Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Carta para o sereníssimo rei D. Pedro II, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

CARTA PARA O SERENISSIMO REI D. PEDRO II.

DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA

SENHOR

Prostrados aos reais pés de Vossa Majestade, depois de dar infinitas graças a Deus pelos extremos de piedade e zelo, sem dúvida inspirado do céu, com que Vossa Majestade nesta conquista, e em todas, não só manda, mas por sua real pessoa, com o primeiro e principal cuidado, se digna de atender à propagação da fé e salvação das almas, não igualando somente, mas excedendo o exemplo dos senhores reis predecessores de Vossa Majestade, que sobre estes fundamentos mais procuraram aumentar o reino de Cristo que a própria monarquia prometida pelo mesmo Senhor, de que ele os fez senhores; com o mesmo reconhecimento, em nome de toda à Companhia, beijo as mãos a V. Majestade, pela mercê incomparável de se haver dignado servir, dela em obra de tanto agrado e glória de ambas as Majestades.

Dando conta das missões, além da relação particular das que se fizeram discorrendo por várias partes, principalmente do sul, mais necessitadas de doutrina não menos nos portugueses que nos índios, só desejo se tenha entendido que não são de menos necessidade e fruto as das cidades e aldeias permanentes e fixas, porque nas do sertão, falto de párocos e curas, todos os portugueses, assim na vida como na morte, recorrem aos que nelas assistem, ouvindo eles às nossas igrejas, quando podem; ou, quando não, indo os mesmos missionários, com muitas léguas e dias de caminho a assisti-los, e sendo muito maior, sem comparação, o número dos negros que o dos índios, assim como os índios são catequizados e doutrinados nas suas próprias línguas, assim os negros o são na sua, de que neste colégio da Bahia temos quatro operários muito práticos, como também outros no Rio de Janeiro e Pernambuco; e porque sem a ciência das línguas tudo o mais que em outras missões se ensina não passa dos portugueses, tantas são as escolas das mesmas línguas que temos instituído nesta Província, quanta a variedade delas, das quais não podem passar a outros estudos os nossos religiosos moços, sem primeiro serem examinados e aprovados. E entenderam tanto isto pela experiência os missionários de São Filipe Néri, que a maior parte deles trataram de se passar à Companhia, apadrinhados com carta do Bispo de Pernambuco, com as informações necessárias a serem admitidas, de que nesta primeira via  remeto os originais, e na segunda as cópias.

Sobre ajunta que se fez acerca da mudança da aldeia do Saco dos Morcegos, fui de singular parecer, porque cada um é obrigado a dizer o que entende. Os pontos que se haviam de resolver eram dois. Primeiro, se convinha e era necessária a mudança. Segundo, se em virem presos três ou quatro dos que a repugnavam, como tinha resoluto o governador antecedente, havia perigo. A necessidade da mudança se fundava em que os tapuias do Saco, por falta de água e mantimentos, só assistiam naquele sítio seis meses do ano, e nos outros seis se metiam pelos bosques, a sustentar-se da caça e frutos agrestes, morrendo lá as crianças e catecúmenos sem batismo, e os batizados tornando tão gentios como de antes eram; e a este ponto nada se referiu, Ao segundo, todos responderam com o exemplo dos tapuias do Rio Grande, e medo de outra rebelião semelhante, sendo as causas o número da gente, e a mesma gente nunca sujeita nem doutrinada, antes provocada com muitas injustiças, e de mui diferente nação, e por todas as outras razões, não havendo nesta que recear.

O presidente e os conciliários que se acharam na dita junta, posto que muito doutos em outras matérias, nunca viram nem trataram índios. Os que aconselhavam e pediam aquela pequena demonstração de violência em três ou quatro bárbaros, conformando-se todos os outros com a mudança, eram dez missionários que assistiam com eles na mesma, e nas outras aldeias da mesma nação, que estavam expostos ao perigo, e mais perto dele quando o houvesse; e eu, como quem se tem embarcado trinta e seis vezes a França, Inglaterra, Holanda, Itália, Maranhão, Brasil - todas em serviço de Sua Majestade -julguei que em dúvida antes devia seguir o parecer dos pilotos que o dos passageiros, não falando na minha experiência de cinco anos nas aldeias do Brasil, e nove nas do Maranhão, Grão-Pará e Rio das Amazonas, de diversíssimas línguas e nações, em que fiz muitas mudanças com grande sossego e felicidade, ajudando-me, quando era necessário, do nome e autoridade dos governadores, e, nas maiores ocasiões, de seis soldados somente, como pode testemunhar Manoel Guedes, que ainda é vivo, sargento-mor do Pará.

A este propósito não deixarei de representar a V. Majestade, por ser exemplo próximo, o que os dias passados sucedeu nas cabeceiras do Rio São Francisco, em distância mais de cento e cinqüenta léguas desta cidade, onde dois missionários doutrinavam várias nações de tapuias novos, e muito menos domésticos que estes. Houve uma notável enchente naquele rio, que alagava, e levou casas; e como os padres oferecessem missas e orações para que cessasse a inundação, sem efeito, entenderam os bárbaros que o Deus dos cristãos não era tão poderoso, como os padres lhes pregavam, e se resolveram alguns a fazer outro Deus, que os livrasse, escolhendo para isso o que entre eles tinha melhor presença, e mais avultada estatura. Para o constituírem na divindade o incensaram com fumo de tabaco, que ele recebia com aboca aberta, e logo lhe fizeram sua igreja, ao modo das nossas, fabricada com ramos de palmas. Sabendo isto um dos portugueses, sargentomor dos curraleiros daqueles campos, acompanhado de um só mulato seu, se foi a onde estavam os novos idólatras, e, mandando amarrar com as mãos atrás ao deus, obrigou aos demais que queimassem a igreja que lhe tinham levantado, ameaçando-os com maior castigo se caíssem em outra semelhante ignorância, que mais merecia este nome que o de maldade. E porque os padres se tinham retirado, dizendo que não queriam estar com tal gente, nem eles o mereciam, todos se lhes vieram lançar de joelhos a seus pés, prometendo obediência, e mostrando-se muito sentidos de que os mesmos padres se tivessem queixado ao branco, que assim chamam aos portugueses, bastando o medo de um só para lhes guardarem tal respeito.

Eu, contudo, o tive tão grande à sobredita junta, por ser feita em nome de V. Majestade, que não só ordenei logo aos missionários que de nenhum modo falassem mais em tal mudança, senão que, para remédio da fome da aldeia, lhes mandei um bom socorro de dinheiro, não do colégio, que não pode acudir a tanto, mas do trabalho dos três dedos com que escrevo esta, e do lucro das impressões que aplico quase todo a este comércio,lembrado que São Paulo, aos companheiros que o ajudavam, sustentava com o trabalho de suas mãos, e que a nós é necessário estendê-lo à miséria dos mesmos que doutrinamos.

Não sei com que fundamento se afirmou que em acudir aos servos se houveram os padres da Companhia friamente. Estes poucos bárbaros assistem nos matos dos Ilhéus, últimos confins desta diocese, donde o arcebispo começou a sua visita, que acabou gloriosamente em uma residência nossa, nas entradas do sertão, onde ia tomar os exercícios de Santo Inácio, e deixou encarregado a todos os párocos que nas dúvidas que tivessem recorressem aos padres que assistem nas aldeias. Nas dos povos residiam dois homens chamados os Chertes, pai e filho, este havido em uma índia da mesma nação, mui práticos ambos na sua língua, com que não era possível reduzi-los senão ao que eles quisessem: era costume ser, não o serviço de Deus, senão outros muito contrários. Este impedimento se propôs da nossa parte ao arcebispo, que então era governador, e que, tirado ele, tomaríamos logo à nossa conta aquela doutrina, que de outra maneira não só era inútil, mas ocasionada a outros inconvenientes, que a podiam desesperar para sempre. E como a separação do dito homem não tivesse efeito, foi força esperar pela vinda do governador de Pernambuco cujo zelo é mais eficaz, e suas ordens mais temidas com as quais partiram já dois missionários para os povos, e um deles dedicado somente a aprender a sua língua, dificuldade que só conhecem os que a experimentam.

Estes sujeitos fazem-se muito devagar, e só na menor idade são aptos para o que mais ensina a natureza que a arte, principalmente onde a não há. Por esta causa foram para o Maranhão muitos moços, e porque, sendo novas as nações e novas as línguas, não podiam os velhos tê-las aprendido antes, quanto mais que os velhos, em tempos tão trabalhosos, mais depressa se acham nas sepulturas que entre os vivos. Em dois meses morreram agora neste colégio da Bahia oito, de todas as idades, e principalmente um, que tinha vinte anos das missões, com ciência de muitas línguas bárbaras, e outro já bastantemente prático nelas, com perda irreparável. Só Deus compreende os seus juízos, e nós os devemos admirar e venerar, e não desmaiar, como fazemos, considerando que dos apóstolos escolhidos para converter o mundo só um chegou a ser velho.

Isto é, senhor, o que posso responder à carta de V. Majestade, que tomo a pôr sobre a cabeça, ficando todos os desta pequena e dilatadíssima província rogando ao Autor da vida nos conserve a de V. Majestade por largos e felicíssimos anos, como a Cristandade e os vassalos de V Majestade havemos mister. Bania, 1 de junho de 1691.

Antônio Vieira.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística