LITERATURA PORTUGUESA
Textos literários em
meio eletrônico
Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende
Edição de base:
GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.
VOLUME I
Tavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . ‡ .
Primeiramente um prologo de Garcia de Resende, deregido ao Principe nosso Senhor.
As trovas que se fizeram sobre o cuidar e sospirar. fo. I
De Dom Joam de Meneses, sahindo d' ũs amores e entrando noutros. fo. XV
Desta folha atee às dezoito folhas, é tudo d' obras suas. fo. XVIII
‡ Do Coudel-moor sobre as cortes que se fizeram em Monte‑moor. fo. XIX
Outras suas sobre os bispados. fo. XIX
‡ Trovas suas às damas. fo. XIX
‡ Outras a Garcia de Melo. fo. XIX
Outras a Joam Afonso d' Aveiro. fo. XXI
‡ Outras a Fernam Cabral. fo. XXI
Trovas suas desta folha atee fo. XXIIII
D' Alvaro de Brito Pestana a Luis Fogaça. fo. XXIIII
‡ Trovas e cantigas suas, desta folha até às folhas fo. XXXII
De Nuno Pereira, porque casou sua dama. fo. XXXII
‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. XXXV
‡ D' Alvaro Barreto a Alvaro d' Almada. fo. XXXV
‡ Outras suas a El-Rei Dom Afonso. fo. XXXVI
Trovas e cantigas suas. fo. XXXVII
De Duarte de Brito de cousas que lhe aconteceram e vio. fo. XXXVII
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. XXXXVIII
De Dom Joam Manuel à morte do Princepe. fo. XXXXVIII
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às fo. LI
‡ Os Nunca vi antre privados. fo. LI
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. LV
‡ De Dom Martinho da Silveira, de novas e ũa cantiga sua. fo. LVII
Cantiga de Dom Rolim e de Diogo de Miranda e de Fernam Telez e Diogo e Sancho de Pedrosa. fo. LVII
De Luis d' Azevedo aa morte do Ifante e ũa cantiga sua. fo. LVIII
‡ De Gil de Crasto a Anrique d' Almeida. fo. LVIII
‡ De Pedr' Homem, trovas e cantigas. fo. LIX
D' Anrique d' Almeida, sete cantigas. fo. LX
De Joam Barbato, d' avisos. fo. LX
‡ Outras suas, d' ũu sonho. fo. LXI
‡ De Diogo Fogaça aas damas e quatro cantigas. fo. LXI
De Fernam Lobato a ũa molher. fo. LXI
CANCIONEIRO GERAL
DE GARCIA DE RESENDE
PROLOGO DE GARCIA DE RESENDE, DEREGIDO
AO PRINCEPE NOSSO SENHOR
Muito alto e muito poderoso
Príncipe nosso Senhor
Porque a natural condiçam dos portugueses é nunca escreverem cousa que façam, sendo dinas de grande memoria, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e vertudes, de ciencia, manhas, e gentileza sam esquecidos. Que, se os escritores se quisessem acupar verdadeiramente escrever, nos feitos de Roma, Troia e todas outras antigas cronicas e estorias, nam achariam mores façanhas, nem mais notaveis feitos que os que dos nossos naturaes se podiam escrever, assi dos tempos passados como d’ agora: tantos reinos e senhorios, cidades, vilas, castelos, per mar e per terra tantas mil léguas, per força d’ armas tomados, sendo tanta a multidão de jente dos contrairos e tam pouca a dos nossos, sostidos com tantos trabalhos, guerras, fomes e cercos, tam longe d' esperança de ser socorridos; senhoreando per força d' armas tanta parte de Africa, tendo tantas cidades, vilas e fortalezas tomadas e continuamente guerra sem nunca cessar; e assi Guinee, sendo muitos reis grandes e grandes senhores seus vassalos e trebutarios e muita parte de Etiopia, Arabia, Persia e Indeas, onde tantos reis mouros e gentios e grandes senhores sam per força feitos seus suditos e servidores, pagando-lhe grandes pareas e trebutos, e muitos destes pelejando por nós, debaixo da bandeira de Cristos, com os nossos capitãaes, contra os seus naturaes, conquistando quatro mil leguas por mar, que nenhũas armadas do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam navegar com medo das nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas; tornando tantos reinos e senhorios com inumeravel jente aa fee de Jesu Cristo, recebendo agua do santo bautismo; e outras notaveis cousas que se nam podem em pouco escrever.
Todos estes feitos e outros muitos d' outras sustancias nam sam devulgados como foram, se jente d' outra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si, que nam querem confessar que nenhũus feitos sam maiores que os que cada ũu faz e faria, se o nisso metessem. E por esta mesma causa, muito alto e poderoso Princepe, muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas noticia, no qual conto entra a arte de trovar, que em todo o tempo foi mui estimada, e com ela Nosso Senhor louvado, como nos hinos e canticos que na Santa Igreja se cantam se veraa. E assi muitos emperadores, reis e pessoas de memoria, polos rimances e trovas sabemos suas estorias. E nas cortes dos grandes princepes é mui necessaria na jentileza, amores, justas e momos, e tambem para os que maos trajos e envenções fazem, per trovas sam castigados e lhe dam suas emendas, como no livro ao diante se veraa. E se as que sam perdidas dos nossos passados se poderam haver e dos presentes s' escreveram, creo que esses grandes poetas, que per tantas partes sam espalhados, nam teveram tanta fama como têm.
E, porque, Senhor, as outras cousas sam em si tam grandes que por sua grandeza e meu fraco entender nam devo de tocar nelas, nesta, que é a somenos, por em algũa parte satisfazer ao desejo que sempre tive de fazer algũa cousa em que Vossa Alteza fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar algũas obras que pude haver d' algũs passados e presentes e ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quaes foram e sam, mas para os que mais sabem s' espertarem a folgar d' escrever e trazer aa memoria os outros grandes feitos, nos quaes nam sam dino de meter a mão.
1
PREGUNTA QUE FEZ JORGE DA SILVEIRA A NUNO PEREIRA, PORQUE INDO AMBOS POR ŨU CAMINHO VINHA NUNO PEREIRA MUITO CUIDADOSO E JORGE DA SILVEIRA DOUTRA PARTE DANDO MUITOS SOSPIROS, SENDO AMBOS SERVIDORES DA SENHORA LIANOR DA SILVA.
Pregunta Jorge da Silveira
e reposta de Nuno Pereira,
tudo neste rifam.
—Vós, senhor Nuno Pereira,
por quem is assi cuidando?
— Por quem vós is sospirando,
senhor Jorge da Silveira.
Jorge da Silveira.
Nam que eu sospiro indo
por quem cuidados me dá
e me vai assi ferindo,
que de todo destroindo
me vai seu cuidado ja.
Cuidar é causa primeira,
mas despois d' eu ir cuidando,
meus sospiros vam dobrando
tá matar à derradeira.
Nuno Pereira
Ter poder de sospirar
assaz é, senhor cunhado,
pera mais desabafar,
mas eu nam tenho lugar,
ca mo tolhe meu cuidado.
Porque é de tal maneira
que por quem eu assi ando
deve d' andar preguntando:
—Morreo ja Nuno Pereira?
Jorge da Silveira
Pois vosso cuidar querês
esforçar e defender,
e mostrar no que fazês
que moor pena recebês
que sospirar e gemer,
com fee de servir inteira,
a quem nos fere matando
vamos tristes demandando
que julgar isto nos queira.
Nuno Pereira.
Sendo sa mercê contente
qu' a ouvir-nos se encline
serei mais que recontente
que nossa questão presente
ela veja e determine.
E tenhamos nós maneira
d' irmos petição formando
de tal forma qu' em lha dando,
ela por nós lho requeira.
De Jorge da Silveira e de
Nuno Pereira,ambos jun-
tamente, em modo
de petiçam.
Pois que, senhora, nacestes
por dar morte e nunca vida,
pois que ambos nos vencestes
com vosso mal que nos destes
de morte não conhecida,
que no al nos desempare
de todo vossa mercê,
sospirar, cuidar decrare
quem se neles vir ou vê
cuja morte maes se crê.
Desembargo posto nas costas
desta petiçam, por man-
dado da dita senhora.
Se estes competidores
querem seguir este feito,
ordenem precuradores
e digam de seu dereito.
De Nuno Pereira, em que toma
seus precuradores pera ajuda-
rem sua tençam por parte
do cuidado, segundo
mandado da dita
senhora.
Eu par' esta altrecação
tomo por ajudadores
Joam Gomez e Dom Joam,
qu' ajudem minha tenção
como meus precuradores;
e façam ser esta cousa
nos amores conhecida:
que quem sospira, repousa,
e u cuidado bem pousa,
nom tem sospiros nem vida.
Jorge da Silveira, em que satis-
fazendo ao desembargo, toma
seus precuradores
por parte do sos-
pirar.
Em cousa de si tam crara
escusado era debate,
e eu logo o escusara,
s' a senhora o julgara,
que me mata, que nos mate.
Mas pois vós, senhor, metês
remo d' ajuda que vogue,
vós, irmão, acorrer-m' -ês,
entam lá consultarês
onde sangue se nam rogue.
Pera o qual vos dou poder,
tanto quanto posso dar,
pera por mim requerer,
alegar, contradizer,
consentir e apelar;
por em minh' alma jurardes,
como quer lá o dereito,
pera meus beens obrigardes,
mas nam pera concertardes
tá ver vitorea do feito.
Segue-se o primeiro rezoado
de Dom Joam de Meneses,
precurador de Nuno Pe-
reira, por parte do
cuidado contra
o sospirar.
Ha ja tanto que nam vivo
sem sospiros e cuidados
e sem tanto mal esquivo
que por mim, triste cativo,
bem podereis ser julgados.
Mas a vós, senhor cunhado,
não vos deve d' ajudar
quem for muito namorado,
que quem morre de cuidado
é-lhe vida sospirar.
E mais irdes preguntando
a quem vos nam preguntava
por quem is vós sospirando,
é sinal qu' em ir cuidando
muito moor paixam levava.
Nam digo ja que falar
foi sinal de pouca pena,
mas da pena qu' ee cuidar
descanso é sospiros dar
e sa dor é mais pequena.
Os cuidados desiguaes
sempre deram mortaes dores;
sospiros nam doem maes,
que quanto sam ũs sinaes
de quem sente mal d' amores.
Pelo qual devem de dar
sentença defenetiva
qu' ee muito mor dor cuidar,
ca quem pode sospirar
inda tem por onde viva.
Sua à senhora Dona Lianor.
Senhora, pois vedes craro
que cuidar tem por conforto
sospiros e por emparo,
nam leixês de desemparo
morrer a quem vinha morto.
Nem julguês por afeiçam
sospiros por moor trestura,
por nam ser contra razão
ò reves em condiçam
do que soes em fremosura.
Rezões de Joam Gomez,
precurador de Nuno Pereira,
por parte do cuidado
contra o sospirar.
Metem aceso cuidado
amores com suas triscas
de pensamento forçado,
com fogo desesperado,
com sospiros sas faiscas.
Cuidado paixam ordena,
cuidado nunca descansa,
cuidado redobra pena,
cuidado nunca s' amansa,
cuidado sempre tem lena.
Os sospiros e gemidos
como faiscas s' apagam
com descanso dos sentidos
a quem sam atrebuidos,
porque sospirando pagam.
Mas ũ cuidado mui vivo,
nacido no coraçam
do triste amador passivo,
é ũu cabo de paixam
qual mais nam sofre cativo.
Quem sofre cuidado tal,
sem topar algum remanso,
sofre fadiga mortal
e paixam tam desigual,
que nam dá nenhum descanso.
A pena que é mais fera
na vida de bem amar
cuidado que persevera,
quanto mais se o cuidar
é no que se desespera.
E assi concrudo que
o cuidado soo per si
é pena que nam tem sê
nem guarida em qu' estê,
segundo sempre senti.
O cuidado que concluda
em gemidos e sospiros,
com esperança s' ajuda,
poes tem descansos a giros
em que seus males remuda.
Sua à dita senhora.
Dama de grã fremosura,
espelho das outras damas,
linda, honesta fegura,
dama da melhor ventura,
das que sam e temos famas,
deve vossa senhoria
julgar o crime cuidado
por pena de namorado,
sospiros por fantesia.
Rezões que deu Nuno Pereira
em favor de seu cuidado,
ajudando seus pre‑
curadores.
Narciso, Mancias morrerão
de soo cuidados vencidos!
Oh, quantos ensandecerão
mui sesudos, que perderão
com cuidados seus sentidos!
A que se chama pasmar,
que cousa é esmorecer
senam querer abafar,
sem poder esfolegar?
E sospirar é viver.
Se o dissesse Oriana,
e Iseu alegar posso,
diriam quem se engana,
que sospiros sam oufana,
cuidado, quebranto nosso.
Deriam: — Quem alegou
sospiros contra cuidado,
nunca bem se namorou,
ca o que a nós matou
mata todo namorado.
Se os que sam ja finados
e que d' amores morreram
podessem ser perguntados,
diriam que com cuidados
a vida e alma perderam:
a vida em esperando
com cuidados e tristeza,
e alma desesperando,
eles mesmos se matando
com cuidar qu' ee moor crueza.
O cuidado desbarata
todos grandes corações,
e os aperta e os mata
com fantesias que cata
de desvairadas paixões.
Mas ond' ele anda manso,
que sospiros de si manda
j' el' entam em si abranda,
sospiros vêm por descanso.
Sua a Jorge da Silveira.
Diz-m' a mim meu coraçam,
porque m' a isto nam calo:
— Pera que vos dou rezão,
pois vos nam chega paixam
deste cuidado que falo?
Ca se vos ele apertasse
assi como m' ele aperta,
e o vosso assi penasse,
dirieis que se julgasse
o cuidar por morte certa.
Trova sua à dita senhora.
Cuidado de minha vida,
vos chamo sempre por nome,
daqui vossa mercê tome
s' haa i cousa mais sobida
qu' a cousa que se vos chama
por milhor nome que posso,
ora vede se é vosso
quem de vós mesma brasfama.
Cantiga sua à dita senhora.
O cuidado mui sentido,
donde morte se m' ordena,
é qu' havês de ter marido
e eu sempre minha pena.
E naquisto contemprando,
vai crecendo desconforto,
que desmaio em cuidando
e caio mil vezes morto
e fora de meu sentido,
com tal morte qual s' ordena
pera mim ver-vos marido
sem vós verdes minha pena.
Começão as razões por parte
do sospirar contra o cuidado
e logo Francisco da Sil‑
veira, precurador
de seu irmão.
S' achardes quem bem descarne
as raizes do amar,
dir-vos-am que sospirar
é partir alma da carne.
Pois sede bem conselhado,
nam apodês o cuidado
com sospiros que sam morte,
nem ha i quem nos comporte
senam fino namorado.
Nam vos engane cuidardes
que sabeis alegações
nem que valem taes rezões
polas bem aperfiardes.
Porque quem ha-de julgar
nam n' havês vós d' enganar
nem lhe fazer entender
preto branco parecer,
nem bom vosso aperfiar.
Porque sospirar nam vem
senam ja de nam ter vida,
o cuidar cous' ee sabida
qu' outros cem mil furos tem.
De mil cousas vem cuidar,
assi com' ee demandar
morgados e dar libelo,
entam fazer parte delo
pera vir ao contestar.
Nam vos alego passados,
ca bem craro é de saber
que com sospiros morrer
é ja certo aos namorados.
Mas alego-vos comigo
que des que amores sigo
sempre neles andei morto:
cuidar trazia conforto,
sospirar morte consigo.
Trova sua à dita senhora.
Se mercê fazer querês
em al, seja a meu cunhado,
mas vir de maes namorado
sospirar nam lhe tirês.
Ca primeiro vem cuidar
e pós ele o esmaiar,
entam logo o sospiro
que é, senhora, ũu tiro
que faz vidas apartar.
Trova sua ao Coudel-moor em
que lhe pede ajuda a seu
cabo neste feito, em
favor do sospirar.
Por cessar esta conquista
sobr' esta perfia nossa,
compre-nos ajuda vossa
por a cousa ser maes vista.
E por isto, senhor, queira
vossa mercê ter maneira
como nos aqui ajude,
ca visto é que mal concrude
seu cuidar Nuno Pereira.
Cantiga sua contra estes que
aperfiar querem contra
os sospiros.
Galantes mal namorados,
que fordes contr' oo que sigo,
inda vos veja tratados
de sospiros tam queixados
com' eu sam de quem nam digo.
Sequer por ficar vingado,
quando vir alguem queixar,
dir-lhe-ei: — Mao namorado,
porque escolhestes cuidado
contr' ò triste sospirar?
Veja-vos todos tomados
nam d' amigas, mas d' emmigo
e assi galardoados
das por que vivês penados,
com' eu sam de quem nam digo.
Começa o Coudel-moor suas
razões por parte do sospirar
contra o cuidado, ende‑
rençando sua fala à
dita senhora.
Poes me convem que precure
por quem vida tem sogeita,
vossa mercê me segure
que sa crueza nam dure
a me ser nisto sospeita.
Ca eu nam me maravilho,
pois o feito j' assi vai,
de nam dardes fee ò pai
de quem morto havês o filho.
Polo qual s' aqui acudo,
é por ser mais que forçado,
pois paixões pelo meudo,
sospirar, cuidar e tudo
é por vossa mão lançado.
E como quem ambos sente
diz que pode estar cuidar
soo per si, mas sospirar
nunca soo, mas juntamente.
Contra o que Dom
Joam alegou.
E vós, senhor Dom Joam,
qu' alegaes contr' esta parte,
sei que ja vistes questão
que dava, sem dar paixam,
cuidado grande que farte.
E vistes quem s' alegrasse
com cuidados que cuidava,
mas nam ja quem sospirava
que com prazer sospirasse.
Algũus indo caminhando,
cuidando fora de tento,
que fazês? lhe preguntando,
respondem: — Ia cuidando
em mil castelos de vento.
Mas fazendo tal questão
onde sospiro se pousa,
responde: — Por ũa cousa
que me chega ò coração.
Contra o que disse
Joam Gomez.
E vós que de trovador
qu' alentaes os trovadores,
como daes, vós, meu senhor,
ò cuidado mais primor
qu' ò sospirar nos amores?
Que, se vós bem esguardais,
vós sospiros nunca vistes
senam com amores tristes
quando dam penas mortais.
Cuidados, como sabês,
certo cousas sam geraes,
cuidados achá-los-ês
no comprar, quando compraes,
no vender, quando vendês.
Se mandaes cousas a Frandes,
cuidado faz segurar,
mas d' amores carregar
retorna sospiros grandes.
Quem cuidado quer contar,
cuidar é lançar em renda,
cuidar é vida tomar,
cuidar é sempre cuidar,
cuidar, cuidar na fazenda.
Cuidado tem quem tem brigas,
cuidado quem tem demanda,
outro cuidado se manda
com prazer, não com fadigas.
Mas nam é ja cousa nova
sospirar com mal d' amores,
ca u se paixam renova,
sospirar me lev' aa cova
com seus grandes desfavores.
Sospiros tristes, que vêm
refinando dos sentidos,
trazem seus pendões tendidos
pela fee que vos nam têm.
Contra o que disse Nuno Pereira.
Vós cunhado, qu' alegastes
Narciso, tambem Mancias,
nam sei u lhe vós achastes
ou como cuidar cuidastes
que fez acabar seus dias.
Mas tu, sospirar, que cortas
alma, bofes, antredanhas,
nam alegas com estranhas
testemunhas que sam mortas.
Alegais-me vós Iseu
e Oriana com ela,
e falaes no cuidar seu
como que nunca li eu
sospirar Tristam por ela.
Milhor vos posso alegar
quem diz meos males sobidos
es fazer los mis gemidos
y sospiros esforçar.
Mas por nam ir maes ò cabo
do falar com nossos males,
nisto soo convosco acabo,
que diss' outro, nam por gabo,
sospiros, ansias mortales.
E assi que se vos cata
cuidado vida segura,
lembrando sa fremosura
sospirar por el[e] mata.
Com as quaes rezões concluso
vaa, senhor, o rezoado,
e acharês nele confuso
quem cuidado tem por uso
se nam tem maes que cuidado.
Mas ser morte mui inteira
sospirar negar nam posso,
e ser visto pelo vosso,
vosso Jorge da Silveira.
Do Coudel-moor à dita
senhora por fim de
seu rezoado.
Pois vossa grã fremosura
nos pôs todos em cuidado,
conheça quem tem tristura
que por sa desaventura
sospiros lhe daes de grado.
Ca por lei dos amadores
o cuidar sospirar ponho,
cuidar é cuidar no gronho,
sospiros, vivos amores.
Cantiga que dá o Coudel‑
-mor por maes decra‑
raçam do sos‑
pirar.
Do cuidar que dá cuidado
sem com ele sospirar,
ser de pouco namorado
é cuidar.
Quando cuidado s' aviva
em tempos que dá paixam,
dá o triste coraçam
sospiros em voz esquiva.
Mas estar deles calado
mostra sem paixões estar
ou de pouco namorado
se cansar.
Segue-se ũa protestaçam que
fez o Coudel-moor, porque lhe foi
dito que algũus eram roga‑
dos de fora, que aju‑
dassem contra os
sospiros.
Honrado tabaliam
ou escrivam,
qualquer que soes deste feito,
por guarda de meu dereito
vos dou esta pitiçam.
E faço requerimento
que assentês com bom tento
neste auto que s' esguarda
e com todo ũu estormento
me darês por minha guarda.
E com isto vos repito
ser-me dito
d' algũs grandes trovadores,
que vêm como valedores
escrever ou têm escrito.
digo que nam queiraes
assentar nem escrevaes
cousa que vos dada seja,
que mui bem o nam vejaes,
qu' eu primeiro o nam veja.
E des i logo no meo,
qu' hei raceo
de vir Jorge d' Aguiar,
que me mata seu trovar,
quando suas cousas leo.
E porem sede avisado
não vos tome salteado,
mas abri mui bem o olho,
e aqui vos solto cuidado,
e o sospirar vos tolho.
De Jorge d' Aguiar, que deu ajuda
em favor do cuidado con‑
tra o sospirar.
Ante tanta fremosura,
ante saber tam sobido,
ante quem siso s' apura,
hei por mui grande baixura
de bater no ja sabido.
Que pera sua mercê
haver de ser acupada
no que tam craro se vê,
no que todo mundo crê,
hei por cousa mui errada.
Cuidado faz nam dormir,
cuidado faz nam comer,
cuidado faz nunca rir,
cuidado ensandicer,
cuidado nam ter prazer.
Cuidado dá mil paixões,
cuidado dá mil cuidados,
cuidado mil corações,
cuidado mil namorados
tem feito desesperados.
Cuidado suas folganças
são em muito sospirar,
cuidado suas bonanças,
todo seu desabafar,
é em mil sospiros dar.
Sospiros sam testemunhas,
sospiros sam pregoeiros,
sospiros sam caramunhas
dos cuidados e marteiros
dos amores verdadeiros.
Mas quem pode sospirar
vai de pena j' alivando
e quem nam pode falar
em cuidando e maginando
vai seus dias acabando.
Assi que quit' à primeira,
pois soes tam namorado
que falaes contr' ò cuidado,
senhor Jorge da Silveira,
mas nam quita à derradeira.
Muitos vi esmorecidos
cair de grandes cuidados,
com sospiros e gemidos,
qu' ee sinal de ressurgidos,
os vejo sempr' acordados.
Assi que cuidado mata
e sospirar aviventa,
e, s' aquesta nam contenta,
nam sei quem maes rezam cata,
poes vos esta tanto ata.
Vede bem que perdiçam
vem de cuidado sofrer,
olhai bem por Dom Joam
que jaz ja pera morrer
soo de gram cuidado ter.
E por verdes que cuidado
traz consigo curta vida,
nunca vistes descuidado
que lha nam visseis comprida
mais que todos sem medida.
Cantiga sua que daa
contra os sospiros.
Sospiros nam me prasmeis,
pois soes todos fengidores,
dizer-vos que merecês
nunca ser cridos d' amores.
Com braados desentoados
cuidaes de me fazer crer
que vindes de namorados,
que vindes de padecer.
Ja me nam enganarês
dinos de mil desfavores,
pois sei que nunca nacês
senam dos maes fengidores.
Do Coudel-moor em forma
d' arrezoado por parte do
sospirar, em que res‑
ponde a estas de
Jorge d' Aguiar.
Vossas copras receando
tinha feitos meus processos,
mas pois se vem devulgando
pelo que m' is alegando
revolver compre Dejestos.
Que certo voss' alegar
vai per maneiras fundado,
que cuidar fará cuidar
que precede oo sospirar
u nam for bem esguardado.
Fundastes em dardes nome
de mil modos ò cuidado
s' i ha quem vos assome
far-lh' -ês qu' um espanto tome
que fique com' assombrado.
Mas olhando a qualidade
deste negro sospirar,
acharês ũa verdade
de ũa conformidade
qu' ee ja maes que recuidar.
Alegaes que o cuidar
em sospirar tem folgança
pois como pode matar
o cuidar, poes seu folgar
tam prestesmente se alcança?
Tambem dizês qu' esmorece
quem sofre grande cuidado
mas isto mas s' acontece
em quem se trata padece
se vê do braço sangrado.
Mas posto, nam outorgado,
que com cuidar s' esmoreça,
vejamos: nam jaz folgado
quem nam sente seu cuidado
nem dor grande que padeça?
Pois quando lhe vem a vea
que se torna sensetivo,
sospirar, com que descrea,
lhe dá tanta maa estrea,
qu' é milhor morto que vivo.
Qu' assi daqui concrudo
que sospirar tem o cume,
e qu' amores tenham tudo,
sospirar pelo meudo
de paixões faz moor velume.
Nam dá vida, mas dá morte,
nem folgar, mas dá tristezas,
sem azar nunca faz sorte,
faz o mal brando mui forte,
todo seu bem são cruezas.
Sua à dita senhora.
Senhora, grande senhora,
que poder tem sobre tantos,
lance cuidados de fora,
poes sospiros em fort' hora
têm consigo taes quebrantos.
Mande-nos vossa mercê
julgar esta deferença,
ca pois s' a verdade vê,
senhora, mandar querê
que nos dêm nossa sentença.
De Dom Joam de Meneses
em modo de repricaçam,
por parte do cuidar
contra o sos‑
pirar.
Senhor Jorge da Silveira,
n' ũa copra dizês vós:
cuidar é cousa primeira,
pola qual à derradeira
vós mesmo falaes por nós.
Que pois primeiro cuidamos
chamaremos o cuidar
e os sospiros ũs ramos
de tristeza que levamos
em cuidar.
Vosso irmão anda devoto
de ser contra o qu' eu falei,
mas eu juro e faço voto
que lhe vi trazer por moto:
Cuidado, que vos farei?
Mas des que se lhe casou
por quem vevia penado,
sospirou pelo passado,
e despoes que sospirou
nam sentio mais o cuidado.
Suas enderençadas
ao Coudel-moor.
Se por alegar cantiga
cuidaes de vencer por arte,
inda tendes mais fadiga,
que convem, senhor, que diga
das que sei por minha parte.
Porem quero que saibaes
que, se fosseis namorado,
rerieis das que falaes,
que sei que vos nam lembraes
del dolor de mim cuidado.
E outra tenho guardada
pera vossa perdiçam,
a qual foi tam bem cuidada
que parece qu' ee tirada
do meu triste coraçam.
Com esta sam eu perdido,
com esta será ganhado
quem for do nosso partido:
mins querelhas he vencido
siempre me venc' el cuidado.
Pelo qual de vós m' espanto,
poes vós soes o mesmo paço,
e sabês qu' ee tal quebranto
o cuidar que nam doe tanto
a morte com gram pedaço.
E meus cuidados estranhos
alegar por si enviam,
por todos ficardes manhos,
que sospiros dam tamanhos
na rua onde nam fiam.
Mil bocijos vi quebrados
em sospiros, que mostravam
ser do coraçam tirados,
mas aqueles que os davam
sospiravam d' enfadados.
Vi mais dama falsamente
sospirar, mas sospirava,
porque se nam despejava
a casa de toda a jente,
por se ir quem lhe falava.
Dom Vasco mil dados tem
por minha senhora e filha,
de vossa mercê tambem,
mas nam será maravilha
querer-lhe eu muito moor bem.
E ela, se d' enfadada
estando cos servidores,
sospira pola pousada,
levantai qu' ee namorada
ou que vem isto d' amores.
Sua às damas.
Senhoras, pois sospiraes
por pexegos, por melão,
por peras, figos orjaes,
marmelos, uvas ferraes,
aas vezes por queijo e pam,
confessai que quem sospira
nam faz nada,
que sospiros sam mentira,
cuidar, dor que se nam tira
sem ser muito bem cuidada.
Cantiga sua em favor
do cuidado.
Levo gosto em padecer,
levo gosto em sospirar,
levo gosto em me perder,
mas cuidar no qu' ha-de ser
d' antemão me quer matar.
Mas nunca farei mudança,
porque quanto mais penar
tanto mui maior lembrança
leixarei, quando leixar
vida tam sem esperança.
Cuidar faz adoecer,
cuidado desesperar,
cuidado me faz morrer,
mas porem torno a viver,
como posso sospirar?
Responde Francisco da Silveira
ao moto que lhe apontou e
às cousas passadas que
lhe alembrou.
Renovar dores passadas
escusareis, Dom Joam,
por m' as nam dardes dobradas,
que assaz tenho levadas,
sofridas sem galardam.
Metestes mais ũu casar
de por quem vivo nam ando,
por maes asinha fundar,
a quem, soo por lhe lembrar,
sospiros lh' estão tirando.
Inda vós nam sabês bem
que dores fazem lembranças,
quando se fazem de quem
nenhũu remedio ja tem,
mas antes desesperanças.
Se vós foreis namorado
tanto com' eu sam perdido,
nam m' alembreis passado
por vos eu contr' ò cuidado
neste preito ter vencido.
Pera nam serdes tachado
por nam ser vosso louvor,
se quisereis, por cuidado,
em outra guisa alegado
fora sem me dardes dor.
Mas com' a quem se recea
da maa querela que tem,
passada paixam nomea,
com que meu siso rodea
a me nam lembrar ninguem.
Dizês, senhor, que mandei
moto ja em que dezia:
Cuidado, que vos farei?
Por ele vos provarei
qu' ee boa minha perfia.
Preguntava que faria
o cuidado, nam sospiro,
porque o cuidar sabia
que remedeo se daria,
mas nam o com que sospiro.
Se por me lançardes fora,
cuidastes que vencereis,
fostes lá mui em fort' hora,
pois ficaes com quem nũ hora
vos fará crer o que mal crieis.
Mas aqui nam presta manha
que cuidaes vencer por arte,
buscai-lh' outra dor estranha,
que lhe dê pena tamanha,
que vos leixe sua parte.
E entam des que ficardes
vós e quem todos sõoes ũs
poderês, des que cuidardes
e vos bem aconselhardes,
sospiros dar por nenhũs.
Ca despois que juntos fordes,
sem contra vós ser ninguem,
poderês tirar e poerdes
e nam fazer, mas despoerdes
do dereito a quem o tem.
Sua à dita senhora, em que
lhe pede vingança de
Dom Joam.
Quis Dom Joam alegar
quem cem mil dores me deu,
por m' os sentidos trovar
e me fazer desviar,
senhora, o prucurar meu.
Peço-vos dele vingança
e leixo o mal de meu irmão,
ca por me fazer lembrança
de quem perdi esperança
me cae a pena de mão.
Do Coudel-moor em que res‑
ponde ao que disse Dom
Joam contra ele e dá
estas em favor do sospirar.
Pois quisestes repricar
com querelas alegardes,
e querês arrapiar
o cuidado e o cuidar
pera o mais arrapiardes,
sospirar alegaraa
o triste que sabereis
que dezia entrai laa:
― Sospiros, leixae-me jaa,
com meu mal nam me mateis.
Sospirar está provado
que nunca traz interesse,
mas traz mal continuado
que brada desesperado:
― Oh quem vista nam houvesse!
Pera meus danos dobrados
cada dia me convida
e diz sobre meus cuidados
com sospiros tam forçados
darem cabo a minha vida.
Ũu falar nam mui donoso
cab' aqui, pois o quisestes:
quando and' algũu cuidoso,
diz por ele o gracioso:
― Vós, que carracas perdestes?
Mas s' o sospirar dobrado
vejo andar com desfavores,
digo cá em meu calado
s' anda bem apassionado
aquele com seus amores.
Du nam fiam, nam fiêes,
nam recebo aqui tal prova,
mas das damas que dizeis
respondo que ja sabeis
qu' a mais doce maes emnova.
Quem sospira por pousada
tem pesares do serão
ou paixam sobr' agastada,
pelo qual nam desfaz nada
o feito de seu irmão.
Do Coudel-moor à dita senhora,
em que lhe pede outra
vez sentença pelo
sospirar.
O que vos, senhora, digo,
olhe vossa fremosura,
com sospiros m' afadigo,
porque dobram quando sigo
minha moor desaventura.
E pois ser nam é cuidado
o sospiro nem chegar,
saia deste processado
o de todas e mandado
que os mate o sospirar.
Cantiga do Coudel-moor em favor
do sospirar, pelos mesmos con‑
soantes da que fez Dom
Joam em favor do
cuidado.
Por meu triste padecer
me mata meu sospirar,
mas que me veja perder,
cuidando que pode ser,
nam m' acabo de matar.
Nam posso fazer mudança
das forças de meu penar,
mas vem-me triste lembrança
por sospiros nam leixar,
leixando minha esperança.
Faz-m' assi adoecer
contino desesperar,
que vida m' ee ja morrer
e nam por vida viver
com tal mal de sospirar.
De Pero de Sousa Ribeiro,
ajudando o sospirar.
Eu nam posso falar mal
naquisto que sam chamado,
pois sospiros e cuidado,
tudo tam mal empregado,
em mim nunca vejo al.
E porque o sei tam bem,
digo, como quem o sabe,
que cuidados cousas tem
que no sospirar nam cabe.
No cuidado ha cuidar
em mim tem acontecido
que quem muito prefiar
e servir sem anojar
haveram dele sentido.
Vede camanho conforto
tem quem se quer enlear,
mas o triste sospirar
é oficio d' homem morto.
Aqueste nam dá vagar
pera mil confortos vãaos,
este nam leixa folgar,
este é o que matar
vai assi com suas mãaos.
Aqueste nam tem parceiro
pera ser aconselhado,
toma logo o mal primeiro,
que nam faz o cuidado.
Sua a Nuno Pereira.
Vós, senhor Nuno Pereira,
sede mui arrependido,
o qu' aqui tendes metido,
por nam ser todo perdido,
dae com el' em outra feira.
E se nam achardes venda
da perfia que tomastes,
eu vos quito a emmenda
pois j' o trabalho levastes.
Cantiga sua em favor do sospirar.
Nam queira ninguem falar
em falar tam escusado
como dizer qu' o cuidado
é igual do sospirar.
O cuidado é gram prazer,
que prazer é ter espaço
em qu' homem possa dizer:
— Quanto mal nisto a mim faço!
E por isto escusar
deve qualquer namorado
de dizer que o cuidado
é igual do sospirar.
De Nuno Pereira à dita senhora,
em que pede por estas copras
de Pero de Sousa lhe
dêm a seguinte
pena:
Nam ha i nenhũa cousa
em que se graça nam meta,
provo pela chanceleta
que meteo Pero de Sousa.
E pois vossa mercê mede
e a todos dereito guarda,
posto qu' ele a nam pede,
dê-se-lhe porem albarda.
Sua a Pero de Sousa, porque disse
que os sospiros tinham mãaos
com que se matavam e que
fosse vender o cuida‑
do a outra feira.
Em ũa copra metês
ũa soo rezam que ata;
ha mester que a provês,
pois que sospiro dizêes
que tem mãaos com que se mata.
Dai testemunha jurada,
e nam falês por semelha,
vestis-lhe capirotada,
ou saio com enseada,
ou sombreiro com guedelha.
I buscar quem vos entenda,
que eu nam sam tam letrado,
que tam alto me estenda
em saber como se venda
em canastras o cuidado.
Como se pode fazer
per alqueires tal medida?
Como se pode vender
o cuidado sem a vida?
Nem é falar de galante
qu' em cuidado venda caiba,
vossa morte querê ante
que por Dona Violante
ũa tal cousa se saiba.
Fazês do paço mercado,
isto nam no saiba El-Rei,
pelo vosso calar-m' -ei
por nam serdes degradado.
Sua à dita senhora, em
que faz por sua parte
o feito concruso.
Vejo tam grande processo
e tam gram prolixidade,
que d' enfadado ja cesso
alegar mais na verdade.
Vá o feito ja concruso
ante quem morte m' ordena,
Jorge da Silveira acuso,
cuidado lhe dêm por pena.
Do Coudel-moor à dita senhora,
sobre ũ correo que de deos do
Amor lhe chegou a gram
pressa, por vir ante
de se dar senten‑
ça neste feito.
Tendo ja meu rezoado
pera mais nam rezoar
e assaz bem decrarado
como nam chega cuidado
pelos pees ò sospirar,
da corte d' Amor me veo
ũu correo
sobr' este feito, a gram pressa,
com estas copras que leo
com receo
de se nam tornar avessa.
Seguem-se as copras com que chegou
este correo, que logo deu e foram
vistas pola dita senhora a
quem vêm ende‑
rençadas.
Deos d' Amor em sa cadeira
cos de seu conselho estando,
vendo Jorge da Silveira
andar com Nuno Pereira
em seus males altrecando,
sabendo qu' esta perfia
ante vós s' aderençava,
quis dar forma todavia
como vossa senhoria
visse o que determinava.
Chamou logo ũ sacretareo,
o mais fiel que achou,
e mandou fazer somario
costante, nam voluntareo,
do que se determinou.
O qual logo em comprimento,
porque seu servir s' alegue,
pera vosso avisamento,
senhora, fez ũu assento
da cantiga que se segue.
Cantiga que o secretareo
de deos d' Amor fez por seu
especial mandado, pera
mais decraraçam
deste auto.
Sospiros, gram sospirar,
é cousa tanto d' amores
que s' enganam fengidores
com eles par' enganar.
E por estes qu' assi ousam
fengir verdades, decraro
que sospiros custam caro
onde seus males se pousam.
Pois que mais autorizar
querês este mal d' amores,
pois sospiros sam senhores
de matar com seu matar?
De Nuno Pereira em modo
de petiçam à dita senhora,
porque lhe foi dito que
a parte contraira
dava enforma‑
çam de fora.
Foi-me caa dito, senhora,
que o qu' ee contra mim parte
vem com petiçam de fora,
por mostrar que quer agora
meter outros modos d' arte.
Quer demanda perlongada
por se mostrar mais agudo,
eu nam dou por isso nada,
nam seja cousa assentada
sem haver vista de tudo.
Seguem-se mais ũas rezões que
deu Nuno Pereira, provando
a sua parte do
cuidado.
Quem s' algũas vezes vio
nũ cuidar cotemprativo,
se o muito perseguio,
diga que pena sentio,
se se vio morto ou vivo.
Ou se se nele lembrava
de cousa qu' entam fazia,
quando em gram cuidar estava,
se lh' alguem entam falava,
se somente respondia.
É morte nam conhecida
causada de gram paixam,
o cuidado encurta vida,
qu' ee ũa chama encendida
em que arde o coraçam.
Sospiros pelo contrairo,
pois donde cuidado estaa,
acudem por dar repairo
à dor grande que lhe daa.
Disse-me que me guardasse
o Doutor Mestre Rodrigo
de cuidar e que cuidasse,
s' o cuidado me tomasse,
qu' era jaa morte comigo.
Ca cuidar nam no curava
fiseca nem solorgia
e mais se o dama dava
que servir-la nam prestava
leixar nam na podia.
Cantiga sua que oferece
à dita senhora com
estas rezões
alegadas.
Que saibaes que ũ de nós,
senhora, por vós sospira,
do cuidado qu' ele tira,
eu o tenho ja por vós.
Eu o tenho ja, senhora,
pera nele padecer,
quem se dele tira fora
maes deseja de viver.
Qual merece mais de nós:
ele, enquanto sospira,
ou eu, de quem se nam tira
cuidado que vem de vós?
Do Coudel-moor à dita senhora,
sobre ũas testemunhas que
houve despois do feito ser
concruso, as quaes daa
em favor do sospirar,
em modo d' enfor‑
maçam.
Senhora, valha-me Deos,
valha-me vossa mercê,
valê-me, senhora, vós,
poes meu agravo se vê.
Ũa testemunha tenho
que, no caso desta afronta,
fará muito a meu dereito,
e pois inda a tempo venho,
pagarei todo o que monta,
mandai-a assentar no feito.
Nam corre nela perigo
de lhe porem sospeiçam,
faz muito aquele artigo
que fala do coraçam.
É dina de receber,
pois que quando morrer quis
bradava: — Mataime ja
nem me leixeis mais viver,
sospiros, pues que venis
du min coraçam está.
E por mais decraraçam
dos sospiros serem pena,
vos alego a Definçam
d' amores per Joam de Mena,
a qual diz em seus decretos,
por seus males concrodir
e amores decrarar:
Sam dulces males secretos,
ũu sospirar e gemir,
ũu vergonçoso lhorar.
Outra tinha pera dar
que, se eu tempo tivesse,
poderia bem provar
por ela quanto quisesse.
Mas vossa gram descriçam
sente s' ee maes padecer
o cuidar se sospirar;
qu' ee parte de perfeiçam
senti-lo sem no saber,
sabê-lo sem no gostar.
Cantiga sua que daa com
o dito das testemunhas
à dita senhora, em
favor do sospirar.
Sospiros nom podem ser
sem ser cuidar,
cuidados se podem ver
sem sospirar.
Assi que sospiros logo
têm seu mal e o alheo,
nem é meu cuidado cheo,
se sospiros lhe revogo.
Cuidar se pode manter
sem sospirar,
mas sospiros nunca ser
sem ser cuidar.
Desembargo posto per mandado
da dita senhora nas costas desta
enformaçam e razões que
por parte do sospirar
foram dadas.
Estas rezões que se dam,
e s' algũa mais se der,
tod' assente o escrivam,
diga mais quem mais quiser.
Trovas do Coudel-moor ao escrivam
do feito, requerendo que assente no
feito as de Joam Gomez que
deu por o cuidado, por‑
que s' espera ajudar
delas em favor
do sospirar.
Os da lide contestada,
s' escrivam têm boom por marco,
crêm-no como ũ Sam Marco
avangelista formada.
Ca nam mingua nem acrecenta,
nem risca, nem tira folha,
as partes ambas contenta,
igualmente tudo assenta,
porque falso nom acolha.
Porem deveis assentar
neste auto, neste mero,
ũas trovas, ũ trovar
de Joam Gomez, que foi dar,
das quaes m' ajudar espero.
Pois logo com a reposta
assentai todas aquelas,
por vermos onde s' acosta
quem cuidar, sospirar gosta
ou quem mais provar por elas.
Seguem-se as trovas de Joam Gomez
por parte do cuidado, as quaes
andavam de fora do feito e a
requerimento do Coudel‑
-moor foram tor‑
nadas a
ele.
Senhor Coudel-moor, cuidaes
por fazerdes muitas cobras,
com mil graças que falaes
que nos encalameaes
outras verdadeiras obras.
Mas com falar e falar
sem concludir,
e trobar e mais trobar,
mal vos vejo decernir
cuidado sospiros dar.
Onde vós virdes desejo
que desejo deva ser,
posto que seja sobejo,
quer com pejo quer sem pejo
sospiros podereis ter.
Causa de s' isto provar
é devulgada:
se deleite es desear,
quanto más ser deseada,
esta nam podeis negar.
E vós sospirar meteis
em caso de baronia,
e sospirar defendeis
e que seja, vós quereis,
de Pedro quer de Maria.
O galante por quem ama
se desvela,
com cuidado e por fama
poderá sospirar dama
por quem seu sentido vela.
Mesturastes os cuidados
d' amores da salvagina
nesses vossos razoados,
os meus nom tendes gostados
nem sabês sua doutrina.
Cuidado é de tal raça
e nacimento
que se nam sofre de graça
e quem s' apoja mal caça
nô s' ha pôr a barlavento.
Vós quisestes desfazer
no mal que faz o cuidado,
e quereis-me encarecer
o sospirar e gemer
e o mal deles causado.
Mas a verdade falar,
pois nam empolga,
deve-se de confessar
qu' este vosso sospirar
nunca quebra nem amolga.
Polo qual desenganae
quem vos trouxe esta questam
e vossa teima leixae,
mas saib' este que vos cae
em estreita obrigaçam,
por lhe dardes desenganos
do que faz
e conheça seus enganos,
confessando-nos os danos
que cuidado sempre traz.
Do Coudel-moor em que res‑
ponde a estas de Joam
Gomez, em favor
do sospirar.
Vosso sobido trobar
meu saber todo desmancha,
mas cuidai que com cuidar
quanto mais quereis cortar
tanto mais feris de prancha.
Dizeis que vossos cuidados
nunca repousam nem folgam
e entam bem aprefiados
quanto mais examinados
sospiros menos amolgam.
Nam vos presta que digaes
cuidados dam muita pena,
nem que sam males mortaes,
se o nam autorizaes
per teistos de Joam de Mena,
d' Estunhiga ou Aguilar,
ou per bos termos e meos,
ca vos nom val alegar
sem o alegado provar,
disto sam os livros cheos.
Dizeis-me que faz desejo
sospiros acrecentar,
eu confesso se lhe vejo
por tempo curto, sobejo,
vir algũ desesperar.
E pois ser desesperado
os sospiros desatina,
em tempo tam mal gastado
sospirar d' alma lançado
em paixõoes se determina.
Co desejo qu' alegaes,
daes pedrada em vosso escudo,
porque quando desejaes
se vos nisso deleitaes
de vós mesmo vos concludo.
Pois deleite é desear,
argumento é de fazer,
cuidado traz desejar,
desejo traz deleitar,
ergo cuidado, prazer.
Das outras partes m' escuso
por nelas mais nom dobrar,
sospirar vos tem confuso
per custume e per boom uso,
per antiga posse estar.
Per boa confirmaçam
que temos de Joam de Mena,
Joam Rod[r]iguez del Padram,
Manrique e quantos sam
ham sospiros por moor pena.
Mas s' i ha quem crer se peja
estes doutores modernos,
porque mais craro se veja
creamos a Santa Egreja,
que segura dos infernos.
Pois olhai, quando rezamos
a nossa Salve Regina
nam diz ela em ti cuidamos,
mas diz a ti sospiramos,
por a causa ser mais dina.
Trova sua que daa por cabo de seu
razoado, em que concludindo
pede à senhora que lhe
mande dar sua
sentença.
Que digaes que deite a longe
meus ditos de papassaal,
porque disso estou mui longe,
quando vos meterdes monge,
cuidarei que disse mal.
Mas peço com reverença
à senhora que nos cumpra
de justiça com femença
e nos mande dar sentença
que torno pedir ut supra.
Cantiga do Coudel-moor, que
dá com este seu razoado
por mais decraraçam
do sospirar.
Cuidando remedear-me,
nom sinto tanto perder-me,
desesperando valer-me,
sospiros querem matar-me.
Em meus males ter sahida
cuidando tenho descanso,
e cuidando minha vida
poder seer restetuhida,
com minhas paixõoes amanso.
O cuidar faz consolar-me,
se cuido poder valer-me,
mas u nam sei socorrer-me,
sospiros querem matar-me.
Desembargo que a senhora man‑
dou pôr no feito, pera satis‑
fazer ao dito das par‑
tes, antes de dar
sentença.
Se mais querem rezoar
sobelo qu' ee alegado,
dê-se a vista ò cuidado
e despois ò sospirar.
De Dom Joam rezoando con‑
tra o sospirar, pedindo à se‑
nhora que nam desse sen‑
tença até ele nam seer
sam e nam dar lu‑
gar a prova.
Senhora, qu' a castelhanos,
senhora, qu' a portugueses,
a poder de desenganos
a vida de muitos anos
lhe tiraes em poucos meses.
Estou cos pees pera a cova,
por isso nam faço trova,
mas visto minha doença
nam devês de dar sentença
té nam dar lugar a prova.
Pai e filhos mui perfeitos,
que saiba poucos dereitos
e poucas alegações,
sinto todalas paixões
que sam provas de taes feitos:
qu' em minha alma e minha vida,
em mim e meu coraçam,
jaz mais tristeza metida,
mais dores e maes paixam
do que pode ser sabida.
Mas por verdes qu' em amores
é cuidar das mores dores
qu' eles têm poder de dar,
sendo vós contr' oo cuidar,
fostes seus ajudadores,
qu' alegaes contra cuidados
algũs pontos mui falsilhos,
em qu' estaes tam enleados,
que poderês ser tomados
o pai e depois os filhos.
E se todos nam aponto
é por nam fazer ũu conto
muito moor qu' ò galarim,
se laa achardes a mim
em erro vá em desconto.
Porem soo pelo qu' entendo,
hei de vós, senhor, piadade,
porque em estas copras lendo,
sei qu' havês d' estar dizendo:
— Dai ò demo, diz verdade!
Contra Francisco da Silveira,
porque se queixou de lhe
lembrar cousas
passadas.
Vós, senhor irmão, de quem
ha todo meu mal por bem,
por fazer de vós penado,
chamaes-me mao namorado,
mas bem sei dond' isto vem.
Porem, pois vos faz penar
ver que voltas dam amores,
s' isto lembra com cuidar,
per aqui posso provar
qu' ee cuidar cume d' amores.
Que cuidar triste penando
faz lembranças do passado:
cuidar lembra o qu' ha-de vir,
sospiros sam ressurgir
da morte que daa cuidado.
Cuidado traz à memorea
memorea de mil tristezas,
tristeza vos dá por grorea,
porem grorea e nam vitorea
nunca dá contra cruezas.
E pois do cuidar s' ordena
grande dor e nam pequena,
vós bem me podês culpar
que vos dê em que cuidar,
mas cuidar vos deu a pena.
Pelo qual devês chamar
vós e quem vivês penado
oos sospiros descansar
do cançaço qu' ee cuidar,
mas a dor é o cuidado.
Cantiga sua à dita senhora sobre
Francisco da Silveira, que lhe
pede dele vingança, porque
diz que lhe fez cair a
pena da mão com
cousas que lhe
lembrou.
Senhora, pois que s' ordena
do cuidado grande pena
e o sospirar a tira,
conhecê que quem sospira
nam na tem senam pequena.
E quem diz que de paixam
lhe cae a pena da mão,
chamai-lhe mao namorado,
que quem tem algũ cuidado
vêm-lhe mil oo coraçam.
E por verdes que s' ordena
do cuidar dor nam pequena
e que sospirar a tira,
a todo homem que sospira
lhe verês cair a pena.
Enderença sua fala ao Coudel‑
-moor em favor do seu
cuidado.
Vós, senhor, a quem nam sabem
louvar vosso merecer,
vós, a quem por mais que gabem,
das vertudes qu' em vós cabem
as maes ficam por dizer,
cuidando ja qu' era morto
de paixam, de desconforto,
quisestes naquele feito
fazer do torto dereito
a quem tem dereito torto.
Mas por naquesta questam
sabêlo que sei agora,
fui tanto pela paixam
que cheguei ao coraçam,
em que todo pesar mora.
O qual cuidado matava,
o qual cuidado penava,
o qual de cuidar morria,
mas com quanto mal sentia
de si mesmo se queixava.
Vi que estava cercado
de tristezas e de dores,
de paixões acompanhado,
metido em gram cuidado,
cuidado triste d' amores.
Mas do que lhe preguntei
e da reposta que achei,
se quiserdes ouvir novas,
i lendo por estas trovas
e nelas vo-lo direi.
Pregunta sua ao coraçam.
Coraçam, que tantos dias
ha que vives tam penado,
que vivendo nam vevias,
coraçam, que o de Mancias
nunca foi tam namorado.
Coraçam, leal amante,
de quem te nam quer por seu,
coraçam, que, sendo teu,
és de Dona Violante.
Tu, que vives sem ser vivo,
tu, que morres de paixam,
tu, que sentes mal esquivo,
coraçam, triste cativo,
servo d' outro coraçam,
qu' ainda sejas amado,
sospirar, cuidar, coitado,
di qual has por moor tormento.
Respondeo qu' era um vento
sospirar peroo cuidado.
Preguntei porque fizerom
sospiros leixai-me jaa.
Respondeo: — Nam no dixeram.
S' eles minha dor tiveram,
mas nam na tem quem os daa.
Preguntei despois daquisto
de quem era tam malquisto,
quem lhe dava tal paixam.
Respondeo: — De ũ coraçam,
que nam sente nada disto!
Quis ver como defendia
sospiros, ansias mortales.
Respondeo sem alegria:
— Milhor disse quem dezia
ay mins cuidados i males!
Contei-lhe do gracioso
que preguntou ò cuidoso
quantas carracas perdera.
Respondeo que conhecera
nele que era cobiçoso.
Que cuidado nam soomente
entristece o namorado,
mas a toda outra jente
faz que viva descontente
como tem algum cuidado.
Mas a dama oo servidor
que quer fazer desfavor
promete pelo matar
que lhe dê em que cuidar,
porque esta ha por mor dor.
Sua por fim de seu razoado
contra os que procuraram
pelo sospirar.
E pois este coraçam
ha sospiros por prazer,
cuidados por gram paixam,
vós de ter outra tençam
vos devês de repender.
Porque nas cousas d' amores
por que sente tantas dores
nam devês d' aprefiar,
qu' ele deve de julgar
e vós ser precuradores.
Cantiga sua ao cuidado por
cabo de suas rezões.
Cuidado, quem cuidaria,
se jaa cuidou algum hora,
de ver o que vê agora?
Quem cuidou ver namorados
chamar pena oo sospirar?
Quem cuidou que vós, cuidados,
por verem que vão errados
lhe nam dês em que cuidar?
Cuidado, quem cuidaria
qu' o cuidado nam melhora
quand' homem sospira e chora?
De Francisco da Silveira, que
responde a este derradeiro
rezoado de Dom Joam,
no que tocou à sua
parte.
Vosso falso defender,
vosso mao aprefiar,
vosso nam vos conhecer
me fez por vós responder
de m' ora vivo tornar.
Nam vos nego que cuidado
sobre males nam faz mal,
mas o mal é mais dobrado,
quando sospiro forçado
se mete no caso tal.
Sua em que responde à cantiga
que diz que cae a pena
da mão a quem
sospira.
Em cantiga me metês
que cae a pena a quem sospira;
verdade grande dizêes,
pois com sospiro morrês
e a pena entam se tira.
O cuidado que doi mais
nam é mais que dar-vos pena,
cos sospiros vos finais,
com eles alma apartaes,
o mor mal deles s' ordena.
Mas vosso alvoraçar
é coraçam da pousada,
por saberdes bem trovar
cuidaes de fazer cuidar
que sospiros nam sam nada.
