Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Voz compadecida, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

VOZ COMPADECIDA

PRÁTICA ESPIRITUAL DA CRUCIFICAÇÃO DO SENHOR,

Feita no Colégio da Companhia de JESUS, em São Luís do Maranhão.

Factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis[1].

A transformação e mudança do Monte Calvário. O Monte Calvário e os mais celebrados montes que há no mundo. Os nossos corações, lugares mais infames que o Monte Calvário. O tudo de Deus neste mundo.

Temos enfim, cristãos, ao padecente JESUS no Monte Calvário, que este foi o lugar que aquele Senhor escolheu para teatro daquela tragédia, para campo daquela batalha, para templo daquele sacrifício: Para teatro daquela tragédia, em que o Amã, o que tinha a maior graça de el-rei Assuero, havia de ser pregado na cruz que estava aparelhada para Mardoqueu. Para campo daquela batalha em que Davi, com um báculo e com cinco pedras, havia de derrubar o gigante, e cortar-lhe a cabeça com sua própria espada. Para templo daquele sacrifício, em que o inocente Isac, depois de levar a lenha às costas, havia de ser posto sobre ela, para ser sacrificado por seu próprio pai, não por culpas, que as não tinha, mas por obediência: Factus Obediens usque ad mortem. – Era o Monte Calvário até este dia o mais infame lugar que havia no mundo; mas, depois que se levantou nele aquela cruz e aquele crucificado, foi o mais glorioso e o mais santo. Os mais celebrados montes que há no mundo é o Monte Olimpo, o Monte Sinai, o Monte Tabor e o Monte Olivete. Do Monte Olimpo criam fabulosamente os antigos que era a coluna que sustentava o céu: e tal é verdadeiramente o Monte Calvário, porque, se ele não fora, não houvera céu para nós. No Monte Sinai deu Deus aos homens os dez preceitos da lei; mas no Monte Calvário se pagaram os pecados que se tinham cometido contra a mesma lei, e se cometeram depois, e se cometerão até o fim do mundo. Do Monte Olivete subiu Cristo ao céu; mas no Monte Calvário levantou a escada por onde nós também subíssemos, que é a cruzem que hoje foi pregado. No Monte Tabor mostrou Cristo a poucos a sua glória, mas no Monte Calvário se pagou o preço dela, que foi o seu sangue, para que a gozássemos todos. Oh! quanta confiança dá esta transformação do Monte Calvário ao meu coração, de que possa vir a ter a mesma mudança! O Monte Calvário era o mais infame e horrendo lugar que tinha o mundo; mas, se bem repararmos, cristãos, os nossos corações ainda são lugares mais infames e mais horrendos: De corde exeunt cogitationes malae, homicidia, adulteria, fornicationes, furta, falsa testimonia, blasphemiae (Mt. 25, 19): Do coração saem os homicídios, os adultérios, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias, e todos os pecados. – De sorte que verdadeiramente são piores, e mais infames e horrendos os nossos corações que o Monte Calvário, porque no Monte Calvário castigam-se os delinqüentes, nos nossos corações formam-se os delitos; no Monte Calvário castigam-se os matadores, nos nossos corações formam-se os homicídios: De corde exeunt homicidia; no Monte Calvário castigam-se os ladrões, nos nossos corações formam-se os furtos: De corde exeunt furta; no Monte Calvário castigam-se os adúlteros, nos nossos corações formam-se os adultérios: De corde exeunt adulteria; no Monte Calvário castigam-se os perjuros e blasfemos, nos nossos corações formam-se as blasfêmias e os falsos testemunhos: De corde exeunt falsa testimonia, blasphemiae. – Eis aqui como os nossos corações são lugares mais infames e mais horrendos que o Monte Calvário. Mas, assim como Cristo crucificado transformou o Calvário de monte infame e abominável em monte venerável e santo, assim os nossos corações, de lugares de abominação e torpeza, se transformarão em lugares de pureza e santidade, se nós pusermos hoje, e fixarmos bem neles um Cristo crucificado. Oh! que próprio Calvário para um crucifixo um coração contrito e arrependido! Por que cuidais que se pôs Cristo em uma cruz, senão para levar a si nossos corações? Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad me ipsum (Jo. 12, 32): Quando for crucificado – diz o Senhor – tudo hei de levar após mim. – E qual é o tudo de Deus neste mundo, senão o coração do homem? Fili, praebe mihi cor tuum (Prov. 23, 26): Filho, dá-me o teu coração – não quero outra coisa. E haverá ainda quem em tal dia, e em tal hora, e em consideração de tal mistério resista a Deus, e lhe negue o coração? Triste de ti, desgraciado coração, se a tal dureza e a tal obstinação chegaste. Mas vai ouvindo o que passa no Calvário, que ainda que sejas tão duro como as pedras dele, tu te abrandarás.

§I

As circunstâncias e publicidade dos tormentos do Calvário. Os ecos da crucifixão no coração lastimoso da Virgem Mãe.

Posta a cruz naquele lugar do monte, onde havia de ser levantada, enquanto uns abriam a cova, e outros preveniam os instrumentos, mandaram ao Senhor que se despisse, e esta foi a terceira vez em que o Senhor foi hoje despido de suas vestiduras, não para as tornar a vestir, como das outras vezes, mas para nunca mais se vestir. Se no pretório custou tanto, como vimos, àquela humanidade sagrada este desamparo de sua modéstia, já vedes que seria na publicidade do Monte Calvário, em tal cidade, em tal ocasião, em tal hora? Mas todas estas circunstâncias ordenou e dispôs o mesmo Senhor que concorressem juntas, para que fosse mais pública a sua infâmia e a sua afronta, e para que fosse maior a confusão das nossas soberbas. Para nascer, escolheu o lugar pequeno, uma cova retirada, e o silêncio da meia-noite; para morrer, escolheu uma cidade como a de Jerusalém, onde concorriam as nações de todo o mundo, para que todo o mundo soubesse suas afrontas; escolheu um monte alto e descoberto, onde de todas as partes, ao perto e ao longe, pudessem ser vistas; escolheu o tempo e ocasião da Páscoa, em que se ajuntavam em Jerusalém as famílias de todo o reino, para que em todo se divulgassem; escolheu a hora do meio-dia, em que fossem mais claras, mais notórias e mais patentes a todos. E que depois de um exemplo como este ainda ficasse soberba no mundo! E que depois de um exemplo como este ainda dure no mundo o nome de honra! E que depois de um exemplo como este não sejam as injúrias e afrontas estimadas e pretendidas! Desenganemo-nos, fiéis, que não temos fé; desenganemo-nos, cristãos, que não somos cristãos.

Despido, e com os olhos no chão o afrontadíssimo JESUS, mandam-lhe que se deite na cruz. Levantou o Senhor os olhos ao céu, pôs os joelhos em terra, cruzou as mãos sobre o peito, oferecendo-se ao sacrifício, e, fazendo logo com grande sujeição e humildade o que lhe mandavam, deitou-se sobre a cruz, estendeu os braços sobre os braços, e os pés para a parte dos pés, e a cabeça sobre os espinhos. Esta foi a cama em que receberam para morrer aquele corpo tão cansado, tão chagado e tão lastimado, que, quando não fora de Deus, bastava ser do homem mais vil para que o tratassem com mais humanidade os homens; mas, se não há piedade na terra, no céu a haverá. Eterno Padre, já Isac está deitado sobre à lenha, já a espada está desembainhada: agora é o tempo de vir e bradar o anjo, e de ter mão no golpe; já está conhecida a obediência de vosso Filho, já mostrou que estima mais a vossa vontade que a sua vida. Se é necessário sangue para a Redenção, já está derramado muito mais do que basta; tenha-se mão no golpe, Senhor, suspenda-se. Mas ai, que os algozes têm nas mãos os cravos! Já vejo levantar os martelos. Ai, cristãos, que perdoou Deus a Isac, e não se quer agora parecer consigo, nem perdoar a seu filho! Execute-se o golpe, diz a divina justiça: preguem-se os pés, preguem-se as mãos, consume-se o sacrifício. Um dos mesmos cravos com que foi crucificado Cristo vi eu e beijei: é da grossura quase de um dedo, e de comprimento pouco maior. Com estes cravos começaram a pregar primeiro a mão esquerda, depois a direita, ultimamente os pés, estirando aquele sagrado corpo com tanta força e desumanidade, que se lhe contavam os ossos: Foderunt manus meas et pedes meos, dinumeraverunt omnia ossa mea[2]. – E como nestas partes extremas do corpo humano se ajuntam e rematam os músculos e os nervos de todo ele, não se pode facilmente dizer quão excessivas foram as dores que o Senhor padeceu com tão cruéis e tão repetidos golpes. Diz a Sagrada Escritura que, quando se fabricou o templo de Salomão, não se ouviu em todo ele golpe de martelo. Ah! Templo divino, figurado naquele mesmo templo, que agora, quando vos desfazem, se ouvem tantas e tão cruéis marteladas! Faziam eco pelos vales daquele monte, mas muito maior eco faziam no coração da lastimada Mãe: no corpo do Filho davam as marteladas divididas, porque umas feriam os pés, outras a mão direita, outras a esquerda; porém, na Senhora todas batiam e descarregavam juntas no mesmo lugar, porque todas feriam o coração. Com todos os instrumentos do Calvário era martirizado o coração da Senhora, e todos feriam o coração da Mãe, ainda os que não feriam o corpo do Filho; por isso Simeão chamou a todos espada: Et tuam ipsius animam pertransibit gladius[3]. – Se repararmos nos instrumentos da Paixão de Cristo, acharemos que nenhum dele foi espada; pois, se na Paixão não houve espada, como diz Simeão à Senhora que a espada da Paixão de seu Filho lhe traspassaria a alma? Et tuam ipsius animam pertransibit gladius? – É porque todos os instrumentos que concorreram na Paixão do Filho foram espada para o coração da Mãe. Para o corpo do Filho a cruz era cruz, os cravos eram cravos, os martelos eram martelos; mas para o coração da Mãe a cruz era espada, os cravos eram espada, os martelos eram espada, porque todos penetravam suas entranhas, é lhe atravessavam o coração.

