Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Voz primeira obsequiosa, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões , Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

VOZ PRIMEIRA OBSEQUIOSA

SERMÃO NAS EXÉQUIAS DO SERENÍSSIMO INFANTE DE PORTUGAL, D. DUARTE, DE

DOLOROSA MEMÓRIA,

Morto no castelo de Milão

Frater ejus mortuus est, et ipse remansit solus[1].

O luto nas cortes de Europa e Portugal. D. Duarte, príncipe sem exemplai; figurado em José. As três obrigações do pregador na oração fúnebre: senti); louvar; consolas A verdadeira harmonia da dor:

Enfim, reino de Portugal, que também os nossos príncipes são mortais! Enfim, corte de Lisboa, prelados, religiões, títulos, nobreza, povo, que também para nós se fizeram os lutos! E ninguém se espante de eu falar com esta singularidade dos nossos príncipes, do nosso reino e da nossa corte, porque era um engano este a que quase nos tinha persuadido a morte, mas, enfim, desenganou-nos. Se lançarmos os olhos por todos os reis do mundo, no espaço destes nove anos, depois que vimos ressuscitados os nossos, acharemos que, tendo dado tão repetidos exemplos da mortalidade todos os outros príncipes, só os nossos pareciam imortais. Vimos neste tempo em França a morte de Luís XIII, em Inglaterra a infelicíssima de el-rei Carlos, em Dinamarca a de Segismundo, em Polônia a de Ladislau IV, e, antes dele, a da rainha Cecília Renata, e o primogênito Segismundo; em Alemanha, a da imperatriz Maria de Áustria, e, dentro em três anos, a de outra imperatriz Maria; em Castela, a da rainha D. Isabel de Bourbon, a do infante D. Fernando, e a do príncipe Baltasar. E no meio de tantas mortes reais, de que se viu quase em continuados lutos toda Europa, só a casa de Portugal, sendo a mais dilatada em número de príncipes que todas as outras, passava isenta o curso dos anos, sem pagar este tributo, como se tivera a vida de juro, e gozara privilégios de imortalidade. Mas, ó morte cruel, quem se fiará da dissimulada lisonja de teus enganos! Nove anos esteve duvidando a morte, e armando juntamente o arco para despedir a seta com maior força, e a empregar com maior golpe. Troféu são desta façanha as colunas, os arcos, as luzes dessa pirâmide triste, que levantou a dor, o amor e a obrigação do nosso monarca, que muitos anos viva, à morte, à ausência, à memória do sereníssimo infante D. Duarte, irmão muito prezado seu, e glória defunta nossa, príncipe digno de mais larga vida e de melhor fortuna, cujo nome será sempre aos portugueses amável, à lembrança lastimosa e eterna saudade.

Para falar neste lastimoso caso sobre o fundamento da Escritura, que se costuma, lancei os olhos por toda a História Sagrada, e, sendo tão abundante de exemplares grandes, ou os busquemos nas virtudes, ou nas desgraças, nenhum achei em toda ela que igualasse o presente: as idéias não têm exemplares. Pintou a natureza no nosso infante um príncipe original, e nenhum houve antes dele de que pudesse ser cópia, nem haverá depois dele outro que o seja sua. Havendo, pois, de pregar com esta gloriosa impropriedade, escolhi entre todos a José, de quem se disseram as palavras do tema, não pelo mais parecido, mas pelo menos dessemelhante. José, o sábio, o generoso, o adorado príncipe, o bom irmão; José, o perseguido, o vendido, o desterrado, o encarcerado, o morto: Mortuus est frater ejus, et ipse remansit solus.

As obrigações desta ação, seguindo os exemplos dos padres da Igreja, e ainda dos oradores mais antigos que eles, são três: sentir a morte, louvar o defunto, consolar os vivos. Desta maneira ocupamos toda a alma nesta última saudade dos que amamos: os afetos de sentimento pertencem à vontade, a narração dos louvores à memória, e os motivos da consolação, que sempre são mais dificultosos de achar em quem deveras padece, correm por conta do entendimento. Para satisfazer a todas estas obrigações, viera eu de boa vontade em um partido, que era trocar as palavras em lágrimas, e que em lugar de eu dizer, e vós ouvirdes, choráramos todos. Se as obrigações deste dia são sentir, louvar e consolar, melhor fizeram tudo isto as lágrimas que as vozes. As lágrimas são o mais vivo do sentimento, porque são o destilado da dor; são o mais encarecido dos louvores, porque são o preço da estimação; são o mais efetivo da consolação, porque são o alívio da natureza. Ordenou a natureza que as lágrimas, assim como são efeito, fossem juntamente alívio da mesma dor, para que se pudesse conservar o mundo: se assim não fora, uma só morte como esta nos levara a todos. Deste conselho de chorar e calar usaram aqueles amigos de Jó na sua calamidade; mas, pois o costume há de prevalecer à razão, e é forçoso o dizer, onde fora mais fácil o chorar, em seguimento destas três obrigações, consideraremos três vezes as palavras que propus, nas quais não me atrevo a prometer nem ordem, nem discurso, nem concerto, porque em semelhantes ocasiões a desordem do discurso, o desconcerto das palavras, o desasseio das razões é a harmonia da dor.

§I

A morte do príncipe D. Duarte e a morte do imperador Valentiniano. Os extremos da dor de Jacó e da Madalena. A consideração que mais vivamente magoa aos portugueses na morte de seu príncipe; não tê-lo logrado nem vivo nem morto.

Frater ejus mortuus est, et ipse remansit solus.

Abrindo passo à nossa dor, demos princípio às nossas lágrimas; mas, por onde lhes daremos princípio? Nesta mesma suspensão se achou o grande padre Santo Ambrósio, pregando as honras do imperador Valentiniano; e, depois de duvidar por onde começaria a chorar: Quid primum defleamus? – começou assim: Conversi sunt dies nobis votorum nostrorum in lacrymas, siquidem Valentinianus noster; sed non talis qualis sperabatur advenit. – Bem mostram estas palavras serem escritas em Milão, pois tão medidas vêem com as circunstâncias da nossa dor. Para estes mesmos dias em que estamos, esperava a nossa imaginação que, concluídos os tratados da paz geral na dieta de Munster, teriamos livre em Portugal o nosso desejado infante; mas conversi sunt dies nobis votorum nostmrum in lacrymas: os dias, que imaginávamos nos haviam de amanhecer mais alegres, esses mesmos nos anoiteceram os mais tristes: Siquidem Valentinianus – digamos nós Eduardus noster– sed non talis qualis sperabatur advenit. – Quantas vezes imaginávamos despovoar-se Lisboa, e corrermos todos a essas praias de Belém a receber o nosso cativo, ou o novo libertado infante, como mais alegre, e com o mais formoso triunfo que jamais se viu em Portugal? E que diferente concurso é este que estão vendo os nossos olhos! Ajuntamo-nos também hoje, mas, para chorar sua morte, para lamentar suas exéquias. Certo, senhor, que não era este o recebimento que aparelhava a V. Alteza o nosso desejo e o nosso amor; mas trocaram-se as nossas esperanças em lágrimas, os nossos alvoroços em tristezas, as nossas imaginações de festas em lutos, os nossos arcos triunfais em túmulos, e os panegíricos, que já começávamos a estudar, em epitáfios. Esperávamos, como Jacó, a vinda do nosso suspirado José, e entrou-nos pelas portas, não José, mas a sua túnica despedaçada, a nova cruel da sua morte, escrita com o sangue da sua inocência. Oh! que contrários efeitos tiveram nossas enganadas esperanças! Non qualis sperabatur advenit. – A consideração desta última palavra – advenit – faz ainda mais rigorosa a nossa dor, que a que Santo Ambrósio ponderava nos seus milaneses: eles, quando esperavam vivo a Valentiniano, entrou-lhes pelas portas morto; nós esperávamos o nosso infante vivo, e nem morto o temos.

Esta foi uma circunstância que muito ponderou e muito lastimou a Jacó na perda do seu José: Fera pessima comedit eum, bestia devoravitJoseph (Gên. 37,33): Ó filho meu – dizia Jacó – que uma fera cruel vos comeu, uma fera vos tragou! – Notai: não disse que a fera o matara, senão que a fera o comera; a fera que somente mata, tira a vida e deixa o corpo; a fera que come e traga, tira a vida, e nem o corpo deixa. Foram tão feras para conosco as feras que nos mataram o nosso José, que não só lhe tiraram a vida, mas nem o corpo, para nossa consolação, nos deixaram. Não quiseram que lhe levantássemos a aliviada dor de um sepulcro, senão a dobrada desconsolação de um cenotáfio. Muito digno de reparo é que fossem mais as lágrimas da Madalena às portas da sepultura de Cristo que ao pé da cruz; deu a razão da diferença Orígenes, com estas palavras: Prius dolebat defunctum, modo dolebat sublatum; et hic dolor major eras: Na cruz chorava a Cristo defunto, no sepulcro chorava a Cristo roubado; e esta segunda dor era maior que a primeira, porque a primeira era dor com algum alívio, a segunda era dor sem nenhuma consolação; na cruz perdera a Cristo vivo, mas consolava-se com que o tinha morto; no sepulcro não lhe restava com que se consolar, porque nem vivo nem morto o tinha. Uma diferença, que desconsolava muito a Madalena na sepultura de Cristo, é a que eu considero nesta: nas outras sepulturas dizem os epitáfios por fora: Hic jacet: Aqui jaz. – Na sepultura de Cristo diziam as vozes de dentro: Non est hic: Não está aqui. – Oh! que cruel epitáfio! Tristíssima palavra é aqui jaz; mas non est hic: não está aqui – ainda é mais triste: não termos a quem amávamos, nem ainda na sepultura; vermos a sepultura, e carecermos do sepultado, é o rigor mais lastimoso de todos.

Assim o considerava e o sentia Jacó, mas a causa da nossa dor ainda é maior que a sua. Jacó carecia de José morto, mas lograra-o vivo por muitos anos; nós, pelo contrário, ao nosso infante nem o temos morto nem o logramos vivo. Oh! que gênero de dor tão inconsolável! S. Bernardo, na morte de seu irmão Gerardo; antes de S. Bernardo; Santo Ambrósio, na morte de seu irmão Sátiro; antes de Santo Ambrósio, Sêneca, na morte de um irmão de Políbio: todos estes grandes entendimentos, buscando remédio à dor, dizem que nos havemos de consolar na falta do bem que perdemos com a memória do tempo em que o logramos. Se esta é a consolação, bem nos podemos despedir de nos consolar: o bem que no melhor tempo perdemos, em nenhum tempo o logramos. Diz Boécio que o mais infeliz gênero de infelicidade é o ter sido feliz: Infelicissimum genus est infortunii fuisse felicem. – Foi tão avara conosco a nossa fortuna, que nem nos concedeu a desgraça o ter sido felizes. Toda a ordem que costuma guardar nas mesmas infelicidades trocou a fortuna conosco: nas felicidades que se malogram, ao esperar segue-se o possuir, e ao possuir segue-se o perder; em nós não foi assim: perdemos antes de possuir, e, ajuntando um extremo com outro extremo, passamos da esperança à perda, e do desejo à saudade: ontem esperávamos, hoje choramos. A última coisa que se perde nas calamidades é a esperança, e essa foi a primeira que nós perdemos, porque não tivemos outra.

Mas, sobre todas as circunstâncias, a que mais nos deve magoar é que da mesma perda que choramos, se bem o considerarmos, nós fomos a causa. Assim foi, senhor, assim foi, que se Portugal se não vira coroado, nunca tão cedo vos chorara morto, porque nós fomos ditosos, fostes vós infeliz: esta é a consideração que mais vivamente nos magoa. Se buscarmos aos trabalhos de José a última disposição que tiveram, acharemos que foi a prosperidade da casa de seu pai. O recado que José levava, quando o prenderam e venderam os irmãos, era este: Vide si cuncta prospera sunt (Gên. 37,14): Vede se vai tudo próspero. – De sorte que o desejo que Jacó teve da prosperidade de sua casa, foi a ocasião, sem o pretender, por que ele e mais a casa perderam a José. Na nossa prosperidade perdeu o infante a sua; da nossa bonança se levantou a sua tormenta: ele morreu, porque nós ressuscitamos; quebrou o reino venturosamente as prisões do nosso cativeiro, e, sem sabermos o que fazíamos, as cadeias que tiramos das nossas mãos passamo-las às vossas. Alfim, achou a fortuna com que nos fazer ingrata a liberdade.

§II

Quão grande homem era o infante D. Duarte. O temor de Castela. O testemunho dos inimigos. Os extremos que fez Castela no caso da prisão e restituição de Sua Alteza. Que conselho foi o de Castela em uma prisão tão cheia de excessos. Os temores dos irmãos de José e os medos de Castela.

Já é tempo que se suspendam um pouco as lágrimas, e que, apartando-as da consideração da nossa perda, as detenhamos na admiração da mesma causa delas. Impossível assunto fora querer eu reduzir a este discurso as muitas virtudes verdadeiramente reais, em que este grande príncipe, assim na paz, como na guerra, foi admirável. Fique esta matéria inteira para quem escrever ao mundo os exemplos da sua vida, que eu, seguindo as palavras que propus, não quero, para admiração e suspensão nossa mais que os da sua morte: Mortuus est.

Esta morte de Sua Alteza, ou a podemos considerar da parte do sujeito, ou da parte da causa, ou da parte da Providência. Da parte do sujeito, considerando-a no infante que a padeceu; da parte da causa, considerando-a no inimigo que aexecutou; da parte da Providência, considerando-a em Deus que a permitiu. Em todas estas considerações se descobrem admiravelmente as grandezas deste príncipe, em tudo admirável e em tudo grande. Comecemos pelo testemunho dos inimigos, que é sempre o menos suspeitoso e o mais qualificado.

Quereis saber, portugueses – já que vos não foi lícito vê-lo – quereis saber quão grande príncipe era o vosso infante? Vede os empenhos, vede os extremos que fez Castela para que vós o não lográsseis. Notável política foi a de Castela no caso da restituição de S. Majestade. Chegam as novas a Madri, faz-se conselho sobre Portugal: e que resultou? Que logo se despachem postas a Alemanha, que se prenda D. Duarte de Bragança a todo custar. As dificuldades que tinha a prisão de um príncipe livre em uma corte livre; o direito das gentes, a fé da hospitalidade, os benefícios passados com nome de serviços, para serem ainda mais relevantes; a inocência do caso, provada com o tempo, com a distância, e muito mais com a presença da pessoa; o escândalo da fama aos mesmos interessados injuriosa; todos estes respeitos, divinos e humanos, se atravessavam diante, a todos se haviam de fechar os olhos, todos se haviam de vencer, e todos se arrastaram e venceram à força de diligências, à força de instâncias, à força de negociações públicas e secretas, e à força da maior de todas as forças, que, em século tão corrupto, é a do dinheiro. Vendido e preso o infante, em nenhum lugar o davam por seguro as cautelas dos que o guardavam. Do quartel de Lupen o passaram a Ratisbona, de Ratisbona a Passaw, de Passaw outra vez a Ratisbona; de Ratisbona outra vez a Passaw, de Passaw a Gratz, de Gratz, finalmente, a Milão. Em todos estes caminhos ia o infante cercado de grandes tropas de soldados, e no último, para maior segurança, atado a cadeias: tão esquecidos estavam de quem era, ontem lembrados do que era. No fortíssimo castelo de Milão o meteram na casa mais forte, com guardas dobradas e mudadas, com sentinela sempre à vista, com rondas e sobre-rondas que as vigiassem, com interdito perpétuo de não ver, de não ouvir, de não falar, de não escrever.

Agora quisera eu perguntar a Castela, que conselho foi o seu em uma prisão tão cheia de tantos excessos. Se Portugal está todo levantado – como então se dizia – se não há cidade, nem vila, nem lugar, nem casa que não reconheça ao nosso rei; se em todas as fortalezas do reino, presidiadas por Castela, não há uma só ameia por sua parte, que importa que Portugal tenha mais um homem? E, ainda que importara muito, muito mais importava ao crédito da mesma monarquia. Por um homem há de fazer tantos extremos? Por um homem há de chegar a tratos tão indecorosos uma monarquia como a de Espanha.? Aqui vereis quão grande homem era o infante D. Duarte; mas vamos primeiro a José, que nos servem muito as suas circunstâncias para o vermos. Uma das coisas que muito se admira em José, é o muito caso que seus irmãos fizeram dele e dos seus sonhos. Os irmãos não eram onze, e todos homens? José não era um, e o menor de todos? Pois, que importa que José sonhasse ou não sonhasse, para se fazerem tantos conselhos sobre ele; para uns dizerem que morra, outros que seja preso, outros que seja vendido, e, finalmente, para concordarem todos em que não torne mais à casa de seu pai? Porventura temiam que viesse a ser verdade o que José sonhara? O que eles temiam, eles o disseram: Ecce somniator venit[2]. – Não se temiam dos sonhos mas temiam-se do sonhador. O que José sonhara foi que, no dia da sega, as paveias dos seus irmãos caíam aos pés da sua; e, ainda que os irmãos eram onze, e José o irmão menor, viam nele tal saber, tal prudência, tal generosidade, tal valor, enfim, uns espíritos tão grandes e tão superiores à fortuna em que estava, que para tudo o que significasse o sonho havia nele capacidade, e que o faria melhor acordado, do que o sonhara dormindo. De maneira que o conhecimento e conceito grande que tinham de José, era o que fazia a tantos temer a um só: ele sonhava com os irmãos, e os irmãos sonhavam-no a ele. E como não há afeto mais cruel que o temor, este temor aconselhado foi, esquecido de todos os respeitos, o que o vendeu, que o prendeu, e o quis matar e publicar por morto: Mortuus est.

Ah! perseguido José nosso! Que o muito que conheceram em vós e de vós vossos êmulos – sangue também vosso – foi o que a tanto preço e desprezo vos vendeu e comprou a liberdade, e o que a tão apertadas e dilatadas prisões vos martirizou e tirou a vida. Conhecia Castela melhor que nós quanto havia que temer, no peito, na cabeça e no braço do infante; e este conhecimento, e este temor foram as culpas que se provaram contra sua inocência, e as que o condenaram. Não me atrevera eu a o afirmar – posto que sempre o entendesse assim – se a mesma Castela o não confessara e publicara ao mundo, em um manifesto que novamente mandou imprimir, e cedo andará nas mãos de todos. Refere-se ah uma consulta dos deputados que se deram à causa de Sua Alteza, e, concordando todos em que se lhe não devia dar liberdade, ainda em caso em que estivesse inocente, dizem estas palavras: El miedo es justo, el receio prudente, el remedio necessario. – Há tal encarecer de temor! Assim o confessam publicamente, e era tal a pessoa do infante, que não têm por menos crédito o confessá-lo. Mas vede como lhes mudava as cores o medo! Parecia-lhes justiça: El miedo es justo; parecia-lhes prudência: El receio prudente; parecia-lhes necessidade: El remedio necessario; uma cor era de justiça, outra cor era de prudência, outra cor era de necessidade, e tudo era medo. Oh! cega razão de estado humana e muito cega, quando te guia a ambição, mas muito mais cega quando te precipita o temor! De sorte que ter em prisões o inocente era justiça; temer, mais a um homem que a Deus, era prudência; comprar uma liberdade por um tesouro, era necessidade; e todos estes precipícios fazia saltar o temor que tinham tantos homens a um homem.

§ III

Davi e o temor dos inimigos. A grande prova de quão grande sujeito era Sansão. Até onde chegava o temor de Castela. O que, fez Davi em semelhante caso.

Dizia Davi a Deus: A timore inimici eripe animam meam (SI. 63, 2): Senhor, livrai a minha vida do temor de meu inimigo! – Estas palavras podem ter dois sentidos, e ambos os explica Hugo Cardeal: ou pedir Davi a Deus que o livre do temor que ele tinha a seus inimigos; ou pedir que o livre do temor que seus inimigos lhe tinham a ele. Este segundo sentido é mais conforme ao que soam as palavras, porque o temor que eu tenho a meu inimigo é temor meu, e o temor que meu inimigo me tem a mim é temor seu: A timore inimici. – Mas como pode ser que peça Davi a Deus que o livre do temor de seu inimigo? Que o livre do seu poder, que o livre do seu valor, que o livre das suas traições, que o livre do seu ódio, sim; mas que o livre do seu medo, que o livre do seu temor? Com muito maior razão, porque não há mais cruel inimigo, que o inimigo com medo. O inimigo sem medo muitas vezes é piedoso, o inimigo com medo é inimigo sem piedade; o inimigo sem medo satisfaz-se muitas vezes sem chegar à vida, o inimigo com medo só com a morte se dá por seguro. A razão e a experiência é porque o inimigo sem medo trata da sua satisfação, o inimigo com medo trata da sua segurança e ódio. Assim lhe aconteceu ao nosso infante, que não sossegou o medo de seus inimigos, até que o passou do cárcere à sepultura: Mortuus est.

Oh! que cruel foi este temor! Mas que glorioso para Sua Alteza! Muito glorioso fez a Davi a vitória do Golias, mas muito mais glorioso o medo de Saul; muito gloriosas foram para Sansão as vitórias dos filisteus, mas muito mais glorioso o temor que os mesmos filisteus lhe tiveram. Que Davi, sendo um só homem, peregrino, fora da sua pátria, como então era, desse tanto cuidado a Saul, e que, sendo um rei tão grande, tão poderoso, armasse tantos soldados, e fizesse tão extraordinárias diligências para o prender! Grande argumento de quão grande pessoa era Davi. Mais o honrou Saul com a prisão, que não chegou a fazer, que com a inveja que lhe tinha. E que Sansão, sendo também um homem só, e desarmado, metesse em tanto temor e perturbação a todo o senado e república dos filisteus, e que os filisteus, sendo os que tanto dominavam naquele tempo, multiplicassem guardas, cercassem cidades, armassem exércitos, buscassem tantos outros meios, ainda indecentes, para o prender! Grande prova de quão grande sujeito era Sansão; mais o honraram os filisteus com o seu temor, do que o honrara o leão que ele desqueixara, e não temera. Muito glorioso fez a Davi e a Sansão o temor de seus inimigos; e, se a glória se há de medir pelo temor, maiores circunstâncias ainda de temor se acham na prisão de Sua Alteza, que nas de Sansão e Davi.

Saul fez tantas diligências por prender a Davi, mas sempre por meio das armas: soldados a sua casa, soldados a Ceila, soldados a Engádi, soldados a Zif, soldados a toda a parte onde sabia que estava; mas, ainda que tanto o procurou prender, nunca tratou de o comprar: preso sim, mas não vendido, não, que não se abatia a tanto o temor de Saul. Para prender o infante não só se armaram soldados, mas armou-se o interesse, armou-se a infidelidade, armou-se a traição, e não houve trato feio e cruel que se não armasse: tanto era o temor que obrigava a tanto! A prisão e entrega de Sansão, é verdade que foi compracom o preço que se deu a Dalila; mas, depois de os filisteus o terem em suas mãos, contentaram-se com lhe tirar a vista; a língua e os ouvidos deixaram-lhos livres, e, ainda que nos cabelos tinha toda a fortaleza, também lhe deixaram crescer os cabelos. Ao infante, depois de preso, tiraram-lhe o ver, tiraram-lhe o ouvir, tiraram-lhe o falar; e, se os cabelos significam os pensamentos, até os pensamentos lhe prenderam, porque também os instrumentos de comunicar, que era o escrever, lhe tiraram: tanto era o temor que obrigava a tanto!

Ainda que seja com agravo nosso, não hei de deixar de dizer onde chegava este temor. Naquele conselho, que já referi, em que se resolveu a prisão de Sua Alteza, houve voto – e grande voto – que se aceitasse aos catalães a sujeição que ofereciam, e que o exército de Catalunha, assim inteiro como estava, se passasse a Portugal, antes que tivesse tempo de mais prevenções. Respondeu-se a este voto, que Portugal não dava cuidado, que estava seguro. De maneira, que Portugal, em Portugal, não dava cuidado, e o infante em Alemanha, dava-lhe tanto cuidado! Por certo que esta pouca estimação de Portugal não sei em que a fundava Castela. Se os exemplos do valor português estiveram só além do Cabo da Boa Esperança, não fora muito que Castela os não visse por distantes; e, se estiveram só nos tempos de el-rei D. João o I, e do conde D. Nuno Álvares, não é muito os esquecesse por antigos; mas bem sabia Castela, pelos mesmos correios que lhe levaram a nova, que para lhe tirarem o nome em uma hora, e o reino em oito dias, bastaram só quarenta portugueses; quanto mais que pelas relíquias deles, que lá tinha, podia julgar quais eram os que cá ficavam. Todos os postos grandes, que tem Castela, ocuparam portugueses nestes nove anos: a armada, as galés, a frota, a embaixada de Roma, e a de Alemanha, as armas de Flandres, e as de Catalunha, tudo nestes nove anos esteve a cargo dos poucos portugueses que em Castela se acharam. Pois, se Portugal é um reino tanto para dar cuidado, como o tinha Castela por tão seguro, e todo o seu cuidado punha na prisão do infante? Para que não nos admire este pensamento de Castela, e dele infiramos melhor quem o infante era, ouçamos o que fez um tão grande soldado, e tão grande político, como Davi, em semelhante caso.

Aclamou-se Absalão rei de Israel em Hebron, e foi logo aclamado e recebido em todas as cidades do reino, sem ficar uma só. Chegou a nova a Davi pelo primeiro aviso, dizendo que todo o reino, com todo o coração, seguia a Absalão por seu rei: Venit nuntius ad David, dicens: Toto corde universus Israel sequitur Absalom (2 Rs. 15, 13). – Chegou daí a poucas horas segundo aviso, e acrescentou que também Aquitofel seguia as partes de Absalão: Nuntiatum est autem David quod et Achitophel esset cum Absalom (ibid. 31). – Tanto que Davi ouviu dizer que Aquitofel seguia as partes de Absalão, no mesmo ponto levantou as mãos ao céu, e fez oração a Deus, pedindo que o livrasse do conselho de Aquitofel: Dixitque David: Infatua, quaeso, Domine, consilium Achitophel[3]. – Notável orar e não orar de Davi! Quando lhe dizem que está levantado em rei Absalão, e que todo o reino unido em um coração o segue, não ora Davi a Deus, nem pede que o livre do rei nem do reino; e, tanto que lhe dizem que também Aquitofel tomou a voz de Absalão, então ora, então pede a Deus que o livre dele e do seu conselho! Sim, porque era homem Aquitofel de tanta cabeça, de tanta autoridade, de tanta indústria, de tanto talento, que, em ordem à recuperação do reino, contrapesava mais aquele homem só, que todo o reino junto. O reino, ainda que unido, sem Aquitofel, parecia-lhe a Davi que o poderia restaurar; mas unido, e Aquitofel com ele, julgava-o por irrestaurável. Este é o conceito que de Aquitofel fazia Davi, este o que do infante D. Duarte fazia Castela e seus conselhos. Se nós chegáramos a ver aquele grande irmão fora daquele castelo, Castela nos respeitara mais: Quis mihi det te fratrem meum, ut inveniam te foris, et jam me nemo despiciet[4]! – O respeitar menos Castela a Portugal, é pelo grande conceito que tem de si; e respeitar e temer tanto ao infante, é pelo grande conceito que tinha dele. Não podemos negar que na largueza das terras, e no número da gente, excede Castela muito a Portugal; media-se, pois, Castela com Portugal sem o infante, e, olhando para a sua grandeza, dava a Portugal por seguro; tornava-se a medir outra vez com Portugal junto com o infante, e, olhando para o talento do infante, dava a Portugal por perdido; por isso lhe dava menos cuidado Portugal, e o infante lhe dava tanto cuidado, e tantos cuidados. Se os êmulos de José o sonhavam, mais sonhava Castela ao infante: aquele desvelo, com que, dormindo e acordado, o velavam, que era, senão sonhá-lo? Cuidavam que nele nos tinham presos também a nós; cuidavam que, com os muros de Milão, estavam sitiando a Portugal; cuidavam que Portugal, sem o infante, era seu, e com o infante, nosso. Eu não sei que maior elogio se pode dizer do infante, que este temor de Castela. Não digo mais. Se contarmos os reinos sujeitos a Castela, acharemos que são tantos como há cidades em Portugal; e, estando tão desiguais as balanças, entendeu Castela que, para se trocar a desigualdade, bastava que se pusesse da parte de Portugal a espada do seu infante. Não faz fim a Escritura de encarecer o peso das armas do gigante Golias, e, contudo, é certo que não pesavam tanto da parte dos filisteus as armas do gigante, quanto da parte de Israel a funda de Davi. Os vassalos de Davi avaliavam a sua pessoa em dez mil homens: Tu unus pro decem millibus computaris. – E em quantos mil avaliava Castela o nosso infante, pois se persuadiu que com ele não podia vencer-nos? Nenhum príncipe alcançou jamais tão grande vitória de tão poderoso inimigo: não venceu o infante a Castela na campanha, venceu-a em seu próprio conceito; tirou-lhe por despojos o que nenhum vencedor tirou jamais ao vencido: a esperança de poder ser vencedora. Só uma coisa havia em Castela maior que o infante, que era o seu temor, e por isso esse só o pôde matar: Mortuus est.

§ IV

A generosidade do príncipe. De que modo concorreu Sua Alteza para a própria morte? A grande pintura da falsa política dos príncipes no juramento de José a Jacó no Egito. Davi e o único seguro das palavras dos príncipes. Por que não fugiu D. Duarte? Donde nasceu a diferença de pensamentos entre José e seus irmãos?

Mas, passando da causa ao sujeito, e considerando esta morte da parte do mesmo senhor infante, não é menos de ponderar, e de admirar, que também concorresse para ela Sua Alteza. Quando chegaram à corte de Alemanha as primeiras notícias da restauração de Portugal, teve tempo Sua Alteza para logo passar-se a terras de outra jurisdição, e não se passou logo. Estando já para se partir, teve recado do imperador, em que o chamava, e foi, podendo não ir: nesta detença, posto que breve, se lhe embargou a liberdade, a que depois se seguiu declaradamente a prisão. Dava por razão Sua Alteza, depois do sucesso, que se fiara no seguro da palavra imperial, que tinha, de que em terras do império não consentiria fazer-se-lhe violência. Mas dizem os políticos que nem Sua Alteza havia de crer tal palavra, nem se havia fiar de tal seguro. Na história de José se vê retratada esta política em uma bem notável alegoria dela. Estando Jacó para morrer no Egito, chamou a seu filho José, que naquele tempo era lugar-tenente de el-rei Faraó, e, tomando-lhe da mão a insígnia real, ou o cetro, que nela trazia, pediu-lhe que lhe prometesse e jurasse de fazer levar seus ossos à Terra de Promissão, à sepultura de seus avós; e, depois que assim o prometeu e jurou José, encostado Jacó sobre o cetro, que lhe tirara da mão, adorou a Deus, e deu-lhe graças. Este é o sentido em que explica Santo Agostinho aquele texto dificultoso dos Setenta: Adoravi Israel super cacumen virgae ejus. – Quid est – diz o grande doutor – adoravit super cacumen virgae ejus, id est, Joseph? An forte Jacob tulerat ab eo virgam, quando ei jurabat idem filius, et dum eam tenet post verba jurantis, nondum illa reddita, mox adoravit Deus? – De maneira que, quando José houve de prometer e jurar, tirou-lhe Jacó da mão o cetro, e não lho deu senão depois de prometido e jurado. Oh! que grande pintura da falsa política dos príncipes, que hoje mais que nunca se usa no mundo! Para que José prometa e jure o que lhe pede Jacó seu pai, tira-lhe primeiro da mão o cetro que trazia nela, porque as promessas, e ainda os juramentos que se fazem com o cetro na mão, por mais que sejam jurados em grandes obrigações, nem costumam levar verdade, nem têm firmeza.

Que bem entendeu esta grande lição Davi! No dia em que Davi perdoou a vida a Saul, avistando-se ambos, conheceu Saul o grande benefício que dele tinha recebido; chamou-lhe filho, chorou com ele, disse-lhe que sabia de certo que havia de reinar, reconciliou-se, e capitulou com ele, debaixo de juramento, que não extinguiria sua casa; e, acabados estes concertos, diz o texto que: Ascendit David ad tutiora loca (1 Rs. 24, 23): Que fugiu Davi de Saul, e que buscou lugares ainda mais seguros para se pôr em salvo. – Pois, Davi, quando Saul vos deve a vida, e o conhece, quando chega a chorar um rei, quando vos chama filho, quando faz concertos jurados convosco, então fugis mais depressa, então temeis, e vos receais mais, e vos pondes outra vez em cobro? Sim, porque em matérias de reis e reinos não há que fiar em lágrimas, nem em palavras, nem em promessas, nem em seguros, nem em juramentos. Um só seguro têm as palavras dos reis, em quem se teme, que é desaparecer a toda a pressa, e pôr-se em seguro, como fez Davi, e assim dizem os políticos que o devera fazer o infante de Portugal; mas não o fez, porque era o infante de Portugal D. Duarte, A verdade do seu trato, a generosidade do seu ânimo, a realeza do seu coração, a honra dos seus pensamentos, o entregaram a seus inimigos. Não fora o infante quem era, se não crera a palavra que lhe deram, e se presumira antes, ou lhe entrara no pensamento o que aconteceu depois. Os pensamentos são os primogênitos da alma: sempre se parecem à origem donde nasceram; assim como ninguém é o que cuida de si, assim é certo que cada um é o que cuida dos outros. Há uns pensamentos que nascem pelo que entra pelos sentidos, e há outros que nascem do que se considera com o discurso: os que são filhos dos sentidos, parecem-se com os objetos; os que são filhos do discurso, parecem-se com o sujeito: cada um costuma discorrer como costuma obrar; e o que cuida o que os outros hão de fazer, é o que ele fizera: as obras e as imaginações dos homens não têm mais diferença que serem umas por dentro outras por fora; as obras são imaginações por fora, as imaginações são obras por dentro; e se são menos as obras que as imaginações, não é pela diferença senão pela dificuldade. Se o infante discorrera com o coração dos que lhe faltaram à fé, ele antevira que lhe haviam de faltar; mas, discorrendo com o seu coração, como podia tal presumir, e muito menos crer?

