Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Relação da missão da serra de Ibiapaba, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

RELAÇÃO DA MISSÃO DA SERRA DE IBIAPABA ESCRITA PELO PADRE ANTONIO VIEIRA, E TIRADA DO SEU MESMO ORIGINAL

Pelos anos de 1605, sendo já pacificadas as guerras, que em Pernambuco foram mui porfiadas da parte dos naturais pelas violências de certo capitão português, se tornaram a pôr em armas todos os índios avassalados que havia desde o Rio Grande até o Ceará, onde ainda não tínhamos a fortaleza que hoje defende aquele sítio. E como em todo o Brasil tinha mostrado a experiência o particular talento e graça que Deus deu aos religiosos da Companhia de Jesus para compor os ânimos desta gente, a petição do governador do Estado, que então era Diogo Botelho, foi nomeado para esta empresa o padre Francisco Pinto, varão de grandes virtudes, e mui exercitado e eloqüente na língua da terra, e, por seu companheiro, o padre Luís Figueira. Era o padre Francisco Pinto muito aceito aos índios pela suavidade do seu trato, e pelo modo e indústria com que os sabia contentar; e sobretudo, o fazia famoso entre eles um novo milagre, com que poucos dias antes, indo o padre a uma missão, acompanhado de muitos, e morrendo todos à sede em uns desertos, sendo as maiores calmas do estio, com uma breve oração que o padre fez ao céu, pondo-se de joelhos, no mesmo ponto choveu com tanta abundância, que, alagados os lugares mais baixos daquelas campinas, que eram muito dilatadas, houve em todas elas, por muitos dias de caminho, água para todos: com estas assistências tão manifestas do céu foram recebidos os padres como embaixadores de Deus, e não do governador do Brasil, e sem haver entre todos aqueles índios, posto que agravados nas vidas, nas honras e nas liberdades, quem pusesse dúvida a tudo o que o padre lhes praticou, puseram logo em suas mãos as armas, e nas de el-rei, e de seus governadores a obediência, a que dali por diante nunca faltaram. Concluída tão felizmente esta primeira parte da sua missão, traziam os padres por ordem que intentassem os sertões do Maranhão, que naquele tempo estava ocupado pelos franceses, apalpando a disposição dos índios seus confederados, e vendo se os podiam inclinar à pureza da fé católica que entre os franceses estava mui viciada de heresias, e à obediência e vassalagem dos reis de Portugal, a quem pertenciam aquelas conquistas, Assim o fizeram logo os padres, sendo eles os primeiros pregadores da fé, e ainda os primeiros portugueses que do Brasil passaram às terras do Maranhão. E marchando por terra com grandes trabalhos e dificuldades, por irem abrindo o mesmo caminho que se havia de andar, chegaram enfim à Serra de Ibiapaba onde viviam como acasteladas, três grandes povoações de índios tobajarás, debaixo do principal, Taguaibunuçu, que quer dizer Demônio Grande; e, verdadeiramente, se experimentou depois sempre nesta missão que residia ou presidiam naquele sitio não só algum demônio, senão grande demônio, pela grande força, grande astúcia, grande contumácia, com que sempre trabalhou, e ainda hoje trabalha, por impedir os frutos e progressos dela; levantaram os padres igreja na maior povoação da serra, sem contradição dos naturais, antes, corri grandes demonstrações de contentamento, e enquanto insistiam quotidianamente na instrução dos adultos, e declaração dos mistérios da nossa santa fé, com grande fervor dos mestres e dos ouvintes, conhecendo uns e outros de quanta importância seria para a conservação e aumento desta nova conquista de Cristo ter pacificadas e quietas as nações bárbaras de tapuias, que cercavam e infestavam os arredores da serra, trataram os padres no mesmo tempo de trazer a si com dádivas todas estas nações feras, e fizeram pazes entre eles e os tobajarás, sendo os mesmos padres os medianeiros, e ficando como por fiadores de ambas as partes. Mas, debaixo deste nome de paz, traçando-o assim o demônio, sem mais ocasião que a fereza natural destes brutos, entraram um dia de repente pela aldeia e pela igreja os chamados tocarijus; e, estando o padre Francisco Pinto ao pé do altar para dizer Missa, sem lhe poderem valer os poucos índios cristãos que o assistiam, com frechas e partasanas, que usavam de paus mui agudos e pesados, lhe deram três feridas mortais pelos peitos e pela cabeça, e no mesmo altar, onde estava para oferecer a Deus o sacrifício do corpo e sangue de seu Filho, ofereceu e consagrou o de seu próprio corpo e sangue, começando aquela ação sacerdote, e consumando-a sacrifício.

Com a morte ou martírio do padre Francisco Pinto, cuja sepultura Deus fez gloriosa com o testemunho de muitos milagres, que se deixam para mais larga história, o padre Luís Figueira, ficando só, e sem língua, porque, ainda a não tinha estudado, se retirou por ordem dos superiores para o Brasil, tão sentido porém de não ter acompanhado na morte como na vida ao padre, a quem fora dado por companheiro, e com tanta inveja daquela gloriosa sorte, que logo fez voto de voltar, quando lhe fosse possível, a levar por diante a mesma empresa e buscar nela o mesmo gênero de morte que Deus então lhe negara, ao que ele dizia, por indigno. Mas ambos estes desejos cumpriu Deus depois a este grande zelador de seu serviço, porque no ano de 1623, sendo já de maior idade o padre Luís Figueira, e tendo ocupado com muita satisfação os maiores lugares da Província, veio outra vez à missão do Maranhão onde trabalhou por espaço de catorze anos, com grande proveito das almas dos portugueses e dos índios; e, levando-o o mesmo zelo a Portugal a buscar um grande socorro de companheiros, que o ajudassem a trabalhar nesta grande Seara, partindo de Lisboa, e chegando à barra do Grão-Pará no ano de 1643, com onze de quinze religiosos que trazia consigo, foi cair nas mãos dos tapuias aroás da boca do Rio das Amazonas, onde ele e os mais foram primeiro mortos com grande crueldade, e depois assados e comidos daqueles bárbaros.

Este foi o glorioso e apostólico fim que tiveram os dois primeiros missionámos do Maranhão e da Serra de Ibiapaba, e os que puseram as primeiras plantas nesta nova vinha. Dos frutos que nela deixaram os padres, parte em flor, parte em agrasso, não se logrou mais que o nome de cristãos, com que alguns ficaram, e outros depois receberam, continuando em tudo o mais como gentios. Tiveram, porém, lembrança de vingar a morte de seu pastor, na qual se mostraram tão cavaleiros, que, fazendo guerra em toda a parte aos tocarijus, apenas deixaram desta nação quem lhe conservasse o nome e a memória. Assim viveram os tobajarás na serra, gentios, sobre catecúmenos, até o ano de 1630, em que os holandeses ocuparam Pernambuco, e pouco depois se fizeram senhores da fortaleza do Ceará, e reduziram a si todos os índios daquela vizinhança. O trato que os da serra tiveram com os holandeses não foi sempre o mesmo, porque até o ano de 1642 foram seus confederados, e a este título os acompanharam na guerra do Maranhão, pelejando nela contra os portugueses e contra os tobajarás, que lá havia de sua própria nação; mas voltaram desta guerra tão pouco satisfeitos do valor e fortuna dos holandeses, que se resolveram a vingar neles as vidas dos que naquela empresa tinham perdido, e o fizeram com tanto sucesso e resolução, que na fortaleza que tinham feito no Camuci por engano, e na do Ceará à escala vista, passaram todos à frecha e à espada.

Pôde, contudo, tanto a indústria e manha dos holandeses, que com a dissimulação e liberalidade tornaram depois a reconciliar os ânimos desta gente, e não só a fizeram amiga mas a renderam e sujeitaram, de maneira que quase se deixaram presidiar deles em suas aldeias, não havendo nenhuma em que não estivessem, como de sentinela, alguns holandeses. Com a comunicação, e exemplo, e doutrina destes hereges não se pode crer a miséria a que chegaram os pobres tobajarás, porque de antes, ainda que não havia neles a verdadeira fé, tinham contudo o conhecimento e estima dela, a qual agora não só perderam, mas em seu lugar foram bebendo, com a heresia, um grande desprezo e aborrecimento das verdades e ritos católicos, e louvando e abraçando em tudo a largueza da vida dos holandeses, tão semelhante à sua, que nem o herege se distinguia do gentio nem o gentio do herege. Os males que, saindo desta sua Rochela, fizeram em todo este tempo os tobajarás da serra, não se podem dizer nem saber todos, que eles os sepultava dentro em si mesmos. É toda esta costa cheia de muitos baixos, que com o vento e correntes das águas se mudam freqüentemente; e foram muitos os navios de diferentes nações que aqui fizeram naufrágio, os quais eram despojos da cobiça, da crueldade e da gula dos tobajarás, porque tudo o que escapava ao mar vinha cair em suas mãos, roubando aos miseráveis naufragantes as fazendas, tirando-lhes as vidas, e comendo-lhes os corpos. E, depois que a experiência ensinou aos mareantes a se livrarem dos perigos da costa, inventou nela a voracidade e cobiça desta gente outro gênero de baixos, e mais cegos, em que muitos faziam o mesmo naufrágio. Iam os mais ladinos deles aos navios que passavam de largo, prometiam grandes tesouros de âmbar pelo resgate das mercadorias que levavam, e quando saíam com elas em terra os compradores, sucedia-lhes o que nestes últimos anos aconteceu a uma nau da Companhia da Bolsa, de que era capitão Francisco da Cunha, o qual, debaixo destas promessas de âmbar, mandou à terra trinta soldados, e, saindo da praia ao rolo do mar outros trinta índios forçosos para os tirarem às costas, assim atados consigo os meteram pelo mato dentro, e os mataram e cozinharam com grande festa, e os comeram a todos, não vendo os que ficaram na nau mais que o fumo dos companheiros, que não cheirava ao âmbar por que esperavam, Esta era a vida bárbara dos tobajarás de Ibiapaba, estas as feras que se criavam e escondiam naquelas serras, as quais foram ainda mais feras depois que se vieram a ajuntar com elas outras estranhas, e de mais refinado veneno, que foram os fugitivos de Pernambuco.

Entregou Deus Pernambuco aos holandeses por aqueles pecados que passam os reinos de umas nações a outras, que são as injustiças. E como grande parte das injustiças do Brasil caíram desde seu princípio sobre os índios naturais da terra, ordenou a justiça divina que dos mesmos índios juntos com os holandeses se formasse o açoite daquela tão florente República. Rebelaram-se muitos dos índios, e cristãos, e vassalos - posto que outros obraram finezas de fidelidade - e, unindo suas armas com as do inimigo vencedor, não se pode crer o estrago que fizeram nos portugueses, em suas mulheres e filhos, exercitando em todo o sexo e idade desumanidades feiíssimas, sendo os índios, como inimigos domésticos, os guias que franquearam a campanha aos holandeses, e os executores das crueldades que eles política e hereticamente lhes cometiam, desculpando com a barbaridade dos brasilianos o que verdadeiramente não só eram consentimentos, senão mandados e resoluçõessuas, para assim quebrantarem a honra e constância dos portugueses, que de outra sorte nunca puderam render. Vinte anos teve Deus sobre as costas dos pernambucanos este rigoroso açoite, porque nos primeiros quatro da guerra estiveram todos os índios pelos portugueses, até que no ano de 654 se deu por satisfeita a divina justiça, com a milagrosa restituição de todas aquelas fortíssimas praças à obediência do felicíssimo rei Dom João IV. Entraram os índios rebeldes nas capitulações da entrega com perdão geral de todas as culpas passadas; mas eles, como ignorantes de quão sagrada é a fé pública, temendo que os portugueses, como tão escandalizados, aplicariam as armas vitoriosas à vingança, que tão merecida tinham, e obrigados de certo rumor falso, de que os brancos iam levando tudo à espada, lançaram-se cega e arrebatadamente aos bosques, com suas mulheres e filhos, onde muitos pereceram à mão dos tapuias, e os demais se encaminharam às serras de Ibiapaba, como refúgio conhecido, e valhacouto seguro dos malfeitores. Com a chegada destes novos hóspedes, ficou Ibiapaba verdadeiramente a Genebra de todos os sertões do Brasil, porque muitos dos índios pernambucanos foram nascidos e criados entre os holandeses, sem outro exemplo nem conhecimento, da verdadeira religião. Os outros militavam debaixo de suas bandeiras com a disciplina de seus regimentos, que pela maior parte são formados da gente mais perdida e corrupta de todas as nações da Europa. No Recife de Pernambuco, que era a corte e empório de toda aquela nova Holanda, havia judeus de Amsterdã, protestantes de Inglaterra, calvinistas de França, luteranos de Alemanha e Suécia, e todas as outras Seitas do Norte, e desta Babel de erros particulares se compunha um ateísmo geral e declarado, em que não se conhecia outro Deus mais que o interesse, nem outra lei mais que o apetite; e o que tinham aprendido nesta escola do inferno é o que os fugitivos de Pernambuco trouxeram, e vieram ensinar à serra, onde, por muitos deles saberem ler, e trazerem consigo alguns livros, foram recebidos e venerados dos tobajarás como homens letrados e sábios, e criam deles, como de oráculo, quanto lhes queriam meter em cabeça.

Desta maneira, dentro em poucos dias, foram uns e outros semelhantes na crença e nos costumes; e no tempo em que Ibiapaba deixava de ser república de Baco - que era poucas horas, por serem as borracheiras contínuas de noite e de dia - eram verdadeiramente aquelas aldeias uma composição infernal, ou mistura abominável de todas as seitas e de todos os vícios, formada de rebeldes, traidores,ladrões, homicidas, adúlteros, judeus, hereges, gentios, ateus, e tudo isto debaixo do nome de cristãos, e das obrigações de católicos.

Este era o miserável estado da Cristandade da serra, quando no ano de 1655 chegou segunda vez ao Maranhão o padre Antônio Vieira, com ordens de Sua Majestade, para que a doutrina e governo espiritual de todos os índios estivesse à conta dos religiosos da Companhia; e, posto que o estado referido daqueles cristãos, de que já então havia notícias por fama, prometia mais obstinação que remédio, considerando, porém, os padres que a sua obrigação era acudir à reformação dos índios já batizados, e que estes da serra tinham sido os primogênitos desta missão, e de quão pernicioso exemplo seria para os que se houvessem de converter, e para os já convertidos, a vida escandalosa em que estavam, e muito mais a imunidade dela. Era ponto este que dava grande cuidado a toda a missão, e que muito se encomendava a Deus, esperando todos que chegariam ao céu as vozes do sangue do seu Abel, o padre Francisco Pinto, e que, amansadas aquelas feras, que já estavam marcadas com o caráter do batismo, tornariam outra vez ao rebanho de que eram ovelhas. Ajudou muito esta esperança um novo intento do governador André Vidal de Negreiros, o qual chegou no mesmo ano ao Maranhão, resoluto a levantar uma fortaleza na boca do Rio Camuci, que é defronte das serras para segurança do comércio do pau violete, que se corta nas fraldas delas, e do resgate do âmbar, que a tempos sai em grande quantidade naquelas praias. Esta é a suavidade da Providência divina, tantas vezes experimentada nas missões de ambas as índias, onde sempre entrou e se dilatou a fé, levando sobre as asas do interesse. Comunicados os pensamentos do governador e superior das missões, julgaram ambos que primeiro se escrevesse aos índios de serra, de quem não só dependia o comércio, mas ainda a fábrica e sustentada fortaleza. Mas dificultava, ou impossibilitava de todo a embaixada, a dificuldade do caminho de mais de cem léguas, atalhado de muitos e grande rios, e infestado de diversas nações de tapuias feros e indômitos, que a ninguém perdoam, e, confirmado tudo com a experiência da mesma viagem, intentada outra vez com grande poder de gente de armas, e não conseguida. Contudo, houve um índio da mesma nação tobajará chamado Francisco Murereíba, o qual, confiado em Deus, como ele disse, se atreveu, e ofereceu a levar as cartas. O teor delas, foi oferecer o governador, em nome de el-rei, a todos os índios que se achavam na serra, perdão e esquecimento geral de todos os delitos passados, e dar-lhes a nova de serem chegados ao Maranhão os padres da Companhia, seus primeiros pais e mestres, para sua defensa e doutrina. E o mesmo escreveu o padre superior das missões, dando a si, e a todos os padres, por fiadores de tudo o que o governador prometia, e referindo-se umas e outras cartas ao mensageiro, que era homem fiel, e de entendimento, e ia bem instruído e afeto ao que havia de dizer. Partiu Francisco com as cartas em maio de 1655, e, como fossem passados nove meses sem nova dele, desesperado de todo este primeiro intento, no fevereiro do ano seguinte, que são as monções, em que de alguma maneira se navega para barlavento, despachou o governador uma sumaça, com um capitão e quarenta soldados, e os materiais e instrumentos necessários à fábrica da fortaleza do Camuci, e na mesma sumaça ia embarcado o padre Tomé Ribeiro com um companheiro, para saltarem em terra no mesmo sítio, e praticarem aos índios, e darem princípio àquela missão. Animou também muito a resolução do mesmo governador, e intentos dos padres, a paz que por meio deles vieram buscar ao Maranhão os teremembés, que são aqueles gentios que freqüentemente se nomeiam no roteiro desta costa com o nome de alarves, cuja relação nós agora deixamos por ir seguindo a sumaça, e não embaraçar o fio desta história.

Uma das mais dificultosas e trabalhosas navegações de todo o mar Oceano é a que se faz do Maranhão até o Ceará por costa, não só pelos muitos e cegos baxios, de que toda está cortada, mas muito mais pela pertinácia dos ventos, e perpétua correnteza das águas. Vem esta correnteza feita desde o Cabo da Boa Esperança, com todo o peso das águas do Oceano na travessa, onde ele é mais largo, que é entre as duas costas de África e América, e, começando a descabeçar desde o Cabo de Santo Agostinho até o Cabo do Norte, é notável a força em que todo aquele cotovelo da costa faz o ímpeto da corrente levando após si, não só tanta parte da mesma terra, que tem comido, mas ainda aos próprios céus e os ventos, que em companhia das águas, e como arrebatados delas, correm perpetuamente de Leste a Oeste, Com esta contrariedade contínua das águas e dos ventos, que ordinariamente são brisas desfeitas, fica toda a costa deste Estado quase inavegável para barlavento, de sorte que do Pará para o Maranhão de nenhum modo se pode navegar por fora, e do Maranhão para o Ceará com grandíssima dificuldade, e só em certos meses do ano, que são os de maior inverno.

Navega-se nestes meses pela madrugada com a bafagem dos terrenhos, os quais, como são incertos, e duram poucas horas, todo o resto do dia e da noite, e às vezes semanas e meses inteiros, se está esperando sobre ferro na costa descoberta e sem abrigo, sendo este um trabalho e enfadamento maior do que toda a paciência dos homens; e o pior de tudo é que, depois desta tão cansada porfia, acontece muitas vezes tornarem as embarcações arribadas ao Maranhão, como também arribou nesta ocasião a sumaça em que ia o padre e os soldados para o Camuci, tendo gastado cinqüenta dias em montar só até o Rio das Preguiças, que é viagem que desfizeram em doze horas, Depois mostrou a experiência que fora providência particular de Deus não chegarem os soldados a pôr pé em terra, nem se intentar à fábrica da fortaleza, porque, segundo a disposição em que então estavam os índios da serra, é sem dúvida que ou haviam de impedir a fortaleza por armas, ou se haviam de retirar para tão longe dela, onde nunca mais fossem vistos.

Partiu nesta mesma monção, em uma embarcação latina, o padre Manoel Nunes para o Ceará, e o padre Antônio Vieira para a Bahia; ia um a cultivar os índios daquele distrito, outro para trazer sujeitos que pudessem acudir aos demais; e, posto que venceram mais léguas da costa pela melhoria das velas, e perseveraram mais tempo na mesma porfia, teimando contra o mar, até se verem quase comidos dele, enfim, desenganados, houveram também de arribar; mas na hora em que se acabava de tomar este acordo para se levarem as âncoras, eis que vem uma embarcação pequena, à vela, escorrendo a costa, e gente vestida de cores marchando pela praia. Ao princípio cuidaram que eram estrangeiros escapados de algum naufrágio, mas, chegando mais perto, reconheceram que era o índio Francisco, que, acompanhado de outros da serra, vinham trazer a resposta das cartas, com que havia quase um ano tinha partido do Maranhão. Recebidos com a festa e alvoroço que merecia tal encontro, e tão pouco esperado, e dando já por bem empregado o trabalho da dilação, deu Francisco por causa da sua tardança o haver encontrado pelo caminho grande variedade de nações de tapuias, que o detinham, e traziam consigo muitos dias. E, perguntado como escapara deles com vida, sendo gente que a ninguém perdoa, respondeu que lhe inspirara Deus, quando se viu nas mãos dos primeiros, oferecer-lhes voluntariamente tudo o que levava consigo e sobre si, esperando que, como não tivessem que roubar, não o quereriam matar inutilmente, e que assim o faziam; antes, ao despedir-se, lhe davam sempre algumas coisas das suas, em agradecimento das que tinham recebido; e que, prosseguindo na mesma forma, dando a uns o que recebia dos outros, se livrara das mãos de todos. Eram dez índios os da serra, que acompanhavam a Francisco, dos quais o que vinha por maioral apresentou aos padres as cartas que trazia de todos os principais, metidas, como costumam, em uns cabaços tapados com cera para que nos rios, que passam a nado, se não molhassem. Admiraram-se os padres de ver as cartas escritas em papel de Veneza, e fechadas com lacre da índia; mas até destas miudezas estavam aqueles índios providos tanto pela terra adentro, pela comunicação dos holandeses, de quem também tinham recebido as roupas de grã e de seda, de que alguns vinham vestidos, Desta maneira sabem os políticos de Holanda comprar as vontades e sujeição desta gente, e passá-los da nossa obediência à sua, o que nós pudéramos impedir pelos mesmos fios, com muito menos custo; mas sempre as nossas razões de estado foram vencidas da nossa cobiça, e, por não darmos pouco por vontade, vimos a perder tudo por força. A letra e estilo das cartas era dos índios pernambucanos, antigos discípulos dos padres, e a substância delas era darem-se os parabéns de nossa vinda, e significarem o grande alvoroço e desejo com que ficavam esperando, para viverem como cristãos, não se esquecendo de lembrar aos padres como eles tinham sido os primeiros filhos seus, e quão viva estava ainda em seus corações a memória e saudades do seu santo pai, o Pai-Pina, que assim chamavam ao padre Francisco Pinto.

Chegada ao Maranhão esta resposta, tão conforme ao que se desejava, se resolveu logo que a viagem se fizesse por terra, e foram nomeados para esta missão o padre Antônio Ribeiro, prático e eloqüente na língua da terra, e o padre Pedro de Pedrosa, que pouco antes tinha chegado de Portugal.

Até o Rio das Preguiças levaram os padres uma boa escolta de soldados portugueses, com que passaram vinte e cinco léguas de perpétuos areais, chamados vulgarmente os lençóis, por ser este passo mui infestado dos tapuias. Despedida a escolta, se descobriu logo quanto o inimigo da salvação das almas tratava de estorvar esta viagem, como se experimentou mais no discurso dela. Como em todo este caminho não há povoação nem estalagem, é um dos grandes trabalhos e dificuldades dele haver de levar o mantimento às costas, que vem a ser a farinha que chamam de guerra, que é o biscoito destas terras, o qual ao uso delas se leva em uns como sacos de vimes, tecidos ou embastidos de folhas. Sucedeu pois, que os que levavam estes sacos às costas, assim por se aliviarem do peso, como por ser gente que come sem nenhuma regra, em treze dias, que tinha durado a viagem, os tinham desentranhado, de maneira que quando os padres foram a dar balanço à farinha, não acharam mais que o vulto da folhagem, e que toda a tropa, que constava de sessenta bocas, estava totalmente sem mantimento. Todos votavam que voltassem outra ver para o Maranhão pois não tinham de que se sustentar, e lhes restavam por andar as três partes do caminho, estas do maior trabalho e detença. Mas os padres resolveram que o que se havia de padecer tornando atrás se padecesse prosseguindo adiante, e, animando aos índios, se fez assim, e se sustentaram somente de caranguejos, com algum pouco peixe que lhes deram os teremembés em dois das seus magotes que encontraram. Governava um destes magotes Tatuguaçu, um dos quais tinha ido ao Maranhão, eque era o intérprete dos demais, ao qual, como logo então se colheu de suas palavras, nunca lhe pareceu bem que as suas praias fossem francas aos portugueses, e devassadas de passageiros; e como esta era a primeira viagem, tratou de cortar nela o fio e os intentos a todas as demais, dando de noite um bom assalto nos nossos. A este fim, convidou uma boa parte dos índios a certa pescaria, que se havia de fazer de noite em um posto distante, e aos soldados portugueses, que eram oito, também os procurou retirar, tomando para isso uma traça que bem se via ser inspirada pelo demônio, e foi prometer-lhes que lhes mandaria algumas de suas mulheres, para os ter longe dos padres, e divertidos, tendo no mesmo tempo escondido no mato o maior corpo da sua gente, para rebentar com ela nas horas do maior descuido. De tudo isto estavam os padres bem inocentes fazendo exame da consciência, como é costume, para se recolherem a descansar, quando no mesmo exame lhes veio um escrúpulo, sem dúvida inspirado pelo anjo da guarda, começando a duvidar da fé do teremembé, e inferindo do mesmo bom agasalho que lhes fizera a traição que debaixo dele tinha, ou podia ter armado. Com esta suspeita, sem outro indício nem averiguação ordenaram que se fizesse logo a marcha que estava disposta para se fazer de madrugada, abalando com todo o silêncio, e marchando toda a noite, e deste modo amanheceram livres e vivos os que tinham decretada a morte para aquela noite. Assim o descobriu depois aos padres uma velha da mesma nação, a qual tinha ido ao Maranhão na ocasião das pazes, onde fora mui bem tratada dos nossos, e agora, em agradecimento, veio escondidamente a trazer-lhes aquele aviso que ainda foi bom para a cautela, posto que se não acabaram aqui os perigos.

Um dos perigos e trabalhos grandes que tem este caminho é a passagem de catorze rios mui caudalosos, que o atravessam, e se passam todos por meio da foz, onde confundem e encontram suas águas com as do mar; e porque não há nestes rios embarcação para a passagem, é força trazê-la do Maranhão com imenso trabalho,porque se vem levando às mãos por entre o rolo e a ressaca das ondas, sempre por se mantêm dela que do sustento.

Não foram novas aos padres as incomodidades do sítio, de que já tinham certas notícias, como dos costumes dos moradores, os quais acharam em tudo no estado em que acima os descrevemos, posto que foram recebidos deles com grandes demonstrações de gosto e humanidade, e com aquela admiração e aplauso que sempre acham nesta gente todas as coisas novas. A primeira em que entenderam os padres foi em levantar igreja, de que eles não só foram os mestres, senão os oficiais, trabalhando por suas próprias mãos, assim pelo exemplo como pela necessidade, porque era pouca a diligência com que os moradores se aplicavam à obra. A do edifício espiritual se começou juntamente, porque desde o primeiro dia começaremos padres a ensinar a doutrina no campo, a que concorriam principalmente os pequenos, que muito brevemente tomaram de memória as orações, e respondiam com prontidão a todas as perguntas do catecismo. Mas, depois que os padres lhes ensinaram a cantar os mesmos mistérios, que compuseram em versos e tons muito acomodados, viu-se bem com quanta razão dizia o padre Nóbrega, primeiro missionário do Brasil, que com música e harmonia de vozes se atrevia a trazer a si todos os gentios da América. Foram daqui por diante muito maiores os concursos e doutrinas de todos os dias, e maiores também as esperanças que os padres conceberam de que por meio desta música do céu queria o divino Orfeu das almas encantar estas feras destas penhas, para as trazer ao edifício da sua Igreja. A primeira pedra que se lançou nele, e o primeiro fruto que se começou a colher foi o batismo de muitos adultos, e de todos os inocentes, porque nenhum pai houve que não trouxesse a batizar todos os seus filhos, dos quais muitos foram logo chamados ou arrebatados ao céu antes dos anos do entendimento, para que a malícia dos mesmos pais lhos não pervertesse.

Sofreu mal o demônio que se lhe tirassem das mãos estes despojos tenros, que ele desde o nascimento tinha já marcados por seus, e temendo destes princípios que viria pouco a pouco a ser lançado daquele castelo infernal, que é a chave de tantas outras nações, que tão absolutamente estava dominando, determinou fazer-se forte nele com todas as suas forças e astúcias, e com as mesmas fazer a esta missão a mais cruel e porfiada guerra, que jamais se tem experimentado até hoje na conquista espiritual de todas as gentilidades do Brasil. Tinham vindo os padres a Ibiapaba com ordem, não de fazerem ali residência, mas de verem a disposição da gente e do lugar, e, com aviso aos superiores, esperarem a resolução do que haviam de seguir. Daqui tomou ocasião o demônio, e daqui forjou as suas primeiras armas, metendo em cabeça a todos os principais que os padres não vinham a tratar da sua salvação, senão da sua ruína, e que eram espias dissimulados dos portugueses, para avisarem do que passava na serra, e, quando estivessem mais descuidados, os entregarem a todos em suas mãos, os maiores para serem justiçados pelos delitos passados, e os outros para serem vendidos por escravos em perpétuo cativeiro. Não se sabe de qual nasceu primeiro este diabólico pensamento, mas como todos estavam criminosos, e deviam tanto à justiça do céu e da terra, a própria consciência lhes assoprava este fogo dentro dos corações e os de Pernambuco, em que eram maiores as culpas e maior o temor, eram os que mais criam, e confirmavam tudo, não havendo ação, nem movimento, nem palavra, nem ainda silêncio dos padres, de que não fizessem novo argumento e convertessem no mesmo veneno. Isto só se falava entre todos, sobre isto se discorria e se bebia, que é o tempo e o lugar de seus mais vivos discursos. Estas eram as profecias dos feiticeiros, estes os conselhos dos velhos, estes os temores e os prantos das mulheres, olhando todos dali por diante para os padres, não como pais e defensores seus, mas como espias inimigos, e traidores de sua pátria, de suas vidas e de suas liberdades, e como tais se retiravam, e retiravam a todos da casa e conversação dos padres, fugindo até da igreja, da doutrina, das pregações, e ainda da mesma Missa, que era o que o demônio pretendia. Sucedeu por este tempo fazer viagem o governador André Vidal do Maranhão para Pernambuco por terra, com aviso, que lhe fizeram os padres, que estava seguro o caminho; e como o governador trazia grande escolta de soldados e índios, tiveram por certo os de Ibiapaba que aquele aparato se encaminhava a conquistá-los, e dissimuladamente chamaram todos os tapuias da sua confidência, e os tiveram em ciladas enquanto o governador passou pelas suas praias; e depois que esteve em lugar que já não podia voltar atrás, tomaram a desfazer esta prevenção com tanta dissimulação e secreto, que não chegou à notícia dos padres senão daí a anos. Quase começaram a se aquietar com este desengano os temores dos da serra, e a verdade dos portugueses também começou a triunfar das falsas e indignas suspeitas que deles tinham; mas o demônio, que não aquietava, levantou em outra parte um novo incêndio, para tornar a cegar com o fumo dele aos que já parece queriam abrir os olhos. Nos arredores da fortaleza do Ceará, distante de Ibiapaba sessenta léguas, vivem duas nações de tapuias gentios, confederadas ambas com os portugueses, mas inimigas entre si; uns se chamavam ganacés, outros juguaruanas. Estavam estes ocupados no mato em cortar madeira do precioso pau violete para o capitão da fortaleza, quando os ganacés, levando consigo alguns índios cristãos, de duas aldeias avassaladas que ali temos, deram de repente sobre eles, e, tomando-lhes as mulheres e filhos, se vinham retirando com apresa. Fizeram aviso os juguaruanas ao capitão da fortaleza, em cujo serviço estavam, o qual lhes mandou de socorro vinte e quatro soldados portugueses, com ordem que os ajudassem, e pelejassem contra seus inimigos, podendo mais neste caso, como sempre pode, a razão da cobiça que a do estado, a qual ditava que se guardasse neutralidade com ambas as nações, pois ambas eram nossas aliadas. Chegaram os soldados aos ganacés, que se tinham feito fortes em uma roboleira do bosque, e, desordenando mais à desordenada ordem que levavam, um deles, que não era branco, persuadiu aos fortificados que entregassem em confiança suas armas, em sinal de paz, para se retirarem debaixo das nossas. Mas os juguaruanos, que já tinham recuperado a presa, tanto que viram a seus inimigos desarmados, sem lhes poderem valer os soldados portugueses, deram sobre eles, e em um momento quebraram as cabeças a todos, que é o seu modo de matar, sem ficar, de quinhentos que eram, nem um só com vida, Foi este um caso que grandemente alterou os ânimos de todos os índios do Ceará, e muito mais os vassalos e aliados, vendo que à sombra de nossas armas, de que eles esperavam a defensa, fora a mesma, e por estilo tão indigno, que os metera como cordeiros nas mãos de seus inimigos. Clamavam contra os interesses do capitão e contra a lealdade dos soldados, o que lhes ensinava a dor, e justa ira, e talvez se precipitavam em ameaças contra a fortaleza, e contra a vida de quantos estavam nela.

Posta a fortaleza neste aperto e receio, receberam os padres cartas do capelão e almoxarife, em que lhes representavam o estado de tudo, e lhes pediam que por serviço de Deus e de el-rei quisessem acudir com toda a pressa àquela força, pois só a sua presença, e a muita autoridade que têm com os índios, poderia obrar em seus ânimos, tão justamente irados, o que importava à conservação de todos. Por esta causa, e por pertencerem também aqueles índios a esta missão, resolveram os padres partir logo ao Ceará; mas, vendo que com a notícia desta jornada tornavam a reverdecer as suspeitas dos de Ibiapaba, houve de ficar ali um dos padres, como em reféns do outro, e foi só àquela empresa o padre Antônio Ribeiro, que, como tão eloqüente na língua, e exercitado em conhecer e moderar os ânimos desta gente, sobretudo ajudado com particular favor de Deus, pôs tudo em poucos dias em paz.

Primeiro aquietou, não sem dificuldade, os índios cristãos das aldeias, que, como vassalos de el-rei, e criados em maior política, sabiam melhor sentir e encarecer a causa da sua dor; e com eles ficaram também quietos os ganacés, primeiros movedores desta tragédia, ajudando não pouco a sua mesma culpa a se comporem com o sucesso. Só os juguaruanas, como provocados sem causa, e como insolentes com a vitória, não cessavam de ameaçar continuamente a ambas as aldeias em uma das quais deram de repente ao tempo que o padre estava levantando a hóstia; mas, acabada a Missa, com a pressa que pedia o perigo, estando já alguns da aldeia mortos, e feridos quase todos, que não chegavam a quarenta, sendo quatrocentos os bárbaros que combatiam uma fraca estacada de que estava cercada, o padre se subiu intrepidamente sobre ela por meio das frechas, e, não pedindo pazes, nem rogando, senão repreendendo e ameaçando o castigo de Deus aos bárbaros, deu Deus tanta eficácia a estas vozes, e ao império delas, que, suspendendo os arcos e frechas, se retiraram logo todos. E dali a três dias, em presença do padre e do capitão da fortaleza, vieram a fazer pazes, que se celebraram solenemente entre estas e as mais nações ofendidas. Enquanto isto se obrava, não atendia o padre com menos cuidado à doutrina dos índios cristãos, os quais achou na mesma confusão e miséria em que estavam os de Ibiapaba, e, se se pode cuidar, ainda maior pela maior vizinhança e comunicação que haviam tido dos holandeses, se bem o respeito da fortaleza e o presídio os tinha feito menos rebeldes e insolentes que os outros. Ensinaram-se os inocentes, e batizaram-se todos os hereges, e se reconciliaram com a igreja muitos que estavam casados ao modo de Holanda, e se receberam com os ritos católicos. Enfim, as duas povoações, que eram compostas de gentios e hereges, ficaram de todo cristãs.

Restava somente a fortaleza por render, onde em certo modo se pode dizer que estava e está o demônio mais forte pela cobiça dos capitães e torpezas dos soldados. A estes tirou o padre trinta índias, as mais delas casadas, de que se serviam com pública ofensa de Deus, e sem pejo dos homens, indo-as buscar livremente às aldeias, e tomando-as, se era necessário, por força a seus maridos. Dos maridos se estavam servindo igualmente os capitães para seus interesses, com tanta opressão dos miseráveis, e tão pouca e tão enganosa satisfação do contínuo trabalho ou cativeiro, em que os trazem, sem descansar jamais, que se podia duvidar quais eram dignos de maior lástima, se as mulheres no torpe serviço dos soldados, se os maridos no injusto dos capitães. Trataram os índios com o padre de pôr remédio a estes danos, que não eram menos consideráveis para os mesmos portugueses, se aqueles vícios deixaram olhos abertos. Representou-se por meio mais efetivo retirarem-se aquelas aldeias dali para Pernambuco, donde todos os anos, assim como vêm e se mudam os soldados portugueses, assim viessem e se mudassem os índios necessários ao serviço da fortaleza, e com esta proposta passou o mesmo padre a Pernambuco, posto que não foi admitida, como nunca serão aquelas em que o bem temporal ou espiritual comum se encontra com o interesse dos particulares que governam. Na viagem visitou o padre as relíquias das antigas aldeias de Pernambuco e Rio Grande, que achou espalhadas por aqueles largos e trabalhosos caminhos, e tornou a visitar as do Ceará, batizando, doutrinando, casando e confessando a todos aqueles desamparadíssimos índios, os quais davam graças a Deus de que tudo isto se lhes fizesse de graça, quando muitos deles viviam como gentios, por não terem com que pagar os sacramentos.

Enquanto o padre Antônio Ribeiro se deteve nesta comprida missão, esteve o padre Pedro Pedrosa padecendo as conseqüências dela, que foram persuadirem-se de novo os de Ibiapaba que a jornada ao Ceará, e de Pernambuco, foram só a prevenir dobrados socorros, com que os arrancar a todos das suas serras, chegando a desconfiar das mesmas muralhas inacessivas com que as fortificou a natureza, e fazendo, como soldados velhos da guerra do Brasil, uma estrada oculta pelo mato, que, no caso que não se pudessem defender, lhes servisse para a retirada, a qual já tinham disposta para partes tão remotas do interior da América, que nunca lá pudesse chegar o nome, quanto mais armas dos portugueses. Sendo esta a opinião que estes índios tinham de um dos padres, já se vê qual seria o tratamento que fariam ao outro. Ficou o padre Pedro Pedrosa entre eles só, e sem saber ainda mais que poucas palavras da língua; mas a mesma necessidade, e não ter outra com que se dar a entender, lha fez aprender copiosamente dentro em poucos meses, estudando, mais ainda que a mesma língua, as razões com que havia de falar e persuadir a esta enganada gente o pouco fundamento de seus temores, e das desconfianças que tinham concebido contra os padres, que por eles estavam padecendo tantos trabalhos, e tinham arriscado tantas vezes as vidas. Mas nenhuma razão ou demonstração bastava para que vissem ou quisessem ver a sua cegueira. Assim estava o padre aqui mais como prisioneiro das suas ovelhas que como pastor delas, continuando porém sempre em lhes dar o pasto da verdadeira doutrina, a que acudiam poucos, e os mais pequenos, rogando por todos a Deus, e oferecendo por sua conversão os mesmos agravos e ingratidões que deles continuamente estava recebendo. Alguns meses não teve o padre quem lhe fosse acender uma candeia, deitando-se todo este tempo sobre ter comido duas espigas de milho seco, que assava por sua própria mão; mas nisto eram menos culpados os que tinham obrigação de o sustentar, pelas esterilidades do sítio. Muitas vezes, a horas de jantar, mandou com um prato pedir uma pequena de farinha pelas portas, sendo ele o que fazia o fogo para cozer algumas ervas agrestes, e o que varria a pobre casinha com as mesmas mãos sagradas com que a tinha feito. Deste tempo é que ficaram ao padre as notícias, que nos dá, de serem tanto saborosas as lagartixas pela parte de alguma que algum mais misericordioso lhe ofereceu por grande caridade. Tal é a miséria ou o castigo do sítio em que vive esta pobre gente, e por cuja conservação fazem tantos extremos. Quando aqui chegamos, havia quatro meses que os padres não comiam mais que folhas de mostarda, cozidas em água e sal, mas estas com pouca farinha, porque nem os que a lavram a tinham. Alguma jornada fizeram de mais de sessenta léguas, em que levavam a matalotagem na algibeira, que era um pouco de milho debulhado, que, a não ir tão bem guardado, se não pudera defender à fome dos companheiros, e isto é o com que se jejuam as quaresmas e com se festejam as páscoas; mas é já boa de contentar a natureza - e muito mais a graça - e dá Deus tantos sabores a estes manjares, que não fazem cá saudades os regalos da Europa. Dias houve também caminhando em que passaram os padres só com os cardos do mato, e outras vezes com as raízes de certa árvore agreste, cavadas por sua mão, a que chamam mandu-rapó, por ser mantimento das emas, que digerem ferro. Mas tinham os padres muito mais que digerir na dureza e rebeldia dos corações da gente com que tratavam, os quais com nenhum exemplo se compungiam, com nenhum benefício se abrandavam, e com nenhum desengano queriam acabar de se desenganar, permitindo-o assim Deus, ou em castigo da sua mesma obstinação, ou para outros maiores fins da sua Providência.

Foi mais festejada a vinda do padre Antônio Ribeiro, quando o viram entrar pela aldeia principal, só, e sem os exércitos imaginados, que o demônio lhes tinha formado nas fantasias.

Mas durou pouco aos padres o gosto desta vitória da sua verdade, porque no mesmo tempo receberam uma carta do padre Antônio Vieira, em que lhes dava notícia de haverem resoluto os superiores que aquela missão, vistas suas impossibilidades, se não continuasse, e que os padres se voltassem outra vez ao Maranhão, notificando esta ordem, e a causa dela, aos índios; e levando consigo aos que os quisessem seguir. Não chegou às mãos dos padres nenhuma destas ordens, que eram do padre provincial do Brasil, e do padre visitador desta missão, como adiante se dirá, mas em ordem à execução delas declarou o padre Pedro Pedrosa aos principais o aviso que tinham recebido, representando-lhes o serviço de Deus e de Sua Majestade, que continha aquela resolução, e quão conveniente lhes era, não só para a salvação, senão ainda para as comodidades da vida a mudança do lugar. Não tinha acabado de dizer o padre, quando já estava lida a resposta no semblante de todos, os quais rebentaram, dizendo: Eis aqui como era verdade o que até agora todos cuidávamos, e como os padres não tiveram nunca outro intento, senão de nos arrancar de nossas serras, para nos fazerem escravos de seus parentes, os brancos. - O maior principal, que tem grande sagacidade, respondeu direitamente à proposta desta maneira: Se, por sermos vassalos de el-rei, quereis que vamos para o Maranhão, estas terras também são de el-rei; e se por sermos cristãos e filhos de Deus, Deus está em toda aparte. - Com esta resposta sucinta se recolheram a seus conselhos secretos, nos quais se decretou que por meio dos tapuias tirassem a vida aos padres, como já tinham feito os mesmos tapuias ao padre Francisco Pinto, e que, para dissimulação do delito, sairiam eles

fingidamente à sua defensa, e fariam grandes prantos por sua morte. Decretada esta cruel sentença, sem os padres terem dela a menor notícia, com o mesmo segredo despediram aos tapuias que lhes fosse declarar o intento, e os ensaiasse para a tragédia. Eram os tapuias que foram escolhidos para a execução os ... [1], e o dia o de quinta-feira de Endoenças, em que os padres estão mais ocupados; e eles, concorrendo também para os ofícios daquela semana, se queriam também fingir mais divertidos. Tudo estava já preparado para o sacrifício, e só as vítimas estavam inocentes de tudo. Quando Deus, que nunca desampara aos que o servem, tocou o coração a um dos principais, e adjunto na mesma consulta, o qual foi secretamente avisar aos padres de tudo o que contra eles estava traçado. Com este aviso, que bem se via era do céu, se aparelharam os padres com grande ânimo para darem a vida por tão.. [2] causa, e dali por diante, pondo-se mais afetuosamente nas mãos de Deus, com contínuas orações e penitência, estavam esperando a todas as horas do dia e da noite que a morte lhes entrasse pelas portas, tendo ajustado entre si de a receberem de joelhos, e com as mãos levantadas ao céu. Enquanto chegava, ou tardava o dia aprazado, resolveram-se os padres a não esperar mais por ele, Descobriram ao principal como lhes era manifesta a traição que lhes tinha armado, que para matar dois religiosos sem armas não eram necessárias as flechas dos tapuias, que em suas mãos os tinham, sem poderem resistir nem quererem fugir; que bastava um velho, o mais fraco da aldeia, para Lhes tirar as vidas, e que eles as dariam por bem empregadas, se Deus, pelo sacrifício de seu sangue, perdoasse aos tobajarás este pecado, e todos os outros de que se não queriam emendar; que estivessem certos que do céu não haviam de pedir para eles castigo, senão misericórdia. Ficou assombrado o bárbaro de ver que os padres sabiam o que ele tinha por tão secreto, negava com a boca tudo, mas confessava-o com o coração, o qual lhe dava tais pancadas no peito, que não se estavam vendo, mas parece que se estavam ouvindo. Enfim, como as traças eram do demônio, que só tem força enquanto estão encobertas, neste dia desarmou em vão toda esta máquina: O inferno ficou confuso, e os padres deram infinitas graças a Deus, e os autores ficaram corridos e arrependidos, mas nem por isso emendados, tendo sempre altamente fixado na memória e no entendimento o ponto de os quererem tirar de suas terras; e, posto que os padres tinham tão justas causas, e tão bastante motivo, nas cartas que receberam; para sacudirem o pó dos sapatos, e deixarem tão ingrata terra, resolveram-se, contudo, a não desamparar o posto a que a obediência os tinha mandado, sem verem primeiro a ordem em que a mesma obediência os mandasse retirar.

Será muito para louvar nos tempos vindouros a constância destes dois missionários; mas eles têm para si, e com razão, que não só deviam isto ao amor de Deus, por quem o padeciam, senão ao exemplo que o mesmo Deus lhes dava, porque ainda que foi muito o que os padres sofreram a estes índios, muito mais era o que Deus lhes estava sofrendo. Entre todos estes, só um velho houve, que de si pediu aos padres que o casassem para sair de mau estado. Nenhum dos principais, sendo todos três cristãos, era casado em face da Igreja, nem o quiseram nunca ser, por mais que os padres os admoestavam; e todos, além da que chamavam mulher, tinham a casa cheia de concubinas. Alguns estavam casados juntamente com duas irmãs, e muitos com suas cunhadas porque receber o irmão vivo a mulher do irmão defunto é lei tão judaicamente observada entre eles, como se a tiveram recebido de Moisés, a quem também sabem o nome. Aqueles, de quem o profeta diz que fizeram concerto com o inferno parece que foram estes. Um disse que antes queria ser irmão de Caim do que de Abel, por estar no inferno com ele; outro, que se lhe não dava do fogo do inferno, porque se fosse lá, ele o apagaria; outro, que já sabia que havia de ir ao inferno, pelas maldades que cometera em Pernambuco, e assim não queria tratar do céu; outros chegaram a tanto, que blasfemaram de Deus como de tirano e injusto, por os haver de mandar a eles ao inferno. - Mande ao inferno-diziam-aos índios que o mataram; mas a nós que lhe não fizemos nenhum mal, por que nos manda ao inferno sem razão? - Enfim, foram tais as coisas que disseram e fizeram sobre este ponto, que os padres se retiraram de lhes falar no inferno, até que o conhecimento da grandeza de Deus e de suas culpas lhes mostrassem quão dignos são os que o ofendem de tão temeroso castigo. Por outra via, tinha já procurado o demônio tirar-lhes do pensamento a fé e temor do inferno, espalhando entre eles um erro aprazível semelhante à fábula dos Campos Elísios, porque dizem que os três principais das aldeias da serra têm debaixo da terra outras três aldeias muito formosas, onde vão depois da morte os súditos de cada um, e que o abaré, ou padre, que lá tem cuidado deles, é o padre Francisco Pinto, vivendo todos em grande descanso, festas e abundância de mantimentos; e, perguntados donde tiveram esta notícia, e se lhes veio algum correio do outro mundo, alegam com testemunha viva, que é um índio muito antigo, e principal entre eles, o qual diz que, morrendo da tal doença que teve, fora levado às ditas aldeias; por sinal que uma se chama Ibirupiguaia, outra Inambuapixoré, a terceira Anhamari, e que lá vira todos os que antes dele haviam morto, e entre eles a sua mulher, a qual o não quisera receber, e pelejaram com ele por ir desta vida sem levar um escravo que a servisse, e que depois disto tomara a viver. O índio, por sua pouca malícia, parece incapaz de haver composto esta história, e, assim, julgam os padres que foi sem dúvida ilusão do demônio para o enganar a ele, e por meio dele aos outros, e, quando menos, para pôr em opiniões um ponto tão importante como o do inferno.

Na veneração dos templos, das imagens, das cruzes, dos sacerdotes e dos sacramentos estavam muitos deles tão calvinistas e luteranos, como se nasceram em Inglaterra ou Alemanha. Estes chamam à Igreja igreja de Moanga, que quer dizer igreja falsa, e à doutrina morandubas dos abarés, que quer dizer patranhas dos padres; e faziam tais escárnios e zombarias dos que acudiam à igreja a ouvir a doutrina, que muitos a deixaram por esta causa. Um disse que de nenhuma coisa lhe pesava mais, que de ser cristão e ter recebido o batismo. O sacramento da confissão é o de que mais fugiam e mais abominavam; e também havia entre eles quem lhes pregasse que a confissão se havia de fazer só a Deus, e não aos homens. Foram testemunhas certos portugueses que vieram à serra, que a tempo que o padre levantou a hóstia, um, por zombaria dos que batiam nos peitos, se pôs a bater na parede da igreja.

Estava outro para comungar, em ocasião que um principal lhe mandou recado para que fosse beber com ele; e como respondesse que estava para receber o Senhor, disse o principal que não conhecia outro Deus senão o vinho, porque ele o criara, e o sustentava. Outras muitas coisas diziam, que é certo lhas não ensinaram os hereges, senão o demônio por si mesmo. Exortava o padre a certo gentio velho que se batizasse, e ele respondeu que o faria para quando Deus encarnasse a segunda vez, e, dando o fundamento do seu dito, acrescentou que, assim como Deus encarnara uma vez em uma donzela branca para remir os brancos, assim havia de encarnar outra vez em uma donzela índia para remir os índios, e que então se batizaria. Consoante a esta profecia é outra, que também acharam os padres entre eles, porque dizem os seus letrados que Deus quer dar uma volta a este mundo, fazendo que o céu fique para baixo; e a terra para cima, e assim os índios hão de dominar os brancos, assim como agora os brancos dominam os índios. E com estas esperanças fantásticas e soberbas os traz o demônio tão cegos, tão desatinados e tão devotos seus, que chegou a lhes pedir adoração, e eles a lha darem, Não há muitos anos que um velho dos de Pernambuco, feiticeiro, levantou uma ermida ao diabo nos arrabaldes da povoação, e pôs nela um ídolo composto de penas, e pregou que fossem todos a venerá-lo, para que tivessem boas novidades, porque aquele era o que tinha poder sobre as sementeiras; e como a terra é mui sujeita à fome, foram mui poucos os que ficaram sem fazer sua romaria à ermida. Estava o velho assentado nela, e ensinava como se haviam de fazer as cerimônias da devoção, que era haverem de bailar continuamente de dia e de noite, até que as novidades estivessem maduras, e os que cansavam, e saíam da dança, haviam de beijar as penas do ídolo, no qual afirmavam alguns que ouviram ao demônio falar com o velho, e outros que se lhe mostrou visível, vestido de negro. Tiveram os padres notícia do desaforo, foram logo queimar o ídolo, e levantar em seu lugar uma cruz dentro e outra fora, mas no dia seguinte amanheceram ambas as cruzes feitas pedaços: tanto sofre Deus, e tanto tem sofrido a estes ímpios contra sua Igreja, contra seus sacramentos, contra sua divindade e contra suas cruzes; e tanto ensina a sofrer com o seu exemplo aos que também ensinou com a sua doutrina, que deixassem crescer a cizânia, para que se não perdesse o trigo.

O fruto que se tem colhido no meio desta esterilidade não tem sido tão pouco que se hajam de dar por mal empregados tantos trabalhos, quando os mesmos trabalhos per si não foram um grande fruto. Enquanto os grandes viviam na obstinação e rebeldia que dissemos, os pequenos, de quem é o reino do céu, o iam povoando em tanto número, que são já mais de quinhentos os inocentes batizados pelos padres, que com a graça do batismo estão gozando da glória. Ao princípio tiveram os padres três igrejas nas três aldeias, e depois fizeram outra, em que uniram todas três. Estas quatro igrejas são hoje relicários preciosíssimos, em que não há lugar em que não esteja engastado algum corpo com toda a certeza santo, que é grande consolação, e ainda devoção, para os que vieram a estas serras cavar estes tesouros; e vê-se clara mente haver Deus enviado os dois missionários da Companhia só a colher estas flores, para as meter, como diz a Escritura, no ramalhete dos predestinados, porque no tempo em que morreram mais de quinhentos inocentes, não chegaram a morrer quinze dos adultos, alguns dos quais acabaram com os sacramentos daquela hora, e com grandes esperanças de sua salvação; e outros, para temor dos mais, com evidentes sinais de sua perdição e condenação eterna. Dos pequenos de maior idade se batizaram também muitos que ainda estavam pagãos, ou tinham dúvida no batismo. Muitos também receberam em legítimo matrimônio as mulheres, com que viviam em pecado; outros, tocados da heresia, abjuraram o erro ou ignorância, e se reconciliaram com a Igreja. Assim que, ainda que o corpo estava geralmente tão enfermo e tão contagioso, a muitos dos membros aproveitavam os remédios, e a muitos os preservativos, Os males que com a presença dos padres se têm evitado, não são de menos consideração ao bem espiritual destes índios, nem de menor utilidade ao espiritual e temporal de todo o estado. O caminho do Maranhão ao Ceará e a Pernambuco, que estava totalmente fechado pelas hostilidades desta gente, está hoje franco e seguro. As praias e navegação de toda a costa estão livres e melhoradas com o seu comércio. Sobretudo, estão reduzidos os tobajarás à obediência e vassalagem de Sua Majestade, sem armas nem despesas, e estão inimigos jurados dos holandeses, em cuja confederação era a Serra de Ibiapaba o maior padrasto que tinha sobre si o Estado do Maranhão, e o que só temeram todos os soldados velhos desta conquista. Nos vícios da fereza e desumanidade estão também muito domados; já não matam, já não comem carne humana, já não fazem cativeiros injustos, já guardam paz e fidelidade às nações vizinhas, tudo por benefício da assistência dos padres.

Haverá dois anos que exortaram os padres aos tapuias curutis que quisessem deixar a vida de corso, e viverem aldeados com os tobajarás, com casa e lavoura; e quando já vinham os curutis com suas famílias para se meter nas aldeias, que os mesmos tobajarás lhes tinham oferecido, estava traçado entre eles de os esperarem em cilada dali a duas léguas, e os matarem e cativarem a todos. Soube o padre Pedro Pedrosa a traição três horas antes, quando já os tobajarás estavam juntos e armados; e bastou saberem os principais que o padre o sabia, para desistirem da empresa, e ainda para cobrirem e negarem os intentos que tiveram nela. Foi este o maior argumento do respeito que têm aos padres ainda quando parece que nos não respeitaram, por que não há mais forte tentação para esta gente que a de matar, e fazer cativos. Assim vão despindo os vícios da barbaria, com que começam a ser homens e se espera que renunciarão também aos demais, para que acabem de ser cristãos.

Confirma muito esta esperança o ter-se visto em muitas casos que não só chama Deus esta gente por meio ordinário de seus ministros, os pregadores, mas que parece quer render por si mesmo a sua rebeldia, como a de Saulo, estavam um dia ouvindo missa o maior principal, e ao tempo que o padre levantou o Senhor, e todos o adoravam, ele viu somente os dedos do padre, e não viu a hóstia, com que ficou assombrado; recolhendo-se à casa tremendo, examinando a causa de Deus se lhe não querer mostrar ocorreu-lhe que devia de ser sem dúvida porque em o dia de antes tinha dito umas palavras de pouco respeito ao mesmo padre que disse a Missa, que era o padre Pedro Pedrosa; passou a noite sem dormir, veio ao outro dia ouvir a Missa do mesmo padre, e pedir perdão a Deus do que tinha feito; e quando se levantou a hóstia, viu-a, mas com a cor mudada, porque lhe pareceu envolta em uma nuvem negra, e lhe metia horror, posto que não tão grande como o dia de antes, em que se lhe havia totalmente escondido; foi no mesmo dia contar o caso ao padre, pedindo-lhe perdão da pouca reverência com que lhe havia falado, e dali por diante tornou a ver a hóstia branca, e como dantes via.

Um dos blasfemos de que falamos acima chegou a dizer em presença de muitos que não tinha outro Deus senão o diabo; mas permitiu logo Deus que experimentasse em si mesmo quem era aquele por quem o trocava, para castigo seu, e dos outros que o tinham ouvido. Entrou nele o demônio tão furiosa e desesperadamente, que se despedaçava a si e a quanto encontrava, fugindo todos dele, e não havendo quem lhe parasse diante. Fizeram-lhe os padres os exorcismos por espaço de oito dias, com que o largou o demônio por então, posto que depois tornou por vezes a o atormentar, mas já com menos fúria. Ficou tão ensinado com este castigo, que dali por diante não safada casa dos padres, nem da igreja; e andando sempre armado com as contas ao pescoço, deu pública satisfação ao escândalo que tinha dado, protestando que estava fora de si, e pregando em toda a parte que a divindade era só de Deus, e o demônio a mais mofina de todas as criaturas, e a mais abominável. Quando os padres logo chegaram à serra, receberam um índio com uma sua cunhada, com quem estava amigado, calando ele o impedimento, e não havendo quem acudisse a o descobrir. Nasceram deste matrimônio um menino e duas meninas, e todos três saíram mudos. Admiram os mesmos índios a estranheza do caso, e têm assentado entre si que a causa de serem mudos os filhos é porque o pai também foi mudo, calando os impedimentos do matrimônio, e fazendo aquela injúria ao sacramento; e, verdadeiramente, era necessário um castigo tão prodigioso e tão permanente como este, e que fosse crescendo e continuando-se com os mesmos sujeitos castigados, para que esta gente, que tão pouco reparo fazia dos impedimentos dos matrimônios, temesse exceder os limites, e violar a pureza deste sacramento, e soubessem todos que o que se cala e encobre aos sacerdotes não se pode esconder a Deus, antes, dá brados à sua divina justiça, para que o castigue como merece.

Mas não são só castigos e ameaças, com que Deus quer trazer a si os corações destes índios, senão também promessas e favores. Uma noite de Natal tinha praticado o padre Pedro Pedrosa, e quando disse a primeira Missa, viu uma índia na hóstia a Cristo, não menino, e envolto em panos pobres, senão em figura de homem vestido de grande formosura, majestade e riquezas, as quais oferecia com rosto mui agradável àquela índia, se ela o quisesse servir. Provou o efeito a verdade da visão, porque vivendo até aquele tempo em estado alheio da graça de Deus, foi esta a primeira e a única que veio pedir aos padres a recebessem com o que não era seu marido, e fez dali por diante vida tão reformada e tão cristã, e de tanto afeto e devoção às coisas espirituais, que nunca mais nem ela nem pessoa alguma de sua família, que era muito grande, faltou na igreja à Missa, e às duas doutrinas de cada dia, pegando esta mesma piedade a seu marido. Outro índio moço tem recebido grandes toques, favores e admoestações de Deus em sonhos, que o trazem mui abalado, e se lhe vêem nos desejos, nas palavras e nas resoluções. Uma noite sonhou que se achava na igreja, entre os que tomavam disciplina pelas sextas-feiras da quaresma, mas que ele a não queria tomar; e logo viu sair e caminhar para si um mancebo de muita formosura, o qual, apontando para um lugar alto, que estava coberto com uma cortina, lhe disse que ali estava Deus, mas que se não mostrava, senão aos que faziam penitência dos seus pecados. Então se resolveu a tomar a disciplina, como os demais, a qual acabada, se correu a cortina, e viu sobre um trono resplandecente como o sol um ser de tanta formosura e grandeza, que ficara fora de si de espanto e de alegria, e que nunca mais perdera nem podia perder a memória do que tinha visto. Outra vez, estando este índio doente, de uma grande inchação, que lhe tomava desde o ombro até a cabeça, e lhe causava grandes dores, sem ter remédio, nem quem lhe soubesse aplicar, veio encomendar-se a Deus com grande afeto e confiança. Adormeceu uma noite, e apareceu-lhe aquele mesmo mancebo, que ele conheceu muito bem, o qual trazia na mão direita uma ave, e na esquerda umas ervas; perguntou-lhe que era o que pedia a Deus, e como dissesse que a saúde, aplicou o mancebo a ave ao lugar inchado, a qual picando com o bico a inchação, fez um buraco, por onde se purgou a matéria, e logo, pondo-lhe em cima as ervas, ficou sã a ferida. Acordou nisto o enfermo, e achou que a inchação verdadeiramente estava rebentada, e brevemente cerrou, e em breve ficou são. Outra vez tomou a sonhar este índio coisas semelhantes, ordenadas todas à sua salvação, e sendo sempre o ministro ou instrumento delas aquele mancebo seu conhecido, que ao primeiro entendeu seria o seu Anjo da Guarda, mas ultimamente lhe apareceu em vestido de padre da Companhia. Finalmente, Deus tem nesta seara muitos escolhidos, e se o demônio trabalha tanto para arraigar a cizânia que tem semeado nela, é porque teme e prevê que há de ser lançado fora, de que parece deu um manifesto sinal no mesmo dia em que chegaram os padres, porque, ao cerrar da noite, se ouviu de repente um estrondo tão grande, como de coisa que rebentava, que deixou assombrados a todos. Sucedeu isto junto à casa onde os padres estavam agasalhados, e dizem os índios que ali se costumava ver de noite uma figura medonha e afogueada e daquele ponto em diante nunca mais foi vista; o que podemos afirmar com toda a certeza é que a missão destes dois padres à Serra de Ibiapaba foi ordenada por particular providência de Deus, e que é vontade do mesmo Deus que assistam e continuem nela, de que nos tem dado tantos testemunhos, e tão claros, que se não podem duvidar. Já deixamos dito que assim os superiores da missão, como os do Brasil, ordenaram que os padres da serra voltassem outra vez para o Maranhão; mandaram-se estas ordens aos padres por muitas e repetidas vias, mas sempre Deus estorvou que chegassem, e por meios em que não só entrou a sua Providência, senão também o braço do seu poder. A primeira destas ordens mandou o padre Francisco Gonçalves, que, acabando de ser provincial do Brasil, veio visitar esta missão, e mandou-a no mesmo barco em que tinha vindo da Bahia; mas, porque o mestre estava desgostado do padre, por certa coisa em que lhe encontrou a vontade, tomou as suas cartas, em que vinha a ordem, e lançou-as ao mar em vingança, e entregou as dos outros padres. A segunda ordem foi enviada pelo padre provincial do Brasil, Simão de Vasconcelos, ao padre Antônio Ribeiro, que estava em Pernambuco, e chegou esta ordem na tarde do mesmo dia em que o padre pela manhã se tinha embarcado e partido para a sua missão. Em Pernambuco, deu o mesmo padre provincial as duas cartas com a mesma ordem ao padre Ricardo Careu, quando de lá se embarcou para o Maranhão, uma para que se desse no Ceará, outra para que se desse em Juruquaquara, que são os dois portos que comunicam com a serra; e, sendo que esta viagem se faz sempre vento a popa, tomando-se todos os portos com grande facilidade, o de Ceará nunca o pôde tomar o barco, o de Juruquaquara tomou-o; mas, tanto que lançou ferro para mandar à terra, foi tal o vento e mares que se levantaram subitamente, que a requerimento de todos se houveram de fazer à vela para se não perderem. Neste mesmo templo quiseram os padres ir esperar na praia pelo padre Careu, de cuja vinda tinham notícia, e no dia em que estavam para partir chegaram à serra alguns soldados, mandados pelo capitão do Ceará que detiveram os padres alguns dias, e nestes passou o barco. Do Maranhão tornou o mesmo barco a partir para Pernambuco, vindo nele uma via das mesmas cartas, para que de volta chegassem às mãos dos padres; mas depois de dois meses em que por muitas vezes intentou a passagem, tornou arribado ao Maranhão. Com esta tardança e a primeira notícia de ter passado, trataram os padres de mandar Correio por terra ao Maranhão, e depois de um mês de caminho voltaram com as mesmas cartas que levaram, porque os avisaram os teremembés que nas areias havia muitos tapuias de guerra. Insistiram outra vez os padres com segundos correios, e indo estes passando o Rio Temona, em uma canoa pequena que levavam para as passagens, acometeu-os um tubarão de tão estranha grandeza e fereza, que, perseguidos, houveram de encalhar em terra, e foi entre umas pedras, onde a canoa se fez em pedaços, e se tornaram com as cartas. Finalmente, se resolveram os padres a levarem em pessoa as mesmas cartas até tal parte do caminho, e entregá-las a tanto número de índios, e de tanto valor, que não voltassem, Estes foram por fim, os que chegaram, depois de haver ano e meio que por nenhuma via se sabiam novas daquela missão. Estavam detidas no Maranhão todas as ordens dos superiores, as quais haviam de levar estes mesmos portadores dali a oito dias, que foi o termo que pediram para descansar, e o que tinham limitado pelos padres. Mas quatro dias depois da sua chegada chegou o governador D. Pedro de Melo, e com ele tais ordens de Sua Majestade, e do padre geral, que ficou suspenso por elas o efeito e execução das outras. De Sua Majestade vieram três cartas, em que encarregou ao Governador que o seu primeiro cuidado fosse procurar que na Serra de Ibiapaba estivessem alguns religiosos da Companhia, para terem à sua conta e obediência aqueles índios, e para segurança dos ditos missionários se fizesse o forte de Camuci, que o governador André Vidal tinha intentado. Do padre geral vieram patentes de visitador e superior da dita missão ao padre Antônio Vieira, que sempre fora do voto que a missão da serra se continuasse, tendo para isto razões de tanto peso, que, mandando-as logo ao padre provincial, se conformou ele e todos os padres da província com elas. De sorte que, procurando-se com tanto cuidado, por novas vias diferentes, do mar e da terra, e em espaço de ano e meio, que chegassem aos padres da serra as ordens por que eram mandados retirar, Deus as impediu e estorvou todas por meios tão fora do curso natural das coisas, servindo-se para isso dos ventos, dos mares, dos rios, dos portugueses, dos índios, dos tapuias, e dos mesmos peixes, para que se visse que era vontade sua que os padres não saíssem daquele lugar, e que os meios que sua Providência tem predestinados para salvação das almas se hão de conseguir infalivelmente, ainda que seja necessário para isso tirar de seus eixos a toda a natureza.

Com as novas ordens que se mandaram aos padres, foram também cartas aos principais do novo superior da missão, em que lhes dizia que o seu intento e gosto era dar-lho em tudo o que fosse justo, e que, suposto o amor que tinham às suas terras, que nelas ficariam com eles os padres para os doutrinar, contanto que a esse fim se unissem todos, e se ajuntassem em uma só igreja. Foi esta nova recebida em Ibiapaba com grande aplauso, e festas; e logo mandaram todos os principais, uns a seus irmãos, outros a seus filhos, acompanhados de mais de cinqüenta outros índios, a visitar o novo governador e superior da missão, e um deles, que hoje se chama D. Jorge da Silva, filho do principal mais antigo, para que passasse ao Reino, a beijar a mão a Sua Majestade em nome de todos. Foram recebidos estes embaixadores com grande festa, que lhes fez o governador em sua casa, e os padres em o colégio por muitos dias, e tornaram contentes e presenteados eles, com outros mais presentes para seus principais, que é costume mui custoso, e às vezes mal empregado. Levaram também promessa do padre superior da missão que os iria visitar pelo São João do ano seguinte, com a qual esperança, e com a relação que deram os embaixadores, de quão benévola e liberalmente foram hospedados dos padres, se aplicaram todos à união das aldeias e ao edifício da nova igreja, concorrendo para ela com grande continuação e cuidado; enfim, parecendo, ou podendo parecer que já estavam desenganados das suas suspeitas, e seguros dos seus temores, e que tomavam todos deveras a doutrina dos padres. Mas o demônio ainda se não deu por vencido, e sobre esta tão diferente urdidura tornou a tecer e continuar a mesma teia de desconfianças, que também lhe tinham saído. Partiu D. Jorge para Lisboa, ficando-lhes no Maranhão, por descuido, as cartas que o padre Antônio Vieira lhe tinha dado; mas bastou ser conhecido por índio da missão do Maranhão, para que o conde de Odemira, que foi sempre grande protetor, como obra sua, o mandasse recolher em sua casa, e prover de todo o necessário com muita largueza, e o presentou depois a el-rei, que Deus guarde, e o enviou outra vez para o Maranhão cheio de mercês de Sua Majestade e suas.

Alguns meses antes do São João do mesmo ano mandaram também os principais de Ibiapaba muitos índios de sua nação, e outros de Pernambuco, para trazer à serra ao padre Antônio Vieira, na forma que lho havia prometido; mas como o padre, por enfermidade, e pela expedição das missões do mesmo ano se deteve no Pará até o fim dele e princípio do seguinte, sobre esta tardança tornou o demônio a introduzir em Ibiapaba, ou ressuscitar, as mesmas desconfianças dos padres, semeando entre eles, por boca de certos tapuias, que Jorge não fora mandado a Portugal, senão afogado no mar por ordem dos portugueses, e que os demais os estavam já servindo, repartidos por suas casas e fazendas, como escravos, e que a vinda do padre seria com grande poder e acompanhamento de soldados, para lhes fazer a eles o mesmo. Creram facilmente todas estas traições os que tão costumados estão a fazê-las; e de uma povoação que pouco antes se tinha feito de três, se fizeram logo mais vinte povoações, para que assim divididos não pudessem ser cercados nem apanhados juntos. Esta foi a resolução que se executou de público, debaixo da qual estava dissimulada outra de maior desatino, que era terem assentado consigo que se até a Páscoa lhes não constasse de certo serem falsas aquelas novas, como os padres lhes diziam, dessem por averiguado o cativeiro dos seus, e tomassem satisfação e vingança dele nas vidas dos mesmos padres. Tal era a vida que aqui viviam estes dois religiosos, morrendo e ressuscitando cada dia; antes, morrendo sem ressuscitar, porque o perigo fundava-se na ingratidão e crueldade desta gente, que é a maior do mundo, e a segurança fundava-se na sua fé, que nunca guardaram.

Chegaram estas notícias ao Maranhão quando chegou do Pará o padre Antônio Vieira, o qual se pôs logo a caminho para a serra, levando consigo a D, Jorge, que havia dois meses tinha chegado com sete padres que vieram do Reino, e levando também a todos os índios que tinham vindo de Ibiapaba, assim tobajarás como pernambucanos, os quais quis Deus que estivessem todos vivos, sãos e contentes. Começou o padre esta viagem por mar; mas, começando a experimentar segunda vez as incertezas e as dilatações dela, se pôs logo a caminho por terra, querendo também por si mesmo ver a grandeza dos rios, e o sítio e a capacidade das terras, por serem todas estas notícias absolutamente necessárias a quem há de dispor as missões. Os trabalhos da viagem foram os mesmos que já ficam contados, e puderam ainda ser maiores, por caminharem no mês de março, que é o coração do inverno, mas foi Deus servido que fossem os dias enxutos, como os do verão; só dois houve em que se padeceu alguma chuva; com que parece quis o céu mostrar aos caminhantes a mercê que lhes fazia; porque é qualidade destas areias que cada gota de água que lhe cai se converte em um momento em enxames de mosquitos importuníssimos, que se metem pelos olhos, pela boca, pelos narizes e pelos ouvidos, e não só picam, mas desatinam; e haver de marchar um homem molhado a pé, e comido de mosquitos, e talvez morto de fome, e sem esperança de achar casa nem abrigo algum em que se enxugar ou descansar, e continuar assim as noites com os dias, é um gênero de trabalho que se lê facilmente no papel, mas que se passa e atura com grande dificuldade: Vinha com o padre Antônio Vieira, além do irmão companheiro, o padre Gonçalo de Veras, um dos que novamente tinham chegado do Reino, e não sendo muito robusto de forças, vimos nele, com grande admiração e edificação nossa, as forças e o desejo de padecer por Deus; porque, tendo saído quatro meses antes do colégio de Coimbra, levava todos estes trabalhos com tanta constância, facilidade e alegria, como se nascera e se criara no rigor destas praias. Mas é graça esta própria dos filhos de Santo Inácio, que, posto se não criam nisto, criam-se para isto. Acrescentou muito o trabalho e incomodidades do caminho não quererem os padres ficar nele os dias maiores da Semana Santa; e assim se apressaram, de maneira que acabaram toda esta viagem em vinte e um dias, que foi a maior brevidade que até agora se tem visto; e como vinham a pé e descalços, muitos dias depois de chegarem lhes não sararam as chagas que traziam feitas nos pés; mas o tempo era de penitência, e de meditar nas de Cristo. Entraram na serra em quarta-feira de trevas pela uma hora e logo na mesma tarde começaram os ofícios, que se fazem com toda a devoção e perfeição, por serem quatro os sacerdotes, e os índios de Pernambuco terem vozes e música de canto de órgão, com que também cantaram a Missa da quinta-feira, e à sexta-feira à Paixão, em que vieram todos adorar a cruz com grande piedade, e na tarde, ao pôr do sol, se fechou a tristeza daquele dia com uma procissão do enterro, em que iam todos os meninos e moços em duas fileiras, com coroas de espinhos e cruzes às costas, e por fora deles, na mesma ordem, todos os índios arrastando os arcos e flechas ao som das caixas destemperadas, que em tal hora, em tal lugar, e em tal gente, acrescentava não pouco à devoção natural daquele ato. O ofício do Sábado Santo, e o da madrugada da Ressurreição, se fez com a mesma solenidade e festa, a qual acabada, começaram os padres a entender na reforma daquela cristandade, ou na forma e assento que se havia de tomar nela; e porque a matéria era cheia de tantas dificuldades, como se tem visto no discurso de toda esta relação, era necessária muita luz do céu para acertar em os maiores convenientes, e muita maior graça de Deus para os índios os aceitarem, e porem em execução; para alcançar esta luz e graça se tomou por padroeiro de toda a missão da serra a São Francisco Xavier, e se lhe fez uma novena, em que, além dos exercícios ordinários da religião, que se aplicavam todos para esta tenção, se dizia todos os dias uma Missa do santo, e os padres juntos na igreja tinham pela manhã meia hora de oração mental, e de tarde outra meia hora; uma, a que precedia um quarto de lição espiritual, em que se lia uma meditação, a que também assistiam todos, rematando-se a oração de pela manhã com a Ladainha dos Santos, e à tarde com a de Nossa Senhora, à qual se achavam também os meninos da aldeia, e muitos outros homens e mulheres, por se acabar esta devoção na hora em que começava a doutrina. Estava neste tempo no altar uma devota imagem de São Francisco Xavier em hábito de missionário, batizando um índio; e esperamos que, assim como Deus tem feito este grande apóstolo tão milagroso na Europa, na África e na Ásia, se estenderão também os favores da sua valia e intercessão a esta parte da América.

A primeira, que se resolveu e executou logo, foi que todos os índios de Pernambuco saíssem, e fossem para o Maranhão, como são idos, e se espera grande quietação e proveito espiritual de uns e outros, porque os pernambucanos, com a vizinhança e sujeição dos portugueses, estando debaixo de suas fortalezas, acudirão a suas obrigações, como têm prometido, e poderão ser obrigados a isso por força, quando o não façam por vontade; e os da serra, sem o exemplo e doutrina dos pernambucanos, que eram os seus maiores dogmatistas, ficarão pais desimpedidos e capazes de receber a verdadeira doutrina, e de os padres lhes introduzirem a forma da vida cristã, o que, endurecidos com a contrária, se lhes não imprimia. Assim mais se assentou com os principais, e com todos os cabeças da nação, que se tornariam logo a unir em uma só povoação, em que se faria igreja capaz para todos; que os que estão ainda por batizar se batizariam; que todos mandarão seus filhos e filhas à doutrina duas vezes no dia, e à escola; que nenhum terá mais que uma mulher, recebendo-se com ela em face da Igreja; que se confessarão todos ao menos uma vez pela desobrigação da quaresma. Enfim, que guardarão inteiramente a lei de Deus e obediência à Igreja, na qual se criou um ofício de executor eclesiástico, chamado Braço dos Padres, e se proveu em um índio zeloso, e de grande autoridade, irmão do maior principal, para obrigar a todos a virem à igreja, e cumprirem com outras obrigações de cristãos, e os castigar e apenar, se for necessário. De tudo isto se fez assento por papel, de que se deu uma cópia a cada um dos principais, querendo e pedindo eles que lhes ficasse, para que depois se lhes tome conta por ela, e se veja quem melhor a cumpriu. E por que a reformação começasse pelos maiores, e pelo ponto da maior dificuldade, os três principais foram os primeiros que se apartaram das concubinas, e se receberam com a mulher que por direito era legítima, fazendo ofício de pároco o padre superior da missão, e concorrendo com boa parte da despesa para a festa das bodas, que duraram por doze dias e doze noites contínuas.

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[1] Falta no original este nome. (Nota do P. André de Barros).

[2] Falta no original uma palavra. (Nota do P. André de Barros)