio está coberto de panos vis, e o homem de terra, e escravo, que ele remiu, sem pejo nem vergonha, veste ouro e púrpuras. – Quid mugis indignum – exclama, finalmente, S. Bernardo –quam ut videns Deum caeli parvulum factum, ultra apponat homo magnificare se super terram? Que coisa mais indigna que, vendo ao Deus do céu feito tão pequenino, o homem queira ser grande? E que coisa mais intolerável que, quando a majestade se encolhe, o bichinho se inche? Intolerabile est, ut ubi se exinanivit majestas, vermiculus intumescat.

§ VI

Conclusão: o que devem fazer os religiosos que professam o nome de JESUS? A imitação dos pastores de Belém e a imitação da estrela dos Magos.

Mas faça isto embora o mundo cego, vendo a Deus no presépio, que alfim o pagará com o não ver no céu: nós, a quem ele por sua bondade abriu os olhos, que faremos? Transeamus usque ad Bethlehem (Lc. 2, 15) : Passemos até Belém – e não passemos dali. Passemos com os pastores, mas não de passa­gem com eles. Eles foram e tornaram: Et reversi sunt pastores (ibid 20); o mesmo fizeram os Reis, posto que por diferente caminho: Per aliam viam reversi sunt in regionem suam (Mt. 2, 12). – Só a estrela, como própria de JESUS: Stellam ejus – devem imitar os que professam o mesmo nome: e que fez a estrela? Usque dum veniens staret ubi erat puer[37]. Foi a Belém, chegou ao presépio, e ali parou, nem passou dali. Viu o Verbo quod factum est, e ninguém sabe o que foi feito dela, porque ali se desfez. Quem se não desfaz à vista do Verbo feito, não faz o que deve. Os olhos desfeitos em lágrimas, as respirações desfeitas em suspiros, o coração desfeito em amor. Comparemos o transeamus usque ad Bethlehem dos pastores com o usque dum veniens staret da estrela. O termo e o usque foi o mesmo, mas o transeamus e o staret muito diferente. Os pastores passaram, e não passaram; a estrela parou, e não se apartou dali: Usque dum staret ubi erat puer. – S. Pedro, vendo a Cristo entre dois profetas, vestido de resplendores, disse: Bonum est nos hic esse[38]e a estrela, vendo a Cristo entre dois animais vestido de panos pobres, fez o mesmo, e mais sabiamente que Pedro, como guia e mestra de sábios. Naquela transfiguração mostrou Cristo a glória de seu corpo, nesta mostrou a glória de sua divindade, que por isso os anjos cantaram: Gloria in altissimis Deo (Lc. 2, 14). – Mas se os anjos cantam a glória no lugar altíssimo, e o nosso Orador a prega no lugar vilíssimo, esta é a mesma glória, para a qual com seu exemplo nos ensina, com seu exemplo nos deleita e com seu exemplo nos move. E porque os bem-aventurados na glória omnia vident in Verbo: Transeamus usque Bethlehem, et videamus hoc Verbum.

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[1] Passemos até Belém, e vejamos esta palavra que foi feita (Lc. 2, 15) — tradução do próprio Vieira.

[2] Desde que falaste a teu servo, me acho mais impedido e mais tardo de língua (Ex. 4, 10).

[3] Rogo-te que envies aquele que deves enviar (Êx. 4, 13)

[4] Eu sei que Arão teu irmão é eloqüente; ele falará por ti ao povo, e será a tua boca (ibid. 14. 16).

[5] É que hoje vos nasceu o Salvador (Lc. 2, 11).

[6] Completaram-se os dias em que havia de parir, e pariu a seu filho primogênito (ibid. 6 s).

[7] Para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos (Rom. 8, 29).

[8] E vejamos esta palavra que foi feita (Lc. 2, 15).

[9] Eu, porém, fui por ele constituído rei sobre Sião, para promulgar o seu decreto. O Senhor disse para mim: Tu és meu filho, eu te gerei hoje (SI. 2, 6 s)

[10] É a arte de falar bem.

[11] Casa do pão.

[12] Ele disse, e foram feitas as coisas (SI. 32, 9)

[13] O verbo se fez carne, e nós vimos a sua glória (Jo. 1, 14).

[14] Deus ensina, deleita-se e triunfa quando nos fala interiormente, sem estrépito de palavras (S. Agost.).

[15] Abrindo a sua boca os ensinava (Mt. 5, 2).

[16] Não havia lugar para ele na estalagem (Lc. 2, 7).

[17] Veio para o que era seu, e os seus não o receberam (Jo. 1, 11).

— Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu (ibid. 10).

[18] In hymn. Punge Lingua.

[19] Derramando lágrimas quentes na noite úmida (Sanaz. de Partu Virg.)

[20] Glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto (Lc. 2, 20).

[21] Achareis um menino que não fala envolto em panos, e posto em uma manjedoura (Lc. 2, 12).

[22] Eis aqui vos venho anunciar um grande gozo (Lc. 2, 10).

[23] Porque não havia lugar para eles na estalagem (Lc. 2, 7).

[24] Horat. in Arte.

[25] Os teus lábios são como uma fita de escarlate, e o teu falar é doce (Cânt. 4, 3).

[26] 0s céus se tornaram doces como mel.

[27] Tu, Senhor, és doçura inestimável, pela qual se adoçam todas as amarguras: por ela se fizeram doces as pedras de Estêvão, por ela se fez doce a grelha de Lourenço, por tua doçura iam os apóstolos contentes à presença dos juizes, porque foram julgados dignos de padecer por teu nome (Aug. in Solil).

[28] E os pastores voltaram glorificando e louvando por tudo o que tinham ouvido e visto (Lc. 2, 20).

[29] Até quando te debilitarão as delícias, filha vagabunda? Porque o Senhor criou uma coisa nova sobre a terra: Uma mulher cercará a um varão (Jer. 31, 22).

[30] Abraão desejou ansiosamente ver o meu dia: viu-o, e ficou cheio de gozo (Jo. 8, 56).

[31] O que vê a Deus.

[32] Bern. Ser. 28 in Caiu.

[33] No meu primeiro discurso falei de todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar (At. 1, 1).

            [34] Tudo está consumado (Jo. 19, 30).

[35] Horat. in Arte.

[36] August. sup. illud: Non erat eis locas lm diversorio.

[37] Até que, chegando, parou onde estava o Menino (Mt. 2, 9).

[38] Bom é que nós estejamos aqui (Mt. 17, 4).