Acuda pelo seu prisioneiro o grande arcebispo de Milão: Quis hoc apprehendat in sanctis, qui alios de suo affectu aestimant? Et quia ipsis arnica est verás, mentiri neminem putant; fallere quid sit ignorant; libenter credunt quod ipsi sunt; nec possunt suspectum habere quod non sunt: Quem repreenderá aos bons – diz Santo Ambrósio – porque avaliam aos outros por si mesmos? Como não sabem, senão falar verdade, cuidam que lhe não hão de mentir; e como neles não tem lugar o engano, não crêem o que são, e não podem suspeitar o que não são: Libenter credunt quod ipsi sunt, nec possunt suspectum habere quod non sunt. – Queriam os políticos que o infante não cresse o que lhe disseram, e que suspeitasse o que lhe não disseram. O que Sua Alteza creu, foi natural; o que queriam que suspeitasse, era impossível: o que creu foi natural, porque creu o que ele era e o que ele fizera: Libenter credunt quod ipsi sunt; o que queriam que suspeitasse era impossível, porque havia de suspeitar o que era impossível que ele fosse, e era impossível que ele fizesse: Nec possunt suspectum habere quod non sunt. – Como havia de suspeitar infidelidade um ânimo tão sincero? Como havia de imaginar engano um coração tão verdadeiro? Como havia de recear mudanças um peito tão constante? Como havia de presumir vileza uma condição tão generosa? Como havia de imaginar interesses um espírito tão magnânimo? Como havia de cuidar, e de entender, e de crer, senão realezas, um ânimo, um espírito, um coração tão real? Fora não ser o infante quem era, se tal crera, se tal presumira, se tal imaginara. Cada um imagina com os seus pensamentos; e seriam pensamentos muito alheios do infante os que tais imaginassem. E já que os políticos alegam com as histórias de José e de Davi, com os mesmos lhes quero responder, e com dobrados exemplos em cada um.

Mandou Jacó a José com um recado a seus irmãos. Foi, e não os achando onde cuidava, diz o texto que o encaminhou um homem, andando errado pelo campo: Invenit eum vir errantem in agro (Gên. 37, 15): alfim, encaminhado por este homem, que muitos querem que fosse anjo, chegou; e esta foi a ocasião com que o prenderam e venderam. José sabia que lhe tinham grande ódio seus irmãos, e lho mostravam nas palavras: Oderant eum, nec poterant ei quidquam pacifice loqui[5] . – Sabia também que os tinha acusado gravemente diante do pai:Accusavit fratres suos crimine péssimo[6]. – Sabia mais, que o sonho que lhes contara fora deles mal recebido, e pior interpretado: Numquid rex noster eris, aut subjiciemur ditioni tuae[7]? Pois, se José tinha tantas razões, e tantos indícios da sua parte, e da de seus irmãos, para cuidar que, tomando-o fora da casa do pai lhe fizessem algum agravo, por que foi contudo ao recado de Jacó? Porque não presumiu que o queriam matar, porque não anteviu que o prendiam e que o venderiam, como sucedeu. Tinha José uma agudeza de vista tão superior, que penetrava os futuros; e não previu nem imaginou que o poderiam matar, que o poderiam prender, que o poderiam vender seus irmãos? Não, que semelhantes imaginações não entram em entendimento tão nobre e tão generoso, como o de José: das estrelas do céu, e das palhas do campo, adivinhava José os futuros; mas tais futuros, como esses, que envolvem uma maldade e uma crueldade tão grande, não cabem no entendimento de José, nem entram em tão honrado pensamento, como o seu. Por isso foi ao recado de Jacó, e insistiu em ir, e o ir não foi erro, senão acerto. Quando tomou por outro caminho – como queriam os políticos que o infante tomasse – então é que ia errado, e errado ajuízo dos homens e dos anjos: Invenit eum vir errantem[8]. – Se José crera ou imaginara a traição que depois lhe fizeram os irmãos, não fora José, fora como eles; e se não, diga-o a experiência. Tanto que morreu Jacó no Egito, sendo passados mais de trinta anos, entraram em pensamento os irmãos que José se queria vingar da injúria que lhe tinham feito; e, não se atrevendo a aparecer diante dele, mandaram-lhe um memorial em nome do pai defunto, em que ele e eles lhe pediam que se não quisesse lembrar daquele seu erro: Quo mortuo, timentes, f ratres ejus, et mutuo colloquentes: Ne forte memor sit injuriae quam passus est, et reddat nobis omne malum quod fecimus, mandaverunt ei dicentes, etc.[9]. – Ora, notar a grande diferença de ânimos entre José e seus irmãos. Estes, na mesma hora em que acaba de expirar o pai, em que não há irmão tanto de fera, que deixe de estar enternecido e humano; e depois de passados tantos anos, em que o tempo digere os maiores agravos; e depois de ouvirem da sua boca a José que todo aquele caso fora ordenado por Deus para remédio da casa de seu pai e exaltação sua; e depois de os abraçar, e chorar com eles, e os pôr à sua mesa, e os apresentar a Faraó, e os honrar, e enriquecer, e se prezar muito de os ter por irmãos; sobre todos estes argumentos de verdade, amizade e irmandade, ainda lhes entrou no pensamento que José se quereria vingar deles, e não se atreveram a aparecer em sua presença; e José, pelo contrário, sobre tantos motivos de ódio, de inveja, de vingança, nem temeu ir-se entregar aos irmãos em um despovoado, nem lhe passou pela imaginação, nem por sonhos, que eles lhe fariam o que lhe fizeram. E donde nasceu esta diferença de pensamentos? Das causas não, porque eram totalmente contrárias. Pois, se não nasceu das causas, donde nasceu? Nasceu dos sujeitos e dos ânimos de cada um: que cada um como é, assim imagina. José, que tinha ânimo nobre, leal, generoso, imaginava lealdade, boa irmandade, e boas correspondências; os irmãos, que eram rústicos, desleais, vingativos, traidores, imaginavam traições, imaginavam vinganças, imaginavam deslealdades, imaginavam vilezas. E, sendo isto assim verdade, que os pensamentos são espelhos dos corações, em um coração tão leal, tão generoso, qual era o do infante, como se haviam de representar tão baixos pensamentos? Estes pensamentos, ou se haviam de conformar com os objetos ou com os sujeitos: os objetos era um monarca, uma palavra real dada, a fé e hospitalidade pública, e muitos benefícios recebidos; o sujeito era o infante D. Duarte; pois, de tais objetos, e por tal sujeito, como se podiam formar pensamentos que não fossem de verdade, de generosidade, de fé, de firmeza e de confiança, que foram os que entregaram ao infante?

§V

O que presumia Davi da palavra real de Saul. Quão naturalmente crêem o bem, e quão dificultosamente se persuadem a presumir o mal os corações feitos à medida do coração de Deus. Por que não defenderam ao príncipe as asas da águia grande.

Mas, vamos a Davi. Davi, é verdade que se não fiou das palavras de Saul; mas quando se não fiou? Depois de averiguado e declarado o ódio e tenção de Saul, e depois de ter repetidamente experimentado que não valiam com ele nenhuns benefícios, nem tinham fé nem firmeza suas promessas. Antes de todas estas experiências e anatomias do coração de Saul, vede o que dele e de sua palavra real presumia o mesmo Davi: é caso notável. Desde o dia da vitória do gigante, e em que as donzelas de Jerusalém cantaram aquela letra fatal, logo Davi conheceu nos olhos de Saul o ódio e inveja mortal que no seu coração ardia: tinha-lhe prometido sua filha Merob, e a seu despeito deu-a a Adriel; em todas as ocasiões de guerra perigosa o mandava, para que lá morresse; deu-lhe a filha segunda, Micol, com condição que a havia de dotar com cem cabeças de filisteus, para que uma delas fosse a sua; descobertamente o mandou cercar e prender a sua casa, com ordem que fosse morto nela, como sem dúvida fora, se uma indústria da mesma Micol o não livrara; sobretudo, duas vezes em diferentes dias lhe atirou a Davi com a lança que tinha na mão, dentro em seu próprio paço; e, por ser ainda maior a ira que o cegava, o não pregou juntamente com a parede. Podia haver maiores e mais multiplicadas demonstrações de ódio? Podia haver mais qualificadas razões para um vassalo que tinha tanto que perder na vida, que não tratasse somente de a pôr em salvo e se não fiasse mais de um rei tão declaradamente inimigo? Pois, lede o capítulo 15 do Segundo livro dos Reis, e achareis que, sobre tantas experiências e demonstrações, estava disposto Davi a se tornar a fiar de Saul sobre uma só palavra sua, que ele dissesse a Jônatas. – Eu me ausentarei – diz Davi a Jônatas, – Se el-rei à mesa perguntar por mim, dizei-lhe que fui sacrificar a Belém. E se responder: – Bem está – eu me dou por satisfeito: Si dixerit: Bene: pax erit servo tuo (1 Rs. 20, 7). De sorte que era o coração de Davi tão generoso, e o conceito que fazia de uma palavra real, tão grande que, depois de tantos desenganos e experiências, estava ainda persuadido a se fiar de Saul, e que bastava um bene est da boca de um rei, para lhe não poder vir mal nenhum da sua mão: diga o rei: Bene est – e não quero outro salvo-conduto que esta só palavra: Si dixerit, pax erit servo tuo. – Eis aqui quão naturalmente crêem o bem, e quão dificultosamente se persuadem a presumir o mal corações como o de Davi, que são feitos à medida do coração de Deus. Davi no seu caso, e o infante no seu, ambos imaginaram o que cada um deles fizera; e se ambos se enganaram no sucesso, não foi erro do entendimento, senão generosidade do coração: Davi, em presumir que Saul obraria como rei, fez sua obrigação; e se Saul faltou à sua, por que há de ser culpa, senão louvor de Davi? E quando na credulidade e confiança de Davi coubera alguma culpa ou demasia, na do infante nenhuma se podia considerar, porque a palavra do príncipe, em que se fiou, pela grandeza, pela fé, pela religião, pela amizade, pelas obrigações, pelos exemplos dos maiores, enfim, por tudo, prometia firmeza, segurança, e a confiança que dele se fez.

Razão e muitas razões tinha Sua Alteza para recear que procurasse a fera péssima comer a José; mas muito maior razão e razões tinha para crer que, quando o quisesse comer o leão, sairia a o defender a águia. Para tragar um infante, filho daquela ilustre mulher do Apocalipse, saiu em campo um dragão fero: e por que o não tragou a ele nem a ela? Porque teve por si o amparo das asas de uma águia grande: Datae sunt mulieri duae alae aquilae magnae, ut volaret in locum suum[10]. – Com o favor das duas asas de uma águia grande teve lugar para ir seguramente para a sua terra. Se esta é a obrigação das águias grandes, ainda quando não devem obrigações, como havia de presumir o contrário da grandeza de outra águia, e tão obrigada a um infante não menos ilustremente nascido? Não digo eu de uma águia, mas de outra ave menos real o deve presumir e esperar assim. Dentro em Portugal tinha o exemplo. Entregou-se o corpo de S. Vicente em confiança a um corvo, e, sendo o depósito de tão grande tentação para a voracidade natural daquela ave, a mesma confiança que dela se fez a obrigou a tanto, que se pôs em campo aberto contra o lobo, e com as asas e as unhas o defendeu de seus dentes; e se este primor se acha nos corvos, por que se não havia de esperar das águias? Uma delas foi o grande imperador Carlos V, do qual se conta que, fazendo o ninho uma andorinha na tenda onde estava alojado, havendo de marchar para outra parte, mandou que se não desfizesse a tenda, até que a andorinha a não deixasse: tão sagrado lhe pareceu àquele imperador o direito da hospitalidade, que até com uma avezinha de tão inferiores respeitos quis que se guardasse. Sendo pois o sagrado das asas imperiais tão sagrado, como havia de presumir, nem imaginar, e muito menos crer que, devido por tantos títulos, e ainda prometido, lhe faltasse? Para tal crer, para tal presumir, para tal imaginar, havia de obrar com outro entendimento menos verdadeiro, e com outro coração menos generoso, e não com o seu.

§VI

O exemplo do segundo Davi, Cristo. Se o Senhor sabia tudo o que devia vir sobre ele no Horto, como pergunta a quem buscavam? A prisão de Cristo e a prisão do príncipe D. Duarte.

O segundo exemplo que prometi de Davi, seja do segundo Davi, para que seja sem exemplo. Entraram pelo Horto de Getsêmani os soldados do Império Romano, capitaneados por Judas, para prender injuriosamente a Cristo. Sai-lhes o Senhor ao encontro, e pergunta: Quem quaeritis (Jo. 18, 4)? A quem buscais? – Antes destas palavras nota imediatamente S. João, para os que não soubessem, que sabia o Senhor tudo que havia de vir sobre ele: Jesus autem, sciens omnia quae ventura erant super eum (ibid.). – Pois, se o Senhor sabia tudo o que havia de vir sobre ele, como pergunta a quem buscavam? Ponderosamente Ruperto: Non dixit: Ecce ego, quia me quaeritis; sed: Quem quaeritis, inquit, quia se vera talem persecutionis modum veritas nescit: Não se apresentou o Senhor, aos que o vinham prender, dizendo que bem sabia a quem buscavam; mas pergunta-lhes: A quem buscais? – como se o não soubera, porque tal modo de perseguição, e de prisão, era tão alheio de todo o discurso e de todo o crédito, que verdadeiramente – diz Ruperto – a mesma verdade de Deus, a quem nada se esconde, parece que a não podia acabar de crer, e que a ignorava. – Menos moderadamente falam as palavras de Ruperto, mas assim se hão de entender. Cristo, enquanto Deus, pela ciência divina, e enquanto homem, pela ciência sobrenatural, conhecia e estava vendo tudo o que lhe havia de acontecer; mas se, postas estas duas ciências à parte, discorrera Cristo naturalmente com todo o seu entendimento e saber, não crera nem se persuadira, que tal modo de perseguição lhe traçavam os homens, a quem ele tão diferente tratamento tinha merecido. Cristo foi preso sem culpa, e sobre muitos benefícios, e debaixo de falsa paz, e atado como malfeitor, e vendido por Judas, e desamparado dos que lhe tinham prometido fidelidade: e todas estas circunstâncias – quanto a comparação o sofre – concorreram na prisão do infante. Pois, se o entendimento e conceito do mesmo Cristo se não pudera persuadir a tal modo de prisão, tão enganosa, e tão desmerecida, como a havia de crer nem imaginar um ânimo tão leal e tão verdadeiro como o do infante? Talem persecutionis modum veritas nescit. – Cristo foi vendido, e faltaram-lhe à promessa: a venda executou-a Judas, a promessa quebrou-a Pedro. E se estes defeitos se não acharam senão divididos em dois pescadores, como os havia de presumir o infante juntos em um príncipe? Mas o certo é – para que diga o que creio – que em tudo foi parecida uma prisão a outra: a prisão de Cristo não foi mandada pelo imperador de Roma, senão executada por seus ministros, mandados por outros príncipes: Missi a principibus sacerdotum, et senioribus populi[11]. – Se não houvera maus ministros ao lado dos príncipes, nunca a pureza de sua verdade nem a fama de suas ações padecera eclipses. Mas o verdadeiramente eclipsado foi o nosso sol, que, como sol, correu por seus próprios passos ao seu ocaso. Vendeu-o a cobiça, mas primeiro o vendeu a generosidade do seu ânimo; entregou-o o engano, mas primeiro o entregou a verdade do seu coração; prendeu-o a vileza e matou-o a crueldade, mas primeiro o prendeu e matou a nobreza da magnanimidade real de seus pensamentos. Dois conceitos concorreram à morte de Sua Alteza, ambos para ele mui gloriosos, porque ambos mostravam quem era: o conceito que Castela tinha do infante, com que tanto o temeu, e o conceito que o infante teve dos que o entregaram, com que os não soube temer: morreu por muito temido, e morreu porque não soube temer: o temor alheio e o seu destemor o mataram: Mortuus est.

§ VII

Que causa ou que motivo teria a providência para não acudir, como costuma, nela inocência, e deixar morrer num cárcere um príncipe tão digno de vida? As intercessões de Portugal e os ciúmes de Deus. A matéria principal dos ciúmes de Deus: a glória das armas. A famosa vitória de Gedeão.

Estas foram as causas que houve da parte de Castela e da parte do infante. Nela para concorrer, e nele para não divertir sua morte; mas da parte da evidência, que é causa sobre todas as causas, que causa ou que motivo haveria para não acudir, como costuma, pela inocência, e deixar morrer num cárcere um príncipe tão digno de vida? De José diz a Escritura: In vinculis non dereliquit illum (Sab. 10, 14): Que o não deixou Deus nas prisões – porque, ainda que esteve preso dois anos, o tirou dela com tanta glória. Pois, se assim costuma Deus tratar a inocência, se assim costuma acudir pela justiça, como neste caso trocou Deus o estilo ordinário de sua providência, e não só negou à liberdade do infante os meios divinos, mas ainda lhe estorvou, como de propósito, todos os humanos? Se houve sucesso no mundo, que mereça nome de fatalidade, foi sem dúvida o da prisão e morte do infante D. Duarte.

Dirá porventura alguém, fundado na mesma história de José, que a demasiada diligência que se pôs nos meios humanos foi a que estorvou o efeito deles, porque assim lhe sucedeu a José com a confiança que pôs na valia do copeiro de Faraó. Não nego que as diligências sumas humanas foram todas as que costuma o grande amor, quando se ajunta com o grande poder; mas é certo que os meios e diligências divinas se aplicaram dobradamente, porque se batia o castelo por fora, e mais por dentro; pela nossa parte, e mais pela do infante. Era o infante mui devoto daquele altíssimo Sacramento, em que Cristo se deixou preso com os homens nas cadeias de seu amor; e, se mostrava bem esta devoção nas ofertas verdadeiramente de príncipe, com que enriquecia seus altares, não era menor a sua liberalidade nem o seu afeto com a Mãe do mesmo Senhor, e Senhora nossa, a Virgem Maria: todos os dias lhe oferecia particular sacrifício de orações com grande piedade, e sinaladamente se lhe tinha feito tributário na sua casa de Guadelupe, tão celebrada nos despojos de prisões, e cadeias rotas, que em testemunho de liberdades restituídas pendem de suas paredes. Ofereceu este tributo Sua Alteza quando estava livre em Espanha, para que se veja que foi afeto, e não necessidade. A esmola, tão acreditada em romper cárceres e livrar cativos, foi sempre a maior inclinação deste príncipe. Enquanto esteve na corte do duque seu pai, tomava à sua conta o despacho das petições dos pobres, e nele folgava muito de empregar toda a sua valia, que era muita, porque era ele o José do seu Jacó; este mesmo amparo acharam sempre em Sua Alteza os pobres em todas as suas peregrinações: nas cortes e nas campanhas, e ainda na prisão, não tinha para eles as mãos atadas posto que menos cheias do que quisera e podia, mas também para esta largueza lhas estreitaram as prisões. Estes eram os instrumentos com que o infante por dentro batia e minava as muralhas do castelo de Milão, e com que não cessava de limar os duros ferros do seu cárcere, que de nada se deixavam penetrar. Por fora, não se pode facilmente dizer, as orações, os sacrifícios, as penitências, as esmolas, os votos que por ordem de Suas Majestades, e por afeto sempre de todo o reino, e mui particularmente nas comunidades de todos os religiosos e religiosas, continuamente se ofereciam ao céu. Pois, se tantas e tão eficazes intercessões, se tantas e tão poderosas valias se empenharam tanto com Deus, e perseveraram tantos tempos diante de sua divina piedade, que nos libertasse e desse o nosso infante, por que nos negou sempre Deus a sua liberdade, e, por último desengano, como para se livrar de nossas importunações, lhe tirou a vida? Ponderação é esta digna de todo o reparo: e se é lícito entrar nos secretos dos juízos de Deus, e de umas ações suas julgar outras, eu entendo que o estorvar Deus tantas diligências humanas, e não se render sua piedade a tantas divinas, foram ciúmes que teve Deus de que o infante D. Duarte viesse a Portugal. De maneira que, resumindo as causas que concorreram na prisão e morte de Sua Alteza, da parte de Castela foi temor, da parte do infante foi generosidade, da parte de Deus foram ciúmes.

Que a principal causa dos trabalhos de José fossem ciúmes, é coisa manifesta. Duas vezes foi José preso, e de ambas o prenderam por ciúmes. A primeira vez, o prenderam os irmãos invejosos de que o pai amasse mais a ele que a eles: e essa é a diferença que tem o ciúme das outras invejas, ser inveja nascida de amor. A segunda vez foi preso José por acusação da falsa egípcia, que desordenadamente o amava; e quem o prendeu foi Putifar, a quem como tocava a fé, tocavam também os ciúmes. Para que se entenda, pois, que também o nosso José padeceu a mãos do ciúme, e não de outros ciúmes senão os de Deus, suponho das Escrituras que o nome de que muito se preza Deus é de cioso: Deus tuus fortis, zelotes[12]. – Como Deus se sujeitou, não é muito que fizesse ostentação até dos vocábulos que, parece, não cabiam em tamanha majestade, senão com menos decência. A matéria principal dos ciúmes de Deus é a sua glória, que ele quer que seja sempre toda e só sua: Gloriam meam alteri non dabo[13]e, como a maior ou a mais gloriosa que há no mundo é a glória das armas e das batalhas, porque nelas se mede o poder dos príncipes, e se ganham ou defendem os reinos e as cidades, nesta glória particular das armas e das vitórias é que são mais delicados e mais vivos os ciúmes de Deus. Por esta causa, sendo Deus Senhor de todas as coisas, tomou por título particular o de Senhor dos exércitos: Dominus exercituum (1 Rs. 15, 2) – para que entendes‑ sem os homens, que ele é o que dá as vitórias, e o que as tira. Por esta causa, talvez, desbaratava poderosos exércitos por meio de uma mulher, como Judite, como Débora, como Jael, para que os capitães famosos de Israel se não levantassem com a glória de terem vencido. Por esta causa prometia os sucessos prósperos, ou adversos, antes das batalhas, como a Moisés, a Samuel, a Miquéias, e a todos os profetas que os anunciavam aos reis, para que se conhecesse claramente, que eram as vitórias suas, pois tão seguramente dispunha os futuros delas. Por esta causa ensinava outras vezes o modo, o tempo, o lugar, em que se haviam de dar as batalhas, como a Josué, na primeira conquista da Terra de Promissão, e a Davi na segunda rota que deu aos filisteus, para mostrar que a que se chama erradamente fortuna da guerra, é somente a sua vontade, e que os que nas batalhas parecem acasos, são acenos de seu poder, e ordens secretas de sua providência. Finalmente, permitia muitas vezes que grandes exércitos saíssem vencidos, e que poucos homens, e mal disciplinados, fossem vencedores, como na guerra de Abraão contra os cinco reis amorreus, na de Judas Macabeu contra os exércitos de Seron, na de Acab contra Benadad, rei de Síria, e trinta e dois reis que o acompanhavam, para que ninguém se atrevesse a atribuir a si a glória da vitória, senão a Deus, cuja era. Este foi sempre o pensamento de Deus, como notam os santos em todos estes lugares; e, antes da famosa vitória de Gedeão, o declarou assim o mesmo Senhor por termos notáveis.

Estava Gedeão com trinta e dois mi I homens em campo para sair à defensa contra o exército dos madianitas e amalecitas, que com exército inumerável vinham devastando sem resistência todas as terras do povo de Israel, e diz-lhe Deus a Gedeão: Multus tecum est populus, nec tradetur Madian in manus ejus (Jz. 7, 2): Capitão, tendes muita gente convosco, e assim não podereis vencer. – Diminuiu Gedeão o exército, ficaram só dez mil. – Ainda são muitos – diz. Deus. – Diminuiu mais, até que ficaram só trezentos. Com esses lhe disse Deus que venceria, e com esses venceu. Notáveis conseqüências de Deus! Porque Gedeão tem muitos soldados não há de vencer; e para que vença um exército inumerável, há de desfazer o seu, e ficar com tão pouco! Sim – diz Deus – e deu a razão: Ne glorietur Israel, et dicaz: Meis viribus liberatus sum (Jz. 7, 2): Porque, havendo-se de libertar Israel, como pede se liberte dos madianitas, não cuide que deve a sua liberdade às suas armas, e tome para si a glória, que é só minha: Ne glorietur Israel, et dicaz: Meis viribus liberatus sum. – Tais extremos, como todos estes, faz o Senhor dos exércitos, quando se pica de ciúmes de sua glória. Mas o maior de todos foi o do exército de Senaquerib, em que matou Deus numa noite cento e oitenta e cinco mil homens, só por estes ciúmes: assim o diz a Escritura expressamente em dois lugares – no capítulo 19 do quarto Livro dos Reis: Zelus Domini exercituum faciet hoc (4 Rs. 19, 31) – e no capítulo 37 de Isaías: – Os ciúmes do Senhor dos exércitos foram os que fizeram uma coisa tão rara e tão notável, como matar numa noite cento e oitenta e cinco mil homens: Zelus Domini exercituum. – E se os ciúmes de Deus matam tantos mil homens, que muito é que cuide eu que mataram um, e tão homem? Assim o cuido, assim o entendo, assim o torno a dizer, que a morte do infante, considerada da parte de Deus, foi ciúmes.

§ VIII

A circunstância do tempo na morte de Sua Alteza. Por que razão se admirou Pilatos de que Cristo morresse tão cedo? A fortaleza e constância admirável do príncipe durante os nove anos de prisão. O que aconteceu a Aquitofel e ao profeta Elias em casos semelhantes. Que se havia de esperar de um homem a quem Deus fez tanto maior que os outros, senão que morresse muito tarde?

Tão gloriosos foram para o infante as causas que concorreram em sua morte, e não o é menos para comigo a circunstância do tempo, se bem se repara nela. Morreu Sua Alteza ao cabo de nove anos de prisão, e tal prisão, e é caso admirável que um príncipe do seu juízo, e dos seus pensamentos, durasse tanto nela, e morresse tão tarde. Pilatos admirava-se de que morresse tão cedo Cristo: Mirabatur si jam obiisset (Mc. 15, 44) – e eu, pelas mesmas causas porque Cristo morreu tão cedo, me admiro de que morresse o infante tão tarde. Ao lado de Cristo estavam outros dois crucificados, que morreram mais tarde; mas em Cristo havia três grandes causas para morrer, como morreu, mais cedo: a afronta nele era maior, era maior o seu entendimento, e, além da cruz, que os outros padeciam, tinha demais a coroa de espinhos. Que cuidamos era para oinfante a coroa de Sua Majestade, estando ele naquele estado, senão uma perpétua coroa de espinhos, que continuamente lhe estava atormentando o pensamento, com tudo o que em resolução tão grande e tão arriscada se podia imaginar e temer? Também a sua cruz, por sua, era diferente. Crucificado estava Cristo, e crucificados os ladrões; mas nos ladrões não havia mais que a pena da cruz: em Cristo a pena da cruz e a afronta da pessoa. Não debalde ponderou o Senhor tanto esta circunstância na sua prisão: Tampam ad latronem existis comprehendere me[14]. Quando o infante passava preso pelos povos de Valtelina, tocavam-se os sinos a martelo, como é uso naquelas partes nas prisões dos ladrões e malfeitores; e que tudo isto, pesado em balança tão fiel, como era o juízo do infante, lhe não pasmasse o valor, e lhe não afogasse a alma, e lhe não tirasse muito brevemente a vida! Oh! exemplo de fortaleza e de constância admirável!

Aquele grande homem, que dissemos, Aquitofel, cujo juízo no conceito de Davi pesava mais que todo o reino, vendo que Absalão não tomava seus conselhos, retirou-se a sua casa, dispôs as coisas dela, e matou-se com suas próprias mãos. Viu Aquitofel que, uma vez que Absalão não tomava os verdadeiros conselhos, não podia conservar-se, viu que não conservando-se, ele e todos os mais haviam de vir outra vez às mãos de Davi; e, considerando, com aquele grande juízo, que coisa era ver-se um homem preso, e afrontado em mãos de seus inimigos, preveniu a afronta com a morte, e não se atreveu a esperar vida. Grande caso que mate a um homem seu próprio entendimento, e que morra de se não atrever a viver! Mas é que tinha Aquitofel grande entendimento, e não tão grande coração. Se Aquitofel tivera um coração do infante D. Duarte de Portugal, ele não abafara na consideração de se ver injuriosamente preso nas mãos de seus inimigos, ele se não matara por não chegar àquele ingrato gênero de vida, nem morrera nele; antes vivera, e vivera muitos anos, como viveu o infante. Mais costumado era à má vida, e mais profissão fazia de não temer a morte Elias; mas vede o que lhe aconteceu em caso menor que o de Sua Alteza. Quis Jesabel prender a Elias, foge Elias por esses desertos, que eram as partes de que ele era mais prático, e, assentando-se à sombra de uma árvore, começou a chamar pela morte, e a pedir a Deus que o tirasse de tal vida: Petivit animae suae ut moreretur[15]. – Nota a Escritura que quando Elias isto disse e pediu, não havia mais que um dia que andava fugindo da prisão e perseguição de Jesabel: Et perrexit in desertum, viam unius diei[16]. – Pois, se não havia mais que um dia que Elias padecia esta perseguição, se esse dia não era de prisão, senão de escapar dela, estava solto, e em toda a sua liberdade: Surgens abiit quocumque eum ferebat voluntas[17]como se não atrevia Elias a viver mais? Aqui vereis quanto fez Sua Alteza em viver na sua prisão tantos anos. Se um dia de escapar das mãos dos inimigos aflige tanto, um dia de cair nelas, e tantos dias de estar debaixo delas, que tormento será? Elias era um anacoreta, e quis morrer por não suportar esta vida um só dia; Aquitofel era um príncipe, e matou-se por não chegar a esta vida um só instante; e que aturasse a viver esta vida quem era tão grande príncipe para o agravo, e não era anacoreta para o sofrimento! Oh! coração verdadeiramente forte! Oh! herói verdadeiramente grande! Oh! valor! Oh! constância mais que humana!

Admirou-se Pilatos de que Cristo morreste tão cedo; mas de que se admirou, sendo os tormentos de Cristo tanto para apoucar a vida e apressar a morte? A razão mais literal de todas é a que deu judiciosamente Eutímio: Pilatus sperabat Christum tarde moriturum, tanquam divinum quendam hominem, qui caeteros excederet[18]: Admirou-se Pilatos de que Cristo morresse tão depressa, porque, como tinha ouvido dele tantas maravilhas, esperava que, como um homem divino, e maior que os outros homens, morresse mais tarde. – Assim o esperava Pilatos, e assim havia de ser, se a dilação da morte de Cristo se medira com o seu coração, e não com a sua obediência. Esta é a razão por que eu me admirava, e já me deixo de admirar, de que o nosso infante morresse tão tarde: comparando-o com os outros homens, admirava-me; comparando-o consigo mesmo não me admiro, porque um homem a quem Deus fez tanto maior que os outros homens, que se havia de esperar do seu valor e constância nos trabalhos, senão que morresse muito tarde? Sperabat tarde moriturum, tanquam divinum quendam hominem, qui caeteros excederet. – Como homem, era dívida natural que morresse; mas como homem que excedia aos outros homens, era obrigação de seu valor que morresse tarde: Tarde moriturum.

§ IX

O que, fizeram a José dois anos de prisão. Os trabalhos que padecia Davi entre seus inimigos e os efeitos do tempo no infante D. Duarte durante os nove anos de prisão. A última representação do infante no terceiro ato de sua vida.

