Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Voz filosófica, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

VOZ FILOSÓFICA

SERMÃO DE SANTO ESTÊVÃO, NA PRIMEIRA

OITAVA DO NATAL,

PREGADO

Domesticamente no Colégio da Companhia de JESUS da Bahia.

Transeamus usque ad Bethlehem, et videamus hoc Verbum, quod factum est[1].

Jerusalem, Jerusalem, quae occidis prophetas et lapidas eos, qui ad te missi sunt[2].

O que cantam e choram os textos do Evangelho. O que diz São Fulgêncio, combinando elegantemente a correspondência do nascimento temporal do Rei eterno com os triunfos do martírio de um seu soldado, Santo Estêvão. Assunto do sermão: O nascimento de Cristo, sinal prognóstico do martírio de Estêvão, e o presépio do Salvador, sinal prognóstico da coroa do Protomártir.

Ó Belém! Ó Jerusalém! Ó Belém, cidade pequena! Ó dia fausto e alegre para os pastores! Ó Jerusalém, cidade grande! Ó dia cruel e funesto para os profetas. Isto é o que cantam e choram os textos que propus. E, posto que um anuncia o nascimento do segundo Adão, e o outro a morte do primeiro mártir, muito bem se atam contudo estes dois dias: ode ontem e ode hoje. Ontem – diz São Fulgêncio – celebramos o nascimento temporal do Rei eterno: hoje os triunfos do martírio de um seu soldado; ontem o Rei da glória se dignou visitar o mundo, saindo do puríssimo claustro de uma Virgem; hoje o seu soldado, deixando o tabernáculo do corpo, se passou aos céus triunfante; ontem Cristo, encoberta a majestade do ser divino, tomando o hábito militar, entrou em as campanhas do mundo a pelejar como soldado: hoje Estêvão, depondo a clâmide corruptível do corpo, subiu aos celestiais palácios para perpetuamente reinar como rei. Ontem desceu Deus coberto com a vestidura de nossa humanidade: hoje o homem, e tal homem, subiu coroado com os lauréis de seu sangue. Isto é o que diz São Fulgêncio, combinando elegantemente a correspondência destes dois dias. E eu, que direi? Combinando também um dia com outro dia, e uma celebridade com outra, quisera dizer que o dia de ontem foi prognóstico do dia de hoje, e que o nascimento e presépio de Cristo prognosticou ontem em Belém o martírio que Estêvão padeceu, e com que triunfou hoje em Jerusalém.

Lembra-me que em tal dia como o de ontem, o ano passado, sobre as palavras do anjo aos pastores: Hoc vobis signum: Invenietis infantem pannis involutum, et positum in praesepio[3] –provei que naquele sinal se compreendiam todos os sinais, não só in genere, senão também in specie, nem só em comum, senão também em particular. Disse o ano passado que fora sinal formal, enquanto incógnito, e sinal instrumental, enquanto conhecido; disse então que fora sinal natural, enquanto próprio da benignidade divina, e sinal ex instituto, enquanto traçado por sua sabedoria e decretado por sua vontade. Agora digo, seguindo e adiantando o mesmo pensamento, que outra vez e por outro modo foi sinal, porque foi sinal prognóstico.

Entre o nascimento de Cristo e o martírio de Santo Estêvão passaram trinta e quatro anos, e os filósofos, dividindo os sinais, em que abraçam todas as diferenças dos tempos, por distantes que sejam, dizem que ou são demonstrativos, ou rememorativos, ou prognósticos: os demonstrativos mostram o presente; os rememorativos trazem à memória o passado; os prognósticos anunciam ou prenunciam o futuro: e tal digo eu que foi o sinal de Cristo infante em respeito do martírio de Santo Estêvão. Isto suposto, será o argumento ou assunto do meu discurso este: Que o dia e mistério de ontem prognosticou o dia e celebridade de hoje, porque o nascimento de Cristo foi sinal do martírio de Estêvão, e o presépio do Salvador prognóstico da coroa do Protomártir. Bem conheço quão grande dificuldade é o achar e conciliar união entre coisas tão diversas e tão distantes; mas toda a minha confiança ponho na graça daquela Senhora, em cujo sacrário virginal se uniram as mais diversas e distantes de todas, qual era Deus e homem.

