LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários
em meio eletrônico
Voz enternecida, do Padre António Vieira
Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
VOZ ENTERNECIDA
SERMÃO DA AGONIA DO SENHOR NO HORTO
Coepit contristari et moestus esse[1].
Quem, naquela noite última e terrível, da qual escreveu São Mateus estas palavras, guiado pelos ecos lastimosos que soavam no Vale de Getsêmani, e respondiam no vizinho Monte Olivete, penetrasse pelos horrores das sombras, decidido a descobrir a causa daquelas vozes, oh! que trágico espetáculo se lhe ofereceria aos olhos, aos ouvidos, à razão, e, se tivesse piedade, a toda a alma! À entrada do Horto acharia oito homens dormindo, sem dar atenção ao que se passava; mais adiante, retirados, outros três, também entregues ao sono, que nos homens não é nada mais que descuido do que Deus pensa e padece. Estes três estavam mais perto, e então perceberia claramente o que diziam as vozes: Pater, si possibile est, transeat a me calix iste[2]. – Pai – dizia. – De quem será filho? Fala em cálix: acaso seu pai lhe quer dar veneno por algum grande crime? – Enfim, se tivesse ânimo, chegaria, e veria um belíssimo jovem caído por terra, com os braços estendidos, os olhos levantados para o céu, trêmulo, ansioso, agonizante, a cabeça banhada em suor de sangue, assim como o rosto, as mãos, os pés, até a terra. E qual vos parece, senhores, seriam os afetos deste homem diante da estranheza de tal espetáculo? Creio que, ainda que se tratasse de um samaritano meio bárbaro daquelas montanhas, movido pela compaixão, rasgaria os vestidos para atar-lhe as feridas. Porém, vendo que o sangue era suor causado unicamente pela aflição e angústia, sem golpe, sem ferida, sem chaga, então seria maior sua admiração, dor, assombro, pasmo. Isto faria a piedade sozinha, embora desacompanhada da fé, e sem conhecer quem era o que padecia, e por quem padecia. Porém, se soubesse que aquele homem tão ferido era juntamente Deus, e Deus o pai a quem suplicava sem ser ouvido, e que a causa daquele suor e daquele sangue era o mesmo que o estava contemplando, e suas as culpas pelas quais padecia o inocente, eu não sei ponderar nem compreender qual seria então maior dor, maior pena: se a do Senhor, que padecia tanto, se a do homem, que o via padecer por sua causa. E se isto é o que deveria fazer, e o que fez, um samaritano sem fé, os sacerdotes e levitas fiéis, e obrigados a maior piedade, seria bem que passassem ao largo, sem compaixão, sem dor, sem atenção, nem aos gemidos, nem ao sangue, nem à pessoa, nem à causa, nem a si mesmos? Oh! pensamentos e desvelos de Cristo! Oh! pensamentos e desvelos dos homens! Estes pensamentos e cuidados, tão atentos uns, e tão desatentos outros, é o que pretendo considerar neste discurso, penetrando um pouco na alma de Cristo, para que nós também penetremos nas nossas.
§I
Coepit contristari et moestus esse (Mt. 26, 37).
Nesta paixão, ou propaixão, de repetida tristeza, nesta tristeza sobre tristeza: Tristari et moestus esset – compreendeu São Mateus todos os tormentos e penas que pode – ou não pode – padecer um coração aflito. São Marcos disse: Coepit pavere et taedere[3]; o Siríaco: Coepit commoveri et vehementer angi[4]; e o próprio Cristo: Tristis est anima mea usque ad mortem[5]: dores mortais, temores, tédios, maus tratos, aflições, penas, angústias, desfalecimentos, ânsias, agonias tais que bastaram para tirar a vida, tais que bastaram para fazer brotar sangue das veias de um homem que era juntamente Deus: tudo isto quer dizer: Coepit contristari et moestus esse.
