Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Voz apologética, do Padre António Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.

VOZ APOLOGÉTICA

VIA-SACRA POR OUTRA VIA, Mais breve, mais fácil, atais segura, mais útil.

PROÊMIO

Com termos de perguntar e pedir — que são os que mais obrigam — me manda V. S. dizer meu sentimento acerca da nova devoção da Via-Sacra, tão bem recebida na nossa corte, e tão estendida e multiplicada, que já não cabe nela. A questão não só é curiosa, mas útil, e, como logo se verá, dificultosa, na qual eu antes quisera ouvir que responder. Mas como V. S. me protesta, por parte do aproveitamento de muitas almas, desejosas de seguir o melhor, sem imperfeição nem escrúpulo, não posso eu deixar de satisfazer a tão pio e santo desejo, dizendo sobre a proposta — salvo meliori judicio — tudo o que sentir, com clareza e sinceridade, que professo e devo.

Esta matéria, senhor, posto que tão vulgarizada, envolve muitos pontos não vulgares, uns pertencentes à substância, outros ao uso, no qual uso a mesma subs­tância se pode corromper, se não for tão regulada como convém. A uns e outros responderei neste papel — que não poderá ser tão breve como eu quisera. — E para o fazer com a ordem e distinção necessária, o dividirei em cinco partes.

Na primeira, examinarei a origem desta devoção, e os fundamentos dela Na segunda, mostrarei suas excelências, que são muitas e grandes. Na terceira, apontarei os perigos e inconvenientes que podem ocorrer no seu exercício. Na quarta proporei os remédios ou cautelas com que se podem evitar ou diminuir. E, fmalmente, na quinta e última, reduzirei tudo a um meio ou via, também sagrada, com que os mesmos e mai­ores frutos da cruz mais fácil e mais seguramente se possam conseguir e lograr.

A suposição,. sobre que falarei, não é nem pode ser outra que o mesmo livrinho intitulado Via-Sacra, que V. S. me remeteu, impresso aqui na nossa língua, e traduzido, como nele se diz, da castelhana. Não traz nome de autor, e por isso me fica maior confiança para dizer com liberdade meus sentimentos, pois não posso adular nem ofender a quem não conheço. Se em alguma coisa me apartar do seu parecer, perdão é, que nós damos, e pedimos, os que escreve­mos: Veniam petimusque damusque vicici'[1]e cada um deve supor do outro, que ama mais a verdade que o seu juízo.

Porque sei quão pouco posso fiar do meu, tudo o que disser neste discurso procurarei vá confirmado com Escrituras Sagradas, com concílios, com santos pa­dres, com a doutrina dos teólogos mais clássicos, e com as antigas e modernas me­mórias da História Eclesiástica mais autêntica. Pelo que, arrimado a colunas tão sólidas e fortes, ninguém me estranhará que faça pouco ou nenhum caso de outras considerações aparentemente pias, e verdadeiramente fabulosas, que em voz ou em estampa se costumam semear indiscretamente nas orelhas rudes do vulgo, sempre desejoso de novidades, de cada uma das quais podemos dizer o que São Jerônimo: Favorabilis interpretatio mulcens antes populi, non tamen vera[2].

Duvidei se me contentaria com citar à margem as autoridades que prometo, como em terras pouco cultivadas da língua Latina usam muitos escritores de nossos tempos; mas, como a matéria em algumas partes é controversa, e requer maior e mais presente evidência dos testemunhos que se alegam, julguei que não devia privar deles o corpo do discurso, pois são os ossos e nervos que lhe dão vigor; e de tanto melhor vontade me persuado a este modo de contextura, quanto creio serão mais gratas à erudição e gosto de V. S. as mesmas sentenças, ou dos autores latinos, na sua fonte original, ou dos gregos e hebraicos na primeira e menos remota interpretação, do que em qualquer outra da nossa língua, por mais fiel que seja, em que, quando se guarde a pureza da verdade, sempre se perde a graça da energia.

E quando este papel passasse das mãos de V. S. a sujeitos sem conheci­mento da língua latina — ou daquele conhecimento que só basta a entender o sonido, e não o sentido — nem por isso lhe será de embaraço esta mesma lição. A este fim procurei que uma e outra língua vão escritas em diferente e muito distinto caráter, e que fosse o discurso tecido e seguido em tal forma, que assim como os que navegam o oceano vêem no meio dele muitas ilhas, e, sem as tocar, seguem direitamente sua derrota, assim os que lerem esta escritura, sem mais diligência, que deixar o que virem escrito de outra letra, e sem mudar nem perder o fio da narração, entenderão em português muito claro tudo que nela se diz em latim, algumas vezes escuro.

Deus, nosso Senhor, por cujo maior serviço e glória tomo este trabalho, pelos merecimentos de sua sacratíssima cruz, e de sua Santíssima Mãe, que tão constantemente o assistiu ao pé dela, se digne de me mover nesta ocasião a pena, com todo aquele espírito e graça, quanta é necessária nas obras boas, para persuadir as melhores.

PARTE I

CAPÍTULO I

Examina-se a origem da devoção da Via-Sacra, e fundamentos dela.

O livrinho já alegado — que é o nosso texto — diz na página sétima, que a devoção da Via-Sacra consiste em visitar doze cruzes, postas em diferentes lugares, e caminhar por elas os mesmos passos que Cristo, Senhor nosso, an­dou de casa de Pilatos até o Monte Calvário; e na mesma página sétima e oitava ajunta as seguintes palavras: A esta devoção deu princípio a puríssima Virgem Mãe de Deus, em Jerusalém depois de ter deixado o seu amantíssimo Filho sepultado em o Santo Sepulcro; nela se exercitou todo o restante de sua vida, que foram quinze anos, conforme a opinião de alguns santos.

Ninguém pode haver tão rude ou tão injusto intérprete desta proposição que, por ter dito que a devoção da Via-Sacra consiste em visitar doze cruzes, e andar os mesmos passos que Cristo; nosso Senhor, andou desde o pretório de Pilatos até o Monte Calvário, e sobre isso dizer que a Virgem Mãe de Deus deu princípio a esta devoção no mesmo dia da sepultura de seu benditíssimo Filho, e a exercitou por toda a sua vida: ninguém — digo — haverá que interprete tão rude e materialmente esta proposição, que imagine diz ou quer dizer seu autor que a Senhora levantasse na cidade de Jerusalém outras doze cruzes, para fazer nelas, ou por elas, as mesmas estações. O que se quer dizer — e o menos que se pode dizer — é que a Virgem em todo o tempo de sua vida visitava aqueles santos lugares de Jerusalém com suma reverência e piedade, pelo mesmo modo com que diz o tinha feito depois de o deixar sepultar. E isto é o que eu somente suponho.

A verdade, pois, desta história, assim quanto ao princípio dela no dia da sepultura do Senhor, como quanto à continuação do mesmo exercício por toda a vida de sua Santíssima Mãe, é o que agora havemos de examinar; e para o fazer com a exação que a matéria e sua antiguidade requer, no discurso de tantos anos, quantos a Senhora sobreviveu à morte de seu benditíssimo Filho, ainda que não fossem mais que quinze, segundo a opinião que segue o autor, será necessário distinguir miudamente este mesmo tempo, porque só tomado por partes se poderá averiguar, com clareza e sem confusão, o muito ou pouco fundamento com que tudo o referido se afirma.

Compreendendo assim todo o sobredito tempo dentro dos limites que se supõem, desde o seu princípio até o fim, a mais cômoda divisão que se pode e deve fazer, segundo o que lemos no Evangelho, e fora dele, é distinguindo as cinco diferenças ou partes seguintes. A primeira, desde o ponto em que Cristo, Senhor nosso, foi enterrado na sepultura até a manhã de sua Ressurreição. A segunda, desde o dia da Ressurreição até o oitavo, em que o Senhor apareceu a Santo Tomé, com os outros apóstolos, e lhe mostrou as chagas. A terceira, desde este dia, por todo o resto dos quarenta, até a Ascensão. A quarta, desde o dia da Ascensão até o dia da vinda do Espírito Santo. A última, desde a vinda do Espíri­to Santo até o dia do Trânsito e Assunção da Senhora. Se neste tempo se contaram quinze ou mais anos, posto que esta segunda opinião seja mais comum e recebi­da, é questão, que não faz ao caso. O que sinto e digo sobre a presente é que assim o haver dado a Virgem princípio à devoção da Via-Sacra, como o haver continu­ado o mesmo exercício por todo o restante de sua vida, uma e outra coisa se afirma sem fundamento nem certo, nem provável, nem ainda verossímil, como agora provarei por tempos, e partes da divisão proposta.


CAPÍTULO II

Mostra-se que a Senhora não deu princípio à devoção da Via-Sacra de­pois da sepultura de seu Filho, nem até à munhã da Ressurreição.

Posto que esta conclusão seja negativa, e de sua natureza, como as mais deste gênero, dificultosa de provar, nós a provaremos facilmente coarctando o tempo, e não com uma testemunha, senão muitas, e todas maiores de toda a exceção. A pri­meira seja o evangelista São João, o qual, ao pé da cruz, constituído herdeiro de seu divino Mestre, e filho segundo de sua Santíssima Mãe, com o morgado de a amparar e servir, diz expressamente que desde aquela hora a recolheu e levou para sua casa: Et ex illa hora accepit eam discipulus in sua (Jo. 19,27). — A palavra sua, sem outro substantivo ou adito, quer dizer sua casa, por onde muitos comentadores trasladam: in suam domum. Com a mesma frase disse o mesmo São João que na Encarnação do Verbo viera Deus à sua casa, e que os seus o não receberam: In propria venit, et sui eum non receperunt (Jo. 1,11). — Porque, ainda que Deus é Senhor de todo o mundo, o povo de Israel era a sua casa particular, que ele tinia fundado desde Abraão; e do mesmo termo usa a Igreja no itinerário, onde os que peregrinam pedem a Deus os tome a trazer à sua casa em paz: Ut cum pace, saltite et gaudio revertamur ad proprid[3]. — Nem faz contra esta inteligência, que é a mais literal, o reparo com que argúi Beda que São João não tinha casa, pois era um dos que disseram: Ecce nos reliquimus omnia[4]porque a casa que São João chama sua era a de Maria Salomé, viúva do Zebedeu, sua mãe, com a qual o filho vivia. E, posto que não fosse a casa sua quanto ao domínio, era sua quanto à habitação, e para esta casa recolheu e acompanhou São João a Senhora, como ele diz, desde aquela hora, porque as horas dos hebreus constavam de três horas das nossas, e Cristo expirou pouco depois à hora da nona, e foi sepultado à da véspera.

Dirá alguém porventura que, ainda que São João desde aquela hora, acabados os ofícios do enterro, levasse e acompanhasse a Senhora até sua casa, ou neste mesmo caminho, ou depois, podia a piedosíssima Virgem ir dar princípio à sua nova devoção da Via-Sacra, e fazer as estações dela desde o pretório ao Calvário. Mas este subterfúgio imaginário, além das incoerências e indecências que contém, como abaixo veremos, se desfaz com outras autoridades muito mais expressas e claras, que agora referiremos, e todas, ou por boca, ou da boca da mesma Senhora.

No capítulo décimo do primeiro livro das revelações de Santa Brígida, apare­ceu a esta santa a Virgem Maria, e. depois de lhe referir com particularidade tudo o que seu Filho e a mesma Senhora tinham padecido na sua Paixão, chegando final­mente ao descendimento da cruz e sepultura, conta desta maneira o que ali passou: Ego cum linteo meo extersi vulnera et membra ejus; et clausi oculos et os ejus, quae in morte fuerunt aperta: debute pasuerunt eum in sepulchro. O quam libenter posita fuissem viva cum Filio meo, si fuisset voluntas ejus! His completis, venit ille bonus Joannes, et duxit me in domum[5] : Eu —diz a Senhora —com a minha toalha enxuguei as chagas de todo o corpo de meu Filho, e lhe cerrei os olhos e a boca, que na morte ficaram abertos, e depois o puseram na sepultura. Oh! quão de boa vontade eu me sepultaria viva com o meu Filho, se fosse essa a sua vontade! Acabadas estas coisas, chegou-se junto a mim o bom João, e levou-me para casa. — Veja-se agora se a Senhora fora dali ao pretório de Pilatos, e do pretório, por tantas ruas de dentro e fora de Jerusalém, ao Monte Calvário, onde ainda estava levantada a cruz, e a terra banhada no sangue fresco de seu Filho, se o diria também. Pelo mesmo modo fala a Senhora na tragédia da Paixão, que escreveu há mil e trezentos anos o grande doutor da Igreja, São Gregório Nazianzeno, chamado por antonomásia o Teólogo. Despe­de-se ali a Virgem de seu Filho, deixando-o no sepulcro, e diz assim:

En, te relicto, nate solo, excedimus

Eam ipsam in aedem destinatam feminis,

Et filii aedem, cui in provinciam

Me tradidisti, nate, cum nos aequius

Esset sepulchro in valle juxta assistere[6]:

Apartamo-nos, Filho, de vós, deixando-vos só, e nos retiramos à casa destinada para as mulheres, que é a mesma casa daquele filho, a cujo cuidado e governo vós, meu Filho, me entregastes, quando fora mais justo que eu me não apartasse deste vale, e assistisse de mais perto à vossa sepultura. — Assim diz a Senhora naquela famosa tragédia grega, intitulada Christus Patiens. — E noutro diálogo, também da Paixão, escrito por Santo Anselmo, em que as pessoas que falam são a Virgem Maria e o mesmo santo, diz a Virgem estas palavras: Et cum Joannes me ad civitatem (lucere vellet, et a sepulchro amovere, lacrvmans rogavi: Chare Joannes, non facias mihi injuriam, ut rire separem a dulcissimo Filio meo Jesu, quoniam hic expectara vellem donec moriar: et iterum omnes fleverunt; Joannes vero me tandem in civitatem introduxit: E, querendo-me João levar para a cidade, e apartar-me do sepulcro, eu com lágrimas e rogos lhe disse: Amado João, não me faças tal violência, que me obrigues a apartar-me do meu docíssimo filho Jesus, porque quisera ficar aqui com ele até morrer. Choraram todos outra vez, porém João, finalmente, me introduziu na cidade: — Note-se a palavra introduxit, a qual exclui a jornada do Calvário, que não esta­ya dentro da cidade, senão fora, e longe.

Destes dois testemunhos tão expressos, de São Gregório Nazianzeno e Santo Anselmo, um grego, outro latino, um antiquíssimo, outro menos antigo, e tão uniformes em tudo, se colige, com moral evidência, ser isto mesmo que dizemos o comum sentir e como tradição da Igreja em todos os tempos; nem dois padres da mesma Igreja, de tão eminente doutrina e santidade, atribuiriam tais palavras à Mãe de Deus, referindo-as por sua boca e em seu nome, se as não reputaram por muito certas, qualificadas e verdadeiras, e dignas de tão soberano e infalível oráculo.

E por que não pareça que desprezamos as autoridades e conjecturas modernas, entre as muitas que pudera alegar, quero só pôr aqui a do padre Cornélio a Lápide, um dos mais literais e sólidos comentadores da Escritura do nosso século, por ser fundada no Evangelho. e na mesma história do sepulcro de Cristo. Diz o evangelista São Mateus que entre as mulheres devotas, que segui­ram e acompanharam o Senhor, assistiram no Calvário Maria Madalena, Maria Jacobi e Maria Salomé, mãe dos filhos do Zebedeu; e depois que José deposi­tou o sagrado corpo no sepulcro, e o cerrou com aquela grande pedra, e se apartou dali, acrescenta logo o evangelista que Maria Madalena, e a outra Maria, estavam assentadas defronte do mesmo sepulcro: Erant autem ibi Maria Magdalene, et altera Maria, sedentes contra sepulchrum (Mt. 27, 56. 61). — Onde se deve reparar, e com muito fundamento, por que razão, sendo as Marias três, Madalena, Jacobi e Salomé, só as primeiras duas ficaram ali assentadas, e a terceira não. Ao que se responde que a terceira Maria era Maria Salomé, mãe de São João, a qual não ficou com as outras, porque acompanhou e levou a Senhora para sua casa. E esta é a segunda conjectura, em que mais se firma o dito autor: Videtur ergo quod mater filiorum Zebedaei, scilicet, Salome, videns Jesum a viris sepeliri, quasi non habens quod ultra Jesu impenderes, moesta domum redierit, aut beatam Virginem domum reduxerit. — E, verdadeiramente, que se não pode assinar outra razão de diferença mais provável e mais natural do caso, pois esta Maria, nem era menos devota nem menos obrigada ao sepultado que as outras duas, e só o fazer companhia a sua Santíssima Mãe, e a levar para sua casa, a podia apartar louvavelmente das outras, e da contemplação do sepulcro.


CAPÍTULO III

A estes testemunhos de autoridade se acrescentam outros motivos de necessidade e decência.

O primeiro motivo de necessidade foi achar-se a Senhora naquela hora mui diminuída e enfraquecida de forças, e não capaz, ainda que quisesse, de tornar ao lugar do sepulcro, ao pretório de Pilatos, e dali ao Monte Calvário, e deste outra vez à casa de São João; nem o mesmo São João, a quem devia novos respeitos, nem sua mãe e os demais lho consentiriam. Tinha a Virgem Santíssima passado toda a noite antecedente, não só em vigia, mas com aflição e angústia das novas da prisão de seu Filho, levado com tanto tropel de justiças aos tribunais de ambos os pontífices, com a viva consideração das afrontas e injúrias que neles e pelas ruas padeceria, vendido de um discípulo, e desampa­rado de todos; tinha assistido todo aquele dia, com coração de Mãe, e tal Mãe, às duas lastimosíssimas tragédias dos açoites e coroação de espinhos, à pronunciação da cruel sentença, e ao horrendo espetáculo da execução dela: vendo sair a seu Filho entre dois ladrões com o afrontoso madeiro às costas, e caído com o peso diante de seus olhos; tinha perseverado em pé ao pé da cruz, com a alma crucificada nela; encravada com os mesmos cravos, atormentada com os mesmos tormentos, afrontada com as mesmas afrontas, e morta com a mesma morte, e só viva para a poder sentir e chorar dignamente, quanto só ela conhecia. Enfim, havia vinte e quatro horas nesta hora que aquela virginal humanidade, a mais delicada que Deus criou neste mundo, exceta só a que ela criou a seus peitos, sem alimento, sem alívio, e sem momento de descanso, estava atravessada com a espada que lhe profetizou Simeão, a qual não era outra, senão a que em três horas acabava de tirar a vida ao mais forte de todos os filhos dos homens. E quem haverá que se persuada ou creia que um corpo tão fatigado, e mais quando deixava a alma no sepulcro, tivesse forças nem passos para andar tão compridas estações, nem ainda coração para as resistir? Tudo o que tão longe podia ir buscar a desconsolada Mãe, eram as relíquias do sangue preciosíssimo do Filho de Deus e seu: mas essas levava a Senhora consigo, igualmente unidas à diyindade, no sangue que tinha recolhido, como fica dito, quando lhe enxugou as feridas. Com este se podia consolar ou magoar, pois não era suposto, como o da túnica de José, mas o próprio das veias de seu Filho, tomado em suas entranhas em outro tal dia como aquele. E com esta consideração, é mais de crer passaria então a Senhora de Jerusalém a Nazaré, que, com o corpo tão debilitado, outra vez ao pretório e outra vez ao Calvário.

Santa Brígida, por revelação da mesma Virgem, São Boaventura, São Bernardo, São Lourenço Justiniano, e outros graves autores, referem vários passos, em que a Senhora, posto que constantíssima no espírito, vencida do peso da dor, e enfraquecida das forças corporais, ou totalmente caiu em terra ou foi necessário que a sustentassem, para que não caísse; e nomeadamente Adricômio, e outros cosmógrafos da Terra Santa, escrevem que na subida do Monte Calvário se vêem ainda hoje as ruínas de uma igreja, chamada Santa Maria de Espasmo, edificada naquele lugar. em memória, como é tradição, de um notável delíquio que ali padeceu a Mãe Santíssima. Nesta suposição é ain­da mais evidente a demonstração de que, depois de tantas horas e tantos passos de maior aflição e pena. quantos sucederam desde a cruz até o sepulcro, não ficaria a Senhora com vigor nem alento para começar nem intentar de novo tão trabalhosa e dilatada peregrinação. Mas porque estes efeitos exteriores, posto que não pertençam à perfeição e virtudes do espírito, senão à enfermidade natural do corpo, ainda assim são controversos entre excelentes teólogos, eu me contentei de indústria com o que somente referi acima, de que ninguém duvida; e basta para abundantíssima prova deste primeiro motivo.

O segundo não é menos eficaz, porque pertence à modéstia e decência pessoal de tão soberana majestade. Quando se acabaram os ofícios do sepulcro, era o fim do dia e princípio da noite, porque, depois de o Senhor expirar à hora da nona, que são às três da tarde, foi José ab Arimatéia pedir licença a Pilatos para depor da ctuz o sagrado corpo. Mandou Pilatos certificar-se, por um capitão da sua guarda, se verdadeiramente estava já morto; fez-se o exame no Calvário, veio a resposta, deu-se a licença — que noutro paço seria negócio e despacho de muitos dias — comprou José holandas, e Nicodemos mirra e aloés para envolver e ungir o defunto, segundo o uso daquela nação; fez-se a vagarosa função do descendimento da cruz, e deposição do corpo: ungiu-se, envolveu-se, levou-se ao sepulcro, e em tudo isto se gastaram as outras três horas, que só restavam em vinte e cinco de março. Com que é certo que ao cerrar do sepulcro se cerrou também o dia, e sobreveio a noite. Assim o observou São Gregório Nazianzeno na tragédia acima citada, onde introduz a Senhora encomendando a diligência por que se chegava a noite, com estas palavras:

At obsecro vos, quotquot hic estas, una Mana hoc in unum incumbite ocius,

Nam res requirit, noctis et crepusculum[7].

São Marcos diz que, quando veio José, era já tarde: Cum jam sero esset, venit Joseph (Mc. 15, 42  s) — e São João dá por razão de se tomar o sepulcro de José, e não outro, o estar perto, e se acabar o dia do Parasceves: Ibi ergo propter parasceven Judaeorum, quia juxta erat monumentum, posuerunt Jesum (Jo. 19, 42).

De sorte que. quando a Senhora se despediu do sepulcro, começava já a noite, e de nenhum modo era decente à modéstia e recato de tal pessoa, que de noite andasse pelas ruas de Jerusalém, e de noite saísse fora das portas da cidade, e se metesse, posto que com bom intento, por estradas de tão mau nome, e que por entre ossos e caveiras de justiçados subisse a um lugar tão funesto e medonho, onde só se atrevem a ir àquelas horas mulheres de vida perdida, e de artes suspeitosas. O lugar já estava santificado, a jornada era pia e santa, mas a hora intempestiva e indecente. E para que nos dê a prova a mesma Senhora, no mesmo dia, e com as mesmas circunstâncias, consultemos o mesmo divino oráculo, e ouçamos o que responde.

No diálogo já alegado da Paixão, pergunta Santo Anselmo à Virgem Maria se na noite antecedente assistira a seu Filho, e responde a Virgem que não. Pois, piíssima Senhora — insta o santo — se vós o amáveis tão entranhavelmente, por que o não assististes em uma noite tão trabalhosa? — Porque era noite —responde a Senhora — e não era conveniente que àquela hora se achassem mu­lheres fora de casa. — Enfim, perguntada em que casa estava então, respondeu que na casa de sua prima, a mãe de João Evangelista. As palavras do dito diálogo, com as mesmas perguntas e respostas entre Anselmo e Maria, são as que se seguem. —Anselmus: Dic, piissima Mater, fuisti tunc cum illo?–Maria; Non. — Anselmus: Quare, cum eum tantum diligeres? — Maria: Instabai nox, et non expediebat ut mulieres tunc foris invenirentur. — Ubi ergo, dulcíssima, fuisti tunc? — Maria: Fui in domo sororis meae, matris Joannis Evangelistae. —E se naquela noite, em que o Senhor, desamparado de todos, tanto padeceu, foi con­veniente que prevalecesse o recato e modéstia da Mãe a todas as razões e im­pulsos do amor, com que desejava ardentemente ir assistir a seu Filho, só por­que não era decente andar fora de casa de noite, ainda que fosse, como era, dentro da cidade, que decência seria, ou que razão podia haver para que a mesma Senhora, quando seu Filho já não padecia, e descansava no sepulcro, onde o deixava, fosse de noite, não buscá-lo a ele, senão os lugares em que tinha estado, e não só dentro da cidade, senão fora dela, e por estradas tão pouco seguras e cheias de horror, como as daquele monte, até de dia funesto e temeroso.

Assim que de tudo o sobredito, não só por tantas autoridades e escrituras, mas pela impossibilidade moral da Senhora, e pelo decoro e decência — que sempre se deve observar e supor em todas suas ações — se conclui manifesta­mente não ser certo nem provável, nem ainda verossímil, que a Virgem puríssima, como se diz no lugar citado, desse princípio à devoção da Via-Sacra em Jerusalém, depois de ter deixado o seu amantíssimo Filho sepultado em o santo sepulcro. O mais que chegam a dizer alguns contemplativos, é que a Senhora, vindo do sepulcro, que estava junto à cruz, a adorou, etc.

CAPÍTULO IV

Prossegue-se a demonstração acima até à manhã da Ressurreição.

Desde a hora do sepulcro do Senhor até a da manhã da sua Ressurreição intervieram duas noites e um dia: a noite da sexta-feira para o sábado, e o dia do sábado, que logo se seguiu, e a noite do sábado para o domingo. De uma e outra noite não é necessário falar, porque já fica provado que a Senhora não fez aquela peregrinação de noite; que a não fizesse naquele dia, nem andasse nele os passos da Via-Sacra, é ainda mais certo e mais evidente, por ser sábado, e tal sábado. A Santíssima Virgem, como santíssima, e como Mãe daquele Filho que disse: Non veni solvere legem, sed adimplere[8] — era observantíssima da lei, a qual ainda então não estava derrogada, nem publicada a nova; e um dos preceitos do sábado era que-ninguém pudesse andar em tal dia mais que certo número de passos, o qual número se chamava caminho de sábado, como se lê nos Atos dos Apóstolos: Qui est juxta Jerusalem, sabbathi habens iter[9] — e a esta limitação de passos aludiu Cristo, quando, profetizando a ruína de Jerusa­lém, e a fugida de seus moradores, disse: Orate, ut non fiat fuga vestra in hyeme, vel sabbatho[10]. — Vejamos agora quantos eram os passos que determi­nava o preceito do sábado, e quantos os passos que havia do pretório de Pilatos até o Monte Calvário.

São Jerônimo, na questão décima da Epístola a Algazia, alegando a rabi Akiba, a rabi Simeão e rabi Helel, define que no sábado se podiam somente andar dois mil pés naturais, que fazem quatrocentos passos. Adricômio, na sua diligentíssima e exata descrição da cidade de Jerusalém, diz que do pretório de Pilatos até o Monte Calvário há mil trezentos e vinte um passos [11]; logo, não podia a Senhora andar naquele dia todo este caminho, nem instituir ou continuar nele por si mesma a Via-Sacra, senão quebrando a lei, a qual é a primeira e a maior de todas as devoções, e não se deve deixar nem violar por nenhuma outra; e, como se não possa dizer sem blasfêmia, nem imaginar sem erro, que a Senhora quebrava lei, a qual devia guardar por razão do escândalo, ainda que estivesse desobrigada dela, como guardou a da purificação, segue-se que nem andou nem podia andar naquele dia os passos da Via-Sacra, que se supõe ter andado e conti­nuado sempre: e deste mesmo princípio se confirma irrefragavelmente que, nem acabada a função do sepulcro, pôde andar os mesmos passos, porque o sábado, e a sua observância, começava ao pôr do sol da sexta-feira até o pôr do sol do sábado, e a função do sepulcro acabou ao pôr do sol.

Confirma-se esta observância da Senhora com as das três Marias, das quais diz o evangelista que, tanto que vieram do sepulcro, preveniram logo os ungüentos e espécies aromáticas para irem ungir o Senhor, como foram, na madrugada do domingo; porém, que ao sábado não saíram de casa, por obser­var o preceito: Revertentes paraverunt aromara, et unguenta; et sabbatho quidem siluerunt secundum mandatum (Lc. 23, 56). — Note-se a palavra siluerunt: calaram-se — porque na frase hebréia calar-se significa não se mover. Quando José mandou parar o sol, dizendo: Sol, ne movearis[12] — no hebreu está: Sol, face[13] — e quando Cristo, na barca de São Pedro, mandou parar a tempestade, também disse ao mar: Obmutesce[14]. — De maneira que as Marias, com serem tão devotas e fervorosas que antecipavam a prevenção dos ungüen­tos no dia antes e no dia depois, não esperaram que amanhecesse de todo para ir ungir o sagrado corpo; contudo, em todo o dia do sábado, por observância do preceito, nem para visitar o sepulcro, e se consolar com sua visita, se moveram ou deram um passo: para que se veja se a Senhora, que era a que dava e devia dar maior exemplo, excederia tanto os passos da lei, e a quebrantaria pública e escandalosamente em dia por todos os títulos tão sagrado, só pela devoção da Via-Sacra. Não seria a Virgem imaculada se tal via fizesse ou andasse contra a lei de Deus, pois só dos que andam pela via da mesma lei tinha dito seu pai Davi: Beati immaculati in via, qui ambulant in lege Domini [15].

São Gregório Nazianzeno, seguindo esta mesma doutrina, na sua tragédia intro­duz as pessoas, de que se compunha o coro dela, exortando-se a que se recolhessem no sepulcro a observar a lei do sábado, que começava ao pôr do sol da sexta-feira. Além desse primeiro e principal motivo, acrescentam o do temor e perigo de serem presas ou maltratadas pelos inimigos de Cristo, que então andavam tão furiosos; mas esta razão, que também era muito considerável naquelas circunstâncias, ficará para o capítulo seguinte, onde tem seu próprio lugar. As palavras de Nazianzeno são estas:

Probe mones tu, nec secus quam dixeris Fiet, eo nunc nos, o Hera, ire nos convenit, Ut sepulchro non remotae longius Quidquid erit observemus, et totum diem Demus quieti crastinum, ut lex praecipit.

E dois versos mais abaixo:

Cernite profectae hinc vos ut obsequamini Mori recepto; eamus, et demus locum

Prius sepulcro, quam hostium aliquis proximus Nos deprehendat[16].

E se alguém quiser saber qual foi o exercício da Mãe Santíssima em todo aquele dia, digo que o do dia, e o de uma e outra noite, foi o da consideração da sua soledade, com todos aqueles afetos de dor, de ternura, de mágoa, de amor e de saudades, que a memória e ausência de um tal Filho podia excitar no cora­ção de tal Mãe. Assim o celebra e lamenta justamente a piedade dos fiéis em muitas igrejas da cristandade, e parece que o mesmo São João, que acompa­nhou a Senhora, o viu assim no seu Apocalipse. Vi primeiramente aquela gran­de mulher, a quem chama milagre do céu; viu que com grandes dores paria um filho, a quem esperava tragar um dragão, mas ele lhe escapava das unhas; e viu que logo se davam à mesma mulher duas asas de uma grande águia, com que ela se retirava para um deserto. A mulher é a Virgem Mãe; as dores da parto, as que padeceu ao pé da cruz; o dragão, a morte de seu Filho, da qual escapou ressuscitado; as asas da grande águia, o amparo de São João, que retirou a Senhora para sua casa; e a mesma casa, o deserto, onde naquele dia, e naquelas duas noites passou em soledade. E esta é a devoção em que a Virgem Maria, não com os passos do corpo, mas com os da contemplação e do espírito, correu muito devagar, e só consigo e com seu Filho, não somente a Via-Sacra do pretório ao Calvário, mas todos os outros lugares e estações, igualmente sagra­das e consagradas com o sangue e tormentos de sua Paixão.

CAPÍTULO V

Prova-se que a Senhora não andou a Via-Sacra desde o dia da Ressurrei­ção até o oitavo, em que apareceu a Santo Tomé, e aos apóstolos congregados.

Nem com a morte de Cristo, nem com a sua Ressurreição cessou o perigo e temor dos que o seguiam, antes cresceu mais a tempestade. No dia do sábado, depois de morto e sepultado o Senhor, foram os príncipes dos sacerdotes e fariseus, em corpo de tribunal — como escreve São Mateus — pedir soldados a Pilatos, para que fossem guardar o sepulcro, alegando que se lembravam que aquele engana­dor — assim chamavam a quem lhes pregava a verdade — tinha dito, estando ainda vivo, que havia de ressuscitar ao terceiro dia, e que temiam que seus discípulos o roubassem, e dissessem que era ressuscitado. No dia seguinte, que foi o da Res­surreição, sendo avisados dela pelos mesmos soldados, e do que tinha-se sucedi­do no sepulcro, fizeram novo conselho, e assentaram que subornassem com di­nheiro os soldados, e lhes prometessem segurança de Pilatos, para que afirmas­sem que, estando eles dormindo, vieram com efeito os discípulos, e viram tinham roubado o corpo. Não contentes, como diz São Severiano, de ter morto o Mestre, e maquinando também de destruir aos discípulos: Non contenti interfecisse Magistrum, discipulos etiam perdere moliuntur[17] ; — criminados desta sorte, e divulgado por toda a cidade o crime, e provado com tantas testemunhas, que para o intento dos juízes tanto importava serem falsas como verdadeiras, foi tão gran­de o temor dos apóstolos, que todos onze, ao oitavo dia, em que o Senhor foi reduzir a incredulidade de Tomé, estavam escondidos em uma casa, e com as portas trancadas, como refere São João: Et fores essent clausae, ubi erant discipuli congregati, propter metum judaeorum (Jo. 20, 19); e quando os discípulos ti­nham tão justas causas para não ousarem a sair nem aparecer em público, bem se vê que não seria prudência, senão temeridade, que o fizesse a Mãe, expondo-se a si e a eles, e neles a toda a Igreja — que então consistia em tão pequeno rebanho —à fúria e voracidade dos lobos, que tão desatinadamente raivavam pelos acabar e consumir. Já tinham metido em uma torre a José, como refere Santo Anselmo, por ter dado sepultura a Cristo, não lhe valendo o salvo-conduto de Pilatos, tão covar­de em não defender sua autoridade na prisão do discípulo, como o tinha sido na morte do Mestre. E, posto que a Virgem e São João, por particular providência do crucificado, tinham assistido e escapado ao pé da cruz sem descomposição vio­lenta, bem lembrada estava a Senhora, como revelou a Santa Brígida, das pala­vras injuriosas e sacrílegas com que no mesmo lugar, por ser conhecida por Mãe de seu Filho, havia sido desacatada; nem São João, esquecido do perigo em que, largando os últimos vestidos nas mãos dos que por eles o tinham preso, se salvou como de naufrágio, pois o mesmo São João tinha sido, em sentença de Barônio, e outros muitos, aquele mancebo de quem diz São Marcos: Rejecta sindone, nudus profugit ab eis[18].

Todas estas razões tinha a Virgem, por antonomásia prudentíssima, para dispensar nesta ocasião com a sua piedade e com o seu amor, como já tinha dispensado em não ir com as Marias ao sepulcro; e as mesmas deve reconhecer todo o bom juízo, para não crer nem se persuadir que em tais dias, sendo tão conhecida a Senhora, por mãe de Cristo, fosse aparecer publicamente diante do pretório e suas guardas, e dali, por tantas ruas de dentro e fora de Jerusalém, ao Monte Calvário. Quanto mais que, sendo comum sentir de todo o Colégio Apostólico, que convinha, ainda às maiores colunas dele, retirar-se nesta oca­sião, e esconder-se, era muito conforme à modéstia e humildade da Virgem, ainda quando no contrário não houvesse perigo, seguir o mesmo ditame, e mais quando nele intervinha o novo respeito de São João, e a segurança da casa em que vivia, e, sobretudo, a autoridade de São Pedro, destinado cabeça da Igreja, de quem a Senhora se não havia de apartar no menor movimento, mas reverenciá-lo e obedecê-lo em tudo.

Com excelente distinção disse São Bernardo, escrevendo ao Papa Eugê­nio, que todas as coisas há de fazer o homem espiritual com três considerações: a primeira, se é lícita; a segunda, se é decente; a terceira, se é conveniente: Spiritualiter homo omne opus suum trina consideratione praeveniet: prima, an liceat; deinde, an deceat; postremo, an expediat. — Já vimos que sair a Vir­gem em público nestes três dias, e andar as ruas de Jerusalém e estações da Via-Sacra, nem era decente nem conveniente: agora acrescento que também se podia muito duvidar se era lícito, não por razão da obra em si, que era justa é pia, senão por ocasião do escândalo. Para as ações humanas escandalizarem, não é necessário que sejam injustas; basta que humana e moralmente possam ser reputadas por tais, principalmente quando há fundamento para isso. Justa­mente podia Cristo negar o tributo a César, como supremo Senhor e Filho de Deus que era; e, contudo, porque esta soberania divina ainda não estava conhe­cida no mundo, para que o mesmo mundo se não escandalizasse, mandou a São Pedro que pagasse por ambos: Ut autem non scandalizemus eos, da eis pro me, etc. — Da mesma maneira, nestes primeiros dias da morte e Ressurreição de Cristo, ainda não crida em Jerusalém, senão entre muito raros, a divindade de Cristo, porque a condenação e a morte fora pública, e a Ressurreição estava ocultada e escurecida, a reputação, em que ainda estava o Senhor, era de enganador, sacrílego e usurpador do nome de Filho de Deus; a presunção e a verdade de tudo isto estava da parte dos juízes, e contra o réu, tendo obrigação o povo de seguir a sentença e definição do seu pontífice, e príncipes dos sacerdotes; e nestas suposições e circunstâncias, que eram as que naqueles dias existiam, parece não podia a Senhora ir venerar os lugares daquelas estações, sem grande escândalo de todos os que a vissem: donde se segue que lhe não era lícita tal devoção, e que se devia abster dela, posto que cresse, e lhe constasse do contrário.

