Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Protesto que o padre Antônio Vieira fez à camara e mais nobreza da cidade de Belém do Pará, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

PROTESTO QUE O PADRE ANTÔNIO VIEIRA FEZ À CAMARA E MAIS NOBREZA DA CIDADE DE BELÉM DO PARÁ,

A esta hora, que são as seis da manhã, tive notícia que V. Mercês se ajuntavam às nove, e, posto que até agora-a exemplo de Cristo, nosso Senhor, em sua Paixão -tomei por resposta de tudo o que comigo se tem obrado o silêncio, por último descargo de minha consciência, e pela obrigação que me corre de procurar também o das consciências de V. Mercês, me resolvi a representar e lembrar a V. Mercês o que permite a estreiteza do tempo.

Primeiro que tudo, peço a V. Mercês queiram ler o que disser neste papel, com os olhos postos em Deus e em suas consciências, e na conta que lhe hão de dar, e com os corações limpos de toda a paixão e afeto, e desejosos somente de acertar, como V. Mercês são obrigados.

Com este pressuposto, lembro primeiramente a V. Mercês que são cristãos, e que não há exemplo nas histórias de que homens cristãos e católicos fizessem o que neste Estado do Maranhão se tem começado a fazer, e vai continuando. Os padres da Companhia de Jesus, que residimos neste Estado não só somos religiosos por profissão, como os demais, mas por ofício somos párocos das igrejas dos índios, donde fomos expulsados; e tirar os párocos às igrejas é excesso que temem cometer ainda aqueles que negam a obediência à Sé Apostólica, como se vê em muitas cidades e paróquias de Alemanha, que, havendo mais de cento e cinqüenta anos que negaram a obediência ao Sumo Pontífice, conservam contudo os párocos e pastores nas suas igrejas, contra o que se tem feito neste Estado.

Lembro à V. Mercês que a residência dos ditos párocos em suas igrejas, e muito mais o terem as igrejas párocos, é de direito divino indispensável, e que nem o Papa os pode tirar delas. Pode o Papa tirar um pároco, e pôr outro; mas tirar os párocos às igrejas, como neste Estado se tem feito, não pode o mesmo Papa. E ainda que V. Mercês digam que em lugar dos padres da Companhia poderão suprir outros párocos, é coisa que não podem V Mercês fazer, nem há neste Estado quem tenha poder para isso, porque o Sumo Pontífice tem cometido esse poder só a Sua Majestade, e Sua Majestade tem posto por párocos das cristandades dos índios aos padres da Companhia, como consta de suas leis; e quaisquer outros, que se não puserem pelo dito senhor, serão ilegítimos, e não serão párocos, de que se seguem gravíssimos absurdos, e ainda nulidades nos sacramentos.

Lembro a V. Mercês que não há nação no mundo que mais necessite da assistência dos párocos que os índios naturais desta terra, por sua natural inconstância e rudeza; e que da falta e ausência dos ditos párocos se segue e se vai já experimentando a ruína de muitas almas, de todas as quais V Mercês hão de dar conta a Deus.

Lembro a V. Mercês que além dos cristãos antigos têm os padres missionários de presente à sua conta as nações dos tupinambás, poquiguarás, catingas, bocas, mapuás, anajás, mamaianás, aroãs, paricis, tapajós, ururucus, mariás, juruunas, nonhunas, e os pocujus, aroaquis, e outros, em que se começa a introduzir a prática da nossa santa fé, das quais nações muitos estão já batizados, e outros se vão catequizando e batizando; e com estas novidades, tão alheias de tudo o que se prometeu às ditas nações, não há dúvida que se tomarão os mais deles para o mato e para suas gentilidades, em que só o inferno fica de ganho, e o Estado, assim no temporal como no espiritual, com grandíssima perda, além de tanta infinidade de almas, de que também Deus há de pedir conta a V. Mercês.

Lembro a V. Mercês que todas estas nações estão não só reduzidas à Igreja, mas também à obediência e vassalagem de Sua Majestade, a qual obediência e vassalagem aceitaram, por se lhes prometer e jurar, em nome do dito senhor, que viveriam debaixo do patrocínio dos padres, e que em tudo o mais se lhes guardariam as leis e regimentos de Sua Majestade, que lhes foram declaradas, e se fizeram disto papéis autênticos, que foram remetidos à corte, para se lançarem na Torre do Tombo, conforme as ordens de Sua Majestade; e quebrando-se, como se quebram, as ditas condições aos ditos índios, ficam eles livres das obrigações da dita vassalagem, e nós sem direito de lhes fazer guerra, antes, eles no-la puderam fazer, e ainda matar aos padres - como se teme, por lhes haverem prometido o que se lhes não cumpriu.

Lembro a V. Mercês que no modo com que se procede e tem procedido contra os padres, se tem quebrado e quebram todas as imunidades eclesiásticas, que notoriamente estão excomungados por esta causa muitos moradores deste Estado, os quais não podem ouvir Missa, nem confessar-se, nem receber o Santíssimo Sacramento, e, se o fazem, é com novo pecado. E se acaso há algum confessor que lhes não advirta esta verdade, será por temor de a dizer, ou porque não terá lido com atenção o que dispõem os sagrados cânones nestes casos, os quais sagrados cânones, e os doutores, que uniformemente os declaram, sendo V. Mercês servidos, se mostrarão logo, para que V. Mercês conheçam o estado em que estão suas almas.

Lembro a V. Mercês que os padres da Companhia neste Estado, além das suas imunidades comuns a todos os religiosos, são pessoas mandadas ao dito Estado por sua Majestade, e postas nos lugares em que estavam por Sua Majestade, e que sem ordem e autoridade do dito senhor, ainda que foram uns quadrilheiros, não podiam ser tirados dos ditos lugares; no qual ponto se deve outrossim considerar- e considerar muito - que V. Mercês têm mandado ao Reino procurador a dar conta a Sua Majestade, e antes de ser ouvido o dito procurador, e haver resposta de Sua Majestade, será muito mal contado a V. Mercês executarem e inovarem coisa alguma.

Lembro a V. Mercês que o fim por que Sua Majestade mandou os ditos padres da Companhia a este Estado foi para descarregar neles e com eles sua consciência, porque Sua Majestade está obrigado a mandar pregar a fé aos gentios, e doutrinar os cristãos do dito Estado, por ser este o título com que os senhores reis de Portugal possuem estas e as demais conquistas, e por descargo da dita obrigação de sua consciência, mandou Sua Majestade aos padres da Companhia a este Estado, como consta das mesmas leis, e da carta de provisão passada aos ditos padres. Julguem V. Mercês agora como poderá ser aceito a Sua Majestade tirarem V Mercês das cristandades os ministros da dita doutrina, e se lhes está bem a V Mercês tomarem sobre si, e impedirem por tais meios, os descargos da consciência de el-rei.

Lembro a V. Mercê que somos missionários do Sumo Pontífice, e pregadores da fé, e ministros da propagação dela, e quão grande mácula e afronta será do nome português dizer se no mundo que os que têm dilatado a fé por todo ele são agora os que prendem e desterram os pregadores da mesma fé, e os que os têm ido buscar e tirar por força de suas missões de entre os gentios e novos cristãos, que estão convertendo; e que exemplo é este para as gentilidades, e que respeito terão os índios aos sacerdotes, quando assim os vêem tratar pelos portugueses?

Lembro a V. Mercês que os padres que estão neste Estado vieram a ele com grandes despesas da fazenda de Sua Majestade e da Companhia, porque nenhum padre há estrangeiro que até chegar ao Maranhão não faça de gasto mais de quinhentos cruzados; e a primeira missão, em que eu vim, fez de gasto dez mil cruzados, e a segunda cinco mil cruzados, e a do padre Manoel Nunes dois mil cruzados, e a do padre Francisco Gonçalves mil e quinhentos cruzados. E, sendo os ditos padres ora embarcados para o Reino, é força que se façam outros muitos gastos; e se forem tomados pelos turcos-como é possível - ainda serão excessivamente muito maior. E V. Mercês devem considerar a quem pertence a restituição de tudo isto, e por cuja fazenda se há de haver, tendo eles, padres, sempre requerido e protestado que vão violentamente, como é notório.

Lembro mais a V. Mercês que eu vim a esta cidade tendo capitulado com os moradores do Pará que viessem a ela ajustar com V. Mercês o que fosse para quietação e maior bem de todo o Estado, a quem me ofereci em chegando, e me tomo a oferecer de novo; e que V. Mercês me têm metido em uma caravela com guardas mui apertadas, sendo isto não só contra todo o outro direito divino e humano, mas ainda contra o direito das gentes, segundo o qual V Mercês tinham obrigação ou de me ouvir, ou de me deixar em minha liberdade.

Lembro mais a V. Mercês que quando V. Mercês não queiram vir em o ajustamento sobredito, ficarão V. Mercês, não só com o encargo do que se fizer no Maranhão, senão também de tudo o que se fizer nas capitanias do Pará, onde está o peso da gentilidade e cristandades, porquanto aquelas capitanias se têm comprometido a seguir o que V. Mercês fizerem; e entre os inconvenientes que se podem seguir proximamente nas ditas capitanias, advirto a V. Mercês que desde vinte e dois de abril deste ano estava ordenada no Pará uma entrada ao sertão, para se fazerem peças para o serviço do Estado, e que as ditas peças, se fizerem sem o missionário e cabo, que requerem as leis de Sua Majestade, não ficarão legitimamente cativas, o que será em grande dano de todos.

Lembro outrossim a V. Mercês que, sendo eu o prelado da Companhia de Jesus neste Estado, e sendo todos os outros religiosos da Companhia súditos meus, e os prelados feitos por mim, e estando em mim só os poderes e a jurisdição, V. Mercês fizeram tudo o que se tem feito, e o vão continuando, sem me falarem nem ouvirem uma só palavra, que é contra toda a razão e direito.

Lembro a V. Mercês que, se acaso há alguma queixa contra mim, ou contra os outros religiosos da Companhia, que considerem V. Mercês que os homens, ainda que sejam religiosos, não são anjos, e que com razão ou sem ela é força que sempre haja queixas, e que dos mesmos apóstolos de Cristo as houve; e que quando houvesse as ditas queixas, tinham V. Mercês obrigação de mo advertir ou requerer, o que nunca fizeram, tendo-o eu pedido a V. Mercês, tanto que a este Estado vieram as ditas leis, como diz, em presença do governador André Vidal de Negreiros, aos senhores oficiais da Câmara daquele ano, pedindo-lhes que, se houvesse alguma queixa, ma fizessem, porque eu daria satisfação a todas, como no mesmo dia dei, e, havendo que emendar, o emendaria.

Lembro a V. Mercês que eu não tenho outro juiz mais que o Sumo Pontífice, e o Padre Geral da Companhia, e - no tocante às leis - a Sua Majestade; contudo, pelo bem da paz, e quietação deste Estado, estou pronto, e me ofereço, não só ao ajustamento que tenho dito, mas a dar satisfação a V. Mercês de todas e quaisquer queixas que contra mim, ou contra os religiosos da Companhia haja, acerca dos índios e obrigações deles à República de que se trata; e neste ponto me ofereço a mostrar com evidência a V Mercês as seis coisas seguintes.

Primeira: que em nenhuma coisa tomei nem tomou a Companhia mais jurisdição que aquela que lhe dão as leis e regimentos de sua Majestade.

Segunda: que sempre interpretei as ditas leis a benefício do povo; e que se quebraram por nossa parte em alguma coisa, foi sempre a favor do povo, e contra os índios.

Terceira: que muitas vezes disse aos oficiais da Câmara deste Estado, e a outras pessoas maiores, que se nas leis e regimento de Sua Majestade, ou na inteligência delas havia alguma coisa que mostrasse a experiência ser menos útil ao bem do Estado, que as conferíssemos entre nós, e que em tudo o que não houvesse pecado eu me assinaria, e faria que Sua Majestade o mandasse confirmado; e que se em alguma coisa nos não ajustássemos, se remetessem as razões de ambas as partes ao dito senhor, para as mandar resolver.

Quarta: que em todo este Estado não houve nunca morador nem ministro algum, eclesiástico ou secular, que procurasse o bem, ainda temporal, do dito Estado, nem com maior zelo nem com maiores efeitos que eu; e que todo o bem temporal que há no Estado foi procurado, e conseguido, e conservado por minha diligência; e que houvera no dito Estado outros muitos bens temporais, que eu quis acrescentar nele, se houvera quem quisesse concorrer, para isso, e que os não há, porque não quiseram.