AVE MARIA.

§I

Os sinais prognósticos no céu e na terra, e a lei geral com que a Providência divina governa o universo. A proporção e semelhança entre o sinal prognóstico e a coisa ou efeito prognosticado. Que semelhança ou conveniência tem ou pode ter o nascimento de Cristo com o martírio de Estêvão? As três festas, de que se acompanha a soberana solenidade do Nascimento do Salvador, e as três espécies de martírio.

Os sinais prognósticos, segundo a lei geral com que a Providência divina governa o Universo, guardam entre si tal ordem no tempo e no lugar, que primeiro aparecem os sinais no céu, e depois se verificam os prognósticos na terra. Exemplo sejam os cometas, de que tão fértil foi nestes últimos anos o nosso século. Os cometas, diz Tibulo, prognosticam guerras: Belli mala signa cometae. – Os cometas, diz Arato, prognosticam tempestades: Saepe dat horrendas tempestas sicca cometas. – Os cometas, diz Lucano, prognosticam mudanças de reinos: Crinemque timendi syderis, et terris mutantem regna cometen. – Os cometas, diz Pontano, significam destruição dos povos, e mortes dos reis: Magnorum, et clades populorum, et funera regum. – E quando as guerras, as tempestades, as mudanças dos reinos, as destruições dos povos, as mortes dos reis, e os outros efeitos destes prognósticos, se experimentam na terra, já da mesma terra se tinham visto no céu os funestos sinais deles; por isso disse geralmente Claudiano: Et numquam terris spectatum impune cometen. – Deixados, porém, os poetas, cuja fé é duvidosa e incerta, temos em prova desta verdade o oráculo infalível do mesmo Cristo: Erunt signa in sole, et luna, et stellis (Lc. 21, 25): Aparecerão – diz o Senhor, – no fim do mundo vários sinais no sol, na lua e nas estrelas, – E quando estes sinais se virem no céu, que sucederá na terra? – Et in terra pressura gentium (ibid.): Na terra se verão as opressões e calamidades que os mesmos sinais prognosticam. – De sorte que a lei geral com que Deus governa o Universo é que primeiro se vejam os sinais no céu, e que depois se verifiquem os prognósticos na terra. Hoje, porém, ou hoje e ontem, o sinal viu-se na terra, e o prognóstico verificou-se no céu. Que viram ontem os pastores na terra? O sinal que lhes deu o anjo, que foi Cristo Infante reclinado no presépio: Hoc vobis signum: Invenietis infantem pannis involutum, et positum in. praesépio (Lc. 2, 12). – E que viu hoje Estêvão no céu? Ecce video caelos apertos, et Filium hominis stantem a dextris virtutis Dei (At. 7, 55): Vejo – diz – os céus abertos, e ao Filho do homem em pé à mão direita de Deus. – Notável diferença por certo! Não canta a Igreja, e não nos ensina a fé que Cristo está assentado à destra do Padre: Qui sedes ad dextram Patris? – Pois, se Cristo está no céu assentado, como o viu Estêvão em pé? Excelentemente São Cipriano: Stabat quasi solicitus, ut coronaret martyrem: Estava como solícito, porque via padecer martírio, e queria coroar o mártir. – Jazendo no presépio, lhe deu o exemplo, e, posto em pé no céu, lhe preparava o prêmio, porque, como dizíamos no princípio, o nascimento de Cristo prognosticou o martírio de Estêvão, e o presépio do Salvador foi prognóstico da coroa do Protomártir.

Mas, porque entre o sinal geralmente, e muito mais entre o sinal prognóstico e a coisa ou efeito prognosticado deve de haver proporção, conveniência e semelhança, que semelhança, que conveniência ou que proporção tem ou pode ter o nascimento e presépio de Cristo com o martírio de Estêvão, principalmente sendo o nascimento o princípio natural da vida, e o martírio o fim violento dela? O cardeal São Pedro Damião o disse tão altamente, como em poucas palavras: Reclinatus Dei Filius in praesepio, legem martyrii praefigebat: Nascendo – diz – o Filho de Deus em um presépio, naquelas colunas semi-rotas do portal de Belém fixou as leis do martírio. – O sinal e o prognóstico, a semelhança e proporção do nascimento de Cristo com o martírio, não esteve no nascer, senão no modo, no lugar, no tempo, e nas outras circunstâncias com que nasceu em um presépio: Reclinatus in praesepio. – A dureza da manjedoura, a aspereza das palhas, a companhia irracional dos brutos; o desabrigo do portal, a escuridade da noite, o frio e rigor do inverno, a apertura das faixas, com que estava atado de pés e mãos: Et Dei manus, pedesque stricta cingit fascia. – Sobretudo, o apartamento da Mãe, posto que em pequena distância, não chegado a seu peito, e em seus braços, senão separado deles, como exposto: Positum in praesepio – e tudo isto padecido com um silêncio sofrido e um sofrimento calado, sem se queixar dos que o não receberam em suas casas, nem falar palavra, que isto quer dizer infantem. Esta foi a semelhança do sinal, esta a proporção do prognóstico, e este o prognóstico do martírio.

Verdadeiramente, é muito digno de grande reparo que os três dias, e as três festas de que se acompanha esta soberana solenidade do nascimento do Salvador, todas três sejam de três mártires. Mártir Santo Estêvão, mártir São João, mártires os Santos Inocentes, e não só mártires de qualquer modo, senão mártires com tal diferença, que nestes três se compreendem todas as espécies de martírios. Assim o notou, com esquisita sutileza, o doutíssimo e devotíssimo Bernardo: Habemus in Beato Stephano martyrii simul et opus et voluntatem: habemus solam voluntatem in Beato Joanne, .solam in Beatis Innocentibus opus. Biberunt omnes hi calicem salutaris, aut corpore simul, et spiritu, aut solo spiritu, aut corpore solo: Temos nestas três festas – diz o santo – as três espécies que há ou pode haver de martírio: martírio de morte sem vontade, martírio de vontade sem morte, e martírio de morte e juntamente de vontade. Nos Inocentes, martírio de morte sem vontade, porque morreram antes do uso da razão; em São João, martírio de vontade sem morte, porque não morreu violentamente; em Santo Estêvão, martírio de morte e juntamente de vontade, porque sobre a vontade e ardentíssimo desejo, com que se abrasava seu coração, de morrer por Cristo, verdadeiramente padeceu cruelíssima morte à mão dos cruentíssimos tiranos, mais dura que as mesmas pedras de que contra ele se armaram. Todos, finalmente, beberam o cálix do Senhor, que é o martírio aut corpore solo: ou só no corpo, como os Inocentes; aut solo spiritu: ou só no espírito – como São João; aut corpore simul et spiritu: ou no corpo e no espírito juntamente – como Estêvão. – Mas por que razão é este, e não outro, o aparato de que se orna a solenidade do nascimento de Cristo, e o não acompanham nela outros santos e cortesãos do céu, de eminentíssimas dignidades, senão os mártires somente, e os mártires não só de uma, senão de todas as espécies de martírio? Sem dúvida porque estes foram os efeitos prognosticados pelo sinal do presépio de Cristo, e estes foram os frutos do seu nascimento; inundação de todo o gênero de martírios, diz o mesmo São Bernardo: Utili proinde dispensatione triplex ista solemnitas Natale Domini comitatur, ut non modo inter continuas solemnitates devotio continua perseveret, sed et fructus dominicae nativitatis exundet[4].

§II

Quão cumpridamente se verificou no valoroso Protomártir o prognóstico de todo o gênero de martírios. Qual foi a condição da lei com que o Senhor recém-nascido publicou a do martírio no seu presépio? O silêncio, qualidade singular por que a mesma Igreja Católica canoniza a paciência dos mártires. A perfeição e lustre da perfeita paciência de Jó. Qual foi o motivo da extraordinária cautela com que os tiranos de Santo Estêvão taparam primeiro os ouvidos antes de martirizá-lo?

