Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Carta que ao sereníssimo Rei de Portugal, D. Afonso VI, escreveu, do Padre Antônio Vieira


Edição referência:

Sermões, Padre Antônio Vieira. Vol. XII. Erechim: Edelbra, 1998

CARTA QUE AO SERENÍSSIMO REI DE PORTUGAL, D. AFONSO VI, ESCREVEU

sobre as coisas do Maranhão,

O PADRE ANTÔNIO VIEIRA.

SENHOR

A Providência divina, que por seus altíssimos juízos pôs nas mãos de V. Majestade o cetro de Portugal em tão tenros anos, se servirá de assistir e alumiar a alma de V Majestade com tão particulares auxílios de seu espírito e graça, como o peso de tão dilatada Monarquia, em tais circunstâncias de tempo há mister; e nós, os religiosos desta missão de V. Majestade, não cessaremos de assim o pedir continuamente a Deus, oferecendo por esta tenção, e pela vida e felicidade de V Majestade, todos os nossos sacrifícios, orações e trabalhos.

Sua Majestade, que está no céu, me tinha ordenado, pelo real zelo e piedade com que desejava ver adiantada a fé nestas conquistas do Maranhão, enviasse sempre avisar a Sua Majestade do que os missionários da Companhia fossem obrando, e do que fosse necessário para bem e conservação das missões, e aumento da Cristandade, como fiz largamente nos navios do ano passado, esperando as resoluções de algumas propostas de muita importância, as quais se deviam perder no naufrágio desta última embarcação, de que escapando as pessoas, e outras coisas de menor importância, só os despachos de V. Majestade não apareceram.

As missões, senhor, continuam como tenho avisado, com mui conhecido proveito espiritual, e salvação de muitas almas, assim de gentios novamente convertidos, como dos que já tinham nome de cristãos. Só a missão dos pacajás, vulgarmente chamada a Entrada do Ouro, teve o fim que tão mau nome lhe prognosticava. Gastaram nela dez meses quarenta portugueses, que a ela foram com duzentos índios. Destes morreram a maior parte pela fome e excessivo trabalho; e também morreu o padre João de Sotomaior, tendo já reduzido à fé e à obediência de V. Majestade quinhentos índios, que era os que naquela paragem havia da nação pacajá, e muitos outros da nação dos pirapes, que também estavam abalados para se descerem com ele: Estas, senhor, são as minas certas deste Estado, que a fama das de ouro e prata sempre foi pretexto com que daqui se iam buscar as outras minas, que se acham nas veias dos índios, e nunca as houve nas da terra. O mau sucesso e tardança desta missão suspendeu outra, que eu havia de fazer pelo Rio das Amazonas, onde estive três meses, esperando pela escolta dos portugueses, e se reservou para a primavera deste ano; fica-se aprestando para partir.

Aos índios livres das aldeias, e aos escravos dos portugueses, assim das povoações como das suas lavouras, se acode com grande continuação e trabalho, catequizando-os, batizando-os, confessando-os, e administrando-lhes todos os sacramentos, e suprindo pela maior parte o ofício dos curas, que não há, ou não podem acudir a lugares tão distantes; nem têm a inteligência da língua, sem a qual se não pode obrar nada com esta gente. São mui poucos já os que não tenham notícia dos principais mistérios de nossa santa fé quanta baste para a salvação; e os das aldeias, com quem principalmente assistimos, estão tão bem instruídos, em toda a doutrina cristã como os portugueses, que melhor a sabem. Enfim; vivem e morrem os índios como cristãos, o que se não usava antes de virmos a estas terras, morrendo quase todos sem confissão, e muitos sem batismo.

A injustiça que se usava com os índios livres, servindo-se deles os portugueses, sem lhes pagarem seu trabalho, se tem evitado em grande parte com o modo da repartição que se dispõe no regimento; posto que as ocasiões do serviço, ou chamado serviço de V. Majestade, têm sido tantas estes dois anos, que não tiveram os pobres índios lugar de lograrem os seis meses que V. Majestade lhes manda dar para acudirem a suas lavouras e casas, e para conhecerem que não são cativos. Raro é o índio das aldeias que em cada um destes dois anos não tenha servido mais de dez meses, e, contudo, ainda os portugueses se queixam, como se puderam os índios no mesmo tempo servir aos particulares e mais ao comum. O ano passado mandei as listas, para que por elas constasse, e também irão as deste ano, sendo necessário.

