Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Voz de Deus à Bahia, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

VOZ DE DEUS À BAHIA

Se as vozes e avisos de Deus pelas línguas dos cometas são favores da sua Providência, não podia a Cidade do Salvador, antes de experimentar os trabalhos do resto do mundo, ser menos favorecida do cuidado e patrocínio de tão soberano nome, sendo a Bahia uma colônia tão notável daquele reino ou império que o mesmo Deus chamou seu.

No fim do ano de mil seiscentos e dezoito apareceu um cometa na Bahia, que foi visto em todo o mundo, e observado de todos os matemáticos, como consta de seus memoriais. Era um formoso meteoro, o qual, como precursor do sol, amanhecia três horas antes do mesmo Oriente. A sua grandeza se estendia até a quarta parte do hemisfério: a figura era de uma perfeitíssima palma, a cor das folhas da mesma árvore, depois que o sol, que a seguia, lhe amadurecia a verdura. Todos naturalmente diziam que a palma prognosticava vitória; mas o mesmo cometa, que, direito e levantado, se mostrava no Brasil como palma, na Europa, inclinado e atravessado, representava a figura de um alfange de fogo; e tudo era, porque debaixo das neves e gelo de Holanda, como nas entranhas e fornalhas do Etna, se estavam no mesmo tempo forjando e acendendo um vulcão, que havia de abrasar a Bahia e o Brasil.

Foi o caso que no ano de mil e seiscentos e nove, reinando Filipe III, e sendo primeiro ministro da monarquia o duque de Lerma, fez Espanha trégua com Holanda por tempo de nove anos, nos quais, à imitação da Companhia Oriental, se ordenou e levantou no Banco de Amsterdã o outra com o nome de Ocidental, e, com intento de conquistar primeiro a Bahia, e depois o resto do Brasil, tanto que se acabasse o tempo da trégua. Este se acabou no fim do ano de mil seiscentos e dezoito, e no mesmo fim pontualmente apareceu o fatal e enigmático cometa.  primeiro golpe da figura do alfange descarregou sobre a Bahia, como cabeça do Estado, com uma poderosa armada, e a conquistou sem armas, porque ela não as tinha; e, não conservado, mas lançado dali o inimigo, com segundo e maior poder, quase sem contradição nem resistência, levou também Pernambuco e o Recife, mais defensável, mas igualmente mal defendido. Foram conseqüências desta desatinada fatalidade a Paraíba, o Rio Grande, o Ceará e o Maranhão, da parte do Norte; e da parte do Sul, com maiores e mais custosos intervalos, tudo o que corre por costa, até o grande rio de São Francisco, com que no mapa da América apareceu a metade do Brasil com o nome de Nova Holanda, ganhado no mesmo tempo, como tão importante, o Reino de Angola, na oposta Etiópia, de cujo triste sangue, negras e felizes almas, se nutre, anima, sustenta, serve e conserva o Brasil.

Toda esta torrente de desgraças e infortúnios, posto que com freqüentes socorros de Portugal, Castela e Itália, durou por espaço não menos que de trinta anos, não tendo porém número, nem cabendo nas histórias que se escreveram, as mortes, os estragos, os incêndios, as ruínas, as perdas, as destruições de casas riquíssimas, de famílias ilustres, e, o que mais era para sentir, de honras em todo o tempo sagradas, agora afrontadas e profanadas por suma crueldade e violência, sem distinção de sexo nem idade, ardendo entretanto a mais pertinaz e furiosa guerra que nunca viu o mundo, sem tréguas de inverno nem de verão, de dia nem de noite, de campanha aberta nem bosque cerrado; as batarias, os assaltos, os encontros contínuos; batalhas na terra, batalhas no mar; no mar as armadas derrotadas, na terra os exércitos desfeitos, perdendo-se sempre de uma e outra parte o poder, mas de ambas nunca perdida a esperança, para que fosse a guerra sem fim, como o serão as cintas da famosa Holanda, competidora - fora de Lisboa - não só da Bahia, mas até de Goa, quando mais florente.

Isto é o que prognosticava o cometa da Bahia, e todos estes horrores tão medonhos os que encobriram as sombras daquela palma, a qual, porém, não esquecida da sua melhor figura, chegado o ano de mil seiscentos cinqüenta e quatro, se mostrou tão verdadeiramente palma, e tão prodigiosamente vitoriosa que, levantando-se, e pelejando só as relíquias dos pernambucanos contra toda a Nova Holanda, defendida e presidiada com dezenove fortes reais, a venceram toda de Norte a Sul, e de cabo a cabo, reconquistando em dois dias tanta terra quanta se não podia andar a bom passo em quatro meses. Mas se aquele teu primeiro cometa, ó Bahia, debaixo da figura de palma, dissimulava e encobria trinta anos inteiros de tantos trabalhos, calamidades, assolações, perdas irreparáveis, que ainda duram, e tantos rios de sangue e mortes semnúmero, o que agora tens diante dos olhos em figura de espada, que cuidas que te pode prognosticar, e que te está dizendo Deus por ele?

Antes de eu o ver, chegaram os ecos do seu aparecimento a este meu deserto, publicando que era horrendo e formidável; mas logo no dia seguinte se mudaram estes medos e prognósticos infaustos em auspícios felizes, dizendo os que melhor deviam entender-lhe a língua, que nada tinha de formidável nem horrendo; e, presumindo que claramente o provavam, por ele ser claro, e não rubicundo, e sem sinal nem mancha alguma de sanguinolento, antes diáfano, transparente e limpo, como se a sobredita palma não fora da mesma cor, e como se a espada, por ser reluzente, não ferisse. Queira Deus que não sejam estes intérpretes joviais como Sêneca, que, por adular o seu discípulo Nero, disse que o cometa que apareceu no seu tempo tirara a infâmia ou má opinião com que os cometas andavam infamados: Cometis detraxit infamiam. - Mas esta adulação, tão indigna da inteireza e severidade estóica, veio ele a pagar com a vida, mandado matar ou morrer pelo mesmo Nero, só com eleição, por ser seu mestre, de escolher o gênero da morte. O cometa do ano de cento quarenta e seis antes de Cristo não era rubicundo nem escuro, senão muito claro, como refere o mesmo Sêneca: Clarum lumen et nitens - mas nem por isso deixou de ser fatal e infausto às duas famosas cidades de Cartago e Corinto, ambas destruídas e assoladas no mesmo tempo. O cometa do ano de quarenta e quatro, também antes de Cristo, foi claríssimo; dele diz Plínio: Oriebatur circa undecimam horain, clarusque, et omnibus terris conspicuus fuit[1]; e se acaso esta claridade demonstrava que Júlio César, cuja morte acompanhou, havia de ser colocado entre os deuses, a mesma morte foi tão desastrada, improvisa e cruel como todos sabem. O cometa do ano de trezentos noventa e dois depois de Cristo, além da morte do imperador Valentiniano, prognosticou grandes males a todo o mundo, e a sua claridade era tanta que não cedia à da Estrela da Alva, junto da qual saía. Uma e outra coisa diz Nicéforo: Tum vero prodigia insólita visa sunt, quae futura orbi mala pertenderunt: primo namque inopinata et insolens stella in caelo prope luciferum refulgens apparuit, quae quia propter corruscantes radios ingens erat, et lucida, non admodum lucifero cessit. – Não pudera dizer mais Nicéforo se escrevera o horóscopo do nosso cometa, e lhe levantara a figura na mesma hora do seu nascimento.

Em conclusão, persuade-se à Bahia que não há cometa que prognostique grandes calamidades, e isto é que lhe ameaça e está dizendo Deus pela voz do cometa presente. Tertuliano, no livro Ad Scapulam, tendo referido vários cometas daquele tempo, diz: Omnia haec signa sunt imminentis irae Dei: que todos são sinais da iminente ira de Deus. - Claudiano:

Et numquam terris spectatum impune cometen[2].

E Manílio:

Numquam futilibus excanduit ignibus aether[3].

Donde veio a ser provérbio entre os gregos: Nullus cometes visus, qui malum non, ferat: Nunca foi visto cometa que não trouxesse e prognosticasse mal. - Nem faz contra a verdade universal desta experiência chamarem-se felizes e faustos alguns cometas, porque, ainda que o fossem para certos príncipes e nações, para outras, que deram matéria a essas fortunas, todos foram fatais e infaustíssimos. Os que mais se celebram em toda a antiguidade são os de Alexandre Magno, Mitridates e Augusto César; mas o primeiro foi o incêndio de Ásia, o segundo o flagelo de Itália, e o terceiro o jugo de todo o mundo. Acrescento que nos tais casos, até os vassalos do príncipe triunfante são calamitosos na sua felicidade, porque, se os estranhos padecem as vitórias, os vassalos sustentam as guerras: os soldados com o sangue das veias, e os que não são soldados com o dos tributos; e não só os vencidos, senão também os vencedores, como a lima quando corta o ferro, todos padecem. E se estes são os efeitos dos cometas faustos, felizes e propícios, quais serão os dos infaustos, infelizes e perniciosos?

Vindo ao nosso cometa, a primeira circunstância com que apareceu, foi que, sendo em figura de espada, mostrava só a lâmina ou a folha, mas não os cabos ou punhos dela; e isto mesmo que ocultava aparecendo, o faz mais tenebroso. Os punhos e cabos da espada, que vem do céu, não os meneia um só impulso, nem os governa uma só mão, senão duas, uma invisível, outra visível: a invisível, que é a de Deus, e a visível, que é a do inimigo; e, sendo que este se vê e conhece, ou pela pessoa ou pela nação, no caso do nosso cometa, e da sua espada, se ignora e encobre. Antes da famosa batalha dos hebreus contra o exército de Madião, contava um soldado a outro que vira em sonhos rodar do céu um meteoro, o qual, dando nas tendas do seu general, as derrubava e punha por terra; ao que respondendo o companheiro disse: Non est hoc aliud, nisi gladius Gedeonis (Jz. 7, ): Isso não é nem significa outra coisa, senão a espada de Gedeão. - E verdadeiramente Gedeão era o que governava as armas dos hebreus. Deu-se, enfim, a batalha de noite, e as vozes que se ouviram entre o som das trombetas eram somente: Hic est, gladius Domini et Gedeonis (ibid. ): Esta é a espada de Deus e de Gedeão. - De sorte que, sendo a espada uma só e a mesma, os punhos e os cabos dela eram meneados por duas mãos, a de Deus e a de Gedeão. Porém, isto que pública e claramente se sabia daquela espada, na do nosso cometa está totalmente oculto, porque, ainda que sabemos que uma das mãos que a move é a invisível de Deus, a visível, e do inimigo, ou de Gedeão, que a há de menear juntamente, não sabemos qual seja ou qual haja de ser.

Este é o estado a que nos tem reduzido aquela dificultosa política, que há tantos anos observamos depois da guerra universal de Europa. Não há nem pode haver resolução mais cristã nas guerras que a neutralidade, porque é querer paz com todos; mas debaixo desta resolução ou cristandade está escondido o maior perigo, ou um dos maiores: se não quero fazer companhia, arrisco-me a ficar só, e, segundo a sentença de Salomão: Vae soli[4]. - Se quero ser amigo de todos, arrisco-me a ter a todos por inimigos, segundo a sentença de Cristo: Qui non est mecum, contra me est[5] - e é terrível gênero de perplexidade temer sem saber a quem, e, bastando um só inimigo para o temor, não haver algum entre tantos para a cautela. Isto é o que ameaça à Bahia o seu cometa, encobrindo-lhe nos punhos da espada qual é a mão visível de que se pode recear. Onde deve muito advertir o mesmo receio, que qualquer que for esta mão, ainda que seja muito fraca, como há de menear a espada juntamente com a de Deus, é impossível resistir-lhe. O mesmo Gedeão, que alcançou a famosa vitória, era tão irado, que atualmente se estava fazendo o alforge para fugir dos madianitas; mas como a espada com que pelejou era de Gedeão e juntamente de Deus, não teve resistência. E será grande desgraça, Bahia, que, prezando-se de cristã, não entendas uma verdade que conheceram até os gentios. O mais invencível homem que houve no mundo foi Aquiles, caldeado na lagoa Estígia, e por isso impenetrável a todas as armas; e, contudo, matou-o Páris, que nenhuma coisa tinha de valente. Por quê? Porque estando - dizem os gentios - com a seta embebida no arco para fazer tiro a Aquiles, veio o deus Apolo, e, ajuntando a sua mão com a de Páris, saiu de ambas a seta com tal força, que lhe não pôde resistir a suma valentia; o mesmo sucederá a qualquer mão, por fraquíssima que seja, e que mova os punhos da espada que vemos. Isto é o que nos encobriu o cometa: vejamos agora o que nos descobre: assim como encobriu os cabos da espada, assim descobre a folha até a ponta; e qual será, Bahia, a significação? Se, apartando os olhos do céu, os ponho em ti, parece-me que a significação é de guerra, porque vejo que abres fossos e levantas muros. Mas quando vejo nascer o cometa, como nasce, entre os risos da aurora, entendo que se está rindo desta sua fábrica. Os muros, como os cintos, não são muros enquanto se não fecham; e quando a necessidade que há deles espere os quarenta anos que demanda a obra, contra o céu, que combate lá de cima, não valem muros. Mais te digo, e é que, considerando-te ou fingindo-te murada, ainda assim, vestida de pedra e cal, te não podem defender teus muros, porque tu não estás sempre onde eles te cercam. A Bahia, como as outras cidades do Brasil, só seis meses do ano estão sobre a terra; os outros seis andam em cima da água, indo e vindo de Portugal; e nesta campanha imensa do oceano mal te podem defender os muros que cá ficam, não te digo só dos ventos e tempestades, mas de outros perigos e encontros mais para temer que os elementos; e como à ida nos teus frutos levas as delícias para o gasto, e à vinda no retorno trazes as vaidades para o luxo, não é tão devota esta navegação que convide à sua defensa os anjos da guarda.

Qual será logo a verdadeira significação desta espada? Diz Manílio que o certo juízo dos cometas se há de fazer olhando para os sinais e para os efeitos:

Sic Deus instantes fati rniseratus, in orbern Signa per effectus, caelique incendia mittit[6].

Os efeitos que vimos na terra deste sinal do céu foram três mortes, mais repentinas que apressadas, nas quais se compreenderam ambos os sexos, masculino e feminino, e ambos os estados, eclesiástico e secular, e o eclesiástico primeiro, porque Deus costuma começar os castigos por sua casa: Incipit judicium a domo Dei. - E se acaso tem parado estes efeitos - o que eu não sei neste deserto - Davi declarou com certeza o misericordioso motivo desta suspensão: Nisi conversi fueritis, gladium suum vibrabit[7]. - Este castigo é condicional, e está Deus com a espada levantada, e ameaçando o golpe, esperando a ver se nos emendamos, ou para ferir e cortar com a espada, ou para a meter na bainha. Dizem os que têm mais aguda vista que, assim como esta espada escondeu os punhos, assim está com a ponta, ou tocando, ou apontando para a constelação chamada Hidra: a Hidra é aquela bicha de sete cabeças, que nasce da água, como declara o mesmo nome, e por mar veio ao Brasil haverá dez anos. Como tem sete cabeças, e outros tantos venenos, por isso se não tem atinado com a origem e qualidade do mal, nem com o remédio dele; e se desde princípio em que entrou no Brasil esta bicha, continuara até hoje, quão despovoada e acabada estaria a Bahia, e tudo o mais de que ela é cabeça!

Isto é o que descobre a espada do céu, e - com particular mistério e energia - no mesmo tempo de outros descobrimentos; quando imos descobrir os enganos da fama, descobriu-nos o céu os desenganos da vida; não estão as minas nos cerros, estão no céu. Estes ameaços do céu também são e se chamam minas; e o pior é que imos buscar o salitre ao sertão, quando o deixamos na cidade. O salitre, de que se acendeu o fogo daquela espada, são os pecados da Bahia, e se não, ouça ela a prova desta verdade no seu e tantas vezes alegado cometa, quando apareceu o de mil seiscentos e dezoito: uns chamaram-lhe terror, e outros error dos que assim o cuidavam. Vivia então Erício Puteano, o qual, excitando a questão entre um e outro nome, tão parecidos e tão contrários, primeiro perguntou a si:

Error hic, an terror falax, qui dica cometis Fata dedit[8]?

E depois, respondendo tão prudente como cristãmente, concluiu com esta sentença:

Terror hic, haud error falax: scellus orne cometa est:

Não é erro falso, senão terror verdadeiro que causa este cometa do céu - porque os vapores com que ele arde, e de que o seu fogo se sustenta, são os pecados que lá sobem da terra, e todo o pecado é cometa: Scelus omne cometa est. - O salitre com que no inferno arde o fogo, e no céu se acendem os cometas são os pecados: no inferno os dos mortos, no céu os dos vivos; e este mineral não se cria nos cerros e desertos inocentes do sertão, mas nasce e cresce até o céu nos vícios e escândalos das cidades, tanto mais quanto mais populosas.

Olhe agora a Bahia para o céu e para si, e veja se das suas portas a dentro, e fora delas, em todo o seu recôncavo, há pecados ocultos e públicos, e, se os achar, como achará muitos e grandes, se não é cega, não seja surda à voz de Deus, que com a espada na mão lhe está bradando ao coração e aos ouvidos. Mas se acaso não entender estes brados - que para tudo há entendimento na Bahia, e não os mais rudes - ouça com a atenção que o caso pede os intérpretes da mesma voz de Deus, que são os pregadores. O seu zelo, ajudado daquela espada de fogo, será como o de Elias, e nesta ocasião, por eficácia dela, ganharão e recuperarão as suas pregações o fruto que em tantas outras costumam perder. O maior milagre da eloqüência que viu o mundo foi quando, vindo Átila, rei dos hunos, com poderosíssimo exército, deliberado a destruir Roma, o papa Leão I lhe falou com tal eficácia, que o fez desistir da empresa, e voltar atrás com todo o exército; e, perguntado o bárbaro pelo motivo desta retirada, tão alheia da sua condição e soberba, respondeu: Porque junto àquele homem vi outro, que com a espada desembainhada me ameaçava a morte, se lhe não obedecia: Querndam alium, illo loquente, reveritum esse, sibi stricto gladio minitantem montem, nisi Leoni obtemperaret. - Que poderá logo não persuadir aos ouvintes, por bárbaros que sejam, um pregador cristão, quando vejam juntamente, não a um homem, nem a um anjo, senão ao mesmo Deus com a espada desembainhada na mão, ameaçando a morte a quem não executar o que lhe ouvirem?

Agora, agora, oradores evangélicos, agora é o tempo de aproveitar da ocasião. Assim o fez o mesmo Cristo, quando em Jerusalém, caindo a terra de Siloé, oprimiu com a sua ruína, e matou alguns homens. - Pois, sabei - disse o Senhor - que aqueles que morreram não eram os mais devedores, mas para que os que estão endividados com Deus por maiores pecados saibam que lhes há de suceder o mesmo, se não fizerem penitência: Putatis quia et ipsi debitores .fuerintpraeteromnes homines habitantes in Hierusalem? Non, dico vobis: sed si poenitentiam non egeritis, omnes similiter peribitis[9] - Grande consolação para os interessados na morte dos que derribou o primeiro golpe do nosso cometa, e grande razão de temor para os que o mesmo Senhor chama mais devedores, quando a divina justiça os vem executar com a espada na mão pelas dívidas. Tertuliano, famoso jurisperito, diz que este é o tempo de acudirem a Deus, e de suspenderem a sua ira com embargos os pregadores: Omnia haec signa sunt imminentis irae Dei, quam necesse est quoquo modo possumus, annunciemus, et praedicemus. - Lembrem-se os pregadores que, não por outro, senão pelo mesmo título são médicos universais da república; e quão grande crime seria do médico se, por não entristecer o enfermo, lhe não declarasse o seu perigo, e o deixasse morrer sem sacramentos. O santo frei João Capistrano, tomando por tema o cometa do ano de mil quatrocentos e sessenta, foi o Jonas de toda a Germânia, e com o terror daquele sinal do céu converteu e ganhou para ele infinidade de almas. Ainda é mais notável exemplo o que refere Santo Agostinho da pregação de um bispo de Constantinopla, em ocasião que sobre aquela cidade apareceu outro cometa: Omnes ad ecclesiam confugiebant: non capiebat multitudinem locus: baptismum extorquebat quis que a quo poterat, non solum in Ecclesia, sed etiarn per donos, per vicos et plateas salus sacramenti exigebatui; ut,fugeretur ira non praesens utique, sed, futura. Havia na cidade muitos gentios, que, tendo conhecimento da lei de Cristo, não acabavam de se fazer cristãos; mas, à vista do cometa, e do que sobre ele pregava o zeloso prelado, todos fugiam para as igrejas, em que não cabiam, não só pedindo o batismo a vozes, mas obrigando por força a que logo os batizassem; e não esperavam a ser batizados na igreja pelos sacerdotes, senão que em suas casas e pelas ruas se batizavam uns aos outros, e isto, diz o santo, não para fugirem da ira de Deus presente, senão da futura.

Se isto fizeram em Constantinopla os gentios, que será bem que façam os cristãos na Bahia? Se aqueles temiam assim a Deus à vista de um cometa muito menor que o que vemos, onde está o nosso temor e a nossa cristandade? O segundo batismo dos cristãos, depois de faltarmos ao que prometemos no primeiro, é o Sacramento da Penitência; e esta é a nova e urgente ocasião que nos dá o céu, para que todos os que temem a Deus examinem muito particularmente suas consciências, e, confessando-se geralmente de todos seus pecados com verdadeira contrição, esperemos todos, assim preparados, com humildade e resignação, o que a divina Justiça - que sempre será misericórdia - se servir ordenar de nós.