E para que vejamos em particular quão cumpridamente se verificou no valoroso Protomártir o prognóstico desta inundação, a qual nele foi tão forte, que chegou a levar consigo as pedras, necessário é que advirtamos primeiro qual foi a condição da lei com que o Senhor recém-nascido publicou a do martírio no seu presépio: In praesepio reclinatus, legem martyrii praefigebat. – Porventura bastará padecer constantemente a violência e rigor dos tormentos, sem resistência nem movimento próprio em contrário, como o mesmo Senhor o não teve nos rigores do seu presépio? Absolutamente, digo que não bastará, se juntamente não concorre a primeira e principal condição do sinal prognosticante, com o qual se deve proporcionar o prognosticado. Qual foi a primeira e principal condição ou propriedade do sinal? O anjo, que o sinalou, o disse: Hoc vobis signum: Invenietis infantem. – Infantem não só quer dizer menino, mas menino que não fala: e assim estava o Menino Deus, padecendo no presépio todos os rigores que ponderamos, do tempo e do lugar, das sem-razões dos homens, tendo ele, enquanto homem, perfeitíssimo uso de razão, mas mudo, e sem falar palavra: infantem. – Para observar a perfeita lei da paciência no martírio não basta só padecer, nem muito padecer, mas é necessário padecer e calar: é necessário padecer infante, para chegar a ser mártir. Esta é a qualidade singular por que a mesma Igreja Católica canoniza a paciência dos mártires:

Traduntur gladiis more bidentium,

Non murmur resonat, non querimonia,

Sed corte impavido mens bene conscia

Conservat patientiam.

Padecem os mártires os tormentos – diz a Igreja – e não se ouve da sua boca uma só palavra de queixa, nem alta, nem baixa, nem declarada, nem escura e entre dentes, que isso quer dizer non murmur resonat. – E por quê? Porque co­nhecem, como bem entendidos: Mens bene conscia – que só por este modo, padecendo e calando, se conserva a paciência: Conservar patientiam. – Admirável sentença por certo! Assim como o licor precioso, se a boca da redoma não está tapada, exala e evapora o cheiro, e perde a virtude, assim a paciência, de nenhum modo se conserva na sua perfeição, se o silêncio constante lhe não tapa e emudece a boca, porque só padecendo e calando há verdadeira paciência.

Depois que o demônio em um dia, ou em uma hora, despojou a Jó de tudo o que com tanta abundância possuía, lavouras, gados, escravos, casas, filhos, sem que nenhuma destas perdas, ou todas juntas, bastassem a lhe derrubar a constância e enfraquecer a paciência, vencido nesta primeira batalha, pediu e alcançou licença de Deus o mesmo demônio para passar dos acidentes à substância, e combater novamente ao vencedor antagonista de mais perto, e não de fora, mas na própria pessoa. Com isto se viu em outro momento o mesmo Jó, não coberto de chagas, mas feito todo uma chaga viva, que de pés a cabeça o cobria, exceta, como ele diz, a boca: Et derelicta sunt tantummodo labia circa dentes meos[5]. – Nesta exceção reparo, e pergunto ao demônio: Vem cá, espírito soberbo e infernal, se tão inimigo és de Jó, tão forte e tão ardiloso, se injuriado de te ver vencido o acometes raivoso a segunda vez, e se és tão cruel que parte por parte o feriste e atormentas todo, por que perdoas à boca, e lha deixas livre? Deus, na licença que te deu, só excetuou a vida; pois, se ele não faz esta exceção, por que a fazes tu, em tudo o mais cruel, e só com a boca piedoso? Não foi piedade não – diz São Crisóstomo – senão ardil sutilíssimo do demônio, que assim lhe quis armar o laço para o derrubar da virtude em que foi mais eminente. Jó, na primeira vitória, alcançou o famoso título, não só de exemplo, mas de exemplar da paciência; pois, para que caia, e fique vencido nela, deixemos-lhe livre o instrumento da fala e da queixa, porque, desafogando a dor pela boca, não se poderá dizer da sua: Non murmur resonat, non querimonia – e com o não padecer mudo e calado, ainda que padeça muito, perderá a perfeição e lustre da perfeita paciência, que consiste em padecer e calar; e como neste silêncio sofrido, ou neste sofrimento mudo, consiste a principal observância da lei do martírio, por isso o Protótipo dos mártires no seu presépio, e o Protomártir no seu tormento, ambos padeceram sem falar, e cada um deles como infante: lnvenietis infantem.