Bem cria, e lhe constava à mesma Senhora, que seu Filho não era sujeito à lei da circuncisão; e, com ser um preceito tão rigoroso, e de tanta dor de ambos, o circuncidou contudo, por evitar o escândalo, como douta e grave­mente resolve o Padre Soares: Quamvis per se —diz ele— non fuerit necessarium parentibus Christi puerum circumcidere, per accidens tamen, ad vitandum scandalum, merito existimari potuisse necessarium; guia cum partus esset manifestus omnibus, miraculum autem conceptionis esset occultissimum, non potuisset non generari grave scandalum, si circumcisio fuisset praetermissa[19]. — O mesmo resolve o mesmo sapientíssimo doutor acerca da purificação da Senhora, à qual também constava, com evidência, da pureza virginal de seu admirável parto, e que na mesma lei estava excetuado no Êxodo, naquelas palavras: Omne primogenitum quod aperit vulvam (Êx. 13, 12).E no Levítico, com as palavras: Mulier, si suscepto semine pepererit masculum (Lev. 12, 2) — contudo, se sujeitou ao preceito da purificação a Virgem puríssima, porque, sendo o mistério oculto, era manifesto o escândalo, se se não purificasse; e se, para evitar o escândalo, teve obrigação a Senhora de se sujeitar a uma lei, a que por nenhum outro título era obrigada, muito maior obrigação lhe corria de se abster naqueles dias de uma devoção meramente livre e voluntária, a que não a obrigava preceito algum, e se podia seguir dela grave escândalo[20].

E daqui mesmo se aperta mais o perigo acima ponderado, antes se infere outro muito maior, porque não há dúvida que neste caso ficou a Senhora exposta no foro exterior às penas, quando menos, arbitrárias dos príncipes dos sacerdotes, por­que sendo, segundo a sua sentença, crime de lesa majestade divina, aquilo por que tinham crucificado a Cristo: Quia Filium Dei se fecit[21] — assim como hoje, quando se queima um herege, seria suspeito da mesma heresia, e gravemente punido, quem lhe venerasse as cinzas ou fizesse romarias ao lugar do suplício, assim podiam con­denar a Senhora pela devoção das estações e Calvário, posto que verdadeiramente justas, e diante de Deus santíssimas. Justa era, segundo todas as leis, divina, humana e natural, a defensa de Cristo no Horto; e, contudo, mandou o Senhor a São Pedro que embainhasse a espada, dizendo: Omnes enim, qui acceperint gladium, gladio peribunt[22] — não porque fosse profecia, como alguns quiseram, ou porque seja con­seqüência que todo o que mata violentamente, violentamente morra, senão porque aquele era o texto, disposição e pena da lei, à qual Pedro ficava sujeito no foro exterior, posto que a resolução fosse heróica, a defensa justa, e a ação louvável.

CAPÍTULO VI

Outra razão de desproporção e dissonância, com que não convinha à Senhora, naqueles dias da Ressurreição, o exercício da Via-Sacra.

Não dizem os evangelistas que o ressuscitado aparecesse a sua Santíssima Mãe, e a razão que tiveram para este silêncio foi porque o seu intento era pro­var autenticamente a verdade da Ressurreição, e as mães nas causas dos filhos não são testemunhas legais. Contudo, é tradição da Igreja, recebida e celebrada por todos os padres, que a primeira pessoa a quem apareceu ressuscitado e glorioso foi à mesma Senhora, para que, assim como tinha sido a primeira nas dores, o fosse também nas consolações, conforme a profecia de Davi: Secundum multitudinem dolorum meorum in corde meo, consolationes tuae laetificaverunt animam meam[23]. — O que a saudosíssima Mãe pedia a seu bendito Filho, nes­tes três dias de sua ausência, era que os abreviasse quanto fosse possível, repe­tindo-lhe amorosamente aquelas palavras dos Cânticos: Revertere: similis esto, dilecte mi capreae, hinnuloque cervorum[24]. — E as do profeta Isaías: Accelera spolia detrahere, fesfina praedari[25] — as quais, umas e outras, explica e aplica excelentemente Ruperto Abade neste tríduo: Tridui quidem tempus breve est, sed dilectae et columbae tuae desiderant, et gementi vulnerata mente, non satis, dilecte mi, festinatum est: abbrevia hoc ipsum triduum, etc. — Bem sei, meu Filho e Senhor, que não pode faltar a verdade da vossa palavra, com que prometestes estar na sepultura três dias: o que vos pede o meu amor, a minha dor, os meus gemidos e as minhas saudades, é que os abrevieis quanto a mesma verdade permitir, e vos apresseis a tirar esses despojos do limbo, e aparecer vencedor da morte diante de meus olhos.

Assim o fez o amantíssimo Filho, tomando dos dias, que se podiam partir, somente parte, e aparecendo à Senhora na madrugada do terceiro, com que ambos ficaram ressuscitados: então se cumpriu o texto profético: Surge, Domine, in requiem tuam, tu et arca sanctificationis tuae (SI. 131, 8): Ressuscitai, Senhor, dos trabalhos passados e alheios de vós, ao descanso vosso; mas não só vós, senão também convosco aquela que vos trouxe em suas entranhas. — Se de Jacó diz a Escritura que, quando soube ser vivo seu filho José, que tinha chorado morto, ressuscitou seu espírito: Revixit spiritus ejus (Gên. 45, 27) — que nova vida e que nova alma se infundiria no espírito da Mãe Santíssima com a vista do Filho ressuscitado, e como cantaria então com maiores júbilos: Exsultavit spiritus meus in Deo salutari meo[26]. — Nenhum santo há que se atreva a declarar os extremos de alegria e gosto inefável, com que a Cheia de Graça foi também a cheia de glória nestes dias dos seus maiores prazeres. E eu só quis, e me foi necessário, apontar historicamente o pouco que fica dito, para que se julgue se diriam e concordariam bem com as alegres páscoas as estações do pretório e do Calvário, e os passos da cruz, ou doze cruzes, que se diz continuou a Senhora nestes mesmos dias.

Tudo em seu tempo — diz o Espírito Santo: Omnia tempus habent (Ecl. 3, 1) — e a primeira coisa que fez o autor da natureza e dos tempos na criação do mundo, foi dar a cada tempo o que é seu: as trevas à noite, e a luz ao dia: Tempus flendi et tempus ridendi (Ibid. 4): Há tempo de chorar e tempo de alegrar — pros­segue o mesmo Espírito Santo; e isto é o que fez sua Santíssima Esposa, a Virgem Maria, e isto é o que devia fazer. Na morte de seu Filho chorou, na sua Ressurrei­ção alegrou-se; sumamente triste na morte, sumamente alegre na Ressurreição, e sumamente ordenada em um e outro afeto do seu amor, segundo a diferença de um e outro tempo. A Via-Sacra, e repetição dos passos que Cristo andou em sua Paixão, é muito santa e pia; mas naqueles dias tão alegres era imprópria e intempestiva, e por isso desproporcionada e dissonante. Quando São Pedro e São João, avisados da Madalena, foram correndo ao sepulcro no dia da Ressurreição, diz o mesmo evangelista, e nota muito, que o sudário estava envolto separado, separado e posto a uma parte do sepulcro: Separatim involutum in unum locum (Jo. 20, 7). — E por que assim, e não estendido e descoberto? O Santo Sudário não é uma imagem tão miraculosa, tão devota, e tão sobremaneira venerável? Pois, por que razão o Senhor, quando ressuscita, a deixa envolta, separada, e posta à parte? Porque era o dia da Ressurreição, e, ainda que a imagem fosse muito devo­ta, muito venerável, sacratíssima, não era para aquele dia; era para o dia da sua Paixão, e não para os dias da Páscoa. E se Cristo, que tudo punha em seu lugar, fez esta separação e distinção de dias a dias, não é de crer que a Senhora, que tanto imitava seus passos, a não fizesse, e seguisse outros.

Quando a Madalena, depois de morrer Lázaro, saiu de casa, todos disse­ram que ia chorar a seu irmão à sepultura; mas, depois de ressuscitado, e muito menos entre os primeiros alvoroços e parabéns da ressurreição, ninguém houve que tal dissesse nem imaginasse. Há, porém, quem diga e creia que, entre os aplausos e júbilos da Ressurreição de seu Filho, iria a Virgem Maria, no mesmo, e em todos aqueles dias, ao pretório de Pilatos, para renovar a memória dos açoites e coroa de espinhos, e às ruas e praças de Jerusalém, para contemplar na cruz as costas, e na afrontosa companhia dos que também levavam as suas; e ao Monte Calvário, para se lastimar com os cravos, para se traspassar com a lança, para se amargar com o fel. Se o anjo ainda estivera no sepulcro, bem podiam chegar aos ouvidos da Senhora as vozes, tanto do caso, com que a Igreja nos diz que ele bradava:

Sat funeri, sat lacrymis,

Sat est datum doloribus:

Surrexit extintor necis,

Clamans coruscans angelus[27].

Mas o vulgo, sempre ignorante, e nunca mais ignorante que quando presumido de devoto, entende e penetra tão mal a força e propriedade deste repetido sat est, que chega a crer se festejaria melhor naquela ocasião, não só a Ressurreição com a cruz, senão uma ressurreição de Cristo com doze ressurreições de cruzes. Tudo isto hoje, e entre nós, é muito louvável; mas naqueles dias não tinha lugar, porque era fora de tempo, antes contra o decoro, contra a formosura e contra a majestade do tempo.

E já que estamos com a Madalena, e na Via-Sacra, peçamos-lhe — como lhe pergunta a Igreja — que nos diga o que viu na sua: Dic nobis, Maria, quid vidisti in via? — O que viu e diz que viu a Madalena, é o que se resume nestas palavras: Sepulchrum Christi viventis, et gloriam vidi resurgentis; angelicos testes, sudarium et vestes: Vi o sepulcro de Cristo vivo, vi a glória de seu corpo ressuscitado, vi os anjos testemunhas de sua Ressurreição, e vi o sudário e vestes, que já não eram mortalhas, senão despojos da morte. — Isto é o que vistes, Madalena? E vistes mais alguma coisa? — Não. — Pois, sabei que vieram muitos séculos depois de vós os que viram muito mais. Viram o sepulcro, vi­ram os anjos, viram o ressuscitado e suas glórias, viram o júbilo e alegria vossa e das outras Marias, quem nem a vós nem a elas cabia nos corações; viram a mesma nos apóstolos e discípulos, que todos triunfavam de prazer, e rebenta­vam de gosto; viram os aplausos e as aclamações dos patriarcas e profetas, tirados do seio de Abraão, que todos — e, entre eles, o esposo José, davam mil vivas a seu libertador, infinitos parabéns à Mãe, da ressurreição de seu Filho. E no meio de todas estas enchentes de glórias, como se a Senhora se não dera por bastantemente satisfeita dos gostos presentes, sem a presença ou companhia das penas passadas, dizem que no mesmo tempo saía a Virgem daquele paraíso de deleites celestiais pelas ruas de Jerusalém, e começava desde o pretório de Pilatos até o cimo do Monte Calvário, por todo este comprido caminho ia con­tando os passos da Paixão de seu Filho, não por ver e venerar o sacratíssimo sangue seu, que já então estava recolhido todo às veias, mas para notar e con­templar os lugares onde fora derramado. Estava então o ressuscitado Senhor naquela mesma terra, e não ignorava a Santíssima Mãe, como secretária de todos seus mistérios, onde estivesse; e têm para si estes devotos que, em vez da Senhora o ir ver, e buscar onde estava, quisesse antes, e se contentasse mais de ir visitar os lugares onde estivera.

Ó sol, ó pedras, que não quero chamar nesta ocasião criaturas racionais ou sensitivas! O sol eclipsou-se, as pedras quebraram-se na Paixão e morte de Cristo: e se alguém se atrevesse a dizer que no dia da Ressurreição repetiram o céu e a terra estas mesmas demonstrações de obséquio e reverência a seu Se­nhor, como aquentaria o sol, e como não se levantariam as pedras contra quem tal injúria lhes fizesse? Cristo deixou as mortalhas na sepultura, e isto seria querê-lo amortalhar outra vez: seria ajuntar a ressurreição com a morte, a noite com o dia, a glória com a pena, a tristeza com a alegria, e as lamentações e os heus com as aleluias.

CAPÍTULO VII

Responde-se a uma objeção, que parece bem fundada.

Dir-me-ão que a memória da Paixão de Cristo, como sempre é santa e aceita ao Senhor, assim seria muito naquele dia, e dias, posto que tão alegres e gloriosos. Mal conhece as propriedades da glória, nem ainda as da verdadeira alegria, quem assim filosofa. A grande e verdadeira alegria, depois das dores, traz consigo o esquecimento delas, posto que fossem grandes: Mulier cum paro, tristitiam habet; cum autem pepererit, jam non meminit pressurae propter gaudium, quia natus est honro in mundum[28]. — A sua Mãe aludiu Cristo — diz Ruperto — quando usou desta comparação. Cristo, nosso Redentor, nasceu duas vezes: uma da Mãe, sem dores, e outra da lousa do sepulcro, com dores da mesma Mãe: Qui natus olim e virgine, nunc e sepulchro nasceris — e foi tal a alegria deste segundo parto, posto que tão doloroso, que não seria tão grande, como foi, se não trouxera consigo o esquecimento das mesmas dores. O esquecer-se nestes dias a Senhora das dores da cruz foi obséquio devido à Ressurreição do Filho: não pareceria que estava o coração da Mãe inteiramente contente, se ainda nele tives­sem lugar memórias dos trabalhos passados. É atributo singular da glória o esqueci­mento de tudo o que pode dar ou deu pena. Assim o diz uma e outra vez Isaías, falando da glória do céu: Oblivioni traditae sunt angustiae priores; et non erunt in memoria piora, et non ascendent super cor. Sed gaudebitis etexsultabitis usque in sempiternum[29]. — E a razão deste esquecimento é — diz São Jerônimo. — não porque totalmente se perca a memória dos trabalhos passados — que seria defeito no entendimento — mas porque a grandeza da glória encherá tão inteiramente toda a alma, que não deixará nela lugar de se lembrar ou cuidar neles: Obliviscentur malorum non oblivioni memoriae, sed successione bonorum[30].

No dia da Ressurreição sucedeu a glória às penas, e a alegria às tristezas; e nem a glória da Senhora seria tão celestial, como era, nem a alegria tão excessiva, como merecia a causa, se o mesmo excesso de alegria e glória não enchesse e inundasse de tal maneira aquela puríssima alma, e suas potências, que apagasse e extinguisse na memória toda a lembrança, no entendimento todo o cuidado, e na vontade todo o afeto de quanto tinha passado, e, absorta e penetrada toda do gosto, do gozo, do júbilo e da fruição do bem presente. Este total esquecimento da cruz, da morte e Paixão do Filho era o maior crédito da glória e alegria da Mãe, e não a memória e recordação intempestiva do que tão impróprio era da dignida­de e amenidade daqueles formosos dias. Como se disseram, os que dizem o contrário, que assim como a Senhora na Paixão se contentava com a fé da Ressurreição, assim se consolaria agora na Ressurreição com as memórias da Paixão. Se a Senhora instituiu a chamada Via-Sacra, e lhe mediu os passos, levantando uma baliza no pretório, outra no Calvário, contra os descuidos do esquecimento, foi para nós, e para nossos dias, e não para si, nem para aqueles.

A segunda razão desta diferença, é a conformidade da vontade da Se­nhora com a de seu Filho, o qual quis que a solenidade da sua Ressurreição fosse toda festiva, alegre e gloriosa, e que os instrumentos suspendidos nos salgueiros de Babilônia se passassem todos às palmas de Sião, para celebrar e cantar seu triunfo, como a libertador do universal cativeiro. É excelente a figu­ra, chamada dos retóricos prosopopéia, com que o mesmo Senhor, por boca de Davi, fala com os mesmos instrumentos músicos, e lhes dá ordem que se tem­perem e afinem antes de ser manhã, porque ele há de ressuscitar de madrugada: Exsurge, gloria mea; exsurge, psalterium et cythara; exsurgam diluculo[31]. — Como se dissera: Se até agora, ó instrumentos de festa e alegria, pela tristeza de minha Paixão, estivestes destemperados e mudos, alerta, que se chega a hora de vos desfazerdes todos em som de glórias, e harmonia de aplausos, porque ao arraiar da aurora hei de amanhecer antes do sol, e ressuscitar triun­fante. — Estes foram os júbilos fervorosos e ardentes com que ressuscitou o espírito do Filho, e esta a vera effigies, ou o retrato original da alma da Mãe, sempre uniforme com ele.

Ricardo Vitorino, com alto e engenhoso pensamento, chamou à Virgem Maria species Christi: Espécie de Cristo. — As espécies, como ensina a Filoso­fia, são umas imagens naturais, que os objetos mandam às potências, e, sem serem vistas, nos fazem ver e conhecer os mesmos objetos assim como é cada um, ou como está naquele tempo: se vivo, vivo; se morto, morto; se triste, triste; se alegre, alegre. Tal foi a alma da Senhora na morte e na ressurreição, na tristeza e na alegria de seu Filho, sempre conforme e uniforme com ele, como espécie com o seu objeto. Ponhamos outra semelhança mais vulgar, e que todos percebam. O mais puro e cristalino espelho de Cristo neste mundo foi o coração de sua Mãe; e assim como o espelho, por uma natural e inseparável conformidade, representa sempre e em tudo a imagem de quem nele se vê, assim a Senhora representava e exprimia em si todos os afetos interiores, ou efeitos exteriores, que na sagrada humanidade de Cristo, segundo a diferença dos tempos, e a disposição de sua Providência, variavam. Isto quer dizer nos Cânticos: Ego dilecto meo, et ad me conversi ejus[32] — porque se representava o Filho na Mãe por natural reflexão, como em espelho; mas, por uma transfor­mação tão interior e íntima, que não só se representava, mas se convertia nela: Et ad me conversio ejus.

Agora pergunto, se Cristo na sua Ressurreição conservou no interior al­gum ressábio das penalidades passadas, ou deu algum passo no exterior, pela mesma via ou caminho por onde levou a cruz. Das penalidades é certo que nenhuma conservou ou reservou, porque não fora perfeitamente glorioso seu corpo, como sempre foi sua alma; dos passos, também ele quis que nos cons­tasse, posto que deu e andou muitos. Foi ao Horto em trajos de hortelão, para enxugar as lágrimas da Madalena; foi ao castelo de Emaús em trajos de pere­grino, e acompanhou pelo caminho os discípulos desesperados, para os confirmar na fé; foi uma e outra vez, em seu próprio hábito, ao cenáculo, onde estavam os apóstolos escondidos, para animar seu temor; foi aonde apareceu às três Marias; foi aonde apareceu a São Pedro. E, posto que se aparecera no pretório, onde foi condenado, nas ruas, por onde foi levado, e no Calvário, onde foi crucificado, fizera mais pública demonstração e prova de sua Ressurreição, nem apareceu em tal pretório, nem pôs os pés em tais ruas, nem quis subir outra vez a tal monte. Donde se segue que a Senhora, que em tudo seguia e adorava seus passos, e, como espelho de suas ações, as retratava todas em si, de nenhum modo andaria em todos aqueles dias tais estações, antes fugiria até com o pensamento de lugares que seu Filho tanto abominava, considerando-os como sacrílegos, pelas afrontas que neles recebera, e não como consagrados, pelo sangue que neles derramara.

Enfim, concluo que a Senhora não saiu nestes dias a fazer a tal Via-Sacra nem andar tais passos, porque a glória e alegria da Ressurreição a cercou, ou pôs de cerco, para que não pudesse sair. O Salmo 29 todo é claramente do mistério da Ressurreição. Fala nele primeiramente Cristo ressuscitado, e dá graças ao Eterno Pai de lhe haver dado vitória dos inimigos que lhe deram a morte: Exaltabo te, Domine, quoniam suscepisti me, nec delectasti inimicos moas super me[33]. — Prossegue a mesma ação de graças, dizendo que desceu sua alma ao inferno, e que de lá saiu triunfante: Domine, eduxisti ab inferno animam meam; salvasti me a descendentibus in lacum[34]. — Diz que a véspera daquele dia será toda de tristeza e lágrimas, porém a madrugada de alegria: Ad vesperam demorabitur fletus, et ad matutinum laetitia[35]. — Diz que não se converterá seu corpo em pó, mas que sairá incorrupto da sepultura: Quae utilitas in sanguine meo, dum descendo in oorruptionem? Numquid confitebitur tibi pulvis[36]? — Até aqui falou o Filho com o Pai; agora fala a Mãe com o Filho: Convertisti planctum meum in gaudium mihi; conscidisti saccum meum, et circumdedisti me laetitia: ut cantem tibi gloria mea, et non compungar (SI. 29, 8): Trocaste-me, Senhor, o pranto em gozo, e as lágrimas em júbilos: e não só me despistes o luto, mas para sempre mo rasgastes, porque, ressuscitado à vida imortal, já não porei outro; e, finalmente, cercaste-me de alegria, para que per­petuamente vos cante, glória minha, e me não compunja. — Se a piedosíssima Mãe se não havia de compungir, como havia de ir ao pretório de Pilatos, onde seu Filho, com toda a propriedade, foi pungido da coroa de espinhos? E como havia de ir ao Monte Calvário, onde com maior crueldade foi pungido vivo com os cravos, e, até depois de morto, da lança? Pois, para que a Senhora se não fosse lastimar com estas compunções, a cercou toda o Filho na sua Ressur­reição, e lhe fez um cerco de alegria: Circumdedisti me laetitia, ut non compungar. — Alguma máquina terão os da opinião contrária para romper este cerco verdadeiramente festivo; mas para se defender das forças de autoridades e razão, com que todo este discurso fica fortificado e guarnecido, nenhuma.

CAPÍTULO VIII

Prova-se que no resto dos quarenta dias, até o da Ascensão de Cristo, ainda que a Senhora tivesse dado princípio à devoção da Via-Sacra a não podia continuar.

Na manhã da Ressurreição, disse o anjo que apareceu no sepulcro às Marias, que fossem logo dar a nova aos apóstolos, e lhes dissessem que se partissem para Galiléia, porque o Senhor ressuscitado se adiantaria a esperar por eles, e que lá o veriam; e acrescentou o mesmo anjo, para que não duvidassem, que assim lhe pro­metia e certificava: Cito euntes, dicito discipulis quia surrexit: et ecce praecedet vos in Galilaeam: ibi eum videbitis: ecce praedixi vobis (Mt. 28, 7): Indo as Marias com este recado, para que elas também o confirmassem, como testemunhas de vista, apareceu-lhes o mesmo Senhor em sua própria pessoa no caminho: recomendou-lhes a mesma diligência, mudando porém, ou emendando no recado uma palavra, e trocando-a com outra de maior benignidade e amor, porque onde o anjo tinha dito: Dizei a seus discípulos — disse o Senhor: Dizei a meus irmãos: Ite, nuntiate fratribus meis, ut eant in Galilaeam, ibi me videbunt[37], — Com isto se ordenar assim naquela manhã, e o intimar um anjo, e o confirmar de sua boca o mesmo Cristo, os apóstolos nem naquele dia, nem nos oito seguintes passaram à Galiléia, nem o Senhor esperou que fossem lá para que o vissem, senão que no mesmo dia, no mesmo lugar onde estavam, se lhes mostrou visível, e ali o viram antes e depois outras vezes, para que nos não admiremos que os decretos humanos se mudem talvez dentro de poucas horas, pois podem ocorrer novas causas, como aqui ocorreram. A primeira, e uni­versal, foi o temor e perigo dos apóstolos, a quem não era seguro o sair do seu encerramento enquanto os mares estavam tão alterados. A segunda, particular, e de maior cuidado, a ausência e tardança de Santo Tomé, que andava desgarrado e incré­dulo, dando por bem empregados o Senhor oito dias de espera e de suspensão de todo o seu governo, só por ganhar um homem.

Passados estes oito dias, em cumprimento do que deles se tinha ordenado, partiram os apóstolos para Galiléia — e também a Virgem Santíssima se passou para lá — que era diferente província da de Judéia, e muito distante da de Jerusalém, como antigamente fizera São José, quando tornou do Egito: donde se segue que, enquanto ali se deteve a Senhora, que foram quase todos os quarenta dias que restavam até a Ascensão, nem continuou nem pôde continuar as estações da Via-Sacra de Jerusa­lém, que se supõe tinha já começado e continuado sempre.

Que a Virgem passasse com os apóstolos a Galiléia não o declaram os evangelistas, mas é sem dúvida, porque consta que com eles foi São João, o qual não havia de deixar a Senhora só, nem a mesma Senhora se havia de apartar de sua companhia, como depois veremos que fazia em outras maiores peregrinações, principalmente sendo esta para Galiléia, pátria sua, e de seu benditíssimo Filho, a qual o Senhor quis honrar com sua gloriosa presença; e, sendo os apóstolos também galileus, na sua terra, e entre os seus naturais, como nota São Crisóstomo, estariam mais livres do temor dos judeus. Em Judéia e Jerusa­lém tinha Cristo, e a sua escola, muitos inimigos —como tem em todas as cortes —e quando não houvera este motivo bastava o tumulto e confusão de tamanho povo, ainda que não fora tão mau, para ser conveniente e necessário que todos se retirassem a algum lugar mais solitário e quieto, onde sossegadamente, e sem perturbação, gozassem da presença de Cristo, e conseguissem os importantíssimos fins, para os quais, desde o primeiro dia de sua Ressurreição, lhes mandara o Senhor intimar este retiro. São Mateus diz, nomeada­mente que este lugar de Galiléia era um monte: In Galilaeam, in montem ubi constituerat illis Jesus[38]. — Este monte entendem comumente os santos e expositores que foi o Tabor, onde o Senhor já mostrara as primícias de sua glória[39]. Então se lembrariam São Pedro, São João e São Tiago de quão propriamente e em seu lugar se lhes tinha dado aquele antigo aviso: Nemini dixeritis visionem, donec Filius hominis a mortuis resurgat[40]— e de crer é que neste glorioso monte não teria saudades a Senhora do Monte Calvário.

As pessoas que concorreram a Galiléia para ali ver o Senhor, e o viram, diz São Paulo que foram mais de quinhentas: Deinde visus est plus quam quingentis fratribus[41]. — Nova razão para que no mesmo tempo não carecesse do favor que se franqueava a tantos, a que fora única na fé e na dor, e o era no amor e no merecimento. Não se comunicava o Senhor neste monte de Galiléia pelo mesmo estilo com que o fizera em Jerusalém; mas com a diferença, que declara São Jerônimo, comparando o Monte Sião com ele: In altero pro consolatione timentium videbatur, et videbatur breviter, rursusque ex oculis tollebatur: in altero autem tantae familiaritatis erat, et perseverantiae, ut cum ipsis pariter vesceretur. — Quer dizer que em Jerusalém, só para consolar e animar o temor dos discípulos, aparecia o Senhor, mas brevemente, e logo desaparecia; porém, em Galiléia, era com tanta familiaridade e perseverança, que não só estava e conversava muito devagar, mas também comia com eles. — Estes são os muitos argumentos com que São Lucas diz que provou o Senhor a verdade de sua Ressurreição: Quibus praebuit seipsum vivum in multis argumentis[42] — isto é, deixando-se ver, ouvir e tocar, para que se desenganassem que era corpo, e não espírito, e a fé se ajudasse com os testemunhos dos três sentidos de maior evidência, vista, ouvido e tacto, e também com o mais material de todos, que foi o de comer juntamente com eles. Deste argumento, como mais natural, fez muito particular conta São Pedro, quando pre­gou ao primeiro gentio, alegando em prova e demonstração de que Jesus Cristo, de quem lhe dava notícia, ressuscitara verdadeiramente: Hunc Deus suscitavit tertia die, et dedit eum manifestumfieri non omni populo, sed testibus praeordinatis a Deo; nobis, qui manducavimus et bibimus cum illo, postquam resurrexit a mortuis[43]. — E a razão de ajuntar o Senhor o comer às outras provas de sua Ressurreição, diz Santo Tomás que foi para se mostrar verdadeiramente vivo por todos os atos de vida, vegetativa, sensitiva e racional: a racional, discorrendo e alegando; a sensitiva, vendo, ouvindo e apalpando; a vegetativa, comendo; e nestes dias, em que o Senhor se mostrou tão humano, quem pode duvidar que honra­ria muitas vezes a pobre mesa de sua Santíssima Mãe com maior gosto do que no convite de Marta, pois estava contemplado de outra melhor Maria, e com maior majestade que servido dos anjos no deserto, como triunfador do demônio com maior vitória.

Finalmente, o mais eficaz e irrefragável fundamento, com que se demonstra que a Senhora havia de assistir, e com efeito assistiu a seu benditíssimo Filho em Galiléia juntamente com os apóstolos, é o segundo e principal fim por que o Senhor ali os chamou e ajuntou, depois de os confirmar na fé de sua Ressurreição. Assim como Deus, para dar a Moisés a lei escrita, e o instruir em todos os preceitos e cerimônias dela, o teve consigo quarenta dias no Monte Sinai, assim Cristo, para dar aos apóstolos a nova forma e idéia da lei da graça, os quis ter também consigo neste monte de Galiléia por outros quarenta dias, que é o que diz São Lucas: Per dies quadraginta apparens eis, et loquens de regno Dei[44]. — Aqui, e por todo este tem­po, como sentenciosamente disse Tertuliano, esteve o Senhor ensinando aos apósto­los o que eles haviam de ensinar: Cum discipulis apud Galilaeam ad dies quadraginta egit, docens eos quae docerent — e desta doutrina de Cristo, como de sua primeira fonte manaram todos os princípios da fé, que, por continuada tradição, passando deles a seus sucessores, como lei não escrita, mas vocal, posto que muitas coisas dela depois se escrevessem autenticamente nos livros do Testamento Novo. Aqui lhes explicou mais claramente o mistério secretíssimo da Santíssima Trindade, de que só tiveram notícia e fé explícita os patriarcas da lei da natureza e escrita, man­dando-lhes que batizassem aos que cressem em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo, e lhes declarassem que a segunda destas três pessoas encarnara, e se fizera homem, para remir por meio de sua morte o gênero humano, e abrir as portas do céu, até então cerradas: e que prometessem o mesmo céu, e a vida eterna, aos que guardassem a sua lei. Assim mesmo lhes ensinou as diferenças de ritos, que nela se haviam de observar: como a circuncisão se havia de mudarem Batismo; o sacerdó­cio de Arão, no de Melquisedec; os sacrifícios de animais, no de seu corpo e sangue; o sábado em domingo; o matrimônio, até então puro contrato, em sacramento; e o número dos outros sacramentos, suas matérias, formas e ministros; e os graus e dignidades da jerarquia eclesiástica. Que o remédio do pecado, depois do Batismo, era o Sacramento da Penitência, e que não só eram pecados as obras e palavras, senão também os pensamentos e omissões; e que, para qualquer pecador se conver­ter de qualquer deles, não bastavam só as forças naturais do alvedrio, sem os auxíli­os da graça. A conferência, pois, e inteligência destes, e de todos os mistérios que os apóstolos haviam de pregar, não só aos da sua nação, senão a todas as do mundo, foram as lições que na escola do monte de Galiléia lhes ensinou o novo e divino legislador Cristo. E como a Senhora não havia de subir ao céu em companhia de seu Filho, mas havia de ficar ainda neste mundo, para consolação e exemplo dos fiéis, e como um oráculo divino, e primeira coluna da fé, a quem todos recorressem em suas dificuldades e dúvidas, não só foi conveniente, mas necessário, que a Senhora assis­tisse neste apostólico conclave, e que nele ouvisse tudo o que Cristo ensinava e mandava, e que sua puríssima alma, como mais disposta e capaz de todas, recebesse maiores lumes, e mais altas ilustrações daqueles e de outros mistérios, que no sacrário de seu peito, como nova e melhor Arca do Testamento, ficassem depositados.

Todo este magistério ou ofício de ensinar, que a Senhora havia de exercitar depois da subida de seu Filho ao céu, é fundado na doutrina comum dos santos padres, e não só recebida e confirmada pelos teólogos antigos, mas grandemente ampliada pelos modernos[45]. — Por isso é chamada a Senhora Mestra dos Mestres, e Apóstola dos Apóstolos, e Evangelista dos Evangelistas. Deixo as autoridades dos santos, muitas e eloqüentíssimas, com que nesta matéria se alargam; mas não posso calar as palavras de Santo Ambrósio, por serem tão próprias do nosso caso, e suas circunstâncias, como é dizer este grande doutor da Igreja que a razão de São João Evangelista se levantar tanto sobre os outros, na sublimidade de tudo o que escre­veu, foi por ser doméstico da Virgem Santíssima, e ter dentro de sua casa a aula de todos os mistérios e sacramentos do céu: Unde non mirum prae caeteris locutum mysteria divina, cui praesto erat aula caelestium sacramentorum. — Enquanto a Sabedoria encarnada ensinou neste mundo, esteve cerrada esta aula, e como muda; mas, tanto que o Senhor subiu ao céu, então se abriu, diz Ruperto, para os sagrados apóstolos, que iam aprender e ouvir nela mistérios tão sublimes e esquisitos, quais nunca tinham ouvido, nem dantes eram capazes para os entender: Quamdiu Filius hominis manere debuit minoratus paulo minus ab angelis, fere tamdiu fuit Beatae Virginis tempus tacendi; ubi autem gloria et honore coronatus est Filius hominis resurgendo, et in caelum ascendendo, extunc eidem Beatae Virgini fuit tempus loquendi, et hoc amicis, hoc est, sanctis apostolis, et talia loquendi, qualia prius portare non potuissent[46]. — E como este fosse o fim para que a sapientíssima Vir­gem ficou no mundo, suprindo, e como que substituindo a cadeira de seu Filho, daqui se infere com evidência o que o mesmo Ruperto disse noutro lugar, a saber, que quando os apóstolos foram chamados por Cristo a Galiléia, nos dias de sua Ressurreição, foi também a Senhora em sua companhia; e que imaginar e dizer o contrário, seria erro e ignorância indigna de todo o entendimento cristão: Numquid vel tunc, quando undecim discipuli abierunt in Galilaeam, sicut constituit illis Dominus, Mariam praeterierunt, et absque illa videntes eum adoraverunt?Absit[47] — A força desta última palavra diz mais que a tradução. Sendo, pois, certo que a Senhora foi e esteve o resto destes quarenta dias em Galiléia, com a mesma certeza se conclui que em todo aquele tempo, nem fez as estações da Via-Sacra de Jerusa­lém, nem as podia fazer.

CAPITULO IX

Que a Senhora não pôde continuar a Via-Sacra desde o dia da Ascensão até o do Espírito Santo.

No mesmo dia em que Cristo se despediu dos apóstolos, e se partiu para o céu, lhes mandou que não saíssem de Jerusalém, e que ali esperassem a vinda do Espírito Santo, que seu Eterno Padre havia de mandar sobre eles, como lhes tinha prometido: Praecepit eis ab Hierosolymis ne discederent, sed expectarent promissionem Patris, quam audistis, inquit, per os meum: quia Joannis quidem baptizavit aqua, vos autem baptizabimini Spiritu Sancto non post muitos hos dies[48]. — Em cumprimento deste preceito, se foram todos para um cenáculo, ou sala grande, que Nicéforo e Cedreno dizem que era da mesma casa onde morava São João Evangelista, posto que Barônio tem por mais provável ser de outro João, por sobrenome Marcos, também discípulo do Senhor. As pessoas de que se compôs esta sagrada congregação, como diz São Lucas, eram por todas cento e vinte, em que entravam algumas mulheres, de que só nomeia por seu nome a São Pedro, no primeiro lugar, e os mais apóstolos, e no último a Virgem Maria; e todos diz que unidamente estavam perseverando em ora­ção: Hi omnes erant unanimiter perseverantes in oratione cum mulieribus, et Maria Matre Jesu (At. 1, 14). — Do qual modo de falar se vê a razão, cortesia e reverência com que o evangelista nomeou a Senhora naquele lugar, significando que todos estavam acompanhando-a e assistindo-a, como a Mãe de seu Mestre e Senhor. As­sim continuaram todos, desde o dia da Ascensão até o de Pentecostes, em que desceu sobre eles o Espírito Santo, com as circunstâncias que descreve o mesmo São Lucas, das quais, e de toda esta história, se colhe que no espaço destes dez dias nenhum dos que ali estavam congregados saiu do cenáculo, e, conseguintemente, que nem a Senhora em todos eles pôde andar as estações da Via-Sacra, como agora ponderaremos.

Primeiramente, ainda que o preceito foi que não saíssem da cidade: Ab Hierosolymis ne discederent— da qual podiam não sair, ainda que saíssem da casa, o Senhor entendeu, por cidade, não a cidade toda, senão um só lugar da cidade, em que haviam de esperar juntos, e assim o entenderam os mesmos discípulos, pois todos se ajuntaram no mesmo cenáculo, e não em casas diversas, havendo entre eles muitos que as tinham próprias. E, uma vez que este foi o sentido do preceito, a palavra ne discederent os obrigava a não sair daquele lugar, onde se tinham congre­gado, como com efeito fizeram; e assim diz o evangelista que estavam, quando desceu o Espírito Santo: Erant omnes pariter in eodem loco (At. 2, 1). — A mesma continuação de estar e perseverar no mesmo lugar, sem sair dele, se declara mais nas palavras do Evangelho do mesmo São Lucas: Sedete in civitate, quoadusque induamini virtute ex alto (Lc, 24, 49) — onde o mandar-lhes o Senhor que se assen­tassem, até que fossem revestidos da virtude do Espírito Santo, não significa sítio ou postura do corpo, senão perseverança e assistência de lugar, isto é, que estivessem de assento no mesmo lugar, sem se apartar dele, e não que em a oração, com que se haviam de preparar para receber o Espírito Santo, a fizessem assentados, porque o uso dos hebreus era orar em pé. Neste sentido diz também o texto que o Espírito Santo encheu toda a casa onde estavam assentados: Replevit totam domum ubi erant sedentes (At. 2, 2) — isto é, onde tinham perseverado de assento; e a mesma signifi­cação tem a dizer que o Espírito Santo se assentou sobre cada um deles: Sedit supra singulos eorum (ibid. 3) — para mostrar, como explica São Crisóstomo, que vinha para permanecer com os apóstolos, e não se apartar deles nem da Igreja. Finalmente, esta mesma continuação e perseverança se exprime na narrativa textual da história, onde se diz que todos estavam no cenáculo, não só orando, mas perseverando na oração: Hi omnes erant perseverantes unanimiter in oratione. — E nota Cornélio a Lápide, que no texto original grego, em que São Lucas escreveu, a palavra que corresponde a perseverantes, não só quer dizer perseverança de qualquer modo, senão perseverança assídua, constante, persistente, tenaz, em coisa que espera e tarda, sem se apartar do começado, nem afrouxar ou remitir do fervor, suportando com paciência e fortaleza a moléstia, o trabalho, o tédio de esperar: Perseverantes graece significat esse assiduum, persistere, insistere rei cuidam arduae et prolixae, nec ab ea discedere, sed sustinere, et fortiter superare molestias, labores, taedia, tentationes, etc.

Além desta formalidade do preceito, a mesma matéria dele obrigava aos con­gregados a não se apartarem nem saírem do lugar onde estavam, sob pena de se arriscarem a perderem o bem que esperavam, se sucedesse vir o Espírito Santo, quando algum ou alguns estivessem ausentes. Se soubessem que havia de vir, como veio, dali a dez dias, então não havia perigo para fazerem alguma ausência, e saírem do cenáculo nos nove antecedentes; mas o Senhor de indústria lhes encobriu o ter­mo, e os deixou suspensos, dizendo-lhes somente que não seriam muitos os dias que tardasse a vir: Non post muitos hos dies — para que a mesma suspensão e temor, de que podia vir, como veio, de repente, os tivesse sempre em vela, com o cuidado e esperança de que qualquer dos dias e qualquer das horas podia ser o da sua vinda, nem mais nem menos como, na parábola dos servos que esperam pelo Senhor, lhes disse Cristo que estivessem sempre com as tochas acesas, e prevenidos: Quia qua hora non putatis, Filius hominis veniet[49]. — E se desta maneira perseveraram todos os congregados, sem sair nem se mover daquele lugar, qual seria a perseverança da benditíssima Virgem, que era o exemplo e exemplar de todos? Eles esperavam o Espírito Santo como servos, ela esperava o mesmo Espírito Santo como esposo, e, sendo a Virgem por excelência a Virgem Prudentíssima, claro está que não havia de sair do cenáculo, nem dar fora dele outros passos, por mais devotos, pios e santos que fossem, por que no mesmo tempo não pudesse acontecer o que aconteceu às virgens imprudentes, que enquanto foram a outra parte, veio o esposo: Dum autem irent, venit sponsus (Mt. 25, 10). — Segue-se logo, com evidência, que nestes dez dias, que se contaram entre a Ascensão de Cristo e a vinda do Espírito Santo, não fez a Senhora a Via-Sacra.

CAPÍTULO X

Que depois da vinda do Espírito Santo não continuou a Senhora a Via-Sacra de Jerusalém por toda sua vida.

Não nego que depois da vinda do Espírito Santo, e muito mais depois que as perseguições contra Cristo e seus discípulos deram algumas tréguas, e cessaram em parte — que nunca acabaram de todo — os inconvenientes acima apontados, em al­guns dias de sua vida visitasse a Senhora os sagrados lugares da paixão e morte de seu bendito Filho, e entre eles, ou juntamente, ou só, os que determinam os passos da Via-Sacra. O que somente digo, e não em dúvida, é que a Senhora os não conti­nuou, nem pôde continuar por toda sua vida, como se supõe.

Santo Ildefonso — que é entre os santos o que mais em particular tocou este ponto — diz assim, em um sermão da Assunção da Senhora: Sine dubio loca dominicae

nativitatis, passionis et sepulturae frequenter circuiens invisere cupiebat: in iisdem locis lacrymas fundebat, et sanctissimi oris sui oscula dulcissima imprimebat.

Quer dizer que a Virgem Santíssima desejava visitar freqüentemente os lugares do nascimento, paixão e sepultura de seu Filho, e que nestas devotas estações derrama­va muitas lágrimas, e venerava com todas as outras demonstrações de afeto os mes­mos lugares. — Não diz o santo que a Senhora visitasse e andasse só a via ou cami­nhos do pretório ao Calvário, mas todos os lugares da Paixão, que começam no Horto, regado com tanto sangue, e acabam na sepultura, onde o Senhor se deteve mais horas que em todos os outros. Não reparo na palavra cupiebat, que mais denota freqüência de desejos que de execução. O que resta de advertir é que, em dizer que visitava também os lugares do nascimento, dá testemunho, sem lho pedirmos, que as estações da Via-Sacra não eram de toda a vida da Senhora, pois peregrinava a Belém, em que, necessariamente, de ida, estada e volta, havia de gastar muitos dias; o demais, diz o mesmo santo que só o sabe Deus e o arcanjo São Gabriel, que sempre servia e acompanhava a Senhora; e também se pode ter por sem dúvida — como sempre podem muito os que assistem ao lado das majestades — que o mesmo São Gabriel procurasse nestas jornadas as de freqüentes visitas de Nazaré, para repetir aquela soberana missão, para a qual, entre todas as jerarquias dos anjos, fora ele o escolhido; nem a mesma Senhora se faria muito de rogar, para refrescar com a vista as suavíssimas memórias deste divino sacrário, e tornar a entoar nele, com os mes­mos júbilos, o seu cântico da Magnificat, sendo então peregrina daquela mesma casa, que depois com tão estupendo milagre quis também fosse peregrina.

Não foram estas sós as ausências que impediam as estações da Via-Sacra: outros impedimentos maiores tiveram, e de muito mais largo tempo, em toda a vida da Senhora. E, posto que a matéria, como tão antiga, e não tratada, seja escura, as luzes, que a Sagrada História acendeu, nos alumiaram estas, ajudadas sempre da cronologia dos tempos e anais eclesiásticos.

Menos de um ano depois da Ressurreição de Cristo, que foi no vinte e cinco de seu nascimento, e no dezenove do imperador Tibério, por ocasião dos milagres dos apóstolos, principalmente São Pedro e São João, com que muitos milhares se convertiam, e das disputas e vitórias de Santo Estêvão contra as sinagogas dos liber­tinos, cerinenses, alexandrinos, e outros sectários, se levantou em Jerusalém tal per­seguição contra os cristãos, que todos, excetos os apóstolos, saíram daquela cidade, e se passaram às províncias de Judéia e Samaria, e delas, não se dando por seguros, a outras mais remotas e estranhas: uns por conselho dos mesmos apóstolos, que sabiam quanto importava amainar as velas na fúria da tempestade, outros por vio­lência dos príncipes dos sacerdotes, cujo ódio mais principalmente se estimulava contra os antigos devotos e amigos de Cristo. Entre estes, foram metidos em uma barca sem vela nem remo os três irmãos tão célebres no amor do mesmo Senhor Maria Madalena, Marta e Lázaro, e juntamente com Marcela, a que disse: Beatus venter[50] — e José, que serviu com o seu sepulcro. Donde se faz muito provável que a Senhora, lembrada do meio que Deus tomara para livrar a seu Filho das mãos de Herodes, cujo filho, do mesmo nome, então reinava em Judéia, se retirara também com outros desterrados; e ajuda não pouco a esta conjectura o sepulcro de Maria Salomé, mãe de São João, que hoje se venera em Itália, na Cidade de Veroli, com tradição continuada desde aquele tempo de que, fugindo desta mesma perseguição, fora parar àquela terra, onde acabara a vida; e, sendo sua a mesma casa, onde junta­mente com ela vivia a mesma Senhora, verossímil é que ambas se retirassem, e que desse conselho fosse o filho de ambas, São João. Mas quando não tenha sucedido assim, e a Virgem Santíssima ficasse em Jerusalém, quem haverá que se persuada da sua mais que humana prudência e caridade, que em tempos tão perigosos para toda a Igreja, que então nascia, se pusesse todos os dias nas ruas e praças mais públicas de Jerusalém, e desde o pretório, onde Pilatos disse: Ecce Homo — como se dissesse também: Eis aqui sua Mãe — lhe fosse contando e seguindo os passos até o Monte Calvário?

Ambos estes argumentos se apertam mais com o que São Paulo escreve de si, e São Lucas dele. Diz de si São Paulo que era tão grande inimigo dos cristãos, que os perseguia até à morte, prendendo a quantos podia descobrir, homens, e mulheres, para os levar em ferros a Jerusalém, onde fossem castigados: Hanc viam persecutus sum usque ad mortem, alligans et tradens in custodias viros ac mulieres, ut adducerem inde vinctus in Hierusalem, ut punirentur (At. 22, 4 s) — onde nota São Crisóstomo que a razão ou maldade de Saulo não querer que os réus, que ele prendia, fossem castigados em Damasco, ou outras cidades, e por outros ministros, senão em Jerusa­lém, e pelos príncipes dos sacerdotes, era o conhecimento que tinha do seu maior ódio, crueldade e raiva, qual se não fartaria com menos, que com tirar a vida a todos os cristãos, assim como a tinham tirado a Cristo, e por isso confessava que os perse­guira até à morte. Isto é o que diz São Paulo de si. O que diz São Lucas dele ainda tem maiores circunstâncias: Saulus autem devastabat Ecclesiam per domos intrans, et trahens viros ac mulieres tradebat in custodiam (At. 8, 3). — Não só diz que perseguia Saulo a Igreja, senão que a devastava, palavra que mais significa o poder e assolação de um exército, que tudo mete a fogo e a sangue, que o furor e fúria de um homem, o qual era tão audaz e excessivo, que sem respeito a qualidade nem a sexo, entrava por todas as casas, e delas tirava presos homens e mulheres. O termo de que usa o original grego ainda explica mais, porque quer dizer domesticatim, ou per singulas domos, isto é, que corria, entrava, esquadrinhava uma por uma todas as casas de Jerusalém, sem perdoar a nenhuma. Veja-se agora se lhe escaparia a casa de Maria Salomé, ou de São João, a qual por todos os títulos era a mais indicada ou suspeitosa; e como poderia a Senhora, que morava nela, salvar-se deste incêndio universal, senão passando-se, como Lot, a outra Segor, sem parar nem voltar os olhos a Jerusalém. Tinha para isso o conselho de seu Filho, o qual disse: Cum auten persequentur vos in civitate ista, fugite in aliam[51]. —E tinha não só um, mas muito exemplos do mesmo Senhor, que em semelhantes perigos se retirou para os deserto de Efrém, para Cesaréia de Filipe, e para outros lugares, ou secretos e escondidos ou fora da jurisdição de Jerusalém, enquanto não chegava a sua hora. E como lhe constava à Senhora que seu Filho a tinha já canonizado por mártir nos tormentos do pé da cruz, e não queria que padecesse outro martírio violento, em que as mão sacrílegas dos homens se atrevessem ao decoro de sua pessoa, quem pode duvida que nesta ocasião, enquanto durava a força da tempestade, se recolhesse a algun porto mais seguro? E se isto é o que dita e persuade com demonstração a prudência em que juízo pode caber que neste mesmo tempo, em que não havia homem nem mulher que dentro em casa escapasse, a Senhora todos os dias saísse de sua casa publicamente, e fosse a andar a Via-Sacra? Os termos com que falava São Paulo, os poderes das suas provisões contra os que seguiam a Cristo, era prender os homens e mulheres de via: Si quos invenisset hujus viae viros an mulieres (At. 9, 2): é coisa não só estranha, mas ridícula, que sobre esta via acrescentasse a Senhor então outra via, e sobre tão manifesto perigo outro mais manifesto, qual era o d Via-Sacra.

No ano 39 de Cristo, o primeiro do imperador Calígula, e os três anos depois da conversão de São Paulo, veio a Jerusalém o mesmo apóstolo para ver a Sã Pedro, como ele refere no capítulo primeiro da Epístola aos de Galácia, e diz qu não viu então em Jerusalém, onde se deteve quinze dias, outro apóstolo mais que Pedro e a Jacobo, irmão do Senhor, que no estilo de falar dos hebreus é o mesmo qu primo: Post tres annos veni Hierosolymam videre Petrum, et mansi apud eum diebu quindecim. Alium autem apostolorum vidi neminem, nisi Jacobum fratrem Domir (Gal. 1, 18 s). — Donde se colhe que também neste tempo não estava a Senhora er Jerusalém, porque se ali estivera, assim como São Paulo diz que vira o irmão d Senhor, com muito maior razão diria que vira a Mãe do Senhor, nem deixaria d fazer muito honorífica menção, e gloriar-se muito desta soberana vista. O fim de ir ver Paulo a São Pedro não foi para o conhecer pelas feições do rosto, sobre as quais neste lugar faz uma elegantíssima descrição São Jerônimo; mas foi Paulo, diz o santo, ver a Pedro com a mesma tenção com que nós hoje lemos a Paulo, isto é, para o consultar: Nec puto apostolicae fuisse gravitatis, ut post tantam triennii praeparationem, aliquid humanum in Petro voluerit aspicere. His oculis Paulus vidit Cepha, quibus nunca a prudentibus, quibusque Paulus ipse conspicitur. — E se Paulo em Jerusalém consultava a São Pedro, quem duvida que também havia de consultar o oráculo da Virgem Maria, se ali estivera. Assim refere Lúcio Dextro, contemporâneo de São Jerônimo, no seu crônico dedicado ao mesmo santo, que o apóstolo São Tiago, tornando de Espanha, e tendo pregado de caminho em França, Bretanha e Veneza, foi dali a Jerusalém a consultar sobre matérias gravíssimas a Virgem Maria e a São Pedro: Ex Hispania rediens, Jacobus Galliam invisit, et Britaniam et Venetiarum oppida, ubi praedicat, et Hierosolymam revertitur de gravissimis rebus consultaturus Reatam Virginem, et Petrum. — Não estava logo em Jerusalém a Senhora no ano 39 de Cristo, em que lá foi São Paulo.

Todos os com que São Bernardo, Cartusiano, e outros, têm por legítimas as cartas de Santo Inácio Mártir, terceiro bispo de Antioquia, depois de São Pedro, que andam impressas no primeiro tomo da Biblioteca dos Padres Antigos, duas delas para a Virgem Santíssima, com nome de MARIA de JESUS, e uma da Senhora em resposta ao mesmo santo Bispo, todos, digo, os que receberem estas cartas, estão obrigados a crer que saiu a Virgem de Jerusalém naquele tempo, e que passou a Antioquia a visitar os cristãos daquela insigne igreja, onde primeiro que em Roma teve a sua cadeira o Vigário de Cristo, e onde se começam a chamar cristãos os que até então se chamavam discípulos. A carta da Senhora é a seguinte: Ignatio, dilecto discipulo, humilis ancilla Christi Jesu. Quae a Joanne audisti et didicisti vera sunt: illa credas, et illis inhaereas, et Christianitatis votum firmiter teneas, et mores et vitam voto conformes. Veniam autem cum Joanne te, et qui tecum sunt, visura: sta infide, viriliter age, nec te commoveat persecutionis austeritas, sed valeat ut exsultet spiritus tuus in Deo salutari tuo. Amen: A Inácio, amado discípulo, a humilde escra­va do Senhor. Todas as coisas que ouvistes e aprendestes de João, são verdadeiras; estas haveis de crer, e conservar firmemente a profissão do Cristianismo que recebestes, conformando a vida e os costumes com a mesma profissão: eu, em com­panhia de João, irei ver-vos, e a todos os que estão convosco: perseverai na fé, obraivaronilmente, e não vos mova a austeridade da perseguição, mas prevaleça e se alegre vosso espírito em Deus, vosso Salvador. Amém. — Até aqui a carta e a pro­messa de a Virgem Santíssima passar a Antioquia, que não podia faltar, assim como o prometeu.

Mas porque graves autores duvidam com bons fundamentos da legitimidade desta carta, deixando a viagem de Antioquia em opinião, é certo e sem dúvida que a Senhora, em companhia de São João, passou a Éfeso, cidade metrópole da Ásia Menor, onde alguns querem que, por virtude da verdadeira Rainha do Céu, fosse derrubado o famosíssimo templo de Diana Efesina, chamada da gentilidade, como consta da Escritura, Regina caeli. Desta jornada faz expressa menção o já citado Lúcio Dextro, dizendo no ano de Cristo 41: Eodem anno Joannes Theologus, comitante Beata Virgine, Ephesum proficiscitur. — Mas a autoridade irrefragável, e que tira toda a dúvida, é o testemunho do Concílio Efesino, o qual, na Epístola Sinodal ao clero de Constantinopla, diz assim no capítulo sexto: Naestorius impiae haereseos instaurator in Ephesiorum civitate, quam Joannes Theologus, et Sacra Virgo Deipara, quandoque incoluerunt, constitutus a Sanctorum Patrum et Episcoporum caetu ultro seipsum abalienavit[52]. — nas quais palavras afirma o Sa­grado Concílio que a Virgem Mãe de Deus e São João Evangelista viveram na cida­de de Éfeso, exagerando o crime da heresia de Nestório com a circunstância de se ter apartado da união da Igreja na mesma cidade em que São João a tinha fundado com sua doutrina, e a mesma Mãe de Deus santificado com sua presença. — Quanto tem­po ali a Senhora se detivesse não se sabe ao certo, posto que não podia ser breve, sendo a Ásia Menor a sorte do apostolado de São João, debaixo de cujo governo e direção estava o bispo da mesma cidade de Éfeso, o primeiro dos sete a quem São João escreveu em nome de Cristo as sete epístolas ditadas pelo Espírito Santo, no segundo e terceiro capítulo do seu Apocalipse; mas, para evidência do nosso inten­to, basta constar que a Senhora em todo o resto de sua vida, depois da morte e sepultura de seu Filho, não esteve sempre em Jerusalém, para continuar, como se supõe, a Via-Sacra do pretório ao Calvário, pois fez esta larga ausência, e tantas outras, e tão forçosas como fica dito.

CAPÍTULO XI

Prova-se com razões gerais que, ainda quando a Virgem Maria estava em Jerusalém, não continuou sempre, nem devia continuar a Via-Sacra.

O assunto deste capítulo fica demonstrado por partes no discurso de todos os precedentes; agora o provaremos em geral, com razões totalmente intrínsecas à pessoa e à matéria, sem dependências dos acidentes do tempo, em que muitas das referidas necessariamente se fundaram. Digo pois que, ainda que a Virgem Maria residira pacificamente por todo o resto de sua vida na cidade de Jerusalém, ou em outra notável do mundo, nem à modéstia e decoro pessoal da mesma Virgem, nem ao exemplo que devia dar e deixar a bendita entre as mulheres a todas as do mesmo sexo, convinha, nem era decente, que todos os dias saísse, e fosse vista em público a continuar a Via-Sacra.


[1] Horat. in Art.

[2] Interpretação favorável, que agrada aos ouvidos do povo, mas não  verdadeira (Hier. in c.17S. Matt.).

[3] Para que voltemos para casa com paz, saúde e alegria (ltiner Eccles.).

[4] Eis aqui estamos nós, que deixamos tudo (Mt. 19, 27).

[5] S. Brigit. Revel. 1. 2, c. 10.

[6] Nazianzen. Traged. de Chr. Paciente.

[7] Nazianz, sup

[8] Não vim distribuir a lei, mas sim a dar-lhe cumprimento (Mt. 5, 17).

[9] Que está perto de Jerusalém, na distância da jornada de um sábado (At. 1, 12).

[10] Rogai que não seja a vossa fuga em tempo de inverno, ou em dia de sábado (Mt. 24, 20).

[11] Ita Cornel. Act. 1, 12.

[12] Sol, não te movas (Jos. 10, 12).

[13] Sol, cala-te (ibid. text. hebr.).

[14] Emudece (Mc. 4, 39).

[15] Bem-aventurados os que se conservam sem mácula no caminho, os que andam na lei do Senhor (SI. 118, 1).

[16] Naz. in Trág.

[17] Sever. in Cat.

[18] Largando o lençol, lhes escapou nu (Mc. 14, 52).

[19] Suar. t. 2 in 3 p. d. 15, sect. 1.

[20] Suar, in Comentaria ad q. 32 D. Thomae, atr. 4.

[21] Pois se fez Filho de Deus (Jo. 19, 7).

[22] Porque todos os que tomarem espada, morrerão a espada (Mt. 26, 52).

[23] Segundo as muitas dores que provou o meu coração, as consolações alegraram a minha alma (SI. 93, 19).

[24] Volta: sê semelhante, amado meu, à cabra montesa e ao veadinho (Cânt. 2, 17).

[25] Apressa-te a tirar os despojos; faze velozmente a presa (Is. 8, 3).

[26] O meu espírito se alegrou por extremo em Deus meu salvador (Lc. 1, 47).

[27] Ressuscitou o dominador da morte, exclamando o anjo coruscante: basta de lutos e de lágrimas, pois muito já foi dedicado à dor.

[28] Quando uma mulher pare, está em tristeza; mas depois que ela pariu já se não lembra do aperto, pelo gozo que tem de haver nascido ao mundo um homem (Jo. 16, 21).

[29] Foram entregues ao esquecimento as primeiras angústias, e não persistirão na memória as primeiras calamidades, nem subirão sobre o coração. Mas vós folgareis e exultareis para sempre (Is. 65,16 ss).

[30] S. Hier.

[31] Levanta-te, glória minha; levanta-se, saltério e cítara; levantar-me-ei de manhã (SI. 56, 9).

[32] Eu sou para o meu amado, e ele para mim é que se volta (Cânt. 7, 10).

[33] Eu te glorificarei, Senhor, porque me recebeste, e não comprazeste a meus inimigos em meu dano (SI. 29, 1).

[34] Senhor, tiraste do inferno a minha alma; puseste-me a salvo dos que descem ao lago (ibid. 4).

[35] De tarde estaremos em lágrimas, e de manhã em alegria (ibid. 6).

[36] Que proveito há no meu sangue, se desço à corrupção? Porventura dirá o pó o teu louvor (ibid. 10)?

[37] Ide, dai as novas a meus irmãos, para que vão a Galiléia, que lá me verão (Mt. 28, 10).

[38] Para Galiléia, para cima de um monte onde Jesus lhes havia ordenado (Mt. 28, 16).

[39] Lyran. Dionysius, Bonavent. Jansen.

[40] Não digais a pessoa alguma o que vistes, enquanto o Filho do homem não ressurgir dos mortos (Mt. 17, 9).

[41] Depois foi visto por mais de quinhentos irmãos (1 Cor. 15, 6).

[42] Aos quais se manifestou a si mesmo vivo com muitas provas (At. 1, 3).

[43] A este ressuscitou Deus ao terceiro dia, e quis que se manifestasse, não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia ordenado antes: a nós, que comemos e bebemos com ele, depois que ressuscitou dentre os mortos (At. 10, 40 s).

[44] Aparecendo-lhes por quarenta dias, e falando-lhes do reino de Deus (At. 1, 3).

[45] Rupert. lib. 2 et 5 in Cant. August. Ser. 6 de Temp. S. Ans. 1. 4 de Virtut. B. V Euseb. Emiss. Ser. 2 Nativ. Ambr. 1.6 de Instit. Virg c. 7.

[46] Rupert. 1. 2 in Matth.

[47] Rupert.1, 7 de Divin. Offic. c. 25.

[48] Ordenou-lhes que não saíssem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, que ouvistes — disse ele — da minha boca. Porque João, na verdade, batizou em água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo não muito depois destes dias (At. 1, 4 s).

[49] Porque à hora que não cuidais virá o Filho do homem (Lc. 12, 40).

[50] Bem-aventurado o ventre (Lc. 11, 27).

[51] Quando porém vos perseguirem numa cidade, fugi para outra (Mt. 10, 23).

[52] Concil. Ephes, ad Cl. Constata.