Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Voz de Deus ao mundo, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

VOZ DE DEUS AO MUNDO

O mundo, ou se pode considerar como mundo natural, ou como mundo político, e com um e outro fala este cometa ou voz de Deus.  que diz ou o que significa ao mundo natural são intemperanças do ar, ventos, tempestades, naufrágios, secas, esterilidades, fomes, terremotos, pestes, e todas as outras calamidades mais que ordinárias, a que está exposta a nossa mortalidade.

Este é o sentimento comum de todos os filósofos e astrólogos, com Ptolomeu e Aristóteles, fundados na experiência, a qual em tantos anos depois deles está muito mais aprovada.  modo destes efeitos explica Keplero com uma semelhança acomodada segundo a opinião comum, porque, assim como os humores nocivos do corpo humano concorrem e se ajuntam em um lugar, onde geram algum apostema, assim as exalações sublunares, viscosas, secas, crassas e pingues se ajuntam na parte onde se acende o cometa, e daquele grande apostema saem os influxos de que se causam estes perniciosos efeitos.

 Os cometas do ano de quinhentos e trinta e oito, novecentos e quarenta e cinco, e mil trezentos quarenta e sete, causaram secas, esterilidades e fomes, e uma delas foi tão grande, tão extraordinária e cruel, como refere Ilácio, que a miserável gente se cortava as próprias carnes, e as comia, para sustentar de algum modo a vida, ou dilatar a morte.

 Os cometas do ano de quatrocentos antes da Redenção, e os de novecentos oitenta e três, e mil quinhentos e trinta depois de Cristo, causaram inundações, e cresceu tanto o mar em diversas partes, que na Grécia soverteu algumas ilhas inteiras, que nunca mais apareceram, e em Holanda, Zelanda e Brabante muitas cidades, de que ainda hoje se vêem no meio do mar os cumes das torres. Os cometas do ano de mil duzentos cinqüenta e quatro, e mil duzentos sessenta e oito causaram tempestades de ventos furiosíssimos, e este último com tanto excesso, que a força e ímpeto dos tufões na Germânia não só arrancava as árvores e as casas, e as levava pelos ares, mas tirava de seus lugares os montes, ou os arrasava.

 Os cometas do ano de sessenta e quatro, e mil duzentos noventa e oito causaram terremotos, e, não falando no primeiro, que derrubou e assolou muitas cidades na Acaia e Macedônia, como escreve Sêneca, o segundo, tendo aparecido nos últimos dias de novembro daquele ano, em dia de Santo André, abalou de repente todo o globo da terra, e no mesmo momento em diversas partes e regiões do mundo caíram os edifícios com muitas ruínas.

 Os cometas de seiscentos e três, e seiscentos vinte e seis, setecentos quarenta e cinco, novecentos oitenta e três, causaram pestes, e a do cometa de mil trezentos quarenta e sete, que foi universal, fez tal estrago, que em três anos que durou, como refere Petrônio, matou a terceira parte de todo o gênero humano, e, sendo todos estes acontecimentos tão notáveis e tremendos, o que muito se deve agora advertir é que a maior parte dos sobreditos cometas, como consta dos autores que os observaram, igualaram na grandeza ao que temos presente, para que repare, considere e tema o mundo quais podem ser seus efeitos, se forem, como naturalmente parecem, iguais à proporção de sua grandeza, e esta é a primeira significação desta voz de Deus ao mundo.

 A segunda, e que mais pertence ao governo e conservação ou ruína política do mesmo mundo, se divide em três partes. A primeira significa guerra; a segunda, mudança de impérios; a terceira, morte de príncipes.

 Quanto à significação das guerras no presságio dos cometas, ouça a cabeça do mesmo mundo o que experimentou nas suas, e será pela melhor voz da língua romana, no primeiro das Geórgicas:

Non alias caelo ceciderunt plura sereno

Fulgura, nec diri toties arsere cometae.

Ergo inter sese partibus concurrere telis

Romanas acies iteram videre Philippi;

Nec,fuit indignum superis bis sanguine nostro

Aemathiarn et latos Haemi pinguescere campos[1].

 cometa do ano de quatrocentos e oitenta antes de Cristo - que, como dizemos, foi o primeiro de que há notícias nas histórias - anunciou a guerra e exércitos de Xerxes contra a Grécia, a qual começou com o maior e mais estrondoso aparato que viu o mundo, e acabou com igual infelicidade.  cometa do ano trezentos cinqüenta e seis também influiu as guerras em que Potidéia no Itírico foi expugnada por Parmenião, general de el-rei Filipe de Macedônia, e Tebas, pátria de Hércules, famosíssima metrópole de Boécia, totalmente arrasada por Alexandre, seu filho, com morte de noventa mil homens, e trinta mil prisioneiros. A guerra de Estilicon contra os getas também foi anunciada pelo cometa de quatrocentos e cinco. A de Carlos Martelo contra os sarracenos, pelo cometa de setecentos vinte e seis. A do imperador Lotário contra seus irmãos, pelo cometa de oitocentos quarenta e três. A do grande Tamerlão contra a Ásia, pelo cometa de mil duzentos e quarenta. E apenas tem havido cometa que não anunciasse guerras, como também se pode conjecturar do que temos diante dos olhos, pois se mostra a todo o mundo em figura de espada.

 E que os cometas prognostiquem igualmente mudança de impérios, não há coisa mais vulgar na opinião comum, nem mais célebre nas Escrituras. Tácito, no livro catorze, falando do cometa que apareceu no tempo de Nero: Inter quae et sidus a ff ulsit, de quo vulgi opinio est tanquam mutationem regnis pretendat[2]'. - Lucano, no livro primeiro:

   ........Crinemque timendi

   Syderis, et terris mutantem regna cometes[3].

E Sílvio Itálico, livro oitavo:

 ........... Non unus crine corusco

Regnorum eversorum rubuit lethale cometes[4]

.

E Valério Flávio, livro sexto:

 ........... Iratoque vocati

A Jove fatales in regna injusta cometae[5].

onde se deve notar que disse in regna injusta com grande juízo, porque, sendo oráculo do Espírito Santo que regnurn a gente in gentem transfertur propter injustitias[6]-contra os reinos que se possuem, ou governam injustamente se acen­dem no céu os cometas que lhes prognosticam as mudanças. A mudança da Repú­blica Romana, e o princípio do império dos Césares, foi prognosticada pelo come­ta do ano de quarenta e quatro antes de Cristo, o qual cometa, ou sua imagem, se colocou em Roma no templo, entre os deuses, como refere Plínio: Cometes in uno totius orbis loco colitur in templo Romae, adinodum faustus divino Augusto - mas, posto que fausto para ele, fatal e infaustíssimo para a república. A mudança do Império da Ásia para a Grécia, pela vitória de Alexandre contra Dado, também a prognosticou o cometa do ano de trezentos trinta e seis. A mudança e total des­truição da República dos hebreus por Tito e Vespasiano, o cometa do ano de seten­ta depois da Redenção. A mudança da liberdade de Itália e Reino dos Longobardos, que a dominaram, o cometa do ano de quinhentos e setenta. A mudança do Impé­rio Persiano, conquistado pelos sarracenos, o cometa do ano de seiscentos trinta e dois. A mudança do Império Romano Ocidental, transferido de Roma, e passado a França e Alemanha no tempo de Carlos Magno, o cometa do ano de oitocentos. A mudança do Império Oriental, conquistado em Constantinopla pelos latinos, o cometa do ano de mil duzentos e um, em que também teve princípio o Império dos Tártaros, e a divisão do Império de Trapisonda; e para que em uma mudança compreendamos muitas, e as maiores que viu e ainda padece o mundo na África, na Ásia e na Europa, o cometa do ano de seiscentos e três, seis meses inteiros esteve ameaçando o nascimento de Mafamede, cujas armas e infame lei de mais de mil anos sujeitaram tantos reinos e províncias, quantas nelas têm perdido os cristãos, e os gentios também.

