Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Voz quarta obsequiosa, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

VOZ QUARTA OBSEQUIOSA

SERMÃO DAS EXÉQUIAS DO CONDE DE UNHÃO D. FERNÃO TELES DE MENEZES DE FELIZ MEMÓRIA Pregado na Vila de Santarém, ano de 1659.

Enoch vixits exaginta quinque annis, et genuit Mathusalem. Etambulavit Enoch cum Deo, et genuit, filios et filias. Ambulavitque cum Deo, et non apparuit; quia tulit eum Deus[1].

Tarde venho à consolação - dizia em semelhante caso S. Jerônimo a Pamáquio - e, depois que o tempo e a razão têm já curado as feridas, temo que será renovara dor trazê-las do silêncio à memória: Ego serus consolator vereor...ne attrectans vulnus pectoris tui, quod tempere et ratione curatum est, commemoratione exulcerem[2]. - Para entrar neste lugar com o mesmo receio tinha eu as mesmas causas; tuas venho muito livre dele: não vem a minha oração a renovar dores, nem a acompanhar a impropriedade destes lutos; vem a emendá-los. Baste o chorado já, baste o sentido; contente-se a natureza com setenta dias de dor, que nem à morte de Jacó deram mais as lágrimas do Egito, choradas sem fé da imortalidade: Flevit eum Aegytus septuaginta diebus[3]. - Justo é que se fale da morte em semelhantes casos, sim, mas quando se prega da morte daqueles que nos não deixaram outro exemplo nem outro desengano que o de morrerem. Celebramos hoje as memórias de Fernão Teles de Menezes, cujo nome é o maior elogio; por isso o refiro desacompanhado de todos. Memórias disse, e não memórias fúnebres, porque não hei de pregar de morto, senão de vivo. Sermão de honras me encomendaram; e não seriam honras, senão injúrias da virtude e da razão, buscar ao vivo entre os mortos: Quid quaeritis viventem cum mortais[4]?

Tempos havia que a milagrosa Santarém faltava ao mundo com prodígios: deu em nossos dias este milagre de virtude, milagre de exemplo, milagre de religião, milagre de santidade para que vissem os homens -já que parece que o não crêem - que à nobreza não é privilégio, senão maior obrigação às leis de Deus; que o vício não está nas riquezas, senão no abuso delas; que se pode ajuntar o regalo com a penitência, a corte com o retiro, a família com o sossego, o poder com o não querer; e que não é impossível estar o sangue sem carne, a grandeza sem inchação, e o céu com a terra juntamente. Este é o milagre que temos presente, e não o contradizem nem aqueles epitáfios nem aquela sepultura que também sobre os milagres tem jurisdição a morte. Anos foram, que neste mesmo lugar se abriu milagrosamente o Tejo, como o Jordão, para dar passo ao sepulcro de Santa Iria; e já hoje correm suas águas como corriam dantes: até milagres acabam! Mas o milagre deste milagre foi que acabou sem morrer.

Para poder falar dele com alguma propriedade, busquei paralelo; mas nem o achei no mundo, nem em nossos tempos. Como se havia de achar paralelo, nem no mundo nem em nossos tempos, para quem não foi deste tempo nem deste mundo? Um morto vivo - ou um vivo que nunca morreu - um vivo trasladado, um homem do outro mundo, um Enoc no paraíso será o fundamento da minha oração. De todos os outros homens daquele tempo diz a Escritura: Mortuus est; - só a Enoc pôs por epitáfio: Vixit.: Enoch vixit sexaginta quinque annis (Gên. 5, 21). - Sessenta e cinco anos viveu o nosso Enoc, e outros tantos eram necessários para referir os exemplos da sua vida, quanto mais para os

ponderar. Em seguimento das palavras que propus, irei dizendo o pouco que couber em tanta limitação de tempo; o demais perguntá-lo-ão os vossos ouvidos aos vossos olhos. Para as memórias de quem tanta do coração a serviu, não pode a Mãe de Deus negar-nos a muita graça que havemos mister: digamos a

AVE MARIA.

Enoch vixit sexaginta quinque annis: Enoc viveu sessenta e cinco anos. - A primeira maravilha que considero no nosso Enoc, é que, morrendo de sessenta e cinco anos, viveu sessenta e cinco anos: Vixit Enoch sexaginta quinque annis. - Que morresse de sessenta e cinco anos, outros alcançaram maiores idades; mas que morresse de sessenta e cinco anos, e vivesse sessenta e cinco anos! Bem sei que estranhais a novidade do reparo; mas não tem que estranhar. Morrer de muitos anos, e viver muitos anos, não é a mesma coisa. Ordinariamente os homens morrem de muitos anos, e vivem poucos. Por quê? Porque nem todos os anos que se passam se vivem: uma coisa é contar os anos, outra vivê-los; uma coisa é viver, outra durar. Também os cadáveres debaixo da terra, também os ossos nas sepulturas acompanham os cursos dos tempos, e ninguém dirá que vivem. As nossas ações são os nossos dias; por elas se contam os anos, por eles se mede a vida: enquanto obramos racionalmente, vivemos; o demais tempo, duramos.

Não é esta filosofia tão nova, que a não alcançasse até um gentio, Sêneca. Falava ele de um, que morrera de oitenta anos, e dizia assim: Quid illum octoginta anni juvant per inertiam exacti? - Que lhe aproveitam oitenta anos passados em ócios? - Non vixit iste, sed in vita moratus est: Este - diz Sêneca - não viveu, deteve-se na vida. - Se uma nau fosse à índia em seis meses, e outra ao Cabo da Esperança em vinte e quatro, qual diríeis que navegou mais? Não há dúvida que a primeira: aquela navegou, esta deteve-se. O mesmo passa nas vidas. Mais vivem uns em poucos anos que outros em muitos: uns vivem, outros detêm-se; todo o tempo que não obramos racionalmente, correm os anos, e pára a vida. No cap. 65 traz Isaías uma profecia notável: Puer centum annorum morietur (Is. 65, 2O): Sabeis o que há de acontecer? - diz Isaías: - Hão de morrer meninos de cem anos. - Morrer de cem anos, e meninos; escura profecia. Se meninos, como hão de morrer de cem anos; e se morrem de cem anos, como são meninos? Porque morrer de cem anos, e ser de menos anos não é a mesma coisa. Os anos medem-se pela duração, a idade computa-se pela vida: bem podem logo morrer de cem anos, e ser meninos; porque cada um não é dos anos que dura, é dos anos que viveu. Com um exemplo ficará esta verdade mais clara.