Mas, porque o evangelista diz coepit, é justo que saibamos primeiro quando começaram essas tristezas e angústias no coração de Cristo. Segundo o pensamento comum e vulgar, tiveram início na hora em que o Senhor começou a orar no Horto, e, quanto aos sinais exteriores e manifestos aos discípulos, foi assim. Mas, se considerarmos atentamente, e penetrarmos mais reconditamente na alma de Cristo, seguindo por este fio de sua dor, de seus desvelos e de seus pensamentos tristes e angustiosos, veremos que foram perpétuos e contínuos em toda sua vida, e que começaram desde o primeiro instante de sua conceição. São Paulo, no capítulo 10 ad Hebr., alegando e comentando o Salmo 39: Ideo ingrediens mundum dixit: Hostiam et oblationem noluisti; corpus autem aptasti mihi[6]. – No mesmo instante em que a humanidade de Cristo foi unida ao Verbo, e entrou neste mundo: Ingrediens mundum – assim como logo, e no mesmo instante, conheceu e aceitou o preceito de morrer pelos homens, com todas as circunstâncias de sua paixão e cruz, assim desde esse momento começou a ter e a trazer sempre viva na memória a mesma cruz e a mesma morte, muito mais próxima ainda do que a tinha nesta hora, porque a levava dentro de si mesmo: –In capite libri scriptum est de me, utfacerem voluntatem tuam: Deus meus, volui, et legem tuam in medio cordis mei[7]. – Tudo o que está escrito pelos profetas, tudo o que foi representado em figura pelos patriarcas nem a vontade, nem o cuidado, como se o deixasse que haveria de padecer, Cristo viu e conheceu perfeitissimamente naquele instante, e desde o mesmo instante cravou o preceito e a cruz no meio de seu coração: In medio cordis mei. – Não de lado, senão in medio – porque não pôs de lado nem o preceito, para o tempo em que se haveria de executar, senão que desde então o teve sempre fixo e cravado no mais interior e íntimo do coração: In medio cordis mei – caminhando desde aquele instante sempre para a cruz e para a morte: Tunc dixi: Ecce venio[8]. – Tunc? Quando? Quando entrou no mundo: Ingrediens mundum tunc dixi; Ecce venio. – A palavra hebraica ecce venio – como já o notou Lurino – abrange todos os tempos: veni, venio, veniam[9] porque foi um vir e caminhar sempre continuado, desde o princípio até o fim da vida. É certo que assim o estava vendo Isaías, quando disse: Parvulus natus est nobis, et filius datus est nobis; et factus est principatus ejus super humerum ejus[10]. – Filho pequeno no nascimento, filho, e, muito mais pequenino, na conceição; mas desde esse instante com a cruz sobre os tenros ombros, porque desde esse momento começou a levá-la às costas, e a caminhar até onde chegará amanhã: Tunc dixi: Ecce venio.
Ajuntemos este ecce com aquilo do salmo: Quoniam ego in flagella paratus sum, et dolor meus in conspectu meo semper[11]. – No mesmo instante em que o Verbo, menino e homem perfeito teve ombros para a cruz e espáduas para os açoites, logo, ainda nas entranhas de sua Mãe, prostrado diante do Pai, se ofereceu a eles: Ego in flagella paratus sum. – O modo, a forma, a posição do corpo com que Cristo hoje orou no Horto foi: Procidit in fatiem suam[12]: com os joelhos em terra, e o corpo inclinado e dobrado sobre os mesmos joelhos; e assim estava o recém-encarnado Cristo no instante de sua conceição, porque esta é a posição, como ensina Aristóteles – em que as pequenas criaturas se encontram no ventre das mães; por isso, naquele mesmo instante em que entrou no mundo: Ingrediens mundum – disse: Corpus autem aptasti mihi[13] porque seu corpo assim inclinado, com o rosto apoiado nos joelhos, estava na posição certa, proporcionada, e mais decente e reverente, com a qual, tendo as costas voltadas e prostradas diante de seu Pai, oferecia-as ao sacrifício, e a todos os açoites e golpes de sua Paixão: Quoniam ego in flagella paratus sum. – O texto original diz: Corpus autem perforasti mihi[14] – porque, embora no Horto tenha saído e brotado o sangue por todo o corpo, as chagas, por onde saiu esse mesmo sangue, já estavam feitas desde o instante de sua conceição: Corpus autem perforasti mihi – desde então estava já perfurado o corpo; e imediatamente teria saído o sangue, se a Providência não o tivesse impedido, e o desejo de derramar mais sangue não o detivesse. Mas, embora o sangue tenha sido estancado, não se deteve a dor: Et dolor meus in conspectu meo semperporque desde aquele primeiro momento da vida, até o último, manteve o Senhor constantemente diante dos olhos, isto é, uma contínua e vivíssima apreensão, e uma consideração jamais interrompida, e um pensamento sempre fixo e presente de sua dor e de sua morte: Et dolor meus in conspectu meo semper.