Falando Santo Estêvão, era tão poderosa a eficácia de suas palavras, que ninguém podia resistir a elas: Et nonpoterant resistere sapientiae, quae loquebatur (At. 6, 10) – e, contudo, quando impetuosamente o arrebataram para o apedrejar, nenhuma palavra lhes disse, nem de queixa nem de repugnância, deixando-se levar da fúria da multidão mudamente, e sem o menor movimento de resistência. Pois, se ninguém lhe podia resistir quando falava, por que não falou também agora, para ele resistir não a outros, senão aos mesmos que tantas vezes tinha vencido? Porque dantes obrava como mestre, e agora como mártir; e como era a maior glória do seu magistério que ninguém pudesse resistir à sua sapiência, assim era a maior glória do seu martírio que a ninguém resistisse a sua paciência. A sapiência invencível falando, e a paciência, calando, também invencível. E aqui se deve notar muito o modo ou cautela com que a mesma multidão dos tiranos se atreveram a pôr as mãos no mártir, e lhe atiraram as pedras. Diz o texto sagrado que primeiro taparam os ouvidos, e assim arremeteram impetuosamente a ele: Continuerunt aures suas, et impetum fecerunt unanimiter in eum (At. 7, 56). – Qual foi, pois, o motivo desta tão extraordinária cautela, com que taparam primeiro os ouvidos? Que importara que ouvissem a Estêvão, ou não o ouvissem, se estavam determinados a lhe tirar a vida? Importava muito. Dos áspides diz Davi que tapam os ouvidos, para que o sábio encantador com as suas vozes os não encante, e de bravos e venenosos os não domestique e amanse: Sicut aspidis surdae et obturantis aures suas, quae non exaudiet votem incantantium, et venefici incantantis sapientes[6]. — Eram áspides venenosos e feros aqueles inimigos mortais de Estêvão e de Cristo, a quem pregava; e como tinham experimentado tantas vezes que, em falando Estêvão, como sábio encantador, com a virtude de suas palavras os encantava e rendia, de maneira que não havia quem lhe resistisse, por isso agora, temendo-se que falando obrasse neles os mesmos efeitos, cerraram primeiro os ouvidos para o não poderem ouvir, e, surdos como áspides, empregaram nele o seu veneno. Enganaram-se, porém, tão cegos como surdos, porque tão necessárias eram as suas vozes à sua sabedoria, como o seu silêncio à sua paciência: as vozes necessárias à sabedoria, para não ser resistida, e vencer; e o silêncio necessário à paciência, para não resistir, e ser ferida.

§ III

Por que não resistiu Estêvão à fúria de seus inimigos? O maior elogio da paciência do Protomártir: A vitória da paciência de Estêvão e a razão da mesma vitória. A disputa de Jó com os amigos e a disputa de Estêvão com os sábios de Jerusalém. Se Jó não perdeu a sabedoria e a paciência na perda dos bens, por que a perdeu na disputa?