Nabucodonosor, condenou-o Deus a pascer nos campos de Babilônia, como bruto entre as feras; e assim andou sete anos. Agora, pergunto: e se a Nabucodonosor se lhe houvessem de contar pontualmente os anos da vida, não se lhe haviam de diminuir estes sete? Claro está que sim, porque os anos de bruto não pertencem à vida de homem. Ah! senhores! Se se houver de fazer este cômputo em cada um de nós, se se houverem de abater e descontar do tempo de nossas vidas todos aqueles dias que passamos conforme o apetite, e não conforme à razão, como é certo que na hora da morte havemos de achar as contas muito desiguais: os anos de que morremos, muitos; os dias que vivemos, poucos. Não assim o nosso Enoc: morreu de sessenta e cinco anos, e viveu sessenta e cinco anos: Vixit sexaginta quinque annis. - Todos os anos, de que morreu, viveu, porque todos viveu medidos com a razão e com a lei de Cristo; todos os dias de sua vida foram de vida sua porque lhos não roubaram os apetites. Foi moço, foi varão, foi velho; mas nem lhe levaram os anos de moço os galanteios, nem os de varão as ambições, nem os de velho os descuidos. Em moço viveu como quem se não fiava da vida; em varão, como quem a queria aproveitar; em velho, como quem a acabava: e por isso toda a sua vida viveu, por isso viveu sessenta e cinco anos: Vixit sexaginta quinque annis.

A vida humana, naturalmente considerada, compõe-se de três vidas. A vida vegetativa, com que nos alimentamos; a vida sensitiva, com que sentimos; a vida racional, com que entendemos. A estas três vidas naturais correspondem no espiritual outras três, as quais se conservam nas três mais encomendadas virtudes que temos na Escritura. As virtudes que mais nos encomenda Deus em ambos os testamentos, são estas três: jejum, esmola, oração. O jejum responde à vida vegetativa porque com ela nos alimentamos; a esmola responde à vida sensitiva, porque com ela nos compadecemos; a oração responde à vida racional, porque com ela tratamos com Deus. Estas são as vidas que tão altamente nos ensinou São Paulo naqueles seus três advérbios: Sobrie, et juste, et pie vivamus[5]. - Com a primeira vida vivemos para nós, com a segunda para o próximo, com a terceira para Deus. Com a primeira vivemos para nós: sobrie - e isso por meio do jejum, mortificando-nos; com a segunda vivemos para os próximos: juste - e isso por meio da esmola, socorrendo-os; com a terceira vivemos para Deus: pie - e isso por meio da oração, venerando-o. Todas estas viveu o nosso Enoc com toda a sua vida: Vixit.

Vixit: Sobrie. - O jejum do conde era tão extremado, que mais se pode dizer que vivia do que jejuava, que do que comia. O outro filósofo disse arrogantemente de si: Non ut edam vivo, sed ut vivam edo: Eu como para viver, não vivo para comer. - Do nosso Enoc ainda o podemos dizer melhor: o filósofo comia para viver, ele comia para não morrer: só por estes termos se pode explicar o extremo da sua abstinência. Deixou-nos nesta matéria um dos exemplos maiores que se veneram no mundo; e, porque o guardo para depois, não o quero ofender agora: Sobrie.

Juste. - Quão estreito foi no sustento de sua pessoa, tão largo era em acudir ao dos pobres. Desta virtude são menos públicos os seus exemplos; mas assim havia de ser para serem esmolas. Sustentar a vida, e tirar a honra, não é esmola, é injúria. Eram muitas as pessoas particulares a quem o conde sustentava a vida com suas esmolas e a honra, com lhas fazer secretamente. Fazia as obras de misericórdia com justiça: Juste. Reparo é este em que não repara, antes freqüentemente tropeça a caridade ou liberalidade dos grandes: dão aos pobres, e não pagam aos criados; dão o que não têm, e não pagam o que devem. O conde nenhuma coisa devia: a ninguém retardou nunca a paga; antes, costumava dizer que não sabia como havia quem pudesse ir à cama sobre dever o alheio. Tão sujeita e tão medida com as leis da justiça era a caridade do nosso Enoc! Mas nem por ser tão justa era menos liberal: pagava o que devia, e dava como se devesse. Os pobres eram os seus acredores: aos outros pedem, a ele executavam; mas assim havia de ser onde a misericórdia era justiça: Juste.

Pie. - Sendo tão grandes os exemplos que o conde nos deixou de todas as virtudes cristãs, o da sua oração foi o maior de todos. Ainda nos Egitos e nas Tebaidas se acham dificultosamente memórias de oração tão continuada. Levantava-se o conde cedo, verão e inverno; punha-se logo em oração, que só se interrompia ou se acrescentava com a Missa; e assim estava orando, até que lhe davam recado para comer. Da mesa tornava para o oratório, onde continuava toda a tarde, e as primeiras horas da noite; nem saía, senão obrigado da cortesia, a tomar alguma visita, o que era poucas vezes, porque os validos de Deus são menos importantes que os dos príncipes. Depois da ceia, voltava para a oração, da qual ordinariamente se não recolhia menos da meia-noite, e muitas vezes depois. Todo este tempo gastava este Enoc orando, sem mais variedade que passar da oração mental à vocal: a postura do corpo sempre de joelhos, a almofada, uma cortiça. Tão simples, tão penitente, tão alheia de todo o fausto era a devoção deste ilustre anacoreta! Só no altar se mostrava sua grandeza e riqueza, porque era um tesouro; mas que muito, se nele tinha o coração! Uma das notáveis advertências que Cristo deu a seus discípulos foi: Oportet semper orare (Lc. 18, 1): Que é necessário orar sempre. - Para este preceito ou conselho ser de alguma maneira praticável, são infinitas as interpretações que lhe dão os expositores: só o conde soube interpretar este texto, e ele mostrou ao mundo que não era impossível o guardar-se, assim como soa. Sem metáfora, e sem nenhum encarecimento, se pode dizer que sempre orava: nenhum dia houve que descesse a sua oração de oito e dez horas, muitos que passou de catorze. De um Hilarião e de um Macário fora admirável exemplo este: que será em um conde de Unhão, casado, rico, ilustre, e em muita parte da vida moço, e com os cuidados de tão grande casa! Aprendam aqui os que tomam por escusa de se darem menos a Deus as atenções da casa e do estado: nenhum governou a sua melhor que o conde, e sobravam-lhe tantas horas para Deus. Que grandes são os dias que se gastam bem! Tão vivos como isto gastou todos os seus o nosso Enoc: vede se posso dizer com verdade que os viveu todos: Vixit Enoch sexaginta quinque anuis.

Só me podem argüir os mais escrupulosamente doutos, que esta semelhança da idade deste Enoc, ainda que vem tão medida e tão pontual nesta parte, no demais não guarda proporção porque Enoc, como diz o mesmo texto, viveu na terra não só aqueles sessenta e cinco anos, mas outros muitos. Facilmente pudera sossegar o escrúpulo com os privilégios das semelhanças, que não têm obrigação de ser em tudo correspondidas e iguais; mas esta, que parece desigualdade e diferença, foi a maior propriedade e a maior energia da nossa semelhança.

Não viveu o conde mais que sessenta e cinco anos, mas nesses sessenta e cinco igualou todos os mais anos de Enoc. E por quê? Porque cada dia da vida do conde não foi um só dia, foram muitos: Benedictus Dominus die quotidie (SI. 67, 2O) - dizia o Profeta Rei: Bendito seja o Senhor no dia cada dia. - Se dissera no dia cada hora, bem estava: se dissera cada dia no ano, cada dia no mês, cada dia na semana, também; mas no dia cada dia: Die quotidie? - Sim, porque os dias que se ocupam, como o conde os ocupava em louvar a Deus: Benedictus Dominus - não são dias como os dias que se compõem de horas; são dias como os anos, que se compõem de dias. O tempo diante de Deus corre de outro modo: os anos no céu diante de Deus são como dias: Mille anni ante oculos tuos tanquam dies[6]. - Na terra diante de Deus os dias são como anos: Die quotidie. - Lá são os anos como dias, pelo muito que se goza; cá são os

dias como anos, pelo muito que se merece. Tais foram os do nosso conde; e assim, não é muito que nos seus sessenta e cinco igualasse estes, e todos os de Enoc: Enoch vixit sexaginta quinque annis.

Et genuit Mathusalem[7]. - Uma coisa teve singular Enoc entre todos os homens, e foi que aos sessenta e cinco anos de sua idade lhe deu Deus um sucessor, que foi Matusalém, no qual se perpetuou sua casa por tão comprida sucessão de anos, que nem antes nem depois dele houve quem chegasse a tantos. Este é o prêmio com que Deus paga ainda neste mundo, aos grandes dele: que a virtude dos progenitores seja a segurança da sucessão e a perpetuidade das casas. Por isso vemos tantas, ou cortadas no meio da sua duração, ou abortadas em seu nascimento, e primeiro caídas que levantadas. As casas podem nas fazer os reis: a sucessão só a pode dar Deus, e dá-a só a quem é servido, e serve-se de a dar aos que o servem. Esta grande ventura se pode prometer desde hoje à sua ilustríssima casa de Unhão, nos merecimentos do seu primeiro conde: foi como Enoc sua vida, será como Matusalém sua sucessão.

Começa a contar S. Mateus a genealogia de Cristo, e descendência da casa de Jacó, e diz assim: Liber generationis Jesu Christi filii David, filii Abraham (Mt. I , 1): Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. - Abraão foi primeiro que Davi não menos que catorze gerações; pois, por que se não diz em primeiro lugar, filho de Abraão, senão filho de Davi? Duas razões entre outras dão os expositores. Primeira: porque, ainda que Abraão foi o que fundou a casa, Davi foi o primeiro que meteu nela o título: Jesse autem genuit David regem. David autem rex genuit Salomonem[8]. - E porque Davi foi o primeiro que meteu na casa o título, deu-lhe o evangelista o primeiro lugar, ainda antes do mesmo fundador, porque esse é o que se lhe deve. E para que nem esta prerrogativa lhe faltasse ao nosso conde, foi ele, o primeiro que meteu na casa o título, e assim se chamará daqui por diante o primeiro de Unhão. Esta razão é de Ruperto; mas a que a mim mais me serve, e mais fundada na História Sagrada, é esta. Antepõe-se Davi a Abraão na genealogia de Cristo porque, ainda que o merecimento de Abraão a fundou, a virtude de Davi a estabeleceu: Abraão deu-lhe o fundamento, Davi deu-lhe a perpetuidade. Mil vezes havia Deus de acabar com a casa de Jacó: no tempo de Salomão, no tempo de Roboão, no tempo de outros descendentes dela, menos lembrados de seus avós e de suas obrigações; mas sempre teve mão nela a memória de Davi: Et propter David servum meum[9]. - Os alicerces da casa de Jacó foram os ossos de Davi. Depois que assentou sobre eles sua sucessão, sempre esteve firme, e o há de estar até o fim do mundo. Ditosa casa a que hoje se vê fundada sobre os ossos de um Davi tão servo de Deus! Aquele sepulcro são as bases de sua firmeza, e por esta prerrogativa se lhe deve e se lhe deverá sempre o primeiro lugar, não só sobre todos os que lhe sucederam depois, mas acima de todos os que foram antes: Filii David, filii Abraham.

Mas por que merecimentos? Todos os do conde nos podem fundar a esperança desta seguridade: mas teve alguns particulares, a que singularmente é devida. Uma das obras em que luzia a cristandade e piedade do conde, era o zelo e cuidado que tinha do culto divino na fábrica e ornato dos templos. Nas suas comendas e lugares, de que era senhor, reparou muitas Igrejas que estavam arruinadas; ornou e proveu outras que estavam menos decentemente servidas; e algumas levantou e edificou desde seus fundamentos. A quem tão solícito era em edificar casas a Deus, como lhe pode faltar Deus em estabelecer sua casa? Cada pedra que pôs na casa de Deus é uma coluna que acrescentou à sua: Sapientia aedificavit sibi domum, excidit columnas septem (Prov. 9, 1): A Sabedoria - diz Salomão - que edificara casa para si, fundada sobre muitas colunas. - Esta casa, como logo se segue no texto, era templo, porque diz que se fizeram nela os sacrifícios: Immolavit victimas suas (ibid. 2). - Pois, se a casa era templo, por que não diz que sábios edificaram templo para Deus, senão que edificaram para si? Porque assim era. Ninguém melhor edifica casa para si, que quem levanta templos para Deus. Na mesma metáfora me parece que o quis Deus mostrar nesta vida ao conde. Não conto nem qualifico milagres: falo no que agora direi, como em tudo o mais, pelos documentos que me foram dados.

Indo o conde para Ourique no ano de 1638, sobreveio-lhe a noite no campo, escura e chuvosa, de maneira que ele, e os que o acompanhavam, perderam o caminho. No meio desta perplexidade descobriram ao longe uma luz: seguiram-na, chegaram, apearam-se; acharam uma casa com a porta aberta; nela uma candeia acesa, lenha, pão, vinho, e algumas daquelas verduras do Egito, por que suspiravam os filhos de Israel, com tudo o que era necessário para se guizarem. Mas nem então, nem em todo o tempo que ali estiveram, apareceu pessoa alguma. Comeram os criados, e descansaram; o conde também comeu, e descansou, porque passou toda a noite em oração, que era o seu manjar e o seu descanso. Amanheceu, reconheceram a casa, e acharam que era uma ermida de Santo Antônio. Saíram, cerraram uma porta sobre a outra, puseram-se a caminho; mas a ermida não apareceu mais até o dia de hoje. Voltou o conde a buscá-la pelos mesmos passos, fizeram-se diligências pelos lugares vizinhos, e ninguém houve que visse tal ermida, nem tivesse notícia dela. Eis aqui quão segura tem a correspondência quem tem cuidado das casas de Deus. Aos filhos de Israel no deserto, deu-lhes Deus luz: Per noctem in columna ignis[10] - e deu-lhes de comer: Paviteos manu[11]; mas casa não lha deu, dormiam no campo; ao nosso conde deu-lhe Deus no deserto luz, deu-lhe de comer, e deu-lhe casa; e não outra casa senão a sua, uma igreja. Davi dizia: In terra deserta, et invia, et inaquosa, sic in sancto apparui tibi[12]: Eu, Senhor, orava no deserto como no templo. - O mesmo fazia o nosso Davi; mas experimentou maiores favores na correspondência. Davi orava no deserto e no templo, mas Deus não lhe levava o templo ao deserto; esta fineza estava guardada para o nosso Davi. Vede se lhe conservará a casa quem lhe dava a sua. Seguramente se pode prometer à casa e sucessão do conde os anos de Matusalém: Et genuit Mathusalem.

Et ambulavit Enoch cum Deo (Gên. 5, 22. 24): Andou Enoc com Deus. - Se todos puderam compreender o fundo destas palavras, eu me dera por mui contente com dizer que encheu o nosso Enoc o sentido delas. Que quer dizer: Ambulavit cum Deo? Andou com Deus? - Não se pode isto explicar, senão pelo seu contrário. Os que andais com o mundo, que fazeis? Todos os vossos passos, todos os vossos cuidados, todos os vossos pensamentos, todas as vossas ações, todas as vossas diligências são do mundo, e para com o mundo. Trocai agora o mundo em Deus: tal era o nosso Enoc: Ambulavit Enoch cum Deo. - Todo de Deus, todo para Deus, todo em Deus, todo com Deus. Quem buscou nunca o conde de Unhão, que o não achasse com Deus? Que faz o conde? Está no oratório. Em toda a sua casa, esta era a sua casa: ali estava, porque ali estava Deus; e quando dali saía, ou quando dali o tiravam, que nunca era senão forçado, mudava o lugar, mas não mudava a companhia: Ambulavit cum Deo. - Se caminhava, andava com Deus; se conversava, falava com Deus; se obrava, fazia-o por Deus; se padecia, referia-o a Deus; se alegre, com Deus se alegrava; se triste, com Deus se entristecia; se aliviado, com Deus se consolava. Em todo o lugar, em todo o tempo, em todo o estado com Deus. Com Deus de dia, com Deus de noite; com Deus em casa, com Deus na corte, e com Deus no monte. Com Deus no trabalho e com Deus na prosperidade; com Deus na saúde e com Deus na enfermidade; com Deus na vida e com Deus na morte: sempre com Deus, e todo com Deus. A memória com Deus, porque só de Deus eram as suas lembranças; o entendimento com Deus, porque só de Deus eram os seus pensamentos; a vontade com Deus, porque só de Deus eram os seus afetos. Enoc quer dizer dedicado: os outros homens emprestam-se a Deus, o conde dedicou-se a Deus: Ambulavit Enoch cum Deo.

Deste andar com Deus do nosso conde, colho eu que teve no céu o mesmo título que teve na terra ou, para melhor dizer, que tinha na terra o exercício do título que tinha no céu. Na corte do céu também há títulos de condes. Não é modo de falar, senão verdade revelada nas Escrituras. Diz S. João no Apocalipse que viu no céu uns homens com títulos: Habentes scriptum in frontibus[13] - e que o ofício destes títulos era acompanharem a Cristo para qualquer parte que fosse: Et sequuntur Agnum quocumque ierit[14]. - Bem sabeis que o título e ofício de condes, em sua primeira instituição, era acompanharem os reis; por isso se chamam comites, que quer dizer companheiros. Pois, assim como na terra há títulos de condes para andarem com os reis, e os acompanharem, assim no céu há títulos também de condes que têm a preeminência de acompanharem e andarem sempre com Cristo: His quuntur Agnum quocumque ierit. - Nesta conformidade falam todos os doutores, principalmente modernos, na exposição deste lugar do Apocalipse.

Que o nosso conde tivesse este título no céu, o mesmo evangelista o diz, declarando que titulares eram aqueles: Hi sunt, qui cum mulieribus non sunt coinquinati[15]. - Estes títulos e estes condes do céu, sabeis quem são? São os castos. Foi tão casto o nosso conde em sua vida, que, casando de mais de quarenta e cinco anos de idade, e morrendo de sessenta e cinco, nem antes das bodas manchou a castidade, nem depois delas a continência. Fique à consideração de outros qual foi maior vitória, se chegar casto às bodas, se continente à sepultura. Eu só digo que entre os gloriosos troféus, com que tantos famosos varões desta ilustríssima casa a engrandeceram, este é o que mais a ilustrou, e o de que mais se deve honrar.

Cortou Judite a cabeça a Holofernes com sua própria espada, e, tirando o pavilhão da cama em que jazia, diz a Escritura Sagrada que o dedicou no templo: Conopeum in anathema oblivionis[16]. - Isto que fez Judite com Holofernes, fez Davi com o gigante, cortando-lhe com sua própria espada a cabeça; mas Davi dedicou a espada no templo. Pois, se Davi dedica a espada no Templo, por que matou o gigante com suas próprias armas, Judite por que não dedica no Templo a espada, senão o pavilhão? Porque o pavilhão era troféu da pureza e a espada era troféu do valor, e são muito mais gloriosos os troféus da pureza que os da espada. Não houve mais gloriosa vitória no mundo que a de Judite: libertar uma cidade, pôr em fugida um exército, uma só mulher, com um golpe de espada, e espada do mesmo inimigo, é o mais a que pode chegar a imaginação; e no meio de todas estas circunstâncias de valor e ventura, pendura no Templo o pavilhão de Holofernes, e não a espada, porque teve Judite por maior vitória o sair casta que o sair vencedora. Considero eu esta ilustríssima casa carregada de troféus, como o templo de Jerusalém, e como o de Babilônia; mas, se lermos os nomes dos famosos heróis que os trouxeram a ela, acharemos que todos foram grandes mas este maior que todos os outros: os outros penduraram as armas de Golfas, este o pavilhão de Holofernes.

Por esta vitória tão grande e tão rara mereceu o nosso Enoc o título de conde no céu: Hi sequuntur Agnum quocumque ierit. - E se alguém me disser que este título não se concede a qualquer castidade, senão à virginal, a qual se perde pelo matrimônio: Hi sunt, qui cum mulieribus non sunt coinquinati, virgines enim sunt - respondo que a continência conjugal, que sucede à pureza virginal, perde o nome, mas não perde os privilégios. Não tenho menos fiador que Santo Agostinho: Non est impar meritum continentiae in Joanne, qui nullas expertus est nuptias, et in Abraham, qui filios generavit[17] - e quando esta exceção de Santo Agostinho não fora verdadeira nos outros homens, fora-o no nosso caso por Enoc. O merecimento por que Elias se conserva vivo no paraíso foi pela pureza virginal, que guardou sempre inviolável: assim o dizem os santos, e mui particularmente Santo Ambrósio. Mas temos a instância na mão. Enoc não observou outra castidade, mais que a conjugal: Genuit filios et filias[18] - e está também no paraíso. Pois, se o paraíso se dá a Elias pelo merecimento da pureza virginal, como se concede o mesmo paraíso a Enoc, que o perdeu pelo matrimônio? Porque a continência conjugal de Enoc é privilegiada, como a pureza virginal de Elias. Antes das bodas, tinha o nosso Enoc o título de conde, pela natureza da virginal castidade: depois das bodas conservou-se nela pelo privilégio da continência; e como no céu teve o título, não é muito que na terra tivesse o exercício: Ambulavit Enoch cum Deo.

O que eu acho de muito nesta matéria, é que não só acompanhou o nosso Enoc a Deus na presença, senão nas ausências. Quando o Sacramento estava exposto, testemunhas são os olhos de todo Portugal da pontualidade com que o conde o acompanhava, não por uma hora, mas por muitas, e por dias inteiros sempre de joelhos, sem se assentar jamais, nem ainda no tempo do sermão. Grande exemplo de cristandade, e muito mais na devassidão de nossos tempos; mas, alfim, isto era acompanhar a Deus na presença. Porém, que chegasse o espírito do nosso Enoc a acompanhar a Deus também nas ausências, isto é o mais admirável, e o que parece impossível. Para prova desta fineza nos deixou o conde um exemplo tão raro e extraordinário, que poucos santos se acharão de quem se leia maior, nem ainda semelhante. Sucedeu em Portugal, no ano de 1614, o caso vulgarmente chamado do Porto, quando naquela cidade desapareceu de um sacrário o Santíssimo Sacramento, com circunstâncias de violências e rapto. Sentiu-se no reino a desgraça, como era razão; e o conde, que então era de vinte e sete anos - quem tal cuidara de tal idade! - desde aquele dia se condenou, não a jejuar, mas a não comer totalmente desde a sexta-feira até o domingo, passando dois dias naturais, sexta e sábado, sem mantimento algum em todas as semanas, e assim o guardou por todo o resto da vida, que foram trinta e oito anos. Só este caso, quando a vida do conde não tivera tantos, bastara para o fazer imortal nos anais da piedade cristã.

O real profeta Davi, em cujo espírito e o do nosso Enoc acho grande semelhança, também se condenava a jejum nas ausências de Deus: Fuerunt mihi lacrymae mame panes, dum dicitur mihi quotidie: Ubi est Deus tuas (SI. 41, 4)? Quando me dizem: Onde está teu Deus? As minhas lágrimas são o meu pão, e não como outro. - Grandes palavras, e mais próprias no nosso caso que no de Davi. Pergunto: Que proporção tem não aparecer Deus com jejuar Davi? Mais claro. Que proporção tem desaparecer Deus sacramentado, e condenarse o conde a tão estreito jejum? Ainda não acabo de apertar bem a dúvida: agora o farei. Este jejum de Davi não foi jejum, foi fome. O comer pouco é jejum, o não comer nada é fome: Fuerunt mihi lacrymae meae panes: As minhas lágrimas foram o meu pão. - O mais estreito jejum é o de pão e água; mas aquele jejum, em que as águas dos olhos vêm a ser pão, ainda que mais estreito e mais rigoroso jejum, não é jejum, é fome. Pois, por que se condena o nosso Davi à fome, quando lhe desaparece Deus sacramentado? Porque só desta maneira o podia acompanhar na ausência. Os ausentes só se podem acompanhar com as saudades; e onde o ausente é comida, as saudades são fome. Condenou a vida à fome, para poder acompanhar o pão da vida. Seguia a Deus sacramentado nesta ausência, como segue a fome ao pão: enquanto ausente, saudoso; enquanto manjar, faminto: Fuerunt mihi lacrymae meae panes. - Não sei se reparais em que saiu o nosso Davi com saudades sacramentadas: saudades que na substância eram lágrimas, e nos acidentes eram pão: Fuerunt mihi lacrymae mexe panes. - Sacramentou as saudades, para acompanhar as ausências do Sacramento. Deus, para ausente acompanhar aos homens, sacramentou seu corpo; o nosso Davi, para ausente acompanhar a Deus, sacramentou suas saudades: O corpo de Deus sacramentado debaixo das espécies de pão, as saudades de Davi debaixo das espécies de pão. Vedes se fariam boa companhia as saudades a Deus, pois Deus e as saudades andavam debaixo das mesmas espécies. Oh! finezas - se se pode dizer - competidoras! Pão transubstanciado em Deus, lágrimas sacramentadas em pão: mal podia Deus escapar ao correr destas lágrimas, por mais que nos fugisse. Não há dúvida que lhe fez companhia o nosso Enoc ainda nas ausências: Ambulavit Enoch cum Deo.

E por quanto tempo? Davi padecia, Davi jejuava pela ausência, mas somente enquanto lhe falavam nela: Dum dicitur mihi: Ubi est Deus tuus[19]? - Que o nosso Davi fizesse estas demonstrações enquanto se falava naquele caso, enquanto estava fresca a memória daquela desgraça, fizera o que fizeram as igrejas, o que fizeram as religiões, o que fizeram as almas mais piedosas deste reino; mas que continuasse em um rigor tão extraordinário trinta e oito anos inteiros? Grande resolução. Aperto ainda mais o caso. O Corpo de Deus sacramentado não persevera debaixo das espécies de pão, senão enquanto elas se conservam incorruptas. Daqui se segue que, ainda que o sacrílego pode fazer o roubo, não o pode conservar por muito tempo, porque, segundo as experiências da filosofia, em menos de um ano se corrompem naturalmente as espécies em quantidade tão sutil, como a de uma hóstia. Ora, vede quão pontual foi o nosso Enoc em acompanhar a Deus na ausência. A ausência de Deus durou um ano, a companhia que lhe fez o conde durou trinta e oito. O tempo pode acabar a presença sacramental, porque dependia dos acidentes de pão, que são corruptíveis; mas o sentimento do coração do conde não o pode acabar nem diminuir o tempo, porque dependia do seu amor, que era imortal. No Sacramento acabou-se a ofensa, porque se acabaram as espécies; no coração do conde não se acabou a dor, porque se não acabou a memória da ofensa. No Sacramento já o conde não tinha que acompanhar, porque já Deus não estava ali; mas o seu amor era tão fino que, depois de não ter que acompanhar, ainda fazia companhia. Só o amor da Madalena chegou aqui. Acompanhou o corpo de Cristo até a sepultura, e depois que o corpo do Senhor não estava ali, ainda o acompanhou. Fazia o conde companhia a Cristo na sua memória, porque, ainda que Cristo no Sacramento já não estava ofendido, na sua memória sempre o estava. Por isso Cristo, quando se sacramentou, pediu a memória aos homens: In mei memoriam facietis[20] - fiando mais da nossa memória que da sua presença, porque na sua presença ficava dependente dos acidentes de pão, que são corruptíveis; na nossa memória ficava dependente de acidentes da alma, que são imortais. Imortalmente acompanhou o nosso Enoc a Deus, pois os rigores de seu corpo... Como na lembrança do conde sempre estava Deus ofendido, por isso em seu corpo nunca deixou de ser aquela ofensa castigada.

Diz o Espírito Santo no Eclesiástico, que Deus conservou a Enoc para pregar penitência no mundo: Ut det gentibus poenitentiam (Ecl. 44, 16); assim entendo que quis Deus dar em nossos tempos o conde para pregador da penitência. Castiga um conde santo um pecado alheio em si com trinta e oito anos de penitência, jejuando dois dias em cada semana sem comer; que deve fazer cada um pelos pecados próprios! Aquele roubo do Santíssimo Sacramento, ou se pode considerar como pecado, ou como desgraça: se como pecado, era do sacrílego que o cometeu; se como desgraça, era comum de todo o reino: e que pague um homem o pecado alheio, como se fora delito próprio; que faça penitência pela desgraça comum, como se fora culpa particular! Grande pensão. Dizia el-rei Davi a Deus: Ab alienis parce servo tuo (SI, 18, 13): Senhor, perdoai-me os pecados alheios. - Pedir perdão pelos pecados alheios, escrúpulo é mui bem fundado em um rei; mas fazer penitência pelos pecados alheios, aqui não chegou Davi. E que razão pode haver para que uma alma faça penitência pelos pecados alheios? A mais fina razão de todas. Porque o pecado alheio, ainda que não é culpa minha, é ofensa de Deus; e para me doer muito o pecado, não é necessário que seja eu o culpado, basta que seja Deus ofendido. Este era o motivo da penitência do conde: puramente por ser ofendido Deus. Os outros homens, na penitência que fazem, sempre levam o interesse do perdão; o conde tinha sentimentos de penitente sem os interesses de perdoado. Se tivéramos verdadeiro amor a Deus, qualquer pecado comum havia de ser para nós pecado original. O pecado original foi pecado de um, e pagam-no todos. Assim o fez o conde neste caso. Pagou o furto da árvore da vida, como pagamos o furto da árvore da ciência. Adão furtou da árvore da ciência, e paga-o todo o gênero humano; o sacrílego furtou da árvore da vida, e pagou-o o conde, como se fosse para ele pecado original: Quae non rapui, tunc exsolvebam[21]. - Quando Adão roubou a árvore da ciência, quis Deus que se lhe satisfizesse aquele pecado, e para isso escolheu seu Filho; da mesma maneira, quando aquele sacrílego roubou a árvore da vida, quis Deus que se lhe satisfizesse o pecado, e para isso escolheu o conde. Parece que não achou em Portugal quem fosse mais filho seu. Apartemo-nos já daqui, que não sei sair deste passo.

Et genuit filios et filias, ambulavitque cum Deo (Gên. 5, 22. 24): Teve Enoc filhos e filhas, e andou com Deus. - Reparou advertidamente o cardeal Caetano, e já antigamente tinha feito o mesmo reparo S. João Crisóstomo, que repete o texto duas vezes que andara Enoc com Deus: Ambulavit Enoch cum Deo, et genuit filios et filias, ambulavitque cum Deo. - Pois não bastava dizer uma só vez que andara Enoc com Deus? Não, porque fala o texto de Enoc em diferentes estados: um antes de ter filhos e filhas; outro depois de os ter: e como os homens ordinariamente, com a mudança de estado, ajudam também os costumes, repete a Escritura em grande louvor de Enoc, que antes e depois andou com Deus, para que entendêssemos que era tão igual e constante a virtude daquele grande varão, que em todo o tempo e em todo o estado foi sempre o mesmo: antes com Deus, e depois também com Deus. Das virtudes do conde de Unhão podemos dizer o que disse S. Jerônimo das de Nepociano no seu epitáfio: Ita in singulis virtutibus eminebat, quasi caeteras non haberet. - Cada uma era tão grande, como se não tivesse outra: todas eram maiores; mas na minha opinião ainda era maior que as maiores uma que se compunha de todas elas. E qual era esta? Aquele teor de vida, aquela uniformidade de costumes, aquela consonância e igualdade de ações em todo o tempo, em todo o estado, e por tantos anos sempre a mesma. Esta era a maior excelência do nosso segundo Enoc, ou do nosso Enoc sem segundo.

Dizia Sêneca - que o soube muito bem dizer, mas não o soube obrar, porque é mais dificultoso - dizia que as ações do homem haviam de ter tal consonância, que toda a sua vida fosse de uma cor: Ut ipsa vita unius sine actionum dissentione coloris sit. - Os homens, como somos camaleões da vaidade, mudamos a cor a cada mudança de vento: quantos são os ventos de que nos sustentamos, tantas são as cores de que nos vestimos. - Magnam rem puta unum hominem agere: A maior coisa que pode fazer o homem é ser um. - Cada homem ordinariamente é tantos homens quantas são as diferenças da idade, ou as mudanças da fortuna, a que o leva o tempo: Effice, ut possis laudari, sin mi nus agnosci: Portai-vos de tal maneira, sendo sempre o mesmo, que vos possam todos louvar, ao menos que vos possam conhecer. - Discretamente dito e verdadeiramente, porque somos os homens tão pouco parecidos na vida, não já uns com os outros, senão cada um consigo mesmo, que se nos houveram de conhecer pelas ações, como pelas feições, de um dia para o outro não houvera quem nos conhecera: De aliquo, quem vidisti hei-i, merito dici potest: Hic quis est? De um homem, que vistes ontem, podeis hoje perguntar com muita razão: Hic quis est? Este quem é? - Porque já hoje não é o que ontem era. Ainda as vidas dos que tratavam de sua salvação, bem se sabe os altibaixos que padeceram, e as tempestades em que se viram: Ascendunt usque ad caelos, et descendunt usque ad abyssos (SI. 1O6, 26): Umas vezes tão altos, que parece estavam no céu; outras tão baixos, que lhes faltava pouco para caírem no inferno. - Não assim o nosso Enoc. Santo na mocidade, santo na idade maior, e na velhice santo. Homens há, e grandes homens, que se lhes cotejarmos a mocidade com a velhice, parecem duas a metades de vidas diferentes. Saul na mocidade inocente, e na velhice vicioso. Manassés na mocidade pecador, e na velhice justo. Se da mocidade de Manassés, e da velhice de Saul, se fizera um homem péssimo, da mocidade de Saul, e da velhice de Manassés, fizera-se um homem santo; mas estas a metades ajuntam-se dificultosamente em um Enoc.

Daqui infiro eu uma não vulgar conseqüência em honra da boa memória do nosso conde, e é que não se salvou uma só vez, como os outros homens, mas muitas. Para inteligência deste pensamento, suponho com Plínio, e outros filósofos, que os homens, principalmente de idades largas, morrem muitas vezes, porque uma idade é morte da outra. A adolescência é morte da puerícia porque acabamos de ser meninos; a juventude é morte da adolescência porque acabamos de ser moços; a idade varonil é morte da juventude porque acabamos de ser mancebos: e assim vamos morrendo a todas as idades. E quem há neste mundo que em todas estas mortes se salvasse? Esta é uma grande excelência do nosso conde, que se salvou em todas: não só salvou a alma na morte, salvou todas as idades na vida. Salvou a puerícia, porque em menino foi um anjo; salvou a adolescência porque em moço não teve mocidade; salvou a juventude porque mancebo era velho na madureza; salvou a idade varonil porque, varão, foi varão perfeito; salvou, finalmente, a velhice, porque nela pôs a coroa a todas as idades. Nós contentamo-nos com uma salvação; o conde foi tão ambicioso de se salvar, que se não satisfez senão com muitas salvações, e alcançou de Deus tanta graça, que lhe concedeu todas: Protector salvationum Christi sui est[22]. - Notai que não diz salvação, senão salvações: salvationum - porque aqueles de quem Deus tem especial proteção: Protector - aqueles a quem Deus fortalece com abundantes unções de sua graça: Christi sui - não lhes concede uma só salvação, senão muitas salvações: Protector salvationum Christi sui est. - Vede o estilo que Deus guarda na salvação ordinária dos homens: Deus noster, Deus salvos, fàciendi; et Domini, Domini exitus mortis[23]. - O ofício de Deus é salvar: Deus noster, Deus salvos faciendi - e no tempo em que Deus salva é lá na hora da morte: Et Domini Domini exitus mortes. - Isto é, quando Deus salva ordinariamente; mas, quando salva com privilégios particulares aos que muito ama, não lhes dá uma só salvação, senão muitas salvações; não os salva só na morte, salva-os em toda a vida. Oh! ditosos os que assim se salvam! Quem se contenta a se salvar uma só vez, muito se arrisca a não se salvar nenhuma: querer-se salvar na morte, é temer o inferno; salvar-se em toda a vida, isso é amar a Deus. Quem se salva só na morte, quando muito, foge para Deus; quem se salva em toda a vida, esse é só o que anda com Deus: Ambulavitque cum Deo.

Et non apparuit (Gên. 5, 24). - Nestas palavras temos a ação do maior valor que o conde fez em sua vida: Non apparuit: Não apareceu. - Ninguém pudera aparecer mais nem melhor no reino onde nasceu, que o conde de Unhão, por qualidade, por riqueza, por grandeza, por parentes, por valias, por tudo. E que tivesse ânimo para viver retirado, que tivesse valor para não querer aparecer! É esta ação tão sobre os homens, que só Deus a pode ponderar como ela merece: Ubi eras, cum me laudarent astra matutina (Jó 38, 4. 7)? Onde estavas, quando me louvaram as estrelas da manhã? - dizia Deus a Jó. - É certo que todas as estrelas louvam a Deus: Laudate eum, omnes stellae et lumen[24] - e se algumas entre as demais se avantajam nos louvores, parece que são as estrelas da noite, e não as da manhã. Quando a noite é mais escura, então se fazem as estrelas línguas trêmulas, que desde o céu e do mar, onde se retratam, estão louvando a Deus a coros. Pois, por que celebra Deus tanto, não os louvores que lhe dão as estrelas da noite, senão as estrelas da manhã? Por quê? Por isso mesmo. Porque as estrelas da noite louvam a Deus luzindo, as estrelas da manhã louvam a Deus desaparecendo; e louvores de estrelas que desaparecem, e se escondem, estas são as que louvam a Deus, e as que Deus louva. Oh! estrela eclipsada que, tendo tantos raios para luzir, tiveste valor para desaparecer! Bem se acredita quão vizinha estavas do sol, e quão ausentes andam dele essas estrelas errantes, que tão pouco te imitam. Bem sei que há de ter o nosso Enoc mais invejosos depois da morte que imitadores na vida; mas por isso Enoc se salva, e tantos se perdem.

Questão curiosa é, e não tratada, onde se salvou Enoc no tempo do dilúvio? O paraíso terreal estava no mundo, o dilúvio o alagou todo: pois donde ou como se salvou Enoc? Donde ou como se salvou, não se sabe: só se sabe que desapareceu, e que se salvou. Sabeis por que se perdem tantos no dilúvio deste mundo? In dilúvio aquarum multarum, ad eum non approximabunt[25]. - Porque ninguém se quer salvar desaparecendo, todos se querem salvar saindo. Que fizeram os homens quando se alagou o mundo com o dilúvio? Nos primeiros dias passaram-se dos quartos baixos para os altos: iam crescendo mais as águas, subiam-se dos altos aos telhados; alagavam-se também os telhados, subiam-se às torres; alagavam-se as torres, passavam-se os que podiam às montanhas; soçobravam, finalmente, as montanhas, subiam-se às árvores; e aqui não havia já para onde subir, e aqui se afogavam. Estar o céu chovendo dilúvios, e todos a afogar-se, sabeis por quê? Porque todos se querem salvar a subir, ninguém se quer salvar a desaparecer. Por isso o conde se salvou, como Enoc, porque desapareceu: Et non apparuit. - Que pouco afogado se havia de achar na hora da morte, que pouco embaraçada sua consciência: não lhe haviam de causar escrúpulo nem os criados, a quem pagou com o serviço de el-rei; nem os parentes, que despachou, só por serem parentes; nem os amigos, que granjeou, e a que aproveitou, só por serem amigos; nada disto. Tratou só de ser presidente de suas potências, governador de sua alma, vice-rei de suas paixões, que sempre teve sujeitas. O seu cuidado era segurar bem o ver a Deus, e não tratar de ser bem visto dos reis. Mas nem isto lhe faltou: antes, alcançou com o seu retiro o que todos com as suas negociações. Quando deram a Sua Majestade a notícia da morte do conde, não só disse grandes coisas do muito que o estimava por seu sangue e virtudes, mas viram-se-lhe a Sua Majestade correr as lágrimas. Outros chegaram a ser bem vistos dos reis; mais é chegar a ser bem chorado. Os olhos têm dois ofícios, ver e chorar; mas nos reis têm pouco exercício estes dois ofícios dos olhos: o ver a poucos, o chorar por ninguém. O nosso conde não procurou na vida a lisonja de ser bem visto, e alcançou na morte a fineza de ser bem chorado do rei. De ninguém julgaram os homens publicamente que era amado de Cristo, senão de Lázaro: Ecce quomodo amabat eum[26]. - Pedro foi bem visto: Respexit Petrum[27] - mas Lázaro foi bem chorado: Lacrymatus est Jesus[28] - que é maior testemunho de amor. Muito foi ser bem visto Pedro, depois de caído da graça; mas nos olhos do príncipe vai muito do ver ao chorar: o ver em Cristo foi piedade, o chorar não pôde ser senão amor: Ecce quomodo amabat eum. - Assim merece quem assim desaparece: Et non apparuit.

Quia tulit eum Deus (Gên. 5, 24): Porque o levou Deus. - Uma coisa singular teve Enoc, que não acontece aos outros homens e foi que o levou Deus antes da morte. Aos outros homens leva-os Deus quando morrem, a Enoc levou-o Deus antes de morrer. As mais das coisas que até agora tenho dito do nosso conde são dignas de admiração; a que agora direi é digníssima de imitação, e quisera que todos a imitáramos: e qual foi? Ser tão discreto, que soube acabar a vida antes de morrer. Enoc ainda não morreu, e já acabou a vida.

Assim foi o conde. Soube acabar a vida antes de morrer. Oito anos antes de morrer fez seu testamento, compôs todas suas coisas, confessou-se geralmente uma e muitas vezes, como se o tiveram avisado! Oh! que grande discrição esta! Para isto não é necessário ser cristão: basta ser discreto. Sêneca não era cristão, e só porque era discreto o conheceu assim. Escrevia ele a seu amigo Lucilo, e

dizia-lhe: Considera quam pulchra res sit consummare vitam ante mortem, et postea expectare securum[29]: Considera, amigo, que resolução tão prudente, e que coisa tão formosa é acabar a vida antes da morte, e depois esperar por ela seguro. - Sêneca o disse, e o nosso conde o obrou; e por isso foi mais discreto que Sêneca. Não se referem nas conversações os versos do conde, nem nas academias se alegam os seus discursos políticos; mas eu o tenho por um dos discretos juízos que deu Portugal na nossa idade. Os outros têm o entendimento na língua, o conde teve o entendimento nas mãos: In intellectibus manuum suarum deduxit eos (SI. 77, 72): Levou-os pelo entendimento de suas mãos. - Não se prezou o conde de ser discreto de língua, mas tratou de ser entendido de mãos; e por isso foi mais discreto e mais entendido que todos.

Ora, cristãos, seja o fruto deste sermão passarmos o entendimento às mãos, virmos às mãos com o nosso entendimento. Considera quam pulchra res sit consummare vitam ante mortem: Acabar antes de morrer. - O morrer é apartar-se a alma do corpo: o acabar a vida é o preparar a alma enquanto está no corpo. Se agora nos tomara o pulso, etc., que havíamos de fazer? Não há dúvida que nos havíamos de confessar muito exatamente só por nossas... pois, por que não faremos por prudência o que havíamos de fazer por força? Por que há de poder mais conosco a enfermidade que a razão? De maneira que, por que Deus nos faz mercê da vida, deixamos o que havíamos de fazer, se ele no-la tirara? É possível não há de poder nada conosco a fé de duas eternidades; uma de bens, outra de males? É possível que tanto nos hão de arrastar os corações as esperanças dos enganos deste mundo, que só se sentem quando têm passado? Olhai para ali: vedes honras, grandezas, vaidades; tudo ali pára: Tulit eum Deus[30] - e ele, que levou consigo? Nada; tudo cá ficou. Pois, se tudo há de ficar, e tudo acaba, por que não acabaremos com o mundo, antes que ele acabe conosco? Por que não iremos a Deus, antes que ele nos leve?

Ora, cristãos, seja assim: procuremos viver de maneira que todos os anos de que morrermos sejam de vida: Vixit Enoch sexaginta quinque annis. - Procuremos andar com Deus, de maneira que não percamos o passo no caminho de sua lei: Ambulavit cum Deo. - Procuremos desaparecer dos olhos do mundo, e de tudo o que a ele nos pode prender e arrastar: Et non apparuit.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Enoc, tendo vivido sessenta e cinco anos, gerou a Matusalém. E Enoc andou com Deus, e gerou filhos e filhas. E ele andou com Deus, e não apareceu mais, porque o Senhor o levou (Gên. 5, 21 s. 24).

[2] S. Hieron. ad. Pamach, super oh. Paulinae uxoris.

[3] O Egito chorou a Jacó setenta dias (Gên. 5O, 3).

[4] Por que buscais entre os mortos ao que vive (Le. 24, 5)?

[5] Vivamos sóbria, e justa, e piamente (Tit. 2, 12).

[6] Mil anos, aos teus olhos, são corno um dia (SI. 89, 4).

[7] E gerou a Matusalém (Gên. 5,22).

[8] E Jessé gerou ao rei Davi. E o rei Davi gerou a Salomão (Mt. 1, 5 s).

[9] Por amor de Davi, meu servo (4 Rs. 2O, 6).

[10] De noite numa coluna de fogo (Ex. 18.21).

[11] Alimentou-os com o maná verba ex sensu Scripturae, sed non formalia.

[12] Em terra deserta, e sem caminho, e sem água, nela me apresentei a ti como no santuário (SI. 62, 3).

[13] Que tinham escrito sobre as suas testas (Apc. 14, I).

[14] E seguem o Cordeiro para onde quer que ele vá (ibid. 4).

[15] Estes são aqueles que se não contaminaram com mulheres (ibid.).

[16] Ofereceu o cortinado em anátema de esquecimento (Jdt. 16,23).

[17] Não é menor o mérito da continência em João, que nunca contraiu núpcias, do que em Abraão, que gerou filhos (S. Agost.).

[18] Gerou filhos e filhas (Gên. 5.22).

[19] Enquanto se me diz: Onde está o teu Deus (SI. 41, 4)?

[20] Fazei isto em memória de mim.

[21] Paguei então o que não tinha roubado (SI. 68, 5).

[22] É o protetor das salvações do seu ungido (SI. 27, 8).

[23] O nosso Deus é o Deus que tem a virtude de nos fazer salvos; e do Senhor, que é o Senhor, é a saída da morte (SI. 67, 21).

[24] Louvai-o todas as estrelas, e o lume (SI. 148, 3).

[25] Na inundação das muitas águas, a ele não se chegarão (SI. 31, 6).

[26] Vejam como ele o amava (Jo. 11, 36).

[27] Pôs os olhos em Pedro (Le. 22, 61).

[28] Então chorou Jesus (Jo. 11. 35).

[29] Senec. epist. 32.

[30] Deus o levou.