 Ponha agora os olhos o mundo em si mesmo, e faça a prudente reflexão que deve sobre o estado em que ao presente se acha, e veja se está aparelhado e disposto em toda a parte para grandes mudanças e novidades, assim pela pouca ou nenhuma justiça das coroas que o governam, como pelos poucos fiadores com que se acham as vidas dos mesmos príncipes, uns sem nenhuma sucessão, outros com um só sucessor, e outros sem esperança de os ter, bastando que falte uma destas colunas para que se mude o sistema do mundo político. E se as estrelas têm sobre ele algum poder ou significação, todos os matemáticos antigos concordaram em que, depois da conjunção de Saturno e Júpiter, que foi no ano de oitenta e três deste século, haverá grande mudança de domínios. Assim o refere Argolo nas suas efemérides, sendo muito para notar que não faz outra notação em todas elas: as palavras com que o diz são as seguintes, fol. : Cum celeretur conjunctio superiorum Saturni et Jovis in trigono ígneo, antiquorum consensu mutationes magnae contingent, et generales constitutiones, ac de facili dominiorum mutationes.

 E para que passemos à terceira parte da significação dos cometas, saiba também o mundo que o golpe que eles ameaçam - ainda que não te­nham figura de espada, como o nosso - sempre ou quase sempre é fulminado às cabeças por Deus. Isto é o que deixei de declarar na sentença alegada de São João Damasceno, onde expressa e distintamente afirma que os cometas são instituídos por Deus para significar a morte dos reis: Aggignuntur autem cometae, signa quaedam interituum regnum. -  mesmo diz a Sibila Eritréia, no texto que mais abaixo hei de citar, e há mais de mil e quinhentos anos que assim o tinha notado Suetônio na morte do imperador Cláudio, da qual diz: Praesagia mortis ejus fuerunt exortus stellae crinitae, quam cometam vocant[7].

- E era esta opinião tão assentada entre os romanos que, aparecendo um co­meta no tempo de Nero, todos logo, como escreve Cornélio Tácito, começa­ram a tratar de quem lhe havia de suceder no império: Vulgus passim, quasi eo jam depulso, quisnam diligeretur inquirebat. - Mas o que mais confirma este geral conceito e suposição dos homens é a multidão dos exemplos.  cometa do ano de Cristo catorze - para que o digamos assim - matou a Augusto César; o do ano de setenta, a Uvilhelmo; o de duzentos e três, a Severo; o de trezentos setenta e três, a Juliano Apóstata; o de quatrocentos cinqüenta e quatro, a Teodósio; o de quinhentos setenta e um, a Alboíno, rei dos longobardos; o de oitocentos trinta e sete, a Pepino, rei de França; o de mil duzentos e catorze, a Uvilhelmo, rei da Escócia; o de mil trezentos e um, a André, rei da Hungria; o de mil quatrocentos cinqüenta e seis, a Ladislau, rei de Polônia; o de mil quatrocentos cinqüenta e sete, a Afonso, rei de Nápoles, e outros muitos reis e imperadores, que deixo, todos mortos debaixo de dife­rentes cometas, ou naturalmente, e de doença, como os últimos que referi, ou por traição e aleivosia, como Cláudio, morto com veneno; ou violentamente, como o imperador Maurício, morto às mãos de Trocas, juntamente com três filhas; ou por desastre, como Filipe, o Formoso, rei de França, morto da que­da de um cavalo andando à caça; ou por intemperança, como Amurates, grão­turco farto de vinho, e tão merecedor que o matasse Mafoma como Cristo; ou por alguma veemente paixão, como o imperador Oton II, que morreu de tris­teza, sendo melhor que fora de contrição.

 Isto é o que costumam influir os cometas sobre as vidas reais, e o que hoje deve fazer todo o príncipe de juízo e cristandade à vista deste nosso, é ver-se nele, como em um espelho da mortalidade, de que não estão isentos os príncipes, antes mais sujeitos.  imperador Vespasiano, vendo o cometa do ano de setenta e seis, que era crinito, disse jocosamente que não vinha para ele, senão para o rei dos partos, que usavam grandes gadelhas; mas o efeito mostrou que para o mesmo que o desprezava vinha destinado.

 Cuide cada um dos príncipes em particular - e melhor será se se persuadir a isso: que para ele é enviado este sinal do céu, e com ele fala; e quando se não ache com alma e consciência tão disposta, como Santo Eduardo, rei de Inglaterra, cuja morte também a anunciou um co­

meta, que foi o de mil sessenta e seis, ao menos procure imitar ao impe­rador Ludovico Pio, o qual, vendo o cometa do ano de seiscentos trinta e nove, desde logo, sem enfermidade, se aparelhou para morrer, e acabou a vida tão piamente, como merecia o nome que lhe deu a fama. Carlos Magno, aparecendo em sua vida o cometa de oitocentos e catorze, per­guntou a Eginardo, seu filósofo e matemático, que significava aquele cometa. E corno lhe respondesse com as palavras de Jeremias mal inter­pretadas: Nolite tirnere a si gnis caeli quae timent gentes[8] - o santo e prudente imperador lhe respondeu que ele não temia aquele sinal, senão a Deus, que o avisava por ele, para que ajustasse a conta que lhe havia de dar, corno verdadeiramente deu, morrendo no mesmo tempo. Igual foi a prudência do imperador Carlos V, que sempre anda junta com os grandes corações: viu o cometa do ano de mil quinhentos cinqüenta e seis; infe­rindo dele que era chegado o fim de sua vida, fez-lhe este verso:

His ergo indiciis m.e inea fata vocant[9].

Keplero, na sua Fisiologia, diz que debalde temeu Carlos aquele come­ta, porque viveu alguns anos depois dele; e eu dissera que porque o temeu por isso viveu, porque é condição da morte fugir dos que a temem, ou verdadeira­mente generosidade de Deus não executar o golpe nos rendidos.

 Imitem, pois, a estes dois grandes Carlos todos os príncipes, e nenhum se fie da sua idade, nem se engane com o seu poder, por grande que seja, porque, para desfazer em um momento todas as maiores potências do mundo, não haverá mister o nosso cometa já alegado de Xerxes. Entre a gente militar, e de serviço, constava o seu exército de cinco milhões de homens e cinco mil naus de guerra; e vinha tão soberbo com este imenso aparato que, porque se lhe perderam duas ou três naus em uma tormenta no Helesponto, mandou lançar um grilhão naquele mar, e dar-lhe cem açoites; porém, Deus o açoitou a ele, acudindo pela injúria do seu elemento com tal demonstração que, perdida toda a armada naval, e a maior parte do exército da terra, venci­do, e fugindo ignominiosamente, tornou Xerxes para a Pérsia, onde, não muito depois, o matou um seu próprio capitão, e estes foram os efeitos daquele primeiro e fatal cometa.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Georg., lib. ,

[2] Entre as quais apareceu uma estrela, a qual diz o povo anunciar mudanças de impérios.

[3] Lucanus, lib. I,

[4] Sílvio Ital., lib. .

[5] Valei: Flavius, lib. VI,

[6] Um reino é transferido de unia nação a outra por causa das injustiças (Eclo. , ).

[7] Foi presságio de sua morte o aparecimento de una estrela que chamam cometa.

[8] Não temais os sinais do céu corno os gentios. 

[9] Por estes sinais me chama o destino.