Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Voto do Padre Antônio Vieira, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

VOTO DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA

Para falar com o fundamento e clareza que convém em matéria tão importante, como da consciência, e tão delicada, como da liberdade, é necessário primeiro que tudo supor que índios são estes, de que se trata, e que índios não são.

São, pois, os ditos índios, aqueles que, vivendo livres, e senhores naturais das suas terras, foram arrancados delas por suma violência e tirania, e trazidos em ferros, com a crueldade que o mundo sabe, morrendo natural e violentamente muitos nos caminhos de muitas léguas, até chegarem às terras de São Paulo, onde os moradores delas - que daqui por diante chamaremos paulistas - ou os vendiam, ou se serviam e se servem deles como escravos, esta é a injustiça, esta a miséria, este o estado presente, e isto o que são os índios de são Paulo.

O que não são, sem embargo de tudo isto, é que não são escravos, nem ainda vassalos, Escravos não, porque não são tomados em guerra justa; e vassalos também não, porque, assim como o espanhol ou genovês cativo em Argel é, contudo, vassalo do seu rei e da sua República, assim o não deixa de ser o índio, posto que forçado e cativo como membro que é do corpo e cabeça política da subnação, importando igualmente para a soberania da liberdade tanto a coroa de penas como a de ouro, e tanto o arco como o cetro.

Daqui se segue que os mesmos índios de São Paulo dentro desta sua miséria, ainda que trazidos às terras sujeitas ao domínio de Portugal, de nenhum modo estão eles sujeitos ao mesmo domínio, de tal sorte que os reis a seu arbítrio os possam obrigar com leis, pensões ou tributos, nem limitar, diminuir ou alterar a inteireza da sua liberdade, antes, pela mesma opressão que têm padecido e padecem, lhes são devidas aos ditos índios duas satisfações, uma da parte dos reis, outra da parte dos paulistas. Da parte dos reis, que, como príncipes justos, os devem pôr a todos em sua liberdade natural, não consentindo em seus estados tal tirania, antes castigando severamente os delinqüentes nela. E da parte dos paulistas, que lhes satisfaçam os danos recebidos, e lhes restituam e paguem o preço do seu serviço, a que por força os obrigaram.

E são tão preciosas estas duas obrigações, primeiro na falta da restituição dos ditos índios à sua natural liberdade, tantas vezes procurada pelos reis castelhanos e portugueses, e sempre resistida pela rebeldia dos paulistas, que só pode escusar as consciências reais a grande dificuldade de o conseguir. A qual impossibilidade, porém, só pode fazer lícita as ditas Majestades a dissimulação de tolerar semelhantes injustiças, mas de nenhum modo é bastante, a lhes dar direito ou autoridade de as aprovar em todo nem em parte, debaixo de qualquer pretexto, conveniência ou acomodamento, como o da presente administração, salvo somente se for com expresso, voluntário e livre consentimento dos ditos índios, sem força, dolo ou simulação alguma; como também só do mesmo modo podem ser perdoados por eles aos paulistas os danos acima referidos, e a satisfação e paga do seu serviço, onde muito se deve advertir que, não sendo o dito consentimento totalmente livre, sincero e verdadeiro, e os índios consentirem na administração de que se trata, só por remir sua vexação, nem por isso os causadores dela ficarão seguros em consciência, nem poderão ser absoltos das violências que na dita administração, ou debaixo de qualquer outro especioso nome se continuarem.

E isto suposto, depois de venerar quanto devo as resoluções que se têm dado às dúvidas dos moradores de São Paulo, havendo de declarar o meu parecer, comoO terceiro escrúpulo é fundado na lei da liberdade, e o quarto no exemplo das lícitas administrações conforme a ela. A definição da liberdade segundo as leis é esta: Naturalis facultas ejus, quod de se et rebus suis quis que facere velit. - E, consistindo a liberdade no direito e faculdade que cada um tem de fazer de si, isto é, de sua pessoa e de suas coisas, o que quiser, combine-se agora tudo o que na sobredita administração se permite e concede aos administradores, e julgue-se se com mais razão se devem chamar cativos que livres: cativos nas pessoas, cativos nas ações, cativos nos bens de que eram capazes, se trabalharam para si. De sorte que de si e de seu não lhes fica coisa alguma, que por toda a sua vida não esteja sujeita aos administradores, não só enquanto estes viverem, senão ainda depois de mortos.

Estas, que nós chamamos administrações, tiveram seu princípio em todo o resto da América com nome de encomendas, por serem encomendados os índios aos administradores; e porque entre eles se foram introduzindo vários abusos contra a liberdade dos índios, não bastando o caso quarto da Bula da Ceia para os refrear, como nota em próprios termos dos índios o venerável e doutíssimo padre José da Costa, que escreveu na mesma América, depois do Concílio, que se fez em Lima, e se examinar a matéria nos tribunais de Espanha, pelos juristas e teólogos de maior nome, fizeram os Reis Católicos, para descarga de suas consciências, as leis de que porei aqui algumas, referidas e confirmadas com muitos textos e autores por D. João Salorzano Pereira, em um apelido castelhano, e em outro português, e por todos os títulos merecedor do elogio que lhe deu Madrid na aprovação do tomo de Indiarum Gubernatione, a saber: Quem nostra Hispania generalem praeceptorem agnoscit[1].

No primeiro livro, pois, do dito tomo, cap. I, n. 12, proibindo a lei o serviço pessoal dos índios - que é, na definição da liberdade, a cláusula de se - diz assim: Para cuyo remedio ordeno y mando que daqui adelante no aya ni se consienta en estas provincias, ni en ninguna parte dellas, los servicios personales, que se reparten por via de tributos a los indios de las encomiendas, y que los juezes, o personas que hicieren Ias tassas de los tributos, no los tassen por ningún caso en servicio personal, ni le aya en estas cosas, sin embargo de qualquiera introdución, costumbre o cosa que cerca de ello se aya permittido, sobpena que el encomendero que usare de ellos y contraviniere a esto, por el mismo caso aya perdido y pierda su encomienda: lo qual es mi voluntad que assi se cumpla y ejecute, y que el tributo de los dichos servi cios personales se commute y pague como se tassare en frutos de lo que los mismos indios tuvieren y cogieren en sus tierras, o en dinero, lo que desto fuere para los índios mas commodo, y de menos vexación. - Até aqui a dita lei, emendando como contrário à liberdade dos índios o uso de eles servirem pessoalmente aos encomendeiros, que são os administradores, e mandando que o cuidado que têm da administração se lhes satisfaça dos tributos que os mesmos índios costumam pagar a el-rei dos frutos das suas lavouras, etc., e para que em nenhum caso se consintam os ditos serviços pessoais, declara outra lei, ibid. n. 14: Que no puedan los indios por sus delictos ser condenados a ningún servicio personal de particulares. - Debaixo do qual nome de particulares se entendem, além dos mesmos vice-reis, expressados em muitas provisões, todos os demais, que nomeadamente se contêm na mesma lei citada, cap. 2, n. 8, a qual manda ou proíbe: Que no se den indios a nadie en particular, sino que, si pareciere convenir, compelan a los indios a que trabajen, y se salgan a alquilar a las plazas y lugares públicos, para que los que hubieren menestar, assi hespanoles, como otros indios, ora sean ministros reales, o prelados, religiones, sacerdotes, doctrineros, hospitales, y otras qualesquiera congregaciones, v personas de qualquier estado que sean, los concierten y cogan alli por dias, o por semanas, y ellos vayan con quién quisieren, y por el tiempo que les pareciere de su voluntad, y sin que nadie los pueda tener contra ella, tassandole los jornales, etc.

E falando outra lei particularmente com os ministros, cap. 2, n. 4, é notável a miudeza dos serviços pessoais e domésticos dos índios que os reis lhes proíbem, não com menos penas que de perderem os ofícios, por estas palavras: Ni os sirvais de los indios de agua, ni yerva, ni leria, ni otros aprovechamientos, ni servicios directa ni indirectamente sobpena de la nuestra merced, y de perdimientos de vuestros officios. - E, finalmente, os mesmos reis - núm. 9 - dão a razão deste que parece demasiado aperto, dizendo: Porque aunque esto sea de alguma discomodidad para los hespanoles, peza más la libertad y conservación de los indios.

Isto é o que acerca da dita liberdade dispõem os Reis Católicos, como senhores da América, para satisfação de suas consciências, e dos espanhóis que habitam aquelas terras, ou as vão governar, e isto o que, como supremos administradores, não concedem, mas proíbem, nas administrações dos índios, entendendo, com todos seus conselhos, que de outro modo não podem ser lícitas. E porque o mesmo é o meu parecer, tendo quando menos por escrupulosas as larguezas com que se responde às dúvidas dos homens de São Paulo, resta responder aos fundamentos delas, como agora farei.

E, começando por onde começam os mesmos paulistas, dizendo que Sua Majestade lhes concede a administração dos índios, suposto não serem os ditos índios capazes de se governarem por si, nem de se conservarem em uma vida de algum modo humana e política, nem de se estabelecerem de outro modo na santa fé, se ficarem sem administradores sobre si, esta suposição, na generalidade em que se toma, de nenhum modo se pode verificar nos índios de São Paulo, porquanto os que os paulistas traziam do sertão não eram tapuias bárbaros, senão índios aldeados, com casa, lavouras, e seus maiorais, a quem obedeciam, e os governavam com vida, deste modo humana, e a seu modo política.

E, quando menos, se não devem esquecer das muitas mil almas que trouxeram de duas reduções de Paraguai, onde todos eram cristãos, e os vieram seguindo, como seus pastores, o padre Simão Maceta, e o padre Justo Manzilla, e procuraram no governo da Bahia a sua restituição e liberdade, mas sem efeito. E do mesmo lote eram aqueles que, cercados em uma grande igreja em dia de festa, os meteram em correntes, matando à espingarda o seu pároco, porque os quis defender, e outros muitos deste gênero.

Mas, posto que com mais piedade que experiência, haja quem os queira medir a todos pela sujeição de puramente menores, saibam os paulistas que por isso mesmo, ainda que voluntariamente se queiram os ditos índios sujeitar a ter a união perpétua acima referida, que a tal sujeição e a tal vontade é nula e inválida.

Assim o ensina, com muitos textos e doutores, o já alegado Solorzano, de Indiarum Gubernatione, lib. I, cap. 3, n. 55 et 56 - onde diz: Et voluntas indorum, qui minorum jure et privilegiis utuntur, in perniciem libertatis ipsorum trahi non debet, neque impediri uteam revocent, et a dictis fundis et dominis, quando voluerint, recedere possint, cum nervo, etiam major, et volens, dominus sit membrorum suorum[2]. - E no núm. 57 dá a razão de ser a dita vontade inválida e nula: Quia licet aliquando tolerari soleat pactum perpetuum de operis praestandis, pactum tamen inducens perpetuam libertatis privationem invalidum est[3].

O segundo fundamento é que se lhes dá aos paulistas a administração dos índios na forma acima referida, com condição e promessa que não tornem ao sertão a ir trazer outros. Ao que se responde que non sunt facienda mala ut eveniant bona[4].

- E não faltará quem diga que mais seguro modo de não tornarem os paulistas ao sertão seria o que com glória imortal executou el-rei de França neste mesmo século, quando, para impedir os danos que os piratas rocheleses faziam em todos os mares, arrasou totalmente a Arrochela, concorrendo também para isso a armada de Espanha.

Mas, tornando à dita condição, em bom romance, vem a ser como se ao ladrão se dissera: Eu te concedo o uso lícito de quanto tens roubado, com que prometas de não roubar mais; no qual caso, se os roubos foram da fazenda real, bem se pudera esperar da benignidade e grandeza de Sua Majestade que os perdoasse; mas, sendo o mesmo rei e senhor nosso, que Deus nos guarde muitos anos, entre todos os príncipes do mundo o maior favorecedor das gentilidades, e de seu bem assim espiritual como temporal, de nenhum modo se pode presumir que queira sujeitar a tal modo de cativeiro perpétuo tantos milhares de inocentes.