Torno a dizer, para não resistir nem ser ferida, cláusula ou conseqüência que parece pouco coerente, como se a resistência, que é a que repara o corpo dos golpes, fosse a que o expusesse às feridas; mas na paciência é assim: quando a paciência resiste, não são tanto os contrários os que recebem as feridas, quanto a mesma paciência, a qual, resistindo-lhes a eles, se fere a si mesma. De Estêvão diz a história de São Lucas que não só obrava milagres de qualquer modo, senão grandes, prodigiosos e estupendos: Stephanus autem, plenus gratia et fortitudine, faciebat prodigia et signa magna in populo[7]e, segundo estes poderes extraordinários, que Deus tinha delegado nele, sem ofensa do espírito que professava, bem pudera, como pregador zeloso, como varão apostólico, e como discípulo de Cristo, resistir de tal maneira à fúria de seus inimigos, que ou os fizesse cair mortos diante de si, ou, quando menos, lhes atassem as mãos, que lhe não pudessem atirar as pedras. Como pregador zeloso, pudera fazer que do céu caíssem raios de fogo, que os abrasassem, como Elias aos soldados de Acab; como varão apostólico pudera fazer que caíssem mortos a seus pés, como São Pedro a Ananias e Safira; e como discípulo de Cristo pudera fazer que nem nas mãos tivessem força com que atirar as pedras, nem nos olhos vista com que ver a quem haviam de apedrejar: Tulerunt lapides, ut jacerent in eum: JESUS autem abscondit se[8]. – Pois, se tudo isto pudera fazer Estêvão, como fazia outros grandes prodígios, por que o não fez em sua defensa, resistindo a seus inimigos? Porque, se assim resistisse, feriria a sua paciência, a qual ele tinha obrigação de conservar, não só muda na boca, senão ilesa nas mãos, como a do Infante de Belém, que no presépio, sendo onipotente, as tinha atadas: Et Dei manus pedesque stricta cingit fascia. – Tudo é pensamento altíssimo de Tertuliano, o qual disse que quando Pedro, resistindo aos soldados que vinham prender a Cristo, feriu a Malco, recebeu Cristo aquela mesma ferida na sua paciência: Patientia Christi in Malcho vulnerata est. – Bem mereciam os tiranos ou algozes de Estêvão que ele, como Pedro, quando menos, lhes cortasse as orelhas, pois eles continuerunt oures suas, et impetum fecerunt unanimiter in eum[9]. – Mas, assim como o Senhor mandou embainhar a espada do Príncipe dos Apóstolos, assim o Príncipe dos Mártires embainhou a do seu poder, e antes quis não receber ferida na sua paciência que curá-la em Malco. E para concluir com o maior elogio da paciência do Protomártir, mais prodigiosa que todos os outros seus prodígios, e em matéria e ocasião que muito nos pode servir de exemplo para imitar, diz o mesmo texto de São Lucas que todas as sinagogas ou escolas que naquele tempo se achavam em Jerusalém, de todas as três partes do mundo, os alexandrinos da Ásia, os libertinos da África, os cirenenses, e outros da Europa, todos disputavam contra Estêvão: Surrexerunt autem quidam de synagoga, quae appellatur Libertinorum, et Cyrenensium, et Alexandrinorum, et eorum qui erant a Cilicia, et Asia, disputantes cum Stephano[10]. – Só Estêvão era o que defendia, e todos os outros o pretendiam impugnar; mas, como não pudessem resistir à sua sabedoria: Non poterant resistere sapientiae, et spiritui, qui loquebatur (At. 6, 10) – que fizeram? Primeiramente, fizeram o que muitos fazem, que quando não podem soltar os argumentos, soltam a língua em injúrias, chamando-lhe blasfemo; e sobre isso passaram das línguas às mãos e às pedras, com que, multiplicando os tiros, o deixaram sepultado debaixo delas. Tiraram-lhe a vida, mas não lhe venceram a paciência, porque o invencível Protomártir, tendo só voz, e altas vozes, com que orava a Deus por eles, nenhuma se lhe ouviu, nem de queixa contra seus atormentadores, nem de resistência ou repugnância contra os tormentos. Este foi o glorioso fim da disputa em que a pedra não era do defendente, mas eram as pedras dos argumentantes; e este foi o triunfo da paciência de Estêvão, em que não digo que deu quinau à de Jó, mas que mereceu um paralogismo de maior louvor que a sua.

Já vimos como o demônio, para fazer cair a Jó, e lhe escurecer a glória da paciência, lhe armou o laço na boca, deixando-lhe livre a língua; e qual foi o sucesso desta sua astúcia? A história de Jó divide-se toda em duas partes. A primeira, em que por meio dos inimigos o despojou de todos os bens; a segunda, em que por meio dos amigos altercou com ele uma larga disputa. Na perda dos bens esteve tão forte e constante a sua paciência, que diz dele o texto sagra­do: In omnibus his non peccavit Job labiis suis, nec stultum quid locutus est contra Deum[11]. – Porém, na disputa com os amigos respondeu o mesmo Jó de maneira que Deus o repreendeu, dizendo: Quis est iste involvens sententias sermonibus imperitis[12]? – E o mesmo Jó confessou de si que tinha falado ig­norantemente: ldeo insipienter locutus sum[13]. – Pois, se Jó não perdeu a sabedoria e a paciência na perda dos bens, por que a perdeu na disputa? Porque o calor e fervor do disputar, batalha em que se não empenha a fazenda ou a saúde, senão o entendimento, é o mais rigoroso exame da paciência. Conservou-se a paciência de Jó em tantas perdas, e perdeu-se em uma disputa: Ideo insipienter locutus sum. – Nota-se muito a paciência: locutus sum – para que se veja a vitória da paciência de Estêvão, e a razão da mesma vitória. Jó disputava contra três homens, Estêvão contra três escolas inteiras; Jó com amigos, e Estêvão com os mais duros e cruéis inimigos. Mas Jó respondia contra os argumentos e contra as injúrias, e Estêvão, pelo contrário, sendo injuriado com injúrias de blasfemo, e impugnado com silogismos de pedra, nem uma só palavra se lhe ouviu contra elas; e como um padeceu falando, e outro calando, por isso Jó, que ainda não tinha o exemplo do Infante de Belém, perdeu a paciência no que falou: Insipienter locutus sum – e Estêvão, pelo contrário, conservou e qualificou a sua paciência no silêncio, porque imitou o do mesmo Infante no seu presépio: Invenietis infantem positum in praesepio.

§ IV

A dívida que o Protomártir pagou a Cristo com seu martírio. A obrigação que Santo Estêvão e nós contraímos no nascimento de Cristo. O perfeito religioso e a imitação do divino Infante.

Isto é o que eu pretendi dizer do glorioso Protomártir, a quem peço perdão do pouco e mal que disse. Mas, à vista do exemplo do seu martírio, e muito mais, à vista do seu exemplar no presépio, que me posso eu dizer a mim, e aos que me ouvem? A Igreja no dia de hoje, com palavras tomadas de Santo Agostinho, a maior prerrogativa que considera em Estêvão, é ser o primeiro que com a morte própria pagou a Cristo a morte que ele se dignou padecer por nós: Mortem enim, quam Salvator noster dignatus est pro nobis pati, hanc ille primus reddidit Salvatori. – Morreu Estêvão por Cristo, porque Cristo, morrendo por todos nós, também morreu por ele. Eu, porém, creio que a dívida que o protomártir pagou a Cristo não foi esta, senão outra mais antiga. Não só pagou a Cristo com a morte a morte, senão também o nascimento, porque, para Deus nos obrigar a morrer por ele, não foi necessário que ele morresse por nós; mas bastou que nascesse por nós, e para nós. Assim o disse noutra ocasião o mesmo Santo Agostinho, com mais alto pensamento: Opportebat enim ut primum immortalis pro mortalibus susciperet carnem, ut hic mortalis pro immortali susciperet mortem[14]: Depois que o imortal se encarnou, e nasceu por amor do mortal, logo ficou obrigado o mortal a morrer pelo imortal. – Assim que no nascimento de Cristo é que contraiu Estêvão a obrigação de morrer por Cristo, e, porque Cristo nascendo se pareceu com Estêvão, por isso ficou obrigado Estêvão a se parecer com Cristo morrendo, diz o mesmo santo doutor: Sicut Christus nascendo Stephano, ita Christo Stephanus moriendo conjunctus est[15].

