Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Informação, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

INFORMAÇÃO

que por ordem do Conselho Ultramarino deu sobre as coisas do Maranhão ao mesmo Conselho o

PADRE ANTÔNIO VIEIRA

SENHOR

O secretário Manoel Barreto de Sampaio me remeteu por ordem do Conselho, as cartas inclusas do Governador do Maranhão, e oficiais da Câmara da cidade de São Luís, para que sobre as notícias delas, por serviço de Sua Alteza, informe com meu parecer. E, posto que eu o não posso fazer sem muita repugnância, por haver necessariamente de falar nos religiosos da minha profissão; obedecendo, porém, como devo, direi com toda a sinceridade o que entender, segundo as presentes notícias, e a larga experiência que tenho daquele Estado. E para o fazer com maior clareza, dividirei este papel em três partes: na primeira proporei algumas máximas certas e infalíveis, de que se seguem e seguirão os danos que se padecem; na segunda referirei os meios que apontam o governador e oficiais da câmara, examinando sua conveniência e justificação; e na terceira direi o que me parece se deve obrar.

Primeiramente, é certo que o Estado do Maranhão está na última miséria, e nisto convém o Governador, e todos; e basta a mesma miséria para acabar de destruir e desfazer o dito Estado; se houver alguma nação da Europa que o queira invadir, se perderá infalível e irreparavelmente.

É também certo que a causa da sobredita miséria é a falta de índios, assim livres como escravos, sem os quais os moradores, se não podem sustentar nem aplicar à cultura das novas drogas de que a terra é capaz, e muito menos defender-se em ocasião de inimigos, por serem os portugueses poucos, os portos e lugares, por onde podem ser invadidos, muitos, e a costa vastíssima, aberta, e sem defesa, principalmente tendo já aprendido e sabido os índios - desde o tempo que o Ceará esteve dominado dos holandeses - que é muito mais suave o jugo dos hereges que o de tais católicos.

Com a mesma certeza se deve supor que os mesmos índios, que tão necessários são, já os não há, por estarem todos os sertões açoitados e despovoados em distância de trezentas e quatrocentas léguas, e os poucos que se poderão ainda descobrir estão tão escandalizados do mau tratamento dos portugueses, e tão desenganados de se lhes não guardar o que se lhes promete; e das tiranias que com eles se tem usado, que será muito dificultoso arrancá-los de suas terras, e mais tendo tantas experiências, de que descendo para as nossas todos morrem, e se têm consumido.

Sobretudo, é igualmente certo e certíssimo que, ainda que os índios fossem muitos, e todos viessem fácil e voluntariamente a viver entre nós, ou na nossa vizinhança, nenhum número ou multidão deles seria bastante ao estabelecimento do Estado, e muito menos no aumento que se lhe deseja. Assim o tem mostrado a experiência, pois, sendo o Maranhão conquistado no ano de 1615, havendo achado os portugueses desta cidade de São Luís até o Gurupá mais de quinhentas povoações de índios, todas muito numerosas, e algumas delas tanto, que deitavam quatro e cinco mil arcos, quando eu cheguei ao Maranhão, que foi no ano de 1652, tudo isto estava despovoado, consumido e reduzido a mui poucas aldeotas, de todas as quais não pôde André Vidal ajuntar oitocentos índios de armas, e toda aquela imensidade de gente se acabou, ou nós a acabamos em pouco mais de trinta anos, sendo constante estimação dos mesmos conquistadores, que depois de sua entrada até aquele tempo eram mortos dos ditos índios mais de dois milhões de almas, donde se devem notar muito duas coisas. A primeira, que todos estes índios eram naturais daquelas mesmas terras, onde os achamos, com que se não pode atribuir tanta mortandade à mudança e diferença do clima, senão ao excessivo e desacostumado trabalho, e à opressão com que eram tratados. A segunda, que neste mesmo tempo, estando os sertões abertos, e fazendo-se contínuas entradas neles, foram também infinitos os cativos com que se enchiam as casas e as fazendas dos portugueses, e tudo se consumiu em tão poucos anos.

Seja a última máxima a causa única e original de toda esta destruição e miséria, a qual não foi nem é outra que a insaciável cobiça e impiedade daqueles moradores, e dos que lá os vão governar, e ainda de muitos eclesiásticos, que sem ciência nem consciência, ou julgavam por lícitas estas tiranias, ou as executavam como se o fossem, não valendo a muitos dos tristes índios o serem já cristãos, ou vassalos do mesmo rei, para não lhes assaltarem suas aldeias, e as trazerem inteiramente cativas, sem mais direito - como eu ouvi aos mesmos capitães daquelas tropas - que o de poderem mais que eles. E não era possível, nem parece o será, que a justiça divina não acuda por sua Providência, e que o castigo de um estado, fundado em tanto sangue inocente, pare só na presente miséria.

Supostas estas máximas, em que não há dúvida e vindo às cartas do Governador, vejo nelas que as informações que de lá manda são as mesmas que de cá levou, porque uma das coisas que representou a Sua Alteza foi que não faria entradas no sertão, senão a pedimento das câmaras; e isto mesmo é o que a Câmara do Maranhão pede, envolvendo estes homens em tudo o que dizem os pressupostos das mesmas injustiças, que mais ou menos capeadamente querem prosseguir, e tomando por pretexto a conservação sua, e do Estado, e aumento da fazenda real.

Dizem que sem índios forros e escravos não se pode sustentar o listado nem cultivar as terras, e assim é e foi até agora; mas este meio por si só, quando totalmente fosse lícito, não é suficiente, porque, se o mesmo Estado, havendo tido tantos índios de um e outro gênero, tem chegado à suma miséria em que hoje se acha, como é possível que se possa reparar da mesma miséria, nem ter seguro ou provável o seu aumento, estando quase extinguidos os índios, e não os podendo haver, senão em número e proporção incomparavelmente menor?

Dizem, outrossim, e pedem que se façam entradas ao sertão, como nos tempos passados, para trazer escravos, e que os ditos escravos se façam por conta da fazenda real, a qual avançará neste contrato mil e quatrocentos por cento, vendendo-se os moradores por preço de trinta mil réis. Também a conta deste avanço é certa, e seria mui útil, e com pouco risco, se o primeiro contrato, em que se funda o segundo, fosse lícito; mas os mesmos oficiais da Câmara confessam nas suas cartas que os índios de corda, quando muito, poderão ser vinte ou trinta, sendo certo que ainda se alargam muito; donde se segue que pretendem, como dantes, os cativeiros injustos, assim como também pretenderão que os forros fossem trazidos por força, e para isso se ofereciam aos gastos da tropa, proposições ambas mui indignas de se apresentarem a um príncipe tão justo e pio como Sua Alteza.

Dizem mais, que os gastos da dita tropa, dando-se as munições dos armazéns reais, montariam três ou quatro mil cruzados; e isto não posso entender, porque o padre Francisco Veloso fez uma missão pelo Rio Tocantins, de mais de trezentas léguas, na qual trouxe os tupinambás em número de mais de mil almas; e eu fiz outra aos poquis, com outros padres, em que trouxemos mais de oitocentas; e outra a pacificar e reduzir os nheengaíbas, anajás e mamaianases, que havia vinte anos nosfaziam guerra; e outra à Serra de Ibiapaba, donde trouxe todos os índios pernambucanos, que se tinham metido com os holandeses, não falando das missões dos guajajaras, e dos catingas, e dos juruunas, e outras menores que fizeram outros padres, e levando nós a estas entradas grande número de índios e canoas, porque só no sertão dos tupinambás se fizeram de novo cento e vinte, em nenhuma das ditas missões entrou a fazenda real com despesa de um só vintém, exceto na da Serra de Ibiapaba, onde o governador mandou um barco que conduziu a gente, o qual barco não foi só a este fim, senão também a resgatar âmbar. E a razão de não ser necessária esta despesa, é porque as canoas são dos índios, e os remeiros os índios, e as farinhas dos índios, que tudo fazem sem estipêndio, e os mesmos índios são os que caçam e pescam para sustento dos poucos ou muitos portugueses quando vão a qualquer entrada. E se a entrada é a trazer gente livre, então tomam os índios todo este trabalho com muito gosto, para fornecerem e aumentarem com ela suas aldeias.

Dizem e pedem, finalmente, os oficiais da câmara que Sua Alteza seja servido de os aliviar do estanque do ferro, e mais gêneros que pediram os do Pará, alegando para isso que o intento de se procurarem os tais gêneros naquela capitania é o comércio dos escravos, que nela se fazem pela vizinhança do Rio das Amazonas; e cessando, como deve de cessar, o dito trato, por sua manifesta injustiça, tantas vezes condenada, também parece que o dito estanque será de pouca utilidade, não só ao Maranhão, senão ao mesmo Pará. E isso é tudo o que contém as cartas daquela câmara. Agora responderei às cartas do governador nos pontos, que são diferentes dos referidos, em que ele se conforma com tudo o que tenho dito, reconhecendo a utilidade dos meios, mas não os aprovando, por serem contra as leis reais, às quais se pode ajuntar a lei natural, e das gentes sobre que eles se fundam.

Diz, pois, o governador, que não se podendo fazer o descobrimento do Rio Paraguaçu por meio das armas, como os moradores queriam, em ordem a fazer escravos, intentou ele fazer o mesmo descobrimento pacificamente, por meio de um padre da Companhia e dois sertanejos práticos, e que o dito intento se desvaneceu por medo de uns e do outro. Este padre da Companhia é o padre Antônio Pereira, bem conhecido por suas virtudes neste colégio de Santo Antão, aonde se veio ordenar, e, acabados seus estudos de Teologia, tornou para o Maranhão, donde é natural; é muito prático na língua da terra, e de seu zelo e valor tenho eu boas experiências, por me haver acompanhado pelo Rio das Amazonas, e outros, em ocasiões não menos arriscadas. Se os sertanejos recearam a jornada, não me consta; mas tenho grande fundamento para suspeitar que eles foram induzidos a isso, porque os

moradores desejavam, e ainda desejam, o dito descobrimento por via de armas para fazerem escravos, e não pelo meio da paz. O certo é que, tendo notícia o dito padre deste desvio, e da causa de temor que se dava, foi ter com o Governador, e lhe disse que, se tinha alguma dúvida do seu ânimo e vontade, que mandasse prevenir as canoas, e veria se ele se embarcava logo ou não. E, para aliviar ao Governador de parte da despesa, de que queria fazer serviço a Sua Alteza, o padre reitor tomou por sua conta a que podia tocar ao dito padre, de cuja carta, digna de todo o crédito, consta o referido.

Mas, vindo ao ponto principal, do descobrimento do Rio Paraguaçu, este rio sai ao mar entre o Maranhão e o Ceará por oito ou nove bocas, que vulgarmente se cuida são rios diferentes, os quais todos eu vi e passei. Pela maior boca destas sai também a maior corrente do rio, que é largo de um tiro de mosquete, e mui profundo, e entra pelo mar com tal ímpeto, que em uma das viagens que fiz por aquela costa, estando duas léguas ao mar sobre ferro, batia no costado do navio com notável força e arruído, de que depois conheci a causa. Donde venha este rio não há notícia certa; mas, pelas que me tinham dado no Pará os índios tupinambás, tenho conjectura que nasce de uma lagoa, onde naquele tempo havia muitos índios de língua geral, e pelo nomes dos peixes que achei na boca do mesmo rio, e dos que se diz haver na dita lagoa serem os mesmos, entendi que se comunicam; e tinha tenção de fazer este mesmo descobrimento, quando os moradores amotinados, por não ser de escravos, impediram este e outros desígnios de grande serviço seu e de Deus.

Que o descobrimento se faça, julgo será muito conveniente pelos meios da paz; mas não entendo como possa ser só com vinte índios e duas canoínhas, que nelas se possam levar mantimento para cinco meses, ferramentas, resgates, e mais coisas necessárias para seguir a viagem, e contentar o gentio. Eu, quando fiz esta jornada, foi a pé pela praia, levando cinqüenta índios, e uma canoa para passar os rios; esta canoa em umas partes se levava às costas com varais, em outras rodando sobre eles pela areia, e, quando era força ir pelo mar, sempre ia alagada; mas, dado que as duas canoínhas possam navegar as quarenta léguas da costa que há do Maranhão ao rio - o que se não deve fazer senão no inverno, em que acalmam as ventanias - depois de entrarem da boca do rio para dentro, sem conhecimento dele, nem dos seus braços, nem das cachoeiras que pode ter, em que será necessário arrastar as canoas por terra, e subi-las por montanhas e penhascos, não alcanço como isto se possa fazer com vinte índios, e como estes se livrarão dos tapuias bárbaros, que cruzam as campinas e bosques daqueles sertões, e outras muitas dificuldades, que mais facilmente se topam de perto do que se podem discorrer de longe. Assim que o meu parecer seria que algumas canoas fossem maiores, em que as coisas necessárias se conduzissem com segurança, ao menos até a boca do rio, e muito maior o número dos índios que dali por diante prosseguissem o descobrimento; e que com eles, além dos dois sertanejos - que nenhum é prático do dito rio - fossem quatro mamelucos com armas de fogo, com que se possam defender dos tapuias, e que depois de descoberto o rio, e o que nele e por ele se achar, com roteiro que fará o padre, se saiba o que é necessário para a missão ou jornada principal.

Diz mais o governador, a este propósito, que os padres não buscam o martírio naquela terra, como o iam buscar a outras mais remotas, sendo o seu ofício pregar a fé, o que não querem fazer senão debaixo das armas, que lhes segurem a vida, e que já não fazem as missões como dantes. Em tudo isto fala o Governador como novo e mal informado. E quanto ao pique do martírio e pregação da fé, os gentios do Maranhão não são inimigos da fé, nem martirizam por ela, nem sabem que coisa seja; nem os padres que os vão buscar os reduzem a vir por meio da fé, senão por razões, promessas e conveniências humanas.

E, posto que também lhes dizem que serão Filhos de Deus, e se salvarão, a isto respondem, - comojá respondeu algum -que se Deus, como os mesmos padres dizem, está em toda a parte, também está na sua terra, e que nela se podem salvar. Assim que, para os arrancar do sertão, que é o que o Governador e os moradores pretendem, não é o meio a pregação da fé, para a qual eles não têm repugnância alguma, e depois se vão catequizando e instruindo.

Com a mesma pouca notícia, diz que não querem os padres ir senão debaixo das armas, que lhes defendam a vida, porque todas as missões acima referidas, que eu e outros padres fizemos, foram sem soldados, os quais só vão e pretendem ir onde há escravos, de que lhes caiba a sua parte; e os governadores também os procuram mandar e fazer a facção militar, para que lhes caiba a sua jóia, como capitães-generais; e assim o fizeram sempre nas entradas de resgate, que eram mui diferentes das outras, posto que fossem padres nelas.

E por que não fique sem resposta a calúnia verdadeiramente ridícula de hoje não fazerem os padres missões, é necessário distinguir dois tempos. Desde o ano de 1655 até o de 1661, em que os padres, por ordem de el-rei, tiveram à sua conta todas as aldeias e índios, fizeram com eles todas as missões que tenho dito, em que desceram grande quantidade de gentios de diversas nações, e povoaram com elas as aldeias do Pará, e fundaram a da Ilha do Sol, que era a maior e melhor que então havia. Depois do dito ano tiraram-se as aldeias aos padres, e ficaram em poder dos governadores e das câmaras, que se serviam dos ditos índios, e os puseram a eles e às aldeias no estado em que hoje as têm. E se os padres não tinham índios, com que haviam de fazer as missões, e levar, e remar as canoas necessárias à condução da gente? Não deve de estar informado o Governador que tudo isto se faz por rios, nem que a terra é impenetrável de bosques, e talhada de lagoas, e incapaz de se fazer em outra forma. Contudo, nem por isso deixam os padres de trabalhar sempre, e cultivar do modo que podem as relíquias das pobres aldeias, nas quais não acham mais que velhos e velhas inúteis, e crianças e doentes, as quais doutrinam e administram os sacramentos; e onde há comodidade de descerem alguns gentios sem tanto aparato, também o fazem, como no Itaqui, Gurupi, e outras partes.

Na última carta propõe o Governador a mudança do Capitão-mor do Pará para o Maranhão, e supõe que a sua assistência há de ser no Pará. As assistências dos governadores no Pará sempre foram suspeitosas, e mal avaliadas, mostrando a experiência que muitos deles queriam assistir naquela terra menos sadia, por estar mais perto da vindima e do lagar, que é o Rio das Amazonas, e as peças que dele se tiram; mas, como o presente Governador tem a opinião de tão reto e desinteressado, e é tão cuidadoso da observância das leis reais, como mostra nas suas cartas, parece que a sua assistência no Pará terá efeitos contrários, e dali poderá vigiar melhor sobre os que ocultamente vão fazer resgates, e castigá-los com a severidade exemplar que convém. No tal caso, será útil a mudança do Capitão-mor, porquanto com a assistência do Governador no Pará fica ociosa a sua, a qual se pode empregar melhor no Maranhão, e não se lhe faz injúrias, sendo o posto e o ordenado o mesmo.

Sobre a introdução da moeda, que também se propõe na mesma carta, com o avanço de cento por cento, não me atrevo a dar juízo. Representa-se-me que por este modo subirá muito o preço das drogas de fora, e abaterá igualmente o das drogas de dentro, com que antes diminuirá do que crescerá um Estado, cujo aumento se procura; porque, vendendo-se, v, g. um negro por cem patacas, as mesmas cem patacas para o mercador serão sessenta mil réis, e para o morador cento e vinte. E, ainda que de uma e outra parte se queiram pôr as drogas em equilíbrio, considerando-se reciprocamente o valor intrínseco ou extrínseco da moeda, nunca se podem evitar os danos que com o levantamento da nossa se tem experimentado. O dinheiro corrente do Maranhão, não são só novelos e pano, senão tabaco, açúcar, cravo, e os demais gêneros que se comutam; e, em qualquer resolução que se tome, sempre se devem proibir os novelos, como moeda verdadeiramente falsa.

De tudo o que fica dito se colhe que os meios apontados pelo Governador e Câmara - exceto o de que logo falarei - nem cada um per si, nem todos juntos são suficientes para o eficaz remédio do Maranhão.