§ II
Foi este pensamento e esta contínua e dolorosa apreensão uma duríssima e agudíssima coroa de espinhos, que não só feria as frontes de Cristo, mas o penetrava e traspassava continuamente até o mais profundo do coração. São Bernardo, São Gregório, e outras grandes almas, a quem Cristo admitia aos segredos da sua, o entenderam e disseram assim, e tais almas eram aquelas às quais Salomão chamava quando disse: Egredimini, filiae Sion, et videte regem Salomonem in diademate quo coronavit eum mater sua in die desponsationis illius[15]. – A mãe que coroou a Cristo de espinhos foi a Sinagoga; o dia das bodas de Cristo foi o dia da Encarnação, em que o Verbo se desposou com a natureza humana. Pois, se Cristo foi coroado no dia de sua Paixão, como diz Salomão que foi no dia de suas bodas: In die desponsationis suae? – Porque a coroa exterior foi colocada trinta e três anos depois; a interior, naquele mesmo dia. Naquele mesmo dia da Encarnação foi posta e cravada na cabeça de Cristo a coroa de espinhos interiores, que foram as tristezas e angústias que naquela hora manifestou a seus discípulos, e jamais a afastou um momento sequer de sua cabeça, até que expirou na cruz: Tristis est anima mea usque ad mortem[16]. – A coroa exterior, de fora, entrava e penetrava para dentro; a interior, de dentro, entrava e penetrava mais para dentro, e por isso não era vista, nem se manifestou senão nesta hora.
São Dionísio Areopagita chamou profundamente ao útero virginal de Maria: Thronus cherubicus et cruciformis: Um trono como o dos querubins, fabricado em forma de cruz. Assim como os santos explicam aos profetas, é necessário agora um profeta para declarar ao santo. Aqueles querubins que viu Isaías diante do trono de Deus faziam duas coisas: Volabant et velabant[17] – e formavam juntamente uma cruz e um véu: com as asas do meio, com que voavam, formavam uma cruz; e com as outras quatro, que cruzavam, formavam e teciam um véu; e tal foi o trono em que Deus, baixando do céu, foi recebido no sacrário do ventre virginal de sua Mãe. Ali, e desde ali, teve sempre diante dos olhos a cruz, mas velado e encoberto a nossos olhos, o rosto sempre atento, e os olhos sempre abertos, com que se contemplava a si mesmo, até que nesta hora correu a cortina e deixou o véu, para que os três de seu seio soubessem o que passava em sua alma: Assumpto Petro, Jacobo et Joanne, coepit contristara et moestus esse[18]. – Estes mesmos três, que havia levado consigo para o Monte Tabor, levou-os também para o Vale de Getsêmani, para que, assim como lá haviam sido testemunhas de suas glórias, o fossem aqui de suas penas; e assim como lá lhes manifestou as glórias, de que havia privado a seu corpo conhecessem aqui as penas, que trazia encobertas e escondidas na alma. Lembremo-nos, porém, desde que estamos falando no Tabor, do que então disse o Senhor. Se em algum dia Cristo devia esquecer os pensamentos tristes de sua paixão era neste dia, no qual, transfigurado, dava demonstração de sua glória; mas até nesse dia e nesse ato: Dicebant de excessu, quem completurus erat in Hierusalem[19] – para que entendêssemos quão indispensavelmente eram estes os pensamentos de todos os dias de sua vida, pois ainda em tal dia e em tal ocasião era o que lhe brotava aos lábios da abundância de seu coração.