Não sejam estas confissões como as ordinárias, que, sendo tão freqüentes na Bahia, se vê delas tão pouco fruto. Acabem-se os ódios, reconciliem-se as inimizades, perdoem-se as injúrias, componham-se as demandas, restitua-se a fazenda mal adquirida, e a fama. Paguem os poderosos o suor que estão devendo aos pequenos; cessem as opressões dos pobres, que clama ao céu; e cesse o luxo e vaidade, que se sustentado seu sangue. Dêem-se as esmolas, que muito aplacam a Deus, e não só aos que as pedem pelas portas, senão também, e muito mais, aos que a portas fechadas padecem necessidades. Guarde-se a imunidade das pessoas, lugares e bens eclesiásticos, que são próprios de Deus, que os dá e os tira, e castiga como sacrílegos os que se atrevem a tocar neles. Enfim, Bahia, que se veja em ti tal reformação de justiça, tal melhora de costumes, e tal emenda nas vidas, que assim como hoje te quadra o nome de civitas vanitatis, assim mereças o de civitas justitiae[10].

E porque a pecados escandalosos e públicos se deve satisfação também pública, veja públicas penitências o céu em tuas ruas, e públicas deprecações Cristo, Senhor e Redentor nosso, diante de seus altares. Estas se devem fazer com maior aparato de tristeza, compunção e arrependimento, que outros exteriores. Em todas as paróquias, em todos os conventos religiosos, e também em todas as casas particulares, em cada uma será bem se tome todos os dias certa hora do dia ou da noite, em que se rezem as ladainhas, ou o terço do Rosário, ou outras orações, e que assista a este exercício toda a família, sem exceção de pessoas, os senhores e os servos, os amos e os criados, os pais e os filhos, e ainda os mais pequeninos, para que ponha os olhos Deus na sua inocência.

E não nos pareça que faremos muito, sendo cristãos, pois os ninivitas, que eram gentios, até os animais cobriram de cilício, e fizeram jejuar e abster dos pastos. Dizem muitos santos que a cidade de Nínive verdadeiramente foi sovertida, como Jonas lhe tinha profetizado, porque a Nínive que fez penitência já não era aquela cidade, senão outra muito diversa. O mesmo sucederá, ó Bahia, se tomares o mesmo conselho: Sê outra, e confia em Deus, cuja condição se não muda, que, se te ameaça pecadora, não te castigará penitente. Entende que o que pretende Deus com o terror deste cometa não é castigar-te, senão emendar-te, e só te castigará se te não emendares; ouve a Santo Agostinho, falando do cometa de Constantinopla: Voluit Deus terrere civitatern, et terrendo emendare, terrendo convertere, terrendo mundare, et terrendo rnutare[11].

Aquela espada de fogo, tão digna de causar horror, pode cortar como espada, e pode queimar como fogo: mudemos nós, e emendemos a vida, que Deus mudará e emendará a sentença. Não nos quer Deus medir pelo seu supremo direito, senão sujeitar-se ao nosso: Novit Deus mutare sententiam, si tu noveris emendare delicturn. -Mostrar-se-nos armado, e com espada na mão, quando não quer guerra, senão paz conosco, é política do seu amor: quer capitular debaixo das armas, para tirar de nós melhores condições; seja assim, e reduzamos todas as condições a uma só, e de nunca mais, nunca mais o ofender, de nunca mais o desobedecer, de nunca mais o deixar, de nunca mais o desagradar, de nunca mais querer, desejar, estimar nem amar coisa alguma desta vida, nem ainda da outra, que não seja o mesmo Deus, por toda a eternidade, etc.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Surgia cerca da undécima hora, e mostrava-se muito claro e visível a todas as terras.

[2] Claudiano.

[3] Manílio.

[4] Ai do que está só (Eclo. 4, l0).

[5] O que não é comigo é contra mim (Mt. , ).

[6] Manílio

[7] Se vós vos não converterdes, vibrará a sua espada (SI. 7, ).

[8] Erício Puteano

[9] Cuidais vós que eles também foram mais devedores que todas as pessoas moradoras em Jerusalém? Não, eu vo-lo declaro; mas se vós outros não fizerdes penitência, todos acabareis da mesma sorte (U. , 4 s).

[10] Cidade da vaidade, cidade da justiça.

[11] Quis Deus atemorizara cidade, e pelo terror emendá-la, pelo tenor convertê-la, pelo terror purificá-la, pelo terror transformá-la.