§ II

A crucifixão do bom cristão. Os cravos com que nos havemos de crucificar: A horrenda maldade dos que tornam a crucificar a Jesus.

Assim crucificavam juntamente a Mãe os que crucificavam o Filho: e que justa coisa fora, cristãos, que nos crucificaram também a nós, e que todos nos crucificáramos aqui hoje com o nosso crucificado JESUS! Olhai o que diz São Paulo: Qui sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis (Gal. 5, 24): Os que são de Cristo, crucificaram a sua carne com todos seus vícios e com todos seus apetites. – Cristãos, pergunte-se agora cada um a si mesmo, examine sua consciência, e veja se tem a sua carne crucificada com todos seus vícios e com todos seus apetites, ou não? Os que acharem que têm a sua carne assim crucificada consolem-se muito, e dêem muitas graças a Deus, porque é certo que são de JESUS Cristo: Qui sunt Christi; mas os que acharem que não têm a sua carne assim crucificada, que ainda mal, porque serão muitos, desconsolem-se, entristecem-se, temam, tremam, e tenham-se por infelizes e desgraciados, porque não são de JESUS Cristo. Oh! que desgraça tão grande minha e vossa! Que vós vos chameis cristãos, e que não sejais de Cristo! Que eu me chame da Companhia de JESUS, e que não seja de JESUS! Mas confiança, cristãos da minha alma, que estamos em bom dia: agora estão crucificando a Cristo, crucifiquemo-nos com ele na mesma cruz. Vede o que dizia de si o mesmo São Paulo: Christo confixus sum cruci (Gal. 2, 19): Eu estou crucificado com Cristo na sua cruz. – Crucifiquemo-nos, cristãos, com Cristo na sua cruz, e não nos pareça que será estreita para tantos, que, onde coube Deus, todos caberemos. Os cravos com que nos havemos de crucificar são aqueles que pedia Davi a Deus: Confige timore tuo carnes meas (SI. 118, 120): Senhor, pregai a minha carne com o vosso temor. – Oh! que três cravos tão fortes os do temor de Deus! Temor de o ter ofendido, temor de o estar ofendendo, temor de o poder ofender. O temor de o ter ofendido traz consigo o arrependimento de todos os pecados passados; o temor de o estar ofendendo traz consigo a emenda de todos os pecados presentes; o temor de o poder ofender traz consigo o propósito firme para todos os pecados futuros. O primeiro cravo do temor de Deus prega-o um algoz, que se chama pensamento da morte; o segundo cravo do temor de Deus prega-o outro algoz, que se chama pensamento do juízo; o terceiro cravo do temor de Deus prega-o outro algoz, que se chama pensamento do inferno. Deite-se o cristão na cruz de Cristo, entregue-se nas mãos destes três pensamentos, deixe-os dar uma martelada e outra martelada na consideração, e logo verá como acha a sua carne crucificada com todos seus vícios e apetites, de modo que não tenham pés para dar passo, nem mãos para fazer ação, que sejam em desserviço de Deus. Mas ai! Mas ai! E tomara que este ai chegara às quatro partes do mundo. Em vez de nós nos crucificarmos com Cristo, como disse São Paulo, nós somos os que crucificamos outra vez a Cristo, como diz o mesmo apóstolo: Rursum crucifigentes Filium Dei[4]. – Todas as vezes que pecamos, tornamos, quanto é da nossa parte, a crucificar ao Filho de Deus, porque ao Filho de Deus crucificaram-no os pecados de todas as idades, os presentes, os passados e os futuros; e estes futuros são os nossos. Pois, como nos atrevemos a crucificar ao mesmo JESUS? Para que conheçais quão horrenda maldade é esta, e quão indigna de todo perdão, ouvi ao mesmo Senhor.

Quando tão cruelmente estavam crucificando ao bom JESUS, levantou o Senhor a voz ao Eterno Pai, e disse assim: – se há algum tão mau cristão neste auditório, que ainda não tenha perdoado de todo o coração a seus inimigos, por maiores agravos e afrontas que tenha recebido deles, ouça estas palavras do Filho de Deus no meio das maiores suas: Pater, dimitte illis: non enim sciunt quid faciunt (Lc. 23, 34): Pai, perdoai a estes que me crucificam, porque não sabem o que fazem. – Ah! miserável de mim, e de todos os que tão mal nos aproveitamos da fé e do conhecimento que Deus nos tem dado! As mesmas palavras de Cristo, que desculpam aos que o crucificavam, nos culpam e nos condenam a nós. Os que crucificaram a Cristo no Monte Calvário merecem perdão, e têm desculpa, porque não sabiam o que faziam, nem conheciam a quem crucificavam; mas, quando crucificamos a Cristo com nossos pecados, não temos desculpa nenhuma, e somos totalmente indignos de perdão, porque cremos que Cristo é Deus, e cremos que morreu por nós, e cremos que nos há de vir ajulgar, e, contudo, crucificamo-lo. Se o mesmo Cristo, advogado nosso, e que tanto nos ama, não achar razão com que nos defender, vede que será de nós. Valha-nos sua misericórdia infinita, que só por ser infinita nos pode valer.

§ III

As quatro fontes do Monte Calvário e a fonte do Paraíso. O tormento dos cravos. A companhia dos ladrões. O milagre do sol. A conversão dos judeus e a nossa conversão.

Pregado, enfim, na cruz o nosso amoroso e pacientíssimo JESUS, tomaram os algozes a cruz em peso, e ficou arvorado no Monte Calvário o estandarte de nossa Redenção, com o verdadeiro crucifixo. Oh! que dor! Oh! que tormento! Oh! que aflição! Oh! que ânsia foi a daquela humanidade sagrada neste rigorosíssimo ato! Caiu a cruz de golpe na cova, que era funda, estremeceu, e ficou suspenso o corpo com todo o peso, e com este abalo de todos os membros e de todas as veias, as quatro fontes de sangue, que estavam abertas, começaram a correr com maior ímpeto, e a regar a terra. Da fonte do paraíso terreal, diz a Sagrada Escritura que se dividia em quatro partes, para regar a superfície de toda a terra. Que quatro fontes são estas, senão as daquele corpo, sagrado paraíso do segundo Adão, JESUS?

Correm estas quatro fontes no Monte Calvário, e nele se dividem em quatro rios por todas as quatro partes do mundo, e não há terra a quem não alcancem: todos os que aqui estamos temos parte naquele divino sangue – e que fora de nós se a não tivéramos – o fim para que correm estas fontes e estes rios é para que nossas almas leprosas se lavem, e fiquem limpas da lepra de nossos pecados: Qui dilexit nos, et lavit nos a peccatis nostris in sanguine suo[5]. – Se Naamão Siro, com se lavar nas águas do Jordão, ficou limpo da sua lepra, quanto mais ficarão limpas as nossas almas da lepra de nossos pecados, lavando-nos nestes sagrados rios? Ora pois, almas cristãs, cheguemos, cheguemos àquelas fontes. Os que se sentem mais amados, cheguem à fonte da mão direita; os que se sentem mais desfavorecidos, cheguem à fonte da mão esquerda; os que se sentem mais indignos, humilhados, cheguem-se às duas fontes dos sagrados pés, que correm pelo mesmo canal em maior cópia. Lavai, cristãos, e cada um lave aquele vício que mais afeia a sua alma: lavem-se nesta fonte de humildade as soberbas; lavem-se nesta fonte de pureza as desonestidades; lavem-se nesta fonte de liberalidade as cobiças e avarezas; lavem-se nesta fonte de caridade os ódios, as invejas, as vinganças; lavem-se nesta fonte de toda a santidade todos os nossos pecados e maldades do mundo: Amplius lava me ab iniquitate mea (SI. 50, 4): Lavai, Senhor, a minha alma uma e outra vez, com um e outro sangue dessas fontes. Com o sangue dessa mão direita, à qual no dia do Juízo haveis de ter os vossos predestinados; com o sangue da mão esquerda, que está mais perto desse amoroso coração; com o sangue desses santíssimos pés, que foram o refúgio da Madalena e o de todos os pecadores.

Ah! Cristãos, que quanto mais corre o sangue, tanto mais enfraquece e se aflige aquele atormentadíssimo corpo! Oh! que afligido, que ansiado, que angustiado vos vejo, meu JESUS! Se o Senhor se queria firmar sobre os cravos dos pés, lastimavam-se mais os pés; se se queria suspender sobre os cravos das mãos, rasgavam-se mais as mãos; se se queria arrimar à cruz, cravavam-se mais os espinhos: faltavam-lhe as forças para o trabalho, faltava-lhe o sangue para o alento, faltava-lhe o ar para a respiração, e até a terra, que não falta aos bichinhos dela, faltava ao Criador do céu e da terra. Pode-se considerar mais extrema miséria e desamparo? Que morra o Filho de Deus, e que o matem os homens, e que nem sete pés de terra, sobre que morrer, lhe concedam! Oh! extremo de ingratidão, só igual ao extremo de tal amor!

Levantado o Senhor na cruz, levantaram também as outras duas, em que estavam crucificados os dois ladrões, e ficou um à mão direita, outro à esquerda de Cristo, para que os que o vissem naquela companhia o julgassem por cúmplice dos mesmos delitos, e assim era: passavam os caminhantes que vinham para Jerusalém, viam aquelas cruzes levantadas no Calvário, perguntavam quem eram os crucificados, e por que causa, e respondiam-lhes que eram três ladrões que saíram a justiçar. Os que estavam olhando desde os muros da maldita cidade, os que estavam no Calvário, e os caminhantes, que passavam, todos, dizem os evangelistas que blasfemavam ao Senhor: só o sol acudiu pelo crédito de seu Criador nesta ocasião. Tanto que o Senhor foi levantado na cruz, no mesmo ponto se escureceu o sol, e ficou o mundo todo em trevas: Tenebrae factae sunt in universam terram (Lc. 23, 44). – Admirou-se São Dionísio Areopagita, e admirou-se o mundo todo deste tão notável eclipse; mas o que foi mais para admirar é que este eclipse tão milagroso, estas trevas tão notáveis e prodigiosas não alumiaram os entendimentos, e não deram luz aos olhos daquele povo cego e obstinado. Quando Cristo fazia milagres, quando dava vista aos cegos, saúde aos enfermos, ou vida aos mortos, diziam que não criam nele, porque não fazia milagres do céu: Quaerentes ab illo signum de caelo[6]. – Pois, se agora vedes um tão extraordinário milagre do céu, e em tal ocasião, por que não credes, por que não vos converteis? Isto é o que me faz admirar, isto é o que me faz tremer, e o que deve atemorizar e encolher muito a todos. Sabeis, cristãos, por que não se converteram nem com esse último milagre? É porque lhes faltou o auxílio e graça eficaz de Deus, a qual eles desmereciam pelos pecados passados, e morreram neles, como o mesmo Cristo lhes tinha profetizado: In peccato vestro moriemini[7]. – Cuidamos que temos a conversão certa todas as vezes que quisermos? E enganamo-nos. Para um homem se converter é necessário concorra Deus com a sua graça, e o homem com o seu alvedrio; e porque Deus quer muitas vezes, e nós não queremos, também quando nós queremos Deus não quer. Cristãos, tratemos de nos aproveitar na vida, não guardemos a nossa conversão para a morte, que é muito arriscada. Dizei-me: podia haver dia mais privilegiado, e hora melhor, para morrer que esta do Monte Calvário? Não, não havia nem a haverá jamais. E como morreram dois homens que estavam ao lado de Cristo, nadando no dilúvio de seu sangue? Um, que foi o Bom Ladrão, disse: Domine, memento mei[8]e salvou-se; o outro morreu blasfemando de Cristo, e condenou-se. Pois, se de dois homens que morrem em companhia de Cristo; se de dois homens que morrem cobertos do sangue de Cristo quando lhe saía das veias; se de dois homens que morrem com o exemplo de Cristo nos olhos, e com as vozes de Cristo nos ouvidos; se de dois homens que morrem com o milagre do sol, e todos os que depois sucederam à vista; se de dois homens que morrem com a Virgem MARIA, advogada de pecadores, junto a si; se de dois homens que morrem no dia da maior misericórdia, e em que Deus esteve com os braços abertos, com as veias abertas, com o coração aberto, um só se salva, e o outro se condena, que será de vós, que não sabeis em que dia nem em que hora morrereis, nem se tereis convosco na mesma casa a companhia que vos ajude a merecer a condenação? Pecamos uma vez, e pecamos mil vezes, e continuamos nos nossos pecados, confiados em que Deus é de misericórdia, e todas as vezes que quisermos nos converteremos a ele: e é engano e tentação fortíssima do diabo, e a que tem no inferno todos os cristãos que lá estão ardendo. Meus irmãos da minha alma, lançar mão da inspiração quando Deus a dá; e se Deus a dá nesta hora, aproveitemo-nos dela, que não sabemos se será a última.

§ IV

O testamento do Senhor e a espada de duas pontas do Apocalipse. Por que razão na cruz não chamou Cristo mãe a sua Mãe, nem chamou pai a seu Pai? A piedade de devoção de filho e a última cláusula do testamento de Cristo.

Prometido o paraíso ao ladrão que se arrependeu, tratou o Senhor de se despedir, e de fazer seu testamento. Bens neste mundo, de que testar, não os tinha, porque nunca os tivera; e os pobres vestidos com que se cobria, que é só o que possuía, não os deixou nem os pôde deixar, porque pertenciam aos algozes, como vestidos de um homem justiçado, e já os tinham repartido e jogado diante de seus olhos; o que só tinha e lhe restava nesta vida, e desta vida, era uma Mãe, mais morta que viva, e um amigo, que de todos só lhe fora fiel. Olhou pois para a Mãe e para o Discípulo amado, e disse à Mãe: Mulher, eis aí o teu filho: e ao discípulo: Eis aí a tua mãe. – Que breves palavras, mas que agudas e lastimosas! Agudas e lastimosas para o coração da Mãe, agudas e lastimosas para o coração do Filho. No Apocalipse diz o mesmo São João, que agora estava ao pé da cruz, que viu sair da boca de Cristo uma espada, que era aguda de ambas as partes: Ultraque parte acutus (Apc. 1, 16): não tinha cabos esta espada, senão ponta para uma parte e para a outra. Que espada foi esta que saía da boca de Cristo, senão estas palavras últimas, que disse o Senhor à sua Mãe? Espada com ponta para fora, e espada com ponta para dentro: com ponta para fora, com que feria e magoava o coração da Mãe, a quem se diziam; e com ponta para dentro, com que feria e magoava o coração do Filho, que as dizia: Mulher, eis aí o vosso Filho, porque o filho que tínheis, já o não tendes. Mulher, vedes aí o vosso filho, que vos acompanhe e vos sustente, porque o Filho que até agora vos acompanhava, e em Nazaré vos sustentava com trabalho de suas mãos, já as não tem, porque as tem pregadas, e cedo não terá vida. Mulher, eis aí o vosso filho, porque não há bem que dure nesta vida: até agora éreis Mãe do Filho de Deus; daqui por diante sereis Mãe do filho do Zebedeu.

Considerai, almas devotas, qual seria a dor daquela tão amorosa e afligida Mãe ouvindo estas palavras; quanto lhe partiria o coração ver que em lugar do seu JESUS lhe davam outro filho! Quanto lhe magoaria a alma, que já o seu Filho lhe não dava o nome de mãe, senão o de mulher. Grande admiração e dúvida tem causado aos santos esta palavra, a qual se acrescenta mais, se advertirmos que também a seu pai tratou o Senhor com os mesmos termos. Viu-se o Senhor na cruz em tal extremo de aflição e desamparo, não só exterior no corpo, senão ainda interior na alma, que exclamou a seu Eterno Pai, dizendo: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me (Mt. 27, 46)? Deus meu, Deus meu, por que me desamparastes? – De maneira que pelos mesmos termos tratou Cristo na cruz a seu Eterno Pai e a sua Mãe Santíssima: ao Eterno Pai chamou-lhe Deus, e não lhe chamou Pai; à Mãe Santíssima chamou-lhe mulher, e não lhe chamou Mãe. Pois, por que razão, nesta hora em que as palavras costumam ser as mais enternecidas e as de maior amor, a seu Pai não deu o nome de pai, e a sua Mãe não deu o nome de mãe? A razão foi – diz Santo Ildefonso, respondendo à primeira destas questões – porque estava o Filho de Deus tão afrontado, e tão desonrado naquela cruz entre dois ladrões, que por não afrontar nem desonrar, como bom Filho, a seus pais, nem ao Pai quis chamar pai, nem à Mãe quis chamar mãe. Duas vezes na cruz chamou Cristo ao Pai pai, e duas vezes lhe chamou Deus; mas notai que quando lhe chamou seu, chamou-lhe Deus, e quando lhe chamou Pai, não lhe chamou seu. O Filho Pródigo, vendo-se naquele ignominioso estado, teve por coisa indigna chamar-se filho de seus pais: Non sum dignus vocari filius tuus[9]; assim Cristo neste caso, como se dissesse: – Não vos chamo pai, Deus meu; não vos chamo mãe, Mãe minha, porque neste afrontoso estado em que me vejo, não sou digno de me chamar Filho de tais pais; meu Pai por natureza é impecável, minha Mãe por graça é sem pecado; e eu, que tenho às minhas costas os pecados de todo o mundo, estou justiçado em uma cruz, como pecador e malfeitor: como me hei de atrever a chamar pai a tal Pai, nem chamar mãe a tal Mãe?