§ III
Oh! desvelos e pensamentos de Cristo! Oh! desvelos e pensamentos dos homens! Os de Cristo tristes, e tristíssimos: Contristara et moestus esse – os nossos, porém, muito mais tristes, porque não são tristes, e porque não são tristes com a tristeza que deveriam. Cristo pensa, preocupa-se, desvela-se, aflige-se, angustia-se, e se entristece mortalmente por causa de sua morte e de minha salvação; e eu, nem me entristeço, nem me preocupo, nem me aflijo, nem me desvelo, nem ao menos penso, em minha salvação, nem em sua morte, nem na minha. Não pensar em sua morte, padecida por mim, e com tantas circunstâncias de atrocidade e amor, é ingratidão indigníssima; mas não pensar pelo menos em minha salvação e em minha morte, se não merece nome destituído, de fé, certamente é destituído de qualquer razão e juízo, mesmo de todo aquele imperfeitíssimo amor, que antes da fé, e sem ela, acompanha a natureza, até nas criaturas irracionais, e quase até nas insensíveis. Cristo, porque prevê que dali a trinta e três anos há de morrer, entristece-se naturalmente, aflige-se, angustia-se; e eu, sabendo com certeza que hei de morrer, não sei se neste ano, se neste mês ou neste dia, não me entristeço, nem penso nisso! Quando Deus fulminou a sentença de morte contra Adão e seus descendentes, disse: Donec revertaris in terram de qua sumptus es[20] — não assinalando termo, nem tempo de ano, nem dia, nem hora, para que aquele donec suspenso e indeterminado, como notou Ruperto, tivesse sempre ao homem solícito, em vela e cuidado: e que meus cuidados e desvelos todos se empreguem na vida e para a vida! Cristo, que tem ao céu seguro, como senhor e dono: Sciens guia a Deo exivit, et ad Deum vadit[21] – não tendo que duvidar ou cuidar de sua salvação, cuida toda a vida na minha! E eu, que tantos anos vivi esquecido dela, não cuidarei de minha salvação sequer durante uma hora cada dia, sabendo com certeza que mereci o inferno, e que quanto menos cuido nele tanto mais tenho o céu mais duvidoso! Se me causam tédio e horror estes pensamentos tristes e temerosos, muito mais triste e muito mais temível coisa é não pensar. Oh! se Cristo derramara sobre mim ou uma gota daquele sangue, que sua, e corre até a terra, ou uma fagulha daquela tristeza, que assim o faz suar!
Consideremos, porém, o que torna mais admirável esta tristeza: Coepit contristari et moestus esse. – Para Cristo se entristecer – contristari – tinha tão urgentes e tão poderosas causas, quantas eram os tormentos, as dores e a vergonha de sua morte, e as ingratidões com que os homens, não só não haviam de querer tirar proveito dela, mas nem sequer pensar nela. Contudo, para não entristecer-se, nem estar triste, tinha ainda maiores causas, e não só as repugnâncias do afeto, senão ainda da mesma natureza, e sobre a natureza. Esta mesma alma que diz: Tristis est anima mea – foi bem-aventurada desde o primeiro instante da Encarnação, e, como bem-aventurada, não só cheia daqueles gozos e alegrias inefáveis, que resultam da vida e posse do Sumo Bem, mas ainda incapaz naturalmente de qualquer tristeza, de qualquer pena, de qualquer dor. E, contudo, no momento em que Cristo teve diante dos olhos a sua morte e a nossa salvação, podendo afastar livremente este pensamento e este cuidado, não o quis fazer; e podendo, antes, devendo naturalmente, junto com o mesmo pensamento e cuidado, não receber dor nem conceber tristeza, e gozar inteiramente os gostos e delícias de bem-aventurado, julgou, porém, que sua morte e nossa salvação eram duas causas tão graves e tão relevantes, que para pensar e cuidar nelas, como convinha, não bastava somente pensar e cuidar muito e sempre, mas pensar com tristezas, e cuidar com temores, com aflições, com íntima dor e angústia, e, para isso, usar de toda sua onipotência, e fazer o mais estupendo milagre que jamais se viu, partindo, e como que dividindo a mesma alma indivisível ao meio, de sorte que a parte superior no mesmo tempo estivesse gloriosa, e a inferior atormentada e triste: Contristari et moestus esse.
Super montes stabunt aquae (SI. 103, 6) – disse Davi: As águas estarão paradas e suspensas sobre os montes. – As águas naturalmente descem dos montes para os vales; e estar paradas e suspensas sobre os montes, contra o peso natural, não pode ser sem milagre, maior ainda que aquele em que se suspenderam as águas do Jordão, quanto é maior o declive de um monte a um vale; e este foi o milagre que se viu na alma de Cristo, e naquele rio de deleites, não do paraíso terrestre, mas celeste: Fluminis impetus laetificat civitatem Dei[22]. – Os montes eram a parte superior da alma de Cristo, o entendimento e a vontade; os vales eram as potências inferiores, e a mesma vontade e o mesmo entendimento, porque não só padeceram aquela tristeza as potências do corpo, senão também a da alma: Tristis est anima mea – e todas aquelas correntes de glória, que naturalmente haviam de transbordar, e alagar a parte inferior da alma, ficaram milagrosamente suspensas, pesando, para a parte inferior, sem contudo ultrapassá-la. Tão grande foi o milagre como o peso:Aeternum gloriae pondus[23] – disse São Paulo; e todo este peso eterno e imenso se suspendeu, não eternamente, mas por todo o tempo da vida de Cristo até sua morte: Tristis est anima mea usque ad mortem: sequestrata delectatione immortalitatis aeternae, taedio nostrae mortalitatis afficitur: Seqüestrada – diz Ambrósia douta e propriamente – porque o seqüestro não priva para sempre dos bens seqüestrados, mas suspende o uso, dos mesmos bens. E assim estava a alma de Cristo, padecendo o seqüestro de sua glória, embargada pelos cuidados de sua morte e de nossa salvação, e sucedendo, em lugar dos gozos, as aflições, em lugar das alegrias, as tristezas, em lugar das glórias, as penas.
De Caleb, pai de Axa, diz o texto sagrado: Dedit ei irriguum superius et irriguum inferius (Jos. 15, 19): que lhe deu seu Pai o regadio superior e o inferior. – Assim à alma de Cristo seu eterno Pai. Deu-lhe o regadio das delícias e glórias do céu, tanto para que as gozasse abundantissimamente a parte superior de sua alma beatíssima, como a parte inferior dela; mas ele, com um perpétuo milagre, regada imensamente, e toda embebida em glória a parte superior, construiu uma barreira milagrosa, e mais forte que toda a natureza, para que as correntes do regadio superior não passassem a regar a parte inferior de sua alma, ficando esta seca, esterilizada e tristíssima, para que nascessem nela somente as espinhas agudas, as canas humilhantes e a cruz terrível, que em um perpétuo parásceve a estivessem pungindo e atormentado por toda a vida. Aqui se viu renovada, ou verdadeiramente interpretada, aquela primeira e famosa divisão – muito mais admirável que a do Mar Vermelho, da qual se diz no primeiro capítulo do Gênesis: Dixit Deus: Fiat firmamentum in media aquarum: et dividat aquas ab aquis (Gên. 1, 6): Faça-se um firmamento tão forte, que divida totalmente umas águas de outras, e suspenda e detenha as de cima, para que não se ajuntem com as de baixo: Fecitque Deus firmamentum, et divisit aguas, quae erant sub firmamento, ab his, quae erant super firmamentum, vocavitque firmamentum caelum[24]. – Assim também Cristo, com uma única circunstância diferente: que aquele firmamento foi feito por Deus no segundo dia da Criação do mundo; este, porém, foi feito por Cristo, não ao segundo dia, nem à segunda hora, senão no primeiro instante de sua conceição: Divisit aquas ab aquis: – Dividiu umas águas de outras; e quais águas? Quae erant sub firmamento ab his quae erant super firmamentum: Dividiu as águas que estavam na parte superior, que eram aquela torrente de glórias, de gozos, de deleites, de que diz o profeta: Torrente voluptatis tuae potabis eos[25] – daquelas águas tristes, obscuras e temerosas, das quais, por boca do mesmo profeta, disse o mesmo Cristo: Salvum me fac, Deus quoniam intraverunt aquae usque ad animam meam[26] – podendo nos dizer do firmamento, com que se dividiam na alma de Cristo umas e outras águas: Et vocavit firmamentum caelum[27] – porque era aquela barreira, aquela estrada ou muralha de diamante um céu de duas faces prodigiosamente contrárias. Da parte superior, um céu sereno, resplandecente e glorioso; da parte inferior, um céu obscuro, funesto, triste, irado, carregado de nuvens, de sombras espessas e trevas horrendas, troando horrivelmente, e chovendo raios. Assim estava a alma de Cristo naquela perpétua noite, na qual jamais lhe amanheceu um dia claro, vendo-se milagrosamente nela juntamente gloriosa e dolorosa, o que se vê – ou não se vê – na lua no último momento de uma de suas fases. Naquele último momento a lua tem aparências tão diversas e contrárias, que pela parte voltada para o céu está toda alumiada, sem a menor linha de sombra, e pela parte da terra está toda tenebrosa e escura, sem a menor aparência ou rastro de luz. Tal a alma de Cristo: na parte superior, toda gloriosa; na inferior, toda triste.
Pois, se a morte própria, não só próxima, mas distante, só porque é morte certa, embora futura; e se a salvação não própria, senão alheia, só porque é salvação de uma alma imortal e eterna, é merecedora de tal atenção e cuidado, que cause tristezas, angústias e agonias em toda a vida, e faça suar sangue; e que um homem-Deus e uma alma bem-aventurada, incapaz naturalmente de padecer, faça milagres para poder sofrer, e temer, e se entristecer até à morte, que devemos – outra vez – fazer, os que sabemos com a mesma certeza que havemos de morrer, e que de morrer bem ou não depende a salvação eterna, não alheia, senão própria? E que seria se, como o cuidado de Cristo fez milagres para se entristecer, nosso descuido e desatenção faça milagres para não se entristecer, e para divertir e esquecer esses cuidados? Fala Deus com Babilônia, cercada pelos medos e persas, por dois potentíssimos reis, Dario e Ciro, e, admirado, dizia: Babylon, dilecta mea, posita est mihi in miraculum (Is. 21, 4): Babilônia, a quem tanto amo, é um milagre para mim, Deus. – E que milagre era este de Babilônia? Continua o profeta: Comedentes et bibentes surgite principes, arripite clypeos (ibid. 5). – No mesmo tempo de um cerco tão apertado e tão forte, e na mesma noite em que Babilônia se tornou cativa e destruída, estava o rei Baltasar e seus príncipes fazendo um banquete, alegrando-se, quando tanto tinham por que se entristecer; folgando, quando tanto tinham por que temer; e todos entregues ao esquecimento e ao descuido, quando tanto tinham em que pensar. Oh! Babilônias do mundo! Oh! Baltasares! Oh! príncipes! Estamos cercados e sitiados por dois tiranos tão poderosos, a morte e o demônio: um, que nos combate pela muralha tão fraca da vida; e outro pela salvação, tão pouco segura: e nós comedentes et bibentes, sem cuidado, sem atenção, sem memória, quanto mais tristeza.