Esta é a nossa obrigação no dia de ontem e de hoje, não só de dar a vida por Cristo, porque morreu por nós, senão também porque nasceu por nós; e não nos desobriga desta correspondência chamar-nos Cristo à sua fé em tempo e em terra onde não há tiranos, porque a todos nos chamou à religião, a qual, se não é martírio tão rigoroso e tão duro como o de Estêvão, como bem disse São Bernardo, é martírio mais dilatado. O que importa é que nós pontualmente observemos as leis deste martírio, que o soberano legislador em entrando neste mundo publicou logo no seu presépio: In praesepio reclinatus, legem martyrii praefigebat. – Sejamos mártires, como ele no seu presépio foi mártir, padecendo em silêncio, e sem queixa, todas aquelas mortificações que à nossa fraqueza se oferecem dentro das ocasiões domésticas, em que ao presente vivemos. Se o aposento for incômodo, e mais sujeito às inclemências do tempo, como se queixará um religioso de mal agasalhado, se do Criador do mundo se diz: Non erat ei locus in diversorio[16]? – Se a cama for menos branda, a quem lhe não parecerá muito mimosa, à vista da dureza daquela manjedoura, e da aspereza da­quelas palhas: Reclinavit eum in praesepio[17]? Se o vestido for da estofa mais grosseira, quem o não terá por gala, sendo esta a do Príncipe da Glória?: Et pannis eum involvit[18]? Se o companheiro não foro de mais agradável condição, quem se não concordará com ele, sendo os de Deus humanado dois brutos irracionais? Se a pobreza lhe atar as mãos, e a obediência e a clausura os pés, quem se atreverá a bulir pé nem mão, vendo atado de pés e mãos ao Onipotente? E o que mais se pode sentir, quem se ressentirá, ou dará por agravado de o apartarem de si, ainda que seja para muito longe, os que distribuem os lugares, se a mesma Mãe do Filho de Deus, e seu, o apartou de seu peito e de seus braços, e o pôs infante em um presépio: Infantem positum in praesepio? – Desta maneira acharam os pastores no presépio ao divino exemplar da paciência muda, e ditoso e bem-aventurado aquele religioso que assim for achado na hora da morte, e em todos os dias, horas ou instantes da vida: positum – posto em qualquer lugar onde o puser a obediência; e infantem – sem falar, nem replicar, nem pedir ou desejar mudança do mesmo lugar, porque com esta resignação e indiferença imitará a Cristo, como o Protomártir o imitou na terra, e o verá, como ele o viu no céu: Ad quod nos perducat Dominus JESUS. Amen.


Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

[1] Passemos até Belém, e vejamos que é isto que sucedeu (Lc. 2, 15).

[2] Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados (Mt. 23, 37).

[3] Este é o sinal que vo-lo fará conhecer: Achareis um menino que não fala envolto em panos, e posto em uma manjedoura (Lc. 2, 12).

[4] Muito providencialmente, portanto, o Natal do Senhor é seguido por esta tríplice solenidade, não só para que com a continuidade das festas se mantenha continua a devoção, mas também para que o fruto do nascimento do Senhor se transborde (S. Bern.).

[5] E só me restam os lábios ao redor dos meus dentes (Jó 19, 20)

  

[6] Como o do áspide surdo, e que fecha os seus ouvidos, que não ouvirá a voz de encantadores, nem a de mago que encanta segundo a sua arte (SI. 57, 6).

[7] Mas Estêvão, cheio de graça e de fortaleza, fazia grandes prodígios e milagres entre o povo (At. 6, 8)

[8] Pegaram em pedras para lhe atirarem, mas Jesus encobriu-se (Jo. 8, 59).

[9] Taparam os seus ouvidos, e todos juntos arremeteram a ele com fúria (At. 7, 56).

[10] E alguns da sinagoga, que se chama dos libertinos, e dos cirenenses, e dos alexandrinos, e dos que eram da Cilicia, e da Ásia, se levantaram a disputar com Estêvão (At. 6, 9).

[11] Em todas estas coisas não pecou Jó pelos seus lábios. nem falou coisa alguma indiscreta contra Deus (Jó 1, 22). 

[12] Quem é este, que mistura sentenças com discursos ignorantes (Jó 38, 2)?

[13] Por isso eu tenho falado nesciamente (Jó 42, 3).

[14] Aug. Ser. I de Sanctis.

[15] Aug. Serm. 95.

[16] Não havia lugar para ele na estalagem (Lc. 2, 7).

[17] E o reclinou em uma manjedoura (Lc. 2, 7).

[18] E o enfaixou (ibid.).