Os resgates dos escravos -que é outro ponto do interesse dos moradores deste Estado - se fizeram nestes dois anos com pouca fortuna, porque se quiseram fazer com maior cobiça. Logo que cheguei do Reino, disse ao governador André Vidal que seria bem se fizesse a missão a lugar onde houvesse muitos escravos que resgatar, para que a República experimentasse as utilidades que tinha na nova lei de V. Majestade; mas todos os moradores, assim do Maranhão como do Pará, quiseram que a entrada se fizesse a dar guerra à nação dos aroás e nheengaíbas, de que se deu conta a V. Majestade, querendo antes escravos tomados que comprados; mas saiu-lhes tanto pelo contrário que, indo a esta empresa cento e dez portugueses, e todos os índios do Maranhão e Pará, voltaram de lá com perda de gente e reputação, e sem escravos, porque os não quiseram comprar por tão caro preço. Após esta jornada se fizeram duas, uma ao Pacajá pela cobiça do ouro, e outra ao Camuci, pela do âmbar, e ambas sem efeito.

Para que a do Rio das Amazonas fosse com maior utilidade dos moradores, propus ao capitão-mor do Pará, Feliciano Correia, e ao sargento-mor, Manoel Gomes, e ao cabo da tropa, Vital Maciel que eles escolhessem o tempo e o lugar por onde lhes estivesse melhor fazer a entrada, e por onde entendessem que haveria mais escravos, e assim estava assentado; mas suspendeu-se a jornada pelas causas que tenho referido, mandando o governador que a tropa não partisse enquanto a do Pacajá não chegava, e que com a mesma gente e canoas fosse socorrida, como foi; e por se ter passado naquele tempo a monção de entrar pelo rio, se dilatou até a esta primavera.

Assim que, senhor, a causa de não se haver feito resgate considerável nestes anos, foi porque o governador, e os do governo do Maranhão e Pará quiseram que as entradas se fizessem a outras partes, donde esperavam maiores interesses; e para que seja presente a V. Majestade quanto os religiosos da Companhia zelamos, não só o bem espiritual das cristandades, senão ainda o temporal do Estado e dos moradores, pelo papel incluso poderá V. Majestade mandar ver as primeiras instruções que dei aos padres que foram ao sertão, e as que levam os que agora vão - que são as mesmas - seguindo nelas, em tudo o que pode haver dúvida, as opiniões mais largas e favoráveis aos portugueses, como também procurei que se seguissem na junta que se fez em Lisboa.

Com as armas dos portugueses se não trabalha menos que com as dos índios, e dá Deus tal força de espírito aos missionários nesta parte, que afirmo a V. Majestade que com ter corrido tanto mundo, e ouvido tantos homens grandes dele, nunca ouvi sermões que me parecessem verdadeiramente apostólicos senão no Maranhão.

Como os corações são tão obstinados e envelhecidos nos vícios, parece que concorre Deus com maior eficácia, ou para sua emenda, ou para sua condenação. Houve homem destes que disse que o diabo trouxera estes padres da Companhia ao Maranhão para os divertir de outras partes, porque, se semelhantes sermões se fizeram em Inglaterra, haviam de converter aqueles hereges. Eles, com serem católicos, não se convertem todos, mas são muitos os que se emendam, e tratam da reformação de suas vidas, e nenhum houvera que não acabara de se desenganar se ouviram só estas pregações; mas, senhor, há pessoas eclesiásticas que pregam e apregoam o contrário, e que de público e de secreto fazem cruel guerra a Jesus Cristo; e como uns desfazem o que outros edificam, não pode a obra ir muito por diante. Procurei neste Estado que todos os religiosos nos conformássemos na doutrina, e porque o não pude conseguir, passei ao Reino: pedi ajunta, que V. Majestade mandou fazer, dos maiores letrados de todas as profissões; procurei que na mesma junta se achassem os provinciais das religiões deste Estado, para que, sendo testemunhas de tudo, e dando também seu voto, ordenassem a seus súditos o que deviam guardar, e também esta diligência não aproveitou.

Este é o maior ou o único impedimento destas missões, servindo esta desunião de pareceres de grande confusão e perturbação das consciências, não sabendo os homens a quem seguir, é seguindo na vida e na morte a quem lhes fala mais conforme a seus interesses. Contudo, senhor, é tanta a força da verdade e da razão, que o partido de Cristo se tem já muito melhorado, e todos os moradores estão quietos e pacíficos, e quase todos desenganados que não podem prevalecer neste Estado contra a evidência da verdade, que nele é tão manifesta e conhecida, e só apelam alguns para o recurso do Reino, donde esperam que poderá haver alguma mudança no que V. Majestade tem ordenado, por se não conhecer lá tão claramente a verdade, e por estar longe, e por cuidarem que se pode escurecer e embaraçar com os papéis que os mesmos eclesiásticos têm levado e solicitado, e cada dia mandam e solicitam.