Nem por isso nos livramos de tristezas, de angústias, de aflições. Tristes sim, aflitos sim, angustiados sim, mas por que angustiados, por que aflitos, por que tristes? Oh miséria! A maior miséria do mundo é considerar por que se entristecem os homens, e por que não se entristecem: Doluit Jonas, et contristatus est super hederam, guia exaruit[28]. – Vede de que se entristecia Jonas, e de que não se entristecia. Entristecia-se porque se lhe secou a hera, e não se entristecia porque se havia de soverter Nínive, e perecer tantas almas. A salvação de tantas almas não o entristece, e um pouco de mais ou menos comodidade lhe causa tanta tristeza, que dizia: Bene ego irascor usque ad mortem[29].
Oh! senhores! Pelo menos não sejam nossas tristezas tão mal empregadas. Se é preciso haver tristezas, sejam dignas de um cristão: Quare tristis incedo, dum affligit me inimicus[30]? – dizia Davi. – O inimigo que o afligia era el-rei Saul, que tirava a Davi a coroa, e com infinitas máquinas de astúcia e poder tratava de tirar-lhe a vida; e, contudo, parecia-lhe àquele generoso coração que eram indignas estas tristezas de quem tinha fé para conhecer, e pecados para chorar, e outra vida, e outro reino, que mais importava: Quare tristis incedo?
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
[1] Começou a entristecer-se e a angustiar-se (Mt. 26, 37).
[2] Pai, se é possível, passe de mim este cálix (ibid. 39).
[3] Começou a ter pavor e a angustiar-se (Mc. 14, 33).
[4] Começou a comover-se e a angustiar-se em extremo (ibid.).
[5] A minha alma se acha numa tristeza mortal (ibid. 34).
[6] Por isso, entrando no mundo, disse: Tu não quiseste hóstia nem oblação, mas tu me formaste um corpo (Hebr. 10, 5).
[7] Na cabeceira do livro está escrito de mim, para fazer a tua vontade, Deus meu, eu o quis; e no íntimo do meu coração desejei se cumprisse a tua lei (SI. 39, 8 s).
[8] Então disse: Eis aqui venho (ibid. 8).
[9] Vim, venho, virei.
[10] Já um pequenino se acha nascido para nós, e um filho nos foi dado a nós, e foi posto o principado sobre o seu ombro (Is. 9, 6).
[11] Porque aparelhado estou para os açoites, e a minha dor está sempre diante de mim (SI. 37, 18).
[12] Prostrou-se com o rosto em terra (Mt. 26, 39).
[13] Mas tu me formaste um corpo (Hebr. 10, 5).
[14] Mas tu me perfuraste o corpo (ibid.).
[15] Saí, filhas de Sião, e vede ao rei Salomão com o diadema de que sua mãe o coroou no dia do seu casamento (Cânt. 3, 11).
[16] A minha alma se acha numa tristeza mortal (Mt. 14, 34).
[17] Voavam e velavam (Is. 6, 2).
[18] Tendo tomado consigo a Pedro, Tiago e João, começou a entristecer-se e a angustiar-se (Mt. 26, 37).
[19] Falavam da sua saída deste inundo, que havia de cumprirem Jerusalém (Lc. 9, 31).
[20] Até que te tornes na terra de que foste tomado (Gên. 3, 19).
[21] Sabendo que saíra de Deus, e ia para Deus (Jo. 13, 3).
[22] O ímpeto do rio alegra a cidade de Deus (SI. 45, 5).
[23] Um peso eterno de glória (2 Cor. 4, 17).
[24] Fez Deus o firmamento, e dividiu as águas que estavam por baixo do firmamento, das que estavam por cima do firmamento, e chamou Deus ao firmamento céu (Gên. 1, 7 s).
[25] E os farás beber na torrente das tuas delicias (SI. 35, 9).
[26] Salva-me, ó Deus, porque as águas têm entrado até a minha alma (SI. 68, 1).
[27] E chamou ao firmamento céu (Gên. 1. 8).
[28] Enfadou-se Jonas, e se entristeceu pela hera, porque se secou (palavras contidas no texto sagrado, em diversa forma).
[29] Tenho a razão de me enfadar até ao ponto de desejar a morte (Jon. 4, 9).
[30] Por que ando triste, quando me aflige o meu inimigo(SI. 42. 2)?