Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Voz ascética, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

VOZ ASCÉTICA

COMENTO OU HOMILIA SOBRE O EVANGELHO DA

SEGUNDA-FEIRA DA PRIMEIRA SEMANA DE QUARESMA

Cum venerit Filius hominis, etc.[1].

§I

Por que razão Cristo, quando vem a julgar o homem, chama-se Filho do homem? Por que vem a julgar o Filho, e não o Padre, ou o Espírito Santo? A maior glória de um julgador. Como pode ser rigoroso o juízo do Filho de Deus enquanto homem?

Cum venerit Filius hominis. – Quando Cristo vem a julgar o homem, chama-se Filho do homem, porque há de ser tão reto o juiz, que até ao próprio pai há de condenar, se assim o pedir ajustiça. Grande louvor do juiz que, sendo Filho do homem, lhe entregam o juízo do homem. Tanto que Adão pecou, logo Deus, segundo seus decretos, ficou filho de Adão, e filho de Adão veio julgar a Adão, e o lançou, porque o merecia, do Paraíso. Leia-se o livro da geração de Cristo, e achar-se-ão nele muitos pais e avós seus, que o Senhor há de julgar e mandar ao inferno no dia do Juízo, e, o que mais é, até a S. JOSÉ e à Virgem MARIA há de julgar tão reta e desinteressadamente, que a nenhum há de dar um átomo de glória mais do que merecer.

Filius hominis. – Vem a julgar o Filho, e por que não o Padre, ou o Espírito Santo? Porque ao Padre atribui-se o poder, ao Filho o entender, ao Espírito Santo o querer, e no juízo não é bem que tenha lugar o poder nem a vontade, senão só o entendimento. Antes se há de advertir que, ainda que a onipotência, entendimento e vontade, que são as três potências que só há em Deus, sejam nele juntamente, o poder supõe vontade, a vontade supõe entendimento, e o entendimento não supõe nem vontade nem poder, porque há de obrar o entendimento, quando julga, tão livre de todos os respeitos, como se não tivera poder nem tivera vontade. A vontade abranda, o poder violenta, e o entendimento, entre o poder e a vontade, há de julgar tão absoluto, que nem haja poder que o obrigue, nem vontade que o dobre; que se não dobre ao poder, nem se obrigue à vontade. Mau foi o juízo de Pilatos: e por quê? Porque se levou do poder: Nescis guia potestatem habeo dimittere te, et potestatem habeo crucifigere te[2]?–Também se inclinou à vontade: Tradidit eum voluntati eorum[3]. – E se tanta injustiça nasce de um entendimento, que se sujeitou à vontade alheia, que será do que se deixar reger e cegar da própria? Enquanto o entendimento de Pilatos esteve livre destes dois respeitos, vede que retamente julgou: Nullam causam invenio in homine isto[4].

Filius hominis. – Juiz livre de respeitos não o pode haver, pois até Cristo o não é. Tinha o respeito do sangue, porque era parente de muitos dos que havia de julgar; tinha o respeito do amor, porque amava a muitos ternissimamente; tinha o respeito do interesse, porque lograva em todos os que salvasse, e perdia em todos os que condenasse, o preço de seu sangue; tinha a razão dos agravos, porque recebera grandes injúrias e ofensas dos mesmos que havia de julgar, e, contudo, fiou Deus de Cristo este Juízo, porque essa é a maior glória de um julgador: ter muitos respeitos, e fazer justiça sem respeito. Mas que homem há em quem se ache ou possa achar isto, senão naquele que é juntamente Deus? Filius hominis.

Filius hominis. – Parece que não será tremendo este juízo, porque terão os homens por juiz a quem entre todos os homens podiam desejar, porque, se entre todos os homens se desse a escolher, é certo que a nenhum havíamos de escolher senão a Cristo, por mais benigno, por mais manso, por mais piedoso, por mais misericordioso que todos. Pois, como pode ser rigoroso este juízo? Por isso mesmo: porque se não pode considerar maior rigor, nem maior confusão para com os homens; que conhecerem que foram tais suas culpas, que não achou por onde os livrar do inferno nem aquele mesmo amor que por eles deu a vida. Só me condena quem morreu por mim e quem rogou por mim, no mesmo tempo em que eu lhe tirava a vida, grande argumento é de serem as minhas culpas, não só dignas de toda a justiça, mas indigna de toda a misericórdia. Não condenará os homens no dia do Juízo a divina justiça; a divina misericórdia é a que os há de condenar: bem se vê no que diz abaixo: Maledicti, guia non dedistis mihi manducare[5]. – Não lhes referiu os pecados, por onde os podia condenar a divina justiça, mas as faltas de caridade, por onde os pudera absolver a divina misericórdia, porque a divina misericórdia é a que ultimamente há de condenar os precitos: Judicium sine misericordia ei qui non fecit misericordiam[6]e ser um homem condenado às mãos da misericórdia é o maior rigor de todos.

Filius hominis. – Que os juízes hão de ser humanos, por isso não vem Cristo a julgar enquanto Deus, senão enquanto homem. A humanidade é o realce da justiça: entre o justo e o justiceiro há esta diferença: ambos castigam, mas o justo castiga, e pesa-lhe; o justiceiro castiga, e folga. O justo castiga por justiça, o justiceiro por inclinação; o justo com mais vontade absolve que condena, o justiceiro por mais vontade condena que absolve. A justiça está entre a piedade e a crueldade: o justo propende para a parte de piedoso, o justiceiro para a de cruel.

§ II

A majestade do divino Juiz. A salvação e majestade dos reis no outro mundo e neste. Por que se chama Cristo Filho do homem, e não Filho de Deus, quando se assenta no trono de sua majestade? In majestate sua[7].