O terceiro fundamento da dita sujeição é de não se poderem apartar os índios da casa dos administradores paulistas, antes, serem obrigados por força, e com castigo, a tomar para elas; é o exemplo de que se usa nas aldeias do Brasil, em que, se fogem ou se ausentam os índios, os obrigam que tornem, e residam nelas; mas a razão da diferença é muito clara, porque os índios do Brasil são naturais delas, onde têm seu domicilio, e vivem como em terra e pátria própria, e de sua nação, pais, avós, e como partes da mesma comunidade, e membros do mesmo corpo político, que devem conservar e aumentar, e não diminuir nem desfazer; e, pelo contrário, os índios chamados de São Paulo, nenhuma obrigação têm àquela povoação e república, donde saíram os que por suma violência e tirania os arrancaram de suas terras e pátrias; e obrigá-los a que conservem a dos paulistas, e não se possam separar dela, seria o mesmo que se os cativos de Argel fossem obrigados a não fugir nem procurar sua liberdade por outra via, para conservarem o mesmo Argel.

O quarto fundamento é que o sobredito modo de tratar os índios, e se servirem deles, é usado dos religiosos ainda mais observantes e timoratos de São Paulo, cuja religião, porém, e cujo exemplo não basta para fazer lícito o dito tratamento, salvo se fosse tão benigno e paternal que os mesmos índios, como filhos, muito por sua vontade o aceitassem, e de nenhum modo repugnassem ou se queixassem dele, porque nesta segunda suposição tão injusto seria, e digno de ser emendado, o dito abuso nos eclesiásticos e religiosos como nos leigos.

Sobretudo se deve advertir que tal forma de administração é totalmente nova e inaudita, porquanto todas as outras foram e são fundadas em índios aldeados, e juntos na mesma povoação ou comunidade, onde sejam administrados por um administrador, e nesta tantos vêm a ser os administradores como as famílias, as quais só na vila de São Paulo e seu distrito passam de quatrocentas, e nas capitanias anexas, a que se estende a mesma administração, são mais de quatro mil; e sendo coisa dificultosa achar um administrador fiel, como se pode supor ou imaginar que o sejam tantos centos e tantos milhares de administradores?

Pedindo muitas vezes os moradores do Maranhão ser administradores dos índios, na forma e à semelhança dos de Castela, não por famílias, senão em aldeias e comunidades, nem o senhor rei D. João, de gloriosa memória, nem Sua Majestade, que Deus guarde, o quiseram nunca conceder, pela ocasião e perigo moral de infinitas injustiças; e, posto que nas respostas das presentes perguntas se põem tantas moderações e cautelas, que especulativamente possam fazer pelo mesmo modo lícitas as ditas administrações, as mesmas moderações e cautelas em tanta multidão de administradores são manifestas ocasiões, perigos e demonstrações de que na praxe se não poderão observar, antes, debaixo do especioso nome de administração, concedida por autoridade real, sejam licença e liberdade pública para se cativar a dos índios.

O que tudo suposto, depois de muito considerado, e encomendado a Deus o remédio de matéria tão importante, não só ao alívio e vida tolerável e racional dos índios, senão muito mais às consciências de tanto número de portugueses, até agora na vida e na morte tão arriscadas; o meio ou meios que se me oferecem são os dois seguintes:

Primeiramente, é certo que as famílias dos portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender à escola; e desunir esta tão natural ou tão naturalizada união seria gênero de crueldade entre os que assim se criaram, e há muitos anos vivem. Digo, pois, que todos os índios e índias que tiverem tal amor a seus chamados senhores, que queiram ficar com eles por sua livre vontade, o possam fazer, sem outra alguma obrigação mais que a do dito amor, que é o mais doce cativeiro, e a liberdade mais livre.

Funda-se esta resolução no exemplo e lei expressa do mesmo Deus em semelhante caso. O cativeiro dos hebreus na lei antiga durava até seis anos, como consta do cap. 21 do Êxodo, e diz assim a lei: O servo hebreu não servirá mais que até o sexto ano, e no princípio do sétimo sairá livre; mas, se ele disser: Eu amo a meu senhor, e mulher, e filhos, e não me quero sair de sua casa, nem usar de liberdade - em tal caso o dito servo fique servindo a seu senhor perpetuamente: Quod si dixerit servus: Diligo dominum meum, uxorem et liberos, non egrediar líber... Erit ei servus in saeculum.

O mesmo digo eu, mas com certa limitação - que também a tinha aquele servo até o ano do jubileu. - A limitação no nosso caso é que, se o índio se arrepender pelo tempo adiante de estar na mesma casa, o possa fazer, e passar-se para alguma das aldeias de administração, de que logo se tratará, e desta limitação se seguirão dois grandes efeitos. O primeiro, que assim se conservará a inteireza da liberdade dos índios. O segundo, que o senhor, ou amo, com receio de o perder, e que se lhe vá de casa, o tratará com tal benignidade e satisfação sua, que conserve a mesma vontade e amor com que se quis perpetuar em sua companhia, e por este meio de tanta suavidade ficarão os homens e famílias de São Paulo com grande número de índios, e os melhores e mais úteis, dos quais licitamente se possam ajudar e servir, sem outra paga ou estipêndio que o bom e amorável trato de que eles se contentem.

O segundo meio é que todos os outros índios que não tiverem este amor a seus chamados senhores, divididos pelos lugares mais acomodados, se ponham em numerosas aldeias, com seus párocos e administradores, onde no espiritual possam ser doutrinados, e viver à lei de cristãos, e temporalmente ser governados, de modo que eles se conservem e sirvam por seu estipêndio aos portugueses pelo modo seguinte:

Quanto aos párocos, que estes sejam regulares ou seculares, e que os índios, dos dízimos que não pagam das suas lavouras lhes façam a côngrua conveniente, com que terão a doutrina necessária, e quem lhes administre os sacramentos a toda a hora, e lhes diga Missa nos dias de guarda, e não vivam, sendo batizados, como muitos hoje, que apenas uma vez no ano vêm à igreja.

Quanto aos administradores, que ponha Sua Majestade um tributo aos índios - como vassalos que já serão - nas suas lavouras, o qual tributo sirva de salário aos administradores, e que estes sejam alguns daqueles moradores de São. Paulo, os quais foram tão timoratos, que no tempo das entradas no sertão nunca quiseram ter parte nelas, merecendo por isso esta confiança e prêmio; e digo, falando destes índios, vassalos que já serão, porque o estilo dos pactos que se fazem com os isentos, é jurarem eles juntamente vassalagem a Sua Majestade.

Quanto ao serviço dos portugueses, que os índios das ditas administrações fiquem obrigados a ele, alternativamente, quatro até seis meses no ano, como no Maranhão o aceitaram com aplauso de todos; e que o estipêndio ou jornal de cada dia seja o que for mais justo e acomodado a contentamento das partes, sendo a espécie da paga em pano de algodão, como é costume aos índios, e de mais comodidade em São Paulo, no qual pano terão suficientemente com que se vestir a si, a suas mulheres e filhos.

E quanto ao exercício dos índios nos meses livres, que os administradores os não deixem estar ociosos, obrigando-os, com a moderação de livres, a que trabalhem e façam suas lavouras, de que abundantemente se sustentem, estando a presente repartição, para que lícita e suavemente se consigam os quatro intentos santos e verdadeiramente reais de Sua Majestade, a saber, a liberdade dos índios, a consciência dos paulistas, a conservação de suas povoações, e serviço e remédio de suas famílias.

E porque não há leis tão justas e leves que não necessitem de quem as faça executar e guardar, para este fim parece conveniente que, assim como em Pernambuco e no Rio de Janeiro houve antigamente administradores eclesiásticos, assim haja em São Paulo um, de conhecido zelo e justiça, que todos os anos visite aquelas capitanias, e tenha cuidado de que tudo o dito se observe, e, nos casos que se oferecerem, os possa e saiba decidir.

Este é o meu parecer, salvo meliori judicio. Bahia, 12 de Junho de 1694.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística



[1] A quem nossa Espanha reconhece por mestre universal.

[2] A vontade dos índios, que se iguala em direitos e privilégios à dos menores, não pode ser usada em detrimento da liberdade dos mesmos, os quais são livres de mudar de senhor e lugar quando quiserem, de tal modo que, mesmo quando maiores, ninguém pode ser senhor de seu corpo.

[3] Porque, embora às vezes se possa tolerar um acordo perpétuo de serviços, contudo, qualquer acordo que signifique perpétua privação de liberdade é inválido.

[4] Não se fazem males para que deles resultem benefícios.