O remédio de tudo é um só, e muito fácil, e que muitas vezes tenho representado a V. Majestade, e, é que V. Majestade resolutamente mande fechar a porta a todo o requerimento em contrário do que V. Majestade com tanta consideração mandou resolver; e que quem o encontrar ou impedir seja castigado com a demonstração que a matéria merece. Tudo o que se assentou acerca dos índios do Maranhão foi com consulta da junta de teólogos, canonistas e legistas, em que se acharam os três lentes de prima, e não houve discrepância de votos: foi com notícia de todas as leis antigas e modernas, e de todos os documentos que sobre esta matéria havia; foi ajustado com os dois procuradores, do Maranhão e Pará, e com o governador de todo o Estado, que estava nessa corte, e com o superior dos missionários que também era procurador geral de todos os índios e ultimamente com parecer de todo o Conselho Ultramarino, que tudo viu, examinou e aprovou. Donde parece que não fica lugar a inovar coisa alguma sem grande prejuízo, menos autoridade das leis reais; e perturbação de tudo. Sobre este ponto enviei o ano passado papel particular, que V. Majestade pode mandar ver, sendo servido, em que se apontam muitas outras razões de grande peso e gravíssimos inconvenientes, que do contrário se seguem, ainda ao crédito da mesma fé, que debaixo dos termos da dita lei se tem publicado por todas estas gentilidades.

E digo, senhor, que além da firmeza da lei, é necessária demonstração de castigo nos violadores dela, não só pelo que importa ao estabelecimento da missão e aumento da fé, senão ainda ao de toda a monarquia. E dá-me atrevimento para fazer esta lembrança a V. Majestade o peso de tão grandes obrigações, e o nome, que ainda tenho, de pregador de V. Majestade.

Senhor, os reis são vassalos de Deus, e se os reis não castigam os seus vassalos, castiga Deus os seus. A causa principal de se não perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça, ou são as injustiças, como diz a Escritura Sagrada; e entre todas as injustiças, nenhumas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que trabalham; e estes são e foram sempre os dois pecados deste Estado, que ainda têm tantos defensores. A perda do senhor rei D. Sebastião em África, e o cativeiro de sessenta anos, que se seguiu a todo o reino, notamos autores daquele tempo que foi castigo dos cativeiros que na costa da mesma África começaram afazer os nossos primeiros conquistadores, com tão pouca justiça como a que se lê nas mesmas histórias. As injustiças e tiranias que se têm executado nos naturais destas terras excedem muito às que se fizeram na África: em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações, como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo. Proximamente, no ano de 1655, se cativaram no Rio das Amazonas dois mil índios, entre os quais muitos eram amigos e aliados dos portugueses, e vassalos de V. Majestade, tudo contra a disposição da lei que veio naquele ano a este Estado, e tudo mandado obrar pelos mesmos que tinham maior obrigação de fazer observar a mesma lei; e também não houve castigo, e não só se requere diante de V. Majestade a impunidade destes delitos, senão licença para os continuar.

Com grande dor, e com grande receio de a renovar no ânimo de V. Majestade, digo o que agora direi, mas quer Deus que eu o diga. A el-rei Faraó, porque consentiu no seu reino o injusto cativeiro do povo hebreu, deu-lhe Deus grandes castigos, e um deles foi tirar-lhe os primogênitos. No ano de 1654, por informação dos procuradores deste Estado, se passou uma lei, com tantas larguezas na matéria do cativeiro dos índios, que depois, sendo Sua Majestade melhor informado, houve por bem mandá-la revogar; e advertiu-se que neste mesmo ano tirou Deus a Sua Majestade o primogênito dos filhos e a primogênita das filhas. Senhor, se alguém pedir ou aconselhar a V. Majestade maiores larguezas que as que hoje há nesta matéria, tenha-o V. Majestade por inimigo da vida, e da conservação, e da coroa de V. Majestade.