Vaa rir essa presunçam
nam chamar mais namorado,
pois nam tendes coraçam,
nem vos vejo ter naçam
de sofrer mais que cuidado.
Leixai, leixai os amores
per oos que neles morremos
com seus bravos desfavores,
com tantas, tam tristes dores,
como sempre neles temos.
Tomai prazer, pois podês,
folgai com vosso cuidar,
e cuidado tal trarês,
se viver muito querês,
que nam chegue ò sospirar.
Porque sem o sospirar,
cuidar havês qu' ee d' amores,
estes sam os do cuidar
sem o poderdes negar
os mores oito senhores:
será primeiro Latam,
o segundo Samuel,
o terceiro Salamam,
o quarto será Faiam,
o quinto Abravanel.
Namorado é Palaçano,
Gualite, tambem Jacee,
pois que cuidam todo anno,
mas cuidam em dar seu pano,
mais do que vaal a la fe.
Cuidam no arrendamento,
quando cuidam d' encampar,
e cuidam qu' ee perdimento,
quando cuidam que por cento
trinta é pouco ganhar.
Chamai tambem namorados
òs qu' andam por traiçam
fora do reino lançados,
pois deles nunca cuidados
saem mil do coraçam.
Dai ò demo este cuidado,
confessai que sospirar
é de tal guisa fundado
qu' ee do mal o mais dobrado
qu' ee d' amores o matar.
Quem sospira nam sospira
senam só com mal d' amores,
o sospirar que se tira
d' alma nunca traz mentira,
mas devulga mortaes dores.
Sam grandes penas mortaes
sam males sem refrigeiro,
sam dores mui desiguaes
d' amores sem ter remedeo.
Sospirar nam desaliva
como laa atras dizês,
mas antes paixões aviva,
a dor faz ficar mais viva
mui maior do que gemêes.
Prova-se, pois do sospiro
tal choro vem apos ele,
que se nele me consiro,
de meu mal nunca me tiro,
mas antes me moiro nele.
Sua que daa por fim do
arreezoado à dita
senhora.
Vejo estar ja tam provado
este triste sospirar,
tam visto, tam decrarado
qu' hei por tempo mal gastado
o que mais nisso gastar.
Pois queira vossa mercê
dar o seu a cujo ee,
que quem tem olhos e vê,
e nos sospiros nam crê,
é hereje em nossa fee.
Do Coudel-moor em que responde
ao que diz Dom Joam neste rezoa‑
do que deu contra o sospirar, e
primeiro algumas outras que
ficaram atras assentadas no
feito contra o dito sos‑
pirar oferecidas, a
que nam foi res‑
pondido.
Vosso alto procurar
e tal soster de questões
nos faz todos espantar
por irdes, senhor, achar
ũu coar de taes rezões.
Porque sendo contrafeitas,
parecem vereficadas
e parecem logo feitas
por d' enves fazer dereitas,
de mão de mestre forjadas.
Porem eu responderei
essas partes mais forçadas
e tambem repricarei
a outras por que passei
qu' havia por escusadas,
cuidando que o cuidado
se desse ja por vencido,
mas pois tam aperfiado
o por ele alegado
será por mim respondido.
Começa logo o Coudel-moor a
responder ao que disse Nuno
Pereira na sua primeira
copra, dizendo que cui‑
dado lhe tolhia o
sospirar.
Foi graça, notai-a bem,
u meu cunhado s' acolhe,
diz-nos que lugar nam tem
de sospirar, mas retem,
porque seu cuidar o tolhe.
Se cuidar lho faz tolher,
o qu' eu nam posso cuidar,
d' hoje mais cuido dizer
que cuidar nam é saber,
pois nam sabe sospirar.
Responde ao que disse Nuno
Pereira que d' enfadado
cessava ja de falar
neste feito.
Pera qu' ee mais testemunha,
pois vosso falar s' emborca,
nos tempos da moor caramunha
lançar sua coroa unha
na pouca dor que vos toca.
Que dizês que d' enfadado
querês do feito cessar
nam vem de grande cuidado,
que u ele jaz dobrado,
nam cessa seu sospirar.
Responde ao que disse Dom
Joam que sospiros vêm
por descanso e sua
dor que é mais
pequena.
Dar sospiros por descanso
achei laa em outra vossa,
e s' em al diz que vem manso,
mas eu com sentido canso
por nam ver como ser possa.
Pois sospirar é paixam
e nam vem sem ser cuidado,
quand' estes dous juntos sam,
ambos nam me doeram
mais qu' a vós um apartado.
Responde a outra em que disse
que sospiros sam conforto
e repairo dos
cuidados.
Sospiros serem conforto
nam é regra d' algarismo,
pois dizês que sam deporto
é ir contra o enfroismo.
Hipocras por perigosa
dor os chama e lh' ha gram medo:
ele diz em teisto e grosa
que sospirar lutuosa
sam sinaes da morte cedo.
Responde à cantiga de Jorge
d' Aguiar em que disse que
os sospiros eram gran‑
des fengidores.
Sospiros per fengidores
Aguiar lhe fez cantiga,
sabendo que nos amores
sam boias dos desfavores,
das paixões e da fadiga.
Quando sem paixam sam dados,
sam por outros comprimentos,
pois falsamente cuidados,
cuidados sejam culpados,
pois cuidam tais fengimentos.
Responde ao que disse Dom
Joam, que vira ja mil
bocijos quebrados
em sospiros.
Bocijar sobr' enfadado
per sospirar nam se conte,
que logo é desenxergado
sospiro que vem lançado
d' u paixões se põe em monte.
Eu falo do sospirar
que me vem fresco da forja,
d' ũ querer que me quer matar,
d' ũ triste desesperar,
d' ũ alma que ja escorja.
Responde ao que disse às da‑
mas que sospiravam por
peras e melão e
figos.
Sospirar por figos, peras,
por melão, bolo folhado,
nam é sospirar deveras,
que doutras fruitas mais feras
vem o sospirar formado.
Falemos do sospirar
que vir de paixões s' entenda,
que o al mais é cuidar
aa vontade do paadar
pera as cousas da merenda.
Responde ao que disse Dom Joam,
que pois primeiro é o cuidar,
que o cuidado será moor
pena e os sospiros se‑
riam ramos.
Que chamês por ser primeiro
o cuidar pena maior,
nam é falar verdadeiro,
mas antes por derradeiro
fica sempre o matador.
Pois que os sospiros sejam
do cuidar ramos chamados,
nam nos vejaes nem vos vejam,
que matam, quando pelejam,
onde dam vida os cuidados.
Torna o Coudel-moor a responder
às rezões de Dom Joam, que
ora tocou neste seu
razoado.
Pois venhamos apertar
vossas rezões derradeiras,
por mais me nam dilatar
e se vem vosso alegar
qual se vem das empulgueiras.
Mas posto que em respeito
vosso ja calar devia,
ver a verdade do feito
e ver que temos dereito
esforça minha perfia.
Responde ao que Dom Joam disse
que se alegavam alguns pontos
falsinhos contra os cuidados,
metendo ele consoantes fal‑
silhos à can‑
tiga que fez contra
Francisco da
Silveira.
Falsilhos pontos nam sam
verdade ha de diante,
mas meter o coraçam
com a mão, com a paixam,
faz falsilho consoante.
Peroo tudo isto leixado,
falemos a bem de feito
e seja sentenceado
polo alegado e provado
como quer nosso dereito.
Responde ao que disse que seu
coraçam lhe respondera por
sospiros, ansias mortales,
que milhor dezia quem
dezia ay mins
cuidados i
males.
Cuidar ter em que cuidar
por forma de seu descanso
voolo fostes alegar,
com mins cuidados lembrar
i males com que já canso.
Porque laa pela contiga,
se nam lerdes ò reves,
acharês pee que vos diga
que descanso dá fadiga
en pensar quanto mal es.
Responde ao que diz que os sos‑
piros sam ressurgir da morte
que daa cuidado, como
foi ja alegado mui‑
tas vezes.
S' assi é por ressurgir
sospiros fazem sua porte
fá-lo-am por se seguir
mais longa e pessoir
vida qu' ee pior que morte.
Porque lá temos autor
que, vendo seu mal tamanho,
em sua pena maior
escolh' o triste amador
la muerte por menos danho.
Outro com desesperança
bradava desesperado:
— O morrer me era folgança,
pois por morte se alcança
fim del mal continuado.
E em meu caso tam forte,
porque descanso s' ordene,
morrer hei por boa sorte
por ver se terná la muerte
lo que la vida no tiene.
E por iss' o namorado,
com paixões entrestecidas,
diz por si triste coitado:
— Mim bevir atrebulado
nom se conte antre las vidas.
Nam devês pois arguir,
qu' ha bem só fazer viver,
ca sobre males sentir,
es el remedeo morrir,
ouvi mil vezes dizer.
E assi que sospirar
nam daa vida por viver,
mas por mais e mais penar
e sabês que ha trocar
maa vida por bom morrer.
Ja foi isto alegado
e tantas vezes se trouve
que por ser tanto dobrado
ficará enfastiado
o coraçam que o ouve.
Responde ao que diz que seu cora‑
çam lhe respondeo que o cuidoso
pelas carracas que perdera
seria algum grande
cobiçoso.
Pois se vosso coraçam
do cuidoso presumio
que seu mal, su' afriçam,
seu cuidar, sua paixam,
de cobiça se seguio,
devês logo confessar
que amores nam sam nada
pera nos fazer cuidar,
mas faz cuidar e matar
cobiça desordenada.
Responde ao que disse que a
dama por desfavor diz ao
servidor que lhe dará
em que cuidar.
E daqui quem esguardasse
o que a dama dezia
que daria em que cuidasse,
s' ele nunca cobiçasse,
seu cuidar nam o creria.
E que ja ao meaçar
com dar que cuidar alguem,
sem pena por seu cuidar,
mas sem paixões sospirar
isto nam pode ninguem.
Prossegue o Coudel-moor
outras rezões em favor
do sospirar.
Vossas tais alegações
fazem pouco contra nós,
ca tocaes em corações
de que vêm vossas rezões
a só precurar por nós.
Entam dizês que cuidar
tem voss' alma trespassada
e querê-lo aprefiar
como que co sospirar
que me quedo em la posada.
Se gostastes a paixam
que dam sospiros forçados,
nam dirieis si por nam
u falassem na questam
dos sospiros, dos cuidados.
Mas derieis: — Oh camanhos
sinais sam de vida triste!
Oh que males sam tamanhos,
sospiros, choros estranhos,
como os grosa Vita Criste.
Donde venho concrodir
que cuidado pena seja,
sospirar, quem no sentir,
vê-lo-am sempre ferir
na moor força da peleja.
É tam lindo cortesãao
que sempre brada por damas,
amores onde tem mãao
seus tristes sospiros vam
ardidos todos em chamas.
Do Coudel-moor enderençada à
dita senhora por cabo de seu
rezoado, em que pede que
lhe mande dar sua
sentença.
Senhora, nam se dilate
sentença sobre tal prova,
mas diga, sem mais debate,
sospirar, posto que mate,
nam seja por cousa nova.
Paixões posso acrecentar
com mil lembranças que cata,
vindo com desesperar
tenha poder de matar
como de cote nos mata.
Cantiga sua que daa por cabo
de suas rezões que tem ofe‑
recidas por parte do
sospirar.
Onde cuidar desbarata,
sospiros querem matar,
porque sobre carregar
dizem que mata.
Sospiros serem paixam
negar-se nam poderaa,
pois vindos do coraçam
com cuidado e afeiçam
dizem quem os sofreraa.
Tenho-m' aa primeira cata
das feridas do cuidar,
mas, quando vem sospirar,
sabêe que mata.
De Joam Gomez a Dom Joam, por‑
que lhe foi dito que sendo ele au‑
sente donde se o feito tratava,
que a parte do cuidado nam
ia bem, e com elas lhe
mandou outras que
oferecesse por
parte do cui‑
dado.
Senhor Dom Joam, senhor
de mim e mais que de mim,
vós m' havei por servidor
vosso em um tal tenor,
que nam m' abata zinzim.
Tambem pera contrejar
contra quem vós contrejardes,
tudo me podês mandar
e do serviço d' açucar
se me na Ilha mandardes.
Acerca do que compre ser,
falando por retrocado,
vi quem nam quisera ver
centatantas copras ler
dos sospiros e cuidado.
E somos precuradores
e tam mal nos concertamos
que ja fomos autores
e morrem nossos favores
pelo mal que procuramos.
E segundo me parece
a quanto entender pude,
o Coudel-moor favorece
sospiros e prevalece
em guisa que nos concrude.
E que tenhais rezoado
por copras mui treunfantes
dou-m' oo demo entregado,
que vos achei recusado
em mais de dez consoantes.
Pelo qual, senhor, convem
que estas ofereçaes,
se vos parecerem bem,
a quem pertença ou tem
o feito que procurais.
E se mais houver mester,
vossa mercê mo escreva,
quer aqui quer u estiver,
no que se fizer mester
porei a força que deva.
Seguem-se as copras que Joam
Gomez dá por ultimas
rezões suas.
Lembrança me faz cuidar
no que o cuidado manda,
cuidado em maginar
faz cuidar e descuidar,
porque andando desanda.
Cuidado mil vezes gira,
enquanto faz e desfaz,
d' u s' afirma nam se tira,
quanto mais d' amor se ira
des que no coraçam jaz.
Daa lembrança do passado
com desejo do futuro,
em o tear do cuidado
se tece mui resforçado
terçopelo verde escuro.
O qual se neste sentindo,
despõem-se temporizando,
nunca se gasta servindo,
rompem-s' asinha fingindo,
sempre dura bem amando.
Ó tu gentil terçopelo,
color de mea esperança,
tu, d' escuro Set' Estrelo,
tu, d' amores cotovelo,
donde dor nam faz mudança.
Quem te poderaa vestir
com viva paixam d' amores,
que te mais possa despir,
salvo se em ti sentir
sospirar ou desfavores.
Porque fim do sospirar
é desejo descuberto,
cuidado dessemular
faz sofrer e soportar
sobre certo e nam certo.
E assi convem que seja
sentido de graves tiros,
vida que viver enteja,
sofrer que morte deseja
o cuidado sem sospiros.
Sentido com desejar,
em que esperança cabe,
é cheo de sospirar
d' ũ desejo tam doçar
que mui docemente sabe.
Tal sentir nam me cativa
nem dá pena sem descanso,
mas minhas paixões aliva,
dá-me limbo em que viva
de doçar cuidado manso.
Aquele cuidado esquivo
que nam dá mais que sofrer
ao coraçam cativo,
no qual eu morrendo vivo
em grado de bem querer.
Este tal me vence e lega,
este todo mal me cata,
este nunca m' assessega,
este sempre me trasfega,
d' amores na fim me mata.
As quaes partes concrudindo,
por fim do que digo e sento,
amores sempre servindo,
suas raivas encobrindo,
seu mortal abafamento,
achei que com sospirar
mil vezes desabafei,
achei-me em soo cuidar
e calar e reportar
que ja nunca descansei.
Sua à dita senhora por fim
de seu rezoado.
Estas de fino retrós,
madeixas de meu sentido,
rezões de que me despido,
dama, recomendo a vós.
Vossa mercê as comprenda
e desponha
como quem preito apaga,
o cuidado da contenda
devulgando por peçonha,
os sospiros por triaga.
Cantiga sua que daa em
fim destas rezões por
parte do cui‑
dado.
Cuidado, despois que és
no coraçam,
por certo cuidado és,
sospiros nam.
Cuidado, tu de cuidado
contigo fazes penar
de sentimento forçado,
que nam leixas sospirar.
És tam feito ò revés
per condiçam
que sempre cuidado és,
sospiros nam.
No coraçam teu inferno
és assi como pecado,
és perdido in eterno,
és em coraçam tomado.
Nam tu inventurus es
a salvaçam,
depois que cuidado és
no coraçam.
Os amores conservando
em aceso fogo vivo,
maginas desesperando,
triste cuidado cativo.
Despois que aceso és
no coraçam
a la fe cuidado és,
sospiros nam.
Responde o Coudel-moor a estas
ultimas rezões que Joam
Gomez deu contra
o sospirar.
Vossas ultimas rezões,
tiradas pola fieira,
movem tantas concrusões,
que nos ficam por lições
como lidas de cadeira.
Mas quem revolve a folha
e prol contra esguardar,
nam ha cousa a que s' acolha
que tolher possa nem tolha
seu primor ao sospirar
Ca sospirar tem primores
tam altos e tam sobidos
que nam sam senam amores,
mas trauta seus servidores
de mais a menos perdidos.
Que vem sobre saudade,
vem sobre grande cuidado,
vem sobre amor verdade,
mas dobra mais a metade
sobre ser desesperado.
O veludo que tecestes
no tear que daa cuidado
laa nos liços lhe metestes
ũa esperança que destes
ò galante namorado.
E pois teme esperança
cuidado nem traz perdido,
que cuidado na bonança
grorea de i, s' alcança,
conforta todo o sentido.
Cuidar, enquanto cuidar,
que seu nome ser esquivo
pod' em bem e mal estar,
antre prazer e pesar
forma tem d' alternativo.
Mas sospiros matadores,
u prazer nunca se mete,
sempre sam perseguidores
e sam çoçobra d' amores
com' em catorze de sete.
Dissestes que sospirar
faz desejo descobrir,
deve-s' isto decrarar
que descobre um sospirar
de paixões graves sentir.
Descobre seu triste mal,
descobre sa triste vida,
descobre pena mortal,
descobre que lhe nam val
bem servir quem tem servida.
Mas estes descobrimentos
nam se dêm por reprensam,
pois a causa dos tormentos
e dos tais padecimentos
fica lá no coraçam.
Nam era cousa pejosa
de julgar que nam dá vida,
porque a dama chorosa,
essa se ha por mais fremosa,
que de mais é homecida.
Alegais um desejar
que d' esperança tem parte,
entam vindes apertar
que dali vem sospirar
com mil duçuras que farte.
Arguis-me com desejo
de cousa qu' haver s' espera,
nam sacude isso o pelejo,
mas outro em que me vejo,
que mata, que desespera.
Dizês que cuidado pega
sas paixões mui per inteiro
e que todo vos trasfega,
mas a vós nam se vos nega
que cuidar fere primeiro.
pois cuidar pena daa
sobr' esperança perdida,
confessai que mataraa
sospirar com que seraa
de mim e de minha vida.
Tambem cuidado dizês
que se põe em esperança,
mas este confessar-m' -ês
que nam doe nem no neguês,
pois de si traz confiança.
Tambem tendes confessado
dar cuidar paixões fengidas,
u por vós foi alegado
que ja i nam ha cuidado
que sofra tantas feridas.
Ò cuidado nam se tira
sua parte de paixam,
mas enquanto nam sospira
nunca fere sua vira
de frecha no coraçam.
Pelo qual fica notado
que, quando cuidar derrama
sospiro desesperado,
que ja entam nam é cuidado,
mas é morte que o chama.
Bem sabês vós que cuidar
é lança solta que anda
ca e laa pera pousar,
e que nam vem sospirar
sem ja trazer a demanda.
Assi que se vos aperta,
quando s' a paixam refina,
este meus males esperta,
por vir sobre paixam certa,
cujo mal me desatina.
Trouvestes na derradeira,
por fim de vosso falar,
comparaçam mui inteira
por assentar a calveira
com triaga oo sospirar.
Mas ahinda que vos traga
sospirar, que desbarata,
diz entam: — Por aqui paga
de mim como de triaga
quem com vós muito se mata.
Do Coudel-moor por cabo de seu
rezoado à senhora, com que o
feito vaa concruso.
Nam dê vossa senhoria
dilaçam mais neste feito,
cesso ja mais vigaria,
cesse o mal que nos seria
nam nos guardardes dereito.
E pois caso era confuso
dar lugar mais a tal briga,
nem vossa mercê o queira,
mas vaa o feito concruso
com mais esta soo cantiga
que dá Jorge da Silveira.
Cantiga que dá Jorge da Silveira
à dita senhora, em que responde
ao que Nuno Pereira disse,
quando disse cuidado de
minha vida, vos chamo
sempre por nome.
Que vos chame quem vos chama
de sua vida cuidado
nam diz muito meu cunhado,
se com' eu mesmo vos ama.
Que eu, senhora, vos chamo
sospiros de minha morte,
com que de vida brasfamo,
pois vos quero, pois vos amo,
sem cuidar que me conforte.
E pois sei que me defama
vosso mal desesperado,
sospiros de meu cuidado
minh' alma sempre vos chama.
Do Coudel-moor à dita senhora
em nome de Jorge da Sil‑
veira pelas dilações
que sam dadas
neste feito.
Ha tanto que sam metido
naquesta triste demanda,
que me vejo destroido,
perdido mais que perdido
com meu mal que nam s' abranda.
Nam nos dam aqui pousada
mas temos acolhimento,
a vida tenho gastada,
e vós nam despachaes nada,
senhora de meu tormento.
Olhai bem que sospirar
vos dá ũas rezões taes,
qu' i nam ha em que cuidar
nem devieis aqui dar
as dilações que nos daes.
Mas ainda outro mais bravo
nos querês fazer exame
e i revitaes o cravo,
vai tam alto voss' agravo,
que nam sei como lhe chame.
Porem vossa mercê queira
por direito vos guardar,
qu' esta sentença longueira
nam seja mais referteira,
pois por nós se deve dar.
Ou se quer vossa mercê
que do feito mais s' alegue,
estes logo recebê
sete artigos que vos lê
esta copra que se segue.
Diz e provar entende
sospirar contr' oo cuidado
que seu mal mais mal comprende,
que seus sospiros acende
mais fogo de namorado.
Qu' ee sa pena mais esquiva
que o seu mal nam resiste,
que sa dor nunca s' aliva
qu' ee sua paixam mais viva,
qu' ee sua vida mais triste.
Assi que devem de ser
meus artigos recebidos,
dar lugar e nam reter
a prova, pera se ver
meus males ser mais sobidos.
Nem curemos doutras minas,
que eu quero oferecer
testemunhas de fee dinas
e rezões outras tam finas
que sejam de receber.
Desembargo posto per mandado
da senhora nas costas desta
petiçam e artigos que,
por parte do sospi‑
rar, lhe foram
dados.
Recebo os artigos dados,
venha a prova sem tardar
e assentem tudo no feito.
Entam sejam-me levados
pera o eu determinar
como achar que é dereito.
Do Coudel-moor que dá em
prova do que disse dos sete
artigos que tem dados
neste feito, por
parte do sos‑
pirar.
O primeiro está provado
que em si mais mal contem,
pois sospirar e cuidado
está assi tam abraçado,
que seu mal d' ambos lhe vem.
E os fogos encendidos
prova-se per ti que fales,
Estunhiga, de teus gemidos
e sospiros, que sofridos
sem morte nam sam seus males.
Ser mais esquiva sa pena,
que foi artigo terceiro,
nam se negue, pois s' ordena
das paixões, quando têm lena,
que nos ferem por inteiro.
Donde vem que ressurgir
nunca foi quem seu mal visse
nem sa dor demenuir,
e si posso concrudir
o que em meus artigos disse.
E tambem pera se crer
que mais viva paixam leva,
isso craro é de ver,
pois sospirar tem seu ser,
nas paixões em que se ceva.
E assi fica verdadeiro
ser mais triste sua vida
qu' ee artigo derradeiro
tá o qual des o primeiro
minha prova dei comprida.
Sua à dita senhora em que pede
que proveja per si esta
inqueriçam.
Senhora, querê prover
nossa inquiriçam per vós
e acharês logo em na ler
a rezam que devês ter
pera julgardes por nós.
Pois dai-nos esta sentença,
qu' o dereito no-la daa,
nem haja mais deferença,
ou se nam dai-nos licença,
qu' apelar nos convirá.
Cantiga que dá Jorge da Sil-
veira à dita senhora, por-
que o seu precurador
disse que esperava
d' apelar.
É bem de mim apelar,
quer façaes dereito ou torto,
no feito do sospirar,
pois me nam sei agravar
de vós sobre me ver morto.
Porem esta apelaçam
seguirei, pois que me segue
sospirar com sa paixam,
e pois quer meu coraçam
que lhe meu servir nam negue.
Mas qu' este negro apelar
me nam traga algum conforto,
pois o quer meu sospirar,
fá-lo-ei sem agravar
de vós sobre me ver morto.
Antrelucatorea da dita senho‑
ra sobre o feito que
lhe foi levado
concruso.
Pois o feito vem concruso
da mão dos precuradores,
por nam ir termo confuso
mandá-lo ver nam m' escuso
algũs grandes trovadores.
Ũ seja Alvaro Barreto,
o outro Alvaro de Brito,
aos quaes logo remeto,
e pois a ambos o cometo
dêm seus votos por escrito.
E venha tudo cerrado
asselado e bem coseito,
sendo bem examinado
todo o que foi alegado
de pro e contra no feito.
E desi visto per mim
seus votos, sua tençam,
darei neste feito fim,
e as custas ò galarim
pagará quem for rezam.
Segue-se o voto d' Alvaro de
Brito, que pôs neste feito
per mandado da dita
senhora.
Sogeiçam traz desejar,
desejar daa sentimento,
sentimento faz cuidar,
cuidar causa trabalhar,
trabalhar padecimento,
donde vem com desatento
ũu languido sospirar.
Sospiros devem chamar
pena de maior tormento.
Segue-se o voto d' Alvaro Barreto,
que neste feito pôs per
mandado da dita
senhora.
Pois por vossa comissam,
que faz que me desatine,
comprindo-me que m' ensine,
me mandais que detremine
ũa tam alta questam.
Eu, senhora, por comprir
a todo vosso mandado,
que nam seja tam letrado,
faz-me a isso ousado
vontade de vos servir.
Porem pera s' entender
neste caso a verdade,
convem de necessidade
alegar autoridade,
que seja de receber.
E pois que pera juiz
vossa mercê me obriga,
antes que se mais persiga,
alego esta cantiga
que daquesta guisa diz.
Segue-se a cantiga alegada
per Alvaro
Barreto.
En esto siento pardios
el grande amor que vos he
em que nunca sospiree
por otra sino por vos.
See que cosa es sospirar,
despues que vos conoci,
porque no vos pude negar
la parte que haveis em mi.
Y se se fallarem doos
que amem com toda fee,
el uno so yo, porque
sospiro siempre por vos.
Alego este autor
com outros que ja passaram,
que por copras nos leixaram
ser vivo fogo d' amor.
Sem fazerem tam soomente
memorea que o cuidar
é cousa de nomear,
senam pera praticar
e usar com tod' a jente.
E pois os autorizados
tiveram esta tençam,
seguir outra openiam
nam fariamos rezam,
que iriamos errados.
Que nam temos por saber
onde nam é contrafeito
desejo d' amor prefeito,
sospirar ser seu efeito
sem al se poder fazer.
O que cada ũu deseja
pera si d' amor procede,
e quem por amores pede,
de sospirar nam s' espede
tá que o pedido veja.
Pois que podemos dizer
ou quem pode al notar
senam que o sospirar
vem do propio amar
e nam de cuidado haver?
Sentença.
Pelo qual visto o processo
e o por ele mostrado,
eu julgo contr' oo cuidado
e o hei por condenado,
pois vai da verdade avesso.
E o sospirar assolvo
do contra ele pedido,
porque é por mim sabido
que o têm favorecido
estes livros que revolvo.
Segue-se a sentença dada
per a dita senhora sobre
ter visto os votos
dos trovadores
alegados.
Olhando com bom respeito
o que cada ũu demostra
e alega de seu dereito,
digo que, visto este feito
e o que se per ele mostra,
que cuidado em lugar
pode estar sem sospirar,
assi como está provado
sospirar nam ser achado
sem este mesmo cuidar.
E tambem visto o alegado
infroismo e sa doctrina,
e com' ee autorizado
o qu' estaa encorporado
na nossa Salve Regina,
item como do cuidar
vem o primeiro ferir
e nam em vos aleixar,
e visto que sospirar
vem sobre o consentir;
E visto o mais que s' alega
E se mostra pelo feito,
O sospirar nam sonega,
que o mal em que s' entrega
lhe faz craro seu dereito.
E porque nisto m' afirmo,
concrudo prenunciando
ouça quem quiser ouvir-mo,
estes dous votos confirmo,
neles porem decrarando
Que nam s' haja por cuidar,
nem cuide que dá paixam
pera dela se falar,
cuidado que sospirar
nam mete no coraçam.
Nem lhe quero receber
alegar que sofre e cala,
ca sobre ver-se perder
paixões dinas de sofrer
o mudo com elas fala.
Nem lhe recebo que diga
que cala por ter segredo,
ca posto que o persiga
sospirar com sa fadiga
nam na amostr' ele co dedo.
E mais podemos cuidar
do cuidar qu' estaa calado
que se leixa assi calar,
por se menos querer mostrar
contente sobr' agravado.
E porem pois julgador
sam supremo neste feito,
julgo nos autos d' amor
sospirar por vencedor
sobre vencido sogeito.
E assi hei por confirmadas
pelo dito sospirar
as sentenças que sam dadas,
custas hei por relevadas,
por ser rezam letigar.
Provicaçam desta sentença
que a dita senhora deu
pelo sospirar.
A nove dias do mes
dos onze meses do anno
da era d' oitenta e tres,
desta sentença medês
e auto palenceano,
foi feita provicaçam,
dentro na corte outrossi
do grande Rei Dom Joam,
e eu, dito escrivam,
qu' esto todo escrevi.
Emformaçam à dita senhora, que
lhe deu o Coudel-moor por parte
do sospirar, agravando-se das
custas, emmenda e corregi‑
mento que lhe nam jul‑
gou, pedindo porem
sua sentença.
Com todo o agravo que sento,
pois julgar nos nam quisestes
emmenda e corregimento,
dêm-me a mim um estormento
desta sentença que destes.
Mas porem podês mandar,
nam havendo i outro cobro,
que se mais aprefiar
cuidar contr' oo sospirar
que pague as custas em dobro.
Desembargo da dita senhora,
posto nas costas desta enfor‑
maçam que por parte do
sospirar se deu.
O que mandei, o que disse,
isso torno a mandar,
nam hei jamais d' ennovar,
porem quod escripse escripse.
Copras que fez Nuno Gonçalvez,
alcaide-moor da fortaleza d' Alcobaça,
em favor do cuidar contra a sentença
que foi por parte do sospirar dada, a
qual aqui revogou deos do Amor de
seu propio moto. Havendo primeiro a
vista de todo o processo, deu sentença
na qual daa com suas vozes Mancias e
Tarquino, Joham de Mena e Joham
Rodriguez de la Camara, em que faz
mençam o dito alcaide, que ha mil
annos e nove dias que é finado, e
como é sacretareo de deus do Amor,
endereçando estas copras a Dom Joham
de Meneses, segundo adiante se segue.
Fala logo o autor.
Senhores, grandes senhores,
querê saber esta nova,
como servistes amores,
quaes ficastes vencedores,
ouvi a quem vem da cova:
— Mil annos e nove dias,
ha que sam morto, finado,
comigo pousa Mancias,
Mena, Padram das ancias,
e Tarquino desterrado.
Quantos jazem sô a terra
que foram mal navegados,
quantos amor fazem guerra
que na sua lei mal erra,
todos sam meus convidados.
Laa no limbo dos ardores
onde têm algũu poder,
ali sofrem disfavores,
ali tormentos e dores,
segundo seu merecer.
Estando estoutro dia,
deos d' Amor desembargando,
veo ũu homem que gemia
bradando e se carpia,
dos olhos muito chorando,
dizendo: — Ouve, senhor,
ouve ũu tam grande mal,
ouve ũu tam grande error,
que se faz contra Amor
no reino de Portugal.
Fala deos d' Amor.
Deos d' Amor muito espantado
respondeo nesta maneira:
— Fala, fala, mais pausado,
conta-m' o feito passado,
todo bem pela carreira.
Se trazes enformaçam
ou trazes o mesmo feito,
forma nisso petiçam
e descanse teu coraçam,
que logo haveras dereito.
Fala o autor.
E o qual como descreto,
avisado cortesam,
tornando a cor despeto,
acodio logo desperto
co propeo feito na mão.
Dixe-lhe: — Senhor, verás
aqui ũu feito muito feo,
dentro nele acharás
cousas bem per que farás
grandes justiças arreo.
Provicaçam do feito.
O qual logo provicado
foi nesse mesmo momento,
bem levado e decrarado,
como foi arteculado
e contestado,
vio-se todo com bom tento.
Era ja sentenceado
em tal maneira
que o primo da Silveira
leuou grado.
A tençam do feito e
os competidores.
E foi seu procedimento,
segundo seu relatar,
qual era maior tormento
e dava mor sentimento,
o cuidar ou sospirar.
Pereira, Meneses, Guiar,
Joham Gomes tambem da Ilha,
estes se querem matar
por ele aa maravilha.
Silveira, Silveira, Silveira,
pai e filhos com saber,
pela ponta da fieira
buscam mui nova maneira
por sospiros defender.
Brito, Barreto condenaram,
a dama sentenceou,
pelo sospirar julgou,
o cuidado condenaram
e assi se confirmou.
Artigos, protestações,
com outros autos formados,
cantigas, enformações,
todos foram praticados.
Deos d' Amor a que pertence
toda a final sentença
visto o que aparece,
no auto que s' oferece,
com risonha contenença,
Lançou os olhos em roda
contra nós outros, finados,
e dixe: — Como s' enloda
este feito a que gram noda
querem pôr aos cuidados!
Disse mais: — Pois sois passados
daquele segre da vida,
nam sereis afeiçoados,
ponde vossos assinados
da verdade bem sabida.
Porque quero bem rever
este feito e escoldrinhar,
e do que me parecer
por todo o mundo saber
quero per mim sentencear.
Pera cada ũu o ver
lei ponho feito na mão,
todos quatro ham-de dizer,
segundo seu entender
e dar seu conselho são.
Põe Mancias sua tençam.
Sospiros e sospirar,
messajeens d' atrebulado,
o meu mal podem mostrar,
mas nam me podem matar
como me mata cuidado.
Cuidar é ũa negrura
que nam tem consolaçam,
sospiros ũa folgura
qu' aliva minha paixam.
Sospirar nunca sessega,
vai e vem como sezam,
cuidado, despois que pega,
chupando no coraçam,
chupando todo prazer,
tira-lhe toda folgança,
fá-lo todo emnegrecer,
fá-lo secar e morrer,
quando tem desesperança.
Comparaçam.
Vejo ũa grande fervura,
fervura d' agua viva,
se a panela bafura,
lança fora da quentura,
é certo que logo aviva.
A meu coraçam impiro,
que anda todo em fogo,
que al tem senam sospiro,
que al tem senam respiro,
porque nam se fina logo?
Cantiga dele.
Cuidado, triste cuidado,
sem conforto,
é tu mal tam trebulado,
que me nam leixa cuidado
senam morto.
Quem tivesse algũu lugar,
quem tivesse algũu descanso,
quem tivesse ũu sospirar,
porque quem me quer matar
fosse mais manso.
Mas tu, mal desesperado,
sem conforto,
é ũu mal tam revitado
que me nam leixa coitado
senam morto.
Fala com a dama.
— Senhora, nova senhora,
mui fermosa,
porque vossa mercê nam chora
esta dor tam enganosa?
É certo, se nam m' achasse
cos d' amor no desembargo,
vossa mercê nam passasse
esta vez que nam gostasse
sobr' este caso gram cargo.
Se meu conselho tomardes,
senhora mui graciosa,
por algũu tanto ativardes
e bem em tanto cuidardes
nessa parte algũa grosa.
Pois o feito se perdeo
soo por vossa concrusam,
decrarai que vos venceo
afeiçam.
Põe Tarquino sua tençam.
Fala com Lucrecia.
— Lucrecia, meu bem inteiro
ordenado
pôs em mim tam gram cuidado
que fiquei seu prisioneiro
verdadeiro.
Seu olhar dessemulado
m' as causou,
cuidado que me matou
com degredo mal logrado,
desterrado.
Este degredo sentindo
por vales, outeeiros, branhas,
era-me milhor partindo,
sospirar, andar carpindo,
descanso das entradanhas.
Cuidado nam me leixava
somente desfolegar,
sospiro, quando chegava,
algũu tanto m' alivava
pera logo nam finar.
Comparaçam.
Ũu fogo grande que farte,
dobrado fogo inmenso,
as faiscas que reparte
manifestam grande parte
do grande fogo itenso.
Empero nam sam tam feras
com' ao fogo que tiro,
quem quiser oulhar deveras
poderá saber por elas
quanto menos é sospiro.
Cantiga dele.
Cuidados e sospirar
ambos sam causa d' amores:
sospiros pera mostrar,
cuidados pera matar,
quando sam com disfavores.
Os sospiros sam escuma
que cuidados botam fora,
sam assuvios de chulma.
Concrodindo: tomam suma
como afirmo e digo agora.
Cuidados e sospirar
ambos sam causa d' amores,
sospiros pera mostrar,
cuidados pera matar,
quem os tem com desfavores.
Fala com a dama.
Senhora mui eicelente,
fermosa por eicelencia,
neste processo presente
vossa mercê bem atente,
nam fique por negrigencia.
Que neste limbo d' amores
onde em brasas ardemos,
nam se esguardam favores,
nem quitam males nem dores
se por nós o merecemos.
E pois voss' alma conhece
o erro dado no fito,
nam façaes que vos esquece,
mas pedi a quem pertence
ũu perdam com grande grito,
e livrai alma de pena
que vos é aparelhado
nam pequena,
pelo mal que se ordena
do passado.
Tençam de Joam Rodriguez de la
Camara, em que se queixa de
la fortuna por lhe lem‑
brar o passado.
¡ Oh lhagas de mis passiones,
remedio de min trestura,
lembrança de mins dolores,
mil e mil tribulaciones
me traes desaventura!
Yo digo que pensamientos
me cortaran
e raviosos sentimientos,
cuidados con sus tormentos
me mataran.
Con lo qual tengo provado
lo que digo:
que cuidado
es un fuego denodado
sin abrigo.
El sospiro es dar fama,
el galante
sospirando por su dama
es mostrança qu' ele ama
por delante.
Comparaçam.
¿ El fuego que la lombarda
respara refogueando,
queda elha más quemada,
más ardida, más brasada,
o el tom que va tronando?
Quien d' amor sabe los giros
por esta comparacion
hallará que los sospiros
no son al sino los tiros
del cuidar del coraçon.
El cuidar desesperado
es un fuego encendido,
es un mal tan redoblado
que dolor de condenado
no es tal ni tan subido.
Su primor e gualardones
al sentir
no son al sino clamores,
cuyos bienes e perdones
es morir.
Cantiga dele.
Sospiros mil se darão
al querer del paladar,
cuidados no poderão
demostrar sua paixam
sem bien amar.
Os sospiros levemente
se podem contraminar,
cuidados de fogo ardente
com agua nem d' outra mente
nunca se podem matar.
Mas sospiros mil darão
al querer del paladar,
cuidados no poderão
demostrar sua paixam
sem bem amar.
Fala com a dama.
- Senhora, cuja fegura
resplandece,
esmalte de fremosura,
a quem graça e soltura
obedece.
Por caridad,
tal enganho que florece
emmendad,
pues vuestra merce conote
la verdad.
A lo menos decrarando
ser enganhada,
e gemiendo y lhorando,
a nuestro dios soplicando
que vos haya perdonada.
No quiera dios que veamos
vuestra venida
nel fuego onde estamos,
em lo qual triste gustamos
muerte y vida.
Tençam de Joam de Mena.
El sospiro amortecido
es senhal
que nos dize qu' el sentido
quasi, quasi es fenecido
el mortal.
¿ Mas guiem ha sentido
o cuidar,
cuidado desfavorido,
cuidando que es venido
com amar?
Nõ cumpre más argumento,
ni obras de lisongeros,
cuidados pierdem los tientos,
cuidados, vivos tormentos,
sospiros, los mensageros.
Cuidados, los raviosos,
cuidados, penas mortales,
cuidados, muy desseosos,
cuidados, muy saudosos,
sospiros, delhos senhales.
Compraçam.
Hablo com benivolencia,
como el medico conece
por las aguas la dolencia,
assi por sospiro parece
em aquel que lo padece
ũu dolor sim paciencia.
No que sea el dolor
ni tam poco la passion,
mas es ũu amostrador
del dolor y del fervor
del cuidar del coraçon.
Cantiga dele em favor
do cuidado.
Biva muerte deveria
de morir quien esto nega,
quien afirma otra falsia
por cierto yo deria
que del dios d' Amor se nhega.
O renhegar es una suerte
hecha de tal calidad,
renegar nos da la muerte,
renegar tormento fuerte
sin ninguna piadad.
Polo qual luego devria
de morir quiem esto nhega,
quiem afirma otra falsia
por cierto yo deria
que del dios d' Amor se nhega.
Copra à dama.
Vida soes, senhora, vida,
vida soes, pues floreceis,
nel mundo no fue sabida
otra dama, nim nacida,
del valor que vos valeis.
Toda beldad e lindeza,
toda gentil galania,
toda vertud y nobleza,
toda la gram gentileza
es em vos claror del dia.
Pues teneis toda vertud,
y teneis toda verdad,
conservad vuestra salud,
conservad vuestra beldad,
afirmando
que la sentencia passada,
biem mirando,
tirando de vuestro mando
fue mudada.
Em tal maneira
vuestra culpa tresmudamos,
que vuestra beldad
no queme em la foguera
em que nos tristes ardemos.
E tu, gram beldad soberana,
por tu gram vertud sostiene
una dama tam galana,
em fuego que tanto dana
no se queme.
Cantiga portugues que cantam
todos quatro em favor
do cuidado.
Amores, bravos cuidados,
cuidados, bravos amores,
amores, olhos quebrados,
sospiros, raios lançados,
mui penados valedores.
Cuidados, todo seu mal
com mortal pena sofremos,
cuidados, mal natural,
sospiros, acedental,
e assi que bem dizemos:
Cuidados, bravos amores,
amores, bravos cuidados,
cuidados, olhos quebrados,
sospiros, raios lançados,
mui penados valedores.
Com tudo vai o feito concruso
a deos d' Amor pera dar
sentença.
Com estas quatro tenções
dam o feito a seu senhor,
todos fazem orações,
todos jejuns, devoções,
por a dama a deos d' Amor.
Todos bradam, todos gritam,
todos fazem gram façanha,
todos grandes brados tiram
e a deos d' Amor enviam,
que amanse sua sanha.
Petiçam dele a deos d' Amor.
— Tu, mui alto deos famoso,
por ter grande nome e fama,
sê agora piadoso
esta vez e gracioso,
nam condenes esta dama.
Por lembrança e por aviso
d' ũ senhor que deos se chama,
dizemos que será quiso
nam levar ao paraiso
ũa tam luzente dama.
Que tenhas sol, tambem lũa,
que tenhas tambem estrelas,
com a fremosura sua
é certo ũa por ũa
que abata todas elas.
Pois que grande bem seria
e que cousa tam errada
goiã de tam gram valia
perder tua senhoria
d' ũa flor tam esmaltada.
Pois torna, torna, senhor,
por as tuas dez mil chagas,
amansa teu gram furor
que com todo mal apagas.
E nós todos, com gram femença
e com mui abertos braços,
recebemos ta sentença,
sairemos em pendença
com os pees todos descalços.
Diz o autor como deos d' Amor
saio pobricar sua
sentença.
A vinte dias passados
desse mes ante d' Agosto,
com pendões alevantados,
com crarões mui resonados,
mostrança de ledo rosto,
deos d' Amor em seu estado,
sua pompa que nam erra,
suas opas de brocado,
ũu paje mui bem armado
de paz e tambem de guerra,
Saio ledo e motejando
da sua camara d' ouro.
Todos vinham gracejando,
empero nunca leixando
parato de bravo touro.
Seu conselho derredor,
com mui grande acatamento,
senado de grande honor,
muito moor d' emperador
era seu assentamento.
Em o qual, como chegasse,
foi-se logo assentar,
e ante que al falasse,
ante que pronunciasse,
fez todos assossegar.
E em som mui entoado,
gracioso de ouvir,
este feito apontado,
todo nele processado,
començou de resumir.
E despois de resomido,
sem fazer outra detença,
todo muito bem ouvido,
todo mui bem entendido,
provicou esta sentença.
Da qual suas entenções,
seus decretos e primor,
seu resgar d' openiões,
com outras decrarações,
assi segue seu teor.
Segue-se a sentença.
Visto mui bem este feito
e o nele processado,
e visto todo seu preito,
visto sobre o dereito
todo mui bem decrarado.
Visto todo precurar
per ũa e outra parte,
visto negar e provar,
todo fundado por arte,
Mostra-se que o alegado
por parte do sospirar
todo é contraminado,
todo falso logicado,
à vontade do padar.
Mostra-se que o cuidado,
de que vem toda paixam,
põe unha que ò unhado
põe seu mal mui bem pegado
primeiro no coraçam.
E bem sabe Portugal
nam será homem que remonte,
que todo é ũu papassal,
pois d' i nace todo o mal
como rebeiros de fonte.
E assi confessaremos
e dizemos craramente:
cos cuidados padecemos,
com eles todos morremos,
sospiros sam acidente.
Eles cansam, eles matam,
sam premeiros e mais inteiros,
sempre vos tristeza catam,
des que pegam, nam apartam,
sospiros sam ventureiros.
Vendo-se bem o passado
por sem sospeita, juizes
polo alegado e provado
julgaram pelo cuidado
e o al por garridicis.
Deferenças que faz deos d' Amor
do cuidado e sospirar.
A deferença que é
do cuidar ao sospirar:
cuidado é ũu libré
que filhando deu a fee
de matar com seu filhar.
Mas do triste coraçam
que nunca perde cuidado,
de que ha grande paixam,
que lhe dá o negro cam,
sospiros levam recado.
Toma outra concrusam
que todos mui bem notai:
cuidar é no coraçam
ũu ardor mui sem rezam,
sospiros fumo que sai.
Estoutra por acabar,
pois que ata e mais que ata:
sospiros e sospirar
sam podengos de mostrar,
cuidados rede que mata.
Qu' aleguem Salve Regina,
cantigas e outros motes,
é palavra sancta e dina,
mas lá fica outra más fina
metida dentro nos bofes.
Grande fee e confiança
da senhora que chamamos,
do cuidar na esperança
com temor da tribulança
dali sae o sospiramos.
Pois as outras picaduras,
qu' alegam de namorados,
nam sam al senam feguras,
nam sam al senam pinturas
e sinaes de seus cuidados.
O cuidar é incuberto,
nam se tanje com badalos,
os que têm seu mal secreto
que sua dama o saiba certo
tanjem-lh' aqueles chocalhos.
Ũu triste corpo cuidando,
ũu cuidar desesperado,
d' amores desconfiando,
anda sempre maginando
e vivo anda queimado.
Seus males desconfiados,
seu ardor de quando em quando,
seus cuidados debrasados
sospiros mui magoados
por faiscas vam lançando.
Seu coraçam tomou tençam,
mostrando seu mal estranho,
mostrando sua paixam,
que fere no coraçam
donde vem seu mal tamanho.
Porque a dama sentida
vendo tam estreita dor,
vendo ũu alma tam perdida,
por nam ficar homecida
antremete algũu favor.
E assi que bem concrudo
esta dor desta amargura,
o cuidar ante que mude,
se o sospiro nam acude,
causa nossa sepoltura.
Cuidar é de tal naçam,
que daa morte conhecida,
sospirar, sua tençam,
a que traz por presunçam
a tal morte buscar vida.
Acho aqui mais alegado
por parte do sospirar,
deixo ora ũu bom ditado
que faz mais polo cuidado
que por quem o foi buscar.
Digo a vós, que o notaes
em vossos grandes favores,
que mal é que nam oulhaes
e que lhe chamam sinaes,
mas nam ja os matadores.
Pelo qual vós alegaes
escrito com vossa pena,
vós por vós vos degolaes
e por vós vos outorgaes
no que dixe Joam de Mena.
Pois vós otros leterados,
que meti nesta balança,
afirmaes com grandes brados:
matadores, os cuidados,
sospiros, sua mostrança.
Torna deos d' Amor
à sua sentença.
E assi que moto propio
e esponte livremente,
junto todo meu consilio
e de propio meu apilio
publico esta presente.
E digo que a passada
sentença toda renovo,
condano-a por queimada,
mando que seja guardada
esta que faço de novo.
Em que salvo o cuidado
e o torno em liberdade,
d' amores lhe dou o grado,
ele soo é namorado,
pois sempre guarda verdade.
E os sospiros condano
como cousa echadiça,
falsuras de muito dano,
poder ter coma mao pano
falsa cor e fengediça.
Faço-lh' esta concrusam
mui limpa de falsidade:
O cuidar sua tençam
sempre estaa no coraçam,
sospiros no arravalde.
Esta deve de matar
todas outras demasias,
que quem maes perto d' amar,
mais perto de bem gostar,
e assi leixar perfias.
Contradiz o correo que o Coudel‑
-moor alegou que lhe che‑
gara por parte do
sospirar.
Item quanto ao correo
por parte do sospirar
alegado em rodeo
meu legido e nam leo
tal cousa nunca passar.
E certo nam passaria
ũu tal erro nem passou
por minha chancelaria;
se tal cousa parecia,
meu selo nunca levou.
Mas passe logo mandado
pera meu corregedor:
Se tal correo for achado,
moira logo atenazado
por falsairo e tredor.
Se outrem o quis fazer
por salvar sua tençam,
triste deve de sofrer
penas d' amor e viver
sem haver satisfaçam.
Aqui julga deos d' Amor contra
aqueles que deram sen‑
tença por parte do
sospirar.
Brito, Barreto, concordantes
na sentença do entrejo,
sempre sejam boons andantes,
na cama nunca possantes
e tenham grande desejo.
E por maior pena deles,
tambem de Pero de Sousa,
as damas jaçam com eles,
e chegando-se par' eles,
desejando bem a cousa.
E assi sempre veram
os rostos desconsolados
das damas que serviram,
e por i conheceram
os males que sam cuidados.
Estas custas do processo
em que sam reos culpantes,
pois tiraram d' arremesso
e foram de todo aveso,
paguem polos consoantes.
As outras custas maiores
nam curo de as julgar,
porque sam de taes valores
os que ficam vencedores
que as nam ham-de levar.
E nam parando oitavo,
onde falam as desputas,
assi diz que é d' escravo
mais que d' homem livre, alvo,
levar injurias nem custas.
Sentençea deos d' Amor
a dama que deu a
sentença.
De dobrado fogo d' amores
a dama se fez culpada,
pois que quis com desfavores
antre taes competidores
dar sentença tam errada.
Mas os gritos e cramores
que ouvi de meus cuidados,
as pendenças e ardores,
os grandes brados e dores
que me viam lastimados;
Isso mesmo a lembrança
das refeições que lhe direi,
dos olhos e fina mostrança,
d' amores toda folgança,
mas descreta em sua lei.
Estas suas doces fruitas,
falo convosco verdade,
muito mais doces que truitas,
com lembrança doutras muitas,
me movem à piadade.
E assi que lhe perdoo
por amor dos sopricantes,
movido com grande doo,
porque sei que eras antes
espelho das mais galantes.
Porem com tal condiçam,
pois ha decrarar as artes,
que faça tal devaçam,
que haja por concrusam
ũu gentil perdam das partes.
Vam estas decrarações,
que aqui sam decraradas,
sem outras repricações
singelas nem trepecadas.
Esta lei sempre seraa
estavel e firme e forte,
esta se confirmaraa
e esta se guardaraa
sô pena d' esquiva morte.
Aqui assina deos d' Amor
a sua sentença.
Dez mil chagas, dez mil dores,
ũu soo bem com muito mal,
bravos fogos, mil ardores,
mil cuidados matadores
isto trago por sinal.
Selo do coraçam de deos
d' Amor, com que mostra
que sam amores.
Ũu fogo que nunca cansa,
ũu amor de meu sentido,
ũu fogo que nam s' amansa
ũu mal que nunca descansa,
de secreta dor ferido.
Mil agravos, mil despreços,
mil tristezas, mil cuidados,
mil achaques, mil começos,
mil antojos, mil empeços,
mil tormentos mui dobrados.
No milhor muitos embates,
abrolhos d' agudos pregos,
mil ceumes, mil rebates,
muitas raivas, mil combates,
e os olhos ambos cegos.
Mil desmaios, muitos medos,
esforços desconfiados,
desfavores d' olhos quedos,
muito mais bastos que dedos,
desconfortos magoados.
Mil desdenhos, mil quebrantos,
mil robores, mil vergonças,
mil beocos, mil espantos;
de gemidos sabês quantos?
mil quintaes e dez mil onças!
Mas o lindo namorado
que lealmente guerrea
tem o grao mais esforçado,
mais limpo, mais esmerado
que comprido a Garrotea.
E despois de acabado
este negro encantamento,
vem ũu bem tam apurado,
ũu prazer tam graduado
em que mil ganha por cento.
Sua dama descaida
com amor mui aficado,
mea morta, esmorecida,
se outorga por vencida
em galardam do passado.
Em que cobra toda grorea,
toda bem aventurança,
que milhor grorea, que vitorea,
que leixar grande memorea
de tal amor, tal folgança!
Que tam sabido prazer
e tam grande galardam!
Que digo que o entender
destas cinco copras sam
meu selo, meu coraçam.
Aqui diz o autor como deos d' Amor
o mandou com embaixada tra‑
zer a sentença enderençada
a Dom Joham de
Meneses.
A qual como pobricasse
mandou a mim, seu secretario,
que logo a treladasse
e o propeo leixasse
por registo em seu almareo.
E assi m' adereçasse pera
vir embaixador
e qu' estes autos pobricasse
a vós, Dom Joam, senhor.
E assi em comprimento,
com despacho segui via,
venho com grande tormento,
caminhando noite e dia.
Fiz ũ bordo em Alcobaça,
onde fico mui cansado,
achei no meo da praça
este correo que caça
qualquer partido de graça.
O qual vos logo aderenço
por minha grande fraqueza,
e por ele vos estenço
estes autos de gram preço,
receba-os vossa nobreza.
E conserve sua fama
como mui lindo fidalgo,
pois ardês em viva chama
e deos d' Amor vos tanto ama
que soes do seu desembargo.
Fim de todo processo.
Recebimentos fareis findos
lanheados com do ouro,
mandarês repicar sinos,
sairês esses mais dinos
com rico paleo de ouro.
Ca pelos reinos alheos
por u venho de passada,
me fazem festas, torneos,
mais ricos, com mais arreos
qu' a esta santa cruzada.
2
DOM JOHAM DE MENESES A ŨU HOMEM
QUE SE LHE MANDOU ESPANTAR PER
ŨAS TROVAS COMO, SAINDO DE
ŨS AMORES, PODIA ENTRAR
EM OUTROS, E QUE LHE
RESPONDESSE POR
CASTELHANO.
Los que sienten vidas lhenas
de tristezas y dolores
em poco tienem las penas,
que pensar em las ajenas
consientem los amadores.
Mas yo lo tomo al reves
y loo que en tal empriende,
y que me digan despues
mal de muchos gozo es,
yo sé bien como s' entiende.
Comparacion.
Ya muchos que mal firieron
pensando se conortaron,
no nel golpe que les dieron,
mas em muchos que devieron
de matar y no mataron.
Y se vuestro pensamiento
com vuestro mal haver duelo
oos dexo, de lo que siento,
fue por dar al gram tormiento
que vos mat' algun consuelo.
Mas si soes de mi culpado,
o yo quexoso de vos,
es em darme em lo passado
por hombre que fue penado,
si mirais quien es mi dios.
Que sola la fremosura
de quien yo por mi mal veo
haz dicha mi desventura,
y ser glorea la tristura
que passé y que posseo.
La passada porqu' ha poco
su pena com la presente;
la presente por ser loco
d' amores, y fago poco,
segun es por quien se siente.
Assi que puede dizer
quien supiere cuyo so
qu' es a mi triste bevir
no vida lo por venir,
ni muerte lo que passó.
Fim e comparacion.
La garça toma receio
dei remontador templano,
mas ya libre de su vuelo
conoce su fim nel cielo
nel que sueltan de la mano.
Assi yo en los amores
passados bien conocia
qu' eran mis remontadores,
mas estos son matadores
de la vida e muerte mia.
3
CANTIGA SUA.
Pois soes tam sem piadade
qu' em meu mal levaes tal glorea,
ja nam quero moor vitorea
que vencer minha vontade.
Nam dá pena nem prazer
bem nem mal que me façaes,
folgo menos de vos ver
do que vós a mi folgais.
Faz-me algũa saudade
virem cousas aa memorea
que passei; mas, na verdade,
nam me dam pena nem glorea.
4
MOTOS GROSADOS A ESTAS SENHO‑
RAS POR DOM JOHAM DE MENE‑
SES, ENDERENÇADOS A
SUA DAMA, EM ŨA
PARTIDA.
Dona Felipa de Vilhana.
Los dias de mi bevir
ya los cuento por passados.
¡ Oh mi vida, por quien vida
vivo lheno de tristura,
por quem pena dolorida
sobra em mi con la partida
como em vos la fermosura!
Con este triste partir
no parten de mi cuidados
y solo por vos servir
los dias de mi bevir
ya los cuento por passados.
Dona Joana de Sousa.
Destes fim al coraçon.
Mas como son despendidos
por amaros y doleros,
aunque sean mal bividos,
no los cuento por perdidos,
pues se perden tras quereros.
Perderlos é qu' es ganar
por vuestra gran perfecion
a quen no puedo negar
que solo por vos amar
distes fin al coraçon.
Dona Lianor Mazcarenhas.
Oh vida desesperada.
Y pues ya vedes cativo
que muero por vos querer
y mi mal qu' es tam esquivo,
piedad de como bivo
haved ora, qu' es d' haver.
No seaes desconocida,
pues en al no soes tachada,
que no tiene merecida
lhamarse por vos mi vida
oh vida desesperada.
Dona Guiomar de Castro.
Oh triste gloria passada.
Conoce que soy perdido,
por vos, vida y muerte mia,
ca, fuera ser merecido,
está ya tan conocido
que negar no se devia,
que siempre fue mi bevir
y mi vida tam penada
qu' aun estaa por venir
lo por que yo devo dezir
oh triste gloria passada.
Dona Maria de Melo.
Lo que mi sentir calhava.
Que de vos nunca pensee
falharme sino qual quedo,
gloria nunca la pasee
ni jamas nunca me see
menos triste ni más ledo.
Y quando triste fengia
qu' este mal no me matava,
mucha más pena sentia,
porqu' enton contrafazia
lo que mi sentir calhava.
Dona Felipa Anriquez.
No veo como seria.
Ya d' aca donde partistes
todo cuanto haves andado,
vo lhorando por du fuistes,
dando mil sospiros tristes
com' hombre desesperado.
Y sabés que tales son
sospiros sin alegria
que salem del coraçon,
mas salir desta passion
no veo como seria.
Dona Lianor Pereira.
Quem podesse saber quem
sabe parte de meu bem.
E como quem vos nam via
anojado de viver
outra cousa nam fazia,
toda a noite, todo dia,
senam chorar e gemer.
E dezia saudoso
sem meu mal sentir ninguem:
— Oh cativo desditoso,
quem podesse saber
quem sabe parte de meu bem.
Dona Violante.
Quiça que terná la muerte.
Pues muriendo os dó plazer,
a la vida fim dar quiero,
sin la qual no puede ser
yo dexaros de querer
y querendoos desespiero.
Y despues de fenecida
mi dolor y pena fuerte
quedar puede guarecida
que lo que falta em la vida
quiça que terná la muerte.
5
TROVAS QUE FEZ DOM JOAM DE
MENESES POR LETRA D' ŨA CUM‑
PUSTURA QUE FEZ DE CANTO
D' ORGAM, QUE SE CAN‑
TA TODAS TRES VO‑
ZES POR ŨA
SOO.
Todas tres vozes por ũa
acordaram contra mim
que paixões ò galarim
me causem sem caus' algũa
triste vida, triste fim.
Sendo falsas acordavam
com tal som e harmonia,
tais enganos mesturavam
que ninguem nam conhecia
de que vento se formavam,
Senam eu que sei e sento
seus erros e donde vem
com' a quem perdido tem
paixam e contentamento
de seu mal e de seu bem.
E em som de verdadeiras,
com palavras enganosas,
fazem obras lastimeiras,
sam por bem muito danosas
e por mal pouco guerreiras.
Almas, honras, corpos, vidas,
tudo trocam por fazendas,
dam repouso por contendas
com sospeitas mal havidas,
falam muito sem pôr prendas.
Trazem linguas afiadas,
com que dam golpes mortais,
as vontades mui danadas
i em fim, quand' apertais,
tudo é nada das nadas.
Cabo.
Têm em pouco pola vida
de muitos em deferença,
levemente dam sentença
contra parte nam ouvida
sem fazer disso pendença.
Mas quem manda sobre tudo
tem juizo tam perfeito
que ninguem por muito rudo
nunca perde seu dereito,
nem o ganha por agudo.
6
TROVA SUA QUE MANDOU A LUIS
DA SILVEIRA, QUE PARTIA
DE LIXBOA AO CERCO
DE TANJER.
Co estes ventos d' agora
perigoso é navegar,
que se mudam cada hora,
e quem vai de foz em fora
nunca mais poode tornar.
O navio pend' à banda,
a rezam nam é ouvida,
a vontade tudo manda,
e quem ha-d' andar desanda,
quem tem alma nam tem vida.
7
GROSA DE DOM JOAM DE MENESES
A ESTA CANTIGA QUE DIZ:
DI, AMOR, PORQUE
QUESISTE.
¡Oh beldad, que no me dexas
olvidar lo por que peno,
havé duelo de mis quexas,
pues por ti de quien m' alexas
soy de mi cativo ajeno!
No m' acuerdo de más vida
de la que me destroiste,
y pues la he por ti perdida,
darme pena tam crecida
di, amor, porque quesiste.
Qual rezon te comovió
assi nelha me matares,
pues cativo, triste yo,
solo verte convertió
mis plazeres em pesares.
Que la hora que te vi,
triste fue la postumera
de mi vida, ca morri,
con en verte consenti
que amasse en tal manera.
Y de lexos he servido
com gram fe tu hermosura,
tu a mi, triste, perdido,
al reves del merecido
immortal diste tristura.
La qual mata y nunca muere
con querer triste que quiera
tu beldad, mas elha quiere
cativo que desespere,
porque yo biviendo muera.
Y tu bien puedes matarme,
mas nunca verme matar
terná poder de mudarme,
ca no puedo tanto amarme
que te pueda desamar.
Con tudo mi mal estranho
de mi muerte mensagero,
la qual he por menos danho,
sé que no fuera tamanho
si yo fuera lisongero.
No digo que recelando
tu perderme te ganara,
si te pierdo bien amando,
mas porque mi mal tirando
mi querer te no tirara.
Ansi que tanto quererte
fue causa de mi penar
y perderme de perderte,
pues sin tanta fe tenerte
no me dieras tal lugar.
Con el qual desesperado
soy de vida sin dolor,
no porque m' hayas falhado
de ti siendo desamado,
nunca menos amador.
Ni porque mi gran querer
te saliesse mentidero,
ni por ser rezon de ser,
mas quieres verme perder
porque amo, verdadero.
Ansi que pensar devria
que no siendo tanto tuyo,
más aina fueras mia,
mas por desta fantasia
no morir, de razon fuyo.
La razon sin la qual muero,
si triste quiero mirar,
me faze que desespiero,
porque quanto más te quiero,
quieres mi pena doblar.
Y con tanta mal andança,
quitado de todo vicio,
no pude fazer mudança,
ni puede desesperança
quitarme de tu servicio.
Ni puedo dexar mi vida,
porque bivo de ser triste,
pues le distes la salida,
no al fim que t' ee servida,
mas al fim que lo feziste.
Yo con fim de fasta elha
tanto te servi sin falha,
piensando qu' em tal querelha
ganava más en perdelha
qu' en otra parte ganalha.
Mas si tu beldad ordena
que mi vida no te quiera,
no podendo ser ajena
de doblar toda mi pena
fue por me buscar manera.
Cabo.
Acabo porque son tales
las penas triste que tengo
que de vivas son mortales;
ni son ya males los males
que sin ti por ti sostengo;
mas bienes si me quitaren
la vida que no tuviera,
y vida, si me mataren,
y muerte, si me dexaren,
porque yo biviendo muera.
8
DOM JOAM DE MENESES.
Mi tormiento desigual
pera más pena sentir
me tiene fecho immortal
y no me dexa bevir.
Porqu' es tormiento tan fiero
la vida de mi cativo,
que no bivo, porque bivo,
y muero, porque no muero.
Es mi vida tan mortal,
tormiento pera sofrir,
que me fue dado el bevir
por pena más infernal.
9
CANTIGA SUA.
Ojos tristes, desdichados,
de todo mal causadores,
vos fezistes mis cuidados,
doloridos, lastimados,
pera sempre ser d' amores.
Vos fezistes mis tormentos,
desastrados, graves, crudos,
solo em ver
quien por sus merecimentos
vos fizo quedar desnudos
de plazer.
Assi que por mis pecados
nos dimos por servidores
de quien nos tiene robados
de plazer y nos ha dados
mil cuidados por amores.
10
OUTRA SUA.
Pois minha triste ventura
nem meu mal nam faz mudança,
quem me vir ter esperança
cuide qu' ee de mais tristura.
E pois vejo que em morrer
levais groria nom pequena,
antes nam quero viver
que viverdes vós em pena.
Quero triste sepultura,
quero fim sem mais tardança,
pois nunca tive esperança
que nam fosse de trestura.
11
CANTIGA SUA QUE MANDOU
ÀS DAMAS EM JAZENDO
DOENTE.
Senhoras, meu coraçam
querei por Deos confortar,
que por querer
é doente de paixam,
e jaz em cama d' amar
pera morrer.
Querei dar-lh' algũs conforto,
pois isto nam vem d' olhado,
mas d' oulharem
meus olhos quem me tem morto
dias ha, sem ser culpado,
em me matarem,
e à honra da paixam
e morte qu' hei-de passar
pola querer,
confortai meu coraçam
que jaz em cama d' amar
pera morrer.
12
CANTIGA SUA.
Agora sei que maldade
fiz a mim em vos querer,
agora sei a verdade,
que vejo com que vontade
folgastes de me perder.
Se taqui por vós sentia
tristeza, pena, paixam,
polo bem que vos queria
esperava e merecia
dardes-m' outro galardam.
Tinha posto na vontade
servir-vos atee morrer,
mas depois soub' a verdade
e acho que mor maldade
ca qu' eu fiz nam pode ser.
13
DE DOM JOAM DE MENESES A
SUA DAMA EM ŨA
PARTIDA, SENDO
MOÇO.
Senhora, por vos lembrar
a tristeza qu' em mim cabe
e tambem por vos gabar,
quis aquisto começar,
mas nam sei como vos gabe.
Ca vos vejo sem vos ver
tam fermosa qu' ee danar-vos
louvar vosso merecer,
nem sei cousa que dizer
que nom seja desgabar-vos.
Vejo-vos, minha senhora,
nacida sem par no mundo,
vejo a mim que milhor fora
ca me ver sem vós agora,
ter-m' a terra ja de fundo.
Vejo-me por vós penado,
vejo Deos por vos fazer
ser de todos mais louvado
que por ser cruceficado
nem por seu gram padecer.
Vi a mim fazer partida
com qu' espera de partir
deste mundo minha vida,
porque nisto soo dovida
de vos mais ver nem servir.
Dovida e eu dovido,
pois desta hei-de morrer,
nem quero que possa ser,
vendo-me de vós partido,
ter vida nem mais viver.
Que bem sei que m' ee sobejo
viver eu, e isto digo,
porque se cumpro o desejo
vosso, meu, segundo vejo
que folgais pouco comigo.
E se taqui desejava
de ter vida ou a queria,
era soo porque vos via
e por vos ver comportava
quanto mal m' ela fazia.
Mas agora a saudade
de vossa gram fremosura,
sem nenhũa piadade,
faz mudar minha vontade
por fim de minha tristura.
E faz-me qu' hei por sobeja
vida tam sem esperança
e o qu' a vida deseja
é estar onde vos veja
ou morrer sem mais tardança.
E por isto se comprir,
minha vida e meu viver
querem morte consentir
e eu soo por vos servir
nam me pesa de morrer.
Que bem sei que folgareis,
como de feito folgais,
e bem sei que al nom quereis
e tambem que morrereis
se me cedo nom matais.
Polo qual sem esperar
de vos ver mais em meus dias
como quem se vê matar,
dixo isto por lembrar
que me nam chegou Mancias
em amar nem em querer,
conquanto teve grã fama,
sem se nunca desdizer,
e depois triste morrer
por amor de sua dama.
Por ser de vós apartado
me vejo neste perigo,
e por ser tam namorado,
triste, mal aventurado,
vejo a morte ja comigo.
Sem vos ver, porque vos vi,
vejo morto meu viver,
e tambem, porque parti,
é a pena que senti
tal que nom na sei dizer.
Vejo a morte ja vir perto
soo porque de mim cativo
é meu mal trist' encuberto
tamanho que hei por certo
que sam morto sendo vivo.
Chorála triste começo,
que bem vejo que me cata,
de viver mais me despreço,
aos que errei perdam peeço
perdoo a quem me mata.
Mata-me querer-vos bem,
sam morto por vos amar,
matais-me vós, que ninguem,
qu' eu saiba, poder nom tem
senam vós de me matar.
Mata-me nom conhecerdes
camanho bem vos eu quero,
e às vezes nam me crerdes,
nem vos dar de me perderdes
me faz tal que desespero.
E se disto dovidais
sem vos eu errar em nada,
senhora, vós is errada
e vós mesma me matais,
e soes nisto açaz culpada.
Mas na hora qu' eu morrer,
onde for naquele dia,
de laa vos farei saber
que perdês em me perder
quem vos grande bem queria.
E sabeis como perdido
perderdes-me pode ser
morrer eu sendo partido,
ca sem isso é ja sabido
que me nam podeis perder.
Mas por vós serdes servida,
se nisto soes, senhora,
cuidarei nesta partida,
porque assi na minha vida
Darei fim logo ness' hora.
E se deste mal que sigo,
acho alguem que me conforte,
eeste tal sabeis que digo
que quem for mais meu amigo
folgue mais com minha morte.
E, senhora, por fazer-vos
a vontade no que posso,
perco a vida por querer-vos,
sem lembrar-vos nem doer-vos
qu' ee perdida polo vosso.
Polo vosso sem contenda,
como vedes, é perdida,
houve aquisto por emmenda,
porem nam que m' arrependa
de vos ter tam bem servida
na vontade; que nas obras
foram poucas como vistes,
e meu mal, que nom sentistes,
fez que fiz aquestas cobras,
dando mil sospiros tristes.
Fim.
Soes em cabo perigosa,
soes tambem crua sem par,
soes tambem sempre fermosa,
nam soes nada piadosa
pera quem podeis matar.
E eu sam tam namorado,
tam perdido e sem conforto,
d' amores tam decepado
que vos é mui mal contado
matar-me, pois que sam morto.
14
CANTIGA DE DOM JOAM
DE MENESES.
Por cousas que nam têm cura
hei por moor desaventura
qualquer dita que me vem,
nem desejo nenhũ bem
por nam ver quam pouco dura.
Ditoso de quem viver
livre, fora d' esperança,
digo eu, sem no saber,
coitado de quem alcança
ganhá-la para a perder.
Pois tudo tam pouco dura,
seguro que nam segura
nam no quero de ninguem
nem desejo nenhũ bem
com despreços de mestura.
15
CANTIGA QUE DOM JOAM DE MENE‑
SES FEZ EM CASTELA AO CONDE DE
FONSALIDA, QUE ERA CASADO COM
ŨA DAMA, A QUAL FOI MUITO SER‑
VIDA ANTE DE CASAR COM ELE,
E ELE JUGAVA A PELA PE‑
RANT' ELA E DEMANDAVA
MUITAS VEZES FAUTAS
E PERDIDAS, E DOM
JOAM ERA JOIZ E
JULGOU DESTA
MANEIRA.
Cantiga.
No fue falta del servicio
ni de la cuerda por Dios,
antes fue perdida em vos.
Por falta la demandastes,
siendo elha bien servida,
yo la juzgo por perdida
por quanto vos la tocastes.
Por gran dicha la ganastes,
que nunca me valga Dios,
si no es perdida em vos.
16
DOM JOAM DE MENESES ÀS DAMAS,
PORQUE ERROU ŨA BAIXA E
ELAS MANDARAM-LHE A
CONTA DELA À POU‑
SADA PER ES‑
CRITO.
Nam me deixe Deos errar
sem primeiro m' acabar
nesta regra que mandais,
pois a vida para mais
nam se poode desejar.
Nos senjelos e dobrados,
represas e contenenças
e mesuras,
ha passos dessemulados
que fazem mil deferenças
de vidas e de venturas.
Haa mudanças sem mudar
os olhos d' ũ soo lugar
como na regra mandais,
e erros em qu' acertais,
porque sam de perdoar.
17
CANTIGA SUA A iA SUA CRIA‑
DA QUE SE CHAMAVA
CORREA.
Acorrê a minha vida,
nam lhe deis tam triste fim,
nam sejais desconhecida,
por nam serdes homecida
contra vós e contra mim.
Contra vós em me deixar
viver em tanta tristura,
contra mim em me matar,
guai d' alma qu' ha-de pagar
os danos da fremosura!
Ó vida de minha vida,
ja me nam pesa da fim,
mas hei doo, desconhecida,
de voss' alma qu' ee perdida
polo nam haver de mim.
18
SUA A ŨA SUA CRIADA.
Senhora, nam vos ousaram
os meus cuidados lembrar,
e, se vos nisso falaram,
a reposta me negaram
por me logo nam matar.
Mandai-lhe que vo-los diga,
sem receo de ninguem,
que por ser leal amiga,
nam vos pode vir fadiga
que nam seja por mais bem.
19
GROSA SUA A MEMENTO HOMO
QUIA CINES ES.
Lembre-te que es de terra
e terra t' has-de tornar,
nam queiras por outrem dar
a ti mesmo tanta guerra.
Perdoa a quem te erra,
se de cima perdam queres,
quia in cinere reverteres.
Nam catives teu cuidado
em cousas nam de cuidar,
porqu' assi ha-de passar
o porvir como o passado.
Olha qu' has-de ser julgado
polas obras que fezeres,
quia in cinere reverteres.
Cabo.
Guai de tua fremosura,
que conta lhe pediram
da perdida perdiçam
da minha triste ventura!
O dia da sepultura
pagarás quanto fezeres,
pois m' aqui pagar nam queres.
20
CANTIGA SUA, ANDANDO ELE
E O PRIOR DO CRATO D' AMO‑
RES COM DONA GUIOMAR
DE MENESES, E FEN‑
GIO QUE O FAZIA
PELO JOGO.
Rifam.
Pois nam tenho que perder
nem espero de ganhar,
para que quero jugar?
O jogo sempre traz dano
a quem joga mais verdade
o ganho vem por engano,
por bulras e falsidade.
E de tal enfermidade
poucos podem escapar
se nam deixam de jugar.
O perdido e o ganhado
tudo vai como nam deve,
o que menos dita teve
foi melhor aventurado:
leva menos emprestado,
terá pouco que pagar,
quando quer que o tornar.
Ũa joia preciosa
cujo era que perdi,
sendo falsa e enganosa
nunca cousa mais senti.
Porem nela conheci
qu' o triste que a levar
a vida lh' ha-de custar.
Com más cartas, má fegura,
com maos dados ma levou,
ambos temos maa ventura,
quem perdeo e quem ganhou:
eu, porque m' ela deixou,
o triste que a levar,
porque cedo o ha-de deixar.
Fim.
Levou-ma, mas nam por ter
melhores trunfos nem mais,
com muito poucos metais,
com muito menos saber,
senam soo por ela ser
tal que nunca pod' estar
ũ hora sem se mudar.
21
OUTRO VILANCETE DE DOM JOAM
A ŨA ESCRAVA SUA.
Cativo sam de cativa,
servo d' ũa servidor,
senhora de seu senhor.
Porque sua fermosura,
sua gracia gratis data,
o triste que tarde mata
é por mor desaventura.
Que mais val a sepultura
de quem é seu servidor
qu' aa vida de seu senhor.
Nam me daa catividade,
nem vida pera viver,
nem dita pera morrer
e comprir sua vontade.
Mas paixam sem piadade,
na dor sobr' outra dor,
que faz servo do senhor.
Assi moiro mans' e manso,
nunca leixo de penar
nem desejo mais descanso
que morrer por acabar.
Oh que triste desejar
para quem com tanta dor
se fez servo de senhor!
22
OUTRO VILANCETE SEU, ESTAN‑
DO DOENTE, PORQUE LHE
PERGUNTARAM QUE
DOENÇA ERA
A SUA.
Preguntais-me de que moiro,
nam no ouso de dizer,
porqu' hei medo de viver.
Se menos paixam me desse
poder-m' -ia queixar dela,
mas dizer-se nem sofrê-la,
tudo quis que nam pudesse.
Para ter em quem tevesse
e mostrasse seu poder
me deu vida sem viver.
Meu mal é decendimento
encobrir donde decende,
é paixam que nam s' entende,
nem sabe seu fundamento,
perdido contentamento
do que foi e ha-de ser
e muito mais de viver.
A dor é em si mortal,
s' a ventura m' ajudasse
para que me libertasse
de tantos males ũu mal.
Mas a causa principal
em qu' estaa ser e nam ser
nam se leixa comprender.
Cobresse-m' o coraçam
de tristezas encubertas,
tem de dores muito certas
mui incerto galardam.
E por mais condenaçam,
estando pera morrer,
nam me posso arrepender.
Se sospeita me tocasse
que meu mal se conhecia,
quando m' ela nam matasse,
eu por mim me mataria.
Que mor perigo seria
depois de dito viver
do que calando morrer.
Fim.
Nam vos dê meu mal sospeita,
que o causam desfavores,
nem tenho paixam d' amores
nem culpa de contrafeita.
Mas vi a rezam sogeita
de quem lh' ha-d' obedecer,
o mais nam quero dizer.
23
OUTRO VILANCETE SEU, ESTANDO
EM AZAMOR, ANTES QUE
SE FINASSE.
Tirai-vos lá desenganos,
nam venhais
a tempo que nam prestais.
Ja os dias de prestar
a meus males sam passados,
os que ficam por passar
a mais pena condenados.
As desculpas dos culpados
Valem mais
qu' a verdade dos leais.
Quem vos manda bem entende
que me nam podeis valer,
seguir vosso parecer
o seu dela mo defende.
Vós soltais e ela prende
com sinais
de vida que mata mais.
Deixastes os olhos ver
e o coraçam amar
a rezam, qu' ha-de mandar
da vontade se vencer,
os sentidos padecer
dores mortais
e agora m' aconselhais.
24
CANTIGA DE DOM JOAM
DE MENESES.
Fue buena ventura mia
ser tam mal aventurado,
que de mucho desamado
buelvo a ser por otra via
dichoso de desdichado.
Tanta fue mi gran tristura,
tanto fue mi mal esquivo
que fue buena mi ventura
ser tanta mi desventura
que me libroo de cativo.
¡Oh dichoso desdichado!
tal dicha no la queria,
aunque triste desamado
fue buena ventura mia
ser tam mal aventurado.
25
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Gran miedo tengo de mi.
De la hora em que te vi
lhorando lo que perdi
en tanto dolor me veo,
que se sigo mi deseo
gran miedo tengo de mi.
Mi deseo es matarme,
porque muera mi tristura;
tu dilatas por penarme,
yo consiento por hartarme
de lhorar mi desventura.
Lhoraré porque naci,
lhoraré porque perdi,
lhoraré porque bien veo
que se sigo mi deseo
no has de lhorar por mi.
26
VILANCETE SEU A DONA ANJEL,
SENDO GUERRA GUARDA
DAS DAMAS.
Porque nunca m' apartasse
de quem quiero, no queria
descobrir de que morta.
Haré ũu foyo en la tierra
do mi mal pueda dezir,
o por más lo encobrir
descobrirlo he a Guerra,
quando ya quiera morir.
Porque se bivo quedasse,
dizendo de que morta,
mayor peligro seria.
27
DOM JOAM DE MENESES E DOM
JOAM MANUEL A PERO DE SOUSA
RIBEIRO, PORQUE ENTRANDO
NA CAMARA DO PRINCIPE
LHE PROMETEO DE
DIZER DELES E
NAM DISSE.
Se vós laa dizeis de nós
o que cá de vós dizemos,
rezam é que nam entremos.
E direis que por medrar
sabemos mui bem fazer
cos de dentro: nam dizer,
cos de fora: mormurar.
Se taes somos com' a vós,
confessamos, conhecemos
qu' ee rezam que nam entremos.
28
DO COUDEL-MOR A ANRIQUE D' AL-
MEIDA, QUE LHE MANDOU PEDIR
NOVAS DAS CORTES QUE EL-REI
DOM JOAM FEZ EM MONTE‑
MOOR O NOVO, SENDO
PRINCIPE, O ANO DE
SETENTA E SETE,
SENDO EL-REI
SEU PAI EM
FRANÇA.
No mes de Janeiro,
e ano de sete,
na era que mete
dez setes primeiro,
em Moor Monte Novo,
os povos s' ajuntam,
respondem, preguntam
mil cousas de provo.
Se o que se cá passa
quereis lá sabê-lo
nam seja escassa
a mãao eescrevê-lo.
Mas pois o letreiro
ponto nam erra,
contará primeiro
estado da terra.
A dous o vermelho
nom val mais o branco,
a dez o coelho,
perdiz faz derranco;
a vinte a galinha,
de graça mil furtos,
doze turdos curtos
aquela chinfrinha.
A treze a cevada,
farelos a sete,
mas sua o topete
sobindo a calçada;
com pãao de real
punhada ao gato,
tres oitos o pato
e dous o açacal.
Tambem taverneiro
dá a quatro vinagre,
mas é moor milagre
quem cá tem dinheiro,
qu' a conta que leo
de peros roins
me dam sete e meo,
por boons tres quatrins.
A duzea e mea
se calça um pee,
o quarto d' um mee
val seis para a cea.
O qu' ee testemunha
da hora passada
faz ũu som de cunha
de cabo d' enxada.
A dez a ferragem,
mas cravos nam tem,
nam sofre estalajem
caber i ninguem;
pousadas defende
quem Deos nam mantenha,
de ũu asno a lenha
por nove se vende.
Val redea d' uvas
a cinco na praça,
mas nam ha i luvas
nem quem vo-las faça.
O gentil do cidram
a tres brancos se frisa,
real de sabam
nam lava camisa.
Mas estas deixemos
quedar de seu cabo,
e sem dar mais cabo
das cortes contemos.
Ouvi o que digo,
preponde notar,
que novas contar
vos cuido d' amigo.
Lixboa que sonha
no cardealado,
moordomo Noronha
tambem deputado;
i é Portimam,
Alvito, Penela,
Beringel com ela
que faz o sermam.
Aquestes despacham
o muito e o pouco,
Latam ficou rouco
mal pelo que acham,
que o trato de cá
e o modo da fala,
se s' ele entam cala
falá-lo-á laa.
Com barba de mouro,
toucar recoveiro,
ũ zunzum de besouro
em som lastimeiro.
Quem macho alcança
se ha por bençam,
mil falas de França
por este viram.
Rainha, Fernando
que dizem que vêm
com fama lançando
d' Ocres que ja têm.
E vêm mui per vista
em calça sevilha,
nom é maravilha
querermos dar vista.
Pois lá namorados
nam compre dormir,
fazê-me relir
cantar em ditados;
e pois lá vêm damas,
por amor das vossas,
convem ferir chamas
nas azes mais grossas.
Leixar piastram
fundar em loudel,
e seja cossel
valente rincham.
Qu' engeite carreira
querê-o vós tal
levand' a camal
que cubra calveira.
E pois vosso olho
todo isto vê bem,
as vossas convem
lançar em remolho;
mas fica a fadiga
com quem a tever
e oraçam diga
melhor quem souber.
Qu' os proves pedidos
dous deram soomente,
vassalos metidos
lá vaam de maa mente.
Dinheiro de praça
lhe daa crelezia
e quer fidalguia
que lanças refaça.
E com isto querem
favores comũus,
peroo ũus e ũus
partir-se ja querem:
porque se lh' alarga
o seu desembargo,
o gasto lh' amarga,
e mais nam m' alargo.
Fim.
Se pagar quereis
o que vos escrevo
por mim beijareis
as mãos a quem devo.
O mais nam vos tarde
às damas dezê-lo
nem tudo a Lordelo,
ca vos i vos arde.
29
EL-REI DOM JOAM DEU EM SIN‑
TRA, O ANNO DE OITENTA E
CINCO, A QUAL MANDOU
O COUDEL-MOOR A
ANRIQUE D' AL‑
MEIDA.
Sam Marcos fez-se primaas,
Dom Afonso elborensis,
tu Grijoo per via densis
em Lamego mitraraas.
Guarda tem quem na ja teve,
Silves deu-se ò cardeal,
Sancta Cruz, Vila Real,
Olivença se reteve.
Tambem dizem qu' ee bispado
Elvas com menistraçam,
outros metem mais milham
do mesmo ponteficado.
Cohimbra desta samarra
livrar seu pontefical,
Porto fica Porto tal,
Tinoco nam meteo barra.
Viseu ja tarde acudio
sobola pensam que tem,
se lhe nam val o item
que deixou quando partio.
Mas nam valeo oos mices
com todo o mundo ter treguas,
qu' o gentil de croqueleguas
deu co eles ò través.
30
QUE DERAM A ŨA QUE CASOU A
MELHOR PEÇA QUE CADA ŨA
TINHA PERA O CASAMEN‑
TO, ANTRE AS QUAES
LHE DERÃO O SEXO
DE DONA LU‑
CRECIA.
Polas praças de Lixboa
tantos louvores vos dam
que a mãao nunca lhe doa
quem fez tal,repartiçam.
Que no tal tempo de vodas
faça voda quem quiser,
mas por certo ha mester
que ali lh' acudam todas.
E pois tambem acudistes,
louvor grande vos acuda,
ca sem sexo se concruda
todas vodas serem tristes.
Mas ũ de nós cinco ou seis
esta questam fazer ousa,
que achastes essa cousa
u se remetam nas leis.
Er' ele sobelo ancho,
ou tira mais de redondo
ou tambem se lança gancho
quando está sobre cachondo;
ou se anda perfilado
como compre a donzela,
ou s' estando arreganhado
se verãao dele Palmela.
Se é per ventura calvo,
se toca de cabeludo,
se faz agua a seu salvo,
se mija coma sesudo;
se é faminto, se farto,
se é pardo, se vermelho,
se rapa como coelho,
s' arranha coma lagarto.
Se é manso, se brigoso,
se lança, coucea, espora,
ou quand' estaa forioso
se o quer dentro se fora;
ou se por matar a sede
a través toma mil saltos,
ou se lhe praz dos pés altos
arrimados aa parede.
Se tem risco no gargalo
do poço laa da fotea,
ou depois que papa e cea
se fica com bom regalo;
ou se tem crista de galo,
ou fala com boca chea,
ou apagando a candea,
que som faraa sem badalo.
S' ee de mole carnadura,
se tem cabelo de rato,
ou sobre vianda dura
se daa punhada ò gato;
quando estaa de si contente
a qual parte mais s' emborca,
ou se quando bate o dente
faz bacorinho com porca.
Fim.
Quanta soma d' almazem
cabe laa em seu carcaxo,
ou que tempo se detem
em fazê-lo altibaxo;
se é leesto marinheiro
em meter na moneta
ou se faz a çapateta
por si e polo parceiro.
31
TROVAS DE FERNAM DA SILVEIRA,
COUDEL-MOOR, A SEU SOBRINHO
GARCIA DE MELO DE SERPA,
DANDO-LHE REGRA PERA
SE SABER VESTIR
E TRATAR O
PAÇO.
Pois vos tacham de cortês
sobrinho, gentil cunhado,
sobr' alto, alvo, delgado,
nam ha mais em ũu frances.
E qu' a barba tenhaes pouca,
pois bem vestir vos alegra,
regê-vos por esta regra
que fundei vindo d' Arouca.
A qual, pois em si é boa
e geeralmente vem bem,
que fará ao que tem
bom corpo, boa pessoa?
E pois tendes estas ambas,
tendes quanto havês mester,
se o vaao d' amor vos der
per lugar que cubra as chambas.
Mas eu perdoado seja
se falar u me nam chamam,
pois que sam dos que vos amam
que mais vosso bem deseja.
Cunhado, nam duvideis
que isto trago por lei,
e por isso me fundei
d' escrever as que lereis
Duas cousas que nam calo
ha no paço de seguir:
ũa é saber vestir,
a outra saber tratá-lo.
As quaes ponho por escrito
em estilo verdadeiro,
e falo logo primeiro
no vestir ja sobredito.
Çapatos de Basileia,
pontilhas sobolo mole,
as calças tirem de fole,
roscadas como obrea.
Tragam-s' as de marcar,
forradas d' Irlanda parda,
ca cous' ee que muit' alarda
pera gram bomborrear.
Quem trouver porta d' Holanda
camisa trazer nam cure,
menores porem ature,
porque nam pendam aa banda.
O gibam de qualquer pano
na barriga bem folgado,
dos peitos tam agastado,
que seu dono trag' oufano.
pouco menos do artelho,
seja de branco e vermelho
que sam cores de cabeça.
Pardilho deve mantam
sobr' ele trazer cuberto,
polas ilhargas aberto,
ventaes polo cabeçam.
Deve trazer craminhola
nam menos de tres batalhas,
tam fina que tom' as palhas
com' aa d' Alvaro Meola.
O capelo ande no ombro,
feito como o do Sintrão,
trag' oo cabo em ũa mão
e na outra ũu cogombro.
Luvas d' ũu soo polegar,
feitas de pele de lontra,
galante que as encontra
nam lhe devem d' escapar.
Estas taes de meu conselho
todavia havê-las-á,
e item mais trazeraa
balverque em ũu joelho.
Traga cinta de verdugo,
pejada com capagorja,
ca tal par sabêe que forja
ũu valente patalugo.
De grandes bugalhos traga
ò pescoço ũu boom ramal,
porque escusa firmal
e a bolsa nam estraga.
O que for assi aposto
nam é galante de borra,
nem Deos queira que se corra
pero lhe corram de rosto.
Qu' algũus sam ja conhecidos,
e poder-s' -am nomear,
que trazem por pacejar
motejar dos bem vestidos.
Pero quem for ò serão,
polo modo dito em cima,
apupar alto lhe rima
e aas damas dá-l' a mão.
E falar fagueiramente
E aos outros derredor,
e se ouvir monseor
acodir mui rijamente.
Na outra parte segunda,
pois ja dei fim à primeira,
sobrinho, nesta maneira
a tençam minha se funda.
Peroo paço se trautar
estas manhas se requerem,
e nos que elas couberem
na corte sam de prezar.
É mui bom ser alterado
e ser gram desprezador
e é bom ser rifador,
mas melhor ser desbocado.
Outrossi é bom d' oufano
em todo caso tocar,
mas melhor é ja gabar
e mentir de macha mano.
É mui bom buscar punhadas
e meter nisso parceiro,
mas nam ser o dianteiro
por reguardo das queixadas.
Oos arroidos da vila acodir,
ser mui desposto,
mas s' alguem tiver o rosto,
havê los pees a la fila.
Item manha de lovar
é jugar bem o malham,
e ò jogo do piam
favor se lhe deve dar.
Nem sei por que mais vos gabe
ser gram pescador de nassa,
mas jugar a badalassa
em qualquer galante cabe.
Saber bem o pego chuna
e o cubre bem jugar,
sam duas pera medrar
galante contra fortuna.
Nem saberia a ũu filho
escolher milhor conselho,
senam que jog' o fitelho,
jaldeta, cunca, sarilho.
Quem estas manhas tiver,
que ja disse inteiramente,
pod' haver ao presente
quanto lhe fizer mester.
Ca u s' ele descobrir,
qual seraa tam sofruda
que lhe logo nam acuda
e lhe dê quanto pedir?
Mas que digo? Saiba, saiba
jugar d' espada e broquel,
porque dentro no bordel
como fora dele caiba.
E se lhe viesse à mão
poder-s' -ia nele ter
quem ajudass' a soster
seu andar sempre loução.
Regalo deve mostrar
que nam leva em colo duas
e que todas cousas suas
sam mui dinas de prezar.
Item mais falar em tudo
e aprefiar sem medo
e oos olhos ir co dedo
e fingir de mui agudo.
Falar nos feitos da guerra
as duas partes do dia,
esta manha louvaria,
pois o leva assi a terra.
E tomar mais outrossi
o caso sobre seu peito,
mas na concrusam do feito
o fazer buscai por i.
Item nam é manha fea
quem achar dam' oo escuro
estar quedo e mui seguro
e bradar pola candea.
Nem é menos verdadeira
que a outra do fitelho
mostrar ser gram dominguelho
e pegar pola primeira.
Eix aaqui outra tam boa
nem menos pera notar:
sempre o paço ir demandar
antr' a bespora e nona.
Porque nam desacotoe
com ombradas o pardilho,
qu' assi fazia o filho
daquele que Deos perdoe.
Tambem vos quero avisar:
nam vades como patãao,
se ventura no serãao
com damas vos for topar.
Da boca podês dizer,
mas a mão sempr' estê queda,
e tocae-lhe na moeda,
se se poode correger.
E per esta mesma guisa
sabê delas todavia
que recado se daria
a se bem tirar a sisa.
E falae-lhe no Outono
e nos outros temporaes,
ca co estas cousas taes
podês escapar ò sono.
Leix' em vossa descriçam
as que leixo d' escrever,
assi como quer dizer
luitar polo tavascam.
Da sacalinha de dentro
podês tirar, se quiserdes,
se dormir nam poderdes
socorrê-vos ò coentro.
Fim.
Boas sam, gentil sobrinho,
as manhas, nam dovidês,
e vós me nomearês,
se levaes este caminho.
E pois estas as melhores
sam, se as podês cobrar,
podem-vos todos chamar
ũu revolvê-lhas d' amores.
Dezia o sobreescrito destas, por‑
que iam cerradas
em forma de
carta.
O que vos vai na presente,
sobrinho, vos apresento
c' ũa vontade contente,
porque de vós me contento.
O podre lhe lançai fora,
guardae pera vós o sãao,
e des i beijae a mão
ò senhor e à senhora.
32
MONIZ, QUANDO DEFENDERAM
AS MULAS, E SAIO POR
COUTEIRO JOAM DE
BARBEDO, SENDO
TINHOSO.
Em trabalho somos cá
com Joane de Barbedo,
porque houve ũu alvará
com que mete a muitos medo.
Mas que seja temeroso
o poder qu' assi ganhou,
sei a quem mula coutou
que o coutou por tinhoso.
Mas porem pois é forçado
leixar mula e guarnimento,
eix o presente trautado
pera vosso avisamento.
Podês dele lançar mão,
se virdes que vos vem bem,
tomai-o como de quem
vos nam enxerga d' irmão.
E digo primeiramente
que comprês tal rocinato,
que se conheça por dente
e vos venha de barato.
E que seja descarnado,
os farelos fazem tudo,
qu' assi compra o sesudo
e vende bem anafado.
Trabalhai muito que seja
O cosel d' antre colores,
porque de longe se veja
antr' os outros corredores.
E que no freo carregue,
nam vos escape por i,
ca ò menos cuntari
lhe farês que assessegue.
Sobre suas mãos se ponha
na boca sangue faça,
traqueje como cegonha,
encabrite-se na praça.
A suor nam lh' estê queda,
ande sempre alvoraçado,
quando se vir salteado,
tropeçando dê aa seda.
Fundai-vos que dos sinaes
tenha sempre os milhores,
porque sempre estes tais
sam prezados dos senhores.
Nem tomês contentamento
por ter soo branco focinho,
mas tenha redemoinho
e na fronte ũu moimento.
Outrossi tenha peituga
tal qu' a cilha destempere,
nunca erre sambexuga;
item mais branco requer
pee dereito, mão ezquerda,
chamam-lh' eles trastravado,
deste tal empolinhado
nam se pode seguir perda.
Escolhê-o casquicheo,
mas, se tocar d' altiperno,
seguro ribeiro cheo
pode passar no Inverno.
Este tal é bom d' arado,
bom de carro, bom de jugo,
traga pele de texugo
polo nam ferir olhado.
E pois que o marroqui
s' afogou em Odiana,
traga sela valadi
com cuberta de badana.
E por ir milhor aposto
estribos deste metal
e com isso ũu tal buçal
que lhe cubra o mais do rosto.
Leve alto o rabo atado
e as comas encrespadas,
seu topete atouçado
com feita das cabeçadas,
as quaes devem ser vermelhas,
e a cilha desfiada,
se quiser comer cevada
qu' exagance aas parelhas.
Da guisa que vos escrevo
terês ũu loução cavalo,
e se vos conselho devo
é que vos fundeis buscá-lo.
E que vos pareça estranho,
trabalhae polo buscardes,
ca se nele vos achardes
ver-vos-ês bem dous tamanho.
Ora bem pois do arreo
que vos compre de trazer,
o mais esmerado creo
na presente vos poer.
Vós per ele nam passês
pois arraiar vos convem,
ca despois eu creo bem
que vós me nomearês.
Trazê vós logo primeiro,
peroo auto do ginete,
de gram feltro ũu sombreiro
posto sobolo barrete.
Item capa auguadeira
e gibam de çatim raso,
e por mais fazer no caso
ũu traçado sem conteira.
Quem mais o ginete segue,
preza-se de borzeguis,
mas eu hei por mais gentis
botas de mui fino pregue.
Estas louvarei se posso
sejam quer encabeçadas,
nem tragais calças cerradas
pera mais despejo vosso.
Com esporas sem cicates
e as hastes desdouradas,
meterês a ũs rebates,
farês outros sobarbadas.
E por junto co o braham
and' a adarga embraçada,
e oo partir da pousada
braadae polo remessam.
E des i: — Guarda carreira!
Verês todos afastar,
entam co a picadeira
começae-o d' aficar:
— Y de puta, cavalhero!
em voz alta bradarês,
e oo parar levarês
na mão o dito sombreiro.
E em caso que nam quer
a carreira bem tomar,
vaa e vaa por u quiser
que ele lhe daram lugar.
Mas porque besta nam fina
ha mester o amo destro,
se ela tirar ò sestro,
vós lançai-vos à bolina.
Mas porque o rocim magro
do amo nam faça jogo,
donde virdes sopee agro
guardai-vos como do fogo.
Mais vos digo eu que nada,
i-me vós bem entendendo,
ca em s' o estribo perdendo,
ganha sua canelada.
Por dar mate a Castilha,
por honra de Portugal,
feri ũa vez na cilha
e log' outra no ilhal.
A sela todo vos rima,
andae no arçam traseiro
e pegar ò dianteiro
por andardes sempr' em cima.
Item por fazer regalo
que sabês toda a maneira,
decer-vos-ês do cavalo,
des que passardes carreira.
E porque lh' esforço mete,
apartae-o a ũu cabo,
tirando bem polo rabo
e despois pelo topete.
E com isto assoviar,
vede se vos mijaraa,
e des i fazê-o andar
apos vós cá ora laa.
Palmada nunca s' errou
nas ancas logo se dar,
sej' oo par que desfechar
pera quem no albardou.
Fim.
Sem outro requerimento,
de minha vontade boa,
fiz cá este regimento
que vos laa mand' a Lixboa.
Em esta presente obra
acabo por acabar,
vós, por mais me contentar,
ponde meus ditos em obra.
33
AFONSO D' AVEIRO, QUE SE FOI A
VIVER NAS ILHAS E DE LAA LHE
ESCREVEO QUE FIZESSE ALGŨAS
COUSAS POR ELE, EM QUE EN‑
TROU FALAR A SUA DAMA E
DESPACHAR OUTRAS COM
A SENHORA IFANTE E
CO DUQUE, MAS ISTO
VEO NO TEMPO DA
MOORTE DO
DUQUE.
Vai cá tempo tam contrairo
com aguageens sobre a terra,
que perd' a rota o cossairo
que do porto desaferra.
Quem quisera fazer guerra,
foi-lhe feita,
em quem coube haver sospeita
per si mesmo se desterra.
Passam cá tantas mudanças,
que nam val nenhũu terceiro,
e quem tem mais esperanças
dá de mão oo tavoleiro.
Ha-se cá por trunfo inteiro
o matador,
e louvam quem manteedor
se tornou d' aventureiro.
disso que me cá mandastes,
perdoae, pois esta afronta
temos cá, que nam leixastes.
Ca despois que vós passastes
eesas Ilhas,
sam cá feitas maravilhas
mais do que nunca cuidastes.
Mas o que de mim nam digo
sam cousas que daa o mundo,
pois daa mercês por castigo
e oos boons lança de fundo.
U ser boom jaz mais profundo,
menos cabe,
e faz andar quem mais sabe
às vezes mais vagabundo.
Faz mostrar preto por branco
e vender gato por lebre,
faz o sam reter por manco,
dá por rijo o que é febre.
Leva o frade que celebre
aas tavernas,
bixigas por alanternas
nos faraa ja tá que quebre.
Estas cousas sam de caa,
lá nam sei nem nas devinho,
mas queria caa ou laa
ter-vos sempre por vezinho.
Se querês, façamos ninho
sem mais arte,
pois se acha em cada parte
pedaços de mao caminho.
Mas tornando à senhora
que mandastes que falasse,
nam falei, nem vi tal hora
que a vista me chegasse.
Mas nam cuido que me passe
se a vir,
e seraa graça sintir
que de vós lhe mais lembrasse.
Porem tudo o que tirar
dela vos farei saber,
vós vivei em esperar,
pois mantem mais que comer.
Entam vai tal escrever
que em chegando
vãao-s' espritos esforçando
e os torna a reviver.
Fim.
Pois que tendes meu querer
de vosso bando,
lembranças de quand' em quando
lhe farei por vos fazer.
34
NAM CABRAL VINDO DA CORTE
COM DONA BRIOLANJA E AI‑
RES DE MIRANDA, QUE
ENTAM CASARAM, E
VINHAM TOMAR
SUA CASA A
EVORA.
Micer galante Cabral,
boas novas Deos vos mande,
sois em corte feo, grande,
e no campo outro tal.
Ũu Mancias sois segundo
por servir damas tornado,
e dos galantes sois dado
por espelho neste mundo.
No paço u vós trautaes
crêm as damas em vós todas,
sois revolvê-lhas de vodas,
mas das vossas nam curaes.
Picaes-vos muito d' amor,
quer vos venha bem quer mal,
nem ha i em Portugal
de damas tal servidor.
Ja corre cá vossa fama,
nam sei a que isto ponha,
mas tirai-me de vergonha,
nam venhais cheo de lama.
Se trouverdes borzeguis,
trazê atacas na curva,
e passando agua turva
levantae vossos pernis.
Vós dirês: — Quem vos metia
a me tal conselho dardes,
ca sem vós me avisardes
ja disso me percebia?
Mas eu vos responderei:
— Este conselho vos daa
quem Fernando gabou cá
por galante dos d' El-Rei.
Vós direis que milhor fora
de sospeita vir loução,
ca o gabar d' antemão
muitas vezes vai maa hora.
Eu direi que milhor é
gabar-vos log' aa primeira,
porque olhe a padeira
e vós dê milhor fee.
Vós direis: — Pois assi vai,
dizei que de mim dissestes,
assi vos venha mui prestes
a bençam de vosso pai.
Eu direi: — Assi vos pregue
vosso page o saio bem,
o qu' eu cá disse item,
é aquisto que se segue:
Da espora da galinha
vos gabei gram lançador,
outrossi motejador,
gram falador com vezinha.
De borzeguil com çapato
vos gabei de mui loução,
e que u lançaveis mão,
fazieis esfolagato.
Por metedor d' alvoroços
antre moças de pandeiro,
item mais de soelheiro,
gram gastador de tremoços
vos gabei cá na cidade.
Elas nam no querem crer,
e ficaram taa vos ver
por saberem s' ee verdade.
Fim.
Ora pois compre qu' entreis
co espada oo pescoço,
estoreando co moço,
que saibam que o trazeis.
Os pees em loros metidos,
capa sobola cabeça,
ò outro dia padeça
França em vossos vestidos.
35
TROVAS DO COUDEL-MOOR AO
CONDE DE LOULEE, QUE, SENDO
NAMORADO D' ŨA SENHORA A
QUE ELE JA SERVIRA, LHE
MANDOU PEDIR ŨU PO‑
DENGO PERA ŨU AÇOR
QUE COMPRARA E
MANDOU-LHE ŨU
QUE HAVIA NO‑
ME CHAPIM.
Senhor grande, cuja fama
s' estende por todo mundo,
cuja espada se chama
d' ũu Heitor outro segundo.
É o ver de vossa lança
òs contrairos tam contrairo
que em seu favor repairo
nos mores medos sa lança.
Quem vossos feitos conhece,
vossos favores procura,
porque sem vós lhe parece
que vive sem cobertura.
E porqu' este favor vosso
tam desejado desejo,
a vos servir me despejo
com todas forças que posso.
Quanto mais pois que me manda
vossa mercê que vos mande
podengo que busca banda
a qualquer parte que ande.
Com aquela qu' ee devida
a vossa mercê mesura,
vos mand' este que nam cura
de pasto nem de ferida.
Mas que nam busque rasteba
e a silva entre brando,
a vontade se receba
com que, senhor, vo-lo mando.
A qual é assi vezinha
a vos servir no que possa,
que em partes ja por vossa
a tenha mais que por minha.
Mas sabês do que m' espanto,
nam porque mais me desculpe,
de vos ver caçador tanto
que nam sei quem disto culpe.
Se a vós, se à senhora
que servis, pois daa lugar
pera irdes a caçar
nem sair dos muros fora.
Segui, segui os amores,
pois em vós tanto frorecem,
e leixae ser caçadores
os que seu bem nam conheçem.
Ca tal caso vos acusa
em grande parte, senhor,
salvo se o vosso açor
tias d' Arronches escusa.
Mas se vai doutra maneira
a tençam de vossa caça,
a dita senhora queira,
por fazer que se desfaça,
em cousas vos acupar
taes, de que outrem s' aqueixe,
por tal que tudo se leixe
por seu doce conversar.
O açor desse aleeo
nom devês dele curar,
ou aguias venham do ceo
que o façam trasmontar.
Guarida nom possa havê-la,
se a achar ache-se elo,
ca mais val, senhor, perdê-lo
que d' outra parte perdê-la.
Dae pois fim eesse d' Irlanda
nem preste contrairo rogo,
o podengo que se manda
nam viva mais, moira logo.
Queir' -o sua senhoria
mandar matar, pois matou
quem vo-lo triste mandou,
cuidando que vos servia.
Fim.
Ò triste chamam Chapim,
chegue Chapim em tal hora
que dê convosco o Chapim
essa de cujo chapim
nunca fui dino atá agora.
36
GROSA DO COUDEL-MOOR
A MIS QUERELHAS
HE VENCIDO.
Mirando vuestra beldad
mis querelhas he vencido,
porque nunca s' haa bolvido
contra vos mi voluntad.
Y siguiendo tal locura
siempre me vence el cuidado,
que por vuestra hermosura
hizo Dios o mi ventura
mi mal no remediado.
No bivo sim pensamiento
qu' hee de ser por vos perdido,
segun que fue repartido
por vos mi grave tormiento.
Pero esta confiança,
esperando ser ganado,
é por bien aventurança,
pues por muerte se alcança
fin del mal continuado.
Entam menos me oistes,
quando más vozes os di.
por lo qual jamas parti
del mal que darme quesistes.
Sostengo vida tan fuerte
con angustias de mis males,
que no sé como compuerte
los daños que por mi suerte
hazen mis llagas mortales.
Teniendo más merecido
menos alivio senti
daquel mal a que me vi
por vuestra causa venido.
Nunca me puedo quitar
de mis penas desiguales,
ni me puedo apartar
de los mis dias gastar
en las mis passiones tales.
No siento que modo siga
con temor de vuestro olvido,
ni s' aparta mi sentido
de querer su enemiga.
Y con este tal querer
ya mis quexas he forçado
y las he de posseer,
fasta fin poder haver
mi bivir apassionado.
Fim.
Hame vuestro desamor
de la muerte percebido,
porque sempre es recogido
em mi vuestro disfavor.
Em tanto que vivo ya
de la vida descuidado,
ni dudes que me seraa
el morir, quando vernaa,
menos bien que desseado.
37
PREGUNTA DO COUDEL‑
-MOOR A ALVARO
BARRETO.
Quem bem sabe, em tudo sabe,
e porem daqui concrudo
que a vós, que sabês tudo,
assolver as questões cabe.
E porem mui de verdade
peço que esta respondaes,
pera ver se concertaes
com minha negra vontade.
Ca eu ja me vi partir
e tambem despois chegar,
e senti todo o sentir
do prazer e do pesar.
Mas contudo é de saber
qual é vossa concrusam:
se partir dá mais paxam
ou chegar maior prazer.
Resposta d' Alvaro
Barreto.
De m' atrever que vos gabe
minha openiam mudo,
por nam ser ũu tam sesudo
que de vos louvar acabe.
E pois tal estremidade
sobre meu saber mostraes,
o nome que vós me daes
vosso gram louvor emade.
Porem sem detreminar
ante quem devo seguir,
ficando-m' eu de partir
ha-se por vós emmendar.
Que chegar tenha poder
d' alegrar ũu coraçam,
partir dá mais afriçam
u ha grande bem querer.
38
DO CONDE DOM ALVARO, QUE
MANDOU A ŨA SENHORA,
QUE ERA TERCEIRA
EM ŨUS SEUS
AMORES.
Des que fordes juntas duas,
vós essoutra que sabêes,
por mim tanto lhe dirêes:
— Ó senhora, nam destruas
aquele que em mãaos tuas
encomenda seu esperito.
E manda per este escrito
que cousa nam fique sua,
que toda nam seja tua.
Resposta do Coudel-moor, que
foi requerido pola senhora,
que respondesse
por ela.
Tres cousas queria nuas
ante qu' isso que dizeis,
que foram, nam duvideis,
dadas à filha de Fuas.
E viessem assi cruas
pera fartar apetito,
ca neste mundo maldito,
ante qu' ele me destrua,
quero-me fartar de bua.
39
DO COUDEL-MOOR A DOM GOTERRE
COM A METADE D' ŨU
CIDRAM.
Pôr por vós mui de verdade
a pessoa em qualquer bando
nam é chegar na amizade
u se vos manda a metade
d' ũu cidraom tal o quejando.
Nem d' outra parte compria
que moor quinham se vos desse,
porque minha cortesia
mais dano me nam fizesse.
40
DO COUDEL-MOOR A ŨA MOÇA QUE
LHE PEDIO ŨS ÇOCOS E QUE
FOSSE BOM PAR
DE LAVOR.
Por serdes milhor servida,
pois a perna tendes grossa,
mandai-me vós a medida,
eu farei todo o que possa.
E logo começareis
a medir polo artelho
e des i polo joelho
e na coxa acabareis.
E tambem quant' ee comprida,
e o pee quanto ter possa,
me amostrês a medida
da perna galante vossa.
41
DO COUDEL-MOOR A RUI DE SOUSA
COM ŨA CARTA DE SEGURO
EM QUE PAGOU POR
ELE SASSENTA E
NOVE REAES.
Sassenta brancos na palma
postos com tres vezes tres
fez de custos, que me pês,
os quaes ja dou por minh' alma.
Nem quero ter esperança
que homem vosso mos traga,
havei vós a segurança
e mao grado a quem na paga.
42
COUDEL-MOOR.
Pois se foram descobrir
vossos feitos pouco e pouco,
é mui bom homem ouvir
e nam ser mouco.
Ouço vos chamar madoma
porqu' amor em vós nam cansa,
e ouvi que soes tam mansa,
que qualquer homem vos toma.
Ouvi vos mais descobrir
por molher que sabe pouco,
e por isso é bom ouvir
e nam ser mouco.
43
TROVAS QUE FEZ O COUDEL-MOOR,
DE POESIA, INDO D' EVORA
PERA TOMAR, NA PON‑
TE DO SOR E
PAVIA.
De quinos trezenos bissete o ano,
passando seu meo com astres o Junho,
correndo Apolo o merediano,
ventura me trouve ò gram Paviano,
mostrar-me quem era o vincasi brunho.
Na universal do lageo grande
morada de fronte se mina fumerea,
cuberta das peles da madre da lande,
na qual melodias dulcissimas brande
a cega reinante na part' esquenterea.
Tambem tras o couce do grand' aparato,
sam vistos jazentes aquestes em torno
arelho cam geiro quem dá d' arrebato
com outros roliços crecentes no mato,
os quaes todos servem apos quadricorno.
Boim esteirado i faz cabeceira,
tendente per mesa tem grandes cadilhos,
ferrenhos tormentos teveram maneira
que desse Rui Vaca caldim na traseira
em velho fumereo de novos sorquilhos.
Apenas d' ali em Montargilado
me vi, ja Diana mostrando sa cara,
das forças humanas assi despojado,
que a poucas horas buscar foe forçado
lugar sonolento que ja procurara.
Es i dos sentidos com grande desmando,
vi cousas diformes oo ver repunantes,
em si desvairadas, contrairas no mando,
de que parte delas irei apontando,
porque tu, leitor, em lê-lo t' espantes.
Em casa creada de novo, poida,
vi musica doce, de canto griloso,
e Sertes estava em som recolhida
de ser abrasada, por ter afrigida
alma pesciva do gram bordaloso.
E rim machidonio u seus dentes lança
em partes devide os mais integrados,
cortifera febre é posta em balança,
ali onde outros com cor d' esperança
per linha mui fraca vi ser pendurados.
De terra cozida vi reste fornada
e canda bovina cá vim espigado,
e vi galiana da vida passada
que em dando voltas nos dava chilrada
nam menos que Jaques Menin gateado.
Tambem doutro cabo cantil s' alevanta,
cipelheo queda em terra jazente,
mas o padre grande da casa mais sancta
tintim nos tregeita, ca missas nam canta,
sendo senadores moeda corrente.
Fim.
As quaes cousas vistas causaram temores
a mim de tal forma que ponto nam pude
mais nelas sofrer os meus olhadores
por nam darem causa os tantos terrores
aa cousa contraira de minha saude.
Fundei-m' em partir mui acelerado,
tirei quanto pude, atras nam olhando,
porque do que vi fui tam espantado
que se nam valera batel esquipado
alaa se me fora coudel e Fernando.
44
COUDEL-MOOR POR BREVE DE ŨA
MOURISCA RATORTA QUE MANDOU
FAZER A SENHORA PRINCEZA,
QUANDO ESPOSOU.
A mim rei de negro estar Serra Lioa,
lonje muito terra onde viver nós,
lodar caitbela tubao de Lixboa
falar muao novas casar pera vós.
Querer a mim logo ver-vos como vai,
leixar molher meu, partir muito sinha,
porque sempre nós servir vosso pai,
folgar muito negro, estar vós rainha.
Aqueste gente meu taibo, terra nossa
nunca folgar, andar sempre guerra,
nam saber qui que balhar terra vossa,
balhar que saber como nossa terra.
Se logo vos quer mandar, a mim venha
fazer que saber, tomar que achar,
mandar fazer taibo lugar, Des mantenha!
E logo meu negro, Senhora, balhar.
45
OUTRA SUA.
Senhora graciosa, discreta, eicelente,
sentida, humana, d' amores immiga,
garnida d' oufana, d' honores amiga,
d' agora fermosa, secreta, prudente,
excrude em vós tacha castigo manante,
perfeita bondade, inteiro enxempro,
sogeita à verdade, verdadeiro tempro
virtude vos acha consigo costante.
Desta copra do Coudel-moor
atras escrita se fazem muitas
copras e foe feita sobre aposta
com Alvaro de Brito, porque
disse que nam na faria
ninguem tal como a
sua e apostaram
capõoes pera a
Pascoa.
Por comprir minha promessa
como quem o som vos furta,
esta fiz mais que depressa
por voss' arte, long' ee curta.
E pois nacem copras dela
nam menos da que fizestes,
fazê vós os capõoes prestes
qu' aqui é a Pascoela.
46
DO COUDEL-MOOR A EL-REI DOM
PEDRO QUE, CHEGANDO AA
CORTE, SE MOSTROU SER‑
VIDOR D' ŨA SENHO‑
RA A QUE ELE
SERVIA.
Pois me chegastes ò coiro,
dando-me mal sobre mal,
homem de sangue real,
a lonje vaa voss' agoiro.
Voss' agoiro a lonje vaa
e vossos motes d' amores,
mas eu fui laa eramaa,
pois me nam leixam senhores.
Pouco m' era compridoiro
vosso vir a tempo tal,
polo qual, sangue real,
a longe vaa voss' agoiro.
47
COUDEL-MOOR.
Pois nam vejo quem m' empare
e meu mal tornaes em dobro,
sobre mim convem pôr cobro,
que ja minha mãi nam pare.
Meti-me de companhia
por vosso bem desejar,
pera ver se medraria
como vi outros medrar.
Mas pois daes mal que m' enfare
e a outros bem em dobro,
sobre mim convem pôr cobro
que ja minha mãi nam pare.
48
COUDEL-MOOR.
Nam levaes boa maneira
para muito autorizar,
pois por amigos cobrar,
vos fazeis alcouviteira.
Mas que digo? Fazeis bem,
ca eu disso tal me pago,
ca pois vos nam quer ninguem
nam é bem qu' estês de vago.
Bom é ser mexeriqueira,
peroo paço emburilhar,
e pera amigos cobrar
milhor bo' alcouviteira.
49
COUDEL-MOOR A SUA CUNHADA
QUE LHE MANDOU ŨA ESCRE‑
VANINHA FRAANCESA,
QUE TRAZIA O CANO
NO TINTEIRO,
TUDO JUNTO
PEGADO.
Senhora cunhada minha,
deu-me grande torvaçam
esta vossa escrevaninha
qu' adavinha
a festa d' encarnaçam.
Nunca vi cousa tam nova
nem joia tam excelente,
mas dos cuidos que renova
seja a prova,
o tinteiro seu presente.
Ca jaz dentro na bainha
d' ũa tam nova feiçam,
que sem caso d' antrelinha
adevinha
a festa d' encarnaçam.
50
COUDEL-MOOR A ŨA SENHORA
QUE LHE ESCREVEO MOTES,
SOBRE TER PRENHE
SUA MOLHER.
Pois lá foi tam grande riso
d' ũ filho que Deos me daa,
que fora, senhora, jaa
s' eu nam fora para isso.
Com lembranças de quem quero
no que queria me fundo,
mas no cabo desespero
por achar outrem de fundo.
Fico morto emproviso
des qu' o feito passa jaa,
mas moor riso fora laa
s' eu nam fora pera isso.
51
COUDEL-MOOR
Quien gana pierde, aprendi
por mi mal, pues foe en hora
qu' em ganarvos por senhora
me perdi.
Verme del todo perdido
ganee triste por ganaros,
desamado por amaros,
por quereros no querido.
Por me ver vuestro me vi
de mis sentidos tam fuera,
qu' en ganaros por senhora
me perdi.
52
COUDEL-MOOR AO PRIOR DO
CRATO, PORQUE LHE MANDOU
ŨA CARTA D' EL-REI QUE DE‑
ZIA QUE A CINCO DIAS LHE
MANDASSE SEIS LANÇAS
E NAM FALAVA EM
LHE HAVEREM DE
PAGAR SOLDO.
Pera as lanças que mandaes
que logo mande,
ũa duvida vem grande
per que vós, senhor, passaes.
Vós no soldo nom falaes,
per ventura nam cuidaes
qu' ham-de comer...
S' ham-de ser celestriaes
mui pouco tempo me daes
pera as mandar perceber.
53
Porque meu mal s' i dobrasse,
vos fez Deos fremosa tanto,
que nam sei santo tam santo
que pecar nam desejasse.
Polo qual sei que me vejo
de todo ponto perder,
por nam ser em meu poder
partir-me deste desejo.
Mas que m' este mal fadasse
e me traga dano tanto,
praz-me pois nam sei tam santo
que pecar nam desejasse.
54
DO COUDEL-MOOR A ŨA SENHO‑
RA QUE QUERIA FOGIR DE
PALMELA POR SE DIZER
QUE MORRERA I ŨA
MOLHER, E ELA
MORRERA DE
PARTO.
Que em trajos de donzela,
dona, motejês assi,
senhora, sobi aqui
e daqui vereis Palmela.
As novas cá tanto correm,
que d' ouvi-las ja sam farto,
que nessa vila nam morrem,
senhora, senam de parto.
E pois fingis de donzela,
nam fujaes por isso d' i,
mas podeis sobir aqui
e daqui vereis Palmela.
55
MEMORIAL DO COUDEL-MOOR.
D' Abril aos onze dias,
cinquenta e oito a era,
senti eu quanto é fera
a mortal dor de Mancias.
Porem quero que saibaes
que com suas mortaes dores,
nam de jogo aficadas,
passei polos Carregaes
tam carregado d' amores
que ousadas...
56
CANTIGA SUA.
Que de tal troca se siga
ser de todo meu bem fora,
pois me vejo em tanta briga
quero vos trocar d' amiga
por immiga e por senhora.
Immiga pera poder
todo meu bem destroir,
senhora pera querer,
pera amar, pera servir,
pera me dar nova briga,
pois que vos vi em tal hora.
Mas que meus danos consiga,
convem trocar-vos d' amiga
por immiga e por senhora.
57
LUIS FOGAÇA, SENDO VEREA‑
DOR NA CIDADE DE LIX‑
BOA, EM QUE LHE DAA
MANEIRA PARA OS
ARES MAOS SE‑
REM FORA
DELA.
Senhor meu Luis Fogaça,
sempre fui amigo vosso,
Deos o sabe,
pobre sam, nam sei que faça,
cousa começar nam posso
que s' acabe.
Consiro em tal vivenda
qual vivemos d' emborilhos
descontentes,
em desamor e contenda
os irmãos e pais e filhos
e parentes.
Sei que soes dos regedores
dessa cidade mui nobre
de Lisboa,
sei que mereceis honores,
nobre fama vos recobre
e tam boa.
Por saber que soes zeloso,
d' honesto viver e certo,
limpo, craro,
com os tais sam desejoso
de falar e mais esperto
menos caro.
A vós, a que muito quero,
envio assi trovadas
minhas cobras;
nam aguardo nem espero
ver por isso mais louvadas
minhas obras.
Se vos muito nam contenta
sua rota, nam m' hajaes
por bom piloto,
nem leaes de sobre venta,
tá que de todo vejaes
se dam no goto.
Pera os ares corrutos
dessa cidade sairem,
os devassos,
torpes feitos dessolutos
compre que logo se tirem
sem trespassos.
Ante que o El-Rei saiba,
que os mande Su' Alteza
lançar fora,
cada ũu faça que caiba
bom estilo de limpeza
onde mora.
Ha mester bons quadrilheiros,
que oulhem mui bem e tentem
onde jazem
os podridos esterqueiros,
amoestem os que sentem
que os fazem.
Se os bem nam alimparem,
sem tardada dilaçam,
mais valeria
torpidades castigarem
que solene perciçam
nem romaria.
Algũs querem e requerem
que os façam dos pelouros,
por levarem
de todos quanto lhe derem,
de cristãos, judeus e mouros,
s' ajudarem.
Nam polo bom regimento
por eles haver emmenda,
se mandarem,
mas por bom aviamento
darem a sua fazenda
e folgarem.
Querem ser almotacees
e queriam ser juezes,
por encherem
talhadores e pratees
de coelhos e perdizes,
e comerem.
Querem suas mesas cheas,
nam havendo compaixam
dos vezinhos,
comer viandas alheas
de muitos que pobres sam
e mezquinhos.
Quem será do paao vermelho
que caçou por vil repairo
sem foram
d' ũa pobre ũu coelho,
de que fez o comissairo
ũu sermão.
Nam ha i ave nem cam,
que mate milhor a caça,
nem perfia,
do que mata tal saiam
por saber armar na praça
saioria.
Tal saiam ou outros taes,
estragadores saiõoes
de viandas,
faram mui descomunaes
estercos de confusõoes
e demandas.
Saibam bem que leva peita,
logo lha façam tornar
ou pagá-la,
toda vileza mal feita
todos devem estranhar
e estranhá-la.
Bem limpas as esterqueiras
que jazem nessa cidade
dentro dos muros,
tirar-s' -iam más maneiras
de grandes perversidades
de monturos.
U convem ũu grande estremo
pera trazer a bom meo
tanto mal;
muitos gemem do que gemo,
mais grave dano receo,
desigual.
Receando maior ira,
maiores pragas e mortes
procederem
por tanta falsa mentira,
por males de tantas sortes
recrecerem.
Receo sanha mais grande
que nos mostra Deos que tem
contra todos,
e se querem que s' abrande,
alimpemo-nos mui bem
destes lodos.
Alimpemos brasfemar,
alimpemos negrigencias
e sefismas
de falso pronosticar,
e mouriscas giomancias,
seitas, cismas.
Todo mal cada ũu faz
por serem prevalecidos
seus estados,
cuidamos viver em paz,
e vivemos combatidos,
guerreados.
Esta morte nos guerrea
tantos annos tam sobeja,
em morrendo;
e pecar nam se recea
nem a vida nam s' enteja
mal fazendo.
Nam m' espanto ja dos moços,
mas dos velhos que revolvem
sa velhice
em valdios alvoroços
com bioucos, nam s' assombrem
da sandice.
Arruando bem as ruas,
alimpando freguesias
de malicias
e das torpidades suas,
que correm das judarias
sorratiçias,
veram boons antre daninhos;
mas escondem os louvados
malfeitores,
ca sobejam os espinhos,
ficam todos condenados
sem louvores.
Sobre todos vem doença,
sobre todos vem tal fame
que nos corta;
de Deos irosa sentença,
de justiça tal isame
desconforta:
os males favorecidos,
as vertudes encolhidas
sam escolas
de conluios enduzidos,
que conluiam nossas vidas
em embolas.
Buscam muitos como vivam
com embolas; sem trabalho
se refrescam,
da graça de Deos se privam,
armando laços d' engalho
com que pecam.
Suas redes e tresmalhos
sam gera nunca sairem
de cautelas,
buscam todolos atalhos,
rodeam por nam cairem
em costelas.
E sam as cautelas tantas,
que parecem necessarias
por defesas
de muitas mentiras, quantas
se costumam voluntarias,
mal despesas.
Ũas trelas outras seguem,
levam varedas ezquerdas
em espias;
olhem, olhem, nam se ceguem,
como trazem grandes perdas
regatias!
Regatar e revender
fazem monturos mui altos,
fedorentos,
nam se podem desfazer
sem grandes tombos e saltos,
escarmentos;
arrenego de tal uso
de ganhar oo que lhe mercam
o tresdobro;
por costume tam confuso
boons costumes nam se percam;
hajam cobro.
Os uzeiros e vezeiros
i de falsas mercadarias
muito fedem,
as onzenas d' onzeneiros,
usuras e simonias
nos desmedem.
Se mandarem e varrerem
todas ousadas solturas,
nam duvido
de cessarem, nam morrerem,
de tam supitas quenturas,
Deos servido!
Vento é isto que falo
que passa pelos ouvidos
sem efeitos;
muitos somos em abalo,
de desejo constrangidos
e sogeitos.
Pera fazer diabruras,
mui sobejas demasias,
sem pulicia,
entram nisto mais mesturas
d' estrangeiras companhias
de malicia.
Estrangeiros partistando
levam desta nossa terra
ouro, prata,
nossas bolsas alivando,
com sa paz nos fazem guerra
que nos mata.
Levantam-se as moedas
quanto mingam nossos fruitos
temporaes;
estas praticas azedas,
estes nossos males muitos
sam geeraes.
Assi como vam da nao
todolos outros estantes
nos despenam:
levam ouro, trazem pao,
nossos tratos mercadantes
desordenam.
Por framengos, genoeses,
frorentins e castelhanos,
mal nos vindo,
com seus novos antremeses
dam-nos trinta mil avanos,
vam-se rindo.
Polos muitos corretores
ha i poucas corretagens
verdadeiras,
compradores, vendedores,
enfrascados em frascagens
barateiras.
Corretores e adelas,
em venderem e comprarem,
negoceam,
sabem bem roêlas trelas,
todos por nam se queimarem
as receam.
D' estrangeiras amizades
os corretores se cercam
de tal guisa
que se queimam novidades
dos vezinhos, porque percam
mais da sisa.
Com adelas o perder
é mais certo que ganhar:
onde vam,
se nam entram por vender,
entram por alcoovitar
de sobremão.
Cada ũu em seu oficio
todo feo interesse
nam refusa,
todo vergonhoso vicio,
como s' alma nam tivesse,
faz e usa.
Onde vergonha nom ha,
nem morder de conciencia,
haja medo.
Este caso nam estaa
em defesa d' inorancia,
nem segredo.
Os que s' acendem em furia
com sobejos apetitos
mui acesos,
nos ardores da luxuria,
que de solturas suditos
jazem presos.
Caçurrentos mais que pulhas
de seus males criminaes
se castiguem,
porque tantas maas borbulhas,
tam grandes dores mortaes
se metiguem.
Casados tem barragãas
e casadas barragãaos,
desta sorte
frades com freiras louçãas
nam dam doentes nem sãaos
pola morte.
Nossa lei do casamento
damos-lh' habito mourisco
mui bastardo,
no das ordens sacramento,
nam segundo Sam Francisco,
Sam Bernardo.
Por surdas alcouviteiras,
barateiras e beatas,
muitas ardem
em desonestas fogueiras;
desbaratem taes baratas,
nam lhe tardem.
Nam cuidem com elas ter
conversaçam sem doesto,
ca nam podem
muitos dias se manter,
que nam vam pelo cabresto
u s' enlodem.
Algũus ha na crelezia
que levam errados rumos,
mao costume
de vestir hepocresia;
sam devotos mais dos fumos
que do lume.
Levam pecados alheos,
mui gravemente defendem
e nam tardam
de fazer outros mais feos,
de que nunca se reprendem
nem se guardam.
Ca devassam as igrejas,
ermidas e moesteiros,
os sagrados;
por molheres ham pelejas,
por molheres sam guerreiros,
namorados.
Suas horas engroladas
em torpe vivenda çuja
desregrados,
suas manhas costumadas
dentro no porto de Muja
costumados.
Estudantes pregadores
metem sanctas escreturas
em sermõoes,
dirivados em amores
fazem de falsas feguras
tentaçõoes.
Quando virem tal caminho,
de maa preegaçam s' afastem
os que ouvem,
dêm-lhe todos de focinho,
taes metaforas contrastem
e deslouvem.
Sobrecrecem os demonios
e semeam vituperios,
d' u se criam
doestados matrimonios,
dessolutos adulterios
se cotiam.
As encrinações malinas
de satiras qualidades
destroi-las;
as que sam adulterinas
danariam mil cidades,
tres mil vilas.
Nam digo per todos isto,
que mui boons e boas nobres
têm aberto
seu mui craro louvor, visto
de ricos, tambem de pobres
descuberto;
mas nam sam de jeeral conto,
que se regem por ũs termos
negrigentes,
cujos males nam aponto
de que muitos sam enfermos
e doentes.
Antr' estes monturos moram
moradores vertuosos
que s' afastam
de maos ciscos, nam decoram
os partidos viciosos
nem contrastam
lodos taes, por nam poderem
ũs nem terem tal lugar
de o fazer,
e outros por nam quererem
seus amigos anojar
nem reprender.
Bulras habraicas sotis
danam verdades latinas,
ensaiando
agudos costumes vis,
desensinos por doutrinas
ensinando.
O apurado saber
nam é artefecial,
sobre partidos,
é ũu real entender,
é ũu siso natural
de boons sentidos.
Maa hora vimos judeus
e os seus modos viventes
aprendemos,
por sotis enliços seus
em todos maaos acidentes
nos metemos.
Nossa lei, nossa vertude,
nossa honra, nosso bem
avorrecemos,
nam procuramos saude,
do mal que cura nam tem
adoecemos.
Nisto caem os letrados
e os outros entendidos,
todos querem
dos judeos ser avisados,
servidos e percebidos;
nem esperem,
em cabo de seu serviço,
de sua negra aprestança,
senam dano;
tanto cega seu inliço,
que traz cor de ter bonança
sem engano!
E maa hora vimos artes
e lijunjas bem compostas
dessimular,
partidos de muitas partes,
amigos, lanças tras costas,
enganar.
Com interesses nos imos,
as amizades tornamos
desamores,
diversos rostos fengimos,
o que ganhamos gastamos
em vapores.
Nam guardamos nossa lei
de Cristo como cristãaos
bem fiees,
nem servimos nosso Rei
senam de serviços vãaos
e revees.
Isto faz o praticar
nossas maneiras judengas:
sem amizade,
esperamo-nos salvar
com viciosas arengas
de maldade.
Todas boas confianças
por malissimos enganos
sam perdidas,
justos pesos e balanças
danam judeus e marranos
e medidas;
assi sam algũs dereitos
torcidos em sem rezam,
dilatados,
perdidos muitos proveitos,
danados com afeiçam
os julgados.
Por marranos nam defamo
os que foram judeus sendo
cristãos lindos,
mas apostolos lhe chamo,
mui grandes louvores tendo,
mui infindos.
Sam marranos os que marram
nossa fee, mui infiees,
bautizados,
que na lei velha s' amarram
dos negros Abravanees
dotrinados.
Por nossos grandes pecados,
naquesta presente vida,
todos ora
vivemos desordenados,
nossa dor é recrecida,
nam melhora.
Como pegas aprendemos
bom estilo de falar
craro ou preto,
como pegas nom sabemos
qu' o que falamos obrar
dev' o discreto.
Em maa hora vimos varas
de juizo sem justiça
praticar
d' esconder as cousas craras,
pois dereitos esperdiça
seu julgar.
Com artes, enlevamentos
de novas bulras conhecem,
dam-lhe fee
por trazerem movimentos,
que o contrairo parecem
do que é.
Os cientes sabedores
guarnecidos de bondades
ham-de ser,
assi modernos autores,
que suas autoridades
devem crer.
Estes sam mais cordeaaes
que frores de laranjeira,
d' autoridade
sam altos memoriaaes,
que nos mostram a carreira
da verdade.
Nunca vi tanta mesura
quanta falar se costuma
tam valdia,
palavras de pouca dura
revoadas como pruma
na fantesia.
Todos entram em senhor,
e todos pedem mercê,
desfalece
boa fee, leal amor,
a verdade nam se vê
nem parece.
Somos desavergonhados
em falar e presumir
quanto dizemos,
nas malicias ousados,
covardos pera seguir
o que devemos.
Com isto nos arredamos
de Deos, bem de nós s' arreda.
Merecemos,
polo mal que praticamos,
nam vivermos vida leda
qual queremos.
Todos queremos mandar
e queremos ser servidos,
nam sogeitos,
sem cuidar nem trabalhar
como sejam bem regidos
nossos feitos.
Com nossa pouca vergonha
nos queremos por linguajem
defender,
somos taes como quem sonha
grandes feitos d' aventagem
sem poder.
Por trajos demasiados,
em que todos sam iguaes,
sam confusos
os tres estados, danados,
alterados mesteiraaes
em seus usos.
Nom devemos ser comũus
senam pera Deos amarmos
e servirmos,
nam sejamos todos ũus
em ricamente calçarmos
e vestirmos.
Ca muitos baixos, indinos
de nobrecidos lugares,
pervalecem,
e com ricos trajos finos,
cadeas d' ouro, colares,
engrandecem.
Aos nobres sem dinheiros
nam lhe catam melhorias,
porque caiam;
menospreçam cavaleiros
onde se cavalarias
nam ensaiam.
Nos outros tempos passados
todos queriam viver
honestamente,
ordenados, compassados,
cada ũu em seu valer
era contente.
Nam havia presunçam
nem tomar de melhoria
endevida;
concordada discriçam
a mais da jente regia
per medida.
Todalas openiõoes
dos homens eram fundadas
em certeza,
todalas conversaçõoes
docemente conversadas
com destreza;
todos sem altevidade
honestamente folgavam,
cada ũu
segundo sa qualidade,
peroo todos desejavam
bem comũ.
Fez o tempo outra volta:
tornam-se boas vontades
maos desejos,
honram mais quem mais se solta,
e em todalas verdades
catam pejos.
Os que têm a governança
tomam conta com entrega
mui sem bico,
com sesuda temperança
nam se chegam onde chega
mexerico.
Ca revoulvem mizcradores,
por caberem com patranhas
onde sabem
que podem haver favores,
volvem mansidõoes em sanhas,
assi cabem.
É costumada simpreza:
cremos palavra sem prova,
torpe, fea;
maa sospeita traz crueza,
sem razam estranha nova
nam se crea.
Por falar no governar
e largar assi a brocha
nom espaço,
nem por muito reprochar
nom m' escuso de reprocha
e mal faço.
Ha i tanta çugidade
de maneiras mui perversas
tam notoria
e em tanta quantidade
que saaem culpas diversas
da memoria.
Destes fedorentos ciscos
muitos ha em cada casa
de logo,
sam piores que curiscos,
muita gente se debrasa
em tal fogo:
nossas vidas apoquenta,
nossas fazendas destrui
seu fedor,
ira de Deos s' acrecenta,
ora cada ũu conlui
sem temor.
Na fala partecular
todo bem e mal s' entende,
nam falece
quem milhor saiba pintar
isso que vê e comprende
e conhece.
Vãao errados os estilos,
nam se podem correger
levemente,
tantos bocados e engulhos
feros sam de conceder
a quem sente.
É mui fera beberajem,
é mui grande desacordo
u nam tomam
com repouso sem corajem
discreto conselho cordo,
nem assomam
com bem liquidada conta,
pero contra que vir possa,
porque vejam
quanto vale ou quanto monta
no ganhar ou perda grossa
d' u se rejam.
Os que governam e rejem
andem bem oos aparelhos
vivos, lestos,
essa cidade despejem
de monturos e fedelhos
desonestos.
Assi me vou espedindo,
de reprochar m' avergonho,
mais espinhas,
mui graves penas sentindo,
todalas outras posponho
polas minhas.
Fraca dita, fraco siso,
fraca renda, gram despesa,
mal que anda,
estas pagas que deviso
enfraquentam minha mesa
de vianda.
Os meus feitos vãao no fundo
minhas casas sam queimadas
u sabês,
as afriçõoes deste mundo
pelo de Deos comportadas
sam mercês.
Fim.
Cumpra Deos vosso desejo
e de quem vos bem deseja
neste segre,
com a pobreza pelejo,
ela faz que triste seja,
nam alegre.
Em fim de tudo concrudo,
assi bem ou mal notado
notefico
que nam contam por sesudo,
nem pode manter estado
senam rico.
58
ALVARO DE BRITO.
Vive mais morto que vivo
o livre que se cativa,
ledo, forro, sempre viva
quem se livra de cativo.
Nam é lei d' humanidade,
nem consente descriçam
leixar homem liberdade
por viver em sujeiçam.
Sendo contra si esquivo,
contra si todos esquiva,
ledo, forro, sempre viva
quem se livra de cativo.
Joam Gomez da Ilha.
Eu vi no tempo passado
afirmar-se por verdade
catividade de grado
ser inteira liberdade.
Mas por certo meu motivo
é contra quem se cativa,
ledo, forro, sempre viva
quem se livra de cativo.
59
ALVARO DE BRITO A EL-REI,
PORQUE O MANDOU AO ESMO‑
LER PEDINDO-LHE
MERCÊ.
Menospreço desconsola,
a verdade bem se vê,
que quem merece mercê
nom espera por esmola.
As esmolas de Deos sãao
chamadas esprituaes,
as mercês os reis as dãao
por galardão
dos serviços temporaes.
Este mundo ee d' embola,
bem estaa quem em Deos crê,
que quem merece mercê
nom espera por esmola.
60
OUTRA SUA
Breve vida te guerrea,
carne mesquinha, sospira,
abre los ojos y mira
la muerte como saltea.
Mirarás la poca dura
deste curso temporal,
que so regra de ventura
no segura bien ni mal.
Y porque mejor se vea,
em los passados consira,
abre los ojos y mira
la muerte como saltea.
61
OUTRA SUA
Sem pena ou sem favor,
nem per graça devinal,
nam pode bom servidor
medrar neste Portugal.
Sem pena sabeis qual pena
a certa pena da pata
que a vivos morte cata
e a mortos vida ordena.
Sem esta ou sem favor,
que queira Deos eternal,
nam pode bom servidor
medrar neste Portugal.
62
OUTRA SUA CONTRA OS ESCRI‑
VÃES DA FAZENDA.
Se filhos de quem nom teve
tendes mais que merecês,
a El-Rei muitas mercês,
que vos deu o que me deve.
E pois tendes recebida
a paga de meu serviço,
nam queiraes com vosso viço
brasfamar de minha vida.
Que nam tenha quem ja teve
e vós mais que merecês,
a El-Rei muitas mercês,
que vos deu o que me deve.
Decraraçam da divida feita
por Anrique de Figuei‑
redo, escrivam da
fazenda.
Deve-me muitas pancadas
que deu cá oo de Sampaio,
nas costas mui bem pagadas
polas culpas em qu' eu caio,
pois com sua mãao reteve
em lhas dar como sabês,
a El-Rei muitas mercês,
que lhas deu e a mim as deve.
63
TROVAS D' ALVARO DE BRITO FEN‑
GINDO NAVEGANDO COM TOR‑
MENTA, GROSANDO ŨA CAN‑
TIGA DO CAMAREIRO-MOOR
QUE DIZ: CUIDADOS DEI‑
XAI-M' AGORA.
Cuidados, deixai-m' agora
cuidar meu maior cuidado
com que meu coraçam chora,
porque vou de foz em fora
de prazer desamarrado,
com tam forte tempestade
que nam posso portar vela.
Com tam grande saudade,
com tam pouca piadade
perdimentos me revela.
Dexem-me vossos rumores
enquanto possa dizer
meus sospirados clamores
de tristezas, desfavores,
dores de meu padecer.
No contrairo do que quero
ventura me faz andar
agro caminho tam fero
que penando desespero
de viver sem me matar.
Penar me faz conhecer
em minha forçada via
quam longe sam de prazer,
conhecendo meu querer
amar mais que me compria.
Com desconsolada vida,
de perigos tam mortaes,
tam ferida, tam corrida,
oh minha triste partida
quantos males me causaes!
Neste negro navegar
grandes agonias sento,
em largas coitas passar
sam acerca de dobrar
com tormentas meu tormento.
Arvor seca vou correndo
sobre bancos de discordia,
antre baixas me perdendo,
nem destreza me valendo,
nem pedir misericordia.
Vou assi quasi perdido,
levo rota de trestura,
bem querendo, mal querido,
onde penso ter havido
o cabo de desventura;
nom podendo resestir
a meu gram padecimento
d' amar sem poder partir
a quem mostra nom sentir
quanto mal por ela sento.
Em vagas de mar aceso
contra vento e sem maree,
vejo meu prazer despeso,
vejo-me remeiro preso
em centina de galee.
Nam acho terra segura
que tenha seguro porto,
nem quem haja de mim cura
nestas ondas d' amargura,
de mil mortes vivo morto.
Assi mal afortunado
nas refegas destes mares,
de cuidados carregado,
contino desatinado,
guarnecido de pesares,
com afrontas nom achando
onde me possa ancorar,
contrairos tempos pairando,
sem governo govenando
todo meu desgovernar.
Nem gemer minhas paixões,
nem chorar, nem sospirar,
nem fazer lamentações
a minhas trebulações
nada me pode prestar.
Estorcendo toda hora
sem conto penar sobejo,
bradando vou: — Oo senhora,
socorrei quem vos adora,
vós meu bem e meu desejo!
Quanto mais costante sam
em vos manter minha fee,
tanto mais sem compaixam,
por me dar maior paixam,
vosso bem contra mim ee.
De soverano poder,
vós, que podeis, me salvai,
ou por menos mal sofrer,
pois me nam querês valer,
sem dilatar me matai.
Fim.
Quem pode sofrer meu mal,
quem vio marteiro tam vivo
de dano tam creminal,
onde nom nacer mais val
que padecer tam esquivo!
Oh dama, em tal graveza
em que me fazeis morrer,
vós, primor de gentileza,
cece ja vossa crueza,
doia-vos ver-me perder.
64
TROVA SUA A FERNAM DE VAR‑
GAS, QUE ERA MUITAS VE‑
ZES JUIZ EM LIXBOA,
NA AUSENCIA
DOUTRO.
Juiz de meo ano,
tavanês,
que pera dez anos faz dano
em meo mes;
antre cortês descortês,
leviano,
com pouco favor ufano,
rosto de res.
65
OUTRA SUA AO ZEIMOTO, QUE
LHE PEDIO ŨU CONSO‑
ANTE PERA BEM.
Pedistes-m' um consoante
pera bem.
Dou-vos rosto de cofem
e na mão ũu puxavante,
nora mala qu' é galante
o Zeimoto,
unhas brancas de minhoto,
pescoço de lobagante.
66
OUTRA SUA A PERO BORGES,
PORQUE ESTANDO COM FE‑
BRE LHE DEU PIOR
DESPACHO QUE
EM SÃO.
Vós com febre, vós sem febre,
presumis de gram senhor,
Pero Borges contador,
demo soes em vez de lebre.
Arisco gozo, corrido,
saro ravasco, mostrengo,
nam ha mais nũ bexodido,
quasi quasi tengomengo.
Vossa presunçam nam quebre,
presumi d' emperador,
Pero Borges contador,
demo soes em vez de lebre.
67
OUTRAS SUAS AO GRIFO, SENDO
CORREGEDOR, PORQUE LHE
FOI FALAR E ELE
QUEIXOU-SE.
Pera que vos engrifaes,
pois que convosco nam rifo?
Cuidaes que por serdes Grifo,
que por i m' atabucaes?
Oulhai bem como falaes,
galante da mão inchada,
boca de cousa finada,
verdugo de pendençaes.
Alterou-vos ũ grifete
que deve ser basalisco,
e dizem que soes galisco.
Vede u s' este caso mete,
s' algũ convosco compete
no jogo de chaporras,
enquanto vos der no ás
tirar-lh' -ês polo topete.
Fim.
Nam soes homem nem bisonha,
enxarroco, nem caboz,
pareceis-me biaroz
enxertado em carantonha.
68
OUTRA SUA.
Isabel Diaz, aquela
que é guarda das donzelas,
se dizem que diz mal delas,
que diram dela?
Diram que se faz cartuxa
e que parece mundaira,
vertudes de si empuxa,
d' amizades se desvaira;
sem cautelas se cautela,
faz mui feas carapelas,
se dizem que diz mal delas,
que diram dela?
69
OUTRA SUA A EL-REI, QUEIXAN‑
DO-SE DE TRES DESEMBARGA‑
DORES, QUE ERAM JUIZES
D' ANTRE ELE E ŨU
VILÃO.
Senhor: Jam, Pero, Lois,
tres da vossa rolaçam,
o que Deos nam quer nem quis,
querem mostrar por rezam:
querem salvar ũu vilão,
querem condenar a mim,
querem fazer per latim
do nam si, e do si nam.
70
OUTRA SUA AO PROVISOR
JOAM GIL, PERANTE
QUEM ANDAVA
EM DEMANDA.
Que rigor e que primor
de provisor!
Que regalos de Jam Gil!
Sobre rustico, sotil,
e sobre vil,
sem saber e sem sabor,
servidor desservidor
d' El-Rei, contradiz El-Rei.
Que lhe farei?
Se fizer, desfazer-lh' -ei
e chamar-lh' -ei
gram Jam Gil emperador.
71
OUTRAS SUAS A JAM DE RAVO‑
REDA, PORQUE LHE NAM
QUIS PAGAR ŨU DESEM‑
BARGO E ELE
PARTIA-SE.
Senhor Jam de Raboreda,
sem moeda
me querês fazer partir,
tenho bem que vos servir.
Com vontade mui azeda
partirei, mas cá me queda
de vossa mercê despeito,
a respeito
de nam sei como soes feito,
acertarei a vereda.
72
RIFAM.
Vossas borbulhas me comem,
bom cristam quasi baru,
soes por quem disse Jesu:
— Pesa-me, porque fiz homem.
Soes sem fee, sem compaixam,
soes muito mao pagador,
soes mui negro de carão,
soes de negra condiçam,
gracioso sem sabor.
Soes galante de palomem,
cortesãao de Barzabu,
soes por quem disse Jesu:
— Pesa-me, porque fiz homem.
Fim.
Soes ũu bruto animal,
belfa quasi tartaruga,
soes ũu corvo carniçal,
soes ũu demo infernal,
nom sei quem de vós nom fuja.
Soes danado lobisomem,
primo d' Isaque Nafu,
soes por quem disse Jesu:
— Pesa-me ter feito homem.
73
ESTAS OITO TROVAS FEZ ALVARO
DE BRITO PESTANA A EL-REI DOM
FERNANDO, NAS QUAES METEO
O SEU NOME E LEM-SE DE
TANTAS MANEIRAS,
QUE SE FAZEM
SESSENTA E
QUATRO.
Forte, fiel, façanhoso,
fazendo feitos famosos,
florecente, frutuoso,
fundando fiis frutuosos.
Fama, fe, fortalezando,
famosamente florece,
fidalguias favorece,
francas franquezas firmando.
Exalçado, excelente,
ensinados estimando,
espritual evidente,
eresias evitando.
Em Espanha esmerado
espelho, esclarecido,
especial, escolhido,
estremado em estado.
Rei real, reglorioso,
reforçando receosos,
real rei remuneroso,
refreando revoltosos.
Ricos regnos recobrando,
ricamente resprandece,
redobrado remerece,
realissimo reinando.
Notem notoriamente
nestes notados notando,
nooto nestas novamente,
notem-no noteficando.
Notefiquem-no notado,
necessario nacido,
nobrecente nobrecido,
nobre nome nam negado.
Alto, alto, aumentado,
alto autor avondoso,
alto amante amado,
alto auto animoso.
Animo angelical,
altas altezas avendo,
altos altos abatendo
a Alexandre, a Anibal.
Merece maximo mando,
manifico maioral,
maiores mandos mandando,
mauno, modesto, moral.
Mostra-se merecedor,
merece mais melhorias,
merecendo monarquias,
merecente mandador.
De Deos dom deliberado,
dominante, dadivoso,
de Deos dino doutrinando,
dominando dereitoso.
De desejo devinal
descompassos defendendo,
diabruras desfazendo,
de dominius doutrinal.
Fim.
Onores ofeciando,
obsoluto ofecial,
ofeciaes ordenando,
onrador oniversal.
Ousado ordenador,
onestando ousadias,
orem-lhe oras, omilias
ò onrado onrador.
74
ESTOUTRAS OITO FEZ À RAI‑
NHA DONA ISABEL, SUA
MOLHER, DA MESMA MA‑
NEIRA E SAM EM
CASTELHANO.
Esclareces exalçada,
em Europa enlegida,
esperante esperada,
estrelha esclarecida.
Esplandor espritual,
electa espectativa,
especta, executiva,
estrema, esencial.
Leona, leda, loçana,
luminante lumbradora,
levantada, livre, lhana,
liquedada libradora.
Loança lhena lhamada,
lindamente lustrida,
lesta, limada, luzida,
loen, loente loada.
Ilustrissima jurada,
justamente influida,
incita justificada,
jentileza infenida.
Imagem imperial,
inmensa, impetrativa,
jenerosa, inventiva,
industriosa, igual.
Suprema, suave, sana,
serenisima senhora,
suma, salda, soverana,
sobrimante sopridora,
solene solenizada,
solenemente servida,
sacra, secreta, sentida,
subiendo siempre salvada.
Altissima, abastante,
adversidad amansaste,
amando alto amante
agras artes alhanaste.
Altezas, amor alcanças,
altivezas abaixando,
animosas animando
azes artas abundanças.
Beatisima bondad,
beatisima bonança,
beatisima beldad,
buen brason, buena balança.
Buscas brandezas beninas,
benenidad brasonando,
beneficios buscando
basteces buenas bastidas.
Excelsa examinante,
espanholes ensenhaste,
esguardada, elegante,
elh' estado exalçaste,
esforçando esperanças,
el eterno esperando,
el estilo esguardando,
esquivando esquivanças.
Fim.
Libertaste libertad,
levantaste la loança,
lealtaste lealtad,
letificas la liança.
Limas las lenguas latinas,
loas lindezas limando,
liberalmente librando
latino loor lominas.
75
TROVAS D' ALVARO DE BRITO
PESTANA, EM LOUVOR DE PERO
DIAZ, ESCRIVAM D' ANTE
O CORREGEDOR
DA CIDADE DE
LIXBOA.
Todos mui calados sejam
por bem ouvir e escuitar,
todos venham ver e vejam
como meedem e varejam
ũu que quero decrarar.
Estes todos numerados
do conto dos escrivãaes,
do civel, crime contados,
e assi doutros julgados,
e tambem tabaliãaes.
Antre todos escolhido
é este que vos direi:
Pero Diaz é havido
por homem que merecido
tem a Deos e a El-Rei.
A Deos tem as perfundezas
onde mora Barrabas,
lá tem cosas e riquezas
e tambem nas defesas
que partem com Satanas.
E tem mais ũa herdade
que houve com condiçam
de nunca falar verdade,
nem tambem a seu abade
em nenhũa confissam.
Tem oficio na cozinha,
das caldeiras mexedor,
sobre lombos de sardinha
bebe mais çumo de vinha
do que leva ũ tenor.
Tem mais, rindo e folgando,
por homem de mui bom tento
suas bochechas inchando,
oficio d' estar soprando
o fogo d' u dam tormento.
E mais é pousentador
de todolos que lá vam;
com rosto triste d' amor
os recebe pola mão,
porque lá tem gram favor.
Os quaes leva como damas
sô color de repousarem,
em fogo de vivas chamas
lh' ordena barras e camas
por se melhor aquentarem.
É desposto pasteleiro
do Arcanjo Lucefel,
de Barzabu carniceiro,
magarefe verdadeiro,
grande meestre de cristel.
Item mais é triagueiro
dos abismos boticairo,
faz a prova sem parceiro,
dá-vos purga sem dinheiro,
que vos é mui gram repairo.
Nos abismos sempre mora,
mas vem cá fazer serviço
polo qual su' alma chora,
e diz que muito maa hora
se meteo no seu cortiço.
Ja mudou a condiçam,
a Deos graças todos demos,
convertido de rezam
vos escreve o si por nam
assentando falsos termos.
De roim tem aparelhos,
o esprito tem malino,
de maçãas, d' escaravelhos,
com pimenta de coelhos
vos faz ambar muito fino.
Outras mil composições
vos faz desta guisa feitas,
tudo passa com razões,
porque tem tais condições
destes casos mui perfeitas.
Sabe-vos mui bem o canto
dos erros judiciaes,
porque o seu corpo santo
tem-nos em custume tanto
que trespassa seus iguaes.
É-vos tam bom tintoreiro
que nam foi melhor Gabai,
por quem lhe dá mais denheiro
faz do preto, mui ligeiro,
ũu mui fino verdegai.
Luita bem polo travessa
e tambem por sacalinha,
por quem dinheiro arrevesa
sua mão com grande pressa
mete logo antrelinha.
Nega sempre a verdade,
escreve sempre mentira,
porqu' a condiçam da herdade
foi assi e bem se sabe:
perguntem Duarte Xira,
perguntem Sabastiam,
perguntem Heitor Lamprea,
se é este o escrivam
e mais falso e mais bulram
que no mundo se nomea.
Perguntem a seu cunhado
e a todos em jeral,
vejam ũs autos: damado
ũu judeu, que foi queimado
no Ressio por seu mal.
Perguntem a Dom Joham,
d' Abranches é nomeado,
e ò conde seu irmão,
e mais quantos aqui sam,
salvo Fernam Penteado.
Mem Roiz m' esquecia,
porque nam é magoado,
mas pero mui bem seria
perguntar-lhe o que sabia
deste corpo sem pecado.
Porqu' ee homem que diraa,
assi Deos em bem m' acabe,
o que disso saberaa
e nam no dovidaraa
de dizer-nos o que sabe.
Deos lhe dá por galardam
o inferno para sempre,
pero, com tal condiçam
qu' ele seja, e outro nam,
o qu' as almas atormente.
Ele diz que é contente
do partido aceitar,
polo qual quer entramente
cá andar antre a jente
começar-se d' ensaiar.
Ora leixemos estar
o qu' a Deos tem merecido,
venhamos a decrarar
o que lh' El-Rei deve dar
polo ter tam bem servido.
Deve-o primeiramente
mandar bem apousentar
na casa de muita jente,
onde estê seguramente
com bom grilhão e colar.
A qual casa lhe daram
por tres anos assinados,
porque crie bom caram,
na qual bem o serviram
com conservas de privados
este tempo, porque saiba
o bem dos atribulados
e porque parte lhe caiba
e goste daquela raiva que
têm os encacerados.
Depois dele haveram
piadade os humanos
e dahi o tiraram
com grande voz e pregam
que decrare seus enganos.
Levá-lo-am passeando
dereito por seu caminho,
de seu cabresto tirando
a guia que for guiando,
ond' estaa o pelourinho.
E depois que lá chegar,
sem detença nem tardança,
por se mais nunca coçar
ali lhe faram leixar
sua destra mão da lança.
Porque nam mate nem feira
ja mais dos que mortos tem,
em dia de terça-feira
se terá esta maneira
porqu' as jentes vam e vem.
E dali o levaram
com diligencia, cuidado,
aa parte do aguiam
e de juro lhe daram
ũa casa sem telhado,
que tem paredes e cume,
estaa posta em bom chão,
na qual nunca fazem lume
por rezam que nam defume,
mas enxugue os qu' ali vam.
Se s' houver por agravado
das condições da pousada,
mui prestes seja tornado
oo pelourinho e levado
aa cabeça ser cortada.
E feito em quatro partes
e cinco com a fresura,
daram fim a suas artes
e prazer a muitas partes,
a que ele deu tristura.
A cabeça lhe poram
escontra o vendaval,
aa porta da rolaçam,
e tambem o coraçam
com que cuidou tanto mal.
Seus quartos lhe partiram
pelas casas d' u julgarem,
porque qualquer escrivam
saiba que tal gualardam
lhe daram se assi usarem.
Isto tem bem merecido
a dous reis que mortos sam,
sem de quanto tem servido
nunca ver nem ter havido
nenhũa satisfaçam.
Mas praza ao Rei Devino
que ponha no coraçam
deste nosso rei benigno
que de tudo o que for digno
lhe mande dar gualardam.
76
TROVAS D' ALVARO DE BRITO
À MORTE DO PRINCIPE
DOM AFONSO, QUE
DEOS TEM.
Morto é o bem d' Espanha,
nosso Principe Real,
chora, chora, Portugal,
choremos perda tamanha!
E carpindo lamentemos
dous, em ũu triste responso:
rei e principe choremos
Dom Afonso, Dom Afonso.
Oh que morte tam estranha,
oh que nojo, oh que mal!
Chora, chora, Portugal,
choremos perda tamanha!
Oh que queeda tam sanhosa
pera chorar e carpir!
Oh que queeda tam danosa,
que nos fez todos cair!
Oh quanta nobre companha
sente tristeza mortal,
chora, chora, Portugal,
choremos perda tamanha!
Choremos, que tal caida,
por nossos grandes pecados,
nos leixa desemparados,
mata toda nossa vida!
Que pesar nos acompanha,
que nunca foi visto tal,
é perdido Portugal,
choremos perda tamanha!
Choremos ũu inocente,
ũa sancta creatura,
que por nossa desventura
morre tam supitamente.
Oh que mal, que nojo, sanha,
que desemparo mortal,
nota todo Portugal,
choremos perda tamanha!
Fim.
Morreo nossa defensam
e morreo nossa liança,
morreo nossa esperança
de nom vir a sogeiçam.
Assi nos desacompanha
nosso Senhor natural,
o Senhor celestrial
o receba em sa companha!
77
LOUVOR D' ALVARO DE BRI‑
TO A ŨA SENHORA.
Graça de bem parecer
vos dá tanto poderio
que se nam pode saber
dama que per merecer
vos nam cate senhorio.
Vossas grandes perfeições
mui sobejas, nam danosas,
faz de todalas nações
tirálas openiões
das que se têm por fermosas.
Quem poderá presumir
nacerdes tal creatura,
qu' o que mais vezes vos vir
nam saberaa resumir
vossa menos fermosura.
E que o mundo vos gabe
e por boa vos afame,
louvar tanto vos nam sabe
quanto louvor em vós cabe,
pero sobejo vos ame.
Dizei-me per que maneira
em vós fale ousadamente,
se das fremosas primeira
soes, e serês derradeira
mais afamada da gente;
nom resguardando pessoa
nacida, nem se conhece,
que per grado de tam boa
merecesse tal coroa
qual vos dada ser merece.
Nam pode nacido ser
dino de tanta vertude,
que soomente em vos ver
possa tal esforço ter,
que dante vós nom se mude.
Vossa gentileza tanta
e beldade nam cũmũa
aos presentes espanta,
e às fremosas quebranta
enveja de cada ũa.
Aos que se vai mostrando
vossa fremosa posança
as vertudes decrarando,
de todos sempre tomando
mais d' amor que d' esquivança,
faz cuidar nam ser tam forte,
obrando de tal crueza,
que vencer-vos possa a morte,
nom leixando quem soporte
tam sengular gentileza.
Ser fortuna tam ousada
é poder nom comparado,
nom devendo ser forçada
vida de todos louvada,
de louvor nom acabado.
Ca perdas tantas e taes
vossa morte causaria,
que a vida dos mortaes
com sas raivas desiguaes
morrendo melhor seria.
Tam perfeita pareceis
ao que menos parece,
que bem vem que tal sereis,
qu' aa mais fremosa fareis
por vossa vista refece.
Ordenada vossa cara
sobre todas graciosa
sem fim se mostra tam crara
que nossos olhos empara
de vista nam luminosa.
Tal pareceis em dormir
qual pareceis ser esperta,
sem de vós nunca partir
ũa frol, que consentir
nunca quis doutra referta.
Ja tal nacestes, que posto
as cousas mudança façam,
nunca mudaes vosso rosto
d' ũ parecer sobreposto,
que nacidos nam alca[n]çam.
Nome e grandes façanhas
de vosso bem tam profundo
conhecidas e estranhas
as de mais perfeitas manhas,
de sa fama neste mundo.
Tanto que de vós se faz
os homens tam engalhados,
que per natureza os traz,
que padecendo lhes praz
serem a vós sogigados.
Com fremosura sobeja
tanta bondade vos vejo
que meu sentido peleja
como mais perfeito seja
o servir que vos desejo.
E peroo merecedor
d' haver tanto bem nam sam
sem haver de vós favor,
presunçam de servidor
me requer alteraçam.
U nam mereço falar
em vós sendo tam perfeita,
e querendo-vos louvar,
cabe mais injuriar
segundo rezam dereita.
Saber tanto nam podendo
em tal caso ser agudo,
que em vos louvar querendo,
fale em vós nam desfazendo,
ficando menos sesudo.
O mundo vos amaraa
nom segundo vosso bem,
mas porem nojo vos daa,
desamado sempre jaa
vos amo mais que ninguem.
Afirmando mais agora
acerca daqueste verbo,
ja nam posso ser afora
de serdes minha senhora
e eu sempre vosso servo.
Fim.
Falar em vossa bondade
vosso estado mo defende,
por nam dar autoridade
ao que a humanidade
juizo dar nam entende.
E pois louvar-vos nam sei,
por louvor calar me quero,
peroo se cousa falei
em que desprazer vos dei
perdam peço qual espero.
78
OUTRAS SUAS A ESTA
SENHORA.
Ja cousa nam sei que fale
acerca de vos amar
e menos nam hei que cale
nem que me possa prestar.
Fortuna é contra mim,
vós também,
a vida que me sostem
é pior que minha fim,
que tarde vem.
Rezam quer dezir-vos eu
sete sentimentos tristes,
que no sentimento meu
sento que vós repartistes.
Estes que sam departidos
por escrito,
afirmados por meu dito,
com força de meus sentidos
e esprito.
O primeiro sentimento
é o ver, e nam vos vendo,
dobrar meu padecimento
apartado de vós sendo.
Ca por vos nam ver s' aterra
minha vida,
com pena sobrecrecida
de nojos, danos e guerra
estroida.
O sentimento segundo,
desejo sem desejar
mais cousa daqueste mundo
que vosso gualardoar.
E desejando me fica
seu contrairo
movimento em desvairo,
que de todo danefico
meu repairo.
O sentimento terceiro
é falar nam vos falando,
havido por cativeiro
em que vivo pejorando.
Que sento, se vos falasse,
a querela
que sofro por vós, donzela,
qu' em falando se tirasse
parte dela.
E o sentimento quarto
é mortal temor, temendo
perder-vos donde nam parto
serviço forçar fazendo.
Que por vosso me obriguei
de guisa tal
que vida sem ser leal
é pena que sentirei
mais que mortal.
E o sentimento quinto,
contemprar contempraçam
em vosso estado destinto
de vossa conversaçam.
Donde gram pena m' atura
mui danosa,
sabendo que soes fremosa
sobre toda fremosura
e de mim sanhosa.
Sentimento seisto tenho
receo de falecer
este viver que mantenho
e perda vos receber.
Perda de tal servidor
é de sentir,
falece em vos servir,
sem outro tal amador
restetuir.
O sentimento seteno,
querer querendo prisam,
u forçadamente peno
sem sair de sogeiçam.
Ca por meu contentamento
descontente,
vivo vida padecente,
nam podendo ser isento
nem servente.
Fim.
Todos estes sentimentos
sento com vossa crueza,
nam por meus merecimentos,
nem sem vossa gentileza;
mas assi de nacimento
sam fadado,
que per caso m' ee forçado
conseguir o mal que sento
sem meu grado.
79
COPRAS D' ALVARO DE BRITO
PESTANA, ESTANDO PERA
SE FINAR.
Lá t' arreda, Satanas,
Cristo Jesu, a Ti chamo,
a Ti amo,
Tu, senhor, me salvarás.
O sinal da cruz espante
minha torpe tentaçam,
com devaçam
espero d' ir adiante.
Interrogaçam a Nossa
Senhora.
Ó Virgem madre sagrada,
de sobre todos Deos vivo,
eu, cativo,
Te chamo minha vogada.
Em Ti foi humanidade
unida com Deos eterno,
do inferno
me livre ta santidade.
Que senta grave paixam
d' homem fraco, pecador,
merecedor
de maior perseguiçam.
Se contempro com bom tento
que Deos quis morte tomar
por me salvar,
meu pesar por prazer sento.
Aquestas taes grorias vãas,
que o mundo dá e toma,
sam em soma
todas tristes e vilãas.
Enganosas fantesias
sam dominios, riquezas,
e tristezas,
consomidas senhorias.
Procuraram meus desejos
d' haver premios mundanos:
muitos annos
com trabalhos mui sobejos,
servi e segui mortaes;
deram-me por gualardam
fraca raçam,
a menor de meus iguaes.
Dá-me Deos mais que mereço,
pois que me dá conhecer
seu poder
e mais bem do que mereço.
Que s' i muito mais me dera,
de mais me tomara conta,
tal afronta
grandes danos me fizera.
Mas contudo nam m' escuso
de pecar, que nam m' atrevo
quanto devo
a Ti, Deos, a que me acuso!
Quantas mercês me tens feitas
sam de mim mal gradecidas,
mal servidas,
recebidas, nam aceitas.
Se pudesse sujuzgar-me
ò que razam me convida
nesta vida,
folgaria apartar-me
das afrontas mundanaes,
que me revolvem o siso,
sem aviso
dos acidentes mortaes.
Vou-me de dia em dia
atras esta vaidade,
de vontade,
esperando melhoria.
Sam no cabo da jornada
pera caminho trabalhado,
desviado
da passajem desejada.
Em tal medo m' ofereço
aa mui alta magestade
da Trindade,
por pecador me conheço.
E pois Lhe prouve salvar
e remir os pecadores,
porque louvores
folguei sempre de Lhe dar.
Dos que ham mundano bem
poucos a Deos agardecem,
nem conhecem
donde nem como lhe vem,
nem que o ham de leixar,
que seja seu patrimonio
com demonio
que nam cansa de tentar.
Asperezas sam mudanças
de pecados a vertudes
e saudes
sam as boas confianças.
Vertuosa continencia
com boa conversaçam,
com salvaçam,
recebem da Providencia.
Mas que farei eu, sugeito
a minha vontade maa,
que quer que vaa
errado contra dereito.
E em mal endurecido,
coitado, nam sei que faça,
se de graça
mais certo nam sam tangido.
Lembra-me tempos passados
todos de triste viver:
sei morrer
senhores d' altos estados,
sei morrer o nosso Rei
Dom Afonso mui amado,
como criado
sa morte senti, chorei.
E que seja choro vãao
e temporal desconforto,
sei ser morto
mui catolico cristão.
Torno-me deste caminho,
consiro em minha morte
de que sorte
me saltará no focinho.
Fim.
Na qual partida confio
em Deos trino, criador,
meu Redentor,
com que m' abraço e lio,
e protesto sempre crer
a santa fe firmemente,
mais contente
de prove que rico ser.
80
CANTIGA D' ALVARO DE BRITO POLO
PRINCIPE DOM AFONSO, QUANDO
ESPERAVA POLA PRINCESA, E
ESTE PRIMEIRO PEE, QUE
DIZ SIM PECAR, AS MES‑
MAS LETRAS DIZEM
PRINCESA.
Sin pecar
vos amo más que mi vida,
si tarda vuestra venida,
¿ que haré al dessear?
San todos mis pensamientos
em vos contemplar muy bivos,
siento graves sentimentos
de gran soledad esquivos
por amar
vuestra beldad infinda.
Si tarda vuestra venida
¿ que haré al dessear?
81
ALVARO DE BRITO
A MECIA D' ABREU.
Vossa vergonha m' apressa,
fremosa prima d' Abreu,
estas cinco da promessa
nam digaes que as fiz eu.
Louvarei vossa figura
em todas tee derradeira,
digo logo na primeira
que vossa firam fremosura
das damas é cobertura.
Na segunda que direi?
Ca por muito que vos gabe,
acabar nam poderei
quanto louvor em vós cabe.
Do que muito soes louvada
todos o dizem de praça,
que vossa comprida graça
é cousa nam comparada
que per Deos foi ordenada.
Na terceira se requere
decrarar vossa vertude,
a lembrança me refere
aqueste que sobre acude.
Vossa bem aventurança
naquesta presente vida
vos deu fora de medida
acabada temperança,
nom de fengida mostrança.
Nam posso louvor dizer
na copra presente quarta
que possa satisfazer
ao mais qu' em vós s' aparta.
O Senhor Deos vos quis dar
vertude de castidade
com tanta honestidade,
que por tam curto falar
se nam pode decrarar.
Fim.
E também na copra quinta
ũu louvor tratar vos quero,
queira Deos que vos nam minta
em quanto dizer espero:
sobre mui grande bondade
sempre jamais vos atura
continuada mesura
e tambem leda vontade
de sempre falar verdade.
82
GROSA D' ALVARO DE BRITO,
SOBRE TERRIBLES COI‑
TAS DESSEO.
Terribles coitas desseo,
vós nunca me daes vagar,
feris-me tam sem receo
que minha morte nam creo
que possa muito tardar.
Amo e praz-me servir
a quem meu querer ofende,
por me dar nojo sentir,
minha vontade partir
de a servir nam entende.
Linda dama, cujo sam,
yo vos quero preguntar
se vos parece razam
trabalho sem gualardam
me quererdes ordenar.
Como quem gram pena sente,
piadade vos demando
ante que mais s' acrecente,
pois vertude nam consente
sem culpa viver penando.
E com meu grande penar,
pregunto a vós, senhora,
se me podereis deixar
servir-vos sem pena dar
a quem tanto vos adora.
Cabo de sengular grorea
seria ja pera mim,
dina de ser em memoria,
haverdes vós por vitorea
desordenar minha fim.
Muitas vezes consirando
em vossa gram fermosura
u de vos ver m' apartando,
finadamente amando,
maldigo minha ventura.
Que de vos ver e falar
dias e tempos m' arreda,
mui caros de soportar,
sabendo que meu pesar
vos nam faz triste mas leda.
D' u partir com desatento,
sem vós segui minha via,
mas com gram padecimento
escrita no pensamento
fuestes em mim companhia.
Tenho levada tal pena
desejando vossa vista
que tristeza nam pequena
minha vida desordena
vós de mim sempre benquista.
Mostrastes crueza tanta
contra mim vosso sogeito,
que meu sentido s' espanta
e o que mais me quebranta
dardes contrairo respeito.
Mas agora bem seria
de cessar meu mal esquivo,
pois que vossa senhoria
sabe que nam poderia
partir de vosso cativo.
E que de vós recebesse,
por de mim serdes servida,
gualardam qual merecesse,
porque menos padecesse
em vos amar minha vida.
Que sequer de tanto mal
que me fossedes dexando,
porque meu dano mortal
nam fosse descomunal
mais desfavor esperando.
Sam a taes termos chegado,
por vossa crua vontade,
que ja desassemelhado
ando tam triste tornado
que é d' haver piedade
de mim vosso, nam alheo,
se vossa mercê o olhar
polo mal em que me veo,
senhora, com outro meo
me deveis remediar.
Tenho-vos bem refertados
todos meus merecimentos
polos trabalhos passados
em lugar de gasalhados
com mui asperos tormentos.
E peroo meu refertar
acende mais padecer,
pois me nam aconselhar,
yo vos quero preguntar
que querês de mim fazer.
Fim.
Minha grosa s' acabando
daquesta velha cantiga
a tempo que nam abrando
meu triste cuidado, quando
mais força d' amar obriga m' obriga.
Ó raivas descomunaes,
graves coitas de pesar,
peço-vos que me digaes,
enquanto me nam mataes,
se me podereis deixar.
83
PREGUNTA D' ALVARO
DE BRITO.
Dama que faz gasalhado
e favores
a galante por amores,
que é com outra casado,
pregunto se faz pecado
ou vertude,
todo cortesam m' ajude
sem falar afeiçoado.
Resposta do Coudel-moor.
Quem mais perde por servir
mais obriga sua dama,
polo qual rezam a chama
a seu mal nam consentir.
Mas ante todo favor
lhe deve ser outorgado,
ca dito temos d' autor
que Dios al buen amador
nunca demanda pecado.
84
CANTIGA D' ANTOM DE MONTORO
EM LOUVOR DA RAINHA
DONA ISABEL DE
CASTELA.
Alta Reina soberana,
si fuerades ante vos
que la hija de Sanct' Ana,
de vos el Hijo de Dios
rescibiera carne humana.
¡Oh bella, sancta, discreta,
con espirencia se aprueve
que aquella Virgem perfecta
la divinidad ecepta
esso Le deveis que os deve!
Y pues que por vos se gana
la vida y gloria de nos,
si no pariera Sanct' Ana
hasta ser nascida vos,
de vos el Hijo de Dios
rescibiera carne humana.
85
DE MONTORO, SOBR' ESTA
CANTIGA QUE FEZ
COMO HEREJE.
De vós, Montouro, brosnada
vi esta vossa cantiga,
que da Toura mui antiga
me parece ser forjada.
Polo qual vos ousaria
de dizer, por esta via,
qu' o que tenho de vós visto,
crerdes pouco em Jesu Cristo.
menos em Sancta Maria.
Que trovês tam d' avantajem,
como tendes grande fama,
tras a orelha achei escama
donde vem vossa prumagem.
Vós mostraes por vossa mão
que enxertado em cristão
soes em fazer ũu tal gabo,
tentando como diabo
a Rainha tam em vão.
Vós de vós mostraes agora
vosso mal donde vos vem,
igualando o mal co bem,
a serva com a Senhora.
Mas se vós dissereis
tal nos reinos de Portugal,
logo foreis, Dom Roupeiro,
cum baraço d' azeitero
oo fogo de Sant Barçal.
Vós a filha de Sanct' Ana
nomeastes tam em soma,
que daqui craro se toma
vossa lingua ser marrana.
Tal modo de brasfamar
eu m' espanto Deos passar,
por fazerdes tal parelha,
como a boca tras a orelha
vos nam pôs em no falar.
Vós na lei soes homem velho
da cabeça atee òs pés,
mui amigo de Mousees
e novo no Evangelho.
Vosso siso parvoeja,
pois que a Virgem coteja
co a serva que A roga,
sendo doutor na sinoga
sabeis pouco da igreja.
Isto adevinho co dedo,
porque o vejo por olho,
que nunca houvestes remolho
da pia, tarde nem cedo.
Ca segundo os sinaes
que de vós cá nos mostraes,
que a todos al pareça,
sem capelo na cabeça
me parece que andaes.
Pois em fim de vossos dias
mostrais o fio do pano,
nam digo que soes marrano,
mas neto de mil judias.
Se taes cousas acontecem
e passam, como parecem,
sem castigos, taes louvores,
feitores, consentidores,
igual a pena merecem.
Como homem mui increo
comparastes tam em vão,
como quem com sua mão
cuida de tomar o ceo.
Quem de Deus foi concebida,
d' ab enicio escolhida,
fazeis vós igual a sorte,
pondo a vida com a morte,
a morte com nossa vida.
A Virgem sancta e pura,
muito mais que dia craro,
comparaes com quem comparo
a ũa triste noite escura.
Como campo com a serra,
ou de grande paz da guerra
maior deferença tem
do que é do mal o bem,
ou dos altos ceos a terra.
Fim.
Quanto menos ũ ouçam
é de Deos em grao perfundo,
tanto menos todo o mundo
é em sa comparaçam.
Pola verdade se prove
que tudo quanto se move
à Reinha de Castela
é tam pouco pera ela
como de Deos a ũu prove.
86
GROSA DESTA CANTIGA DE MON‑
TORO, FEITA POR ALVARO
DE BRITO, ENDEREN‑
ÇADA A NOSSA
SENHORA.
Alta Reina soverana
Quem, em os ceos nem na terra
nam cabe, em Vós s' encerra
tomando carne humana,
Deos e homem se resume,
vindo do mui alto cume,
do gram seo de Deos Padre,
cuja filha soes e madre,
crara luz de nosso lume.
Si fuerades ante Vos
naqueste mundo nacida,
salvaçam de luz de vida
mais cedo dereis a nós.
De Vós nossa redençam,
de Vós nossa salvaçam,
Virgem sancta, mui honesta,
de Vós veo manifesta remir
nossa geeraçam.
Que la hija de Sanct' Ana
Vos chamem mui excelente,
criada primeiramente
fostes da vida mundana.
E provo-o por Salamam:
ante secula creata sam,
e assi o cremos nós
que depois de Deos soes
Vós sobre quantas cousas sam.
De Vos el Hijo de Dios
quis nacer, por nos salvar
humana carne tomar
do virginal ventre de Vós.
Vós, Senhora, soes o manto
que nos livra de mal tanto
por serdes do Filho madre
e a filha de Deos Padre,
esposa do Esprito Sancto.
Recibiera carne humana
nam podera Deos fazer
senam d' osoluto poder,
naquesta vida mundana,
senam Vós que em sa sina
antr' as molheres mais digna,
chea de graça comprida,
de Deos Padre concebida
ficando Virgem divina.
Oh bella, sancta, discreta,
Vos fez Deos per excelencia
da devinal Providencia
arca cerrada, secreta.
Depois de Deos a melhor,
depois de Deos a maior
das grandezas em grandeza,
sobre todas em alteza
depois de Nosso Senhor.
Con espiriencia se prueve
per vossa grande humildade,
per vossa gram piedade,
que de Vós nunca se move.
Per cujo merecimento
foi de Vós o nacimento
do Filho de Deos eterno,
que das penas do inferno
foi o nosso livramento.
Aquella Virgen perfecta,
Madre de nosso Mexias,
de que falam as profecias,
que foi de Deos escolheita,
esperança dos pecadores,
perdam de nossos errores,
Rainha de todolos Anjos
e dos Santos e Arcanjos,
remedio de nossas dores.
La divinidad ecepta
nem nos ceos, nem neste mundo,
de tam alto bem profundo
ninguem foi tanto perfeita,
ninguem foi em humanidade
de tam sancta santidade,
humana tam gloriosa,
tam humilde e graciosa,
cuberta de novidade.
Esso Le deveis que Os deve
ao mais perfeito Bem,
que ninguem, se Vós nam, tem,
nem teraa nem nunca teve.
Ca Vós soo sem ter igual
Vos fez Deos senhora tal,
tam fermosa e excelente,
mais que sol resprandecente,
fonte crara, devinal.
Y pues que por Vos se gana
nossa vida, nossa groria,
escusado é memoria
de rainha castelhana.
Porque hoje vivirá,
de menham nada seraa,
e todo vivo contempre
qu' o vosso louvor por sempre
jamais nunca cessaraa.
La vida y gloria de nos,
Rainha de todos e minha,
de nossos males meezinha,
nam é outrem senam Vós.
Vós soes luz de nosso dia,
conforto e alegria
dos tristes desconfortados,
esperança dos errados,
que nos salva e que nos guia.
Si no pariera Sanct' Ana,
nam leixareis de nacer,
pois ante do mundo ser,
ereis divina, humana.
Sem ser nacida, criada,
ereis ja sancta chamada
antes do mundo ser feito,
Senhora, per cujo respeito
soes dos Anjos adorada.
Hasta ser nascida Vos,
os Sanctos Padres estavam
no limbo, donde esperavam
redençam de todos nós.
Vós mostrastes a carreira
da luz clara, verdadeira,
que nos abrio o caminho
daqueste mundo mizquinho
pera a gloria mui inteira.
De Vos el Hijo de Dios,
por repairo e salvaçam
da humanal geeraçam,
tomou carne humana em Vós.
De Vós quis por nos remir
que podessemos sentir
esta grande maravilha:
que fosseis madre e filha
d' O qu' ouvesseis de parir.
Fim.
Recibiera carne humana,
de ninguem Deos nam pudera
senam de Vós, que fizera
sancta, divina, humana.
A Vós dêm todos louvores,
Rainha de reis, senhores,
perdam de nossos pecados,
salvaçam dos condenados,
esperança dos pecadores.
87
RA DONA LIANOR DA SILVA,
PORQUE EM TEMPO QUE
ELE A SERVIA SE
CASOU.
Pois que dama tam perfeita
consentio de a casarem
e quis ser d' outrem sogeita,
os servidores qu' engeita
têm rezam de praguejarem.
Oo crueza tam sobeja,
se for doona tal donzela,
quanto lhe desejo seja:
praza a Deos que tal se veja
como m' eu vejo por ela.
Seja muito na maa hora
um tam triste casamento,
pois se vai do paço fora
a senhora, minha senhora,
por meu mal e seu que sento.
Eu sento ver-me morrer,
sento vê-la enganada,
sento vê-la padecer
e sento vê-la vender
sô color d' encaminhada.
Pois se pôs em tal afronta
de querer saber de rocas,
de meadas tome conta,
e saiba quanto se monta
aa noite nas maçarocas.
Ainda a vejam coçar
seu marido na cabeça,
ainda a vejam criar
galinhas e as lançar
porque mais doona pareça.
Vaa morrer, pois me matava,
antre os soutos laa na Beira,
pois servi-la nam prestava,
pene laa quem pena dava
cá oo seu Nuno Pereira.
Donzela mal maridada,
que se nos vai desta terra,
Deos lhe dê vida penada,
porque lhe seja lembrada
minha pena lá na serra.
Pois que leixa com tal chaga
o meu triste coraçam,
eu lhe lanço mais por praga
que chaves na cinta traga
com ceitis em gram bolsam.
Pois se nam doe do marteiro
que me daa e nam lhe pesa,
ainda conte dinheiro,
e saib' eu qu' oo despenseiro
toma a conta da despesa.
Que viva sempre sentido
co cuidado sempre nela,
vingar-m' -á laa seu marido,
que vestido e desvestido
ha-de ter poder sobr' ela.
Pois casou com tal trigança
quem a si mesmo mal quer,
que me tirasse esperança,
nom quero maior vingança
qu' oo chamar minha molher.
Eu vivirei padecendo,
nunca mais servirei dama,
mas por s' ir arrependendo
ele com ela jazendo
lhe vir as costas na cama.
E quando se lhe virar,
diga-lhe: — Quero dormir!
Pola mais desnamorar
comece logo a roncar
e ela nom ouse bolir.
Por alcala vinho beba
com door de madre que tenha,
porque mais pena receba,
ele lhe tenha manceba
com que nunca ant' ela venha.
Tenha candea d' azeite
e lençoes gordos na cama,
crie seus filhos a leite,
antr' eles sempre se deite
que pareça mãi e ama.
Perder-m' -ei, mas mais perdida
será quem tal fim se deu,
cad' ano venha parida,
Deos lhe dê tam triste vida
com' eu tenho polo seu.
E pene tam de verdade,
com' eu peno cada dia
polo seu com saudade,
porque lhe doi a vontade
de quanto mal me fazia.
O marido lh' avorreça
e ele lhe queira mal,
um ò outro mal pareça
e com saudade padeça
por vivermos por igual.
Pois que minha vida ja
de todo prazer me priva,
folgaria qu' ela lá
padecesse, pois me dá
saudade com que viva.
Cabo.
Oo Furtuna, tu que mudas
na cousa noutra cousa,
daa doenças mui agudas
a que nam prestem ajudas,
nem jolepes oo de Sousa.
Porque nam possa casar
esta senhora de todas,
de si veja mao pesar
quem cantar e nam chorar
naquestas tam tristes vodas.
Ajuda de Francisco da
Silveira.
Eu teequi andei calado,
sem querer pragas lançar,
mas pois vós, senhor cunhado,
fostes lebre levantar,
quero-m' eu dotra vengar.
Sej' oo galante ipotente,
seja beijador mortal,
nunca sãao, sempre doente,
diante nam tenha dente,
nem queixal.
Na boca tenha tal cheiro,
que à legua nam s' aguarde,
e por lhe dar mor marteiro,
sempre lh' estê no poleiro
sem fazer cousa qu' alarde.
As gengivas tenha taes,
qu' arrevesse quem lhas vir,
por inda ver penar mais
quem minhas dores mortaes
fez sobir.
Seja mais tam namorado,
qu' haja ceumes do vento,
por qualquer olho lançado,
que lhe lance o convidado,
a meta logo a tormento.
Sobr' isto sempre avorrido
lh' estê na mesa e na cama,
seja antr' os homens corrido
e na guerra esbaforido
e de maa fama.
Ande vestido d' azul,
babe-se por mais arreo,
seja sem conto taful,
do bem parecer o sul,
e dos feos o mais feo.
Tenha tortalas queixadas,
cervees de cote traga,
camisas nunca lavadas,
da terra mal espulgadas
por moor praga.
Barrete pardo, frisado,
lhe vej' eu trazer em Junho,
e sobre bem encalmado
da grenha refoucinhando
co ela jogue de punho;
o cabelo sevilhano,
borzeguis marroquis roxos,
morda sempr' o castelhano,
vej' oo eu antes d' um anno
dos pees coxos.
Tenha cara tam medonha,
que supra por biarooz
alugue-a por carantonha,
porque nas festas se ponha
com ela medo feroz.
Seja tam mal assombrado
que dê olho a quem o vir,
çapato preto calçado
lhe vej' eu e engraxado
por mais rir.
Traga mais gibam d' Irlanda,
na moor força do Verãao,
com meas mangas d' Holanda,
por lh' a calma ser mais branda,
quando ventalo soãao.
Oos domingos calças bragas
do mesmo gibam aferre,
peugas brancas mais traga,
e por moor praga, as pragas
nom nas erre.
Por sem medida goloso
o vej' eu a todos tê-lo
e por d' outrem ja esposo
veja-lh' eu chamar potroso
perante ela e ele sê-lo.
Saib' eu mais que em seu logo
lhe meta quem perafuse
e por Deos fazer meu rogo
o roncar co sal no fogo
nam s' escuse.
Cabo.
E por mais desaventura
sua e vingança minha,
vej' eu sua fermosura
por este desta fegura
d' amores ser perdedinha.
Veja morto meu cuidado
por sua door nam sentir,
ou entam ja soterrado,
por nam ver meu mal dobrado
se tal vir.
Ajuda de Jorge da Silveira.
Se moiro por vos casardes,
se pena nisso recebo,
nom é senam por leixardes
os que deixaes, e tomardes
tal mancebo.
Se tomáreis cortesãao
louçam, gentil e galante,
nam praguejara meu irmão
contr' oo triste castelãao
de mao sembrante.
Por vós fezistes lembrar
a gentil mal maridada,
por vós havereis cantar,
e vós deveis de chorar
tal errada.
Sem ventura soes nacida
e eu por vos conhecer,
triste ee ja nossa vida,
seja jaa, pois perdida
quereis ser.
Cabo.
Milhor foreis vós, senhora,
como ereis sempre minha,
que ser sogeita agora
de quem vos ha-de ter fora
semp' em vinha.
Vós adubar-lh' a fazenda
e ele nam cure de vós,
nele nam haja emenda
e por ceumes qu' entenda
nos vingu' a nós.
88
TROVAS QUE NUNO PEREIRA
MANDOU A FRANCISCO
DA SILVEIRA.
Meu senhor e meu cunhado,
depois que vim de Lamego
fui descansado,
porque dei a meu cuidado
desengano d' assessego.
E sabeis em que maneira?
Nam me dá ja que me dem,
qu' aa derradeira
quem nam tem pees d' oliveira
nam cuide que nada tem.
Lá lograae vossos serãaos,
vossas damas e privanças
cos cortesãaos,
mas bom par de bois nas mãos
val seis pares d' esperanças.
Tambem sei que o sabeis
com outras cousas sabendo,
ja m' entendeis,
na reposta nam canseis,
ca tambem ja vos entendo.
Oh que enveja vos hei
a empuxõoes de porteiro!
Oh quam bem sei
ũu meter diante El-Rei
e entrar o derradeiro!
Hei mui grande saudade
do estar nũu pee aa mesa,
mas, na verdade,
nom ter muitos nũ herdade
d' oliveiras mais me pesa.
A vós faça Deos privar,
a mim guarde e defenda
de desembargar
e d' Alcaçova falar
e de Castro na fazenda.
Mais me quero ũ soo conchoso
de laranjas e limõoes
e com repouso
que preguntar onde pouso
oo d' Abreu sobre paixõoes.
Privar em cas da Rainha
Deos vo-lo deixe fazer,
e a mi na vinha
e regar na almoinha
em que tenho moor prazer.
Deos vos dê muita privança
com El-Rei nosso Senhor,
e a mi lavrança,
aguilhada em vez de lança,
vós paçãao, eu lavrador.
Se andaes lá namorado
faça-vos mui boa prol,
ca meu cuidado
é em fazer bom valado
e lavrar de sol a sol.
Por ter mais folgada vida,
lavro, cavo, quanto posso,
naquela ida
soube certo n' eespedida
qu' ee milhor o meu qu' oo vosso.
Pregunta.
E vós lá galantear
e eu com foce e padam,
vós damejar,
eu enxertos enxertar,
quem teraa menos paixam?
Vós na corte cortesãao,
eu com meu fogo e meu lar,
vós louçãao
e eu com açor na mãao,
qual é mais certo folgar?
O gingrar do meu caseiro
co chiote que traz roto,
par Deos verdadeiro,
qu' hei por prazer mais inteiro
qu' ouvir motes oo Zeimoto.
Lançar pulhas òs d' estrada,
tornando peroo casal,
e aa entrada
deitar a mãao pola quejada
nunca vistes prazer tal.
Cabo.
Ora lá vos avinde jaa
com vosso paç' em bo' hora,
que nam me daa
ja do bem nem mal de laa,
pois casou ũa senhora.
Deixai-me cá cos ceifõoes,
deixai-me cos podadores,
e sem paixõoes;
pera mim quero podõoes,
vós andai, senhor, d' amores.
89
PARENTESCO DE NUNO PEREIRA
COM DONA GUIOMAR DE CASTRO,
PORQUE QUERENDO-A SERVIR
LHE DISSE QU' ERAM PA‑
RENTES SEM O SER.
Que nós nos nam conheçamos
de tam estreita amizade,
senhor' , ambos nos criámos,
vós e eu nessa cidade.
E vosso pai e o meu
quatro giolhos, e nós
outro tanto, vós e eu,
soes a mi e eu a vós.
E a vossa mãi e a minha
ambas nũ lugar moraram,
ambas viram a rainha
e ambas se ja finaram.
Tambem eram nossos padres,
entrando por outro conto,
maridos de nossas madres,
nem mais nem menos, nem ponto.
E sam quasi vosso irmão,
ambos de ventre nacemos,
com cinco dedos na mão,
vede bem quanto seremos.
Ambos vimos de lugar
de que vindes, de que venho,
nem podiamos casar
se tivesseis o qu' eu tenho.
Fim.
Ambos d' ũa cousa somos
lá da parte decendentes,
e somos quanto nós somos
e ambos muito parentes,
de parentesco chegado.
Por esta mesma rezam,
como vos ja vai contado,
soes-me vós quanto vos sam.
90
TROVAS DE NUNO PEREIRA.
Ũu bem de muito prazer,
que ventura por si deu,
ordenou por caso seu
de se perder.
Todo bem que dá ventura
sempre dá voltas de mal,
muitas vezes caso tal
que pouco dura.
A Fortuna sempre cata
casos, tempos desvairados,
pera dar novos cuidados
com que mata.
O modo que sempre tem
ee que no tempo milhor
ali volta ser pior
o seu bem.
Sem cuidado do que calo,
sem me tal lembrar andava,
muito menos m' acordava
tal abalo.
A ventura mui sabida
me deu bem com sua ajuda,
o qual bem logo se muda
em triste vida.
Oh quem fosse o que falar
ũu tal caso bem ousasse,
que me tanto nam matasse
o sospirar!
Oh se nam tivesse pejo
com que descanso tivesse,
que alguem dizer podesse
meu desejo!
Que fará quem nada não
a ninguem ha-de dizer
o consigo soo sofrer
tal paixam!
Que grande padecimento,
que cousa pera sentir,
padecer e encobrir
o que sento!
Sinto mortal saudade
padecida só comigo,
sinto cousas que cá digo
na vontade;
sinto dor, mal encuberto,
que dizer nam ousaria,
meu descanso qual seria
não é certo.
Meu sentido nam repousa,
todo bem se me desvaira,
ũa cousa m' ee contraira
doutra cousa.
Tudo vejo ser contrairo
em a contra do que quero,
vejo morrer o qu' espero
sem repairo.
Pera mim morte s' ordena,
pera mim prazer se peja,
que direi que mais nam seja
de gram pena?
Pois nam deve de ser dita,
nem aproveita ser calada,
nom deve de ser falada
nem escripta.
Este mal escuro, forte,
tam caro de resestir,
faz viver e consentir
nova morte.
Porque moiro cada dia
sem saber aquesta fim,
o que vem melhor a mim
se me desvia.
E com isto mui cuidoso,
agastado d' esperança,
e cuidando, na lembrança
dovidoso.
E com estes sentimentos
sentidos com muito medo,
pola parte do segredo
fingimentos.
Que cuidado, que sentido,
pera quem em si padece
e que de fora parece
ser fengido!
Mostrando bravo mal manso,
com quanto sentir o tomo,
sem saber quando nem como
ter descanso.
Cabo.
Que descanso tomarei
ou que modo posso ter,
pera menos triste ser,
que o nam sei.
Senam se sonho sonhasse
que me via satisfeito
e no sonho bem perfeito
sempre tal sonho durasse,
que jamais nunca acordasse.
91
OUTRAS SUAS QUE ACABAM
SEMPRE EM DOS.
Que cuidados tam cansados
e tam sentidos,
e sentidos trabalhados
dos cuidados
donde nunca são partidos.
Meus desejos nam compridos
sam dobrados,
cada dia mais crecidos,
repartidos
em mil modos desvairados.
Os prazeres desejados,
escondidos,
porque sempre sam lembrados,
os passados
com mais força sam queridos.
Lembranças dos recebidos,
apartados,
sam sospiros e gemidos
nam ouvidos
da parte por quem sam dados.
Os esforços esmerados,
prometidos,
de muitas contras cercados,
conquistados,
de receos combatidos;
doutra parte socorridos
e esforçados,
nos esforços dos ouvidos,
merecidos
em nos ver contrariados.
Muitos dias mal gastados,
padecidos,
sospirados, enfadados,
e mostrados
mil prazeres infingidos.
Oh que dias tam perdidos
e tam minguados,
de mim mesmo perseguidos
e avorridos,
qual pior, pior contados!
Meus olhos nam sam culpados
mas vencidos,
meus dias foram fadados
e julgados,
pera pena ja nacidos.
Sigo caminhos seguidos,
despovoados,
em que caem e sam cahidos
e feridos
os presentes e passados.
Cabo.
Os dos que vam apartados
sejam lidos,
e nos cabos ajuntados,
concertados,
em cada regra metidos.
Galantes mui ressabidos
e avisados,
nam leixeis vós esquecidos,
nem partidos,
os dos dos cabos riscados.
92
TROVAS DE NUNO PEREIRA
A ANRIQUE D' ALMEIDA,
QUANDO VEO DE
CASTELA COM
O DUQUE.
Portugues ou castelhano
vós venhaes muito embora,
sei que vindes mui ufano
por ũu anno
qu' andastes de Moura fora.
Da Veiga lá de Granada
e das estejas da guerra,
vos nam hei ja d' ouvir nada,
nem d' embaixada
que trouxesseis eesta terra.
Nem das damas, seus amores,
nem dos que têm grandes rendas,
nem quais eram corredores,
nem quais senhores
alçaram primeir' as tendas.
Da Rainha nem d' El-Rei
nam quero nada saber,
mas sabê vós que vos sei
e direi
quanto haveis de fazer:
por isso compre calar
perante mim quando for,
portugues sempre falar,
e nam tomar
castelhano sem sabor.
Nam contar jente por lanças
antemãao vos logo aviso,
contai de vossas privanças
e esperanças
com que des infindo riso.
Quem me desse jaa metade
do que dizeis qu' esperais,
mas porem vós, na verdade,
ai Dom Frade,
quam contrairo vos cuidais.
Oh como sei que sabeis
o de laa tam bem contar!
Que envenções que fareis
e direis
que Castela nam tem par!
Fingireis de gram privado,
e falando com sospiros
vos venderês por honrado,
mal pecado,
olhai se vos sei os tiros.
Fim.
Sei que vindes mui sentido
por trovas de Joam de Mena,
oh homem grande, comprido,
soes perdido
nesta terra qu' ee pequena!
93
A ANRIQUE D' ALMEIDA, POR‑
QUE LHE DAVAM ŨA
IGREJA COM O
HABITO.
Muito embora vos seja,
na boa hora e no bom dia
vejaes vós vossa igreja,
comenda ou abadia.
E diria vosso ditado:
comendador, priol, abade,
ou em Cristos feito padre,
homem comprido d' estado.
Eu estando em Marvam
estas novas fui saber,
bem podeis cuidar que sam
pera mim muito prazer.
Quando vou nisto cuidar,
acho ũu caso mui profundo
irdes igreja tomar,
pois trovar ha i no mundo.
Quando igreja se vos dava,
igreja por vosso mal,
dizei-me se vos lembrava
que trovavam em Portugal;
e qu' ha i o moor Coudel,
e Francisco da Silveira,
e qu' ha i muito papel,
e ha mim Nuno Pereira.
Porem se foi por repairo
d' haverdes algũ dinheiro,
é mui bom serdes vigairo
e priol e reçoeiro;
sancristam apresentado,
prioste, comendador,
organista, contratenor,
conego, lecenceado.
Ou beato ou beguino,
segundo ja soes dioso,
trabalhai por serdes dino
do reino mais avondoso.
Vereis ora quant' andastes
co marido da senhora
e ela desfechou agora
com provincea que ganastes.
Sobre serdes de quorenta
annos com cinco contados,
parecendo de satenta,
e mais por vossos pecados,
d' haver honra, denidade,
bem a tendes merecida
bem servistes vossa vida
em paço de vaidade.
Vesti-vos de gabardina,
garnacha do mesmo talho,
com prosas, Salve Regina,
grandes contas de bugalho.
Ponde acipreste e palmas
na provincea que vos deram,
fazede como fizeram
os qu' haviam suas almas.
Ũu vaso de pao nam fique
de convosco laa levardes,
e chamar-vos-eis Anrique
que o mundo despresastes.
E ponde laa das colmeas,
porque é renda mais certa,
e fareis delas candeas
que se vendam lá na oferta.
Trazei pexes em viveiro,
fazei colheres de pao
e cestos de borrazeiro,
que tambem nam será mao.
Criai galinhas com galo,
corvas, coreixas e pãaos,
e outras cousas que calo,
com vosso falcam nas mãaos.
Visitando vossas granjas,
vossa sola crie a terra,
de limões e de laranjas
ũu pumar oo pee da serra.
E ò sol pola manhãa
ao portal da ermida,
fazêe das luvas de lãa
pera soster vossa vida.
Agulha pera coser,
sovela vos nam escape,
nem vos deve d' esquecer
algũa que às vezes rape.
Sempre convosco ũ gozinho
que ladre batendo aa porta,
cabaça sempre com vinho
porqu' ee cousa que conforta.
Fim.
Naquestas profetizando,
olhai bem que fim vos ponho,
que vos vejo ir açoutando
por quererdes soltar sonho.
E que dirá o pregam
e a voz do pregoeiro:
— Açoutem este truam,
porqu' usa de feiticeiro.
94
CANTIGA DE NUNO PEREI‑
RA, QUANDO CASOU COM
DONA ISABEL.
Amor, onde t' escondias
nos tempos que me matavas,
que tam forte parecias
e o mais bravo guardavas.
Acupado meu cuidado
com tuas forças senti,
mas era por teu mandado,
pois agora veens por ti.
Entam mandavas espias
pera ver como m' achavas,
mas pois tu vir nam querias
par' agora te guardavas.
95
OUTRA SUA A ESTA SENHORA.
Somos ũa cousa nós,
em ambos ũa soo fim,
eu nam sam em mim sem vós,
nem vós nam estais sem mim.
Em ambos ũa soo vida
a como cahir em soorte,
que nam pode ser partida
antre nós vida nem morte.
Todo o ser que for de nós
de qualquer cousa em fim,
eu nam sam em mi sem vós,
nem vós nunca soo sem mim.
96
ALVARO D' ALMADA.
Micer Alvaro galante,
presidente por teu pai,
escreve-me como vai
os d' El-Rei e do Ifante.
De todos ponto per ponto,
nam te falo no comum,
mas dos que seguem bom conto,
seja teu saber tam pronto,
que te nam fique nenhũu.
E do gram doutor sotil,
poeta mui estremado,
que das gentes é chamado
per nome Diogo Gil.
Nam per modo encuberto,
nem per via de vontade,
m' escreve sobelo certo,
se anda lonje ou perto
de querer bem de verdade.
Do Alcaide de Tavila,
o qual sempre Deos ajude,
m' escreve s' ee de saude,
nam me falando mentira.
E dir-lh' -ás que dizem caa
qu' ee ũu Gonçalo Murzelo,
e lhe tolheram parte jaa
dos dereitos do castelo.
A Nuno da Cunha.
Do frade provencial,
menistro d' ũ saio pardo,
que traz no cavalo sardo
guarniçõoes de papassal,
saberas que modo tem,
pois finge de servidor,
e se o nam fizer mui bem
põe-me tudo em ũu item
pera quando de cá for.
Joam Gomez Limam.
Parceiro de maracote,
esse Joam Gomez Limam,
que às donzelas de cote
servir traz openiam,
m' escreve como se acha,
querendo ser caçador,
qu' ha-de jugar com ũa facha,
sabemos que nam s' agacha
a Troilos ou a Heitor.
De Vasco Martiz Moniz,
senhor de trotam murzelo,
veador longo e belo,
tam alvo como ũu giz,
o certo dizer m' envia,
nem tardes, mas mui asinha,
se acabou a perfia
que este tempo trazia
cos sergentes da cozinha.
De Dom Garcia de Crasto
que nam cessa d' alegar,
gram Fernam de Toar
a voltas com Joam do Basto.
Porque sei que se poder
jamais ha-d' estar calado,
tu, por me fazer prazer,
de tudo quanto disser
me envia ũu tratado.
De Vasquinho, teu irmão,
fazedor de biornesa,
que nam deixa por defesa
vir ò domingo loução,
se é rijo e bem forte,
o certo m' escreverás,
que bem é o ter por sorte
cinco, seis e dous e ás.
Dom Gonçalo, monteiro-moor
Do esforçado caroz,
principe da vozaria,
que nos montes de Pavia
com brados perdeo a voz,
m' escreve por tua fee,
sem outra cousa que forjes,
sua mentira qual é
dele e de Joam Tomee
co valente Fernam Borjes.
Do gentil mossem Diego
de Melo, pousentador,
o maior juguetador
que haver pode no jogo,
m' escreve se em dançar
te parece mais esperto,
ou por se desenfadar
inda sabe remedar
seu senhor, o Duque Alberto.
Cabo.
Destes aqui nomeados
e outros que te nam digo,
m' escreve como amigo
em que sam mais acupados.
Isso mesmo das molheres,
que sei que te será viço,
e do mais que lá souberes,
se mo caa saber fizeres,
far-m' -ás prazer e serviço.
Reposta da senhora
Dona Felipa.
Repondo ò que preguntastes,
como estavam as donzelas,
e digo que todas elas
estam quaes as vós leixastes,
senam qu' estam saudosas;
dizem que nelas errastes,
pois tam curto preguntastes
por elas tanto fermosas.
97
-REI DOM AFONSO.
Muito alto, eicelente
e poderoso senhor,
cujo infindo honor
o Senhor Deos acrecente.
O todo vossa feitura
que vos adora e crê,
com a devida mesura,
faço nesta escretura
saber a Vossa Mercê.
Que depois que me parti,
em Santarem vos leixando,
sojeito do vosso mando
como sempre me senti,
a cas de vosso irmão cheguei,
do qual sem falecer ponto
quanto se fez vos direi,
por verdes se m' acupei
em vos dar delo bom conto.
E digo primeiramente
que o senhor vosso irmão
anda rijo, ledo e sam,
bem desposto e valente,
e traz por openiam
gram caçador e monteiro,
os quaes autos vos diram
ser de princepe guerreiro.
Do gram fazedor de busca,
micer Jam Freire Berlade,
ũu pouco menos d' idade
de Rui Gomez da Chamusca,
Voss' Alteza saberá
que na dança faz corvilhas,
pera ver se poderaa,
com trabalho que se daa,
desfazer as pantorrilhas.
Rui de Sousa que bem cabe
nesta terra em que somos
por tal fazedor de momos
qual ante nós se nam sabe,
nam no podemos chegar,
assi haja eu boa fim,
a fazer que queira dar
ũu pequeno de vagar
oo tenor de romatim.
O grande Lobo d' Alvito
que por se desenfadar
se tem seesta no Malvar
dig' oo Alvaro de Brito:
nam nos val brados poer
par' oo lançar da guarida,
nem basta nosso poder
a lhe podermos tolher
ũa Dona Margarida.
Nuno da Cunha, o Paão,
fermoso e deleixado,
que nunca é namorado,
salvo, Senhor, no Veram.
Porque se vai a freura
e se vai chegando Maio,
cos desejos da quentura
ja pelo presente cura
de vestir às vezes saio.
Deogo de Melo, o Lasso,
que o jugatar atiça,
e às vezes com preguiça
nam pode mover ũu passo,
sei que houve outra hora
d' Alvar' Eanes ensino,
porque nos motes d' agora
som uno de una mora,
raivo como cam varzino.
Vasco Martinz veador,
ingreme coma bafordo,
que nunca pode ser gordo,
pero é gram comedor,
por se nos mostrar mais moço,
u andamos com capuzes,
ordena tal alvoroço
com que meteo no pescoço
seu colar dos alcatruzes.
Vosso Alvaro de Moura,
que reza pelos salteiros,
se veste com os porteiros
com barba rapada loura.
Poder-lh' -ês, Senhor, mandar
ter cárrego dos liões,
pois se nam pode acupar
senam em ussos criar
de mui diversas feições.
Pero de Moura.
Ũu poeta que a pique
de bem responder carece,
e no rosto se parece
com micer Joam do Vique,
aqui é, Senhor, chegado,
mas o seu nome nom sei
pelo que fez o trelado
de pôr em si eu o sei.
O gram felisteo chamorro,
Joam de Melo, copeiro,
que nos montes é parceiro
de Martim Pirez Bigorro,
Senhor, des que se degola
co barril na montaria,
copa-se com carminhola
do comprido Mestr' Escola
ou Josep Baramatia.
O das mangas regaçadas,
que Gomez Freire se chama,
que quando dança com dama
conta sempre tres passadas,
nam muda filosomia
por andar espenicado,
nem tira sa fantesia
de sospirar cada dia
poios saios deseado.
Cabo.
Rei humano, gracioso,
e senhor em que m' atrevo,
pois o certo vos escrevo,
falando nom dovidoso,
Vós, Senhor, que Deos mantenha,
querê a estas responder,
mandando quanto convenha
à maneira que cá tenha
em vos serviço fazer.
98
CANTIGA D' ALVARO BARRETO
À MORTE DO DUQUE, SOBR' Ũ
ENXEMPRO QUE DIZ: O
QUE FOI E NOM É,
TANTO É COMO
NOM SEER.
Ressalvando nossa fee
que sempre podemos ter,
o al que foi e nam é
tanto é como nam ser.
Que presta muita riqueza,
nem vida mui prosperada,
se por morte ou proveza
nam ha i daquisto nada.
Tiro fora nossa fee,
mas do al se deve crer
que o que foi e nam é
tanto é como nam ser.
Reposta de Joham Gomez.
O passado sem presente,
pois que foi, ser nam se tolhe,
pois que Deos todo potente
este poder nom recolhe.
Os feitos de Gudrufee
de Bulhom nos fazem crer
que o que foi e nam é
ser nichel nam pode ser.
D' Alvaro Barreto.
Esse Duque que dizeis,
que ganhou Jerusalem,
e outros de que tambem
memoria nam fazeis,
consirai se vam à ree,
e por i poderês ver
se o que foi e nam é
tanto é como nam ser.
De Joham Gomez.
É o ser certeficado
no que foi de bem a mal,
o presente vai passado,
o por vir é papassal.
Mudanças d' avante à ree
nam m' espanto de as ver,
pois o que foi e nam é
monta mais que de nam ser.
D' Alvaro Barreto.
Pois vai assi d' altrecar
vosso processo fundado,
digo que o trespassado
presente nam pod' estar.
Se confessaes que nam é
ja nam pode vida ter,
logo, quem foi e nam é
tanto é como nam ser.
De Joham Gomez.
Toda bem-aventurança
passada nos é memoria,
e faz com sua lembrança
haver-nos presente groria.
E assi quem for Tomé,
meta a mão se sabe ler,
e o que foi e nam é
verá nam leixar de ser.
D' Alvaro Barreto.
Escreverem coronistas
pera ler muito nos val,
mas é fala das conquistas,
trelado sem oreginal.
Cousa que ja foi em pee,
que seu ser leixa de ter,
esta se foi e nam é
tanto é como nam ser.
De Joham Gomez pelos
consoantes.
Querês outras sobre vistas
quem cercou Terçanibal
nos pôs dous avangelistas,
ambos por ũu principal.
Se por segundo nom é
que nunca se pode crer,
per inteiro como é
fez tambem Portugal ser.
D' Alvaro Barreto.
Pois seguis openiam
conhecendo a verdade,
e querês que a rezam
seja serva da vontade,
vaa caminho d' Anafee
todo este que nam crer
que o que foi e nam é
tanto é como nam ser.
Fim de Joham Gomez.
O bem nunca se consume,
pecados sam nemigalha,
quem com vicios presume
faz alicerces de palha.
Devemos d' haver por fee
e que bem nam pode ser,
mas do que foi e sempre é
e será se deve crer.
99
D' ALVARO BARRETO A
ŨA SENHORA EM QUE
LHE PEDE ALVARAA
D' APOUSENTADO.
Por jamais nunca partir
de vós todo meu sentido,
sam assi tam mal trazido
que canso de vos servir.
E por nam ser trabalhado
com tam mal despesa vida,
dai-m' alvara d' apousentado
polo tempo ja passado
que vos tenho bem servida.
Fazei-o, pois soes molher
tal que vos louvar nam sei,
ou estai, se vos prouver,
pel' ordenaçam d' El-Rei.
E se for vossa tençam
de per i seguir tal feito,
protesto que com rezam
queira vossa descriçam
guardar todo meu direito.
Aleego primeiramente
que lei destes reinos é:
quem for velho ou doente,
tanto que provado lh' ee,
nom deve ser requerido
para servir com senhor,
e de quem for costrangido,
pelo Rei seja punido
com pena de seu rigor.
E porque tee este ponto
sam velho em vos amar,
ja entro naqueste conto
sem me poder escusar.
E se vos estar apraz
pelo dito do artigo,
pois vedes quanto me faz,
se proveito me nam traz,
contestai o que vos digo.
Ou se, senhora, estar
a dereito nom quereis,
praza-vos de m' outrogar
isto que fazer podeis:
e dai-m' este alvaraa,
pois al requerer nom ouso,
ca des que o tever jaa,
sequer, senhora, seraa
começo de meu repouso.
Fim.
Porque tal necessidade
me causou serviço vosso,
usareis nam de vontade
em me dar tal liberdade,
pois vos ja servir nom posso.
100
D' ALVARO BARRETO
EM ŨA PARTIDA.
Que pene ser namorado,
faz fadiga mais sentida
fundamento de partida
sem poder ser apartado.
Que amar fadiga seja,
rezam al querer nom ousa,
por ser pena toda cousa
que per alguem se deseja.
Mas que cause gram cuidado
traz pena menos à vida
do que é fundar partida
sem poder ser apartado.
101
OUTRA SUA.
Quem se vê mui longe ser
do que deve de cobrar,
mais lhe val desesperar
que vãa esperança ter.
Porque por haver comprida
cousa que tarde s' alcança,
muitos em vãa esperança,
passam toda sua vida.
Assi que depois de crer
que se mal pode cobrar,
mais lhe val desesperar
que vãa esperança ter.
102
CONTA O QUE A ELE E A OU‑
TRO LH' ACONTECEO COM
ŨU ROUSSINOL E
MUITAS COSAS
QUE VIO.
Dous tristes afortunados
debaixo das verdes ramas,
estando muito penados,
de prazer desesperados,
falando em nossas damas,
ouvimos cantar ũa ave,
qu' em seu canto parecia
roussinol,
manso, doce, mui suave,
per mui alta melodia,
per bemol.
Nós ouvindo sa duçura
per ũu contraponto manso,
dezia de nossa ventura
que nossa sobeja tristura
era ja sem ter descanso;
lembrou-nos males passados,
com dores, penas presentes,
desmedidas,
que nos fez, desesperados,
ser das mortes mais contentes
que das vidas.
Excramaçam.
Ó vós, Musas, qu' habitais
nas alturas de Pernaso
qu' oos mudos linguas daes
e òs inorantes mostraes
a gram fonte de Pegaso,
nesta obra começada
vossa ajuda vos demando
com favores,
pera que possa acabada
ir os males recontando
dos amores.
Vossas graças espirai
em meu saber e sentido,
a memoria alumiai,
o engenho espertai
de meu siso adormecido.
A ti, Caliope, invoco,
que minha lingua mui ruda
viva faças,
nesta materea que toco
nam me negues tua ajuda
com tas graças.
Começa a obra.
Com mui grande sentimento
d' acordanças mui sentidas,
em vencido pensamento,
nós sentimos com gram tento
que falava em nossas vidas.
Com vozes mui acordadas
começou com taes primores
estar cantando,
como fazem as levadas
d' espadas os jugadores
começando.
Eram tantos, tam doridos
os seus prantos e cantares
tam dorosos, tam sentidos,
qu' ali foram convertidos
meus prazeres em pesares,
d' ouvir as lementações
que sobre nós pranteava,
com tristezas
chorando nossas paixões,
que sem conto lementava
de cruezas.
E despois de entendidas
as mesajeens de seus cantos,
suas vozes convertidas
foram como nossas vidas
tornadas em altos prantos.
Com gemidos, nossas dores
maldiziamos, chorando
nossa sorte,
de nós mesmos matadores
nos viamos desejando
nossa morte.
Roussinol.
Ó vós outros, namorados,
de tormentos combatidos,
amadores desamados,
de seu bem desesperados,
por amores tam perdidos,
leixai vosso bem querer
por nam sentirdes o trago
de taes dores,
pois qu' a morte em prazer
dam de serviços em pago
os amores.
E pois vedes que vos vem
tanto mal por bem amar,
por amor sempre de quem
ha por mal fazer-vos bem
e por bem de vos matar,
nam cureis de mais chorardes,
ca rezam, siso defende
fazer tal,
porque quanto mais cuidardes
nisso tanto mais s' acende
vosso mal.
Reposta dos namorados.
— Oh, pois sempre penas tantas
d' amores vives sofrendo,
que chorando sempre cantas,
leixa-nos chorar em quantas
dores vevemos morrendo.
Leixa-nos ambos chorar,
pois mais bem nam temos ja
que a morte,
ca mal pode confortar
quem conforto a si nam daa
que o conforte.
Roussinol.
— Que sem conto vós sofraes
tantas dores, nam choreis,
pois com isso nam cobraes,
nem menos remed[i]aes
os males em que viveis.
Nam choreis que tam crecida
é a coita que s' ordena
de vós tal
que morrendo vossa vida,
nam pode matar a pena
do vosso mal.
Os namorados.
—Amor é cousa tam alta,
preciosa cousa tanto,
que de Deos eterno salta
e no Filho s' esmalta,
tambem no Esprito Santo.
Amor antre os terreaes
é a cousa desta vida
mais excelente,
amor antre os animaaes
por singular cousa havida
é da gente.
Roussinol.
—Por verdes quam enganados
andaes com vosso amores,
sempre vi de namorados
vir mil casos desastrados,
muitas mortes, muitas dores;
vi fazendas destroidas
com cruezas dar gemidos
dessas guerras,
vi mortes de muitas vidas,
muitos reinos ser perdidos,
muitas terras.
Os namorados.
Por ser nosso caso tal,
nós houvemos por vitoria
de sofrermos tanto mal,
por amarmos desigual,
nossa morte por mais groria
sem fazer nunca mudança
desta fe, cuja firmeza
será viva,
sendo morta a esperança,
que faz ser nossa tristeza
mais esquiva.
Roussinol
— Por verdes os desenganos
qu' amor sempre de si solta
com seus males grandes danos,
seu bem traz com mil enganos
em prazer a moort' envolta.
Amor traz sempre consigo
mortal dor com sospirar
sua paixam,
do prazer mortal immigo,
os desejos sam pesar
do coraçam.
Os namorados.
— Assi como desfalecem
ò ouvir as acordadas
musicas, que bem parecem,
qu' acordadas entristecem
as vontades namoradas,
assi nós com ta duçura
nam acabas ainda bem
nos confortar,
quando nossa firam tristura
sobre nós mais poder tem
de nos matar.
Roussinol.
— O prazer logo s' aparta
de quem ama verdadeiro,
de cuidar nunca se farta,
nam sei como vos reparta
este mal tam lastimeiro.
Nam cureis com mais perfia
fazer choros, nem taes prantos,
sem rezam,
segui minha companhia
por verdes d' amores quantos
perdidos sam.
Segue.
Com lagrimas de tristuras
começámos logo andar
per vales, montes, alturas,
grandes boscos, espessuras,
nam cessando caminhar,
per lugares apartados,
desviados dos viventes,
sem medida,
desertos, desabitados,
donde nunca foram gentes
nesta vida.
Per caminhos espantosos
passámos tantos desertos
que nos vimos temerosos
ser das vidas dovidosos
e de nossas mortes certos.
Onde tristes, alongados,
per longa estancia de terras
mui estranhas,
nos vimos de nós roubados,
cansados nas altas serras
e montanhas.
Assi tristes caminhando
pola gram estrelidade,
de morrermos desejando,
nos foi o dia negando
sua luz e craridade.
Com sa cara jovenil
primeira vimos Febea
estar cercada,
com seu rosto mui sotil,
da crara cham' apolea
metigada.
Comparaçam.
Como fazem por saberem
as frotas por onde vam,
que de noite por se verem
seguem, por nam se perderem,
o forol do capitam,
assi nós por nossa sina
seguiamos sem sentido,
em maneira
como quem a fogo atina,
que de noite é perdido
sem carreira.
Mas despois qu' a tenebrosa
noite escura escondeo
a luz crara, rediosa,
com curiscos espantosa
em trevas se converteo.
Com furia de grandes ventos
as cometas com seus raios
desiguaes
faziam taes movimentos
que eram nossos desmaios
mui mortaes.
Onde tristes mui perdidos,
muito mais que dizer ouso,
ficámos de nós vencidos,
sem nunca nossos sentidos
poderem tomar repouso.
Com nossas vidas chorando
com dores, coitas, mui graves,
lastimadas,
estivemos atee quando
cantavam as doces aves
as alvoradas.
Diana ja repousada
por seu curso natural,
de nossa vista privada,
os antipeles passava.
Com furia temporal
os ares ja resolutos
dos vapores congelados,
nevoentos,
ficaram fixos, enxutos,
mui sotis, craros, delgados,
espelhentos.
Sete planetas.
Ali vimos desterrado
ir Saturno, velho, prove,
e Jupiter, rico, honrado,
Mares em guerras armado,
Febus como rei se move.
Vimos Venus mui fremosa
e Mercurio escrevendo,
filosofando,
Diana, casta, briosa,
com qu' as aguas vam crecendo
e minguando.
As faldras do Ouriente
vinham ja esclarecendo,
e Venus resplandecente
de seu rosto mui luzente
a sua frol ja perdendo.
Apoio vinha correndo
em seus cavalos fetondos
de Quimera,
o gram Zodiaco vendo
per doze sinos redondos
da espera.
Doze sinos.
Vimos Friso com temor
ir no Verlo polo mar,
e a filha d' Ajenor,
vi com Polus e Castor
Perseo Cancro matar.
Leo em fogos acesos,
vi Virgo desemparando
os terreaes,
e vi Livras com seus pesos
os meritos tosos pesando
dos mortaes.
Vi o fero Escorpiam
passálas aguas sem barco
com a filha de Alciam,
e o velho Teriam,
Sagitareo com seu arco.
Capricornio no outeiro,
na selva de Creta andar
pacendo vi,
e Acarios ser copeiro,
e Cupido vi tornar
em Peixe ali.
Com coroa mui oufana
nos altos ceos colocada,
vi de Baco Adriana
e a fria Tresmontana
d' Apolo mui separada.
Vi a filha de Lucano,
Cenesura, Calistona
e Ouriam,
com as netas d' Oceano,
com seus filhos vi Latona
em o lam.
Comparaçam.
Como cativo que preso
trabalha de se soltar,
que com esforço mui teso
para fogir mui aceso
anda buscando lugar,
começámos com dor tal
romper as matas sombrosas,
mui escuras.
Fomos ter a ũ rosal
de muitas flores e rosas
e verduras.
Visam.
O lugar era cercado
d' arvores e ribeiras,
de verdes ramas cerrado,
de mil frescuras trocado,
de froles de mil maneiras.
Onde vimos duas damas
tam fermosas, excelentes,
com misura,
qu' ardiam em vivas chamas,
as caras resprandecentes
de fermosura.
Firmeza
A ũa delas vestia
um brial negro chapado
de mui rica argentaria,
d' ouro com gram pedraria
derredor quartepisado
d' esmeraldas e robis,
çafiras e diamantes,
e ũ manto
d' ũs lavores mui sotis,
preciosos e galantes
de grand' espanto.
Esperança.
De verde toda vestida,
de perlas toda borlada,
vi a outra emnobrecida
d' ũa roupa mui comprida,
per mil partes desfiada.
Ũ verde manto cobria
muito rico em derredor
e perfundo
ũa letra que dizia:
Mal haya quien fizo amor
neste mundo.
Comparaçam.
Como quem adormecido,
sem sentir pena nem groria,
qu' acordando embebecido
a perda de seu sentido
vai buscar a sa memoria,
assi nós com grande medo
de vermos tanta visam,
com gram temor,
cada ũ estava quedo,
pedindo a seu coraçam
algũ favor.
Com temor e ousadia
vendo suas gentilezas,
com tristeza e alegria
olhando a polecia
de suas grandes belezas,
começámos com gram tento,
com vontade mui segura,
de pagar
todo aquele devimento
que se deve à mesura
em tal lugar.
Fala às damas.
— Todo o bem contrariado,
que nosso fado repuna,
damos por bem empregado
o tempo todo passado
de tam aspera fortuna.
E pois que nisto sentimos
nam nos ser de todo immiga
a ventura,
a vossas mercês pedimos
vossos nomes que nos diga,
por mesura.
Segue.
Como mui palencianas,
gentis damas mui briosas,
mais divinas que humanas,
tam corteses como oufanas,
de mil graças graciosas,
com mui grande cortesia
nos receberam, mostrando
gram prazer,
com mui grande alegria
nos começaram falando
de dizer.
Firmeza.
— De dizer-vos folgarei
que a mim chamam Firmeza,
que em vós sempre morei,
nunca vos desemparei
nem vós a mim com tristeza.
Essa dama é Esperança,
que aas vezes desespera
esperando,
outras vezes faz mudança
ò revés do que s' espera
nam cuidando.
Tam asinha acabadas
nam eram ainda bem
as palavras recontadas,
sem mais cousas preguntadas
dante nós vimos ninguem.
Assi com mudança tal
como quem seu siso fora
tem perdido,
ficámos com nosso mal
como quem canta e chora
sem sentido.
Propiadade da Fortuna.
Fortuna que nunca cessa
com a roda de ventura
dar taes voltas tam depressa
que o bem dessa promessa
sempre pouco ou nada dura.
Nunca dura nũm querer,
a roda mil vezes volta,
com mil mostranças
leixa de todo perder
o melhor donde o solta
com sas mudanças.
Segue.
Pois tal vida pussuir
quer Fortuna com tristura
fazer-nos sempre sentir,
sem podermos regestir
nossa gram desaventura,
comecemos de tomar
de tam miseravel vida
possissam,
nam queiramos mais tardar,
sigamos nossa dorida
habitaçam.
Assi nós tristes seguindo
nossos craros perdimentos,
muitas mais dores sentindo,
nossas tristezas ferindo
nossas vidas de tormentos,
caminhando a triste via
vimos tantos, taes sinais
de tal sorte,
que bem craro parecia
que agoiros tam mortais
eram de morte.
Decer das altas montanhas
vi ũa aguea rompente,
com sas unhas mui estranhas
romper suas entradanhas,
de matar-se nam contente.
Em si amostrou primeiro
a cruel pena mui brava,
e sem tardar
me fez orfãao do parceiro,
com que triste consolava
meu pesar.
Minhas dores acendidas
vi entam de taes tristezas
qu' eram todas convertidas,
sem piadades movidas,
em mil sanhas de cruezas.
Em dor, coita tanta vim
ali soo donde ficara,
tam raivosa
que a morte contra mim
em matar-me s' amostrara
piadosa.
Comparaçam.
Com' a quem chora gemendo
sua coita desigual
com quem sempre vam crecendo
seus tormentos acendendo
as angustias de seu mal,
assi eu com tal viver
com minha vida me via
que desejava
de morrer, por nam morrer
tantas mortes cada dia
como passava.
Com perdida esperança,
guarnecida de pesares,
comecei sem mais tardança
possuir a esquivança
dos mui desertos lugares,
onde tanto quis mostrar-se
contra mim tam poderoso
meu mal
que nenhũu nam cobiçasse,
por mais que fosse envejoso,
vida tal.
Com lagrimas de tristuras
caminhando pola serra,
ũas vezes nas alturas,
outras vezes nas funduras
dos mais baixios da terra.
Nas montanhas e boscagem,
como as feras, estranhas
alimarias,
fazia vida salvajem,
nas mui espessas montanhas
solitarias.
Comparaçam.
Andando tantas jornadas,
taes confortos recebendo,
como soem as desejadas
saudades apartadas,
em gram tempo nam se vendo.
Assi eu com vida tal,
d' esperança e d' alegria
ja roubado,
me vi tanto com meu mal
que à morte me sentia
mui chegado.
Polas serras tenebrosas,
sem ter ja de mim sentido,
nomeando com chorosas
vozes, tristes, piadosas,
a quem tinha ali perdido.
Seu calar me era reposta,
mas o eco polos vales
me seguia,
de meus cramores reposta,
por dar mais mal a meus males
respondia.
Vendo-m' assi padecer
vida de estremo tal,
meu alongado viver
me era mais recrecer
moores tormentos de mal.
Por onde quer que passava,
nas montanhas e boscageens,
quantas me viam
serpentes, quantas achava,
feras bestas e salvageens
me seguiam.
Via muitos animaes,
sagitarios, escorpiõoes,
tigres feros, desiguaes,
gigantes dragos, mortaes,
onças feras e liõoes.
Os olhos todos luzentes,
em fogo todo abrasados,
acendidos,
com batimento de dentes,
dando muito desvairados
bramidos.
Comparaçam.
Como quem de cativeiro,
quando foge algũu cativo,
que de mal tam lastimeiro
por remedio derradeiro
nam tem em conta ser vivo,
com esforço mui ousado
põe a vida a mil perigos
de venturas,
e cuidando ser tomado
vai buscar algũs abrigos
nas espessuras,
Assi eu, com taes temores
que minhas forças vencia,
ja buscava valedores,
que valessem a minhas dores
e me dessem ousadia.
Nos matos por me salvar
de ver cousas espantosas,
fui com receo
e ali me fui achar
com as Harpias mui raivosas
de Fineo.
A morte, por nam sentir,
mais que vida desejava,
quando vi que me cobrir
nam prestava, nem fugir,
com meu mal os confortava.
Com sospiros lagrimosos
meus tristes olhos choravam
tam de verdade
que de bravos piadosos
de me verem se tornavam
com piadade.
Meu viver menos prezando
que o perigo da morte,
comecei andar chorando,
os desertos penetrando,
maldizendo minha sorte,
ferido de taes tormentos
que seraa menos victoria
de os passar
que tornar taes sentimentos,
redozi-los aa memoria
pera os contar.
Comparaçam.
Como quem se vê livrado
d' algũ perigro mortal,
ou como quem condenado
à morte sendo livrado
per milagre ou caso tal,
assi eu quando me vi
fora daqueste perigo
de morte,
a mim mesmo nam no cri
em cuidar ũu mal commigo
de tal sorte.
Vista do Inferno.
Sem ver dia nunca craro
cos sombrosos arvoredos,
com mui grande desemparo
polos montes de Travaro,
pelas rocas e roquedos,
andava triste seguindo
a mui gram desaventura
de meu viver,
o prazer de mim fogindo,
vendo mais minha tristura
em mim crecer.
Per lugares tenebrosos
aos humanos inotos,
com meus males mui dorosos,
ouvi gritos espantosos
com mui grandes terremotos.
De todo cuidei entam
minha vida mui cruel
que acabava,
olhando vi a Plutam,
as chamas que Mongibel
respirava.
Vi estar o cam Cerveiro,
com suas bocas tragantes,
de Bursires ser parceiro,
vi Sifo com gram marteiro
trazer pedras mui pesantes.
E na Istrigia vi Crina
com as Furias infernaes
indinadas,
vi Plutam com Proserpina,
com muitas gentes mortaes
ja passadas.
Ali vi a pregoeira
Tesifone mui sanhosa,
Aleto, cruel guerreira,
e com elas a terceira
vi em guerra mais raivosa;
tres juizes estar julgando
seiras Danão com jueiras
cheas d' agua,
e Dedalo ir voando
e Vulcano nas fugueiras
da gram fragua.
Ali vi estar a Priteo
e fogo do ceo furtar,
vi a Triste com Atreo,
e a madre de Penteo
seus membros espedaçar.
Vi na roda Exiam
ir e vir sempre volvendo
com pesares,
vi o forte Jeriam
com tres cabeças mandando
as Baleares.
Vi Tantalo esfaimado
com gram sed' estando n' agua,
e Cios muito penado
d' abutres espedaçado
em seu peito com gram magoa.
Vi outro muito gentio,
cujos nomes de sas famas
tem nas vidas
de mui grande senhorio,
ardendo em vivas chamas
acendidas.
Vi a fonte de Cotitos,
à passagem de seus portos
muitos corpos sem espritos,
onde a garça com mil gritos
traz a messajem dos mortos.
Vi as aguas do Leteo,
em na barca d' Acaronte,
vi remando
o parceiro de Teseo,
e Tiseo de sô ũu monte
fogueando.
Assi estando espantado,
temeroso, com gram medo,
sem meu siso ter cobrado,
nem o temor apagado
do que via, estava quedo.
Sem tardança me vi logo
cercado de muitas gentes
mui chorosas,
qu' ardiam em vivo fogo
de chamas vivas , ardentes,
espantosas.
De sas bocas com furor
tam gram chama se alçava,
que do grande resprandor,
do gram fogo e meu temor
vê-los bem nam me leixava.
Tantas penas padecer
vi com dores desvairadas
de tormentos,
que me fizeram esquecer
as cousas todas passadas
de sentimentos.
Visam infernal.
D' arredor em companhia
via cousas mui inormes,
que d' espanto nam podia
poder-me dar ousadia
olhar rostos tam disformes.
Com seus basiliscos vultos
d' horrives disformidades
me parecia,
os que me eram mais ocultos
mais presentes fealdades
das que via.
Assi vendo com gram dor
minha morte conhecida,
de meu rosto minha cor
ja roubada, com temor
mais da morte que da vida,
fui levado per lugares
onde vi em vivas chamas
estar ardendo
muitas gentes com pesares
de namorados, com damas
padecendo.
Inferno dos namorados.
Com Erudice vi Orfeo
tangendo sa doce lira,
vi Driana com Teseo,
com Tanace Macareo
e Hercoles com Daimira.
Ali Paris com Helena,
vi Grismonda com Griscal
com muitas dores,
que chorava com gram pena
a gram coita desigual
de seus amores.
Ali Eco com Narciso
vi, e Pasife com Minus
nas fonduras do abisso,
e a filha d' el-rei Niso
com sospiros mui continus.
Vi outros menos prezando
as grorias de seus viveres
e maneiras,
em sas ofensas mostrando
nas coitas grandes prazeres
d' alegrias.
Ali Poris com Tesena
e Clise por Febo Dane,
Arquiles com Policena
e Tereo com Filomena
e com Piramus Tisbe.
Vi Medea com crimezas
de Jasam, porque querer
mais lhe quisesse,
fazendo moores cruezas
do que nenhũu ofender
lhe pudesse.
Vi Lucrecia por Tarquino
ser de si mui penitente,
e vi Cila por rei Nino,
e as filhas de Cadino
em o Flegento ardente.
Hipolito, Fedra, Semeta,
Ardanlier com Liesa
namorados,
Panfilo com Fiometa,
Grimalte com Gradiesa,
desesperados.
Quem me daa vida penada
sem nos seus amores vi,
de penas tam lastimada,
tam triste, tam demudada
que quasi a nam conheci.
Mui triste, muito choroosa,
sospirando desigual,
mui sentida,
porque nunca piadosa
foi de mim nem de meu mal
nesta vida.
Os olhos por nam olhar
de piadade movidos
escondia com pesar,
mas os seus prantos tornar
me fazia de seus gemidos.
Com dorosos movimentos
tornava meus olhos, vendo
seus cramores
e seus grandes sentimentos
me faziam ir gemendo
minhas dores.
Muitas vezes meu poder,
trabalhando sem memoria,
provava de socorrer
se lhe poderia valer,
mas ficava sem victoria,
que da vida ja favor
nam tinha, nem esperava,
nem sentia,
a mim como defensor,
contra mim me esforçava
e socorria.
Com voz de pranto dorida,
como quem morte deseja
muito mais que ter tal vida,
falava com dor crecida,
dizendo nam sei que seja.
Quem me daa vida despoje,
ca de males tam dobrados
de tal sorte,
a primeira cousa que foje
oos tristes desesperados
é a morte.
De seus olhos mais chorando
do que falar me podia,
com mil dores sospirando,
suas chagas m' amostrando
com qu' as minhas acendia.
Com grã dor de meu pesar
des que piadade de mim
a venceo,
me começou de falar,
nesta maneira em fim
me respondeo:
—Tal enveja vos tem dado
minha grande saudade
que mal tam desesperado
quesestes seguir forçado
sem ter de vós piadade.
Fortuna que sempre ordena
tanto mal com sentimentos
cada dia,
por dobrar mais vossa pena
quis a meus grandes tormentos
dar companhia.
Estando nestes pesares
como morta minha vida,
ja nos infernaes lugares
com tormentos a milhares
de gram pena desmedida,
na volta dos mais perdidos
andava com dor chorando
tam desigual,
com taes prantos e gemidos,
que fazia estar olhando
todos meu mal.
Dali me veo tirar
quem me forçara seguir
caminho de tal pesar,
que nam se pode cobrar
nenhũu mal, nem redemir.
Mostrando-me verdadeira
fim d' amores de seu mal
o gualardam,
cantando desta maneira
como quem com voz mortal
lança pregam.
Fim.
Dos amores o que sento
todo o vivo contempre
que prazer, que daa tormento,
é groria de ũu momento
que condena pera sempre.
E seu bem é de tal sorte
em prazer que daa tristura
com tanto mal
que se faz eterna morte
com pena que sempre dura
mui mortal.
103
DE DUARTE DE BRITO.
Oh cruel pena mortal,
oh vida tam querelosa,
oh morte tam piadosa,
inteiro bem de meu mal!
Tam crecidos
sam meus males desmedidos
que sentem meus pensamentos,
que com força de tormentos
ja nam sento meus sentidos.
De dores tam lastimada
vejo minha triste vida,
qu' ee de mim sempre querida
minha morte desejada.
Esperar
o que nam posso cobrar
é mais causa de gram dor,
ou de morte, ou pior,
pois se nam pode curar.
Qu' a pena maior que tenho
nam sei quem ma dar podesse,
donde tanto mal viesse
qu' em vida morte sostenho.
Taal se sente
meu viver tam descontente
que de mim sam matador,
porque mais a minha dor
minha pena s' acrecente.
Vejo tanto contra mim
minhas chagas tam abertas,
com cruezas tam espertas,
que desejo minha fim.
Se meu bem
com a morte me nam vem,
que vida posso viver,
que me possa dar prazer
se em matar me detem?
A fim visse tam asinha
como é vontade vossa,
pois cousa que dar-me possa
bem nem vida nam é minha.
Por vos querer
meus males vejo crecer,
minguar toda piadade,
se matar-me havês vontade,
eu hei pouca de viver.
De meu mal se soes servida
com minha pena raivosa,
em matar-me piadosa
vos mostrai a minha vida.
Por acabar
minha vida de matar,
segundo meus males vejo,
muito mais meu mal desejo
do que vós me podeis dar.
104
DUARTE DE BRITO.
Vós vivendo, eu morrendo,
vós folgando, eu penando,
vós boa vida passando,
eu a minha maldizendo,
sospirando.
Vós de mim sempre querida,
eu de vós mui desamado,
e meu bem todo trocado,
da morte como da vida
desesperado.
Eu com dor e vós sem ela,
vós sem pena, eu com tormento,
vós prazer, contentamento,
eu de vós com gram querela
e sentimento.
Eu mui triste e vós mui leda,
ó senhora, ó senhora,
se o mal que sento agora
fosse d' ambos, como queeda
algũu hora.
Tal cuidar me dá alegria,
desengano m' entristece,
esperança me falece
todo meu bem se desvia,
meu mal crece.
Renova-se minha chaga
cada dia mais mortal,
vós dais pouco por meu mal,
mas sofrer me dá a paga,
vede qual!
Se sam de vós esquecido,
sam por me perder guanhado,
de vós, senhora, forçado,
mas de me querer vencido
do cuidado.
Com toda quanta crueza
contra mim possaes mostrar,
bem me poderá matar,
mas nunca por mais tristeza
me mudar.
Fim.
Nam sei qual pior me seja
se dizer ou encobrir
o que sento, se servir
quem tanto mal me deseja,
e seguir
o dano donde me vem,
vendo minha vida tal,
tam acerca de meu mal
e tam longe do meu bem,
que me nam val.
105
CARTA DE DUARTE DE BRITO A
DOM JOAM DE MENESES, PERA
QUE NAM SERVISSE
NINGUÉM
Estando triste, pensoso,
com meus males sospirando,
de meu bem mui duvidoso,
de minha vida queixoso,
vim estar em vós cuidando.
E lembrou-me que perdido
vos vi tanto por amores
que nam pode tanto crido
ser o mal como sofrido
tendes sofridas de dores.
E lembrou-me o mal gastado,
servido sem gualardam,
o tempo todo passado
em que sempre de cuidado
vos vi morto de paixam.
Onde a pena mui crecida
de vossos males dobrados
fez tam triste vossa vida,
que foi toda convertida
de sospiros e cuidados.
E lembraram-m' os tormentos
que por bem amar sofrieis,
dados sem merecimentos,
com que vossos pensamentos
veviam e vós morrieis.
Onde vi nojos crecidos,
coitas, pesares, tristezas,
sospiros, cuidar, gemidos,
dous tormentos e sofridos
trabalhos, fadigas, cruezas.
E vi a viva vontade
de matar-vos, tam cativo
vos tinha sem liberdade,
morto tam sem piadade,
que nam cuido que soes vivo.
Sem haver nunca lembrança
de vós nem vossa tristeza,
que com vossa esquivança
vos fez morta a esperança,
mas nunca vossa firmeza
E vi mais ser as maneiras
de quem pena e tem cuidado
e dores mui verdadeiras,
em vós muito mais enteiras
do que pode ser falado.
De maneira que tam triste
foi vossa vida passada,
que de mil mortes se viste
o cuidar que se consiste
dor de dores tam penada.
Mas daquestes males fora
ficando de morto vivo,
is servir de novo agora
quem de vós fazeis senhora
e vós dela mais cativo.
Mas ũu conselho, senhor,
vos darei, à lei de França,
que nam vos fieis d' amor,
que é falso, enganador,
onde mal nam faz mudança.
Dizem que os escarmentados
que se fazem dos arteiros,
pois vós mais dos mais penados,
namorado dos namorados
que sofrestes taes marteiros,
pois seus males todos vistes,
dai ò demo este cuidado,
alembre-vos quem servistes,
que fez vossos dias tristes,
amador mui desamado.
Mas de mil temores tremo
por tomardes com quererdes,
amardes em tal estremo
que muito de vós me temo
perder-vos por vos perderdes,
porque cuido qu' escapar
nam godês de nam morrer,
ca palhas foi o penar
que sofrestes por amar
peroo qu' havês de sofrer.
Receando a trestura
que s' espera, mais vos culpo,
peroo vendo a fremosura
de quem ja vos fez ventura
ser cativo vos desculpo.
Assi que nam sei que diga,
nem que cuide, nem que pense,
nem que faça, nem que siga,
que vos livre de fadiga,
nem de morte vos defense.
Fim.
Se nam, pois quereis tomar
os amores, grã mostrança
mostrardes de bem amar,
sem amardes, pois penar
por amar nam faz mudança.
Mil enganos cada dia
cuidae sem terdes cuidado,
ser leal nunca seria,
por ver se por esta via
tornaria a ser amado.
106
DUARTE DE BRITO PAR‑
TINDO DE SAN‑
TAREM.
Oh campos de Santarem,
lembranças tristes de mim,
onde começou sem fim
desesperança sem bem!
Oh gram beldade, por quem
levo chea a memorea,
com tal cuidado que tem
a morte volta com grorea!
Oh vida desesperada
de dores e sentimentos,
oh lembranças de tormentos
qu' em pesares es tornada!
Oh ventura mal fadada,
cabo de toda crueza,
oh memoria retrocada
em dor de minha tristeza!
Oh desejo sem folgança,
tristura de meu folgar,
oh querer de meu pesar,
de meu descanso tardança,
de meus cuidados lembrança,
do meu coraçam cadea!
Oh vida sem esperança
de tristezas toda chea!
Oh coraçam lastimado,
cujo mal nunca se sente,
que tam longe es presente
de quem es tam apartado!
Que te presta ser lembrado
de quem sempre desejar
faz de força teu cuidado
de vontade com chorar.
Como aquele que sentindo
vai a morte quando vem,
que demostra o mal que tem
com gram dor e descobrindo,
assi eu de vós partindo,
desejo de minha vida,
vejo vir apos mim vindo
a morte que me convida.
Polas mui asperas vias
de tristezas caminhando,
vi meu mal meu bem matando,
dar fim minhas alegrias.
Todas minhas fantesias,
minhas penas refrescando,
o triste fim de meus dias
sem vos ver mo vam mostrando.
Vi as serras descubertas
de meus males com tresturas,
vi todas minhas folguras
de tristeza ser cubertas.
D' esperança vi desertas
minhas groreas sem vitorea,
com sospiros mui espertas
as lembranças da memoria.
Vi meu triste pensamento
d' esperar desesperado,
com sospiros meu cuidado,
com lagrimas meu tormento.
Meu raivoso sentimento,
que calando encobria,
mil vezes com desatento
meu chorar o descobria.
Polas mui grandes montanhas,
caminho de meu pesar,
nam cessando caminhar
com dor de dores tamanhas,
todas minhas entradanhas
sem fogo s' iam queimando,
e nas terras mui estranhas
a morte ando buscando.
Com lagrimas de trestura
de minhas coitas raivosas,
vi as frores e as rosas
perder todas sas frescuras.
Os campos com as verduras,
com as sombras graciosas,
se tornavam amarguras
de mil raivas espantosas.
Por ver morrer meus espantos
feras bestas me seguiam
e os males reteniam
com as vozes de seus prantos.
Davam aves gritos tantos,
minhas querelas dobravam,
onde todos meus quebrantos
em lagrimas se banhavam.
Meu caminho se seguia,
minha dor nunca minguava,
minha pena s' esforçava
contra mim mais cada dia.
Com meus cabelos cobria
a mim todo com pesar,
em ver-me sem vós me via
mais de vontade chorar.
Com meu mal assi andando,
de me ver assi perdido
como cousa sem sentido,
andava sempre chorando.
A morte menosprezando,
mais que vida desejava,
meu desejo vigiando
sospirar me confortava.
Assi me levando ventura
com desatino perdido,
neste caminho vestido,
cuberto de gram trestura,
meu chorar, com amargura,
com voz triste mui cansada,
chorarei enquanto dura
minha cativa jornada.
Fim.
Pois que meu bem como vento
traspassando assi por mim,
e meu mal dura sem fim
em meu triste pensamento,
a memorea por tormento
ficará desta lembrança
em mim triste, porque sento
ser meu mal sem esperança.
107
DUARTE DE BRITO.
¡Oh vida de mis dolores,
oh dolor de mis cuidados,
cuidados de mis amores,
de tormentos matadores
y males desesperados!
¡Oh quanto mejor me fuera
no ver vuestra fermosura,
ni por vos no me perdiera,
ni pesar no me metiera
em poder de tal tristura!
¡Oh vida tan dolorida,
de vida muerte tornada,
oh muerte tanto querida,
de esperança convertida
en vida desesperada!
¡Oh muerte, como no vienes
a dar cabo a vida tal,
que la vida em que me tienes
es la muerte de mis bienes,
vida de todo mi mal!
Assi como el gran llorar
como sin fabla me dexa,
e assi con mi penar,
con gemir y sospirar
no puedo dezir mi quexa.
Mas ya que triste espero
que mi mal no tenga medio,
llorando morir me quiero,
pues del todo desespero
de cobrar nunca remedio.
Lloraré todos mis daños,
mi dolor y pena fuerte,
y dos mil males estraños
que los menos son tamaños
que mi vida es la muerte.
Lloraré catividad,
la vida triste que bivo,
con sospiros, soledad,
lloraré mi libertad
que por vos perdi cativo.
Sin tantas sombras de males
yo triste siempre biviera,
ni penas tan desiguales,
ni llagas tanto mortales,
en tanto grado sintiera.
Ni fuera mi sentimiento
un dolor tan sin medida
que segun los males siento
no es igual el tormento,
ni gana muerte a mi vida.
El penar demasiado,
la passion muy desmedida,
vuestro olvido y mi cuidado,
m' atormentan en tal grado
que tienen muerta mi vida.
De matarme no contentes
se contentam mis querelhas,
mis cuitas siendo presentes
ni por ver tornados fuentes
mis ojos reposan elhas.
Con temor mi gran desseo,
mi quereros y serviros,
los dolores que posseo,
las coitas en que me veo,
no puedo ni sé deziros.
Y con este mi penar
crece tanto qu' es perdida
esperança d' esperar
y remedio de cobrar
a mi y mi triste vida.
Fim.
De mis tristes perdimientos
y de mis males estraños
¡oh vida de mis tormentos,
dolor de mis pensamientos
por quien sufro tantos daños!
Si vos viesse haver sentido
de mis dolores doleros
por vos contento perdido,
todo el mal por vos venido
sufriria por quereros.
108
DUARTE DE BRITO
A tristeza encuberta
de meu triste pensamento,
verdadeira,
me faz minha morte certa
e a vida nam consento
que me queira.
Ca segundo tem poder
minha gram desaventura
mui cativa,
morrer nam basta vencer,
nem poder matar trestura
tam esquiva.
Sam meus dias em pesar
todos tristes convertidos,
em cuidados
meu viver e sospirar,
sam meus males mui crecidos
desesperados.
A vida sem esperança,
sem remedio meu desejo
tam cativo
que moiro na esquivança
da vida em que me vejo,
que nam vivo.
Por ser mor minha tristeza,
quer Fortuna que s' ordene,
por penar-me,
por fazer maior crueza,
dar-me vida com que pene
que matar-me.
E com aqueste temor
de pena mais desigual
que é morrer,
crece tanto minha dor
que seria menos mal
nam viver.
Fim.
Pois vivo triste sofrendo,
sem ventura desejoso,
mal tam forte,
ũa vida que vivendo
vivo dela mais queixoso
que da morte.
Ca de maneira me trata
meu mal com grande desdita
sem cansar,
qu' a vida é a que mata
e a morte a que me quita
de pesar.
109
DUARTE DE BRITO.
Sem descanso e sem ventura
desejosa vida minha
toda chea de trestura,
onde sempre meu mal dura,
o bem passa tam asinha
que nam dou dela sinal
senam todos de desejo,
os outros sinaes que vejo
todos sam de mais meu mal.
Por nunca sentir prazer
nesta minha triste vida
onde me vejo morrer,
nam posso cousa querer
que jamais veja comprida,
senam tudo ò revees
do que sempre desejei,
se algũu bem esperei
deu comigo a travees.
Oh vida desesperada,
oh manifesto engano,
oh morte dessemulada,
oh ventura malfadada,
donde vem sempre meu dano!
Qual esperança me tem
que nam me leixa tomar
qualquer morte que acabar,
pois perdi todo meu bem!
Nem a vida nam na quero,
nem a morte nam na quer,
d' esperar ja desespero,
o remedio que espero
é a morte, se vier.
Ca o mal que m' adoece
com sospiros m' atormenta,
minha dor se acrecenta,
o meu bem todo falece.
De tristezas e pesar
pode fim dar alegria,
se me podesse cobrar
com sospiros e chorar
algũu descanso seria.
Nem a vida em que me vejo
com tal mal nam se me tira,
se o que espero que a tira
nam se acha em meu desejo.
Fim.
Nam me vi com esquivança
de sofrer nunca cansado,
em meu mal nam faz mudança,
quanto menos esperança
tanto mais é o cuidado.
Quanto mais vejo prazer
tanto mais sento o pesar,
ja cansado de viver,
mas nunca de desejar.
110
DUARTE DE BRITO QUE LHE
PREGUNTOU SUA DAMA
PORQUE ANDAVA
TRISTE.
Com tantos males guerreo,
senhora, por te servir,
que la muerte del bevir
es la vida del deseo.
Tus mudanças mis firmezas
si acatas,
por darme vida me matas
com tus cruezas.
Es mi vida em tal estremo
de tantas lhagas ferida
que más receio la vida
de lo que mi muerte temo.
De ti siempre fui ferido
com tormiento,
mas nunca del mal que siento
socorrido.
Mi danho sim compasion
com dolor nunca se mengua,
no sabe dezir mi lengua
lo que siente el coraçon.
Que tal es mi gran trestura
de tal suerte
qu' es todo mi mal de muerte
sim ter cura.
Tanta es mi mal andança,
que la mi lhaga mortal
quanto más crece mi mal
se encerta el esperança.
El sospirar que renueva
mi cuidado
al morir desesperado
me lieva.
Por ti gano em perdelha
mi vida triste, cativa,
mas mi fee quedará biva
ante ti com mi querelha.
Mis sospiros a ti lhaman
sim olvido,
las mis vozes com gemido
a ti reclaman.
La mi vida tal se passa,
que por ti los mis gemidos,
em dolores encendidos,
mis entranhas hazem brasa,
mis lagrimas, sim me dar
assossiego,
hazem más bivo el fuego
de mi penar.
Fim.
¡Oh lhagado coraçon
de todo desacorrido!
¡Oh sim ventura nacido
por su dolor y pasion!
Que será triste de mi,
pues coitado
pera mi nació cuidado
quando naci.
111
DUARTE DE BRITO AOS MOTOS
DESTAS SENHORAS, OS QUAES
MOTOS SAM A DERRADEI‑
RA REGRA DE CADA
COPRA.
Dona Briatiz Pereira.
Esperando remedear
el dolor em que bevia,
por más gloria alcançar
mis cuidados fui doblar
y más mal que no sentia.
Ved que tal fue mi ventura,
que mi bien por mal troqué,
do falhee muy más trestura
quando la gloria busqué.
Dona Branca Coutinha.
Es mi triste pensamiento
tam vencido de deseo
que segum los males siento
es tornado em tormiento
el cuidado em que me veo.
Com dolor y gram porfia
de la mi desdicha fuerte
de perder la vida mia,
esperança y alegria,
temesse mi triste suerte.
Briatiz d' Azevedo.
La triste vida de males,
de tormientos y dolores,
que sostengo desiguales,
acrecientam mui mortales
mis tristezas matadores.
Mi plazer se va gastando
con el dolor que recebi,
la mi vida deseando,
y com tal pena passando
no vive quien assi bive.
Dona Margarida Furtada.
Por ver que nunca mejora
mi grande mal tan esquivo,
no queda dia ni hora
que los mis lhoros no lhora
la triste vida que vivo.
Pensando los por venir,
mi pena más s' acrecienta
y con este tal bevir
lo que queda por sentir
ya no siento quien lo sienta.
Briatiz d' Ataíde.
Pensamientos muy vencidos
de mi pena dolorida
com mis males desmedidos
peleam com mis sentidos
y la muerte com mi vida.
Yo triste no see manera
que tenga com mi porfia,
el dolor manda que muera,
yo no puedo hazer que quiera
com temor tal osadia.
D. Margarida Anriquez.
Com gemir y sospirar
bivo vida tam penada,
que no queda por passar
dolor, coitas, ni pesar,
que más no sienta doblada.
De la mi cativa suerte
mal por bien escogeria
y de mi pena tam fuerte
trocando vida por muerte
que muy mejor me seria.
Dona Orraca.
Por seren sem fin mis danhos
que dará viva memoria
de los mis males estranhos
que los menos som tamanhos,
que pesares me dam gloria.
Mi dolor com gran fatiga
no me dexa más bevir,
mas mi fee crecida diga
mi voluntad es amiga
de lo que se puede seguir.
Dona Guiomar de Crasto.
Mi trestura es fecha vida
do bive mi pensamento
y flama tam entendida
que no puede hazer fenida.
Mi cuidado e gram tormento
som los males que posseo,
tam esquivos de tal suerte
que la vida em que me veo
entre esperança y deseo
ay dos peligros de muerte.
Dona Isabel Pereira.
La mi gram coita presente
sobre todas muy mayor
de matarme nam contente
se contenta porque sente
que vevir es más dolor.
Los afanes desastrados
com las sobras de mi mal,
que sostengo trabajados,
los doo por bien empleados,
pues que Dios vos fizo tal.
Dona Maria d' Ataide.
Con angustias muy planhidas
vam mis dias com enojos,
y las noches mal dormidas
em sospiros convertidas,
mal dormidas de mis ojos.
De tristeza toda lhena
es mi vida y de pasion
y mi libertad ajena
por morir em tal cadena
sofrir penas coraçon.
Dona Caterina Anriquez.
El bevir sim libertad
por bien amar y querer
no falhee em vos piadad
y servir com lealtad,
más esquiva y cruda ser.
El galardom que s' espera
por tanta fee vos tener
es una pena tam fiera
que em serviros no se muera
nada le pueda valer.
Dona Felipa Anriquez.
Si la mi triste ventura
com mis males descansasse
em dezir la mi trestura,
o de mal que tanto dura
se plazer ver esperasse,
folgaria de contar
la mi secreta passion.
Mas pues no puede prestar
escusado é hablar
com nadia mi coraçon.
112
DUARTE DE BRITO.
Olhar-vos fui desejar
pera sempre padecer,
e ver-vos, ver-me perder,
sem saber
maneira de me cobrar.
Porque assi me namorei
em ver-vos, quando vos vi,
que quando de vós parti,
parti-me de vós sem mi,
porque convosco fiquei.
Parti-me com afeiçam,
combatido de trestura,
trouxe vossa fremosura,
vossa duçura,
dentro no meu coraçam.
Que tanto me faz ser vosso,
de cuidado tam sobejo,
que sem vos ver eu vos vejo
tam vencido de desejo
que valer-me ja nam posso.
Pode vossa mercê crê-lo
que fiquei de vós roubado,
tam perdido d' ũ cuidado,
namorado,
que me daa gram dor dizê-lo.
Onde as horas por meus danos,
que se vam que nam vos vi,
polo plazer que perdi
horas sam que foram anos
de tormento pera mi.
Assi, dama graciosa,
a pena que me causastes,
quando vos vós amostrastes,
que matastes
com ver-vos tanto fremosa.
Matou-me logo querer
em ver-vos sem mais tardar,
perdi-me sem me cobrar
e matou-me em vos olhar
vosso lindo parecer.
E com isto de vós ja
é minha força vencida,
estaa em vós a medida
de minha vida
assi como em Deos estaa.
Vós tendes meu coraçam
cativo de vossa beleza,
eu por vós tenho tristeza,
vós de mim grande firmeza,
eu de vós sem galardam.
Fim.
Mas pois tanto mal consiste
em quanto vós causareis,
matar-me, pois, podereis
ou me fareis
alegrar ou fazer triste.
Me faz mui grande temor,
senhora Dona Ilena,
de dizerem que com pena,
que vossa mercê ordena,
morte ha ũu servidor.
113
DUARTE DE BRITO.
Com tal cuidado me vejo
des que, senhora, vos vi
que de morto de desejo
sem saber parte de mi
me perdi.
Perdi-me de namorado
de ver vossa fremosura,
donde quis minha ventura
que morresse de cuidado
com trestura.
E assi todo vencido
de olhar-vos, me senti
d' amores tanto perdido
que a mim desconheci
como vos vi.
Deu-me vossa fremosura
ũu cuidado mui sobejo
que me mata de desejo;
tenho por vós a trestura
em que me vejo.
Vejo-me de vós forçado,
quereloso com tristeza,
leixei convosco firmeza,
levo por vós ũu cuidado
mui dobrado,
de quem me vejo vencido
com querer-vos sem engano,
de quem tenho o desengano,
qu' está ante vós esquecido
meu dano.
Ver-vos me faz conhecer
minha morte conhecida,
e leixar-vos de vos ver,
ver logo de mim partida
minha vida.
E vejo, quando vos vejo,
a morte volta em prazer,
porque nam vos posso ver
quantas vezes eu desejo,
sem morrer.
Fez-me ser vosso cativo
vossa fremosura olhar,
que ter a vida que vivo
de cuidar e sospirar
e desejar.
Em vos ver mui desigual
senti pena mui dobrada,
vós ficastes descuidada,
do cuidado de meu mal
nam lembrada.
Eu fiquei de mi esquecido,
sem de mim mais me lembrar,
namorado tam perdido
que me nam sei emparar
nem remedear.
Dais-me mais pena crecida
que meu cuidado comporta,
com mal que nam se soporta
tenho eu por vós a vida
como morta.
Por vós sento e sei que é
minha vida em perigo,
ca por ter-vos firme fe
nam na posso ter comigo,
porque sigo
verdadeira fee e amor,
sem vos lembrardes de mim,
qu' ee sinal de minha fim,
mas nam fim de minha dor
des que vos vi.
Como vi vossa beleza,
que me daa vida penada,
vos tive tanta firmeza
como em vida namorada
nam é achada.
Com que ando contemprando,
todo perdido d' amores,
vossos mui altos primores,
com sospiros confortando
minhas dores.
Fim.
Mas porque nam mate asinha
a pena qu' assi me trata,
enmendai, senhora minha,
quanto vossa vista mata
e desbarata.
Que nam me veja perder
de desejo cada dia,
porque tenha algũa via,
pois que nam vos posso ver
d' alegria.
114
PREGUNTA DE DUARTE DE BRI‑
TO A DOM JOAM DE
MENESES.
A vós que tendes poder,
poder pera insinar,
a vós que tendes saber,
saber pera responder
ò que quero preguntar.
De que qualidade vem,
pregunto, qual animal
quer mal a quem lhe quer bem
e bem a quem lhe quer mal?
Reposta de Dom Joam
polos consoantes.
Quem poder satisfazer
vossos louvores louvar,
poderá fazer e crer
que fareis vivos morrer
e mortos reçucitar.
Molher vi querer a quem
lhe queria mal mortal,
e ir mal a quem na tem
bem servido desigual.
115
DUARTE DE BRITO.
La mi vida sin ventura,
la mi ventura sin vida,
soledad com gran trestura
com vuestra gran fremosura
me dan muerte conocida.
Do com vida raviosa
quanto más mi muerte pido
tanto más veo forçosa
la querelha profiosa
de mi mal más encendido.
Tantos som los mis gemidos,
lastimados de dolor
y dolores encendidos
que de males tan crecidos
morir seria mejor
que vevir vida sofriendo
com deseo de morir.
Em vida muerte muriendo
menos piadad sintiendo
y más mal por vos servir.
Que vos pueda desamar
voluntad no me consiente,
ni por ver a mi matar
no puedo dexar d' amar
mi gran mal que no se siente.
I con tanta malandança
de la mi triste ventura
lo que dicha no alcança
seguiree con esperança
que me mate de trestura.
Mi vida desesperar
veo comigo morir,
viendo los fines estar
tam lexos de me cobrar
doo fim a lo por venir.
Com mis lhoros cada dia
viveran mis pensamientos,
morirá mi alegria,
muerte de la vida mia
y vida de mis tormientos.
Es mi pena tam crecida,
mi dolor tam desigual,
mi pasion tam sim medida,
que sostengo muerte em vida
quedando vivo mi mal.
Mis deseos encendidos
com sospiros y gemidos
y los mis tristes sentidos
más dudosos de perdidos
que de serem socorridos.
E com tanto mal crecido
de todo ya desespero,
que por vos triste cativo
ya no bivo porque bivo
y muero porque no muero.
¡Oh de min cativa suerte
quere ya mi bien sentirvos
de la mi plaga tam fuerte,
pues por vos mi vida muerte
nunca cesa de pedirvos!
Fim.
¡Oh si menos la mitad
como sam vuestras cruezas
tuvierades piadad,
no fuera catividad
lhena de tantas tristezas!
Mas tu que fim de tormiento
es de dolores fenida,
¡oh muerte, acabamiento!
porque acab' el mal que siento,
dad fim a mi triste vida.
116
DUARTE DE BRITO.
Oh sem ventura nacido
pera dor de sua vida,
d' amores mui mal ferido,
de cruel pena dorida,
por meo do coraçam
de ferida tam mortal
que nenhũa redençam
s' espera de tanto mal!
Se meu mal pesar vos desse
em meus dias soo ũu dia,
a morte que me viesse
por galardam tomaria.
Mas pois bem que me conforte
nam s' espera de vós nada,
milhor é ditoosa morte
que vida desesperada.
Mas com quanto mal me vem
por amar-vos desigual
nam queria ter mais bem
que pesar-vos de meu mal.
E meus desejos me fazem
contente morrer por vosso,
e meus olhos satisfazem
polo que dizer nam posso.
Algũa parte quisera
ter livre de sentimento
por ver triste, se podera,
dizer quantos males sento.
Mas tam morta é minha grorea
que de mim desesperado
o mor bem é a memoria
que me fica do cuidado.
Meu cuidado em vós cuidar
é por minha perdiçam
tam cruel em me matar
como vós no coraçam.
Meu desejo desejoso
me tem aa morte chegado,
justamente quereloso
e sem rezam condenado.
Fim.
Ó de mim tanto querida,
sobre todas em beldade,
havei ja mercê da vida,
da minha alma piadade.
Ca se nam quereis valer,
será, se muito tardar,
mais tempo de padecer
que meu mal remedear.
117
DUARTE DE BRITO.
¡Oh fuente de crueldad,
de lhoros y sintimentos,
robo de mi libertad,
y soledad
de mis tristes pensamientos!
Fuego mortal encendido
qu' em mi todo te derramas
y penetras com gemido,
Tu es cochilho que lhagas
mis entranhas com clamores
y renovas las mis plagas,
porque hagas
refrescarme mis dolores.
De matarme com tu ira,
cruel coraçon, reposa,
pues tu gram beldad te tira
a quien le mira
el nombre de piadosa.
Assi lhagam mis tristezas
tu coraçon dolorido,
como a mi las tus grandezas
de cruezas
com dolores me ham ferido.
I tal vida qual por ti
de mirar tu beldad tengo
tal la tengas tu por mi,
porque assi
crerás el mal que sostengo.
Por mostrares tu poder
enemiga com pasion,
plazer de mi desplazer
por te querer,
matar es tu galardon.
I por veres mucho más
tus cruezas desiguales
por plazer pesar me das,
es y serás
más alegre com mis males.
De los mis graves gemidos
tu eres mi triste deseo,
dolencia de mis sentidos
que perdidos
de pensar em ti los veo.
Tu eres el mi sospirar
y gloria de mis pesares,
que me hazes ir buscar,
pera lhorar,
los más desiertos lugares.
Muchas vezes hei tomado
de mi mal consolacion,
em pensar mi mal passado
he lhorado
vida tam sim compasion
que la mi ventura triste
amando tu desamor,
quanto bien nelha consiste
no registe
com plazer el mi dolor.
Fim.
Veo tan sim fim mis danhos
de mi triste querelhoso,
y los mis males estranhos
ser tamanhos
qu' el morir m' ees descansoso.
Por serdes de mi querida
eres menos piadosa,
sola sim igual nacida
nesta vida,
sobre todas más fermosa.
118
CANTIGA DE DUARTE
DE BRITO.
Amor me fuerça y me prende,
temor me manda sofrir,
dolor me vaa descobrir
lo que mi seso defiende.
Amor con ansias mortales
de mostrar quiere mi pena,
temor com tristes senhales
todo mi bien desordena.
Amor que matar entende
mi mal se puedo sofrir
pues mesmo va descobrir
lo que mi seso defiende.
119
DUARTE DE BRITO.
Sam sete anos passados,
senhora Dona Ilena,
que vivo com tanta pena
que sam ja desesperados
meus dias, sem ter prazer,
com sospiros, pena tal,
que por nam sentir mais mal
peço morte por viver.
Por meu mal em vós folgar,
logo triste em vos ver
me comecei a doer
e tam tarde d' aqueixar
que minhas coitas dorosas
me nam dam lugar em fim
pera doer-me de mim
com lagrimas piadosas.
Cuidando de nam sentir
quanto mal por vós sentia,
amor me deu ousadia
pera meu mal descobrir.
Mas a pena encuberta
de minha justa querela
minha morte em dizê-la
veedes toda descuberta.
S' em dardes morte por vida
levais gram contentamento,
nam menos grorea sento
com meu mal, pois soes servida.
Que mais vos quero amando
morrer triste desta sorte
que mil vezes ver a morte,
minha pena vos calando.
Faz-me sentir menos mal,
mal de tam novo viver,
por nam poder esquecer
que moiro por ser leal.
Mas vossa grã esquivança
dores, coitas e tormentos,
com meus tristes pensamentos
vos daram de mim vingança.
Com grã dor, sem piadade,
de noite como de dia
sempre vivo em companhia
de desejo e saudade.
Faz-me triste quanto vejo
em cuidar cousas passadas,
as presentes sam choradas
de mim triste com desejo.
Se por mal meu bem haveis,
senhora Dona Ilena,
por esquecer minha pena
peço a morte que me deis,
pois vejo meu coraçam
sem emparo d' esperança,
com vossa pouca lembrança,
de meus males galardam.
E se algũs me julgarem
o estremo de meu mal
por fraqueza sofrer tal,
sei mui bem que se olharem
vossa grande fremosura
com vossos merecimentos
teram por bem os tormentos
em que vivo com tristura.
Faram menos minha culpa
minhas causas ser maiores,
que por vós com meus amores
desta culpa me desculpa.
Porque quem a vós perder
nam precure outra grorea,
e soo aquesta vitorea
alcanço por vos querer.
Fim.
Quem de meu viver ouvir
qu' em vida morte sostenho,
dirá quanta rezam tenho,
senhora, por vos servir:
porque quem a vós veraa,
s' algũa culpa m' assina,
vos fará disto tam dina
quanto a mim desculparaa.
120
CANTIGA SUA.
Pois quereis meu perdimento
sem de mim nunca sentir-vos,
se folgardes, mais consento
minha morte por servir-vos.
Com pena tanto crecida
tanto mal tenho sofrido
qu' antes morte que tal vida
quero, mais que ter perdida
esperança sobre perdido.
Pois com tantos males sento,
nam posso de mim partir-vos,
se folgardes, mais consento
minha morte por servir-vos.
121
DUARTE DE BRITO.
Haved dolor y pesar
de mis males grande duelo,
que despues de vos mirar
nunca más pude falhar
em vuestra beldad consuelo.
Ni reparo, porque muerte
no fuese de mi querida
mas que tal
vida triste, de tal suerte,
qu' es la vida dolorida
de mi mal.
Tanta es vuestra crueza
qu' el bevir me desempara,
tanto crece mi tristeza
quanto vuestra gram belheza
ante mis ojos se para.
Tanto em veros se acendió
em mi gram flama d' amor
com desear,
que mi gloria se perdió
y cobrase mi dolor
de vos mirar.
Quanto más triste deseo
ser menos mi mal que sea,
tanto más lo que poseo
dolor, coita, em que me veo
quiere que nunca lo vea.
Y con esto los mis males,
mis tristezas, y con elhas
mis enojos,
coitas y ravias mortales
acrecientan mis querelhas
a manojos.
La mi vida sostenelha
raviosa, cruda, fiera,
ganaria em perdelha,
mas la muerte por querelha
no me quiere que la quiera,
mas que viva por penarme,
porque muera más biviendo
quer ventura
darme vida y no matarme,
em que bivo yo muriendo
de tristura.
Son las sobras de tormientos
que mi lengua no renombra
los mis graves sentimentos
de dolores tam sim cuentos
qu' espanto delhos m' asombra.
No podiendo sobre tantos
esquivos males tamanhos
ya sofrir
pesares, lhoros y plantos
que los menos de mis danhos
puedo dezir.
Fim.
Io no siento mal que fuesse
que por mi se nom pasasse,
ni dolor que no sufriese,
ni muerte que me veniesse
que de grado no tomasse.
Mas la mi suerte cativa
de tantas lhagas me fiere
de cuidado
que la vida m' ees esquiva
y la muerte no me quiere
ya cuitado.
122
DUARTE DE BRITO JAZENDO
DOENTE, QUE LHE MANDOU
PREGUNTAR SUA DAMA
COMO ESTAVA.
A ti solo bien de mi vida
y plazer de mi tristura,
mi dulçor y amargura
por quem mi salud perdida
mi dolencia es sim cura.
A tal punto soy venido,
adolencido
com dolor del pensamiento,
que no sabe mi sentido
dezir triste lo que siento.
Nunca mi sospirar queda
de dar vozes com deseo,
mas dolor nunca te veo
de mi triste, por que pueda
descansar lo que poseo.
Nunca mis penas mortales,
desiguales,
em ti falhan compasion,
nunca gritos de mis males
despertarom galardom.
Nunca más te vi doler
de me ver por ti perdido
mas de ti sempre ferido
de mil muertes me vi ser
de ningum bien so querido.
Acurtaste mi bevir
por te servir,
mi dolor nunca t' olvida
donde más sem fim morir
veo triste la mi vida.
La mi vida pide muerte,
mi tormiento galardon,
mi cativo coraçon
de dolor y mal tam fuerte
no espera redencion.
Assi serviendo perdi
a ti y a mi,
a la fim com coita mia
piden muerte ante ti
mis tormientos cada dia.
Fim.
¡Oh inteira esperança
de los mis lhoros y pena,
de cruezas toda lhena,
de mi tristura folgança,
de mi soltura cadena!
La muerte que no me diste,
porque viste
que bevir es más dolor,
no la niegues a mi triste
sim ventura amador.
123
DUARTE DE BRITO.
Que dias tam mal gastados,
que noites tam mal dormidas,
que sonos tam desvelados,
que sospiros e cuidados,
que tristezas tam sentidas!
Que lembrança, que pesar,
que dor e que sentimento,
que gemer, que sospirar,
que males pera chorar
dentro em meu coraçam sento!
Sento sempre meu desejo
encontra de mim esquivo,
sento tanto mal que vejo
meu cuidado tam sobejo
que nam sam morto nem vivo.
Sento certa minha morte,
sento nam ver minha fim
sem ver bem que me conforte,
sento pena de tal sorte,
que nam sei parte de mim.
Vós, meu nojo e meu prazer,
meu pesar e minha groria,
meu desejo e meu querer,
vela de minha memoria,
descanso de meu viver.
Desamor de meu amor,
quem meu bem e mal ordena,
meu prazer e minha dor,
meu descanso, minha pena,
meu favor e desfavor.
Minha morte e minha vida,
meu bem e todo meu mal,
minha doença sentida,
minha doença e ferida
de minha chaga mortal.
Meu desejo e saudade,
de meus males galardam,
tormento sem piadade,
doce coita da vontade
de meu triste coraçam.
A memoria, enganada
de meus tristes pensamentos,
anda chea, desvelada,
em lagrimas mui banhada
com grã força de tormentos
e continua tristura,
com que ando sospirando
com voz chea d' amargura;
s' algum bem me daa ventura,
mo tiras desesperando.
Fim.
Dam a fee de meus gemidos
as lagrimas piadosas,
de que sentem meus sentidos
dos secretos escondidos
de minhas coitas dorosas.
Cada dia, cada hora,
assi ando desta arte,
de meu sentido tam fora
como quem canta e chora
que nam sabe de si parte.
124
CARTA DE DUARTE DE
BRITO A SUA
DAMA.
Senhora:
Pois vossa mercê nam crê
minha grande perdiçam,
dir-vos-á meu coraçam
quam mal faz vossa mercê
de matar a quem nam vê
outro bem
senam vós, triste por quem
sam perdido de remate,
sem saber vida que cate
e que me mate,
se folgais, milhor me vem.
Conquanto por vós s' ordena
mais meu mal, assi vos amo
e a mim tanto desamo
que folgo com minha pena.
É tam grande a mais pequena
dor que tenho
que vida, morte sostenho,
senhora, por vos amaar,
e se dor me faz cuidar
vos desamar,
comigo me desavenho.
Sempr' em vós, meu bem, cuidando
sam da morte desejoso
e da vida mais queixoso,
por meu mal se ir dobrando,
por vós mais me vam matando
as esquivanças
de minhas vivas lembranças
e raivas de meu coraçam,
que por vós vejo que sam
fim de minhas esperanças.
De vós mais que me cative,
eu sam mais desesperado
por amar-vos desamado,
ó mor bem que nunca tive;
e assi morrendo vive,
com esquivança,
a vida sem esperança
qu' ũa fee, cuja firmeza
nam pode vossa crueza
nem tristeza
fazer ja em mim mudança.
Se meus males à memoria
me vêm de quantos sostenho,
a vida por morte tenho,
a morte por viva grorea
onde mais sento vitorea.
De meus amores
sento triste tantas dores,
de tormentos tam crecidos,
que meus males desmedidos,
com gemidos,
de mim vejo matadores.
Por descanso de meu mal
vam crecendo meus cuidados,
de vós tam desesperados
qu' esperança me nam val,
e de vivo tam mortal
meu pesar
que muitas vezes cuidar
me faz cuidar o que sento:
que meu triste pensamento,
com tormento,
m' acab' entam de matar.
Se vos tanto nam amara,
nom sentira esquivança
de vós tam sem esperança,
ca se me desesperara,
nem por vós tal dor passara
como sento,
nem vira meu perdimento
ser ũa pena tam forte,
que nam sento nem sei morte
de tal sorte
que seja igual em tormento.
Oh quantas vezes cativo
vejo diante de mim
minha morte sem dar fim
à triste vida que vivo!
Ca meu mal é tam esquivo
qu' o que sento
com tam grande sofrimento
que será milhor morrer
ũa morte que sofrer,
por vos querer,
cada dia mais de cento.
Fim.
Leixo mil cousas passadas
de contar, cuja lembrança
sento sem ter esperança
de as ver gualardoadas.
Por nam serem mais lembradas
as desiguaes
tristezas minhas, mortais,
que sento por vos amar,
nam vos quero mais contar,
que as passar,
por me nam matarem mais.
125
DUARTE DE BRITO A SUA
DAMA, ESTANDO
PRESO.
Por vós, minha esperança,
fim de todo meu desejo,
de meus cuidados lembrança,
emparo da esquivança
dos males em que me vejo;
por vós vivo tam penado,
vida triste de tal sorte,
d' esperança tam roubado
que desejo ver trocado
minha vida pola morte.
Meu desejo com porfia,
com cuidado, é tam sobejo
que de noite e de dia
ante minha fantesia
sem vos ver sempre vos vejo.
Sem saber mais bem que cate
com que minha dor conforte,
mas meu mal neste combate
nam daa vida sem que mate
nem remedio sem dar morte.
Meu desejo com lembrança
querendo mais esforçar-me,
quanto bem dele s' alcança
leva logo a esperança
pera mais desesperar-me.
Minha vida por morrer
descontente se contenta,
ca por vosso merecer
meu pesar me daa prazer
quando meu mal me presenta.
Menos de vós esperando
meu cativo coraçam,
sempre em vós, meu bem, cuidando
dá mais vida desejando
a meu mal por galardam.
De maneira que cativo
a triste vida que sento,
do meu grande mal esquivo,
meu cuidaddo torna vivo
quanto mata meu tormento.
Fim.
Folgara por nam penar
poder-vos nunca servir,
por leixar de desejar
a vida por vos amar,
a morte por nam sentir.
Chorarei, porque naci,
meus males sempre comigo,
ca, meu bem, des que vos vi
meus sospiros apos si
levam minh' alma consigo.
126
REPOSTA DE DUARTE DE BRITO
A ŨA CARTA QUE LHE
MANDOU SUA
DAMA
Ó vós, todo meu querer,
meu primeiro sospirar,
meu derradeiro prazer,
desejo de meu viver,
começo de meu pesar,
doei-vos de mim cativo,
que vivo e nam sei como,
pois nam sam morto nem vivo,
mas de tanto mal esquivo
por remedio morte tomo.
Sempre triste tal me vejo,
de prazer tam apartado,
que com bem e mal que vejo,
meus sospiros com desejo
me têm à morte chegado.
De ver ir com desamor,
tal vida como sostenho,
sempre de mal em pior,
em mim sempre fica dor
no mor conforto que tenho.
De vos ver me vejo tal
com dor qu' assi m' atormenta,
com pena tam desigual
que nam sento nem sei mal
que meu coraçam nam senta.
Sem lembrar-me de mais vida
da que servindo perdi,
qu' em sospiros convertida,
d' esperança despedida,
desd' a hora que vos vi.
Pois folgais com meu penar
e penais com meu prazer,
quero, por mais vos amar,
que vivais em me matar
e eu que moira em vos querer.
Pois vejo por vos servir
que meu mal nunca sentistes,
eu de mil penas sentir
minhas lagrimas seguir
vejo a meus sospiros tristes.
Com grã dor de meu cuidado,
de mortal chaga ferido,
tanto me vejo penado
que amando desamado
vos perdi e sam perdido.
Minha vida sem ventura,
d' esperança descuberta,
é tam chea de trestura
que o bem que me precura
é de ver a morte certa.
Fim
Tam cruel pena consento
que me sam mortal immigo,
mas que cale meu tormento,
os sospiros do que sento
vos diram o que nam digo.
Ó morte de mim querida,
nam queirais ja mais tardar!
Pois que vivo sem ter vida,
vós sereis nisto servida,
eu content' em acabar.
127
DUARTE DE BRITO QUE
HAVIA MUITO QUE NAM
VIRA SUA DAMA.
De vos ver a mi vencido
me veyo por vos morir,
por vos me veyo perdido
d' esperança despedido,
mas no de triste vevir.
Por vos morte se m' ordena
olhando vossa beldad,
es mi gloria fecha pena
y el mirarvos la cadena
que prendió mi libertad.
Sobre mi vuestro poder
com mi aspera crueza
mi servirvos y querer
hame dado a conocer
vuestro amor y mi tristeza.
Mas mirad que sim razon,
que por ser desconocida,
por matar el galardon,
dais la muerte al coraçon
que sim vos no vive vida.
Comigo por vos lhorando,
mi vida que nunca muere
anda la muerte lhamando
com deseo sospirando
que matarme nunca quiere.
Quer que biva por sofrir
mi dolor de tal manera
el bevir pera sentir,
el morir por no bevir,
porque no biva ni muera.
Com mil dolores mortales
mirando vuestra vertud
los estremos que som tales
em la muerte com mis males
vam buscar a la salud.
Y ansi por esta via
por la mi triste ventura,
com dolor sim gram porfia,
daraa fim la vida mia,
mas no fim la mi tristura.
Fim.
Pues que tanto lo que quiero
de mi lexos está dudoso,
doledvos de mi que muero,
lhorad la vida qu' espero,
coraçon triste, pensoso.
Porque a todo mi sentir
mis sentidos sojuzgados,
pensando los por venir
los dias de mi bevir
ya los cuentos por pasados.
128
DUARTE DE BRITO, ESPEDI‑
MENTO DA PARTIDA.
Antes de ser a partida,
que de vós me desespera,
que será de quem espera
de primeiro nam ter vida!
Que seraa triste de mim
que sem ver-vos, com pesar,
desejo de me matar
por meus males darem fim!
Com pena de mil tormentos
vevirei vida morrendo,
sem vos ver sempre vos vendo
em meus tristes pensamentos.
E com vida triste tal,
se vos nam vir desta sorte,
com esperança de morte
curarei todo meu mal.
Sem vos ver com gram pesar
com meus males desmedidos,
nam farei senam chorar
com sospiros e gemidos.
Porque morte que nam queira
nem a vida consentir,
o tempo que nam vos vir
passarei desta maneira.
E assi vivo sem vida
e desejo de morrer,
viverei onde viver
com dor de morte sentida.
Dos que vivem sem cuidados
meu viver seraa ausente,
com lembranças do presente
chorarei tempos passados.
Onde triste, sem ventura,
sendo mais vosso cativo,
serei morto sendo vivo
sem ver vossa fremosura.
Com minha vida cativa
sem esperar redençam
em meu triste coraçam
vos verei enquanto viva.
Fim.
E assi seraa meu mal
deste bem galardoado
e aqui seraa acabado
meu tormento desigual.
E aqui donde partir,
partindo com gram pesar,
olhos que me viram ir
nunca me veram tornar.
129
DE DUARTE DE BRITO A
JOHAM GOMEZ
DA ILHA.
Eu corto tanto d' agudo,
onde quer que ponho a lingua,
que farei falar o mudo
e calar ũu gram sesudo,
ou ficar em grande mingua.
Nam hajais por maravilha
nam vos errar ũa melha
por cortar por roupa velha,
mas nam pola de Sevilha.
Isto é como anagaça
por vos tirar da barreira,
por ouvir algũa graça,
mas cospinho pera a chaça
nam tereis à derradeira.
Eram vossos tempos autos
nas festas da Emperatriz,
mas agora calar chiz,
nam é tempo de cris autos.
Nam vos toco mais azedo
por nam desfechar em vãao,
mas nam ja com vosso medo,
porque sei que tarde ou cedo
m' haveis de cair na mão.
Precurai outra ciencia
leixar a mim o trovar,
nam vos quero mais picar
por cargo de conciencia.
Com minha orelha pença
que como lobo embuça,
leixo por vossa presença
dina de gram reverença
tornar mais a escaramuça.
Bem contesto quanto avonda,
pois dou sempre polo alvo,
quem repica, está em salvo,
quem houver medo, s' esconda.
Reposta de Joham Gomez
polos consoantes da pri‑
meira trova.
O vosso udo e meudo
me rompe pola relinga,
vem o treu cá tam sanhudo
que meu masto com seu tudo
ja vai fora da relinga.
Os pregos deixam a quilha
por ser muito velha relha,
mas o irmão d' Avangelha
me salva com Calçadilha.
Duarte de Brito polos
consoantes.
Dais pedrada em vosso escudo,
vossa reposta me vinga,
com errardes vós concludo,
de meu fraco saber rudo,
qu' encalhastes na restinga.
Tal reposta ponde em pilha,
pois errastes toda aquelha,
tomai a pôr na querelha
trovar mal e parir filha.
Duarte de Brito a Joham
Gomez, porque lhe
nam respondeo.
Como beesteiro de monte,
que sabe furtar o vento
por fazer milhor chegada,
com sua beesta na fronte
passo e passo com gram tento,
porque dê milhor seetada,
assi eu com minhas trovas,
levemente, com saber,
vos furtei os consoantes
por ũas palavras novas
que d' agudas e galantes
nam lhe sabeis responder .
Reposta de Joham Gomez
polos consoantes.
Vós me fareis que remonte
o mais alto acimento
como garça falcoada,
ou me fareis que tresmonte,
como de acossamento
faz ũu cervo de levada.
Ca me provais duas provas
mais fortes que diamantes,
assi craras d' entender,
que ressurgindo das covas
os cientes trespassantes
as nam possam comprender.
130
DE DUARTE DE BRITO
A ŨA SENHORA.
Desmaio de meus amores,
fim de minha triste vida,
oh cruel, mortal ferida,
oh chagas de minhas dores,
desejo desesperado
de meu triste pensamento,
galardam de meu tormento,
lembrança de meu cuidado!
Oh descanso de meu mal,
esperança de meu bem,
donde quanto mal me vem
hei por groria desigual!
Oh querer de meu querer,
oh causa de meus cramores,
começo de minhas dores,
fim de todo meu prazer!
Oh meu menos galardam,
oh de mim tanto querida,
desejo de minha vida
e dor de meu coraçam!
Oh de mim sempre memoria,
de meus dias sepultura,
minha dor e gram tristura,
de meus olhos vivos groria!
Tanto me forçou vontade
a querer-vos de tal sorte
que me dais vida por morte
mui cruel sem piedade.
Tantos sam os sentimentos
da minha grande tristeza,
que nam sento da crueza,
que nam senta de tormentos.
Tam vencido é o desejo
de meu triste pensamento
qu' ee tornado em tormento
o cuidado em que me vejo.
De maneira que viver
nam desejo nem queria,
de morrer me pesaria
por servir-vos nam poder.
Fim.
Mas a morte é forçado
de vós e de mim amiga
que vos livre de fadiga
e a mim triste de cuidado.
Assi triste acabaria
minha vida sem ventura,
com ajuda de tristura
muito mais a mim faria.
131
OUTRAS SUAS.
Alegre pena de mim,
doce tormento e mal
de minha vida,
de meus dias triste fim,
de mim sempre por meu mal
bem querida.
De meus olhos alegria,
trestura, dor e gemido
de meu coraçam,
por quem choro noite e dia,
viva dor de meu sentido
e perdiçam!
Doce pera meu desejo,
triste pera minha vida
mal lograda,
bem do mal em que me vejo,
minha morte conhecida,
desejada.
Cruel a mim desleal
que por meu mal escolhi
com grande amor,
e por quem sento meu mal,
mas bem nunca conheci
com desfavor.
Desfalece meu sentido,
meu juizo sem memoria
contemprando
esforça-se com gemido,
minha pena me dá groria
desejando.
Meu cuidado me desvela,
meu coraçam piadade
vos demanda,
e minh' alma se querela
com pena de crueldade
em que anda.
Que gainho de minha morte
e perda de minha vida
tam cativa,
esperar pera tam forte
me dar pena tam crecida,
tam esquiva!
Nam sei que vos possa vir
de meus males outro bem
com minha fim,
senam folgardes d' ouvir
dizer mal quantos me vem
a vós por mim.
Pois galardam de meu mal
ha-de ser a sepultura,
ja, cativo,
sam chegado a tempo tal
que sam morto de tristura
sendo vivo.
Por amor qu' em mi sempr' aarde
faz-me bem e gram pesar
mui sem medida,
pera meu remedio tarde,
e cedo pera chorar
minha vida.
Fim.
Ó morte tam piadosa,
onda cruel e immiga
sem ventura,
de meus males desejosa,
de meus pesares amiga.
Com trestura,
gram conforto meu tormento
com a moorte tomaria
por acabar,
e meu triste pensamento
como eu descansaria
de sospirar.
132
DO PRINCEPE DOM AFONSO, QUE
DEOS TEM, EM MODO DE
LAMENTAÇAM.
A lagrimas tristes, a tristes cuidados,
a graves angustias, a mortal dolor,
tu t' apareja, discreto leitor,
lendo mis lhantos tan amargurados.
Mortales singultos, sospiros dobrados,
dad fim a mi vida, que es pena mayor,
y quebren mis ojos, pues viran quebrados
los vuestros ¡oh Princepe nuestro Senhor!
¿Que fue de la vuestra tan linda estatura,
que tanto excedia las otras del mundo,
la fronte serena del rostro jocundo,
que fue de la vuestra hermosa fegura?
¿Ado halharemos a la hermosura
de los vuestros ojos tan mucho estremados?
Vayamos, seguidme, ¡oh desventurados!
rompamos, rompamos la su sepultura,
A ver se halharemos sus muy sublimadas
virtudes ynmensas, autos muy humanos,
a ver se halharemos sus muy lindas manos,
por muchas mercedes de todos besadas.
¡Oh fiestas malditas, desaventuradas,
que luego tan presto vos haveis tornado
em lhoro el prazer, enxerga el borcado,
las danças en otras muy desatinadas!
¿Ado vos lhevaron, oh nuestro plazer,
que assi tan apriessa, Senhor, vos partistes,
que a vuestros padres y cara mujer
ninguna palavra dezir le podistes?
Ni a vuestro tio que tanto quesistes
cosa del mundo quisestes oir,
assi los dexastes a todos tan tristes
que fueron alegres d' entonces morir.
¿Que hará vuestro padre que assi vos amava,
que dia ninguno podia bevir
sin vervos naquel entrar y salir
dozientas mil vezes ado el estava?
El que de vervos jamas se hartava,
que muerte tan fiera le será el ausencia,
desesperado de ver la presencia
daquel que com tanto recelo criava.
¡Guay de la madre que vio tan aina
el bien de su vida assi fenecer,
a quien solorgia, saber, medicina,
poder ni riquezas podieron valer!
Quedó despedida de jamas vos ver
ni de ver cosa que no fuesse pena,
¡oh muerte maldita, que más mal ordena
a quien en tal vida da permanecer!
¡Oh alta Princesa, la más virtuosa
que oyeron ni vieron jamas los humanos,
del vuestro marido sin fin deseosa,
sin fin deseada de los lusitanos!
Nefanda Furtuna y casos mundanos
por nuestros pecados han deliberado
de los vuestros braços ser arrebatado
y puesto de donde le coman gusanos.
¡O quan desimiles fueron y son
la vuestra venida y vuestra tornada,
la una tan prospera y tan sublimada,
la otra tan lhena de tribulacion!
De marmor por cierto es la condicion
que pudo sofrir ver como partistes,
se vido y se niembra de como venistes
de tan poco tiempo tan gran mutacion.
¡Oh inclito Duque, el tu sentimiento
aunq' escrevir quisesse mi pluma
es empossible que sola la suma
diga, si quiere dezir tu tormento!
Tus ojos nos muestran que tu pensamento
jamas no se parte de quien te partiste,
aquel su tristeza passó num momento
e tu pera siempre ternás vida triste.
A tal desventura, a mal tan crecido,
es emposible poder consolar
tu anima triste, que tiene perdido
habitaculo otro muy singular.
Por cierto naquesto no hay que dudar,
que es conclusion muy cierta y muy prima
qu' el anima nuestra alhi suelle estar
más donde ama que no donde anima.
Quan prospero fuera quien fuera delante,
por no ver la cumbre de tanta tristura,
y participara de su sepultura
quien fue de su camara participante.
Tristes daquelhos que agora denante
cantamos sus bodas en lento consorcio,
aora lhoramos su triste devorcio
del uno al otro no hovo un estante.
Fim.
Qualquiera que sufre tan grave manzilha
no busque manera de ser consolado,
no menos m' escusa aquesta obrezilha,
pues lamentacion sea intitulado.
Dios todo poderoso ser deve rogado
que aquesta muerte, que agora lhoramos,
que nos neste mundo da triste cuidado
nel otro nos cause que alegres seamos.
133
DE DOM JOHAM MANUEL.
Por donde começaremos,
coraçam triste, a dizer
tristeza quanta sofremos
que nos nam presta sofrer.
Nam presta dissimular,
muito menos descobrir,
nam val calar nem falar
serviços nem desservir.
Tudo vem a ũa conta
ante quem meu mal ordena,
por fadiga nem por pena
nenhũu mal se me desconta.
Ventura, vós que causastes
que nom sei remediar-me,
acabai ou acabai-me,
pois tam cedo começastes.
Ainda nam acabara
de chorar casos passados,
quando com novos cuidados
vossa vista me depara.
Vendo-me perder assi
nunca me quis desviar,
antes me deixei forçar
dos olhos com que vos vi.
Comprendeo esta querela
a vós, senhora, e a mim,
a vós que soes causa dela,
a mim que a consenti.
Mas s' a mim nam me desculpa
serdes vós tam acabada,
chamar quero a minha culpa
culpa bem aventurada.
Fim.
Ficamos eu desculpado
e vós, senhora, obrigada
a sequer serdes lembrada
de meu cativo cuidado.
E se por consentidor
pena algũa mereci,
desconte-se pola dor
que de ver-vos recebi.
134
SUAS A ŨA SENHORA SEM
SE NOMEAR.
Quem, sem lho eu merecer,
me causou mal tam crecido,
nunca Deos lhe dê prazer
nem marido.
Todo seu segredo seja
descuberto,
nunca seu desejo veja
comprido com fim honesto.
E todolos seus amigos
lhe queiram mal de verdade,
hajam dela seus imigos
piadade.
E de quem for namorada,
cada dia
se veja tam desprezada
que moira de fantesia.
Deos lhe mande tristes fadas,
seus sospiros e gemidos
sejam dele respondidos
com rinchadas.
Mais que ela seja fermosa,
a terceira,
seja dela tam raivosa
que se torne feiticeira.
Bocado quente nem frio
que dele fique da cea,
nem muito menos candea,
cabelos seus por pavio,
carta queimada e bebida,
que lhe dem,
a façam menos querida,
querendo-lh' ela mor bem.
Quanto bem fantesiar
polo contrairo lhe venha
e quanto mal esperar
tanto tenha.
Ao pee da fresta adormeça,
se vier,
e cada dia avorreça
a vida mais qu' o morrer.
Fim.
Com muito prazer se vaa
e ela fique chorando,
ande sempre preguntando:
— Casou jaa?
Respondam: — Por certo ham
que é casado,
para que fique vingado
Dom Joham.
135
CANTIGA SUA.
Minha ventura minguada
que amasse m' ordenou
a molher que mais errou
contra quem a mais amou
do que foi molher amada.
Oh se nunca conhecera
cousa tam desconhecida,
nam gastara minha vida,
nem folgara ter servida
quem mo nam agradecera!
Fortuna desordenada,
que meu bem desordenou,
fez errar a quem errou
contra quem a mais amou
do que foi molher amada.
136
PREGUNTA DE DOM JOHAM
MANUEL A ALVARO
DE BRITO.
Aprendi de Ciçarram
qu' ha via d' amoestar,
d' alegar ou d' ensinar
qualquer prudente sermam.
E pois sois outro Platam,
esta duvida pequena,
pondo no papel a pena,
ma tireis do coraçam.
Se fosse mui namorado,
cousa que Deos nunca mande,
qual terei determinado
de dous males qual mais grande:
sendo ela mui fermosa
achá-la muito sentida
de mim e muito quexosa,
ou antes mui esquecida?
Reposta d' Alvaro de Brito
polos consoantes.
Em prudencia soes Catam,
antre nós um singular
de inventar, executar
façanhas de Cepiam.
Com franca desposiçam,
senhor, sem tino, sem lena,
respondo ledo, sem pena,
à vossa gentil questam.
Namorar nam é pecado
onde amor nam se desmande,
mas o mui sobrepojado
eu nam sei como s' abrande.
Esquecida, desdanhosa,
mais mal traz sendo querida
que a queixosa, sanhosa,
sentida, nam esquecida.
De Dom Joam polos
consoantes.
Vossa muita discriçam,
gentil modo de trovar,
faraa crer e confessar
cousas de contradiçam.
Mas pois qu' esta altrecaçam
d' amores se nos ordena,
quem faz com eles querena
sabe sua condiçam.
Primeiro crucificado
me veja que neles ande,
qu' assi fiquei assombrado
d' ũus que me Deos nam demande.
Achá-la muito sanhosa
causa dor muito crecida,
esquecida pior vida,
dama menos trabalhosa.
Alvaro de Brito polos
consoantes.
Com alta repricaçam
me fezestes embranhar
e tornei-m' a confortar
com minha openiam.
Conformes a tal tençam
Mancias, Pares, Helena,
e com estes Joam de Mena,
Joam Roiz del Padram.
No namorado cuidado
força de fortes s' abrande,
d' esquecido, sogigado,
nam sei mal que mais tresande.
Queixosa torna amorosa
quando se vê bem servida,
mas a dama que s' olvida
mata mais de grandiosa.
137
DE DOM JOHAM MANUEL ESTAN‑
DO NA GRACIOSA, EM
LOUVOR DE NOSSA
SENHORA.
Ó Virgem, madre de Quem
todalas cousas criou,
o Rei qu' em Jerusalem
por seu sangue nos comprou.
O Qual Te porificou
dando-Te vertude tanta
que Te fez cousa mais santa
de quantas Ele formou.
Tu louvada dos Profetas
e dos Anjos noite e dia,
Tu, vitoria nos envia,
dos danados macometas.
Perdam de culpas secretas
a teu Filho nos emplora
e tambem das descubertas,
pois es nossa entrecessora.
138
DOM JOAM MANUEL
EM LOUVOR DE
SANTO ANDRE.
Apostolo santeficado
primeiro na santa lei,
cujo corpo consagrado
assi foi cruceficado
como o devino Rei.
Que antes de padecer,
vendo a cruz espantosa,
começaste sem temer
alegremente dizer:
— Oh salvé cruz preciosa,
Exclamaçam.
Poetas ou trovadores
que despendeis vossos dias
em dizer cem mil primores
de Copido e de Mancias,
do bem nam diz bem ninguem,
e mal louvaes desigual,
sois trovadores do bem
e bendizentes do mal.
Mais fez certo Santo Andre,
santo per Deos escolhido,
por Jesu de Nazaree
que Piramo por Tisbee,
nem que por Eneas Dido.
Mas s' ele assi padecera,
como por Deos, por amores,
oh quam muitos de louvores
de vós todos recebera!
A graça com que trovaes
a vida de Deos eterno
com ela nunca O louvaes,
mas louvaes e invocaes
os diaabos do inferno.
Nom vedes que mereceis
por isto duro castigo,
sabeis que traiçam fazeis
co que d' Ele recebeis
is servir a seu immigo.
Mas viraa o espantoso
juizo de quem se conta,
qu' a Deos todo poderoso
de todo verbo oucioso
daremos estreita conta.
O qual pois que nos desconta
as palavras ouciosas,
por mentiras tam pasmosas
contemprai que se nos monta.
Oraçam em fim.
Apostolo santo primeiro,
de grande merecimento,
pois te quis Deos verdadeiro
na vida por companheiro
e por çocio no tormento.
A ti com gram devaçam
pedimos os sopricantes
qu' ante Deos tua paixam
de teu alto gualardam
nos faça partecipantes.
139
CANTIGA.
Triste ¿ que seraa de mi?
que mire tu gran beldad,
que temo desque te vi
no pierda libertad.
Y seré yo cativado,
siendo livre nacido,
y no seré libertado,
antes seré sometido.
A ti que poder en mi
tienes por tu gran beldad,
que temo desque te vi
no pierda la libertad.
Grosa de Dom Joham Manuel
a esta cantiga.
Pues es cierto a los que viven
penada vida por ti
que quanto mejor te sirven,
maiores penas reciben,
triste ¿que será de mi?
Si el que más te servir
com fee, amor y lealtad,
mayor pena ha de sofrir,
por mi mal puedo dizer
que miree tu gran beldad.
Y por mi gran desventura
pienso que te conoci,
pues tu mucha hermosura
la muerte no me segura
que temo desque te vi.
Mas ni solo este temor
sostiene mi voluntad,
ca otro tiene mayor,
el qual es que por amor
no pierda la libertad.
La qual despues de perdida
viendome desesperado,
que vida será mi vida,
pues que hasta su fenida
seré yo cativado.
Ca por menos mal hoviera
la muerte que haver sido,
com toda mi pena fiera,
cativo fasta que muera
siendo libre nacido.
Assi que mi mal secreto
será tan continuado,
que sey tiengo por cierto
que por el seré yo muerto
yo no seré libertado.
Y mi coraçon dará
causa a mi mal tan crecido,
mas de si me vengaraa,
pues nunca libre seraa,
antes seré sometido.
Mas lo que me satisfaze
el mal qu' espero de ti
es que si muerte me traze,
soy cierto que no desplaze
a ti que poder em mi
tanto tienes que mudarme
no puede tu crueldad,
que seraa grande matarme,
pues que poder de salvarme
tienes por tu gran beldad.
Mas ni esta sogeicion,
ni los males que me di
desvian mi coraçon
de la terrible passion
que temo desque te vi.
Antes mi determinado
quiere su catividad,
mas lo que temor le ha dado
es que siendo desamado
no pierda la libertad..
140
CANTIGA DE DIOGO
DE SALDANHA.
Ojos tristes, ojos tristes,
triste coraçon pensoso,
estando ya de reposo
nuevo cuidado me distes.
De mi vida trabajosa
¿quien halharé que se duela?
Mi anima querelhosa
em pena mal se consuela.
Vos fezistes, vos fezistes
a mi de vos querelhoso,
ojos tristes, yo no oso
dezir de quien vos vencistes.
Grosa de Dom Joam Manuel
a esta cantiga.
¡Oh vida desesperada
de nunca plazer sentir,
triste, muy desventurada,
deseosa de morir!
¡Oh cativos amadores,
qu' el mal que siento sentistes,
doledvos de mis dolores!
¡oh de mi mal causadores,
ojos tristes, ojos tristes!
Por vuestra contemplacion
ordenoo mi triste suerte
a mi terrible passion
pues vuestra conversacion
a mi coraçon es muerte.
Y con este sentimiento
vivo yo mucho quexoso,
pues por su contentamiento
tu recibes el tormiento,
triste coraçon pensoso.
Mas no tan mucho me diera
si el mal que de nuevo siento
naquel tiempo me viniera
en que yo desta manera
con mi mal era contento.
Mas mi ventura no buena
y mi hado desdichoso
dieron, por darme más pena,
a mi libertad cadena
estando ya de reposo.
Los quales tanta mudança
quieren que mi vida pene,
que ningun plazer alcança,
ni tiene más esperança
que quanta la fee contiene.
Y daquesto lastimada
me dizen: — Siempre quesistes
en muerte verme tornada,
pues que veo que de nada
nuevo cuidado me distes.
Mas yo, que más ajeno
de mi que de culpa soy,
le digo: — Se mucho peno,
de merecimento lheno
me haze el mal que me doy.
Replica hombre perdido:
— Dartean paga danhosa,
siendo ya de mi partido.
Y aqui quedee vencido
de mi vida trabajosa.
E quanto más la rezon
m' ees contraria de todo,
más me daa tribulacion,
pues viendo mi perdicion
le sigo contrario modo.
Por lo qual ¿quien con passion
terná del mal que m' assuela?
ca pues no mi coraçon
se duele de mi passion,
¿quien halharé que se duela?
Mas no se dev' entender
que quien causa desto fuesse
se no deva condoler
de la que hizo perder
el poder pera valerse.
Ca pues fue causa evidente
de mi muerte tan raviosa
qu' es el efeito siguiente
sentir deve el mal que siente
mi anima querelhosa.
El qual es de comportar
assi grave y tan profundo,
tan sin remedio penar,
que me haze desear
lo que teme todo el mundo.
Por morir mi pena fuerte,
que mi coraçon recela,
vida me dará la muerte,
pues que viviendo mi suerte
en pena mal se consuela.
¡Oh si nacido no fuera!
¡Oh fados, que m' otorgaastes
la vida que no tuviera,
tal vida no me prendiera
qual mis ojos me causastes!
Ca por vos me fue venida
mi passion, despues que vistes
quien es con mi mal servida
y ser tan triste mi vida
vos fezistes, vos fezistes.
Vos fezistes mi tormiento
tan grande ser y tan fiero,
que mi gran merecimiento
me deve tener contento
y la gran fama qu' espiero.
Fezistes mi perdicion
ser cierta, siendo dudoso
de recebir gualardon,
lo qual hizo con razon
a mi de vos querelhoso.
Item por más mi passion
ser terrible de sofrir,
feristes mi coraçon
con pena de tal facion
que no la oso dezir.
Y a quien dezir devria
halhome tan temeroso
que mil vezes en el dia
dezirle mi mal podria,
ojos tristes, y no oso.
Fim.
Contodo no tardaraa
dezirlo y guanaree
que algun bien me hará
o tanto mal me daraa
que muera y acabaree.
Y pues nel mal que me vino,
tristes ojos, me posistes,
por mi tormiento contino
haver fim yo determino
dezir de quien vos vencistes.
141
Despedistesme, senhora,
vida mia ¿ado m' iree?
No biviré sola un' hora,
cierto es que moriré.
Irme he a tierras estranhas,
ali tal vida haree,
vida com las alimanhas
tal consuelo me daree.
Altas bozes bradaree:
— ¿Do está la mi senhora?
No biviree sola un' hora,
cierto es que moriree.
Grosa de Dom Joham Manuel
a esta cantiga.
Naqueste tiempo de agora,
quando más triste me vi,
quando más pena senti,
despedisteme, senhora.
¡Oh fermosura sin medio!
¿como, me consolaree?
Sin vervos no ha remedio,
¿vida mia, ado m' iree?
Siempre mi pena empeora,
siempre crece mi cuidado,
pues sin vos desventurado
no biviree sola un' hora.
¡Oh triste! ¿ado fuiree
que no me mate tristura?
No viendo tu hermosura
cierto es que moriree.
En mi mostraste tus sanhas,
olvidada de mi danho,
mas pues mi hazes estranho
irme he a tierras estranhas.
Alhi siempre lhoraré
mi vida desventurada,
triste y muy desconsolada,
alhi tal vida faree.
Coraçon desventurado,
tu que siempre me acompanhas,
bivirás desconsolado
vida con las alimanhas.
Las yervas siempre comiendo
mis lagrimas beveree,
mis males siempre gemiendo
tal consuelo me daree.
Será em estremo acabada
mi vida, mas no mi fee,
y por mi muerte cuitada
altas bozes bradaree.
Y diree con gran tormiento,
de que fueste causadora:
—¡ Oh muy triste pensamiento!
¿donde está la mi senhora?
Fim.
Donde está que no la veo?
muestrame mi matadora,
ca pues tal vida posseo
no biviré sola un' hora.
Y a mi triste sentido
con veria descansaree,
que pues me ha despedido
cierto es que moriree.
142
ŨA FALA OU PALAVRAS MO‑
RAES, FEITAS POR DOM JOHAM
MANUEL, CAMAREIRO-MOOR
DO MUI ALTO PRINCEPE
EL-REI DOM MA‑
NUEL NOSSO
SENHOR.
Nunca vi antre privados
verdadeira amizade,
nem falar muita verdade
òs em tratos enfrascados;
nem serem mui aguardados
dos galantes seus senhores,
nem os muito sensabores
que fossem mui avisados;
nem homens mais enganados
que os princepes e reis,
nem ser ũas mesmas leis
a grandes e a pequenos;
nem homens que tenham menos
que os muito verdadeiros,
nem vi pobres lejongeiros
senam se sam mal descretos;
nem homens menos secretos
que os mui vaão groriosos,
nem os muito graciosos
que nam sejam maldizentes;
nem vi nunca boons parentes
os da parte da molher,
nem oficio d' escrever
mal servido de presentes;
nem homens menos contentes
que os de mui grande estado,
nem viver desempenhado
quem vergonha ha-de pedir;
nem algum muito bolir
que fosse muito sesudo,
nem vi nunca grande agudo
que nam toque de doudice;
nem no mundo mor pequice
que casar com molher fea,
nem homem que pouco lea
que seja mui sengular;
nem vi muito rebolar
o ardido cavaleiro,
nem mais certo alcoviteiro
que o fisico judeu;
nem diligente sandeu
que nam dane quanto serve,
nem vi homem muito leve
que se nam queira vender;
nem homens menos saber
qu' os que presumem muito,
nem mor doudice que luto
mais de tres meses trazer;
nem dous negoceos ter
que ambos se nam perdessem,
nem trovas que s' escrevessem
assi como foram feitas;
nem milhor cousa que peitas
pera ser bem despachado,
nem homem mui esmerado
que fosse muito galante;
nem algum corpo gigante
de gigante coraçam,
nem serviço de vilãao
que folgueis ter aceitado;
nem santo canonizado
que fosse gram caçador,
nem algum brasfamador
que morresse d' entrevado;
nem rei de outrem mandado
que dos seus fosse benquisto,
nem mais certo Antecristo
que o velho vingativo;
nem emperador altivo
mais que o vilão honrado,
nem viver mui descansado
quem tem a mulher garrida;
nem no mundo milhor vida
qu' a da crasta ou do estudo,
nem quem quer falar em tudo
que saiba falar em parte;
nem no mundo milhor arte
qu' a qu' ensina a bem viver,
nem outro maior prazer
que esprementar amigo;
nem outro maior perigo
que pousar com moucarrõoes,
nem vi mais certas rezões
que d' escudeiro d' alem;
nem senhor que solte bem
que nam seja mui amado,
nem vi princepe louvado
que nam fosse liberal;
nem no reino maior mal
que roins desembargadores,
nem esmerados cantores
serem sempre d' um senhor;
nem vi neicio trovador,
nem sandeu mal razoado,
nem judeu gram leterado,
nem mouro mui verdadeiro;
nem ter soma de dinheiro
nenhum grande alquemista,
nem homem de pouca vista
que o queira confessar;
nem dama muito chilrar
que enjeite os servidores,
nem morrer homem d' amores
senam depois de casado;
nem outro maior cuidado
do que a sospeita daa,
nem vi condiçam tam maa
como é dos envejosos;
nem homens mui regurosos
que nam caiam em desordem,
nem bestas que mais engordem
qu' as que sofrem as esporas;
nem mui altivas senhoras
senam doudas craramente,
nem outra mais douda gente
qu' a do monte e d' estribeira;
nem algũa alcoviteira
que nam seja mentirosa,
nem alguem na Graciosa
que desse açucar rosado;
nem molher d' homem privado
que seja pouco pomposa,
nem cousa mais vergonhosa
que quem faz o que reprende;
nem velho que se enmende
de vicio habituado,
nem homem mais aviltado
qu' oo qu' algũas vezes mente;
nem neste mundo excelente
cousa mais que a boa fama,
nem amizade de dama
que dure boons quinze dias;
nem sostedor de prefias
senam desarrazoado,
nem homem mais esforçado
qu' oo vencedor da vontade;
nem vesitar a bom frade
as donas sempre da vila,
nem Caribides nem Cila
perigosas mais que o paço;
nem per' alma mor embaraço
do qu' ee esta honra negra,
nem outra mais linda regra
do que é a de Sam Barnardo;
nem homem que sendo sardo
nam fosse malecioso,
nem rico mui engenhoso
que lhe nam custasse caro;
nem vi homem mui avaro
senam cheo de limpeza,
nem outra maior cimpreza
que vãa groria de vertude;
nem nos vencidos saude
senam nam na esperar,
nem vi bispo vesitar
como deve seu bispado;
nem vi benefeciado
sem coroa ou semonia,
nem outra mor ousadia
que deixar aquele mundo,
por nom cair no profundo
inferno sem alegria.
143
QUISER VIVER EM PAZ.
Ouve, vê e cala,
e viverás vida folgada.
Tua porta cerrarás,
teu vezinho louvarás,
quanto podes nam farás,
quanto sabes nam dirás,
quanto ves nam julgarás,
quanto oves nam crerás,
se queres viver em paz.
Seis cousas sempre vê,
quando falares te mando:
de quem falas, onde e quê,
e a quem, como e quando.
Nunca fies nem perfies,
nem a outro enjuries,
nom estês muito na praça,
nem te rias de quem passa,
seja teu todo o que vestes;
a ribaldos nam doestes,
nam cavalgarás em potro,
nem ta molher gabes a outro;
nom cures de ser picam
nem travar contra rezam.
Assi lograrás tas cãas
com tuas queixadas sãas.
144
ESPARÇA SUA.
Se m' atromenta tristeza,
que tantos males m' ordena,
é porque minha firmeza
é maior que minha pena.
E que me veja matar,
conforto devo de ter
em ver tam viva ficar
a rezam d' assi nom ser.
145
CANTIGA SUA.
Nam pode triste viver
quem esperança deixar,
nem ha no mundo prazer
igual a desesperar.
A esperança comprida
bem vedes quam pouco dura,
e dura sempre a trestura
antes e depois da vida.
Quem esperança tomar
sempre tristeza ha-de ter,
quem quiser ledo viver
saiba-se desesperar.
146
OUTRA SUA.
Cuidados, deixai-m' agora,
enquanto possa dizer
quam longe som de prazer.
Sam acerca de dobrar
o cabo de desventura,
nam vejo terra segura
onde me possa ancorar.
Pois me tam longe demora
sem ver porque me reger,
sem o ver m' hei-de perder.
Tant' a Fortuna correr
me fez que tenho alijado
quanto descanso e prazer
tinha antes deste cuidado.
Bradando vou: — Ó senhora,
pois me nam quereis valer,
doai-vos ver-me perder!
147
SUA.
Devieis d' agradecer
vossa infinda fermosura
a minha desaventura.
Quis-se Deos vingar de mim,
fazendo-vos tam fermosa
e tam pouco piadosa,
que folgais com minha fim.
E deu-vos tal parecer
qual nam deu a criatura
por minha desaventura.
148
OUTRAS SUAS A ŨA SENHORA
QUE SERVIA.
Des que de vós me venci,
sinto dor demasiada,
ganhando convosco nada,
quanto bem tinha perdi.
Perdi infindo descanso
e ganhei nom me quererdes
e pior me responderdes,
ainda que seja manso.
Perdi determinaçam
de nunca me namorar
e perdi a presunçam
que tinha de me guardar.
Mas quero-me confortar
com serdes vós soo, senhora,
a que podeis trasmudar
de mil anos nũ hora.
Quanto cuidado tomei
por nam ter este cuidado,
e ficou-m' assi dobrado,
pois nenhum deles deixei.
Forçou-m' o conhecimento
de vosso sengular ser,
ganhei gram contentamento
de vos tam bem conhecer.
Mas tanto quanto entender-vos
minh' alma tem contentado,
tanto me pena querer-vos
vendo-me desesperado.
O fim de tam triste vida
será de meu bem começo,
pois o mais que vos mereço
é serdes de mim servida.
É grande mal ser privado
de grande bem conhecido,
polo qual tenho afirmado
ser milhor nom ser nacido.
Devieis, pois se padece
por vós pena tam crecida,
nom serdes desconhecida
a quem vos tam bem conhece.
Nom pertence à gentileza,
nem vós deveis de querer,
que quem vê tanta tristeza
nam veja nenhum prazer.
Mas se vos nam toca nada
ter por vós tanto tormento,
direi que meu nacimento
foi em hora minguada.
Ca meus males desiguaes
finjo qu' outrem mos ordena,
por fazer que nam tenhaes
a culpa de minha pena.
Ca seria desigual
cousa presumir ninguem
que tendo vós tanto bem
podesseis ter tanto mal.
Fim.
Mas vós, senhora, sabeis
que daa vossa fermosura
a mim mais desaventura
da que vós inda quereis.
E pois em final estremo
querer-vos me tem trazido,
doa-vos ver que nam temo
morte de nenhũ nacido.
149
OUTRAS SUAS.
Cuidado de minha vida,
tristeza de meu sentido,
gentileza mais sobida
de quantas no mundo ham sido.
Tanta infinda descriçam
deve de saber mui certo
que de minha perdiçam
sam mui perto.
Nam é em vosso poder
remedear minha pena,
de ver-vos e nam vos ver
d' ambos minha fim s' ordena.
E pois nam s' ha-d' escusar
que monta tê-la causado
vos amar
que ser de vós desamado?
Sendo desamado creo
que menos a senteria,
amando-vos, finar-m' -ia
ter dela qualquer receo.
E nunca posso querer
nem desejar
deixar de vos conhecer
nem menos de vos amar.
Cuido qu' ee milhor passar
quanto peno por querer-vos,
porque por soo conhecer-vos
se deve de comportar.
E isto faz
que minha desaventura,
que traga muita tristura,
mor contentamento traz.
Mas o qu' aproveitaraa,
pois que meu mal nam destrue,
antes gasta e demenue
o em qu' estaa.
Maneira mais desigual
nunca se vio de tormento,
pois mata contentamento
como qualquer outro mal.
Quem ousará de dizer
qu' amar-vos em tanto grado
me faz ser
de todo mundo apartado?
O que todos mais desejam
é o que menos queria
e o que mais arreceam,
por gram descanso haveria.
Assi que tanto vos amo
que do qu' espero
desesperado nam quero
deixar-me de quanto cramo.
Pois quem poderia crer
qu' eu tam fora d' esperança
vos vejo fazer mudança,
sem ma vós verdes fazer?
Fim.
E digo, em fim
daqueste triste tratado,
que a dareis vós a mim
ou ma dará meu cuidado.
Mas pois que d' outra maneira
aquisto nam pode ser,
esta mercê derradeira,
pois ahinda estou por ver
a primeira,
me devieis de fazer.
150
OUTRAS SUAS EM QUE METE
NO CABO DE CADA COPRA
ŨA CANTIGA FEITA
PER OUTREM.
Ja era quasi de dia
quando hoje adormeci
e parece-me qu' ouvi
nam sei quem que me dezia:
— Esfuerça, triste amador,
no te congoxes ni penes,
qu' en las batalhas d' amor
el menos merecedor
alcança mayores bienes.
Fiquei tam desconsolado
co aquisto que lh' ouvi,
que como desesperado
sospirando respondi:
— Sabe Dios con cuanto enojo
bivo yo sobre la tierra,
pues que yo fago la guerra
y otren lieva el despojo.
— Para serdes consolado
segui-me, me respondeo,
e consigo me meteo
nũ bosco todo cercado
de mui terribles montanhas,
donde grandes alaridos
ouvi de feras estranhas
diformes a meus ouvidos.
Antr' estes grandes gemidos
ouvi d' homeens que andavam
tam tristes que bem mostravam
que d' amor eram feridos.
E vi qu' um deles dezia:
— La terrible pena mia
nam se puede remedear,
antes crece cada dia
por dama tam singular.
Vi outro que se mostrava,
que tinha maior fadiga,
que nunca jamais ceçava
de chorar esta cantiga:
—Amor, tu non me gabaste
que yo bien te conocia,
mas forçó la volha mia
la senhora que me daste.
O terceiro mui pensoso
me parecia qu' andava,
com rosto mui lagrimoso
a grandes vozes bradava:
—¡Oh pena que me combates,
pues fuerça d' amor t' envia,
esfuerça por que me mates
qu' en morir descansaria!
Escassamente acabou
a cantiga toda inteira,
quando o que me guiou
começou nesta maneira:
— Mi tormento desigual
pera más pena sentir
me tiene fecho imortal
y no me dexa bevir.
Começou-m' a parecer
fraqueza de coraçam
encobrir minha paixam
e comecei de dizer:
— Harto de tanta porfia
sostengo vida tan fuerte
qu' es triste el anima mia
hasta que venga la muerte.
Nom sei donde se mostrou
ũa donzela excelente,
a Faustina parecente,
qu' assi me desenganou:
— Vuestr' amys vus vus ausem
d' atendre l' amurose grace,
altre que vus a plis la place
vuestro fançois em vão usem.
E ficou muito contente
como qu' havia acertado,
mas eu ja desesperado
respondi mui mansamente:
—De mi muerte conocida
otra vengança no quiero
ca mueras del mal que muero,
pues queres sin ser querida.
Fim.
Quisera mais decrarar
se nam fora qu' acordey
e juntamente deixei
de dormir e d' esperar.
Tornou-se de bravo manso
meu mal que nunca descansa,
e troquei a esperança
e por outro tanto descanso.
151
PREGUNTA SUA.
Respondei-me, namorados,
desaventurados, tristes,
qual é mor pena que vistes
nom sendo desesperados.
E que cousa mais amados
vos fará de quem amais,
e se querês ser levados
de gentis homens casados
ou de solteiros nom tais.
Reposta de Pedr' Homem.
Digo, sem ser dos chamados
a que reposta pedistes,
ser grave mal se sentistes
ceumes os alongados;
e a segunda, avantejados
faz bom parecer os mais,
a terceira meus cuidados
por neicios sejam casados,
nunca por especiais.
152
CAMAREIRO-MOR.
Nom deveis tempo querer
pera mais merecimento,
pois abastou ũ momento
pera me por vós perder.
Perder, porque nam perdi
a vida que tinh' agora,
que ganhar-vos por senhora
é mil mundos pera mi.
Mas pois por vós num momento
me despedi de prazer,
pera mais merecimento
nom deveis tempo querer.
153
OUTRA SUA.
No falho en mis males culpa,
porque en mi terrible pena,
la causa que me condena
me desculpa.
A muerte me condenastes,
senhora, pues tanto os quiero
y luego me desculpastes
en serdes vos por quen muero.
Pues vuestra beldad desculpa
todos los males que ordena,
quen por vos no tiene pena
tiene culpa.
154
COPRAS SUAS, PARTINDO
SUA DAMA DONDE
ELE ESTAVA.
¡Que pena tan singular,
que marterio tam profundo,
verme de vos apartar
y no partir deste mundo!
¡Oh desastrado partir
qu' assi mata fieramente!
¡oh quien podera dezir
lo que siente!
¿Que seso puede ordenar,
que mano puede escrevir,
que lengua puede contar
mi tan penoso morir?
¡Oh triste desemparado
de vuestra vista y mi vida!
¡oh vida mui bastecida
de cuidado!
Ay de mi, que de quedar
sin ver vuestra fermosura,
la casa donde morar
a mi será sepultura.
Y seran mis atabios
lhenos de mucho tormento
y de mi contentamiento
muy vazios.
La cama será pensar
que vos vi y no vos veo
y qu' assi he d' aturar
con neste mal que posseo.
Y naqueste pensamento
de noche me lançaré
a ver si con lo que siento
moriré.
¡Oh que me da lhevantar
sin esperar de vos ver,
y hame d' anochecer
y no vos he de mirar!
Ni he de ver quien me diga
que naquel dia vos vido,
¡oh triste que a tal fatiga
foi metido!
¡Oh alma mia aflegida
de quantas penas te di!
¿por que no partes de mi,
pues de ti partió tu vida?
Dexame pues te dexó
todo quanto bien tenias,
y más razon te mató
que a Mancias.
No pueden nel mundo ser
tormentos más infernales,
ni se pueden comprender
la grandeza de mis males.
Ni quanta pena poderaa
pensar ningun coraçon,
a la mia no ternaa
comparaçon.
Ca todos los coraçones
son fenitos y acabados
y elhos y sus passiones
juntos seran sepultados.
Mas mi pena desigual
está nel entendimiento,
assi que el mal que siento
es inmortal.
Fim.
Nel inferno no se alcança
otro tormento mayor
que ser muerta el esperança
y inmortal el dolor.
Si nesta vida penosa
aquesto por vos padeço,
que fama tan groriosa
que mereço.
155
OUTRAS SUAS A DOM JOAM
DE MENESES, ESTANDO
EM ALJAZUR.
Depois que vos fostes lá
a viver naquess' estremo,
ũa dama, senhor, cá
fez de mim mangas ò demo.
Fez que desejo morrer
por ver a meus males fim,
fez que nam podereis crer
que fataxas fez de mim.
Fez que meus cinco sentidos
nam sentem nenhũ prazer,
fez meus cuidados crecidos
sobre crecidos morrer.
Fez que de mim nam s' aparte,
antes crece ò galarim
tanta pena que de mim
ja nam sei parte nem arte.
Meus olhos tal empressam
de sua fegura têm,
que lhes parece que vêm
sempre sua perfeiçam.
E tanto desta maneira
e afirma meu desejo,
que todo o al que vejo,
vejo como por pineira.
Polo qual tam cego ando
que me foi acontecer
achar o qu' ando buscando
e passar sem me deter.
Dizem-m' os que vam comigo
por que lhe nom quis falar,
e eu entam, por m' escusar,
busco mentira que digo.
Trago cheos os ouvidos
de palavras que lhe ouvi,
das quaes ũa é verdes i
que os mais tem destruidos.
A toda outra razam
acudo como sandeu,
ham-me ja por moucarrãao
e pior que o sam eu.
Em mil vergonhas me vi
com homens que m' apartaram,
e de quanto me contaram
nemigalha lhes ouvi.
S' havia de responder,
deixava dias passar
atee lhes fazer cuidar
que me podia esquecer.
Que nam gosto me parece
do com que soia folgar
e o que mais alegrar
soia, mais m' entristece.
Isto é porque lembrar-me
algum prazer em tal pena
tanta tristeza m' ordena
que nom sei remedear-me.
Se m' acontece algũ hora
nestas senhoras falar,
querendo outra nomear,
nomeo minha senhora.
Que disto fique corrido,
tanto me soie d' alegrar
seu nome que meu sentido
me faz que folgo d' errar.
Assi como òs qu' acontece
andando polos outeiros
que com medo lhe parece
ser homẽes os sovereiros,
assi tem na fantesia
sa fegura meu cuidado,
que mil vezes cada dia
nas palhas m' acho empolgado.
E assi como vos digo
tam fora de siso ando
que de mim como d' imigo
me ando sempre guardando.
Ja nom ouso soo d' andar,
que vejo meu coraçam
ordenar de me matar
por ser fora de paixam.
A vos aquisto escrever
me moveram tres razões:
a primeira foi saber
que sentis minhas paixões,
a segunda, porqu' estou
em cuidar que sabereis
estas cousas que vereis
como quem tudo passou.
Fim.
A terceira, por haver,
de quem foi tam namorado,
conselho para poder
ser fora de tal cuidado.
Podeis-me, senhor, mandar
que m' esfole e me mate,
nom me mandeis desamar,
que isto jaz d' arremate.
156
DOM JOAM MANUEL A ŨA SE‑
NHORA, QUE LHE MANDOU QUE
LHE ESCREVESSE NOVAS DE
SI, VINDO ELE D' ŨU
CAMINHO QUE ANDA‑
RA COM ELA, FI‑
CANDO ELA EM
CASTELA.
Que yo cien bocas tuviesse
y la boz fuese de fierro
es emposible sin yerro
que mis angustias disiese.
Y mandaisme vos aora
mi triste vida escrevir,
es emposible, senhora,
en dos mil anhos dezir
lo que sufro cada hora.
Mas qu' esto sea verdad
seguiré lo acostumbrado,
qu' es hazer vuestro mandado
y nunca mi voluntad.
Y pues de mi perdimento
soes verdadero testigo,
vereis que de mi tormento
más de lo que puedo digo
y menos de lo que siento.
Desque soy por mi fortuna
de vuestra vista apartado,
mi lecho fago laguna
lhorando demasiado.
Y jamas ceçan mis males
ni mis cativos dolores
tam grandes que no sé quales
se puedan dezir maiores
aunque sean infernales.
Las noches mi sentimiento
de claras faz tenebrosas,
y mi triste pensamiento
de pequenhas espaciosas.
Naquelhas son memoradas
las mis angustias crecidas
presentes como passadas,
por lo qual son mal dormidas
maguer sean bien lhoradas.
No cuento yo por pasion
las lagrimas de mis ojos,
las quales de mis enojos
ham sido consolacion,
mas a mi triste memoria,
pues elha me desordena
todo bien, toda vitoria,
o com la presente pena,
o com la passada gloria.
¡O quan bienaventurados
son aquelhos que gustaram
el Leteo, pues quedaran
de sus hechos olvidados!
Mas ya yo no poderia
querer tal buena ventura,
ca maguer mi fantasia
me dé vida con tristura,
sin elha no beviria.
Porque la pena presente
d' algum passado plazer,
por grave que suele ser,
algo me dexa contente.
Mas este conocimiento
no me quita de pasion,
antes crece mi tormento,
sentiendo a mi perdicion
cada hora crecimiento.
La vuestra forma excelente,
que mi memoria retiene,
ante mis ojos se viene
como si fuesse presente.
Y con esto mi sintido
y mi trist' entendimiento
me dexa triste, aflegido,
tan cercano de tormento
quan apartado d' olvido.
Cada ũu dia imagino
como naquel vos miré
y la hora determino
en qu' estonces vos hablé.
Y digo lo qu' a mi ver
me parece que dizia
y no os viendo responder
antes mi muerte queria
que tal pena padecer.
Aquelhos lugares todos
do vos vi y no vos veo,
por cien mil vias y modos
cada hora los rodeo.
Y pues lhoro nel lugar
donde entonces m' alegré,
vos deveis imaginar
que haré donde lhoré,
pues no vos puedo olvidar.
Las sierras por dond' andamos,
aora sin vos las ando,
alhi donde descansamos,
alhi muero sospirando.
Los verdes prados y rios
es forçado qu' acrecenten
tanto los dolores mios
que no sé como se cuenten,
que no diga desvarios.
No sé quien padeceraa
nel inferno más tormento,
ni que fuego quemaraa
más que este pensamento.
¡Oh memoria de mi bien
lhorada noches y dias!
¡oh vos, senhora, por quien
no creo que Jeremias
más lhoró Jerusalen!
La musica que solia
mis cuidados amansar,
agora multiplicar
los ha fecho em demasia.
Si digo alguna cancion
que disse naquelhos dias,
son en tanta alteracion,
que no las lagrimas mias
sufrem desimulacion.
D' amigos y d' enemigos
m' es havido por gran mengua
seren mis ojos testigos,
contrarios de la mi lengua.
Y pues cantar y lhorar
m' acontece cada hora,
deveis vos considerar
se sim lagrimas aora
esto puedo recontar.
Assi qu' el tiempo presente,
que sin vos m' es otrogado,
es gastado interamente
em lhorar otro passado.
Los lugares a qu' amor
me causou vuestra presencia,
todos lhenos de dolor
los ha fecho vuestra ausencia
que no pudo ser mayor.
Fim.
Para que yo escriviesse
interamente mis danhos,
compleria que biviesse
grande multetud de anhos.
Mas es mi vida penosa
para mis males sentir,
en extremo copiosa
y corta para dezir
pena tan espaciosa.
157
OUTRAS SUAS AA MESMA
SENHORA.
Pues mis angustias escrivo
causadas por vos, senhora,
vida mia,
haved por cierto que bivo
más tal vida que ũ hora
no queria.
Ca mi tormento es aquel
que jamas antre los hombres
se veria,
pues que la muerte cruel
em mi ambos estos nombres
mudaria.
Ca se lhamaria vida
partiendo de mi la mia
tan penosa,
y se mi pena crecida
me quitasse, lhamars' ia
piadosa.
Y nombre más verdadero
y más propio le seria
que estranho,
porqu' el su nombre primero
sin duda pertenecia
a mi danho.
Pues vos, senhora, por quien
ya el mi bevir pasasse
este tranco,
llamarvos todo mi bien
es com' al negro lhamarse
Joam Branco.
Ca pues tormento mortal
mi bevir en tanta sobra
siempre tiene,
llamarvos todo mi mal
es nombre que con la obra
más conviene.
Ca de vos han procedido
los males que siempre peno
com que acupe
a mi bevir muy sentido,
porque bien ni mal ageno
no me toque.
Ni qu' el mundo se perdiesse,
vos quedando, me daria
alguna pena,
ni que yo senhor del fuese
sin vos no lo haveria
em dicha buena.
Todo el mundo convertieron
mis lagrimas y gemir
y sentimiento,
y a vos nunca podieron
enclinaros a sentir
mi tormento.
Ni sé yo quien no s' espante,
pues ninguna compasion
de mi haveis,
por cierto de diamante
deve ser el coraçon
que vos teneis.
Como nunca vos tocaram
mis sospiros tam sentidos,
que consigo
la vida y elh' alma levaran,
como si fueran bramidos
de enemigo.
Antes pues tanto plazer
sentis em mi triste vida
ser tan fuerte,
yo la quiero perder,
porque más serés servida
con mi muerte.
En dos estremos vos vi
que causaran mi tristura
y gran pasion,
nel del reino em que naci,
nel otro de hermosura
y descricion.
Desde alhi muerte no temo,
y triste más que los tristes
a mi lhamo,
porque assi en tal estremo
vos vi y me parecistes
y vos amo.
Naquel dia me robastes
libertad, vida y salud
y alegria,
y a mis ojos causastes
de lagrimas multitud
cada dia.
A los otros fueran dados
los otros pera mirar
y dormir,
mas a mi son otrogados
para que gasten lhorar
mi bevir
A vos dió mi desventura
la vida y la muerte mia
en poder,
para bevir mi tristura,
y luego mi alegria
fenecer.
Y pues mis ansias mortales
que por vuestra causa sabés
que padeço,
dai ya fim a mis males,
pues a mi bien no querés
dar começo.
Este es el galardon
que merecem los cuidados
con que ando,
que nesta satisfaçon
de mis servicios passados
os demando.
Mas pues de quanto servi
otro bien no me consigue
ni le espero,
es lo que quiero daqui
que solo lo que se sigue
os requero.
Fim.
Que des fim a mi cativo
y a mi triste cuidado
y padecer,
pues la mano con qu' escrivo
me tiene desesperado
de plazer.
158
TROVAS QUE DOM JOHAM MA‑
NUEL, CAMAREIRO-MOOR, FEZ
SOBRE OS SETE PECADOS
MORTAES, ENDEREN‑
ÇADAS A EL-REI,
AS QUAES NAM
ACABOU.
Poderoso Rey, prudente,
manifico, liberal,
en quien el ceptro real
estaa dinissimamente.
Sobre senhores senhor,
muy homilde servidor
d' El qu' el mundo ha produzido,
de vicios nunca vencido,
d' enemigos vencedor.
Como yo la tu nobleza
y virtud inmaginasse,
de cada qual su grandeza
mi juizio perturbasse,
en espirito arrebatado
supitamente lhevado,
sin saber en que manera,
me falhé d' una ribera
y grandes montes cercado.
Alhi dos caminhos vi
qu' a principio se juntavan
y despues afeguravan
el pitagorico y.
Mas en tanta alteracion
me falhé qu' a la sazon
tuve nenguna esperança,
ca la supita mudança
siempre causa admiracion.
Despues que mi coraçon
algun tanto reposó
y que mi sangre acupó
su primera habitacion,
sin saber lo que faria
estuve parte del dia
los caminos esguardando,
comigo mucho dudando
qual daquelhos seguiria.
El de la parte siniestra
era muy espacioso,
lhano, verde, deleitoso
y muy aucto a la polestra;
de gimifera ribera
y flor de mucha manera
se cercava y se cobria,
de manera qu' empedia
claridad a la carrera.
Era el otro tan contrario,
que dezir no se podria
quan oculto y solitario
questa riba parecia.
Era muy afectuoso
y a lugares dudoso
a quien fuesse insapiente,
mas a quien fuesse prudente
menos era trabajoso.
Como a nuestra humanidad
es el malo más possible,
no por ser más elegible,
mas por su facelidad,
caminé por el camino
por do nuestro padre vino
de su mujer enganhado,
quando antepuso ũ bocado
al mandamiento devino.
Andando por esta via
despues de muchas jornadas,
parecióme que sintia
bozes muy desacordadas.
Oí muy tristes jemidos,
clamores muy doloridos,
en sentencia concordados,
que los alhi condenados
no seriam redemidos.
El camino fenecia
en ũ pozo muy profundo,
adonde vi que caya
la mayor parte del mundo.
Alhi era setuado
el fuego perpetuado,
de los mortales tormento,
que por bienes de momento
quieren mal continuado.
Y vi otras seis carreras
nel gozo se consumir,
por las quales vi venir
jentes de muchas maneras.
Ya volver no me podia,
porque la jente venia
de rondon que me lhevava,
de manera que pensava
el mi postrimero dia.
Al fuego sin resplandor
me falhava condenado,
si del devino favor
no fuera remediado,
ca con gesto prefulgente
una donzelha excelente
vi al encuentro venir,
a cuya forma escrivir
no seré suficiente.
Aquesta como ocupó
el logar do yo estava,
del peligro me libré
tanto quanto deseava.
Mas yo que a la sazon
con poca disposicion
tan grande bien alcancé,
le dixe como diré
la sussequente oracion:
—¡Oh clarisima vision,
sobre toda claridad,
carece tu puridad
de toda comparacion!
A ti cuyo beneficio
me libró de precepicio
y d' enfinitos pesares,
suplico que me declares
el tu nombre y tu oficio.
Muy mansamente respuso:
—Divina gracia me digo
que sobre natura sigo
a quien bien se me despuso,
no la que es gratis data,
mas aquelha que desbarata
todo dilito mortal
y elh' anima infernal
ante Dios torna muy grata.
De tal respuesta turbado
y de coloquio tan alto,
despues que del sobresalto
me vi menos alterado,
le dixe: — Devina guia,
pues sin justicia mia
tanto bien se m' oferece,
aquesto qu' aqui parece
pone em mi sabidoria.
— Aquelhos caminos dos,
dixo, que falhaste luego,
el uno fenece en Dios,
el otro naqueste fuego.
Y estas siete carreras
son otras tantas maneras
de pecados principales,
por do vienen los mortales
a inmortales fogueras.
De superbia y elacion
es el primero camino,
por donde Lucifer vino
de la celestre mansion.
Vinieron de Babilon,
con elato coraçon,
sus grandes fabricadores
y de Igito los mayores
con el rey Faraon.
Por aqui el rey Tarquino,
postrero de los romanos,
por aqui el grande Nino
qu' imperó los asianos.
Por aqui rey Lamedon,
destruido el Elion,
por aqui Lucio Sila
y con sus socios Atila
vinieron al Fregeton.
Y muchos otros, que fueron
elatos naqueste mundo,
tanto quanto aca subieron,
descendieron al profundo.
Ca Dios ha determinado
que quien pone su cuidado
en sobir quanto podrá,
quanto Dios puede será
para siempre derrocado.
D' avaricia es el segundo,
do las Harpias han lugar,
por donde van al profundo
los que adoran el metal.
De Troya vino Antenor,
de Tracia Polinestor
con el rey Mida troyano,
de Roma Domiciano,
postrimero emperador.
Por aqui vino Nembrot,
que fue tirano primero,
y Judas Escariot,
que vendió Dios verdadero.
El Qual no fue poseido
del que lo huvo vendido
ni de los sus mercadores,
mas daquel qu' en sus dolores
y sangre fue redemido.
Que todos los qu' escrivieron
en el mundo se juntassem,
no creo que numerassem
los que por aqui vinieron.
Si tanta generacion
ha venido en perdicion
por esta civil miseria,
es porqu' elha es la materia
de toda vuestra ambicion.
Los que a Venos adoran
por esta senda tercera
cada dia se devoran
en infinita manera;
por aqui los sodomitas
y gentes casi infinitas,
qu' incestos muchos fizieron,
las quales tan muchas fueron
que no pueden ser escritas.
D' adulteros multitud,
multitud de forçadores
que finaran su salud
con infinitos dolores.
De los quales notaree
algunos y pediree
al Senhor de los senhores
qu' al escritor y lectores
asombre lo que diré.
Por aqui vino Aamon
qu' a Tamar huvo forçado
y su hermano Abselon
d' Aquitofel consejado.
La madrasta d' Hipolito
y Tolomeu, rei d' Egito,
que Overgetes dixieron
y s' y scrivis quantos fueron
farás proceso infinito.
Ansi concluyendo digo
que tanto a vuestra nacion
es este vicio amigo
que no lo priva razon.
Ca el Apostol dizia:
Muy impossible seria
que yo haya continencia,
si la divina clemencia
del cieclo la no embia.
Por aquesta quarta senda,
vienen los embediosos,
que con agena fazienda
siempre biven trabajosos.
Todos los mortales vicios
tienen dulces exercicios,
pero la gracia se seca,
este quantas vezes peca
tantos tiene de suplicios.
Enxemplifica.
El primero rey ungido
en el pueblo d' Israel,
el primer hombre nacido
que fue lhamado cruel.
Y los fijos de Coroe,
los primeros que se cre
que fuessem detratadores,
y los crucificadores
de Jesu de Nazeree.
De todo tiempo y lugar,
de todo estado y nacion,
no es possible contar
los que traxó esta passion,
porque, aunque los humanos
todos fuessen escrivanos
y solamiente quisieron
escrivir, nunca pudieron
los que traxó cortesanos.
Y por la quinta han venido
muchas gentes al caos,
las quales han presumido
que su ventre era su dios.
Toda comemoracion
daquesta bruta nacion
se deveria escusar
ni con los malos contar
por quanto pessimos son.
Mas para que se retrayam
los humanos de seguir
aqueste vicio, que sayam,
estos puedes escrivir:
Isau seya el primero
y luego su companhero
Sardanapolo seraa,
Lucio Luculo vernaa
nesta cuenta por tercero.
El quarto y ũ millhon
daquestos s' escreveria,
mas el processo seria
lhamado anticaton.
De prelados solamente
vino e viene grande gente,
de los quales yo diria
que qual es la perlacia
tal es la gula sequente.
Por estotra senda sexta
vinieron los airados
que d' otros siendo enojados
han consigo la requesta.
Todo emperador o rey
para bien juzgar su grey
d' ira deve ser guardado,
ca no ve la ley el irado,
mas es visto de la ley.
Ca contra todas las leys
Tifon Osiris matoo
y en partes vinte e seis
el su cuerpo devidoo,
porque a cada conjurado
su parte le fuesse dado
daquel qu' era su hermano.
¡ Un fecho tan inumano
por ira fue consumado!
Por aquesta ha descendido
la fija de Pandion,
que por culpa del marido
dió al fijo punicion:
este fue muerto y assado
de su madre y presentado
a su padre por manjar.
¡ La ira pudo causar
ũ fecho tan celerado!
Otros muchos han venido
y mujeres muchas más,
ca la vengança sabrás
que de fraqueza ha nacido.
Ca Dios, de Quien se pregona
que todo vicio perdona,
lhamamos onipotente
e aquel qu' es impotente
nunca perdona persona.
Por la seetima vinieron
aquelhos qu' en su oficio
dinidad o beneficio
siempre negligentes fueron.
Yo lhamo negligentes
a los que son deligentes
en los bienes temporales,
si de los celestriales
tienen desviadas mentes.
Por aquesta descendió
Candalo, rey lidiano,
y Seleuco siriano,
que dos anhos imperó.
Estos dos reys coronados
ansi fueron descuidados
en los reinos que rigieron,
que juntamente perdieron
las animas y estados.
Aquel malaventurado
Aurelio, rey d' Espanha,
pues con angustia tamanha
será siempre remembrado,
por libremente folgar,
a Mares fue tributar
mucha moneda y cavalhos
y hijas de sus vasalhos
qu' el diviera de casar.
El rey de Francia Grifon,
hijo de Carlo Martel,
con un muy grande tropel
olvidado a la sazon.
Prelados, que consintieron
que sus ovejas pacieron
todo lo qu' era vedado,
eterno tienem cuidado,
porque negligentes fueron.
Por estas carreras todas
vinieron a perdicion
aquelhos todos que nom
vistieron ropa de vodas.
Los qu' en notro habito son
solamente correcion
recibieron en su vida,
mediante su venida
por muy divina infusion.
Mas que sea aqueste fuego,
que tu miras, infernal,
que tu notes, yo te ruego,
qu' elha es pena acidental,
es el infinito mal.
Mas por razon teologal
te provariamos nos
que no ver el sumo Dios
es la pena essencial.
Ca quanto Dios es mijor
que todas las cosas buenas,
tanto no velhe es mayor
que todas las otras penas.
Mas esta razon que fundo
dexemos, pues que nel mundo,
por cierta fee la tuviste,
y deste camino triste
bolvamos a lo jocundo.
Yo que tanto queria
ser libre daquel logar
calhé por no importar
dilacion a la tal via.
Mas era tal la carrera
que muy impossible fuera
venir al fin deseado,
si no fuera sulevado
daquesta tal companhera,
Cuyo coloquio divino
ansi falhava suave,
que no se me fizo grave
el asperrimo camino:
porque quanto más andava
más dispuesto me falhava
para siempre caminar
y solamente cansava
quando dexava d' andar.
Subiendo siempre venimos
a ũu lugar eminente
de donde el mundo presente
en sus partes devidimos,
cuya poca quantidad
demostró la ceguedad
daquelhos que imperaron,
si por tan poco dexaron
la devina claridad.
Despues que fuemos venidos
en la más subleme altura,
d' una muy verde lhanura
nos falhamos recebidos:
vi quatro rios caudales
y d' arboles singulares
un infinito processo,
un tan ameno seceso
nunca vieron los mortales.
Dalhi eran desterrados
todos los falhecimientos,
qu' en todos quatro elementos
son en el mundo falhados:
el calor primeiramente
templado singularmente,
más que se puede narrar,
sin exceder ni minguar
cosa que fuesse nocente.
Era perpetuamente
el aire clareficado,
el sol em seteno grado
era alhi más prefulgente;
era tanto resplandor
sin exsecivo calor
e sin frio desmedido,
mas el medio posseido
con muy suave dulçor.
Las riberas proferidas,
que por el huerto corrian,
de una fuente nacidas
una cruz constituyan.
Y la linfia que fluya
tan clara que parecia
el suelo por do passava,
la sed por siempre matava
a quien daquelha bevia.
Toda la tierra criava
las plantas todas frotiferas
y las yervas odoriferas
solamente germinava.
Un narbor, que se nombrava
de la vida, preestava
a la fuente qu' es escrito,
cuya fruta en infinito
toda fambre extenuava.
Mis sentidos deseosos
de tantos bienes fruir,
d' obgeitos tan gloriosos
no podia despedir.
Ca la companhera mia
m' aquexava que complia
el camino acelerar,
par' al castilho lhegar,
que delante parecia.
Despues que propinco a el
mi hizo mi companhera,
vi quatro torres naquel
tocantes la prima espera.
En perpetu diamante
el titolo semejante
sobre la puerta dizia
que muerte no gustaria
quien alhi fuesse habitante.
La primera torre entramos,
adonde por tribunal
una donzelha falhamos
más que humana, angelical;
de gente muy mesurada
era siempre acompanhada.
Y era aquelha clausura
de perdurable pintura
sotilmente matizada.
Alhi eran matizados
los fechos que tu formaste,
con los quales ampliados
has los reinos qu' heredaste.
El grande maar oceano
mostrava ser a tu mano
con su ripa somitido
y gran pueblo convertido
de hereje cristiano.
Ũu Castilho sin egual
sub Cancro vi que tenia
aquel senhal en la qual
el Constantino vencia.
Cerca daquel s' esculpia
armado ũ rey que tenia
desnuda espada en su palma,
dezia que como palma
el justo floreceria.
159
RA, ESTANDO EM ARZILA, A
SIMÃAO CORREA, EM RE‑
POSTA DOUTRAS QUE
LHE MANDOU
D' ALCACER.
Estando neste lugar
onde muita guerra achei,
sem com mouros pelejar,
sem corrermos, sem entrar,
depois que nele entrei,
vossa trovas recebi.
Gabá-las é escusado,
qu' elas o fazem per si,
mas direi novas de mi
como per vós m' ee mandado.
O dia qu' aqui chegámos
fez tormenta tam desfeita
qu' outro tanto nos molhámos
como laa, quando passámos,
a gram vereda de Ceita.
E pois dizeis e contaes
que fareis mui crua guerra
cos fronteiros qu' esperaes,
tambem quero que saibais
a qu' achei cá nesta terra.
Achei em gram devisam
os cristãos contr' os judeus:
o que tem mais sotil mãao,
mais maneiras d' apressãao,
mais ha dos benesses seus.
Doutro cabo por proveito
os deixam estar na vila,
julgai vós laa, s' ee bem feito,
qu' o povo pede dereito,
porque lhe comem Arzila.
Nisto mais nam falarei
porqu' alguem dano faria,
mas antes me calarei,
ca se dissesse o que sei
muito papel gastaria
à custa de ũu senhor
que nam quer bem òs que gastam.
E nam queirais mais penhor,
porqu' a bom entendedor
poucas palavras abastam.
Deos aqui nam n' O conhecem,
os melhores menos valem,
os piores permanecem,
mas calam-s' os que padecem,
porque lhes compre que calem.
Nam presta nem val rezam,
posto que seja bem vista,
dana-nos boa naçam,
estas guerras mortais sam
para quem nelas conquista.
Na mesa onde comemos,
ninguem nam diz o que sabe,
o que per siso sofremos
é tanto que nam sabemos
como jaa dentro nos cabe.
Pomolo bico no peito,
d' aprefiar nos guardamos,
porqu' à concrusam do feito
ou por força ou per geito
o que nom é outorgamos.
Sam-nos mil vezes mostradas
arreos, cousas defezes,
compre-nos serem gabadas
e dizermos qu' em tres gradas
nam se viram tais jaezes.
Ca se mostrar afiçam,
outro serviço nam prende,
que faraa, dai-me rezam,
quem nam tem de condiçam
contrafazer o qu' entende.
Fim.
Se nestas bem decrarado
nom vai o que mais entendo,
nom me deis graças nem grado,
o que nelas vai calado
co vosso saber enmendo.
160
DOM MARTINHO DA SILVEI‑
RA, QUANDO CASOU
DONA BRANCA
COUTINHA.
Doo na corte polo serdes
tomaram mil coraçõoes
que namorastes,
por lembrar e por saberdes
quantas penas e paixõoes
lhe cá leixastes.
Diz-m' o meu com gram pesar,
com mortal dor s' aqueixando:
—Nam era para casar
dama que Deos trabalhando
quis formar!
E pois vemos nam poderdes
resistir às apressõoes
com que casastes,
doo na corte polo serdes
tomaram mil coraçõoes
que vós quebrastes.
161
DE DOM ROLIM.
Em gram peligro me veo,
em mi muerte no hay tardança,
porque me pid' el deseo
lo que me niega esperança.
Pedeme la fantesia
cosa muy grave de ser
y s' aquesto se desvia
es forçado padecer.
No me defiendo y peleo,
muerte havrá de mi vengança,
porque me pid' el deseo
lo que me niega esperança.
162
Ó meu bem, pois te partiste
d' ante meus olhos, coitado,
os leedos me faram triste,
os tristes desesperado.
Triste vida sem prazer
me deixas com gram cuidado,
que por meu negro pecado
me vejo vivo morrer.
Meu prazer me destruiste,
meu nojo seraa dobrado,
porque sam cativo, triste,
de meu bem desesperado.
163
DE FERNAM TELEZ.
Vuestra gran beldad, senhora,
es em tal grado sin par
que despues que os vi, ni aora,
no me dexa sola un' hora
gran tormento y sospirar.
Ansy que por mi ventura,
comprida de mala suerte,
vuestra muy gran hermosura
haz a mi dolor tan fuerte
que queria más la muerte.
Y con este mal sin cuento
vos me hazeis en verdad
que viva triste contento,
¡ oh causa de mi tormento!
¡ oh cabo de crueldad!
Que teneis um parecer,
tan extrema gentileza
que vuestra gracia y lindeza
no es en mi poderla ver
sin vuestro cativo ser.
164
DE SANCHO DE PEDROSA A
MARIA JACOME, ESTANDO DE
NOITE FALANDO COM ELA
SEM NO ELA CONHECER
E LHE PEDIO QUE
LHE DISSESSE
QUEM ERA.
Se vos vira, que fizera,
pois ouvir-vos me matou,
nenhum remedio tivera,
se vossa mercê quisera
parecer como falou.
Dizer-vos o nome meu
vos dei à fee jaa vencido:
o triste me chamo eu
a quem vossa mercê deu
presunçam de ser perdido.
Ouvir-vos nunca devera,
pois me tanto namorou
quem eu vira, se podera,
nam por dizer-vos quem era,
mas por ver quem me matou.
165
DE SANCHO DE PEDROSA.
Yo más triste de los tristes
y menor de los amados
en amores,
quando triste me vencistes
no tenia yo cuidados
ni dolores.
Mas por que mi mal creais
y mi fatiga tan fuerte,
que sabeis,
ahunque aora querais
dar remedio a mi muerte
no podeis.
Porque vos tal me hezistes
sobre los más enojados
en amores;
quando triste me vencistes,
no tenia yo penados
disfavores.
166
DE DIOGO DE PEDROSA
AO COUDEL-MOOR.
Pero que tenha jurado
de me nunca namorar,
por vossa filha balhar
meu juramento é quebrado.
E se nam foss' a revolta
que disto se seguiria,
log' hoje deprenderia
a fazer mourisca volta.
Mas porque vós soes a isca
pera minguar e crecer
esta ardente faisca
de meu pesar e prazer,
eu quero ser vosso genro
antr' os outros servidores,
porque sam ũu homem tenro
na idade dos amores.
O que foi desse Merlim
e doutros antes d' agora,
isso ha-de ser de mim
por vossa filha, senhora.
Licença tenho do papa,
nam é grande maravilha,
de todo por vossa filha
ganhar ou perder a capa.
Reposta do Coudel-moor
polos consoantes.
Quem sabe ser namorado
nam leixa tempos passar,
nem em tal caso quebrar
juras nunca foi pecado.
Quanto mais que n' agua envolta
sempr' haa fina pescaria
e quem sab' a parçaria
o amor tredor nam solta.
Doce bailo de mourisca
mil sentidos faz perder
e lá mete ũa tal trisca
qu' ee mui má de guarecer.
Quer sejais duro quer tenro,
procurai vossos favores,
mas sobre compadre, jenro,
duvidam niss' os doutores.
Mas se vos tresfoi Martim
fazeis inda sem demora,
medrareis ò galarim
segundo o al em vós mora.
Sede servidor de chapa,
se vos pregriça nam filha,
guardar de dor de virilha
porque sua cova tapa.
167
DO IFANTE DOM PEDRO, QUE
MORREO N' ALFARROU‑
BEIRA, E VAM EM
NOME DO IFANTE
Pola morte de mim soo
e d' algũs vossos parentes,
vós outros, que soes presentes,
todos deveis filhar doo.
Os que tinheis em mim noo
e folgais com minha morte
antre todos lançai sorte
qual seraa mais cedo poo.
E do mal que me fizestes
entam sereis lá lembrados
e daquestes meus criados
que matastes e prendestes.
Empero todos perdestes
em mim ũa nobre doa,
sobre todos fui coroa
segundo todos soubestes.
Nom foi outro no oriente
tam perfeito em saber,
ja em mim foi o poder
d' escusar o mal presente.
Nunca usei em meu talente
de fazer cousa errada,
mas esta morte foi fadada
pera mim e minha jente.
Eu criei em gram alteza
ũu soo rei e seu irmão,
sempre lhe beijei a mão
e resguardei sa realeza.
Fui eu frol da jentileza
e na minha mocidade
usei sempre de verdade
e amei muito franqueza.
Qundo eu ante vós era
todos m' assi esguardaveis
e assi me adoraveis
como se vos eu fizera.
Agora je nenhũ espera
receber de mim mercês,
antes me avorrecês
como ũa besta fera.
Nam ha reinos em cristãos
que em todos nam andasse
e que sempre nom achasse
nos reis deles doces mãos.
Fidalgos e cidadãos
me serviam lealmente
e agora cruelmente
me matarom meus irmãos.
Eu andei per muitas partes
e por outras boas terras,
muita paz e tambem guerras
vi tratar per muitas artes.
Mas aqueste dia martes
foi infeles pera mim,
o meu sangue me deu fim
e rompeo meus estendartes.
Naturais de Portugal,
contra mim armas filhastes,
certamente muito errastes,
que vos nam mereci tal.
Roubastes meu arraial,
toda minha artelharia,
grande enveja e perfia
ordenou todo este mal.
Mal vos lembram as mercês
que vos fez El-Rei meu padre
com a Rainha minha madre
d' u melhores descedês.
Eu nam sei que guanharês
por minha destruiçam,
se o fezestes sem rezam
desto vos nam lavareis.
Muito trabalho levou
meu padre por vos criar,
muito mais por vos livrar
e leixar como leixou.
Se vos ele acrecentou
emmentres qu' ele viveo,
nem per mim nam faleceo
quanto meu tempo durou.
E vós fostes os culpados,
causadores de meu dano,
que ja passa de ũu ano
que andais aconselhados.
E com rostros desvairados
ma falaveis cada dia,
mas de vós nam me temia,
porque ereis meus criados.
Natureza nam devera
consentir-vos tal crueza,
bem mostrara jentileza
algũu que me vida dera.
Mas no ano desta era
tais pernetas sam correntes,
que amigos e parentes
todos andam por derrera.
A morte tenho passada
e o medo ja perdido,
pero levo gram sentido
da Infante lastimada
e da Rainha muito amada.
E meus filhos orfãos leixo,
desto todo me aqueixo,
que da morte nam do nada.
Ora lá vos temperai
o melhor que já poderdes,
pero se siso teverdes
sempre vos bem avisai.
Cada dia esperai
receber por u medistes,
a que ora de mim vistes
quando vos vier, tomai.
Cabo.
Todos fostes mui ingratos
e de pouco conhecer,
bem quisestes parecer
os do tempo de Pilatos.
168
CANTIGA SUA.
Que teus nojos todos cessem
e hajas alegres dias
faze-me como querias,
senhora, que te fizessem.
Se sentisses tu, senhora,
amor assi aficado
e tam curto gasalhado
como sente quem t' adora,
prazer-t' ia que te deessem
o que tu dar poderias,
pois faze como querias,
senhora, que te fizessem.
169
QUE D' ALMEIDA,
INDO PARA
CASTELA.
Pois que soes ũu dos que vam
nesta ida de Castela,
ser-vos-aa conselho sãao
corregerdes bem a sela.
Que vá sempre mui bem chea
bem rija dos arções;
por nom levantar rezões
falar pouco depois de cea.
E se em vossa companha
forem algũas donzelas,
nunca vos sais d' antr' elas
como ja tendes por manha.
Nom sirvaes sempre com ũa,
se vos mal disser a dita,
mas a quem vos disser ita,
a essa tanjei a mula.
Com quem vos der milhor jeito
servirês polo caminho,
nom leixês de ser daninho,
quando virdes tempo feito.
Honestamente e de dia
seja de vós bem servida
e por causa desta vida
nam leixês descortesia.
Como virdes o ar pardo
que ja quer anoutecer,
se tomar querês prazer
nunca vos mostrês covardo.
Leixai-vos ficar detras,
mandai os moços diante,
ũu desvio de galante
jaa sabeis como se faz.
Ordenai como se deça
pera correger a cilha,
e em cima da mantilha
fazei cousa que pareça;
sendo logo percebido
que mui bem lha alimpeis,
porque nam seja sabido
nada disso que fazeis.
Se a virdes mui queixosa,
amostrai grande braveza,
dizê-lhe: — Pera fermosa
nam é isso gentileza.
Seja a sela tornada
com gram prazer e ledice,
dizei que nam diga nada,
que faraa grande pequice.
Como fordes na pousada,
oulhai bem pola fazenda
e a bolsa bem guardada
que ninguem vos nam entenda.
Convidai de boamente
qualquer homem estranjeiro,
mas ũu olho nele atente
e o outro no parceiro.
Tereis mui bem avisado
algũu vosso servidor,
que vos traga do milhor
por guardardes vosso estado.
Remolhai-vos ameude
com medo do ar da serra,
que nam é pouca saude
regrar-vos bem nessa terra.
Com esses grandes senhores
tomarês conversaçam:
se falarem em amores,
ahi sões vós mixilhão;
se falarem na batalha,
nam digaes que fostes preso,
mas mostrai-vos barbiteso
sem temor de nemigalha.
Dizei-lhe: — Se eu lá fora,
nom creaes que me tornara,
que primeiro nam tomara
a ponte e mais Çamora!
Alargai mui bem a poja,
nom façaes parente prove,
contanto que vos nam tome
quem lá virdes que se anoja.
Se alguem virdes queixoso,
fazei a farinha branda,
ca vos será proveitoso
espaçar esta demanda.
Nom cureis de tomar brigas
com nenhũ desses de laa,
que nam ha i per' amigas,
indo tam poucos de caa.
Se vos lá chamar alguem
demo longo, negro e feo,
metei a barba no seo
e calai-vos muito bem.
Ante mordei castelhano
que falardes portugues,
guardai-vos d' algum reves,
que vos pode trazer dano.
Fim.
Meus conselhos nom sam taes
nem estava percebido
pera vós serdes servido
de mim como desejaes.
170
JOAM MANUEL.
Pois reposta nam s' escusa
à que me trouxe Luis,
invoco El-Rei Dom Denis
da licença d' Arretusa.
Em seu nome mui tratado
haveraa tam cedo fim,
que se crea ser em mim
o seu escrito dobrado.
Luis de Santa Maria
chegou em hora tam forte
que lhe ocupou a morte
sua pousentadoria
Nam pude dele fruir
soomente novas de vós,
dizem qu' ee longe de nós
olhos que o viram ir.
Leixou a vila tam rasa
o medo desta conquista,
que todos perdem de vista
a mais derradeira casa.
A minha nam se derrama
nem pode, inda que queira,
porque tenho a companheira
como nunca tereis dama.
Mas como convalecer
a desora partirei,
para onde, nam no sei,
nem se deve de saber.
Per' aa corte nam seraa
a poder de minha tença,
porque nunca como laa
do que me vem de Valença.
De mim nam sei mais que diga,
doutros muitos direi eu,
se viesse jubileu
que segurasse fadiga.
Pero pois o i nam ha,
socorrer e leixar far,
mas dá-se tanto a vagar
que nam sei quando será.
A fama da devinal
ia caminho da Beira,
e torceo desd' a Guerreira
por me dar nova de mal.
Disse-me mais a malina,
depois dos segredos mores,
que todolos mantedores
vos leixaram Faustina.
Fim.
Cousas que nam vem nem vam
escuso por vaidades,
bem sei das Sete Cidades,
bem sei de Fernam Seram.
E sei que des que vos vi
nam tomei nenhũu prazer
e mais sei quando naci,
nam sei quand' hei-de morrer.
171
CANTIGA DE PEDRO HOMEM,
QUANDO CASOU A SENHO‑
RA DONA BRANCA
COUTINHA.
Pois a todos, se casaes,
o viver seraa tam caro,
lembre-vos o desemparo,
senhora, que nos leixaes.
Leixais-nos toda trestura,
levais-nos toda alegria,
ditosa foi a ventura
de quem vio a sepultura
primeiro que tam mao dia.
Pera que vivemos mais,
pois morrer nos está craro,
vivendo no desemparo,
senhora, que nos leixaes?
Sua.
Tristes de nós que faremos?
Vossa mercê que faraa?
Com quem nos consolaremos
ou quem nos consolaraa?
Ó morte, porque tardais?
Vind' asinha ser emparo
de quem vê o desemparo,
senhora, que nos leixaes.
172
DE PEDRO HOMEM, ESTANDO
FORA DA CORTE, A DOM JOAM
MANUEL QUE ESTAVA
COM EL-REI EM
ALMEIRIM.
Sem tocar o Zodiaco,
sem tocar musas nem fadas,
sem tocar Venus, nem Baco,
sem fazer outras levadas,
vos começo de pedir
da corte novas,
se nam morrerdes de rir
de minhas trovas.
E sam de Nosso Senhor
as que primeiro queria
e nam ja do salvador,
senam as do regedor,
da sua cavalaria
e dessoutro soverano
venham todas,
e se lhe fazemos vodas
antes d' ano.
À conquista d' ultramar
m' escrevei s' imos alem,
porqu' eu, se deste escapar,
nam espero de parar
menos de Jerusalem.
Ca por nam saber se vam,
nam sei se vivo,
e tambem de Jam Falcam
se é ja cativo.
D' Almeidas nem d' Almeirim,
taforeas correger
nam quero novas saber
nem que as saibam de mim.
Na cruzada folgarei
falar o conto
e se a tomou El-Rei,
que é gram ponto.
Da corte saber queria
para onde faz mudança
e se ficou d' abadia
senam a vãa esperança,
e tambem se nos dam casa
por Janeiro,
dai-me lá figa ò porteiro
cor de brasa.
Fim.
Das damas certa novela
me mandai tambem, senhor,
e se ha gora laa donzela
que queira saltar janela
com' a de Soutomaior.
Porem, o que cá entendo
lá se crê,
senhor, em vossa mercê
m' encomendo.
Reposta de Dom Joham
Manuel.
Co desvio que tomastes
acerca da poesia,
grandemente m' ensinastes
o que me muito compria.
Deixo-a, pois a dexei
de mim partir
e digo as novas que sei,
ora ouvir:
Do Duque folgai saber
que é bem sam, a Deus louvores,
e tem deixados amores
que antes soia ter.
Mas que deixou nam creaes
galantaria,
antes nele crece mais
cada dia.
Está tambem de saude
o Princepe excelente
com quem crece juntamente
muita enfinda vertude.
Nom quer ter nem ver porteiro,
é mui sesudo,
e se nam fosse monteiro
teria tudo.
Do casamento dizer
nam ouço o que seraa,
mas sei que outras vodas cá
primeiro ele ha-de fazer.
Segundo o mundo çoçobra
eu me fundo
qu' ee sandeu quem se nam logra
deste mundo.
A cruzada tem tomada
Rei e Princepe tambem,
e é nova levantada
qu' imos no Veram que vem.
Mil cousas mando fazer
de preto e branco
e aqui neste barranco
hei-de morrer.
Esta mesma acupaçam
a muitos vejo trazer,
os quaes creo que faram
de sua perda a meu ver.
Espero-os naquele dia
neste laço,
que graça porem seria
s' eu lá jaço!
No feito de Joam Falcam
ainda s' agora sonha,
taforeas, capitam,
Duarte Galvam Bergonha.
A corte aqui se manea
neste prado,
mas logo benaventea
Abril passado.
Jejunaram damas todas
caa tres dias sem comer,
mas vós nam podereis crer
tal raiva de fazer vodas.
E tambem nam se lançaram
soo ũu hora,
mas ainda nam casaram
atee gora.
Fim.
Da abadia me ficou
a fadiga que tomei
e se centeo levei
a cruzada me chofrou.
Polas novas que vos mando,
mandareis
certeficar-me de quando
vós vireis.
173
PEDRO HOMEM A DOM
GONÇALO COU‑
TINHO.
Soube El-Rei neste caminho
que se diz cá polas ruas
qu' andais vós e Dom Martinho
dous com duas.
O diabo nam achará
tal agudeza d' amores,
nem manha com que pinchará
tam rijo competidores.
Desviar deste caminho
que cá se diz polas ruas
que ũa ri de Dom Martinho
e de vós, duas.
174
BREVE QUE FEZ PEDRO
HOMEM A ŨUS
MOMOS.
Vivemos desesperados,
fazem-nos mil desfavores,
crecem-nos nossos amores,
dobram-se nossos cuidados.
Sam-nos mui boons os serãaos
para ver e desejar
e momos para tomar,
inda que lhes pês as mãos
com que nos ham-de matar.
175
PASSARO A ESTE MOTO:
Que verei que me contente?
Pois sem vós prazer nam sente
minha vida nem deseja,
se mandais que vos nam veja,
que verei que me contente?
Mas é forçado que sejam
sempre ja meus olhos tristes,
pois meu bem nam consentistes
nem quereis que mais vos vejam.
Vida triste, descontente,
a minha convem que seja,
se mandais que vos nam veja
que verei que me contente?
176
OUTRA SUA.
Ja me nam ha-de pesar,
meus olhos, em que quebreis,
pois vos nam hei-de mostrar
em que ja prazer me deis.
Nam me podeis fazer bem,
nam vos hei nunca mester,
pois meus olhos nam vos quer
quem em seu poder vos tem.
Podeis-vos ambos quebrar,
que mingua me nam fareis,
pois vos nam hei-de mostrar
em que ja prazer me deis.
177
D' ANRIQUE D' ALMEIDA EM
LOUVOR DE SUA DAMA.
Bem sei eu quem tem poder
frol do mundo se chamar,
seu nome quero calar
por meu mal se nam saber.
Esta dama por quem digo
tam gentil parecer tem
que todos quantos a vem
sam postos em gram perigo,
porque se podem perder
todos pola desejar.
Seu nome quero calar
por meu mal se nam saber.
178
ANRIQUE D' ALMEIDA A DONA
ISABEL DA SILVA, ESTANDO PERA
CASAR COM Ũ VELHO, AVISAN‑
DO-A DO QUE ACONTECEO A
JOAM DE MELO, COMENDA‑
DOR DE CASEVEL, QUE
VELHO CASOU COM
ŨA MOÇA.
Casar si, mas nam consento,
com idade de Casevel
ante vós nunca casavel
que fazer tal casamento.
Sabei-o tomar d' idade
pouco mais ou menos vossa,
porque queira e porque possa
comprir bem vossa vontade.
E seja-vos escarmento
o bom senhor de Casevel
que tantas vezes cansevel
des que fez seu casamento.
179
ANRIQUE D' ALMEIDA
A ESTE MOTO:
Se fosses meu algum dia.
Com quanto nojo me desse,
coraçam, tua porfia
e por mal que me fezesse,
tudo se perdoaria
se fosses meu algum dia.
Mas sabes que outro bem
nunca vejo dahi jaa,
senam em servir a quem
tam triste vida me daa;
e que mais mal me fizesse
coraçam, tua porfia
e por pena que me desse,
tudo por bem havria,
se fosses meu algum dia.
Ajuda do Coudel-moor.
Nom me es tu, coraçam,
no seo menos que brasa,
buscas minha perdiçam
e es-me nisso um ladram
que sab' os cantos da casa.
Mostras-me que é intaresse
seguir de nojo perfia
e buscaste quem ma desse,
mas todo te sofreria
se fosses meu algum dia.
180
ANRIQUE D' ALMEIDA
A ESTE MOTO:
Que milagre faria Dios.
De quantos penam por vós
a que nunca fazeis bem,
que milagre faria Dios
se penasseis por alguem.
De quantos vossa crueza
tem lançados a perder
e vidas fazeis sofrer
tristes mais que a tristeza,
por se mais vingar de vós
quem mais servida vos tem,
que milagre faria Dios
se penasseis por alguem.
Ajuda do Coudel-moor.
Pois pena tam desigual
me fazeis sempre sentir,
pois nam presta nem me val
amar-vos nem bem servir,
pois que tam certo de vós
é dar mal e nunca bem,
que milagre faria Dios
se penasseis por alguem.
181
CANTIGA D' ANRIQUE
D' ALMEIDA.
Contentai-vos do que vistes,
meus olhos, porque jamais
nam espero que vejais
quem vos faça menos tristes.
Que ja nam vereis prazer
com que vosso mal abrande
nem podeis ver mal tam grande
par' este vos esquecer.
Assi cuidar no que vistes
vos compre des hoje mais,
que nam ha i que vejais
que vos faça menos tristes.
182
HAM-DE SERVIR AS DAMAS:
DAA SETE AVISOS.
Deu-me tais padecimentos
com tam diversos cuidados
quem servi,
que fiz sete avisamentos
e todos espermentados
ja por mi,
nos quaes serei verdadeiro.
Mas veja quem os servir
u se mete,
qu' ee o aviso primeiro
que lhe compre de seguir
todos sete.
No primeiro, de tua dama
antes que seja servida
te dou pejo,
e sabe por sua fama
s' ela quer ou é querida
nesse ensejo.
Porque se querida for,
contanto qu' ela nam queira,
poderaas
dar-te por seu servidor,
mas se quis bem da primeira
partiraas.
No segundo, u for posta
ũa vez tua firmeza,
consentires,
com trabalhada crueza,
que te venha maa reposta
nam partires.
Que vees que se siguiraa
se deixares esta ũa
e outra metas,
nunca t' agasalharaa
em dias molher nenhũa
que cometas.
No terceiro aperceber,
lembre-te que te aviso
em tal maneira:
u puseres teu bem querer,
que seja molher de siso
e verdadeira.
E peroo presumirás
que o seu bom entender
te embeleca,
sirvi-a bem e verás
que milhor é de mover
que a peca.
No quarto, assegurar,
se poderes seja cedo,
nam te leixe,
e se vires tal lugar
tu lhe põe as mãos sem medo
que s' aqueixe;
ca que t' ela bem entenda,
finge nam no entender
e é-lhe viço,
e posto que se defenda,
todo seu bom defender
é fingidiço.
E no quinto, tu retem
ũa vez teu bem querer,
se poderes,
posto que lhe queiras bem,
nam lhe dês a entender
quanto lhe queres;
que s' ee molher entendida
conhecerá bem teu jeito
e maneiras
e ja toda tua vida
sempre lhe serás sojeito,
que nam queiras.
Se quiseres servir amores,
tu sabe tomar aqui
tua ventagem,
esta dama que servires
nam valha menos que ti
por linhagem.
Milhor é menos amado,
posto que s' o homem afronta
com verdade,
e querer em alto estado,
que d' outra de menos
conta liberdade.
Fim.
No seteno, te concrudo:
se quiseres bem querer,
faz mester
que te tenha por sesudo
e de muito entender
esta molher.
Tu sê-lhe tal servidor
que saibas bem encobrir
sa poridade,
e eu fico por fiador,
quem sa dama assi servir
que arrecade.
183
VIOLANTE DE MEIRA.
— Senhora, contar-vos-ei,
preguntai a Vasco Palha,
de um sonho que sonhei,
e do prazer que tomei
tornou-se-m' em namigalha.
Vós vinheis de cas da Rainha,
vós dizeis que fogida
e dizendo: — Oh mezquinha,
pois ventura tal é minha
ja creo que sam perdida!
E daveis ũu grande brado:
— Quem se doi daquesta dama?
Eu jazia ja deitado,
acordei estrovinhado
e saltei fora da cama.
E eu vos nam conheci,
quando foi pola primeira,
mas despois que vos bem vi,
senhora, disse assi:
— Sois Violante de Meira!
Quando chegastes a mim,
vós ficastes bem citada
e dixestes: — Oh coitada,
nam achava outra pousada,
o demo me troux' aqui!
—A la fee, diss' eu, donzela,
serês minha convidada,
pois vos tenho na pinguela,
eu creio que sois aquela
que doona serês tornada.
Vós vinheis este seram
mais vermelha que a brasa,
eu fui logo temporam
e tomei-vos pola mam,
meti-vos dentro em casa.
Ali, dezieis, senhora:
— Ó por amor dos donzes,
por mercê lançai-me fora,
perdoai-me por agora,
homilho-m' a vossos pees.
— Al me podês vós rogar,
respondi, senhora, eu,
mas de vos esta quitar,
eu seria de tachar
por muito mais que sandeu.
Entam, senhora, vos via
em tamanho desbarato
que vossa mercê dezia:
— Pois ventura tal é minha,
entregai-vos, Joham Barbato.
Estas rezões acabadas,
por delas nam fazer custa
nem despender mais palavras,
descalcei logo as bragas
e aparelhei-me de justa.
Eu vos posso afirmar
e dar de mim esta fee
que nam tivemos vagar
pera nos irmos lançar
e começámos em pee.
Despois disto começado,
vós dissestes ũa cousa:
— Pois ja tal é meu pecado,
amigo, sede lembrado
nam no saiba Rui de Sousa.
Respondi-vos desta guisa:
— Nam tenhais esta sospeita,
mas por ver vossa devisa
desvesti esta camisa,
quero ver como soes feita.
Vós desvestistes-vos logo
e oulhastes bem par' ele.
Quando vi o mais do jogo,
eu ardia em tal fogo
que nam cabia na pele!
Tornastes-vos a vestir
e lançastes vossos contos,
começastes de carpir:
— Quem me soia a servir
ma faz andar nestes pontos!
Bradando com boa vontade:
— Ó meu senhor e amigo,
pois levaes a virgindade,
obrai ora piadade
e casai ora comigo!
— Eu o quero ja fazer,
senhora, por conciencia,
mas vós tinheis o poder
e eu nunca pud' haver
ũa vossa audiencia.
Vós vistes que me prazia,
senhora, de eu querer,
e vossa mercê fazia
consigo tal alegria
que choraveis com prazer.
E a mim, que nam pesava,
me matava bem de riso,
porque, senhora, cuidava
que aquilo que sonhava
que era em todo meu siso.
Fim.
Toda a noite trabalhei
em andar nest' embeleco,
mas sabei: quando acordei,
eu certamente m' achei
um muito valente peco.
Qu' assi Deos me dei vitoria
em tal prazer qual estava,
despois houve menencoria
por perder aquela groria,
senhora, em qu' eu estava.
184
DE DIOGO FOGAÇA A ŨA
DAMA MUITO GORDA, QUE
SE ENCOSTOU A ELE
E ACAHIRAM AMBOS
E ELA DISSE-LHE
SOBRE ISSO MÁS
PALAVRAS.
Rifam.
Que gentil feiçam de damas,
nam sei como vo-lo diga,
que tudo é cu e mamas
e barriga.
As mamas dam polo ventre,
o ventre polos joelhos
e do cu at' oos artelhos
gordura sobressalente.
Arrenego de tais damas,
é forçado que o diga,
ca tudo é cu e mamas
e barriga.
Corregeram-na mui bem,
pero foi com muita pena,
ca lhe fizeram querena
no rio de Sacavam.
Revolta d' ambalas camas,
isto com muita fadiga,
ca tudo é cu e mamas
e barriga.
Corregeram-lh' o costado,
mas a quilha ficou podre,
ramendaram-lha com ũ odre
do avesso trosquiado
e com tres peles de gamas,
muita estopa d' estriga,
ca todo é cu e mamas
e barriga.
Nam prestou calafetar,
porque faz agua por fundo,
ja nam ha Crespim no mundo
que lha podesse vedar.
Ò diabo dou taes damas,
é forçado que o diga,
ca toda é cu e mamas
e barriga.
Cabo.
Mas quebraram-lh' as escoras,
encostou-se sobre mim,
teve debaixo Crespim
bem acerca de tres horas.
Ja renegava das damas,
saio com muita fadiga
debaixo de cu e mamas
e barriga.
185
DE DIOGO FOGAÇA.
da ira de Dom Fadrique,
guardai-vos d' haver ũu pique
ou andai co rabo quedo.
Vejo-vos tal condiçam,
que d' ũ soo nam sões contente,
quem a corna nam consente,
vem-lhe de bom coraçam.
Havei bom conselho cedo
s' entendeis de vos casar,
confessar e comungar
ou andar co rabo quedo.
Manda Deos d' ũ homem soo
ser contente ũa molher
e quem mais que, ũu quiser
o demo haja dela doo.
Julga Luis d' Azevedo,
que tem a vara d' El-Rei,
que moira, segundo a lei,
ou ande co rabo quedo.
186
CANTIGA SUA.
Que m' algũs vissem sobir
e me vejam tanto em fundo,
nam s' espante quem me vir,
que assi entrou o mundo
e assi ha-de sair.
O mundo faz movimento
pero nunca é movido,
do ganhado faz perdido,
do perdido guanhamento.
Faz sobir e faz cair
do mais alto ò mais perfundo,
pois nam prasme quem me vir,
que assi entrou o mundo
e assi ha-de sair.
187
OUTRA SUA.
Deos nam daa consentimento
tu seres de mim servida,
ca é contra mandamento
e é teu destroimento
da honra como da vida.
A vontade é contraira
da bondade e da razam,
que seguir seu coraçam
de todo siso desvaira.
Deos nam deu conhecimento
da maldade conhecida,
pois passar seu mandamento
é vosso destroimento
da honra como da vida.
188
OUTRA SUA.
Pois quem amo quis assi
minha morte conhecida,
pesa-me porque naci,
despraz-me de tanta vida.
Vida tanta ja nam quero
e desejo minha fim,
a ledice nam espero
de quem amo mais qu' a mim.
Pois que sempre bem servi,
me faz triste na partida,
pesa-me porque naci,
despraz-me de tanta vida.
189
SENHORA QUE SERVIA.
A vós a que por meu mal
meu serviço obriguei,
que por morte acabarei
de vos ser sempre leal.
Tanto sam vosso, senhora,
quanto eu de mim conheço,
que nam quisera ser agora
polo mal que ja padeço.
Ca em mim nam estaa poder,
senhora, de me partir
nem vontade de servir
nunca m' haa-de falecer.
Ca raiva meu coraçam,
onde jaz na parte esquerda,
por temer que sem rezam
ha-d' haver mui grande perda.
E que perda tanto seja
quanta vos dizer nam posso,
a vontade de ser vosso
é, senhora, mais sobeja.
Ca segundo meus sentidos
vos fazem, senhora, de mim
os meus males conhecidos
vos faram ver minha fim.
Vossa fala graciosa
me tem posto tal cuidado
que per mim nam sam ousado
dizer sem licença vossa.
Mas peroo que tal desejo
algũ homem ter quisesse
em amar a tam sobejo
nam creo que ser podesse.
A vós per quem tribulança
o meu mal é a tam grande
que me faz vos nam demande
a verdadeira esperança.
E vós, senhora poderosa,
farês bem satisfazer,
com vontade piadosa,
a quem vive sem prazer.
Fim.
De mim se poderaa dizer
que vos amo lealmente,
sem poder de vós saber,
senhora, se sões contente.
FIM DO PRIMEIRO VOLUME