Curto é o exemplo de José nesta circunstância, porque os anos do seu cárcere foram só dois; mas nesses dois anos, com ser tão grande homem José, vejo-o tão penetrado da dureza da prisão, que sem dúvida, se durassem mais tempo as cadeias, não lhe poderia durar também a vida, porque os ferros gastavam mais a José do que o tempo gastava os ferros. Quando os irmãos, depois das felicidades de José, o viram outra vez no Egito, nenhum deles o conheceu, nem da primeira, nem da segunda vez, sendo que José os conheceu logo a todos; pois, se o tempo da ausência era o mesmo, como estavam os irmãos parecidos ao que sempre foram, e José tão outro, que ninguém o conhecia? Eis aí o que lhe fizeram as suas prisões: tanto o penetraram, tanto o gastaram, tanto lhe adiantaram a idade, lhe mortificaram as cores, tanto lhe adelgaçaram os ossos, tanto lhe dobraram e inclinaram a estatura, tanto lhe descompuseram a harmonia de todas as feições do rosto, tanto lhe quebraram os brios de todo o corpo, e ainda a viveza da mesma voz, que nem pelo falar, nem pelo andar, nem por outro sinal da presença o conheceram, nem ainda suspeitaram os mesmos que toda a vida se criaram com ele. Os irmãos, que não tiveram mudança na liberdade da vida, posto que rústica, em tudo eram parecidos a si mesmos, porque não é o trabalho, senão os trabalhos, os que em pouco tempo mudam muito; mas José, que tinha sido vendido, e cativo de dois senhores, e amansado em seus ossos a dureza de tão estreitas prisões, estava tão mudado, tão outro, e ainda tão entrado da mesma idade, como se o número dos seus anos igualara o de seus trabalhos. Oh! valoroso e fortíssimo príncipe, quem pusera agora o vosso retrato junto a este de José! Dizem os que assistiram nos últimos dias de Sua Alteza, que aquela sua gentileza, verdadeiramente real, que tão bizarro e tão formoso príncipe o fazia aos olhos dos homens, estava então, esteve, e se conservou sempre no mesmo vigor e na mesma frescura com que entrara naquele castelo, e que se havia alguma diferença no infante era estar um pouco mais avultado de corpo, por lhe faltar o exercício da campanha. Tão pouco o gastavam as prisões, que nem parece passavam por ele os anos. Alguns menos que os de Sua Alteza tinha Davi no tempo das suas perseguições, e quando ao passar de algum ribeiro daquelas montanhas, por onde andava escondido, olhava para si, e se media consigo, não se conhecia de velho ou de envelhecido: Inveteravi inter omnes inimicos rios (SI. 6, 8): Envelheci entre todos meus inimigos. – Davi, sem chegar a quarenta anos, envelhece, por se ver entre seus inimigos; e o infante D. Duarte, passando de quarenta anos, e estando mais entre seus inimigos que Davi, não envelhece. Davi andava de cova em cova, de brenha em brenha, andava de montanha em montanha, mas andava; a torre em que estava Sua Alteza tinha poucos mais pés que uma sepultura. Davi andava entre seus inimigos, mas entre esses inimigos e Davi havia talvez muitas léguas de distância; Sua Alteza estava tanto entre seus inimigos, que nunca lhe saíam da vista. Davi, ainda que andava entre todos seus inimigos: Inter omnes inimicos meos – seus inimigos não eram todos, porque, quando menos, Jônatas, filho do mesmo rei Saul, que o perseguia, amava a Davi como a sua alma, e como a tal o defendia e avisava de tudo; Sua Alteza estava entre seus inimigos, e eram seus inimigos todos, porque nenhum tinha que fizesse as partes da sua inocência, nem de quem pudesse fazer a menor confiança. Davi trazia consigo quinhentos companheiros, todos iguais na desgraça e na fortuna: Omnes qui erant amaro animo[19]e tinha com quem consolar, ou, quando menos, com quem chorar seus trabalhos, que é grande a simpatia de um triste com outro triste; Sua Alteza nem este desconsolado alívio tinha para suas tristezas: em si as consumia todas, porque só as comunicava consigo. Finalmente, Davi dizia, por encarecimento, que neste tempo sempre trazia a sua vida nas suas mãos: Anima mea in manibus meis semper[20] e Sua Alteza não trazia a sua vida nas suas mãos, porque a tinha sempre nas de seus inimigos, e por isso não lhe podia chamar sua, como Davi, nem ainda vida, porque o não era. De sorte que os trabalhos que padecia Davi entre seus inimigos, com serem tanto menores trabalhos, e tanto mais aliviados que os do infante, podiam mais que a força e vigor dos anos e faziam velho a Davi, – a Davi, que, entre os três fortes de Israel, era o fortíssimo – mas a fortaleza do ânimo do infante era tão superior a toda a fortuna que, sendo os seus trabalhos tanto maiores que os de Davi, e desacompanhados de todo o alívio, e sendo os seus anos também maiores, os anos parece que estavam parados, e a idade parece que não corria, porque no meio de tantas tempestades, e tão furiosas, conservava sempre a mesma primavera; nove primaveras e nove outonos se contaram sobre o infante – que assim fala a Escritura, quando mede os trabalhos com os anos – nove vezes se mudou o tempo, e a mesma natureza, enquanto o infante esteve na sua prisão; e só nele se não viu mudança, nem na parte superior do ânimo, nem na inferior e mortal. Gastava o tempo os ferros do cárcere, mas nem os ferros nem o cárcere gastavam o infante. Confessava Já de si que a sua fortaleza não era de pedra, ou a sua carne de bronze: Nec, fortitudo mea fortitudo lapidum, negue caro mea aenea est[21]. – A fortaleza do infante era mais forte que as pedras, e a sua carne mais forte que o bronze: dentro naquele castelo, que o tinha preso, não só parece que desafiava as mesmas pedras e bronzes dele, mas que as vencia: nas pedras e bronzes daquele castelo viam-se rastos do tempo, no infante não se viam. Oh! desafio estupendo! Oh! batalha inaudita! Oh! espetáculo verdadeiramente digno dos olhos de Deus!

Mas, ainda naquele estreito teatro havia outro maior, e mais digno de seus olhos, que era, não do infante com as pedras e com os bronzes, mas do infante com a sua fortuna. Pinta Sêneca a idéia de um varão forte e constante, ou, por melhor dizer, pinta Sêneca ao infante D. Duarte na idade de um varão forte e constante, e conclui assim: Ecce spectaculum dignum, ad quod respiciat intentos operi suo Deus; ecce par dignum, vir fortis cum mala fortuna compositus[22]: Este é o espetáculo digno de que Deus detenha nele os olhos, como na maior de suas obras; esta é a parelha digna da vista de Deus, um varão forte, posto em campo com a sua fortuna, e composto nela. – Um homem lutando com uma fera, era o espetáculo dos Césares no anfiteatro de Roma; um homem lutando com a má fortuna, é o espetáculo de Deus no anfiteatro do mundo. Esta foi a última representação do infante no terceiro ato da sua vida; este foi o teatro de suas maiores batalhas e de sua maior vitória. As vitórias de Hércules, para se chamarem com nome maior, chamam-se trabalhos, não se chamam vitórias. Cantem outros o que o infante D. Duarte venceu em Alemanha, que eu tenho por maiores vitórias o que padeceu em Milão; nesta guerra os fossos eram mais altos, os muros mais fortes, os inimigos mais poderosos, as neves mais frias, o ferro mais duro e mais agudo, e até o fogo mais vivo e mais ardente. Com razão chama Sêneca a este gênero de batalha teatro, ou espetáculo digno de Deus, porque só Deus, que vê os homens por dentro, pode ver o que passa nele. Quem poderá dignamente compreender o que passou na alma do infante, lutando naquela prisão, e andando sempre a braços com a sua fortuna? Mas sempre forte, sempre constante, sempre com o mesmo coração, e com o mesmo rosto, não mudando as cores com as da fortuna, senão fazendo a fortuna da sua cor: Adversarum impetus rerum viri fortis non vertit animum: manet in statu, et quidquid evenit in suam colorem trahit – e como o infante fazia a fortuna da sua cor, que muito que ela lhe não mudasse as cores em tantos anos, nem lhe murchasse a gentileza, nem lhe adiantasse a velhice, nem lhe apressasse a morte! Morreu, alfim, porque era mortal, e, ou fosse às mãos da fortuna, ou da natureza, ou da malícia, ou de todas juntas, sempre é grande maravilha que morresse tão tarde: nem da malícia se podia esperar tanta piedade, nem da natureza tanto vigor, nem contra a fortuna tanta resistência; nunca tão resistida e tão vencida se viu a fortuna má: o que não pôde em nove anos a fortuna, pôde em um momento a morte: Mortuus est.

§X

O príncipe D. Duarte e o perdão dos inimigos. Como perdoou Cristo a seus inimigos na hora em que mais subida esteve sua caridade. Davi, o mais celebrado perdoador de injúrias que se lê nas Escrituras. Se seus irmãos eram tão inimigos seus, por que lhes não dá José em tantas ocasiões o nome que mereciam? O grau altíssimo de caridade que deixou por último exemplo desua vida o infante D. Duarte. Como deu Cristo a vida por seus inimigos: como amigos ou como inimigos?

Morreu Sua Alteza como quem não temia a morte, nem amava a vida; e para acabar imitando aquele Senhor, que tantas imitações lhe concedera de sua Paixão e de sua paciência, protestou antes de morrer, e declarou diante dos presentes que ele perdoava aos autores e executores de tudo o que tinha padecido, e que lhes não perdoava como a inimigos, porque não os tinha, nem tivera nunca por tais. Oh! príncipe verdadeiramente cristão, e digno de que seus próprios inimigos lhe desejassem mais larga vida! O ponto mais alto da caridade cristã é o amor dos inimigos; e o infante ainda o subiu mais de ponto: não só perdoou a seus inimigos o agravo, mas também o nome; perdoou a seus inimigos, e não lhes quis chamar inimigos. Pregado Cristo na cruz, orou a seu Eterno Pai, dizendo: Pater, dimitte illis (Lc. 23, 34): Pai meu, perdoai-lhes. Dimitte illis? Perdoai-lhes? A quem? A quem havia de perdoar o Padre, e por quem orava Cristo? É certo que orava Cristo, e pedia perdão por seus inimigos, para nos dar exemplo, na morte, da doutrina que pregara em vida: Diligite inimicos vestros, et orate pro calumniantibus et persequentibus vos[23]. – Pois, se Cristo orava por seus inimigos, por que não diz: Perdoai a meus inimigos – senão: Perdoai-lhes? Porque quis Cristo perdoar a seus inimigos não só os agravos, senão também o nome: era justo que, quando Cristo dava exemplo de perdoar aos inimigos, o desse no ponto mais alto e mais subido da caridade; e a verdadeira e perfeita caridade, não só perdoa os agravos, senão também o nome de inimigos. Perdoar os agravos, e não perdoar o nome, é dar só ametade do perdão; antes é perdoar uma injúria, e fazer outra, perdoar a injúria do agravo, e vingá-la com a injúria do nome: só quem perdoa o agravo, e mais o nome, perdoa inteiramente; e, se bem se considera, mais é perdoar o nome que o agravo, porque no agravo perdoa-se a ação, e no nome de inimigo perdoa-se o ódio. Assim perdoou Cristo a seus inimigos na hora em que mais subida esteve sua caridade, e assim imitou a Cristo o infante no perdão que deu aos seus, mostrando-se tão singular nas virtudes de Cristo, como era excelente nas de príncipe.

Chamo singularidade a esta ação, porque dificultosamente se achará semelhante exemplo de perdoar a inimigos. O mais celebrado perdoador de inimigos que se lê nas Escrituras é Davi: todas as línguas dos intérpretes sagrados se desfazem em louvar nele a excelência desta virtude. Contudo, eu acho que perdoou a seus inimigos os agravos, mas não lhes perdoou o nome. No Salmo VII: Si reddidi retribuentibus mihi mala, decidam merito ab inimicis meis inanis[24]. – No Salmo XXIV: Respice inimigos meos, quoniam multiplicati sunt[25]. – No Salmo LIII: Averite mala inimicis meis, et in veritate tua disperde illos[26]. – Em uma parte protesta que nunca se vingou de seus inimigos, em outra pede a Deus que ponha os olhos neles, em outra pede que os livre e defenda de todo o mal, mas em todas lhes chama inimigos; e apenas há salmo em todos os seus, em que lhes não dê este nome. Perdoava Davi a seus inimigos os agravos, mas o nome de inimigos não lhes perdoava: ficou esta alta lição reservada para a cadeira da cruz, e, à imitação dela, para o calvário de Milão. Só em José, como figura de Cristo, e hoje do infante, se acha, posto que negativamente, este paralelo. Se lermos toda a história de José, acharemos que nunca chamou inimigos a seus irmãos, sendo eles tão inimigos seus no afeto, nas obras e nas palavras, e ainda nos mesmos nomes com que o nomeavam: Ecce somniator venit (Gên. 37, 19): Lá vem o sonhador. – Notam os intérpretes que nem irmão, nem ainda José lhe chamaram. Pois, se os irmãos assim tratavam a José, se eram tão inimigos seus, que até o nome de irmão, e até o de José lhe negavam, por que lhes não dá José em tantas ocasiões o nome que tanto mereciam; por que lhes não chama inimigos? Porque esta é a diferença que há entre o amar e o aborrecer: o ódio tira os nomes do amor, e o amor cala os nomes do ódio: eles tiraram ao irmão o nome de irmão, porque o aborreciam, e era nome de amor; ele tirava aos inimigos o nome de inimigos, porque os amava, e era nome de ódio. Tão inteiro como isto, e tão plenário, foi o perdão que um e outro José deu aos que o venderam e o cativaram: não só lhes perdoou os agravos mas também o nome de inimigos.

Porém, se advertirmos bem nas palavras do cristianíssimo infante, havemos de achar que ainda dizem e confessam mais. Não só não chamou inimigos aos que obras de tão inimigos lhe tinham feito, mas diz que nunca os tivera por tais. Este ponto é muito diverso, e que quase parece impossível. Não chamar inimigos aos inimigos, está no império da vontade e na obediência da língua; mas não ter os inimigos por inimigos, parece que está fora da jurisdição do entendimento. Serem inimigos, e conhecê-los por inimigos, e não os ter por inimigos? Sim: a tanto chega a fineza da filosofia cristã. Na virtude da caridade cristã, tomada em toda a largueza de sua perfeição, há três graus: amar os amigos como a amigos, amar os inimigos como inimigos, amar os inimigos como a amigos. Este é o grau altíssimo de caridade, que nos deixou por último exemplo de sua vida o infante. Não amou os inimigos como inimigos: amou os inimigos como a amigos; por isso os tinha por tais: Majorem hac dilectionem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis (Jo. 15, 13): Que a maior caridade é dar a vida pelos amigos. – A inteligência desta proposição de Cristo tem grande dificuldade. Porque, primeiramente, os santos todos concordam em que o amor dos inimigos é o mais alto, o mais sublime, o mais heróico, o mais divino ato da caridade. Assim o diz Santo Agostinho, S. João Crisóstomo, S. Gregório Papa, e comumente todos os padres, entre os quais S. Bernardo, depois de repetir a sentença: Majorem dilectionem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis – acrescenta, falando com o mesmo Senhor: Tu majorem habuisti, Domine, ponens eam pro inimicis: Dizeis, Senhor, que a maior caridade é morrer pelos amigos; e a vossa foi ainda maior, porque morrestes pelos inimigos. – Os teólogos, que examinam os atos das virtudes em todo o rigor, têm neste ponto duas opiniões; mas os fundamentos dos que seguem que é maior caridade amar o inimigo são muito mais fortes, muito mais sólidos, e muito mais evidentes, e têm por sua parte a autoridade de Santo Tomás. Finalmente, o mesmo Cristo fez tanta diferença entre o amor dos amigos e o dos inimigos, quanto vai de ser filho de Deus a não o ser: Ut sitis filii Patris vestri[27]. – Quanta vai de ser cristão a ser gentio: Si enim diligitis eos qui vos diligunt, nonne et ethnici hoc faciunt[28]? – Pois, se o amor dos inimigos é o maior e mais heróico ato da caridade, como se há de entender a sentença divina de Cristo, em que dá esta mesma maioria ao amor dos amigos? Digo que de um e outro amor se há de entender, porque a um e outro compete, não em diferentes atos, senão no mesmo. Há um ato supremo de caridade, que é amor de amigos e amor de inimigos juntamente; e como este ato é o supremo e o maior de todos, nele se ajuntam as duas verdades, que parecem encontradas, de ser maior o amor dos amigos, e maior o dos inimigos. E que ato é este, em que se ajuntam estes dois extremos? É o ato de caridade em que se amam os inimigos, não como inimigos, senão como amigos. Este ato, enquanto ama os inimigos, é amor de inimigos; e enquanto os ama como amigos, é amor de amigos; e em ajuntar estes dois extremos consiste o sublime e o realçado deste supremo ato de caridade: Majorem dilectionem nemo habet. – O primeiro e menor ato de caridade é amar os amigos como amigos; o segundo, e mais alto, é amar os inimigos como inimigos; o terceiro, e altíssimo, é amar os inimigos como amigos; e este ato é a caridade, e estes são os amigos de que Cristo falava: Ut animam ponat quis pro amicis suis. – E se não, vamos à prova. Cristo naquelas palavras fala de si mesmo e da sua caridade, a qual o obrigou a dar a vida até por seus inimigos; e como deu Cristo a vida por seus inimigos? Deu porventura Cristo a vida por seus inimigos como por inimigos? Não por certo, senão como por amigos. Vede-o em Judas: Amice, ad quiri venisti[29]? – O maior inimigo de Cristo era Judas, e a este maior de todos seus inimigos, não tratou nem morreu Cristo por ele como por inimigo, senão como por amigo: Amice; logo, aqueles amigos, de quem Cristo falava, eram amigos e inimigos juntamente, porque eram inimigos amados como amigos. Expressamente o entendeu assim S. Gregório Magno: Mori pro inimicis Dominus venerat, et tamen positurum se animam pro amicis dicebat[30]; Veio Cristo morrer por seus inimigos, e diz que havia de morrer por seus amigos, porque tudo eram. – Da parte do ódio com que perseguiam a Cristo, eram inimigos; da parte do amor com que Cristo os amava, eram amigos; e o afeto com que os tinha por amigos, sendo inimigos, é o ato de caridade, a que Cristo chama o maior de todos: Majorem hac dilectionem nemo habet. – Esta foi a lição que Cristo guardou para a sua morte, para acabar no ponto donde se não podia subir mais: na vida ensinou a amar os inimigos: na morte ensinou a amar os inimigos como amigos: Ut animam ponat quis pro amicis suis. – Com esta mesma lição na boca expirou o religiosíssimo infante D. Duarte, não só guardando a lei de Cristo, mas passando além dos preceitos, e imitando-o nos maiores exemplos. De outros príncipes seja morrer como verdadeiros cristãos; no infante D. Duarte foi pouco morrer como cristão, porque morreu como Cristo: Mortuus est.

§ XI

O príncipe D. Duarte e as obrigações de irmão. Quão irmão e quão verdadeiro irmão era Sua Alteza de Sua Majestade. O testemunho de um tenente de Castela. As três causas por que padecia o infante prisioneiro: a pátria, a casa e o irmão. De que modo morreu o príncipe D. Duarte muitas vezes, tendo uma só vida.

Frater ejus.

Se tão grande nos tem parecido o infante nas considerações de morto, eu fico que não nos pareça menor nas de irmão: Frater ejus. – Ficou a natureza tão desacreditada nos primeiros dois irmãos que houve no mundo, e ainda tão viciada, que vem hoje a ser como raro, e quase sobre a mesma natureza, merecer nome de bom irmão. José chama-se irmão de Benjamim somente, e dos outros dez irmãos não se chama irmão, porque os outros dez eram meios irmãos no sangue, e nas obras nem meios irmãos eram. Mas irmãos, ou irmãos de meias, alguns se acham no mundo, ainda que poucos; irmão inteiro, e verdadeiro irmão, que no amor e nas obras encha a significação deste grande nome, foi tão raro nas idades antigas, que em toda a História Sagrada não há um exemplo de irmão perfeito: na de nossos tempos, com admiração dos vindouros, haverá o do irmão de el-rei de Portugal. Acho-me neste ponto com grande cabedal de eloqüência, porque tenho para todo ele palavras do mesmo sereníssimo infante, dignas de imortal memória. Naquele processo que referi, jura uma das principais testemunhas que Sua Alteza se queixara muito, por lhe haverem tirado seu confessor, e que lhe ouvira dizer e repetir duas vezes que, se estivera em Berbéria, fora muito melhor tratado, como o duque seu pai, e senhor, o havia sido. – O que agora se segue hei de repetir pelas mesmas palavras da testemunha, que é um tenente do castelo: Pero que estos trabajos, o otros mayores, tenian de consuelo la causa por que los padecia, que era por el rey su hermano, por su casa y por su patria; y que si tuviera cien mil vidas, las perdiera de buena gana por tal causa; v que si no teniamos otras armas, con que hacer guerra al rey su hermano, lo daba por bien empleado. – Até aqui o testemunho pelo qual, e por outros do mesmo processo, é declarado nele o infante por digno de morte. – Quem me dera agora saber ponderar dignamente todas aquelas palavras, que, ponderadas como suas, e como ditas dentro em um castelo, e a seus próprios inimigos, provam admiravelmente quão irmão e quão verdadeiro irmão era Sua Alteza de Sua Majestade: Frater ejus.

Primeiramente, começando pelas últimas, bem conhecia o infante que todos os rigores que nele se executavam eram guerra que Castela fazia a el-rei seu irmão, e dava por bem empregado que descarregassem nele todos os tiros. Com verdade dizia eu logo, que era muro de Sua Majestade o infante; mas agora vejo que era muro de diamante, em que o fino iguala o forte. O muro e o soldado defendem-se reciprocamente: o muro defende o soldado, e o soldado defende o muro; aqui não era assim, tudo era fineza, porque não havia correspondência: Sua Majestade, com as suas armas, não podia defender o infante; e o infante tinha por bem empregado que se empregassem nele todas as de Castela, e, sem ser defendido, ser muro. Naquela batalha dos montes de Gelboé, diz a História Sagrada que todos deixavam de atirar ao exército, por atirar a Saul: Totum pondus praelii versum est ad Saul[31]. –Era Saul mais alto que todos do ombro para cima: Ab humero et sursum eminebat super omnem populum[32]. – Esta sua eminência é a que chamava contra ele as setas de todos. Porque a eminência do infante era tão avultada, e tão conhecida, e porque Castela entendera que só daquela eminência lhe podia resistir Portugal, por isso empregava nele todos os tiros; e era Sua Alteza tão bom irmão que, porque assim os divertia de nós, e de sua Majestade, os dava por bem empregados. Eram os trabalhos, que Sua Alteza padecia na sua prisão, tão grandes, como temos ponderado, e ainda tinha feito o ânimo a outros maiores; sinal certo, como também discorríamos, que padecia o infante os que padecia, e padecia também os que imaginava: os que padecia eram os grandes, os que imaginava os maiores. Em trabalhos tão sem remédio, e em prisão tão fechada, parece que não ficava porta por onde pudesse entrar a consolação; mas entrou, porque entrou com o mesmo infante que a levava consigo: tinha a consolação na causa, e a causa levava-a na alma. Oh! príncipe verdadeiramente príncipe, verdadeiramente irmão, e verdadeiramente português! Muito vos deve, senhor, el-rei vosso irmão, que é o nome de que tanto se gloria Vossa Alteza; muito vos deve todo o reino de Portugal pela vossa morte; muito mais pela causa; e, sendo tanto o que padecestes por ela, muito mais vos devemos pela vossa consolação que pelos vossos trabalhos. Por el-rei seu irmão, por sua casa, e por sua pátria, diz o grande infante que padecia: a pátria, a casa e o rei irmão, parecem três causas, e não era mais que uma só, porque no irmão tinha a casa, e no rei a pátria; assim que tudo padecia Sua Alteza como irmão: Frater ejus. – Por esta causa, tão generosa e tão unicamente prezada, diz Sua Alteza que daria de boa vontade cem mil vidas, se as tivera; e, com ser este termo de falar tão encarecido, ainda Sua Alteza fez mais do que disse: disse que daria cem mil vidas se as tivera, e deu-as sem as ter. Uma só tinha Sua Alteza, mas essa deu-a por aquela sua amada causa mais de cem mil vezes. No capítulo 23 dos Provérbios diz Salomão estas notáveis palavras: Quando sederis ut comedas cum principe, diligentes attende quae apposita sunt ante fatiem tuam: et statue cultrum in gutture tuo, sciens guia te oportet similia praeparare (Prov. 23,1 s). – Assim se lê esta última cláusula no texto dos Setenta: Quando vos assentardes à mesa com o príncipe, reparai com advertência no que se vos põe diante, e ponde um cutelo na garganta, para que façais outro tanto. – Para inteligência deste grande e escuro texto, é necessário saber de que príncipe fala aqui Salomão, e de que mesa, e de que iguarias, Santo Agostinho diz que o príncipe é o Rei dos reis, Cristo; e a mesa e iguarias, o Santíssimo Sacramento do altar; e neste sentido diz Salomão que quem houver de fazer o mesmo que Cristo fez naquele Sacramento, que não tem outro meio senão pôr um cutelo na garganta. Só Salomão podia dizer, e só Santo Agostinho interpretar tão agudo pensamento. Ora, notai, que ainda ambos hão mister ser bem explicados. O amor de Cristo para com os homens foi tão grande, que não se contentava com dar uma só vida por eles, mas desejou dar muitos milhares de vidas; e como a vida de Cristo era uma só, buscou traça o seu amor para dar a mesma vida muitas e muitas vezes, que foi o Sacramento e Sacrifício do altar, onde Cristo, sem morrer, está morrendo sempre. Este foi o meio que Cristo inventou para com uma só vida dar muitas vidas. E os homens podem também ter algum meio para fazer o mesmo? Sim, diz Salomão: tenham o cutelo sempre posto na garganta, e por este modo estarão também morrendo sempre sem morrer, e darão em uma só vida muitos milhares de vidas: Statue cultrum in guture tuo, guia te oportet similia praeparare. – A verdade desta filosofia já a deixamos provada; a praxe dela, diz Santo Agostinho que a exercitaram os mártires: Hoc martyres fecerunt; mas também este exemplo de Santo Agostinho há mister distinção. Entre os mártires, uns houve que deram logo a vida ao primeiro golpe da espada do tirano, e destes não se pode entender o texto de Salomão, porque deram uma só vida; houve outros mártires que não perderam a vida senão depois de muitos anos, mas em todos eles andaram por cárceres, por prisões e por desterros, esperando todos os dias e todas as horas a morte, e trazendo sempre, como na garganta, o fio do cutelo do tirano. Estes são os que foram semelhantes ao Sacramento e Sacrifício do Altar, morrendo muitas vezes, sem morrer, e dando em uma só vida muitos milhares de vidas. Diga-o S. Paulo, que foi um deles: Ut quid et nos periclitamur omni hora. Quotidie morior per vestram gloriara fratres (1 Cor. 15, 30 s): Meus irmãos – diz S. Paulo – todos os dias morro por vossa glória; e não morro uma só vez cada dia, senão todas as horas, porque tais são os perigos em que a minha vida se vê cada hora: Periclitamur omni hora. – S. Paulo, que isto dizia, teve anos de preso, e depois anos de livre; e nos de livre estava quando escreveu aos coríntios. Com quanta razão podia logo afirmar o mesmo de si o infante, que, depois que uma vez caiu nas mãos de seus inimigos, nunca mais se viu livre delas? Podia-o dizer com a mesma, e ainda com maior razão; e se falasse com Suas Majestades, podia-o dizer com as mesmas, e não com melhores palavras: Quotidie morior per vestram gloriam, fratres: Todos os dias dou a vida por vossa glória, irmãos: porque vós subistes à glória do trono e da coroa, padeço eu a morte todos os dias: Quotidie morior; mas não a padeço uma só vez cada dia, senão todas as horas, porque os perigos e receios são de cada hora: Periclitamur omai hora. – E se Sua Alteza naquele seu contínuo e incruento sacrifício deu tantas vezes a vida, bem digo eu que fez mais do que disse,

porque disse que, se tivera cem mil vidas, as dera, e deu-as sem as ter: não tinha o infante mais que uma vida, mas essa deu-a em nove anos todos os dias: quotidie – e todas as horas: omni hora. – Contai as horas que o infante esteve na sua prisão, e achareis que foram muito perto de cem mil horas: cem mil vidas deu logo, como desejava, quem dava a vida em todas as horas; e mais de cem mil vidas deu, porque não a dava uma só vez em cada hora, senão em todos os momentos dela.

§ XII

A arriscada linguagem do infante, proclamando rei a seu irmão. O exemplo dos irmãos da Escritura em matéria de vida e coroa. Jacó e o morgado de 'sac. Eliab e a vitória de Davi. Adonias e a coroa de Salomão. Abimelec e seus setenta irmãos. A inveja dos irmãos de José.

E por que a este glorioso gênero de martírio não faltasse a confissão e protestação do nome por que Sua Alteza dava a vida, e tantas vidas, duas vezes diz a testemunha que o repetiu: Por el rev su hermano, al rey su hermano. – Bem pudera Sua Alteza acomodar-se à fortuna do tempo, e calar o nome de rei, e a política vulgar parece que o aconselhava assim naquelas circunstâncias; mas a verdadeira fé não tem duas linguagens: houve-se Sua Alteza, no respeito da fé real e humana, com os primores da divina, e ainda parece que mais escrupulosamente; a fé divina também no silêncio se guarda: raro é o caso em que seja necessário crer e confessar: crer, e não negar, basta. Não assim o valorosíssimo infante: desconfiou do silêncio, e teve por caso de menos fidelidade não apregoar a vozes o que tinha no coração. Arriscada linguagem era dizer dentro das terras de el-rei Herodes: Ubi est qui natus est rex Judaeorum[33]? – Contudo, assim o disseram a públicas vozes os três reis do Oriente, porque a verdade e generosidade de corações reais não sabe calar o nome do rei verdadeiro, ainda que seja a pesar doutro rei, e com risco da própria vida. Perdoe-me a resolução valorosa dos que em Lisboa aclamaram a Sua Majestade que só do infante D. Duarte se pode dizer deveras que o aclamou. No cenáculo todos os discípulos confessaram a Cristo, e ofereceram as vidas: Si oportuerit me mori tecum[34];no Horto, à vista dos soldados e da prisão, todos calaram: confessar o nome de Deus de Israel em Jerusalém, todos os que têm profissão de fiéis o fazem; confessá-lo no lago dos leões, é ação só de Daniel. Bem conhecia Sua Alteza que cada letra no nome de el-rei seu irmão, que pronunciava, era um novo voto que escrevia e firmava contra sua vida; mas, como havia de reparar em dar uma vida, quem desejava ter cem mil para as dar todas por aquela causa? Oh! raro irmão! Oh! rara e inaudita irmandade! Com razão se disse deste rei e deste irmão: Não se sabe a irmandade, porque tal irmandade não se sabe.

E se não, discorramos por todos os irmãos da Escritura em matéria de vida e de coroa, e vejamos se há algum que pela coroa de seu irmão expusesse, como Sua Alteza, a vida. O morgado de Isac era a coroa, não só do primeiro, senão do segundo. Davi, que Deus tinha prometido a Abraão seu pai; e levava tão pouco gosto Jacó, de que esta coroa viesse à casa de seu irmão Esaú, que ainda antes de nascer lha procurou tirar por força, e depois lhe tirou por engano. Ungiu Samuel por mandado de Deus a Davi em rei de Israel diante de seus irmãos; e Eliab, que era o maior deles, levou tão mal esta fortuna de Davi que, depois de o afrontar de palavras, o quis tirar da guerra outra vez para as ovelhas, e lhe estorvou quanto pôde a vitória do gigante, que foi o primeiro degrau por onde Davi subiu à coroa. Adonias era irmão maior de Salomão, e Salomão, sendo irmão, e menor, estimou tão pouco, ou sentiu tanto ver a Adonias herdeiro da coroa de seu pai que, estando já quase coroado, lha procurou por sua mãe tirar da cabeça, e depois lhe tirou a mesma cabeça, só porque a quisera pôr nela: longe estava de dar a vida pela coroa de seu irmão, quem primeiro lhe tirou a coroa, e depois a vida. De sorte que, irmãos maiores como Eliab, e menores como Salomão, e iguais como Jacó, nenhum houve que estimasse ver a coroa na cabeça de seus irmãos, mas nem ainda que o sofresse; e tão fora estiveram, de dar a vida por eles, que talvez lha tiraram. O maior caso de todos é ode Abimelec. Tinha Abimelec setenta irmãos, filhos do mesmo pai Jerobaal, os quais todos lhe estavam diante para a herança; e por que nenhum dele tivesse a coroa de Israel, os matou a todos: Occidit septuaginta fratres suos (Jz. 9, 5): por não sofrer a coroa na cabeça de um irmão, tira um irmão setenta vidas a setenta irmãos. Comparai agora estes irmãos, e esta irmandade, com aquele raro irmão, que só por ver a coroa na cabeça de seu irmão, e só por nomear a seu irmão rei, não só dera de boa vontade uma vida, mas cem mil vidas.

Não fiquem de fora os irmãos de José. José não sonhou que havia de ser rei, como verdadeiramente o não foi; os irmãos foram os que, interpretando o sonho, suspeitaram que a significação dele era que José havia de ser rei: Numquid rex noster eris[35]? – Mas que efeitos causou este bom agouro dos irmãos de José? Deram-se porventura os parabéns a si, e a seu pai, e a ele? Tão longe estiveram de estimarem a fortuna de seu irmão, tão longe estiveram de o ajudarem nela, tão longe estiveram de eles serem os que o aclamassem em rei que, só porque não chegasse a esta coroa sonhada e suspeitada, o prenderam, o venderam e lhe quiseram tirar a vida: Ecce somniator venit: venite, occidamus eum, et tunc apparebit quiri illi prosint somnia sua[36]. – Um só irmão houve que não concorreu para esta resolução, posto que não teve outra em contrário, que foi Benjamim; e, posto que foi mais omissão que virtude, ele só se chama irmão de José: Frater ejus. – Ó irmãos de José, ó Jacó, ó Salomão, ó Abimelec! Vós, que esquecidos das leis do natural amor, fostes invejosos das glórias de vossos mesmos irmãos, e tão cruéis com eles, vinde ver vossos indignos corações e vossas obras à luz deste claríssimo espelho de verdadeira irmandade, e tirai eterna confusão e afronta, de que pudesse tão pouco com vossa ambição e inveja, não a lealdade, não a honra, não a razão, senão o sangue, senão a mesma natureza! E vós, Benjamim, e os que na boca da fama tendes o nome de verdadeiros irmãos, vinde também a este novo exemplar de irmandade perfeita, e aqui notareis e aprendereis os defeitos que em vós não repreendeu a antiguidade: aqui vereis quão livre de toda a inveja é o amor, quão delgado o fio da honra, quão escrupulosa a fidelidade, e quão puros os respeitos do sangue, quão sagrado o nome de rei, e quão menos para estimar, que qualquer destas obrigações, a vida, e cem mil vidas.

§ XIII

A soledade do irmão de D. Duarte. Se Benjamim quando morreu José, tinha dez irmãos vivos, como diz Jacó que com a morte de José ficava só? Por que estava só Adão no tempo em que estava servido, assistido e obedecido de todos os viventes cio mundo? Diferença entre a natureza dos reis e a natureza dos vassalos. Os reis, deuses mortais.

Et ipse remansit solus.

Ficou Sua Majestade só, porque perdeu um irmão único; e ficou só porque perdeu um irmão, que, ainda que tivera muitos outros, sempre com a sua falta ficaria muito só. Notável caso é o do nosso texto: Et ipse remansit solus. – Fala-se aqui de José em respeito de Benjamim, e Benjamim naquele tempo tinha dez irmãos vivos; pois, se tinha dez irmãos, como diz Jacó que com a morte de José ficava só? Porque era tal irmão José que, ainda onde havia dez irmãos, fazia falta; ainda onde havia dez irmãos, causava soledade: a presença dos outros irmãos, com serem dez, se José faltava, não bastava para fazer companhia; a ausência de José, com ser um só, ainda que estivessem presentes todos os outros irmãos, bastava para causar soledade. Não teve tantos irmãos Sua Majestade em que fazer a comparação; mas era tal irmão Sua Alteza, que sempre ele entre todos fora o José. Alfim, José era um irmão entre dez; e, assim como o amor de Benjamim estava repartido, também a perda teve partes. Sua Alteza era um irmão único, e como o amor de Sua Majestade não tinha onde se dividir, nem a perda teve que deixar: Benjamim ficou só, mas só impropriamente, porque lhe ficaram dez irmãos com que acompanhar a soledade; a morte de Sua Alteza não deixou a Sua Majestade outro irmão com que acompanhar nem consolar a soledade do que perdera, e assim ficou verdadeiramente só: Et ipse salus remansit.

Verdadeiramente ficou Sua Majestade só, e não porque lhe faltem muitos e prudentes conselheiros, não porque lhe faltem muitos e valorosos soldados, não porque lhe faltem muitos e mui experimentados capitães, não porque lhe faltem muitos e mui leais vassalos; mas ficou só porque lhe faltou um irmão igual, e semelhante a si mesmo em tudo, que só quem pode fazer companhia causa soledade. Investido Adão no senhorio universal do mundo, estava assistido e servido de todos os viventes, os quais, enquanto durou aquele estado, entendiam ou percebiam seus mandatos, e os executavam prontamente. Tinha Adão nesta primeira república, por seu modo, tudo quanto hoje podem ter os grandes príncipes: tinha valentes e esforçados, porque tinha leões e tigres; tinha prudentes e astutos, porque tinha serpentes e elefantes; tinha agudos e perspicazes, porque tinha águias e linces; tinha fiéis e zelosos até dar o sangue, porque tinha os pelicanos; tinha uns que lhe falavam, outros que lhe cantavam, outros que o divertiam; tinha outros de outras propriedades maiores, se lhes não quisermos chamar virtudes: uns insignes na lealdade, outros na providência, outros na pureza, na astúcia; outros na piedade, outros na vigilância, outros no contínuo e incansável trabalho, e todos em sujeição e obediência. Todos estes vassalos ou criados, que assim lhes chama Tertuliano, tinha Adão naquele seu primeiro estado; estando sempre servido e assistido de todos, diz a Escritura que estava só: Non est bonum hominem esse solum[37]. Que não seja bom estar só, isso mesmo é o que estamos lamentando; mas, que Adão naquele tempo em que estava servido, e assistido, e obedecido de todos os viventes do mundo, estivesse só? Sim. A mesma Escritura deu a razão: Adae vem non inveniebatur adjutor similis ejus[38]. – Entre todos esses viventes dos três elementos, nenhum se achava que fosse semelhante a Adão para o ajudar, porque todos eram de diferente espécie; e os que não são semelhantes, os que são de diferente espécie, ainda que sejam muitos, e de boas partes, fazem número, não fazem companhia. Adão estava só, porque não tinha quem o ajudasse, estava só, porque não tinha quem o acompanhasse: tinha muitos que o servissem, sim, mas uma coisa é servir, outra ajudar: só quem é semelhante ajuda, os que não são semelhantes servem; tinha muitos que o assistissem, sim, mas uma coisa é assistir, outra acompanhar: os que são de diferente espécie assistem, só quem é da mesma espécie acompanha. De maneira que Adão, porque não tinha um semelhante a si, e da mesma espécie, porque não tinha um que fosse como ele, depois dizia, osso dos seus ossos, e carne da sua carne: Non inveniebatur adjutor similis ejus; estando tão assistido, estava só, sem quem o acompanhasse: Non est bonum hominem esse solum.

Poderá parecer dura a aplicação deste passo, mas a quem não tiver entendido que os reis são de diferente espécie que os outros homens. No nascer e no morrer são os reis da mesma espécie e da mesma natureza que os outros homens; mas aquele espaço, ou curto ou largo da vida, em que têm o cetro nas mãos, são ainda mais que de diferente espécie. Não é dito este meu formado na ambição dos príncipes, nem inventado na adulação dos vassalos, senão pronunciado pela mesma verdade divina, menos da qual eu o não alegara para prova de matéria tão grande: Ego dixi: Dii estis, et filii Excelsi omnes. Vos autem sicut homines moriemini (SI. 81, 6 s): Vós, ó reis, na morte sois como os homens; antes da morte não sois homens, sois deuses; e para que ninguém duvide desta verdade de fé, eu sou o que o digo: Ego dixi: Dii estis. – Notai muito: não diz que os reis são homens como deuses, senão que são deuses como homens: Dii estis, vos autem sicut homines[39]. – De sorte que no rei, enquanto rei, a deidade é natureza, a humanidade é propriedade. O homem, definido por Aristóteles, é animal racional mortal; os reis, definidos por Deus, são deuses mortais: Dii estis, sicut homines moriemini. – Assim que na propriedade de morrer são semelhantes os reis e os homens; no demais diferem, como homem e Deus, que é a maior de todas as diferenças; e, como entre os reis e os vassalos, quaisquer que sejam, há tanta diferença, bem se deixa ver quão só deixou a morte de Sua Alteza ao nosso monarca, posto que tão servido, e tão assistido de tantos: servido de muito grandes e fiéis vassalos, mas só, e sem quem o ajude, porque morreu quem era seu semelhante, que só o pudera ajudar: Non inveniebatur similis (Gên. 2, 20); assistido de muito grandes e fiéis ministros; mas só, e sem quem o acompanhe, porque morreu quem era da sua espécie ou jerarquia, que só o pudera acompanhar: Non est bonum hominem esse solum: Et ipse remansit solus.

§ XIV

O auxílio de que se viu privado Sua Majestade depois da morte do irmão. Se Deus no dia sétimo, e daí por diante, obrou na conservação do mundo como até ali tinha obrado na criação dele, por que diz o texto sagrado que então descansou Deus? O príncipe D. Duarte e as causas segundas. O poder e irmandade de Moisés e Arão. De que modo caíram os muros de Portugal com a morte do infante? Quanto tinha Moisés em seu irmão Arão, e quanto perdeu na sua morte.

Ficou só Sua Majestade, sem quem o ajude, e sem quem o acompanhe; mas esta segunda soledade tem o reparo que tinha a de José, se bem em diferentes e maiores graus de sangue: a primeira não tem nenhum reparo, porque para ajudar a Sua Majestade era Sua Alteza singular, e sem semelhante, porque só era semelhante a quem devia de ajudar: Adjutor similis ejus. – Por mais que um rei, ou pretenda, ou afete ser ele só o Atlante que sustente o peso da monarquia, assim como o mesmo Atlante se houve de ajudar dos ombros de Hércules, é força que tenha o rei junto a si quem o ajude, e quem o descanse, e em quem descanse. Criou Deus, povoou e ordenou o governo do mundo em seis dias contínuos; e ao dia sétimo, diz o texto sagrado que descansou: Requievit die septimo (Gên. 2, 2). – É certo, ainda em razão natural, que Deus ao dia sétimo não deixou de obrar no mundo, como nem hoje desiste da mesma obra: Usque modo operatur (Jo. 5, 17). – Pois, se Deus no dia sétimo, e daí por diante, obrou na conservação do mundo como até ali tinha obrado na criação dele, por que diz o texto que descansou Deus: Requievit die septimo? – A razão é porque até aquele dia obrou Deus só por si mesmo, e dali por diante obrou juntamente com as causas segundas, e obrar a causa primeira junto com a causa segunda é descansar. Se Deus não chega a obrar só sete dias, e se Deus tem causas segundas com que obra, e em quem descansa, os deuses, que são mortais e passíveis, como hão de imaginar que podem sós o que Deus fez acompanhado? Em suposição, pois, que é força ter uma causa segunda que ajude, e em quem descanse a primeira, que causa segunda, como um irmão segundo, e tão sem segundo?

Ajudava-se Moisés de seu irmão Arão; e era tão irmão e tão conforme o mesmo governo, que a vara de Moisés, que era o cetro, umas vezes se chama vara de Moisés, e outras vara de Arão. Libertaram ambos felizmente o povo de Israel, e conservaram a felicidade da empresa em tempos tão trabalhosos e tão dificultosos, como os quarenta anos do deserto; e, falando desta ação a Escritura, diz assim: Deduxisti sicut oves populum tuum, in manu Moysi et Aaron (SI. 76, 21): Guiastes, Senhor, o vosso povo, como um rebanho de ovelhas, pela mão de Moisés e Arão. – Notai aqui duas coisas: a primeira, que se chamam ovelhas as doze tribos de Israel no tempo deste governo. A tribo de Judá chama-se na mesma Escritura leão; a de Rúben, serpente; a de Neftali, lobo; e, assim estas três, como todas doze, constavam de seiscentos mil homens de armas, belicosos e vencedores: e, contudo, diz o texto que foram governadas, como um rebanho de ovelhas, pela mão de Moisés e Arão, porque, quando dois irmãos se ajudam, quando dois irmãos se dão a mão, ninguém há que se atreva, ninguém há que não se sujeite; nem a serpente levanta o colo, nem o leão encrespa a juba, nem o lobo mostra o dente: o lobo, a serpente e o leão, todos são ovelhas: Deduxisti populum tuum sicut oves. – A outra coisa é que a mão de Moisés e Arão não se chamam duas, senão uma só mão: In manu Moysi et Aaron – porque a mão do rei e a mão da pessoa de quem o rei se ajuda, há de ser uma mão indivisível, uma só e a mesma; só na subordinação há de haver a diferença: há de ser mão de Moisés e Arão, e não mão de Arão e de Moisés; Moisés primeiro, Arão segundo, mas uma só mão a de ambos; e tanta mão não é bem que o tenha o criado: só irmão pode ter tanta mão: In manu Moysi et Aaron.

Frater; qui adjuvatur a fratre, quasi urbs munita (Prov. 18, 19 ex 70) – diz Salomão nos Provérbios: Um irmão ajudado de outro irmão é uma cidade murada. – A diferença que faz uma cidade murada ou sem muros, é a que há de um irmão com outro irmão, ou sem ele. Uma cidade murada, é a defensa dos naturais, é o respeito dos estranhos, é o terror dos inimigos: a mesma cidade sem muros, nem aos naturais dá segurança, nem dos estranhos se faz respeitar, nem dos inimigos temer. Tal é, diz o Espirito Santo, um irmão com outro irmão, ou sem ele; irmão com irmão é cidade murada; irmão sem irmão é cidade sem muros. Ah! senhor, que vemos por terra os fortes muros em que a coroa de Vossa Majestade havia de ter a mais firme e a mais segura defensa! Quando a Marcelo lhe chegaram as novas da morte de Cipião Africano, saiu de casa exclamando: Concurrite, concurrite eives: moenia urbis vestrae eversa sunt: Acudi, acudi romanos, que caíram os muros de Roma. – Que direi eu com tanta ocasião? Chorai, chorai portugueses, que caíram os muros de Portugal. Caíram os muros da nossa pátria, como os muros de Jericó: cercaram os israelitas a cidade de Jericó, e, sem baterem nem aplicarem instrumentos militares aos muros, ao sétimo dia caíram por si mesmos. Ó muro fortíssimo de Portugal, hoje lamentável ruína! Não vimos aplicar instrumentos de violência a vossa vida, mas dentro em sete dias caístes por terra. Aquela foi a primeira vitória que os israelitas alcançaram da Terra de Promissão, e esta é a primeira vitória que os castelhanos, tantas vezes vencidos, alcançaram de Portugal: não entraram nem entrarão nunca no reino, mas já nos arrasaram os muros. Caso é muito de notar que nestes mesmos nove anos, em que tantos rigores se executavam no infante, empenhasse Castela tanta arte e tanto poder contra Portugal, e contra a pessoa de Sua Majestade, e que sempre se frustrassem seus intentos; mas é que estava Portugal murado por fora – e tão por fora – e todos os golpes de Castela descarregaram nos muros: cá se tiravam as balas, e em Milão se empregavam os tiros; ainda assim distante, assim cercado, assim sitiado e atalaiado de sentinelas, era o nosso infante o nosso muro; e, se quando este irmão parece que não ajudava nem podia ajudar ao irmão, era muro tão firme seu, e lhe rebatia e recebia em si os golpes, que seria se chegasse a o assistir de mais perto? E que bem defendida teria Sua Majestade a coroa sobre a cabeça, se tivesse um tal muro diante do peito? Frater, qui adjuvatur a fratre, quasi urbs munita.

Elegeu Deus a Moisés por cabeça e restaurador do povo de Israel, e deu-lhe por adjunto a seu irmão Arão. O que eu agora reparo, e me parece digno de grande ponderação, é o título e o cetro que Deus deu a este seu libertador. O título que Deus deu a Moisés não foi de rei, senão de Deus de Faraó: Constitui te Deus Pharaonis (Êx. 7, 1); o cetro que lhe deu, foi aquela vara maravilhosa, em que delegou Deus as vezes de seu infinito poder. Pois, se a Moisés – vede se infiro bem – se a um príncipe, que tem por título a divindade, e por cetro a onipotência, põe Deus ao lado um irmão, para que o ajude, quando o fez restaurador de um povo, que grande falta fará um irmão, e tal irmão, como o infante D. Duarte, a um rei cujo título, ainda que dado por Deus, é humano, e cujo cetro, ainda que confirmado com tantos milagres, não é onipotente? Não há dúvida que com a falta de tal irmão ficará muito mais alentada a emulação de nossos inimigos, e muito mais animadas suas armas e suas esperanças. Assim lhe aconteceu a Moisés com a morte de seu irmão. Chega, finalmente, Moisés ao monte Or, morre ali Arão: e tendo notícia el-rei Arad que os filhos de Israel se avizinhavam às terras de Canaã, tomou logo as armas para lhes impedir o passo. Pois, donde nasceu este ânimo aos cananeus, donde concebeu esta ousadia el-rei Arad? Deu a razão Lirano, como tão douto nas tradições dos hebreus: Audivitque chananaeus, scilicet, mortem Aaron, et adventum filiorum Israel: et ex morte Aaron, quae acciderat, fuit audacior ad invadendum filios Israel[40]. – Chegou a el-rei Arad a nova de que era morto Arão, e esta notícia da morte de Arão ressuscitou os ânimos dos cananeus, e foi a que acrescentou a ousadia ao rei Arad, para que respeitasse menos o poder de Moisés, e intentasse o que até ali se não atrevera. Tão depressa, e em matéria tão importante, experimentou Moisés quanto tinha em seu irmão Arão, quanto perdera na sua morte, e quanta falta lhe fazia seu nome e sua presença. Mas quem era Arão? Era, porventura, o general do exército de Moisés? Era algum soldado de grande fama e experiência? Não. Era um homem eclesiástico, que vestia umas roupas largas, e nunca tomara espada na mão. Oh! grande argumento da nossa perda! Se a morte de Arão, se a morte de um irmão, que só podia ajudar a seu irmão com o conselho, fez tanta falta a Moisés, ainda no respeito de suas armas para com os estrangeiros, que diferente peso e preço será o da perda de irmão de tanto valor, de tanto juízo, de tanta autoridade, de tanta experiência, e, sobretudo, de tanta opinião, que é a que, mais que as armas, defende e conserva as monarquias? Tanto nos levou a morte em tirar a Sua Majestade um tal irmão: Frater ejus mortuus est – e tantas razões nos deixou de sentirmos a nossa, e muito mais a sua soledade: Et ipse remansit solus.

§ XV

A consolação dos vivos na consideração do que deixou de padecer Sua Alteza. A mal considerada grosseria da terra na morte de Cristo. A perda do infante D. Duarte e a perda de José. Não quis Castela ter contra si um infante vivo, e terá contra si um inocente morto.

Resta o terceiro e último ponto, que é a consolação dos vivos, e dividindo-a conforme os três respeitos com que ponderamos a dor, digo que nem da parte do infante nos deve desconsolar a morte, nem da parte de el-rei a soledade, nem da nossa parte a perda; porque a morte foi descanso, a perda interesse, a soledade há de ser companhia. Foi a morte para Sua Alteza descanso; e que bem figurado o temos no caso de José! José, faziam-lhe as exéquias, e choravam-no em Palestina; e no mesmo tempo estava ele reinando no Egito, com a maior grandeza e glória a que subiu jamais a felicidade humana: o afeto com que se choravam as lágrimas era verdadeiro, mas a causa por que se choravam era falsa: porque se chorava como morto o que era vivo, e como infeliz o que era ditoso. Para nos consolarmos no descanso de Sua Alteza, não é necessário recorrer ao que goza; basta considerar o que deixou de padecer. Como vivia Sua Alteza? Desterrado da pátria, e preso. A ausência é meia morte, o cárcere é meia sepultura; e nove anos havia que Sua Alteza estava meio morto e meio sepultado. Se desta começada morte, se desta começada sepultura houvera esperanças que havia de ressuscitar, razão tínhamos de consolar-nos; mas, sendo certo, como mostrou a experiência, que o ânimo de nossos inimigos era, ou tirar-lhe a vida, ou perpetuar-lhe a morte, alívio foi seu, e o deve ser nosso, que acabasse de morrer, para que acabasse de penar. É tanto isto assim, que me parece tiveram sido mais bem considerados os nossos lutos, se os puséramos com a nova da sua prisão, e os tiráramos com a da sua morte. Pregaram a Cristo na cruz ao meio-dia, e eclipsou-se o sol: morreu Cristo às três horas da tarde, e em o mesmo ponto no céu acabou-se o eclipse, e na terra começaram as pedras a quebrar-se, os montes a tremer, os monumentos a se abrir. É certo que assim as demonstrações da terra, como as do céu, foram sentimentos por amor de Cristo. Pois, se o céu acaba o seu sentimento no ponto em que Cristo morre, como a terra, pelo contrário, começa o seu sentimento também no ponto em que Cristo morre? O mesmo ponto da morte de Cristo há de ser fim do sentimento do céu, e princípio do sentimento da terra? Sim, que cada um sente como entende. Cristo na morte acabou o seu tormento, e começou o seu descanso; e começar-se o sentimento dos vivos, quando começa o descanso dos mortos, é grosseria da terra mal considerada; porém, o céu, como mais entendido, não faz assim: Pôs os seus lutos quando Cristo começa a padecer, e tirou-os quando acabou de penar; conformemo-nos com o céu. Quando principiou a prisão de Sua Alteza, então devíamos sentir o seu trabalho; agora que o acabou a morte, devemo-nos consolar com o seu descanso. Senti-lo então, era sentir mais a sua pena; senti-lo agora, parece que é sentir mais a nossa perda.

Mas, ainda que seja assim, nessa mesma perda temos igual razão de nos consolar, porque, se foi grande para o sentimento, foi necessária para o remédio: perdendo a sua assistência, ganhamos o seu patrocínio. Em Milão, como estava ausente e preso, não nos podia acudir; no céu, como está livre e poderoso, pode-nos patrocinar. Jacó chorava muito a imaginada morte de José, e nesta perda, que tinha pela maior de sua casa, consistiu o remédio e conservação dela, tão admiráveis são as traças da Providência divina! Naquela calamidade, em que todos pereciam, perecera também a casa de Jacó, se não tivera a José no Egito, que foi o seu remédio e o seu sustento. De maneira, que foi necessário que a casa de Jacó perdesse a José, para que ela se não perdesse. O mesmo digo neste nosso caso. A calamidade não pode faltar; mas ter ao nosso infante no céu, é ter a José no Egito: a perda foi grande, mas era necessária esta perda para nossa conservação; até agora podia estar duvidosa, de hoje por diante eu a tenho por segura, e dou a razão. A conservação de Portugal tem dois perigos, ou dois contrários: por fora nossos inimigos, por dentro nossos pecados; e para ambos estes contrários nos deixou defendidos o nosso infante: para expiação dos pecados com o sacrifício de sua morte; para a vitória dos inimigos com a vingança da sua inocência. Permitir Deus a morte... do nosso infante, grande argumento é de querer conservar Portugal; e aceitou aquele sacrifício em satisfação de nossos pecados. Assim o considerou Santo Ambrósio na morte de Valentiniano, comparando-a nesta parte com a de Cristo: Occidit pro omnibus, quos diligebat, pro quo amici sui parum putabant si omnes perirent[41]: Morreu por todos, aquele por quem todos dariam a vida. – Esta foi a razão por que Deus quis que o nosso infante fosse o sacrifício, porque era bem tocasse a todos a dor, pois a todos havia de abranger o remédio: onde estavam todos os corações, ali quis que se fizesse o sacrifício; ele foi o morto, e todos os sacrificados.

Tal foi o sacrifício da sua morte. Da vingança da sua inocência só se poderá duvidar, porque Sua Alteza, como tão religioso, perdoou na morte a todos, e não só lhes perdoou os agravos, mas ainda o nome de inimigos. Assim foi; mas a vingança, que não pediu vivo, é certo que pede morto: Vox sanguinis fratris fui clamat ad me de terra (Gên. 4, 10); O sangue de vosso irmão está pedindo vingança da terra. – Depois que esteve na terra, então pediu vingança; enquanto o sangue esteve nas veias, governado daquela alma generosa, pedia perdão; depois que esteve fora das veias, depois que esteve na terra, deixado a seu alvedrio, pediu vingança. Assim há de ser, e não pode faltar. Não quis Castela ter contra si um infante vivo, e terá contra si um inocente morto; não quis ter contra si um braço mortal armado, e terá contra si um braço imortal vingativo. Aqueles maus lavradores do Evangelho diziam: Hic est haeres, venite, occidamus eum, et habebimus haereditatem (Mt. 21, 38): Este é o herdeiro; matemo-lo, e ficaremos senhores da herdade. – Os nossos êmulos ainda fizeram pior: para se fazerem senhores da herdade, mataram o que não era herdeiro; mas há-lhes suceder como aos outros. Santo Agostinho: Ut possiderent, occiderunt; et guia occiderunt non possiderunt: Mataram o inocente para possuir a herdade, e não possuíram a herdade porque mataram o inocente. – Vede se temos com que consolar a perda.

§ XVI

Com que há de consolar Sua Majestade a soledade? O valoroso patrocínio do príncipe morto. O estado em que se encontra Castela, apoiada sobre duas colunas. Peroração.

E Sua Majestade, com que há de consolar a soledade: Et ipse remansit solus? – Há de consolar a soledade com a companhia: com a companhia que há de ter do céu, e com a companhia que lhe ficou na terra. Foi tão grande homem José, que pôde testar de Deus: Post mortem meam Deus visitabit vos (Gên. 50, 23): Irmãos meus, não vos desconsoleis com minha morte, porque quando eu me ausentar de vós, Deus virá estar convosco.–Ditosa soledade, que se substitui com tal companhia! Só a companhia de Deus podia substituir a soledade do nosso José; não o digo só por acomodação, mas prometo que há de ser assim, porque assim o tem Deus prometido: Et in ipsa attenuata, ego respiciam, et videbo.–Prometeu Deus a el-rei D. Afonso Henriques que, quando a sua décima-sexta geração estivesse atenuada, ele poria nela os olhos de misericórdia. – Ainda isto se não entendeu até agora. A décima-sexta geração eram os filhos do sereníssimo duque D. Teodósio; a linha desta geração era composta de três fios: Sua Majestade, que Deus guarde, o senhor infante, e o senhor D. Alexandre. Morreu o senhor D. Alexandre, quebrou-se um fio; morreu o senhor infante, quebrou-se outro fio. Já temos a linha da geração só por um fio; e esse, segundo as leis dá natureza, o mais delgado, que é o fio mais velho; e é chegado o tempo de Deus abrir os olhos de sua misericórdia: Post mortem meam Deus visitabit vos. – E notem os doutos que, segundo frase da Escritura, o mesmo é visitare que respicere et videre. – Disse Ana a Deus: Si respiciens videris afflictionem afflictionem tuae[42]. – Ouviu-a Deus, e diz o texto: Visitavit Dominus Anam[43] – Post mortem meam Deus visitabit vos. Ego respiciam, et videbo.

E não só Deus há de acompanhar a Sua Majestade daqui por diante com mais particular assistência, mas o mesmo infante D. Duarte, se a necessidade o pedir, há de descer do céu a assistir ao lado de el-rei seu irmão, que assim o costumam fazer os príncipes portugueses, ainda depois de mortos. No dia em que os portugueses tomaram Ceita, apareceram no coro de Santa Cruz de Coimbra el-rei D. Afonso Henriques e el-rei D. Sancho I, que, alimpando as espadas, se iam recolhendo para as suas sepulturas, e declararam que vinham de acompanhar a el-rei D. João o I, e ao príncipe D. Duarte na conquista daquela cidade. Diz S. Gregário Niceno que o anjo da guarda faz ofício de irmão: Frater quodam ministerio hominis angelus est. – A Judas Macabeu acompanhava-o nas batalhas armado o seu anjo, como se fora seu irmão; a Sua Majestade há o de acompanhar armado nas batalhas seu irmão, como se fora seu anjo. Das palavras de Caim há de formar a sua empresa o nosso Abel: Custos fratris mei sum ego (Gên. 4, 9): Eu sou o custódio de meu irmão. – Até agora tinha Sua Majestade dois anjos da guarda, daqui por diante há de ter três: um enquanto homem, outro enquanto rei, outro enquanto irmão: Custos fratris mei sum ego. – Diga embora Jacó de Benjamim: Et ipse remansit solus – que Sua Majestade, ainda que visivelmente sinta os afetos da soledade, invisivelmente há de experimentar os efeitos da companhia. Esta é a companhia do céu: a da terra, é a que Sua Majestade tem ao lado do príncipe, que Deus guarde muitos anos. Parece que dilatou o infante a sua morte até o ver naquela idade, como se dissera: – Já agora não sou necessário. – Só em um tão grande sobrinho se podia substituir um tão grande tio; e o lugar de um tal Heitor só o podia encher um tal Ascânio: parece-me que o estou ouvindo desde aquele túmulo dizer a Sua Alteza: Disce puer virtutem ex me, verumque laborem, fortunam ex aliis[44]. – Duas coisas pretendeu Castela: a primeira, por meio da traição que vimos, que Sua Majestade não ficasse: Et ipse remansit; a segunda, por meio da morte de Sua Alteza, que ao menos ficasse só: Et ipse remansit solus. –Mas sucedeu-lhe tanto pelo contrário, que Castela é a que deve lamentar a sua soledade: Quomodo sedet sola[45]? – Hoje faz nove anos, havia em Castela cinco pessoas reais, e em Portugal outras cinco; hoje em Castela há duas, e em Portugal sete. Oh! que grande argumento da estabilidade de Portugal, e da ruína de Castela! Que Sansão, lançando os braços a duas colunas do templo dos filisteus, as derrubasse, grande fortaleza foi; mas que, derrubadas só duas colunas, viesse todo o templo a terra, como se pode isto entender? A razão é porque as abóbadas de todo o templo vinham a se rematar no meio, e descansava sobre aquelas duas colunas o edifício: e edifício que está fundado só em duas colunas, basta um homem para o derrubar. Este é o estado em que está Castela; porém, Portugal está firmíssimo, porque está fundado sobre tantas colunas. Quis a Sabedoria divina fundar uma casa que fosse eterna: e que fez? Fundou-a sobre sete colunas: Sapientia aedificavit sibi domum, excidit columnas septem[46]A casa que Deus fundou para si é a casa de Portugal: Imperium mihi stabilire –e tem-no fundado hoje sobre sete colunas.

O restante do sermão, como todo estava em papéis soltos, não se achou. Só apareceu o último, em que o incomparável orador acabou a sua fúnebre oração, e concluiu com o seguinte:

Enfim, sereníssimo infante D. Duarte, no céu estais já; acabaram-se as nossas esperanças, e lograram-se, senhor, as vossas. Muito sentimos, príncipe grande, que Deus vos não fizesse para nós; mas consolamo-nos com que vos fez para si. Já se acabou o desterro, gozai a pátria; já se acabaram os trabalhos, gozai a coroa. Oh! quanto gozareis os amores de Deus no céu, pois lhe soubestes dar ciúmes na terra! Os homens vos temeram vivo, crédito é do novo estado que vos temam imortal; não vos lembreis de que vos apressaram a glória, lembrai-vos de que vos tiraram a vida: se lhes perdoastes as vossas injúrias, reparai, senhor, que não lhes podeis perdoar as nossas. Oferecei por nós o sacrifício de vosso sangue, e se se calar, como vosso, permiti-lhe que clame como inocente. Justiça, infante D. Duarte, justiça, príncipe de Portugal, justiça. Com estas vozes acabo, porque estas são as da pátria, que vos ama: mostrai-lhe do céu quanto a amais; experimente a terra quanto podeis: a que vos matou, na justiça, a que eternamente vos amará, na graça, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Seu irmão morreu, e ele ficou só (Gên. 42, 38).

[2] Eis aí vem o sonhador (Gên. 37, 19).

[3] Peço-te Senhor, que enfatues o conselho de Aquitofel (2 Rs. 15, 31).

[4] Quem me fará tão ditosa, para que eu te ache de tora, e ninguém mais me desprezará (Cânt. 8, 1).

[5] Aborreciam-no, e não lhe podiam falar com bom modo (Gên. 37, 4).

[6] Acusou seus irmãos de um enorme crime (ibid. 2).

[7] Acaso virás a ser nosso rei, ou nós seremos sujeitos ao teu domínio (ibid. 8)?

[8] Um homem o encontrou andando errante (ibid. 15).

[9] Depois da morte de Jacó, temendo seus irmãos, e falando entre si, disseram: Não se dê caso que José se lembre agora da injúria que padeceu, e nos faça pagar todo o mal que lhe fizemos. Mandaram eles pois dizer-lhe, etc. (Gên. 50, 15 s).

[10] Foram dadas à mulher duas asas de uma grande águia, para voar ao lugar do seu retiro (Apc. 12, 14).

[11] Enviados pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo (Mt. 26, 47).

[12] O teu Deus forte e zeloso (Êx. 20. 5).

[13] Não darei a outrem a minha glória (Is. 48, 11).

[14] Vós viestes para me prender como se eu fora um ladrão (Mt. 26, 55).

[15] Desejou para si a morte (3 Rs. 19, 4).

[16] E andou pelo deserto o caminho de um dia (ibid.).

[17] Levantando-se. se ausentou para onde quer que o seu desejo o levava (ibid. 3).

[18] Euth. in Matth.

[19] Todos os que estavam com o coração amargurado (2 Rs. 17, 8).

[20] A minha alma está sempre nas minhas mãos (SI. 118, 109).

[21] Nem a minha fortaleza é a fortaleza das pedras, nem a minha carne é de bronze (Já 6, 12).

[22] Sem. lib. de Provid.

[23] Amai a vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem e caluniam (Mt. 5, 44).

[24 paguei com mal aos que mo faziam, caia eu com razão debaixo dos meus inimigos, sem esperança (SI. 7. 5).

[25] Olha meus inimigos, como se têm multiplicado (SI. 24, 19).

[26] Faze voltar os inales sobre os meus inimigos, e na tua verdade destrói-os (SI. 53, 7).

[27] Para serdes filhos de vosso Pai (Mt. 5, 45).

[28] Porque se vós não amais senão os que vos amam, não fazem também assim os gentios (ibid. 46 s)?

[29] Amigo, a que vieste (Mt. 26, 50)?

[30] Greg. Homil. 27 in Evang.

[31] Todo o peso do combate caiu sobre Saul (1 Rs. 31, 3).

[32] Desde o ombro para cima sobressaía a todo o povo (ibid. 9, 2).

[33] Onde está o rei dos judeus, que é nascido (Mt. 2, 2)?

[34] Ainda que seja necessário morrer eu contigo (Mt. 26, 35)

[35] Acaso virás a ser nosso rei (Gên. 37, 8)?

[36] Eis aí vem o sonhador; vinde, matemo-lo, e então se verá de que lhe aproveitam os seus sonhos (Gên. 37, 19 s).

[37] Não é bom que o homem esteja só (Gên. 2. 18).

[38] Não se achava para Adão adjutório semelhante a ele (ibid. 20).

[39] Vieira mudou aqui a pontuação e o sentido original da Vulgata.

[40] Núm. 33, 40. Lyr. hic.

[41] Ambr: tom. 5, pág. 89 in obito Valent.

[42] Se tu te dignares de olhar para a aflição de tua serva (1 Rs. 1, 11).

[43] Visitou o Senhor a Ana (1 Rs. 2, 21).

[44] Menino, aprende de mim a virtude e o trabalho, e dos outros a fortuna (Virgil.).

[45] Como assim solitária está assentada (Lam. 1, 1)

[46] A sabedoria edificou para si uma casa, cortou sete colunas (Prov. 9, 1).