Dirão, porventura - como dizem - que destes cativeiros, na forma em que se faziam, depende a conservação e aumento do Estado do Maranhão, e isto, senhor, é heresia; se, por não fazer um pecado venial, se houver de perder Portugal, perca-o V. Majestade, e dê por bem empregada tão cristã e tão gloriosa perda; mas digo que é heresia, ainda politicamente falando, porque sobre os fundamentos da injustiça nenhuma coisa é segura nem permanente; e a experiência o tem mostrado neste mesmo listado do Maranhão, em que muitos governadores adquiriram grandes riquezas, e nenhum deles as logrou, nem eles se lograram, nem há coisa adquirida nesta terra que permaneça, como os mesmos moradores dela confessam, nem ainda que vá por diante, nem negócio que aproveite, nem navio que aqui se faça que tenha bom fim, porque tudo vai misturado com sangue dos pobres, que está sempre clamando ao céu.

Se o sangue de um inocente, deu tais vozes a Deus, que será o de tantos? E mais, Abel, senhor, salvou-se, e está no céu. E se uma alma que se salva pede vingança, tantos milhares e milhões de almas, que pelas injustiças deste Estado, e mais ardendo no inferno, tendo Portugal obrigação de justiça de as encaminhar para o céu, que vingança pedirão a Deus? E sendo isto assim, Senhor, só os que defendem esta justiça são perseguidos, só os que salvam estas almas são afrontados, só os que tomaram à sua conta este tão grande serviço de Deus têm contra si todos os homens. Sirva-se V. Majestade de mandar considerar que, enquanto as sobreditas tiranias se executavam no Maranhão, nenhuma pessoa houve eclesiástica nem secular que zelasse o remédio delas, nem da salvação destas almas; e depois que houve quem tomou por sua conta um e outro serviço de Deus, logo houve tantos zelosos, que se armaram contra esta obra, sinal manifesto de ser tudo traça e instigação do demônio, para impedir o bem espiritual, tanto dos portugueses, como dos índios, que uns com os outros se iam ao inferno; e seria desgraça muito para sentir que os ministros do demônio prevalecessem contra os de Cristo em um Reino tão cristão como Portugal. Os outros reinos da cristandade, senhor, têm por fim a conservação dos vassalos, em ordem à felicidade temporal nesta vida, e à felicidade eterna na outra. O Reino de Portugal, demais deste fim universal a todos, tem por fim particular e próprio a propagação e a extensão da fé católica nas terras dos gentios, para que Deus o levantou e instituiu; e quanto Portugal mais se ajustar com este fim, tanto mais certa e segura terá sua conservação; e quanto mais se desviar dele, tanto mais duvidosa e arriscada.

Nas segundas vias dos despachos de V. Majestade espero que V. Majestade haverá mandado deferir a tudo o que representei nos navios do ano passado; e porque não sei o que poderá ter sucedido, resumo outra vez aqui tudo o que de presente é necessário para a conservação, aumento e quietação desta cristandade, que são principalmente as quatro coisas seguintes.

Primeira: que na lei e regimento de V. Majestade sobre os índios e missões se não altere coisa alguma, e que a esse fim se não admita nem defira a requerimento em contrário.

Segunda: que os governadores e capitães-mores que vierem a este Estado sejam pessoas de consciência; e porque estas não costumam vir cá, que ao menos tragam entendido que mui deveras hão de ser castigados, se em qualquer coisa quebrarem a dita lei e regimento.

Terceira: que os prelados das religiões sejam tais, que as façam guardar a seus religiosos, nem consintam que de público ou secreto as contradigam; e, se houver algum religioso desobediente nesta parte, seja mandado para fora do Maranhão.

Quarta: que V. Majestade mande vir maior número de religiosos da Companhia, para que ajudem a levar adiante o que têm começado os que cá estamos, porque é o meio único - posto que mui trabalhoso para os ditos religiosos - com que só se podem reduzir estas gentilidades.

E porque à nossa notícia tem chegado que contra os missionários que neste Estado servimos a Deus e a V. Majestade, e contra o governo da dita missão se têm apresentado a V. Majestade algumas queixas, pedimos humildemente a V. Majestade seja V. Majestade servido mandar-nos dar vista de todas - ainda que sejam das que tocarem ao Estado - porque a todas esperamos satisfazer, de maneira que fique conhecido com grande clareza quão úteis são os missionários da Companhia, não só ao melhoramento espiritual dos portugueses e índios, senão ainda ao temporal de todos.

A muito alta e muito poderosa pessoa de V. Majestade guarde Deus, como a Cristandade e os vassalos de V. Majestade havemos mister. Maranhão, 20 de abril de 1657.

Antônio Vieira.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística