LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Carta do padre Antônio Vieira para o Marquês de Gouveia, do Padre Antônio Vieira
Edição referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998
CARTA DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA PARA O MARQUÊS DE GOUVEIA
SENHOR MARQUÊS,
Apartando-se Antônio Vieira dos pés do Senhor Marquês Mordomo-Mor, caído de sua graça, como se havia ou devia tratar daí por diante, senão como morto? Assim o fiz em um caso tão sem remédio, depois de aprovado e confirmado por quem só o podia impedir, não me deixando a sua ausência lugar para o recurso, nem a sua resolução liberdade para a emenda. Alongar-me tanto da presença e favor de V. Excelência é certo foi para com Deus o maior sacrifício, não tendo eu na vida outra coisa que lhe sacrificar; mas não me persuadi que para com V. Excelência fosse e tão grande culpa[1]. Contudo, a confessei na última hora a quem podia manifestar a V. Excelência a minha tão grande como justa dor, não sem bastantes sinais de arrependimento. Duvidoso do perdão, pelo que tinha experimentado, nem a pedi-lo a V. Excelência me atrevi. Esta foi a causa do meu silêncio, tomando por castigo a perpétua sepultura.
Agora me referem tais demonstrações da clemência de V. Excelência, e da antiga mercê e afeto com que V Excelência se dignava honrar-me, que não posso duvidar me tem V. Excelência restituído ou ressuscitado à sua graça[2]. E como poderei eu declarar o excesso de alegria e estimação com que recebi esta nova, senão com dizer, prostrado aos pés de V. Excelência, que já vivo; e que já Deus me tem pagado o mesmo sacrifício com que desejei deixar tudo, e a mim mesmo, por seu amor? Pague o mesmo Senhor, que só pode, a V. Excelência esta tão mal merecida caridade, que não tem outro nome, e seja em conservar e aumentar a V. Excelência por muitos anos a inteira saúde e vida, como eu nunca cesso de rogar à sua divina Majestade, em todos os meus sacrifícios e orações, que neste deserto, a que estou retirado, se não são mais fervorosas, são mais contínuas; e sempre com tanta suspensão e cuidado, que não me dando nenhumas novas do mundo, só as de V. Excelência procuro e solicito em todos os navios que vêm desse Reino.
Outras chegarão cá - para que dê conta de mim a V. Excelência como dantes - as quais se me quiseram encobrir ao princípio; mas deram tamanho eco, que foi força chegarem-me aos ouvidos[3]. Não merecia Antônio Vieira aos portugueses depois de ter padecido tanto por amor da sua pátria, e arriscado tantas vezes a vida por ela, que lhe antecipassem as cinzas, e lhe fizessem tão honradas exéquias. Fez-me, porém, Deus tanta mercê, que nem com os primeiros movimentos senti um tão exorbitante agravo, o qual se me não havia de fazer, se os executores ou motores não estivessem persuadidos que antes lisonjeavam que ofendiam a quem não fez a demonstração que devera. Quiseram muitos que a fizesse eu, e que no primeiro navio mandasse impedir a impressão do livro que lá tinha chegado, e que não escrevesse mais na língua de uma nação que assim me tratava, antes, o fizesse na castelhana, italiana, ou outra estrangeira, em cuja piedade tinha mais seguro o crédito que na fúria dos meus naturais. Eu, contudo, tive por mais conforme à vida ou morte que professo, não alterar nada do exercício em que me tomou este caso; e assim continuarei, enquanto me não constar que V. Excelência aprova o contrário.
Aqui não há outra novidade que a mudança do governo, em que a inteireza, desinteresse e exemplo de vida e constância, até o fim, de Roque da Costa, deixara canonizada para sempre sua memória, e pode V. Excelência dar crédito a este meu testemunho, porque, fazendo-me, as poucas vezes que nos encontramos, todo o favor, os que de mais perto me tocavam lho não deviam. Ele se embarcou na mesma hora em que entregou o bastão, e, assim, não tenho lugar de estender mais estas regras, esperando não serão hoje menos aceitas a V. Excelência que no tempo e fortuna de que nunca perderei as saudades. Excelentíssimo senhor, Deus guarde a Excelentíssima pessoa de Vossa Excelência muitos anos, como esse Reino, e os criados de V. Excelência havemos mister. Bahia, 23 de maio de 1682.
Pe. Antônio Vieira.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
[1] Negou-se o marquês quando o Padre Antônio Vieira o buscou para se despedir, na ausência que fazia para o Brasil. (Nota do P. André de Barros).
[2] Alude ao insolente arrojo com que certos homens vis do povo, por ódio e influxo alheio, queimaram em Coimbra uma ignominiosa estátua do Padre Antônio Vieira. (idem).
[3] Alude ao insolente arrojo com que certos homens vis do povo, por ódio ou influxo alheio, queimaram em Coimbra uma ignominiosa estatua do Pe. Antônio Vieira.