Quinta: que na matéria de interesse não adquiri nem adquiriu a Companhia neste Estado, depois que eu vim a ele, coisa alguma; antes, cedeu sempre a Companhia de muitos interesses, que licitamente lhe competiam; e deu sempre muito do seu, e tudo quanto tinha, com grande excesso.

Sexta: que nunca escrevi a Sua Majestade, nem a ministro, nem a pessoa alguma, coisa que fosse contra o bem temporal nem espiritual deste Estado, e que assim o mostrarei nas mesmas cartas, de que se cuida o contrário, as quais estão entendidas avessamente; e se isto e o demais se não crê, experimente-se, e ouçam-me.

Finalmente, senhores, lembro a V. Mercês que vim para este Estado deixando em Portugal a quietação da minha cela, e o mais que lá tinha ou podia ter, só com o zelo da salvação das almas, e que procurei a de V Mercês nas doutrinas, nas práticas, nos sermões, com a vontade que V Mercês poderiam entender da eficácia com que o trabalhava pelo persuadir; e no ministério da salvação dos índios, e propagação da fé, não perdoei a nenhum trabalho, nem risco da vida por mar e por terra, e como a todos é notório, posto que tudo isto misturado com grandes imperfeições, como tão indigno religioso que sou. E, posto que não posso lembrara V. Mercês a confiança que Sua Majestade fez sempre da minha fidelidade, e por ser a maior parte desta confiança em negócios ocultos, basta a dos públicos, com que Sua Majestade me enviou a Holanda, França, Itália, pondo em minhas mãos as maiores dependências da sua coroa, para que V Mercês devam presumir que não pode caber no padre Antônio Vieira coisa que seja contra esta fidelidade e zelo, como é dizerem que me quero unir com os holandeses contra este Estado, e outras coisas tão ridículas como esta.

Nem obsta que se diga que as coisas alheias desta verdade vêm provadas, porque papéis feitos por inimigos, e por ministros incompetentes, e com tantas outras nulidades, não fazem prova alguma, e muito menos em terra onde todos V. Mercês se queixam de falsos testemunhos, e em tempo onde os padres da Companhia, e eu particularmente, estamos tanto no ódio de todos, como V Mercês e os efeitos o dizem.

E se isto se não deve presumir de mim, também se não deve presumir dos religiosos que estão nas cristandades do Gurupá, Nheengaíbas e Rio das Amazonas, em que há tantas pessoas de tanta autoridade, letras e virtude, e que deixaram suas pátrias, e se vieram meter naquelas brenhas, padecendo tantos trabalhos e perigos pela salvação das almas.

Por remate, lembro a V. Mercês que tudo o que V. Mercês pretendem ou podem pretender com estas inquietações da República, encargos de consciência e incomodidades dos moradores, e tantas outras moléstias e escândalos do Estado, tudo isto, digo, se pode conseguir com paz e quietação, e em grande serviço de Deus e de Sua Majestade, e utilidade de todos; e destes dois meios parece que dita o mesmo Deus, e a boa razão, se deve escolher o segundo.

Isto dito, senhores, a V. Mercês por descargo de minha consciência, ficando pronto e oferecido para responder e satisfazer a qualquer objeção ou dúvida que haja contra o dito neste papel, ou contra qualquer coisa das que correram neste Estado por minha conta; e, para me acomodar na melhoria delas a tudo o que for justo e conveniente, como sempre quis, procurei e pedi, V. Mercês resolverão o que forem servidos, sobre o que não peço, nem exorto, nem persuado coisa alguma, e só fico rogando a Deus inspire a V. Mercês o que formais serviço seu e glória sua. Se Deus quiser o que eu pretendia, ele o disporá, e se ele o não quiser, também eu o não quero. O mesmo Senhor, que há de pedir conta a V. Mercês, os alumie, e lhes dê muita de sua graça, como V. Mercês hão mister. Desta caravela, em 18 de agosto de 1661.

P. Antônio Vieira

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística