Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Carta do Padre Antônio Vieira, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

CARTA DO PADRE ANTONIO VIEIRA,

Pax Christi.

Como eu fazia conta de partir juntamente com a armada da bolsa, e as ocupações daqueles últimos dias foram tão grandes, reservei o escrever para os dias que nos detivéssemos na Ilha da Madeira; mas como Deus dispôs outra coisa, e a armada haverá chegado sem carta minha, nesta darei conta a Vossa Reverência de tudo o que tem passado acerca da missão do Maranhão, depois que Vossa Reverência partiu desta corte.

A primeira coisa em que entendemos foi em continuar o requerimento da fundação da missão, o qual Sua Majestade despachou na mesma forma em que lho apresentamos, ordenando que nos dessem trezentos e cinqüenta mil réis para dez sujeitos, à razão de trinta e cinco para cada um, pagos a metade nos dízimos da Bahia, e a outra no contrato do tabaco desta cidade. Da parte tocante aos dízimos da Bahia se nos passou logo provisão, sobre a qual replicamos, para que se fizesse cláusula que se nos pagaria independente dos governadores, como ao bispo e clero da Sé, e neste requerimento se trabalhou mais que no primeiro, porque tivemos quase todos contra nós, mas alfim se venceu, como Vossa Reverência veria do teor da provisão. A do tabaco não se passou logo, porque achamos que estava consignado a outros pagamentos, e porque todos os do Reino hoje são mui incertos, e assim nos pareceu o pedir estoutra a metade nos dízimos do Rio de Janeiro, como se concedeu, e também se passaram as provisões, nas quais não se deve fazer dúvida o dizer-se que se pagará dos sobejos dos dízimos, porque se entende do que sobejar dos ordenados e ordinárias que neles estão consignadas, e não do pagamento de soldados, a que também se aplica, como de muitas cláusulas da mesma provisão se deixa entender. Alcançada a fundação, que era a condição sine qua non da missão, conforme as ordens que trouxe o padre Francisco Ribeiro, tratamos do modo com que breve e comodamente, e sem gastos da província, pudessem ir para o Maranhão os sujeitos dela, e se expediram as cartas para o Conde Governador, e para V. Reverência, em que Sua Majestade manda que aos padres da dita missão se dê todo o provimento necessário, e se tome um caravelão, à custa tudo de sua fazenda, em que os padres partam em companhia da armada até a altura do Rio Grande, em que pode haver perigo, e dali sigam sua derrota. Estas cartas foram por via do porto com Filipe Bandeira, e porque não tenho aviso de haverem chegado às mãos de V. Reverência, farei que se multipliquem as vias. Sobre estes dois fundamentos resolvemos, o padre Francisco Ribeiro e eu, de tratar da missão em forma, e seguindo os desígnios do padre Luís Figueira e as ordens de Sua Majestade, em que manda que edifiquemos casas e igrejas nas três capitanias do Maranhão, Pará e Gurapá. Alcançamos, primeiramente, que em cada uma das ditas capitanias se nos desse uma aldeia para termos índios, e que nos acompanhem e sirvam nas missões, independentes dos governadores, de que levamos provisões de Sua Majestade, cujas cópias também remeto a V. R., e de mais dos viáticos, que montaram quatrocentos e vinte mil réis, nos fez mercê Sua Majestade de setecentos e cinqüenta e seis para provimento das igrejas, de que logo se arrecadaram mil cruzados, com as quais duas esmolas, e outras, se aviou a missão de tudo o necessário às igrejas, casas e resgates, na forma que V. Rev, verá pelas listas que com esta vão. Os sujeitos que nos pareceu admitir para a missão foram os seguintes: o padre Manoel de Lima, cujos merecimentos V. Rev. muito bem conhece, o qual, desesperado de poder prosseguir a sua missão do Japão, dedicou-se, et sua omnia a esta do Maranhão. O padre João de Sotomaior, e o padre Manoel de Sousa, os quais por justos respeitos estiveram ocultos até a véspera da partida, e o segundo com as ordens tomadas dois meses havia, sem ninguém o saber nem suspeitar.

O padre Francisco Veloso e o padre Tomé Ribeiro, sem embargo de terem em Coimbra muitas opiniões, ainda de padres graves e espirituais, que os aconselhavam a não irem à missão senão depois de acabada a Teologia; mas eles com grande edificação, se renderam logo ao que entenderam ser vontade dos superiores dessa província. O padre Gaspar Fragoso, que leu este ano a Nona, e é sujeito de grande virtude, recolhimento e resolução, acabou o curso, e tem muito bom talento de pregador. O irmão Agostinho Gomes, ólim[1] Agostinho das Chagas, da Irmandade de Santo Inácio, chamado vulgarmente o estudante santo, porque verdadeiramente o é, e cuido que V. Rev. o confessou algumas vezes. Entrou no noviciado dia do Espírito Santo, e foi com cinco meses de noviço. Além destes, recebemos dois irmãos, José de Mena[2] e Antônio de Mena, a quem mudamos o nome pela equivocação da língua da terra, e hoje se chamam José e Antônio Soares; o primeiro é clérigo dos de Santo Inácio, Casuísta, homem de grande oração; o segundo é cursista, mas a melhor habilidade, e o melhor humanista do pátio, e, sobretudo, anjo de condição e costumes, também da Irmandade de Santo Inácio; com que ficaram suprindo a menos estreiteza do noviciado que terão no Maranhão, onde ou no navio, se lhes hão de deitar as roupetas. De mais destes recebemos dois irmãos coadjutores, um dos quais é Francisco Lopes, que servia este colégio, de cujo espírito não digo nada, porque o conhece V. Rev.; outro, Simão Luís, oficial de carpinteiro, homem de muito bons costumes e préstimo. Não conto aqui o padre Luís Moniz, porque o levou Deus para si, com grande sentimento nosso; nem ao padre Antônio Vaz, porque deu causas para não ir nesta ocasião, das quais dou conta a V. Rev. em carta particular, e, com aprovação do Padre Provincial, ficou até novo aviso de V. Rev. De maneira que são os sujeitos de que se formou a missão por todos doze, oito sacerdotes, dois irmãos estudantes, dois irmãos coadjutores. Pareceu-nos exceder tanto o número, principalmente supondo que dessa província hão de ir os que Sua Majestade ordena, porque, havendo de ser as residências três, e havendo de se tratar das missões e conversões do GrãoPará e Rio das Amazonas, que é o que principalmente se pretende, não se pode acudir a isto tudo como convém com menos de dezoito ou vinte sujeitos, os quais Deus sustentará com a providência que costuma, aos que por se empregarem todos em seu serviço, não reparam em comodidades próprias; um punhado de farinha e um caranguejo nunca nos pode faltar no Brasil; e enquanto lá houver algodão e tujucos, também não nos faltará de que fazer uma roupeta da Companhia; e esta é a resolução e desejos com que imos todos; e confiamos na graça de nosso Senhor, que nos há de ajudar a perseverar neles. Quanto mais que lembrado estará V. Rev, que na consultinha que V. Rev. fez no seu cubículo sobre a côngrua que se havia de pedir para cada um dos missionários, em que nos achamos com V. Rev, o padre Francisco Ribeiro e eu, se resolveu entre todos que, para sustentar no Maranhão um sujeito bastavam vinte ou vinte e cinco mil réis, com que da sustentação dos dez fica sobejando para quatro ou cinco; acrescem mais os cinqüenta mil réis do meu ordenado, com que nos remediaremos dois; e como a renda se nos há de pagar na Bahia e Rio de Janeiro, tomando-a os dois colégios em si, e mandando-nos açúcares da sua lavra, com que nos façam esmola dos melhoramentos da sua liberdade, empregando-se tudo aqui nos gêneros mais necessários ao Maranhão, sempre virá a chegar lá muito acrescentado.

Bem vejo que os riscos do mar são grandes, mas alguma coisa hão de deixar a Deus os que dedicam tudo a ele. No Maranhão, como de lá nos avisam, também temos ainda alguns escravos, e criação de vacas, de que se poderão ajudar os daquela casa; e se nas outras, e nas missões, se fizer o fruto que se espera, logo Sua Majestade, como tem prometido, acrescentará mais renda, e não faltarão pessoas particulares e devotas que nos ajudem com suas esmolas. E quando não haja outras, resolver-me-ei a imprimir os borrões de meus papelinhos, que segundo o mundo se tem enganado com eles, cuida o padre procurador geral que poderá tirar da impressão com que sustentar mais dos que agora vão; assim que por falta de sustentação não deixe V. Rev. de mandar o número dos sujeitos que Sua Majestade pede; e nesta confiança, como digo, resolvemos que de cá fossem logo os doze. Disposta assim a missão, e tomado no navio o mais largo e cômodo lugar que pode ser - o qual também deu el-rei - em 22 de setembro começou a partir a frota, e os nossos missionários se foram embarcar todos, e eu dos últimos, com o padre Francisco Ribeiro, como que nos íamos despedir deles ao navio.

Chegados a São Paulo, soubemos que, partindo os demais, só o do Maranhão ficava, por ordem do Conselho Ultramarino, para poder levar um sindicante que dois dias antes se despachara. Estava el-rei naquele dia na quinta, fui lá, e alcancei um decreto da sua letra para que o sindicante ficasse em terra, e o navio do Maranhão partisse coma frota. Indo já para ele com tão bom despacho, soubemos que os capitães-mores do Maranhão e Pará não estavam embarcados pela mesma causa. Tomo a Lisboa, ao conde de Odemira, dou-lhe a notícia da nova ordem de el-rei, e conforme a ela se mandou aos capitães-mores que aquela noite se embarcassem, para darem à vela pela manhã, porque já não havia tempo nem maré; e com esta resolução nos tomamos para casa o padre Francisco Ribeiro e eu, deixando os demais embarcados, e parecendo-nos que com esta dissimulação se encobriam melhor os meus intentos. Mas, posto que geralmente sucedeu assim, não faltou quem entrasse nas suspeitas, e desse ponto ao Paço, donde, em amanhecendo me veio recado para que fosse falar a Sua Alteza; fui, e porque estavam para o sangrar, disse-me que esperasse para depois da sangria, tudo a fim de me deter; mas eu me saí, e me fui embarcar a toda a pressa. Chegando ao navio, soube que el-rei tinha mandado chamar ao mestre, de que os padres estavam mui desconsolados, entendendo o que podia ser. Não havia já em todo o rio para partir mais do que uma nau, que estava em Paço d'Arcos; pedi ao padre Francisco Ribeiro que quisesse ir saber se havia de tomar a Ilha da Madeira, e se levaria um passageiro, e eu, com o padre Luís Pessoa tomei mulas em Belém, e me parti a Lisboa; à porta do Paço achei o mestre do navio do Maranhão, que me disse o mandara chamar el-rei para lhe dizer que o havia de mandar enforcar, se em o seu navio fosse o padre Antônio Vieira. Também aqui soube que tinha mandado Sua Majestade ao mesmo navio o padre bispo do Japão, e o capitão do Pará: o bispo, para que me trouxesse, e o capitão com ordem que, tanto que eu lá não estivesse, partisse logo o navio. Com estas notícias tão declaradas, entrei a Sua Alteza - porque el-rei estava comendo - e lhe disse resolutamente que eu ia e havia de ir para o Maranhão, procurando reduzi-lo a que o houvesse por bem, com todas as razões e extremos que em semelhantes ocasiões costuma ensinar a dor e a desesperação; mas nenhuma bastou, antes me desenganou Sua Alteza que me não cansasse, porque el-rei estava na mesma resolução, e nenhuma coisa haveria que os apartasse dela.. Sobre este desengano considerei que, se falasse a Sua Majestade, me poderia deter muito, e perder a nau de Paço d'Arcos, e juntamente que, partindo sobre el-rei expressa e presencialmente negar a licença, ficaria a fugida menos decente, para quem a não quisesse escusar com a justificação da causa; pelo que, sem lhe falar, me tomei a Belém, onde também chegava de volta o padre Francisco Ribeiro, com resposta que a nau partia para a Bahia, e que havia de tomar a Ilha da Madeira, e que me levaria. Passei-me logo à fragata, deixando em terra aos dois padres, os quais ambos me disseram que não aprovavam a minha resolução, posto que o padre Ribeiro mais friamente que o padre Pessoa, com que em parte me animou. Bem conhecia eu que o que ditava a prudência nas circunstâncias presentes era o que me diziam os padres; mas eu não podia acabar comigo haver de desistir da empresa tendo chegado àquele ponto, nem deixar os companheiros, que o quiseram ser meus nela, e muitos dos quais por essa causa se determinaram mais a esta missão que a outra; e como o reparo dos padres que me aconselhavam era só o pôr a perigo a graça de el-rei, também me parecia que quanto eu mais a arriscasse e perdesse pelo serviço de Deus, tanto mais penhorado ficava o mesmo Senhor a favorecer os intentos por que o fazia, e assim o mostrou depois o efeito. Enfim, cheguei à nau a tempo que queriam levar a última âncora; mas ao mesmo tempo cresceu de tal maneira o vento, que toda a gente da nau - que eram sessenta homens - em muito tempo não puderam dar uma volta ao cabrestante, com que se dilatou a partida para a madrugada seguinte. Passei aquela noite com o corpo neste navio e a alma no do Maranhão, traçando como na Ilha da Madeira me havia de passar ocultamente a ele, sem saber o que no mesmo tempo se traçava em Lisboa contra mim. Foi o caso que, ao chegar à nau de Paço d'Arcos, me conheceu o provincial de São João de Deus, que passava por ali em uma fragata, e, chegado ao convento, foi visitar sua vizinha, a condessa de Óbidos, onde achou ao padre Inácio Mascarenhas, e lhe contou o que vira. Mandou logo recado o padre ao Conde de Cantanhede, o conde ao Príncipe, e Sua Alteza a el-rei, e, informando-se Sua Majestade de quantos navios havia para partir no rio, e sabendo que só três, mandou logo três ministros de Justiça com três decretos seus, que mos fossem notificar a qualquer navio onde eu estivesse. Ao amanhecer, íamos já navegando por São Gião fora, quando chegou a nós um corregedor, o qual, subindo à nau, me meteu na mão um decreto assinado por Sua Majestade, no qual lhe mandava me dissesse da sua parte que lhe fosse falar, porque importava, e que em caso que eu dificultasse o ir, notificasse ao capitão e mestre do navio que sob pena de caso maior desse logo fundo, e não partisse. Como a ordem era tão apertada, e às torres se tinha também mandado outra, que não deixassem sair nenhum navio sem constar que não ia eu nele, foi força obedecer, e arribar antes de partir. No caminho tomei o navio do Maranhão, que também já ia à vela, a despedir-me dos padres; e porque achei estar em terra o padre Manoel de Lima pelo que podia suceder, encomendei a missão ao padre Francisco Veloso, tendo-o por o mais antigo, posto que epois soube que o era o padre João de Sotomaior, mas no cuidado dos noviços terá em que empregar seu espírito e talento. Mais adiante, encontrei em uma gôndola aos padres Manoel de Lima e Manoel de Sousa, que à vela e a remo ia seguindo o navio, mas ainda assim nos abraçamos e choramos, ratificando-lhes eu a promessa que aos outros padres tinha também feito, de muito cedo ser com eles por qualquer via.

Enfim, cheguei ao Paço, onde Sua Majestade e Alteza me receberam com graças, zombando da minha fugida, e festejando muito apresa; mas ajudou-me Deus a que lhe soubesse declarar o meu sentimento, e as justas razões dele, que afirmo a V. Rev, foi o maior que tive em minha vida, com me ter visto nele tantas vezes com a morte tragada. Ao amanhecer do dia seguinte me bateu à porta do cubículo o padre Francisco Ribeiro, com um escrito do padre Manoel de Lima, feito nos armazéns, em que o avisava, como, sem embargo de se passar a uma barca pescareja, e haver seguido o navio quase todo o dia muitas léguas pela barra fora, o não pudera alcançar, e que ali estava prevenindo uma caravela, para dentro em vinte e quatro horas se embarcar até a Ilha da Madeira, a tomar lá o navio do Maranhão. Vinha o padre muito sentido com esta arribada dos padres, mas ela me animou, de maneira que no mesmo ponto se me assentou o coração que eu havia de ir com eles; e assim o comecei logo a intentar, metendo o negócio em consciência, e descarregando sobre a de Sua Majestade e Alteza a condenação ou conversão de muitas almas, que de eu ir ou ficar se poderia seguir. Sua Alteza estava doente, e nestes dias com suspeita de perigo, e foi mais fácil de persuadir, o que importou muito para que também se viesse a render el-rei, o qual me levou à rainha, nossa senhora, para que me dissuadisse; mas como a piedade em ambos Suas Majestades é tão grande, alfim puderam mais as razões do maior Serviço de Deus que todos os outros respeitos. Se algum Sacrifício fiz a nosso Senhor nesta jornada, foi em aceitar a licença a el-rei quando ma concedeu, porque a fez Sua Majestade com demonstrações mais que de pai, e assim eu a não tive por segura, até que ma entregou por escrito, e firmada de sua real mão, na forma da cópia que com esta remeto, em que tenho por particular circunstância ser passada em dia das onze mil virgens padroeiras deste Estado. Mostrei-a aos padres, e os poderes que nela Sua Majestade nos dá em ordem à conversão, e assentamos todos que o não partir o navio do Maranhão com a frota, havendo seis meses que estava esperando por ela, o descobrir-se a minha jornada, o não se poder levar a âncora, o mandar-me el-rei tirar do navio, o ficar em terra o padre Manoel de Lima, e o arribar depois, e tantas outras coisas particulares que neste caso sucederam, tudo foi ordenado pela Providência divina, que queria que eu fosse, mas que fosse com aprovação e beneplácito de el-rei, e com tão particulares recomendações suas aos governadores e ministros daquelas partes, que estes meios humanos podem ajudar e facilitar os da conversão, servindo-se deles a graça divina, como na índia se experimentou pelos favores com que el-rei D. João III assistiu aos da Companhia contra o poder dos capitães das fortalezas, e outros pouco zelosos portugueses, que por seus interesses os impediam. Informados estamos que em todos os lugares do Maranhão há muito disto; mas quererá Deus nosso Senhor, que possa com eles alguma coisa o medo, já que pode tão pouco a cristandade. Ficamos para partir em uma caravela, em que também vai um desembargador por sindicante, e o vigário geral e provisor, ambos os quais são muito nossos amigos; e esperamos que com o trato da navegação o sejam ainda mais, e que como pessoas que verdadeiramente são muito zelosas do serviço de Deus, nos ajudem muito ao bom sucesso e introdução de nossos ministérios. O padre Manoel de Lima leva comissão do Santo Ofício para o que naquele Estado se oferecer tocante a este tribunal; e também no Conselho Ultramarino lhe quiseram encarregar o ofício de pai dos cristãos, que agora se cria de novo no Maranhão, à imitação da Índia, para que os índios recorram a ele como a seu conservador, contra todas as vexações que lhes fizerem os portugueses; mas como o exercício deste cargo é de mui dificultosa execução, e mui odiosa, não nos pareceu que convinha que a levássemos, principalmente quando imos fundar de novo, para o que nos é tão necessária a benevolência dos povos; e também, porque sendo o nosso principal intento abrir novas conversões pelo sertão e rio acima, não serviria este ofício mais que de embaraço e impedimento a outros maiores serviços de Deus; e, assim, replicamos ao Conselho e a Sua Majestade, que a rogos nossos foi servido aliviar-nos deste cuidado, como também do de sermos repartidores dos índios, que por provisão antiga estava encomendado ao padre Luís Figueira, e seria um seminário de ódios e de contradições. Os do Conselho Ultramarino, e todos os mais ministros, por cujas mãos passaram estes dois requerimentos, se edificaram muito deles; e esperamos que, constando-lhes, como há de constar aos moradores do Maranhão e Pará, destas nossas resistências e réplicas, acabarão de entender a verdade do zelo que lá nos leva, e desenganar-se quão errado é o conceito que têm de nós, em cuidarem que queremos mais os índios que suas almas; muito resolutos imos a procurar arrancar esta pedra de escândalo dos ânimos dos portugueses, e a não falar em índios mais que no confessionário, quando o peça o remédio de suas consciências, e a satisfação das nossas; e os índios que de novo convertermos, deixá-los-emos ficar em suas terras, com que eles e nós vivamos livres destes inconvenientes, e de todos os outros, que com a vizinhança dos portugueses se experimentam. A disposição que fazemos conta de seguir nestes princípios, é que o padre Manoel de Lima fique no Maranhão, e eu com os companheiros, que parecer, passe logo ao Pará, a tratar da fundação daquela casa, e, depois de a deixar em ordem com os padres que a continuem, ir fazendo o mesmo ao Curupá, e estar ali mais de assento, como a principal fronteira da conversão, e onde se há de assistir e animar esta conquista espiritual. Bem conhecemos que os principais soldados dela hão de ser os que V. Rev. nos há de mandar dessa Província, como mais experimentados e mais práticos na língua, e mais exercitados nos costumes desta gente, e modos por onde se hão de reduzir. Muito estimara eu que meu condiscípulo do curso, o padre Francisco de Morais, quisera, ao menos por alguns anos, vir ser apóstolo deste Novo Mundo, onde, não só com sua grande eloqüência e espírito, nos facilitasse e vencesse as primeiras empresas, e com seu exemplo nos fosse diante, e nos ensinasse o que havemos de fazer. Verdadeiramente seria esta ação mui própria do seu zelo, e que com grande edificação de toda a Companhia coroaria os gloriosos trabalhos que pela salvação das almas em tantas outras partes tem padecido. O mesmo desejo de outros sujeitos, grandes línguas, que conheci nessa Província, e o espero deles, e de outros muitos, que não conheço. Assaz pouco número é o de seis para tão grande seara. A Província do Brasil foi principalmente fundada para a redução e conversão dos gentios, e, não havendo nela hoje outra missão senão esta, justo é que não faltem sujeitos para ela, e que estes sejam tais que a Província sinta muito perdê-los, como acontecia a São Francisco de Borja, porque nunca melhor ganhados, nem mais bem empregados; que Deus, a quem se dão, dará outros por eles; e quando a Província de Portugal, a quem toca menos, não repara em se privar dos sujeitos de maiores esperanças para os dar ao Maranhão, maior obrigação corre à do Brasil em não faltar com os que só nela se podem achar, que são os línguas.

Bem conhecemos todos o zelo de V. Rev., e eu o dos padres consultores da Província, e assim não encarecemos mais esta matéria, tendo por certo que, já que na frota deste ano não pode ser, na do que vem nos mandará V. Rev. estes tão desejados e tão importantes companheiros, por quem estaremos esperando com os braços e corações abertos.

Quando todos seis não possam ser línguas, venha embora algum irmão coadjutor, e, se for oficial de carpinteiro, melhor.

Também, se todos os línguas não forem padres, e houver algum irmão estudante eminente nela, venha embora, que no Maranhão terá estudos e ordens, como os demais que lá vão; que tudo há de facilitar e compor o tempo, e, com os primeiros bispos que tiver Portugal, o há de ter também aquele novo Estado; e, se a conversão for por diante, não só um, senão muitos; e quando totalmente o não haja, faremos o que fazem hoje os do Brasil, que todo o outro inconveniente é menor que começar uma conversão sem homens muito práticos na língua, principalmente entre gente que mede por ela o respeito. O padre Mateus Delgado nos edificou muito com se passar da nau, em que chegou, à caravela do Maranhão, em que se embarca conosco, não querendo, pela não perder, nem chegar à sua terra, sendo tão perto, e tendo lá negócios de muita importância; mas deu-lhe Deus a conhecer que o que só importa é salvar a alma própria e a dos próximos, e por este seu ditame, e outros que lhe tenho ouvido, me parece que nos será mui bom companheiro na missão, e mui capaz de dar boa conta de tudo o que se lhe encomendar. Dou a V. Rev. muitas graças por tal sujeito, mas com condição que V. Rev. no-lo não queira descontar no número dos seis, o qual esperamos muito inteiro, e antes acrescentado que diminuído. Os nove que partiram no navio do Maranhão já lá estarão hoje, com o favor de Deus, e o mesmo Senhor parece que nos tem dado prendas, de que sem dúvida os quis levar lá, porque, ao segundo dia que daqui saíram, foram seguidos de um turco, que os investiu e abalroou, e quando já estavam ou rendidos, ou quase rendidos, vieram duas fragatas de guerra francesas, que os livraram, e tomaram o turco, e vieram vender os mouros ao Algarve. Assim se conta por certo, e dizem que há em Lisboa mouro dos que estiveram dentro do navio do Maranhão, posto que eu o não vi. Bendito seja o Senhor, que por meios tão extraordinários acode aos que o buscam. Por fim desta, como protestação de fé, quero dizer e confessar a V. Rev. que tudo o que nos bons princípios desta missão se tem obrado, se deve mui particularmente ao zelo, diligência e indústria do padre procurador geral, Francisco Ribeiro, e tudo são efeitos de sua grande caridade e pontualidade, com a qual nos assistiu, encaminhou e superintendeu a tudo, de maneira que sem ele se não pudera fazer nada. Deus lho pagará, e a V. R. pedimos todos lhe dê V. Rev. por nós as graças. No particular dos negócios de demandas da Província, e das batalhas que teve com os padres desta, e de quão prudente e constante se houve nelas, não refiro nada a V. Rev., porque os efeitos o dizem: são tudo frutos do seu zelo e juízo, e da sua muita religião e trato familiar com Deus, com que tem edificado muito esta Província, e acreditado a nossa.

V. Rev., depois de o deixar trabalhar aqui o tempo com que ele se conformar, lhe dê por prêmio o ir-nos ajudar na nossa seara, que é o que deseja, e a nós por alívio e consolação o ir emendar o que tivermos errado, que não pode deixar de ser muito; e, verdadeiramente, a grandeza daquela missão pede o seu talento e espírito. Entretanto, V. Rev. nos mande encomendar muito a nosso Senhor, para que nos faça dignos instrumentos de seu maior serviço e glória; e, particularmente, pedimos todos a bênção e santos sacrifícios de V. Rev. - Lisboa, 14 de novembro de 1652.

De V. Rev. filho em o Senhor.

Antônio Vieira.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] Ólim, palavra latina que significa outrora.

[2] Mena, nome de peixe.