Não chamou Cristo mãe a sua Mãe, mas tratou-a naquela hora muito como filho, muito lembrado e agradecido, não só por satisfazer à obrigação de Filho, e dar exemplo aos filhos como, ainda na hora da morte, se hão de lembrar do remédio e amparo de seus pais, principalmente se são pobres, mas, para dar exemplo a todos os fiéis da devoção e piedade que devem ter com esta Senhora, e para acabar com este bem as obras de toda a sua vida. Assim o diz Santo Ambrósio: Denique hoc dixit, et emisit spiritum, consummans omne mysterium bono fine pietatis: Guardou o Senhor para a última cláusula da vida a piedade e recomendação de sua Mãe, para acabar a vida com este bom fim: Consummans omne mysterium bono fine pietatis. – Cristãos da minha alma, quereis bom termo para a vossa vida? Quereis acabar a vossa vida com bom fim? Sede muito devotos da Virgem MARIA, cujos mistérios estes dias celebramos. Tomemos todos nesta hora a Virgem MARIA por nossa mãe, e por todo nosso bem, como a tomou o Evangelista: Et ex illa hora accepit eam discipulus in suam[10]. – Ó pais, tomai esta Senhora por vossa Mãe: Ecce Mater tua. – Ó mães, tomai esta Senhora por vossa Mãe : Ecce Mater tua. – Ó filhos, tomai esta Senhora por vossa Mãe: Ecce Mater tua. – E adverti que os três primeiros meninos, que aqui começaram a entoar o terço do Rosário, já a todos três tomou a Senhora por verdadeiros filhos seus: um o tomou por filho Nossa Senhora do Carmo; outro o tomou por filho Nossa Senhora da Luz; outro o tomou por filho Nossa Senhora das Mercês.

§V

A última profecia da Paixão de Cristo: a esponja molhada em fel e vinagre. O último exemplo de Cristo. Por que inclinou o Senhor a cabeça ao expirar? O que se seguiu depois da morte do Senhor

Encomendada a Mãe Santíssima, não faltava por se cumprir em Cristo mais que a última profecia. Como todo o sangue do corpo de Cristo se tinha esvaído pelos açoites, pela coroa e pelas chagas dos cravos, era extrema a sede que o Senhor padecia, de que estava estalando; mas não por alívio dela, que bem sabia que lho não havia de dar a impiedade de seus inimigos, mas por dar cumprimento à profecia, disse o Senhor: Sitio (Jo. 19, 28): Tenho sede. – Acudiram logo com uma esponja molhada em fel e vinagre, aplicaram-na à boca do Senhor, a qual, tanto que gostou, disse: Consummatum est: Já tudo está acabado e consumado (ibid. 30). – Faltava só o fel e vinagre para complemento dos tormentos da Paixão do Senhor, porque todos os outros membros, todas as outras potências e sentidos tinham padecido seu tormento particular, só o sentido do gosto não. A cabeça estava atormentada com a coroa, as mãos e pés com os cravos, os ombros com a cruz, as costas com os açoites, os cabelos arrancados, a pele estava esfolada, as veias rasgadas, os nervos estirados, os ossos desconjuntados, o sangue derramado; a vida tinha padecido os tormentos na honra com as afrontas; a fazenda, nos vestidos, que era tudo o que possuía; a memória padecia na lembrança dos pecados passados; o entendimento, na consideração das tiranias presentes; a vontade, na dor das ingratidões futuras; os olhos tinham padecido na vista da desconsolada Mãe; os ouvidos, nas invejas e blasfêmias; o olfato, no cheiro dos horrores e corrupção do Calvário; o tacto, nas penas de todo o corpo: só faltava o tormento particular para o gosto, que foi o fel e vinagre, e neste se consumaram todos os tormentos: Consummatum est.

Tendo o Senhor assim consumado todas as ações e obrigações de Redentor, recolheu-se o Senhor consigo e com Deus no silêncio do seu espírito, esperando que acabasse de chegar a morte, e dando este exemplo para nos ensinar a morrer. Cristãos, quereis morrer cristãmente? Acabai antes de morrer: primeiro disse o Senhor: Consummatum est: Já se acabou tudo – e então esperou pela morte. O imperador Carlos V dava um governo a um seu grande capitão, e ele escusou-se, dizendo que queria meter tempo entre a vida e a morte, e queria acabar a vida antes de morrer. E o imperador pareceu-lhe tão bem este conselho, que o tomou para si. Cristãos, o que havemos de fazer na enfermidade e na morte, façamo-lo na saúde e na vida: examinemos muito de propósito nossa consciência; façamos uma confissão muito bem feita, como quem se confessa para dar conta a Deus; componhamos nossas coisas; digamos: Consummatum est – e então esperemos pela morte, como Cristo fez. Passado algum espaço neste profundo silêncio, levantou o Senhor a voz e os olhos para o céu, dizendo: Pater, in manus tuas commendo spiritum meum (Lc. 23, 46): Padre, em vossas mãos encomendo o meu espírito – e, inclinando a cabeça: Parai, que não é golpe esse para se levar de uma vez.

Perguntam os santos por que inclinou o Senhor a cabeça, e respondem alguns contemplativos que foi para o Senhor nos dar um sim universal para todas nossas petições. Pedis a Cristo crucificado vos perdoe vossos pecados? Sim. Pedis a um Cristo crucificado que vos livre das tentações do demônio? Sim. Pedis a um Cristo crucificado que vos acuda em todas vossas necessidades, ainda temporais? Sim. É possível, Senhor, que ainda que ajudei aos que vos crucificaram, ainda me fazeis participante do preço desse sangue? Sim. É possível, Senhor, que ainda que vos tenho ofendido tanto em minha vida, me recebereis nesses braços, que tendes abertos? Sim. É possível, Senhor, que ainda que eu seja tão infiel e tão ingrato, abrireis esse coração para me meter nele? Sim. Oh! bendito seja tal coração, benditos sejam tais braços, bendito seja tal sangue, bendita seja tal misericórdia! O que se seguiu depois de o Senhor inclinar a cabeça, não me atrevo eu, cristãos, a o pronunciar, nem me atrevo a o dizer; mas dir-vos-ei quem vo-lo diga. Quando um senhor está em passamento, os que estão nas salas de fora estão duvidosos e suspensos; mas, tanto que ouvem levantar o pranto, resolvem-se que expirou. Eu não vos digo outro tanto, cristãos; mas digo-vos que; tanto que o Senhor inclinou a cabeça, o véu do Templo se rasgou, as pedras se quebraram, as sepulturas se abriram, a terra tremeu, os montes se bateram uns com os outros, o mar, e todos os elementos, com estrondo horrendo, parece que queriam acabar o mundo, e acabar-se a natureza mesma de sentimento. Pois, se os elementos, cristãos, se as pedras duras, que não têm sentimento, mostram dor e sentimento na morte de seu Criador, sendo que não morreu por eles, nós, por quem morreu, e por quem padeceu tanto, como não se desfarão nossos corações de dor e contrição? Se choramos pelos pais, se choramos pelos amigos, que Amigo mais fiel? Se choram as esposas pelos esposos, que esposo, como aquele Esposo de nossas almas? Mas, já que as minhas vozes...

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística


[1] Feito obediente até à morte, e morte de cruz (Flp. 2, 8).

[2] Traspassaram as minhas mãos e os meus pés, contaram todos os meus ossos (SI. 21,17 s).

[3] Uma espada traspassará a tua mesma alma (Lc. 2, 35).

[4] Crucificando de novo ao Filho de Deus (Hebr. 6, 6).

[5] Que nos amou, e nos lavou dos nossos pecados no seu sangue (Apc. 1, 5).

[6] Pedindo-lhe que lhes fizesse ver algum prodígio do céu (Mc. 8, 11).

[7] Morrereis no vosso pecado (Jo. 8, 21).

[8] Senhor, lembra-te de mim (Lc. 23, 42).

[9] Não sou digno de ser chamado teu filho (Lc. 15, 19).

[10] E desta hora por diante a tomou o discípulo para sua casa (Jo. 19, 27).