Quando a primeira vez cheguei ao dito Estado, o achei enfermo deste mesmo mal, e logo avisei a Sua Majestade das causas, e apontei os remédios; e porque parte deles se não aplicaram; e os que se aplicaram, não só se impediram depois, antes se elegeram os contrários, em vez de cobrar saúde aquele corpo, está hoje expirando, e quase morto. O milagre de o ressuscitar só o pode fazer o poder de Sua Alteza, e o maduro e acertado conselho de seus ministros, a quem represento os meios seguintes. Primeiro: que Sua Alteza, por conta de sua real fazenda, pois não há particulares que o façam, mande meter no Maranhão competente número de escravos de Angola, os quais se vendam por preço moderado aos moradores, e com largueza de tempo, em que os possam pagar pelo rendimento dos gêneros que fabricarem. Este meio é apontado pelo Governador e oficiais da Câmara, e aprovado por todos os conselhos e juntas, e confirmado com os exemplos e experiência de todo o Brasil, que só cresceu à opulência depois que foi cultivado com os tais escravos; nem Sua Alteza e seus Ministros devem dificultar semelhante empenho e despesa, pois se emprega em matéria certa, e não contingente, e na conservação de um Estado de quatrocentas léguas de costa, o mais vizinho de todas as conquistas, e que pela fertilidade de suas drogas é apetecido das nações estrangeiras, as quais folgarão de despender pelo adquirir muito mais do que se pede para o conservar. Segundo, e não menos principal, que o resgate ou latrocínio dos índios chamados escravos totalmente se proíba, e que esta proibição se observe, e as penas cominadas se executem inviolavelmente, porque só o castigo da terra pode aplacar e suspender o do céu, como nos ensinam tantos exemplos da História Sagrada, sendo certo que em todo o domínio de Portugal não há outra terra onde tanto sangue inocente esteja clamando e pedindo justiça ao céu, como a do Maranhão.

Terceiro: que na conversão das almas dos gentios, e cultura dos já batizados, se ponha o maior cuidado, para que tenhamos da nossa parte a Deus, de quem depende tudo. E, posto que esta cultura seria mais natural e desembaraçada nas terras próprias dos gentios, fazendo-se nelas colônias pelos mesmos rios acima - o que já não é possível, por estarem despovoados - ao menos em qualquer outra parte onde estiverem, nem os índios, nem seus párocos sejam molestados dos moradores, o que não pode ser sem o favor mui declarado de Sua Alteza, e dos que estão em seu lugar, sem o qual todos se lhes atrevem, e tudo se confunde.

Quarto: que por meio dos missionários, pacificamente, e sem violência, se procure descer para a vizinhança de nossas povoações todo o número de índios que se puderem descobrir, e que desde logo se apliquem a este só ministério todos os índios que há das aldeias, enquanto se não acabam de todo, e que estes se não divirtam a alguma outra ocupação, senão depois que as aldeias antigas estiverem fornecidas, ou edificadas outras de novo.

Quinto: que a este fim se reponham todas as aldeias e índios livres delas no antigo estado em que Sua Majestade os pôs debaixo da administração dos religiosos da Companhia, ou de outra religião, que melhor ou igualmente o faça, a qual religião deve ser somente uma, pelos grandes inconvenientes que do contrário se seguem, não sendo possível conservar-se de outra sorte a união e sujeição dos índios, que, por serem tão poucos, necessariamente se hão de tirar de todas as aldeias para o fim que se pretende.

Sexto: que depois de fornecidas e povoadas as ditas aldeias, então se repartam os índios para serviço dos moradores, e que na dita repartição não tenham jurisdição ou exercício algum dos ditos padres, e fique toda à disposição do governador, ou de outra pessoa ou pessoas desinteressadas à eleição dos povos, para que se evite toda a ocasião de queixa.

Sétimo: que no entretanto - e sempre, se parecer - os velhos, e mulheres, e moços das aldeias, incapazes de irem ao sertão, se ocupem no distrito delas em lavrar cacau, e outras drogas de que forem capazes as terras, para que todos, segundo as suas forças, trabalhem para o bem temporal público, e aumento do Estado e rendas reais.

Isto é, Senhor, diante de Deus, o que me parece pelas razões apontadas, e outras que se não podem reduzir em tão breve escritura; e quando a substância do que digo se aprove, e se ofereçam algumas objeções em contrário, creio que poderei satisfazer a elas, sendo Vossa Alteza servido que o Conde Presidente e o Conselho me ouça, protestando que no que toca aos religiosos da Companhia falo com sinceríssimo zelo do maior serviço de Deus e de Vossa Alteza, entendendo que eles são os que com menores defeitos podem obrar o que represento. Colégio de Santo Antão, 31 de julho de 1678.

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