Cristo, Senhor nosso, não quis majestade nesta vida, e é a única majestade da outra. Quando o quiseram fazer rei, fugit in montem ipse solus[8]: só, porque então não teve nenhum companheiro; e só, porque em todo o tempo teve e há de ter poucos imitadores. Tem majestade no outro mundo, e disse que o seu reino não era deste mundo, porque ser rei deste mundo, e mais no outro, é felicidade que a poucos reis acontece. Digam-no os reis de Israel, que, sendo vinte e três, em espaço de duzentos e cinqüenta anos, todos se perderam. O Reino de Judá foi mais venturoso; mas, sendo maior o número dos seus reis, não chega a cinco os que consta se salvaram. Isto é dos reinos que sabemos pelas Escrituras; nos outros reinos católicos, alguns reis há de que se contam várias revelações: queira Deus que sejam certas; a do dia do Juízo o será, lá o veremos. De todos os reis de todas as outras nações até o tempo de Cristo, que foram quatro mil anos, só um sabemos que se salvou, que foi Jó; mas deste ainda se duvida se verdadeiramente foi rei; ao menos não o diz a Escritura. Tremenda coisa que de tantos homens que reinaram em tantos anos, só de um seja certa a salvação, e desse ainda incerta a coroa.

Majestate sua. – Só a majestade de Cristo é sua, todas as outras são emprestadas; a majestade de Cristo é de Cristo; a majestade dos outros reis é do tempo, é da fortuna, é da morte: aqui param todas, e por isso não são suas. Só a de Cristo é sua, porque é eterna: Regi saeculorum immortali[9].

In majestate sua. – A majestade só é de Cristo; os outros reis imeritamente se arrogaram este título, porque são indignos dele. Nesta modéstia perseveraram os reis de Portugal, enquanto nele duraram as virtudes antigas, em que foi fundado; depois de ressuscitada a coroa, cresceu o título a majestade, mas não acrescentou a grandeza. Fr. Bartolomeu dos Mártires falou por alteza a Filipe II, em Barcelona; e aos que se admiraram desta diferença, respondeu que a majestade era título só de Deus, que para homens alteza bastava. Cristo ajuntou a majestade com o título de homem: Filius hominis in majestate sua; – mas só homem que era Deus juntamente podia ser majestade; ao menos os romanos, que igualaram a soberba com o império, tiveram superstição para se chamarem filhos de deuses, e não chegou a sua ambição a tomar o nome de majestade; até o título de rei, por odioso, morreu neles ao seteno. Tarquínio, o Soberbo, foi o último rei, mas não o último nem o primeiro na majestade. Uns se chamavam pais da pátria, etc. Vide Tiraquelum et Alexandrum, etc.

Filius hominis in majestate sua. No dia da maior majestade toma Cristo o título da menor grandeza. Não diz: – Virá o Filho de Deus, senão o Filho do homem. Bem cabem no mesmo trono – o que o outro não quis conceder ao amor – majestade e humildade; não está a coisa nos títulos, senão no ser. Quem é Filho de Deus, pouco importa que se chame Filho do homem; só quem tem por natureza o mais, tem confiança para se chamar o menos.

Filius hominis in majestate sua. Chame-se Filho do homem, e não Filho de Deus, quando se assenta no trono de sua majestade, porque estima mais Cristo a grandeza merecida do que a grandeza herdada. O que tinha por Deus era natural, o que tinha por homem era voluntário e merecido: isto, ainda que menos, o estimava Cristo mais: Egredimini, f filiae Sion, et videte regem vestrum in diademate quo coronavit eum mater sua[10]. – Cristo tinha duas coroas: uma da divindade, enquanto Deus, a qual lhe deu seu Pai; outra da humanidade, enquanto homem, a qual lhe deu sua Mãe; e quando se viu coroado com esta, então mandou chamar quem o visse, quem o celebrasse, quem o aplaudisse, porque esta segunda coroa era merecida, e a primeira era herdada. No evangelho de São Mateus só Davi se chama rei; Salomão, e os outros, não, porque a coroa de Salomão, e dos mais. foi herdada de seus pais, a de Davi foi merecida por seus braços; Salomão recebeu a coroa de Davi, mas Davi não recebeu a coroa de Jessé.

§ III

Os anjos no vale de Josa f d, e o temor das parcialidades. A razão por que hão de ir todos os anjos ao Juízo. Por que causa julgarão os homens aos anjos, e não os anjos aos homens? O juízo que de nossas coisas podem fazer os anjos.(10)

Et omnes angeli cum eo[11].

Anjos ao vale de Josafá no dia do Juízo, segue-se que há de ficar o céu naquele dia despovoado, e Deus sem assistência nem cortejo de anjos; até aqueles de seis asas, que nunca cessam de dizer: Sanctus, Sanctus, Sanctus – naquele dia hão de cessar, e vir ao vale ao acompanhamento de Cristo. Até no céu não há bastantes criados a fazer corte ao Pai e Filho. Mas, por que se não repartem, sendo tantos? Por temor de parcialidade? Ainda que noutro tempo as houve também no céu, já hoje não as pode haver, e então muito menos; pois, por que vão todos, e não se repartem? Porque podia haver dúvida se era maior favor o ir ou o ficar, e donde há semelhantes dúvidas, o melhor arbítrio é ou todos ou nenhum. Sempre o partir lugares, e mais donde há duas cabeças grandes, teve grandes inconvenientes.

Maior doutrina cuido que nos dá nisto a corte e palácio do céu. Tem chegado a vaidade do mundo a tanto, que o dono da casa há de ter um quarto, e uns criados; a senhora outro, e outros; e os filhos da mesma maneira. Ao menos, já que nos esquecem os exemplos de nossos antepassados, não nos envergonhemos de tomar o de Deus. E saibam os pais um dia de ficar sós em casa, quando importa que saiam os filhos com aparato público. Assim o fará Deus Padre naquele dia: ficará só e desacompanhado no céu, e o Filho assistido e cortejado de todos os anjos: Et omnes angeli cum eo. – E tem isto grandes conveniências, e não será a menor saírem menos de casa as que se chamam senhoras dela, título que em muitas é de anel.

Omnes angeli. – Virão todos os anjos também, porque hão de ser julgados todos. Nesta circunstância se diferençará muito este Juízo dos juízos da terra. Cá, nos juízos da terra, por universais que sejam, e de maior alçada, sempre ficam de fora as potestades, as dominações e os principados; mas, no juízo de Deus, nenhum destes há de ficar: todos hão de ser julgados, todos os coros e jerarquias hão de ser julgadas: Et omnes angeli cum eo.

E mais vezes vão a juízo as virtudes que as potestades; e se vêm alguma vez as potestades e as virtudes, as potestades sempre estão seguras de ser condenadas, pode ser que as virtudes não.

Omnes angeli. – Outra razão por que hão de vir todos os anjos, é para adorarem naquele dia todos a Cristo publicamente, como diz São Paulo, falando da segunda vinda de Cristo ao mundo: Cum iterum introduxit primogenitum in orbem terrarum, dixit: Et adorent eum omnes angeli ejus[12]. – Que confusão será então a de Lúcifer, que, por negar esta adoração quando foi criado, perdeu a glória? Não te fora melhor adorar então, e ficar para sempre no céu, que andar há tantos mil anos no inferno, e haver de adorar agora? Ut in nomine JESU omne genu flectatur caelestium, terrestrium et infernorum[13].

Angeli cum eo. – Virão os anjos com Cristo, mas não a julgar com ele, mas a ser julgados. São Paulo: Nescitis quod etiam angelos judicabimus[14]! – Ah! Lúcifer! Não quiseste adorar um homem Deus, e há te de condenar um pecador. Por que causa julgarão os homens aos anjos, e não os anjos aos homens? Porque anjos são puros espíritos, e os espíritos não têm bastante experiência para julgar de corpos. Os homens são corporais e espirituais juntamente; por isso podem julgar dos corpos e mais dos espíritos. Dos homens e anjos, sem experiência, não pode haver perfeito juízo; essa é outra razão de Deus dar toda a potestade judiciária ao Filho: Pater omne judicium dedit Filio, quia Filius hominis est – porque, ainda que em Deus há toda a ciência, em Cristo há também a experimental. Que diferente juízo fará um anjo dos homens, do que fazem os homens de si mesmos? Que juízo farão da enfermidade que não padeceram, das dores que não sentiram, dos caminhos em que não cansaram, da clausura que os não fechou, e de todas as outras coisas, de que a sua natureza os fez isentos? Bem se viu na consolação que deram aos apóstolos: Hic JESUS, qui assumptus esta vobis, sic veniet[15]. – Linda consolação para uma ausência, esperar pelo dia do Juízo; mas, como lá no céu mil anos são como um dia, ainda que Cristo tardasse em vir dois ou três mil anos, parecia-lhes a eles que era pouco esperar: mediam as nossas saudades pelos seus relógios. Vede que consolação nos daria a que deu a Cristo aquele outro anjo no Horto, tal que lhe fez suar sangue; assim nota um evangelista, que foi o suor depois que o anjo veio. Como há d consolar de dores quem nunca soube que coisa eram dores? Eis aqui o juízo que d nossas coisas podem fazer os anjos. Não assim Cristo, enquanto homem: Habemu pontificem tentatum per omnia qui possit compati[16]

§ IV

As dificuldades de julgar o mundo agora e no dia do Juízo. Como se olharão os anjos e os homens? Por que será mais gravemente julgada a nação portuguesa?

Tunc sedebit super sedem majestatis suae[17].

Tunc. Então se assentará Cristo a julgar, e se assentarão também com ele os apóstolos: Sedebitis et vos judicantes, etc.[18]. – Maior capacidade será necessária para julgar então, porque hão de julgar os apóstolos a todo o mundo; mas eu acho que é necessário muito maior valor para julgar agora, porque agora não se há de acabar o mundo. Julgar o mundo quando o mundo se há de acabar, não há mister grande valor a justiça, porque se acabam todas as razões de dependência; mas julgar o mundo quando há de continuar o mundo, e eu hei de depender amanhã daquele que sentenciei hoje, isto é necessário muito valor; diga-o o si hunc dimittis, non es amicus Caesaris[19]. – Muitos Césares se hão de achar no dia do juízo, mas de quem se não há de depender no dia seguinte; mais dificultoso é logo julgar agora que tunc.

Et congregabuntur ante eum omnes gentes[20]. – Todos os anjos cum eo, et omnes gentes ante eum. – Como se olharão os anjos e os homens; como verão ali os anjos aos homens que guardavam, e como conhecerão então os homens os anjos da sua guarda, que hoje não conhecem. Que confusão será nesta vista a lembrança das inspirações, tão mal admitidas e pior guardadas! Os mesmos anjos servirão de acusadores.

Omnes gentes.– Todas as nações. Entre todas as nações me parece que será mais gravemente julgada a Nação Portuguesa, por ter mais auxílios que muitas outras para se poder salvar, e menos tentações para cair e se perder. Que comparação têm as batalhas da heresia de Alemanha, Inglaterra e França, coma pacífica fé em que os portugueses nascemos, vivemos e morremos? Menos hereges haverá da nossa nação que de nenhuma; queira Deus que haja menos condenados; mas a fé sem obras é cadáver, e só quem teve fé viva há de ressuscitar à imortalidade.

Omnes gentes. Quando a Nação Portuguesa puser os olhos em outras nações, que confusão poderá tirar de muitas? Quando vir os japões, os chinas, os cafres, os etíopes, os brasis, salvos pela pregação dos portugueses, que dirá? É possível que eu fui a que ensinei a salvar a estes, e não prestei, nem soube salvar-me a mim! – Alios salvos fecit, se ipsum non potest salvum facere[21]. – Eu, um reino tão pequeno, salvei a tantos, e não me salvei a mim todo: levei a fé e a salvação ao Mundo Novo; mas quid prodest homini, si mundum universum lucretur, animae vero suae, etc.[22].

Et congregabuntur ante eum. – Então se verão juntos e congregados ali os que cá também viveram juntos. É possível que este na mesma congregação se salvou, e eu me perdi com as mesmas leis, com os mesmos institutos, com a mesma doutrina, com os mesmos motivos e instrumentos, e, porventura, com menos trabalho, eles salvos, e eu perdido! Fomos como Esaú e Jacó, criados ambos nas mesmas entranhas, sustentados como mesmo alimento, criados com a mesma educação, e no cabo tão diferentes na fortuna, etc.

§V

Quão terrível será a separação do Juízo, final! O que distingue os homens neste mundo, e o que os distinguirá no outro. A distinção da bondade. Esta separação, que Deus então há de fazer; por que a não faz hoje?

Et separabit eos ad invicem[23].

Quão terrível será esta separação! Os pais dos filhos, os amigos dos amigos, etc. Quanto custou a Davi apartar-se de Jônatas? Quanto custou a Noemi apartar-se de duas amigas? Foi tanto, que, quando se quis partir, não pôde. Quanto custou a Faltiel apartar-se de Micol? Quanto temeu Eva apartar-se de Adão? Diz Santo Ambrósio que por isso lhe deu da mesma fruta, para que ele também pecasse; para que ou morressem ambos, ou fossem ambos desterrados, tendo por menos mal a morte ou o desterro em sua companhia, que o paraíso em sua ausência. Assim foi aqueloutra mãe, de quem diz Sêneca que, desterrando-se o filho de Roma, ela o quis ir acompanhar, porque maluit exilium pati, quam desiderium[24]. – Quando sentiu Jacó a ausência de Benjamim e de José, etc. Mas todos estes apartamentos tinham a consolação na esperança, porque todos esperavam de se tornarem a ver; e, quando não fosse nesta vida, é certo que o seria na outra; mas no dia do Juízo apartar-se-ão todos, o pai do filho, e o filho do pai, que isso é ad invicem, e isto para nunca mais em toda a eternidade.

Separabit eos ad invicem. – Uma das maiores dificuldades que têm os confessores neste mundo, é fazerem apartar aos que demasiada e cegamente se amam. Estes, que agora se não podem apartar por um instante, então se apartarão por toda a eternidade; é certo que bem mostra seu amor quão cego é, pois, só para não virem a padecer este apartamento então, se deveram apartar e conter agora. Se tanto vos custa apartar-vos agora de quem amais; apartai-vos por isso mesmo, para que depois vos não aparteis, antes vivais feliz e bem-aventuradamente juntos por toda a eternidade: só por este interesse deviam viver bem os que se querem bem, para granjearem e segurarem para sempre o maior temor que têm hoje, e é o poderem-se apartar alguma hora.

Separabit eos ad invicem. – Os bons para uma parte, e os maus para outra. Oh! que acertada distinção esta! A fortuna neste mundo fez infinitas separações e distinções entre os homens: de reis, imperadores, de duques, de marqueses, de condes, de nobres, de plebeus, de escravos; e, sendo tão miúda esta distinção, não é acertada. Os homens só os distingue a virtude, e não há mais que dois gêneros de gente neste mundo, bons e maus. Só o que está dentro de nós nos pode distinguir intrínseca e verdadeiramente, e este é o vício ou a virtude; tudo o mais são coisas que ficam de fora: podem mudar as aparências, mas não distinguir as pessoas.

Separabit eos. – Muitas coisas neste mundo distinguem aos homens: distingue-os a vaidade entre pobres; distingue-os a política entre príncipes e vassalos; distingue-os a tirania entre livres e servos; distingue-os a religião entre eclesiásticos e seculares; distingue-os a ciência entre doutos e idiotas; mas só a justiça de Deus no dia do Juízo acertará a os distinguir bem, porque os dividirá em bons e maus. Nenhuma coisa tanto desejam os homens, como distinguir-se e extremar-se dos outros: o melhor e mais fácil modo para um homem se distinguir é o fazer-se bom. Distinguir-se pela nobreza do sangue, aos que a não tiveram de nascimento, custa-lhes tanto, que chegam muitas vezes a negar os pais; os que se querem distinguir pela sabedoria, vede quanto lhes custa de estudo; os que pela riqueza, quanto de perigos e trabalhos; só o distinguir-se pela bondade é fácil, proveitoso e breve: breve, porque se pode adquirir em um instante; fácil, porque basta um ato de contrição; proveitoso, porque só esta distinção serve nesta vida, e mais na outra; as outras distinções, quando muito, distinguir-vos-ão nesta vida; a da virtude e bondade é a que só com tanta glória vos há de distinguir dos maus no dia do Juízo: Et separabit eos ad invicem: maios de medio justorum.

Separabit. – Esta separação, que Deus então há de fazer, por que a não faz hoje? Não fora coisa muito para ver no mundo que houvera cidade só de bons e cidade só de maus, assim como Santo Agostinho pintou Jerusalém cidade de bons, e Babilônia cidade de maus? Não seria grande coisa que viveram os homens agora separados, e que houvera Babilônias e Jerusaléns, ainda que as Jerusaléns fossem poucas, e de poucos moradores, e as Babilônias muitas, e inumeravelmente freqüentadas? Neste pensamento deram os fundadores das religiões, que quiseram fazer povoações e comunidades todas de homens bons; mas nem eles o puderam conseguir, porque, se no apostolado houve um Judas, nenhuma comunidade é tão santa, nem tão perfeita, em que não haja algum inimigo da santidade e perfeição. As causas de Deus o ordenar assim, quevivam os bons misturados com os maus, podem ser muitas. Primeira; para que se conservasse o mundo, porque os bons que vivem entre os maus são os que sustentam as cidades: Qui portant orbem, etc. – Segunda, porque de outra maneira não se poderia conservar, nem governar o mundo, porque, se os maus fossem conhecidos por maus, quem se havia de fiar deles? Mas permite Deus que a maldade e a malícia ande encoberta, para que debaixo desta dissimulação se conserve o trato humano. Vide S. Aug. sup. Psalm. ubi plures adducit causas.

§ VI

O ajuntamento das nações inimigas e os animais da arca. Se o dia do Juízo há de ser dia de castigo, como permitirá Cristo que apareçam diante de seu rosto os que hão de ser condenados? A pena do dano é a pena do Juízo. A presença de Cristo no dia do Juízo.

Congregabuntur.

Admirável coisa é que em um momento se hajam de ajuntar todas as nações: Omnes gentes – e que hajam de estar juntas entre si. Aqui se verão juntas aquelas nações que eram inimicíssimas. Os romanos e os cartagineses, os espanhóis com os mouros, os franceses com os ingleses, etc. Quantas negociações, quantas embaixadas, quantas mediações de príncipes, quantas capitulações são necessárias hoje para unir duas nações entre si? E naquele dia se verão juntas todas as que houve e há de haver no mundo, com perpétuo esquecimento de todos os ódios e interesses passados. Pois, o que então há de fazer a necessidade, por que o não faria hoje a razão? Se a lei de Deus diz que habitabit lupus cum agno – isto é, as nações, por feras e bárbaras que sejam, umas com as outras, por que há de poder mais conosco a voz de um anjo depois de mortos, que a voz de Deus enquanto vivos? Mas agora engana-nos a vida, e depois ter-nos-á a todos desenganados a morte: por isso congregabuntur omnes gentes. – Quanto agora se não podem unir nem concordar duas, porque essa diferença vai de gentes vivas a gentes ressuscitadas, tão diferentes seremos de nós mesmos antes ou depois da morte.

Congregabuntur omnes gentes, – Cá neste mundo não se ajuntam todas as gentes umas com outras. Ajuntam-se os grandes com os grandes os pequenas com os pequenos, os medianos com os medianos; mas naquele dia todos se ajuntarão, sem superioridade ou distinção alguma, porque será o dia de maior temor que houve no mundo; e não há coisa que assim faça unir aos homens entre si, e ajuntar os grandes com os pequenos, como o perigo e o temor. Na arca de Noé estava o leão com o cordeiro, o lobo com a ovelha, e não se faziam mal: todos cabiam em um tão pequeno lugar como o de uma arca, e todos, como dizem os doutores, se sustentavam do mesmo alimento, porque era tempo do dilúvio; e em tão grande temor e necessidade, não só esquecem as paixões, mas ainda as mesmas naturezas parece que se mudam: já o leão ali não era leão, nem o tigre tigre, nem o elefante elefante; assim também se ajuntarão naquele dia os Neros, os Dioclecianos, etc., mas nem os Neros serão mais Neros, nem os Dioclecianos Dioclecianos, etc. Congregabuntur omnes.

Ante eum. – Se há de ser dia de castigo, como permitirá Cristo que apareçam diante de seu rosto os que hão de ser condenados? A Absalão, depois da morte de Amon, não permitiu Davi que chegasse a ver seu rosto: Faciem meam non videat[25]. – Pois, como permitirá Cristo que naquele dia o vejam os que se hão de condenar? Sem dúvida para maior rigor, porque não há maior pena para o coração humano que ver o bem, para o não tornar a ver mais: Aquilo de São Paulo: Dolentes maxime in verbo, quod dixerat, quoniam amplius fatiem ejus non essent visuri[26]. A maior glória dos bem-aventurados consiste na vista de Deus, e a maior pena dos condenados consistirá nesta vista de Cristo, porque só por ela poderão conjecturar qual seria a vista de Deus, de que por sua culpa se privaram; de maneira que as palavras de Cristo: Ite maledicti – os condenarão à pena sensus, mas a vista de Cristo à pena damni, ao menos ao sensível desta pena, porque os condenados não podem conhecer a Deus como é em si, e sem este conhecimento não podem apreender perfeitamente o mal de carecerem de sua vista; logo, só pela que tiveram de Cristo no dia do Juízo a poderão melhor conjecturar, fazendo dentro de si esta infelicíssima conseqüência: Se tão formoso é o rosto de Deus enquanto homem, que vimos, que formosura será a do rosto de Deus enquanto Deus, que não havemos de ver eternamente? – Donde se infere que a pena de dano dos condenados terá mais rigorosas apreensões depois do dia do Juízo, do que tem agora e terá aquele dia; porque, ainda que a pena damni, enquanto consiste na carência da vista de Deus, que é mera privação, será sempre igual, antes a mesma; contudo, o conhecimento desta carência, em que consiste a pena sensível, crescerá tanto mais, quanto crescer o conhecimento do bem perdido e das causas dele: assim como, se São Pedro se perdera, como Judas se perdeu, mais havia de sentir naturalmente a perda da glória do que Judas, porque São Pedro viu a Cristo transfigurado, e Judas não. Nem obsta seguir-se daqui que, depois do dia do Juízo, terão maior inferno os condenados que antes, porque verdadeiramente assim há de ser; porque hoje penam só na alma, então penarão na alma e no corpo; que muito logo que por outras circunstâncias lhes haja de crescer a pena?

Ante eum. – A presença de Cristo. O verem-se diante dele os que o ofenderam, será maior pena para os condenados que o mesmo inferno. A razão é porque os homens já conheceram a deformidade e fealdade do pecado, e como a culpa é muito maior mal que a pena, não será tanta pena para eles padecerem as do inferno, como serem vistas suas culpas. A Madalena, tanto que começou a conhecer a fealdade de suas culpas, não se atreveu a aparecer diante de Cristo; e assim diz o evangelista: Et stans retro[27]; – que será logo naquele dia estar ante eum: diante do mesmo Cristo? E isto não só em presença de um fariseu, mas na de todos os homens do mundo.

§ VII

As ovelhas e os cabritos. As duas espécies de homens. Se no dia do Juízo já os maus se hão de conhecer todos por condenados, por que se não apartarão eles, e se porão logo cada um para o seu lugar? Razão por que não se hão de converter os condenados à vista do rosto de Cristo. Os príncipes reis e ospríncipes pastores. A ciência de distinguir o mau do bom. Diferença entre a divisão do mundo e a divisão do Juízo.

Sicut pastor segregat oves ah haedis[28].

Comparam-se os bons a ovelhas, e os maus a cabritos. Parece que havia de ser a carneiros, porque os homens todos são da mesma espécie; mas, por isso mesmo não é assim. No mundo há duas espécies de homens debaixo do mesmo gênero humano: estas espécies são bons e maus; os bons são homens racionais, os maus são animais irracionais: isto é ser bom, obrar conforme a razão; e o ser mau não é outra coisa, senão obrar contra ela. A espécie dos bons são os filhos de Adão inocente, que era homem feito à imagem e semelhança de Deus: Creavit Deus hominem ad imaginem et similitudinem suam[29]que os maus são filhos de Adão pecador fora do paraíso, que era homem feito à semelhança de bruto: Comparatus est jumentis insipientibus, et similis factus est illis[30]. – Por isso os animais obedeceram a Adão antes do pecado, e depois do pecado lhe desobedeceram, porque a obediência que Deus lhe pôs foi que obedecessem a um homem melhor que eles, e não a um homem animal como eles. Grande figura disto Nabucodonosor, etc. Estes animais irracionais se dividem em muitas espécies, como são muitas as dos pecados. Os soberbos em leões, os iracundos em tigres, etc.

Et statuet oves quidem a dextris suis, haedos autem a sinistris[31]. – Agora que se acabou o mundo, se havia ele de começar. Mundo em que para todos os bons há mão direita, e para todos os maus há mão esquerda, oh! que bem ordenado e bem concertado mundo! Ao menos, por que se não concertaria assim uma república?

Separabit eos. – No dia do Juízo já os maus se hão de conhecer todos por condenados, e os bons se hão de conhecer também por bem-aventurados; pois, por que se não apartarão eles, e se porão logo cada um para o seu lugar? Porque os bons não se lhes dá de lugares, e os maus nunca se sabem acomodar com o lugar que lhes compete: ainda depois de seis mil anos de inferno se hão de ir meter no lugar dos bons, como se fora seu. Verdadeiramente que agora me consolo, e nos devemos consolar todos os pregadores, do pouco fruto que fazemos. Se seis mil anos de inferno vos não desenganam nem bastam para que vós conheçais, que muito que aproveitem pouco nossas palavras com os maus?

Ante eum. – Se os condenados hão de ver o rosto de Cristo, e aquela formosura e majestade, como é possível que entre todos não haja de haver um só que se arrependa, e o ame? Por falta de liberdade não, porque, como dizem muitos teólogos, o inferno não tira a liberdade. Os condenados naquela hora hão de ter os maiores motivos com que a vontade se excita, que são o bem conhecido, para o querer e o mal experimentado, para o fugir; pois, se naquela hora hão de ter a experiência do maior mal, que são as penas do inferno, e o conhecimento claro do maior bem a eles possível, que é a vista do rosto de Cristo, por que o não amam, por que se não arrependem, por que se não convertem? Oh! que consideração esta para andarmos sempre tremendo! Porque, para um homem se converter, e amar a Deus, não bastam nenhuns motivos, se falta sua graça, e esta não a dá Deus, senão nesta vida; e nesta vida nem sempre, senão quando ele é servido. Daqui entenderemos a razão de uma queixa ao parecer justificada. Por que se não deixou Cristo no Sacramento descoberto, de maneira que o víssemos? Porque vendo-o parece que não poderíamos deixar de o amar? Enganamo-nos. Tampouco o havíamos de o amar, e tanto o havíamos de ofender, se o víssemos, como agora fazemos. Naquele dia vê-lo-ão todos claramente, e só o hão de amar visto os que cá o amaram sem o verem; por isso Cristo no Sacramento nos nega a vista, e nos dá a graça, porque importa mais para o amarmos sua graça do que sua vista; antes, a graça sem a vista basta, e a vista sem a graça não importa nada.

Sicut pastor segregat oves. Tunc dicet rex eis qui a dextris ejus erunt[32]Quando distingue e aparta uns dos outros, chama-se pastor; e quando os apremeia, chama-se rei. Primeiramente, o rei há de ser como o pastor; por isso Deus, quando houve de fazer reis, escolheu-os de pastores: Saul, Davi; e o supremo rei, Cristo, tomou o ofício de pastor, e de pastor aceitou o título: Ego sum pastor bonus – não querendo aceitar o de rei. Os reis e os vassalos são todos homens, e o pastor e o rebanho não. O pastor é homem, o rebanho são animais, e a diferença que faz o entendimento do pastor às ovelhas, havia de fazer o rei aos vassalos. O pastor pela ovelha arrisca-se, vigia, padece: assim há de ser o rei pelo reino, etc. Mas neste caso chama-se pastor, quando distingue, e estima-se rei quando apremeia, porque o príncipe há de apremear como rei, e conhecer como pastor. Os reis ordinariamente conhecem pouco, ainda aos que muito os servem. Diga-o Saul com Davi: Ex qua stirpe est hic adolescens[33]? – depois de o ter servido tanto. Pelo contrário, o pastor conhece as ovelhas, como quem as criou desde seu nascimento: Cognosco oves meas, et cognoscunt me meae[34]; – por isso os reis fazem tão ruim eleição dos lugares, porque não conhecem as pessoas, e assim põem à mão direita os que haviam de estar à esquerda, etc. E muitos príncipes há que, trocando esta doutrina, em vez de conhecerem os vassalos como pastores, e apremearem-nos como reis, conhecem como reis, e apremeiam como pastores. Sei pouco da vida pastoril; mas, se é verdade o que nos dizem as éclogas dos poetas, que vêm a ser os prêmios dos pastores, senão um cajado, uma frauta, um vaso de cortiça? Quantos prêmios há de reis, que são como estes? Que é uma bengala sem soldo, senão um cajado? Que é um foro sem moradia, senão uma frauta que soa bem, mas tudo é vento? Que são as outras mercês, senão umas cortiças leves, etc.? Davi foi pastor, e era rei; mas dava, como rei, e conhecia como pastor, etc.

Separabit eos. – O mesmo Senhor é o que os há de distinguir e apartar, porque distinguir os bons dos maus só o pode fazer Deus; a razão é porque a oficina da bondade e da malícia é o coração humano, e os corações só Deus os conhece. Por isso Deus, dizendo de todas as criaturas: Quod esses bonum[35]não o disse do homem, porque as outras criaturas têm o seu bem ou o seu mal no que se vê; o bem e o mal do homem, no que se não vê, que é o coração: daqui veio dizer o demônio a nossos pais: Eritis sicut dii, scientes bonum et malum[36]porque a ciência do distinguir o mau do bom é só próprio da deidade. Cristo, quando o outro lhe disse: Magister bone[37]respondeu: Quid me votas bonum[38]? – porque o julgar da bondade dos homens está fera da jurisdição do homem. São os homens neste mundo como o trigo e a cizânia na seara do pai de famílias, as quais se equivocam tanto nos olhos dos homens que, se eles as houverem de arrancar, é perigo que arranquem o trigo em lugar da cizânia, isto é, os bons em lugar dos maus, e vice-versa: Ne forte colligentes zizania, eradicetis simul et triticum[39]. – Por isso Isaías: Vae qui dicitis bonum malum, et malum bonum[40]. – Tão cegos são os homens em julgar do bem e do mal.

Separabit. – O dia do Juízo será quase um retrato do que passa neste mundo. Neste mundo iguala-nos o nascimento, e distingue-nos a fortuna; no outro mundo iguala-nos a morte, e divide-nos o juízo de Deus; mas há grande diferença entre uma divisão e outra: que os predestinados e precitos da fortuna, ainda nesta vida, não gozam sempre nem a sua bem-aventurança nem a sua infelicidade: os que hoje são ditosos, amanhã serão desgraciados; os que hoje são desgraciados, amanhã são ditosos. Na divisão que faz Deus não é assim: o ditoso foi ditoso para sempre no céu, e o mofino foi mofino para toda a eternidade no inferno. Do paraíso da fortuna há passagem para o seu inferno, do seu inferno para o seu paraíso; mas do paraíso de Deus, por mais que assim o cuidasse o rico avarento, não há passagem para o inferno, como nem do inferno para o paraíso.

§ VIII

As duas gerações e apelidos do outro mundo. Por que razão hão de salvar mais das mulheres que dos homens? Por que são as santas muito

mais mimosas e regaladas de Deus? Por que chama Cristo haedos aos da mão esquerda?

Segregat oves ab haedis[41].

No outro mundo não há mais que duas gerações e dois apelidos: bons e maus. Aquela rede, que significava a Igreja, era sagena missa in mare, ex omni genere piscium congreganti[42]. – Ajuntou de todos os gêneros, mas quando chegaram à praia, que significava o dia do Juízo, todos estes gêneros se converteram em só dois gêneros, a saber: bons e maus: Elegerunt bonos in vasa, matos autem foras miserunt[43].

Oves ah haedis. – Já que diz que à esquerda hão de estar cabritos, por que não diz que à direita estarão carneiros, senão ovelhas? Porque põe à mão esquerda os do gênero masculino, e à direita os do feminino? Porque das mulheres se hão de salvar mais que dos homens. Faz duas parábolas Cristo, ambas de bodas: em uma introduz as virgens, noutra introduz convidados: das virgens entrarão tantas como ficaram de fora; dos convidados foram mais os que ficaram de fora do que os que foram admitidos: Multi sunt vocati, pauci vero electi[44] –porque estes eram homens, aquelas mulheres, e Cristo, que sabe quais são os que se hão de salvar, etc. A S. Madre Teresa diz no seu livro que Cristo lhe dissera que se comunicava mais às mulheres que aos homens, e juntamente as razões disso; e acrescenta a santa, posto que não as declara, que eram de grande consolação para as mulheres. E assim se vê na vida dos santos, que as santas são muito mais mimosas e regaladas de Deus; a razão disto pode ser de haver sido mulher a mais santa de todas as puras criaturas. Mas, fora esta, há outras muito eficazes entre os cristãos, porque as mulheres ordinariamente morrem todas com os sacramentos, o que não acontece aos homens: nas guerras, em que morrem tantos mil sem confissão, nos naufrágios, nas brigas, nos desafios, etc. Têm menos ocasião, porque não são juízes, nem advogados, nem prelados, nem ministros de reis; nem são bispos, nem sacerdotes; a fazenda, ordinariamente, não corre por suas mãos, e, finalmente, estão livres das ocasiões de ofender a Deus, que merecem dobrado inferno as que lá forem: Haec pro devoto ferino sexu. – Mais vezes que os homens se podem salvar pela ignorância invencível, e, porque têm menos entendimento, têm menos malícia; e porque são mais fracas, movem mais a divina misericórdia.

Haedos. Por que chama Cristo haedos aos da mão esquerda? Pudera-lhes chamar lobos, ou pôr-lhes o nome de outro animal. Mas a razão é porque este é símbolo da sensualidade, e o pecado da sensualidade entre todos é o que mais gente há de levar ao inferno. Busquem-se as raízes aos pecados, e achar-se-á que os mais deles a têm neste vício. Lá a teve o pecado de Adão, por não desgostar Eva: Ne delitias suas contristaret; – lá o pecado de Judas, cuja cobiça – diz Orígenes, ou Teofilato – era para ter dinheiro com que sustentar uma mulher, ou sua ou alheia; o pecado que obrigou a Deus a assolar o mundo com o dilúvio este foi; e este também o que fez chover fogo sobre as cidades. Veja-se o que diz Toledo na Suma, sobre o pecado de molície, que é de parecer tem mais almas no inferno ele só que todos os outros. Aqui tropeçou Davi, aqui Salomão, aqui Sansão, etc.

§ IX

Que fazemos por coisas que são tanto menos que um reino? Que fazemos para conquistar o reino de Deus? Quanto vai de servir ao rei da terra ou ao rei do céu. A justiça de Deus e a injustiça dos homens.

Venite, benedicti, possidete paratum vobis regnum a constitutione mundi[45]

Que fazemos por coisas que são tanto menos que um reino? Julgue-o cada um por si; e por qualquer reino da terra, que é o que têm feito os homens? Quantas vidas, quantas fazendas, quantos exércitos, quantas armadas? Os dos césares, os dos Alexandres, tudo por conquistar reinos. Se olharmos para toda Europa, hoje tantos tributos, tantas pobrezas, tantas calamidades, não por conquistar reinos inteiros, mas por acrescentar cada príncipe uma cidade ao seu. E que por uma cidade dêem os homens tantas vidas, e para a conquistarem para outrem em conquista incerta! E que para um homem conquistar um reino para si, melhor que todos os do mundo, fora da jurisdição da fortuna, e que há de durar para sempre, e que não está armado contra nós, e que não o havemos de entrar pelas bocas das bombardas, mas que nos está esperando aparelhado: Paratum vobis – e que o possamos conquistar só com a vontade nossa, sem braços alheios, sem exército, sem sangue, sem despesa, sem ofensa de Deus nem dos homens, antes, com maior aplauso e glória que todos os vencedores do mundo, sem mais trabalho que i-lo a possuir: Venite, possidete – e que não queiramos! O certo é que somos loucos. Dizemos todos os dias: Adveniat regnum tuum; Deus diz-nos: Venite, possidete regnum – e não queremos, etc.

Paratum vobis a constitutione mundi. – Quanto vai de servir ao rei da terra ou ao Rei do céu. Os reis da terra, muitos anos depois de trabalharmos, não nos dão o prêmio; o Rei do céu, seis mil anos antes de sermos, já no-lo tem aparelhado: A constitutione mundi. – Cá é necessário trabalhar para o merecimento, trabalhar para o requerimento, trabalhar para o despacho; e, ainda depois dele, trabalhar para o fazer efetivo. Com Deus não é assim: só para o merecer haverá algum trabalho, e esse ainda com grandes ajudas de custo, que são os auxílios; depois de merecido, sem requerimento nem despacho, entramos à posse. Os tristes requerentes do mundo, quantas vezes lhes dizem: lie. – Do rei para o secretário, do secretário para o oficial, do oficial ao ministro, ao valido, e a ninguém se diz: Venite. – Isso só o diz Deus; e entre o venite e o possidete não há mais que uma bênção sua: Venite benedicti – sendo cá infinitas as maldições, as que vos lançam, e as que lançais sobre vós.

A constitutione mundi. – Tanto que Deus fez o mundo, logo fez juntamente o prêmio para os que o servissem, porque o maior fundamento de um império é o prêmio dos serviços.

Esurivi enim, et dedisti mihi[46]. – Parece-se a justiça de Deus com a injustiça dos homens, que tão misericordiosa é a sua justiça. A causa que dá aos que absolve é: Quia dedistis – e aos que......

Não se achou mais nos manuscritos do grande Vieira.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



 [1] Quando vier o Filho do homem, etc. (Mt. 25, 31).

 [2] Não sabes que tenho poder para te soltar, e que tenho poder para te crucificar (Jo. 19, 10)?

 [3] Permitiu-lhes que fizessem dele o que quisessem (Lc. 23, 25).

 [4] Não acho neste homem culpa alguma (ibid. 14).

 [5] Malditos, porque não me destes de comer (Mt. 25, 41 s).

 [6] Juízo sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia (Tg. 2, 13).

 [7] Na sua majestade (Mt. 25, 31).

 [8] Fugiu para o monte ele só (Jo. 6. 15).

 [9] o rei dos séculos imortal (I Tim. 1. 17).

 [10] Saí, filhas de Sião, e vede ao vosso rei com o diadema de que sua mãe o coroou (Cânt. 3, 11).

 [11] E todos os anjos com ele (ML. 25, 31).

 [12] E segunda vez, quando introduziu ao primogênito na redondeza da terra, disse: E todos os seus anjos o adorem (Hebr. 1, 6). – No original da Vulgata este versículo é um pouco diferente.

 [13] Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra e nos infernos (Flp. 2, 10).

 [14] Não sabeis que havemos de julgar também aos anjos (1 Cor. 6, 3).

 [15] Este Jesus, que foi assumpto ao céu, assim virá (At. 1, 11)

   [16] Temos um pontífice que foi tentado em todas as coisas, e que pode compadecer-se (Hebr. 4,14 s).

   [17] Então se assentará sobre o trono da sua majestade (Mt. 25, 31).

 [18] Também estareis sentados para julgar (Mt. 19, 28).

 [19] Tu, se livras a este, não és amigo do César (Jo. 19, 12).

 [20] E serão todas as gentes congregadas diante dele (Mt. 25, 32).

 [21] Ele salvou a outros, a si mesmo não se pôde salvar (Mt. 27, 42).

 [22] De que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se a sua alma, etc. (Mt. 16, 26)

 [23] E separará uns dos outros (Mt. 25, 32).

 [24] Preferiu sofrer o exílio a padecer a saudade.

 [25] Não veja a minha face (2 Rs. 14, 24).

 [26] Aflitos em grande maneira pela palavra que havia dito, que não tomariam a ver mais a sua face (At. 20, 38).

 [27] E estando por detrás dele (Lc. 7, 38).

 [28] Como o pastor aparta dos cabritos as ovelhas (Mt. 25, 32).

 [29] Ex Genes.

 [30] Foi comparado aos brutos irracionais, e se fez semelhante a eles (SI. 48, 13).

 [31] E assim porá as ovelhas à direita, e os cabritos à esquerda (Mt. 25, 33)

 [32] Como o pastor aparta as ovelhas. Então dirá o rei aos que hão de estar à sua direita (Mt. 25, 32. 34).

 [33] De que geração é este rapaz (1 Rs. 17.55)?

 [34] Eu conheço as minhas ovelhas. e as que são minhas me conhecem a mim (Jo. 10, 14).

 [35] Que era bom (Gên. cap. 1).

 [36] Vós sereis como uns deuses, conhecendo o bem e o mal (Gên. 3, 5).

 [37] Bom Mestre (Mt. 19, 16).

 [38] Por que me chamas bom? — O sentido da frase na Vulgata é outro: Por que me perguntas tu o que é bom (ibid. 17)?

 [39] Para que talvez não suceda que, arrancando a cizânia, arranqueis juntamente com ela também o trigo (Mt. 13, 29).

 [40] Ai de vós os que ao bom chamais mau, e ao mau bom (Is. 5, 20).

 [41] Aparta dos cabritos as ovelhas (Mt. 25, 32).

 [42] Rede lançada no mar, que toda a casta de peixes colhe (Mt. 13, 47).

 [43] Escolhem os bons para os vasos, e deitem fora os maus (ibid. 48).

 [44] São muitos os chamados, e poucos os escolhidos (Mt. 22, 14)

 [45] Vinde, benditos, possuí o reino que vos está preparado desde o princípio do mundo (Mt. 25, 34).

 [46] Porque tive fome, e destes-me (Mt. 25, 35).