Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA PORTUGUESA
Textos literários em meio eletrônico

 Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende


Edição de base:

GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.

Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

VOLUME I

Tavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . .

Primeiramente um prologo de Garcia de Resende, deregido ao Principe nosso Senhor.

As trovas que se fizeram sobre o cuidar e sospirar.          fo. I

De Dom Joam de Meneses, sahindo d' ũs amores e entrando noutros.   fo. XV

Desta folha atee às dezoito folhas, é tudo d' obras suas.           fo. XVIII

‡ Do Coudel-moor sobre as cortes que se fizeram em Monte‑moor.       fo. XIX

Outras suas sobre os bispados.                                 fo. XIX

‡ Trovas suas às damas.                                        fo. XIX

‡ Outras a Garcia de Melo.                                      fo. XIX

‡ Outras a Rui Moniz.                                              fo. XX

Outras a Joam Afonso d' Aveiro.                                fo. XXI

‡ Outras a Fernam Cabral.                                      fo. XXI

Trovas suas desta folha atee                                fo. XXIIII

D' Alvaro de Brito Pestana a Luis Fogaça.                 fo. XXIIII

‡ Trovas e cantigas suas, desta folha até às folhas   fo. XXXII

De Nuno Pereira, porque casou sua dama.                fo. XXXII

‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas  fo. XXXV

‡ D' Alvaro Barreto a Alvaro d' Almada.                     fo. XXXV

‡ Outras suas a El-Rei Dom Afonso.                       fo. XXXVI

Trovas e cantigas suas.                                      fo. XXXVII

De Duarte de Brito de cousas que lhe aconteceram e vio.   fo. XXXVII

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas    fo. XXXXVIII

De Dom Joam Manuel à morte do Princepe.           fo. XXXXVIII

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às                  fo. LI

‡ Os Nunca vi antre privados.                                    fo. LI

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas       fo. LV

‡ De Dom Martinho da Silveira, de novas e ũa cantiga sua.  fo. LVII

Cantiga de Dom Rolim e de Diogo de Miranda e de Fernam Telez e Diogo e Sancho de Pedrosa.    fo. LVII

De Luis d' Azevedo aa morte do Ifante e ũa cantiga sua.   fo. LVIII

‡ De Gil de Crasto a Anrique d' Almeida.                    fo. LVIII

‡ De Pedr' Homem, trovas e cantigas.                        fo. LIX

D' Anrique d' Almeida, sete cantigas.                             fo. LX

De Joam Barbato, d' avisos.                                       fo. LX

‡ Outras suas, d' ũu sonho.                                     fo. LXI

‡ De Diogo Fogaça aas damas e quatro cantigas.         fo. LXI

De Fernam Lobato a ũa molher.                                 fo. LXI

CANCIONEIRO GERAL

DE GARCIA DE RESENDE

PROLOGO DE GARCIA DE RESENDE, DEREGIDO

AO PRINCEPE NOSSO SENHOR

Muito alto e muito poderoso

Príncipe nosso Senhor

Porque a natural condiçam dos portugueses é nunca escreverem cousa que façam, sendo dinas de grande memoria, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e vertudes, de ciencia, manhas, e gentileza sam esquecidos. Que, se os escritores se quisessem acupar verdadeiramente escrever, nos feitos de Roma, Troia e todas outras antigas cronicas e estorias, nam achariam mores façanhas, nem mais notaveis feitos que os que dos nossos naturaes se podiam escrever, assi dos tempos passados como d’ agora: tantos reinos e senhorios, cidades, vilas, castelos, per mar e per terra tantas mil léguas, per força d’ armas tomados, sendo tanta a multidão de jente dos contrairos e tam pouca a dos nossos, sostidos com tantos  trabalhos, guerras, fomes e cercos, tam longe d' esperança de ser socorridos; senhoreando per força d' armas tanta parte de Africa, tendo tantas cidades, vilas e fortalezas tomadas e continuamente guerra sem nunca cessar; e assi Guinee, sendo muitos reis grandes e grandes senhores seus vassalos e trebutarios e muita parte de Etiopia, Arabia, Persia e Indeas, onde tantos reis mouros e gentios e grandes senhores sam per força feitos seus suditos e servidores, pagando-lhe grandes pareas e trebutos, e muitos destes pelejando por nós, debaixo da bandeira de Cristos, com os nossos capitãaes, contra os seus naturaes, conquistando quatro mil leguas por mar, que nenhũas armadas do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam navegar com medo das nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas; tornando tantos reinos e senhorios com inumeravel jente aa fee de Jesu Cristo, recebendo agua do santo bautismo; e outras notaveis cousas que se nam podem em pouco escrever.

Todos estes feitos e outros muitos d' outras sustancias nam sam devulgados como foram, se jente d' outra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si, que nam querem confessar que nenhũus feitos sam maiores que os que cada ũu faz e faria, se o nisso metessem. E por esta mesma causa, muito alto e poderoso Princepe, muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas noticia, no qual conto entra a arte de trovar, que em todo o tempo foi mui estimada, e com ela Nosso Senhor louvado, como nos hinos e canticos que na Santa Igreja se cantam se veraa. E assi muitos emperadores, reis e pessoas de memoria, polos rimances e trovas sabemos suas estorias. E nas cortes dos grandes princepes é mui necessaria na jentileza, amores, justas e momos, e tambem para os que maos trajos e envenções fazem, per trovas sam castigados e lhe dam suas emendas, como no livro ao diante se veraa. E se as que sam perdidas dos nossos passados se poderam haver e dos presentes s' escreveram, creo que esses grandes poetas, que per tantas partes sam espalhados, nam teveram tanta fama como têm.

E, porque, Senhor, as outras cousas sam em si tam grandes que por sua grandeza e meu fraco entender nam devo de tocar nelas, nesta, que é a somenos, por em algũa parte satisfazer ao desejo que sempre tive de fazer algũa cousa em que Vossa Alteza fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar algũas obras que pude haver d' algũs passados e presentes e ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quaes foram e sam, mas para os que mais sabem s' espertarem a folgar d' escrever e trazer aa memoria os outros grandes feitos, nos quaes nam sam dino de meter a mão.

 

1

PREGUNTA QUE FEZ JORGE DA SILVEIRA A NUNO PEREIRA, PORQUE INDO AMBOS POR ŨU CAMINHO VINHA NUNO PEREIRA MUITO CUIDADOSO E JORGE DA SILVEIRA DOUTRA PARTE DANDO MUITOS SOSPIROS, SENDO AMBOS SERVIDORES DA SENHORA LIANOR DA SILVA.

Pregunta Jorge da Silveira

e reposta de Nuno Pereira,

tudo neste rifam.

Vós, senhor Nuno Pereira,

por quem is assi cuidando?

— Por quem vós is sospirando,

senhor Jorge da Silveira.

Jorge da Silveira.

Nam que eu sospiro indo

por quem cuidados me dá

e me vai assi ferindo,

que de todo destroindo

me vai seu cuidado ja.

Cuidar é causa primeira,

mas despois d' eu ir cuidando,

meus sospiros vam dobrando

tá matar à derradeira.

Nuno Pereira

Ter poder de sospirar

assaz é, senhor cunhado,

pera mais desabafar,

mas eu nam tenho lugar,

ca mo tolhe meu cuidado.

Porque é de tal maneira

que por quem eu assi ando

deve d' andar preguntando:

—Morreo ja Nuno Pereira?

Jorge da Silveira

Pois vosso cuidar querês

esforçar e defender,

e mostrar no que fazês

que moor pena recebês

que sospirar e gemer,

com fee de servir inteira,

a quem nos fere matando

vamos tristes demandando

que julgar isto nos queira.

Nuno Pereira.

Sendo sa mercê contente

qu' a ouvir-nos se encline

serei mais que recontente

que nossa questão presente

ela veja e determine.

E tenhamos nós maneira

d' irmos petição formando

de tal forma qu' em lha dando,

ela por nós lho requeira.

De Jorge da Silveira e de

Nuno Pereira,ambos jun-

tamente, em modo

de petiçam.

Pois que, senhora, nacestes

por dar morte e nunca vida,

pois que ambos nos vencestes

com vosso mal que nos destes

de morte não conhecida,

que no al nos desempare

de todo vossa mercê,

sospirar, cuidar decrare

quem se neles vir ou vê

cuja morte maes se crê.

Desembargo posto nas costas

desta petiçam, por man-

dado da dita senhora.

Se estes competidores

querem seguir este feito,

ordenem precuradores

e digam de seu dereito.

De Nuno Pereira, em que toma

seus precuradores pera ajuda-

rem sua tençam por parte

do cuidado, segundo

mandado da dita

senhora.

Eu par' esta altrecação

tomo por ajudadores

Joam Gomez e Dom Joam,

qu' ajudem minha tenção

como meus precuradores;

e façam ser esta cousa

nos amores conhecida:

que quem sospira, repousa,

e u cuidado bem pousa,

nom tem sospiros nem vida.

Jorge da Silveira, em que satis-

fazendo ao desembargo, toma

seus precuradores

por parte do sos-

pirar.

Em cousa de si tam crara

escusado era debate,

e  eu logo o escusara,

s' a senhora o julgara,

que me mata, que nos mate.

Mas pois vós, senhor, metês

remo d' ajuda que vogue,

vós, irmão, acorrer-m' -ês,

entam lá consultarês

onde sangue se nam rogue.

Pera o qual vos dou poder,

tanto quanto posso dar,

pera por mim requerer,

alegar, contradizer,

consentir e apelar;

por em minh' alma jurardes,

como quer lá o dereito,

pera meus beens obrigardes,

mas nam pera concertardes

tá ver vitorea do feito.

Segue-se o primeiro rezoado

de Dom Joam de Meneses,

precurador de Nuno Pe-

reira, por parte do

cuidado contra

o sospirar.

Ha ja tanto que nam vivo

sem sospiros e cuidados

e sem tanto mal esquivo

que por mim, triste cativo,

bem podereis ser julgados.

Mas a vós, senhor cunhado,

não vos deve d' ajudar

quem for muito namorado,

que quem morre de cuidado

é-lhe vida sospirar.

E mais irdes preguntando

a quem vos nam preguntava

por quem is vós sospirando,

é sinal qu' em ir cuidando

muito moor paixam levava.

Nam digo ja que falar

foi sinal de pouca pena,

mas da pena qu' ee cuidar

descanso é sospiros dar

e sa dor é mais pequena.

Os cuidados desiguaes

sempre deram mortaes dores;

sospiros nam doem maes,

que quanto sam ũs sinaes

de quem sente mal d' amores.

Pelo qual devem de dar

sentença defenetiva

qu' ee muito mor dor cuidar,

ca quem pode sospirar

inda tem por onde viva.

Sua à senhora Dona Lianor.

Senhora, pois vedes craro

que cuidar tem por conforto

sospiros e por emparo,

nam leixês de desemparo

morrer a quem vinha morto.

Nem julguês por afeiçam

sospiros por moor trestura,

por nam ser contra razão

ò reves em condiçam

do que soes em fremosura.

Rezões de Joam Gomez,

precurador de Nuno Pereira,

por parte do cuidado

contra o sospirar.

Metem aceso cuidado

amores com suas triscas

de pensamento forçado,

com fogo desesperado,

com sospiros sas faiscas.

Cuidado paixam ordena,

cuidado nunca descansa,

cuidado redobra pena,

cuidado nunca s' amansa,

cuidado sempre tem lena.

Os sospiros e gemidos

como faiscas s' apagam

com descanso dos sentidos

a quem sam atrebuidos,

porque sospirando pagam.

Mas ũ cuidado mui vivo,

nacido no coraçam

do triste amador passivo,

é ũu cabo de paixam

qual mais nam sofre cativo.

Quem sofre cuidado tal,

sem topar algum remanso,

sofre fadiga mortal

e paixam tam desigual,

que nam dá nenhum descanso.

A pena que é mais fera

na vida de bem amar

cuidado que persevera,

quanto mais se o cuidar

é no que se desespera.

E assi concrudo que

o cuidado soo per si

é pena que nam tem sê

nem guarida em qu' estê,

segundo sempre senti.

O cuidado que concluda

em gemidos e sospiros,

com esperança s' ajuda,

poes tem descansos a giros

em que seus males remuda.

Sua à dita senhora.

Dama de grã fremosura,

espelho das outras damas,

linda, honesta fegura,

dama da melhor ventura,

das que sam e temos famas,

deve vossa senhoria

julgar o crime cuidado

por pena de namorado,

sospiros por fantesia.

Rezões que deu Nuno Pereira

em favor de seu cuidado,

ajudando seus pre‑

curadores.

Narciso, Mancias morrerão

de soo cuidados vencidos!

Oh, quantos ensandecerão

mui sesudos, que perderão

com cuidados seus sentidos!

A que se chama pasmar,

que cousa é esmorecer

senam querer abafar,

sem poder esfolegar?

E sospirar é viver.

Se o dissesse Oriana,

e Iseu alegar posso,

diriam quem se engana,

que sospiros sam oufana,

cuidado, quebranto nosso.

Deriam: — Quem alegou

sospiros contra cuidado,

nunca bem se namorou,

ca o que a nós matou

mata todo namorado.

Se os que sam ja finados

e que d' amores morreram

podessem ser perguntados,

diriam que com cuidados

a vida e alma perderam:

a vida em esperando

com cuidados e tristeza,

e alma desesperando,

eles mesmos se matando

com cuidar qu' ee moor crueza.

O cuidado desbarata

todos grandes corações,

e os aperta e os mata

com fantesias que cata

de desvairadas paixões.

Mas ond' ele anda manso,

que sospiros de si manda

j' el' entam em si abranda,

sospiros vêm por descanso.

Sua a Jorge da Silveira.

Diz-m' a mim meu coraçam,

porque m' a isto nam calo:

— Pera que vos dou rezão,

pois vos nam chega paixam

deste cuidado que falo?

Ca se vos ele apertasse

assi como m' ele aperta,

e o vosso assi penasse,

dirieis que se julgasse

o cuidar por morte certa.

Trova sua à dita senhora.

Cuidado de minha vida,

vos chamo sempre por nome,

daqui vossa mercê tome

s' haa i cousa mais sobida

qu' a cousa que se vos chama

por milhor nome que posso,

ora vede se é vosso

quem de vós mesma brasfama.

Cantiga sua à dita senhora.

O cuidado mui sentido,

donde morte se m' ordena,

é qu' havês de ter marido

e eu sempre minha pena.

E naquisto contemprando,

vai crecendo desconforto,

que desmaio em cuidando

e caio mil vezes morto

e fora de meu sentido,

com tal morte qual s' ordena

pera mim ver-vos marido

sem vós verdes minha pena.

Começão as razões por parte

do sospirar contra o cuidado

e logo Francisco da Sil‑

veira, precurador

de seu irmão.

S' achardes quem bem descarne

as raizes do amar,

dir-vos-am que sospirar

é partir alma da carne.

Pois sede bem conselhado,

nam apodês o cuidado

com sospiros que sam morte,

nem ha i quem nos comporte

senam fino namorado.

Nam vos engane cuidardes

que sabeis alegações

nem que valem taes rezões

polas bem aperfiardes.

Porque quem ha-de julgar

nam n' havês vós d' enganar

nem lhe fazer entender

preto branco parecer,

nem bom vosso aperfiar.

Porque sospirar nam vem

senam ja de nam ter vida,

o cuidar cous' ee sabida

qu' outros cem mil furos tem.

De mil cousas vem cuidar,

assi com' ee demandar

morgados e dar libelo,

entam fazer parte delo

pera vir ao contestar.

Nam vos alego passados,

ca bem craro é de saber

que com sospiros morrer

é ja certo aos namorados.

Mas alego-vos comigo

que des que amores sigo

sempre neles andei morto:

cuidar trazia conforto,

sospirar morte consigo.

Trova sua à dita senhora.

Se mercê fazer querês

em al, seja a meu cunhado,

mas vir de maes namorado

sospirar nam lhe tirês.

Ca primeiro vem cuidar

e pós ele o esmaiar,

entam logo o sospiro

que é, senhora, ũu tiro

que faz vidas apartar.

Trova sua ao Coudel-moor em

que lhe pede ajuda a seu

cabo neste feito, em

favor do sospirar.

Por cessar esta conquista

sobr' esta perfia nossa,

compre-nos ajuda vossa

por a cousa ser maes vista.

E por isto, senhor, queira

vossa mercê ter maneira

como nos aqui ajude,

ca visto é que mal concrude

seu cuidar Nuno Pereira.

Cantiga sua contra estes que

aperfiar querem contra

os sospiros.

Galantes mal namorados,

que fordes contr' oo que sigo,

inda vos veja tratados

de sospiros tam queixados

com' eu sam de quem nam digo.

Sequer por ficar vingado,

quando vir alguem queixar,

dir-lhe-ei: — Mao namorado,

porque escolhestes cuidado

contr' ò triste sospirar?

Veja-vos todos tomados

nam d' amigas, mas d' emmigo

e assi galardoados

das por que vivês penados,

com' eu sam de quem nam digo.

Começa o Coudel-moor suas

razões por parte do sospirar

contra o cuidado, ende‑

rençando sua fala à

dita senhora.

Poes me convem que precure

por quem vida tem sogeita,

vossa mercê me segure

que sa crueza nam dure

a me ser nisto sospeita.

Ca eu nam me maravilho,

pois o feito j' assi vai,

de nam dardes fee ò pai

de quem morto havês o filho.

Polo qual s' aqui acudo,

é por ser mais que forçado,

pois paixões pelo meudo,

sospirar, cuidar e tudo

é por vossa mão lançado.

E como quem ambos sente

diz que pode estar cuidar

soo per si, mas sospirar

nunca soo, mas juntamente.

Contra o que Dom

Joam alegou.

E vós, senhor Dom Joam,

qu' alegaes contr' esta parte,

sei que ja vistes questão

que dava, sem dar paixam,

cuidado grande que farte.

E vistes quem s' alegrasse

com cuidados que cuidava,

mas nam ja quem sospirava

que com prazer sospirasse.

Algũus indo caminhando,

cuidando fora de tento,

que fazês? lhe preguntando,

respondem: — Ia cuidando

em mil castelos de vento.

Mas fazendo tal questão

onde sospiro se pousa,

responde: — Por ũa cousa

que me chega ò coração.

Contra o que disse

Joam Gomez.

E vós que de trovador

qu' alentaes os trovadores,

como daes, vós, meu senhor,

ò cuidado mais primor

qu' ò sospirar nos amores?

Que, se vós bem esguardais,

vós sospiros nunca vistes

senam com amores tristes

quando dam penas mortais.

Cuidados, como sabês,

certo cousas sam geraes,

cuidados achá-los-ês

no comprar, quando compraes,

no vender, quando vendês.

Se mandaes cousas a Frandes,

cuidado faz segurar,

mas d' amores carregar

retorna sospiros grandes.

Quem cuidado quer contar,

cuidar é lançar em renda,

cuidar é vida tomar,

cuidar é sempre cuidar,

cuidar, cuidar na fazenda.

Cuidado tem quem tem brigas,

cuidado quem tem demanda,

outro cuidado se manda

com prazer, não com fadigas.

Mas nam é ja cousa nova

sospirar com mal d' amores,

ca u se paixam renova,

sospirar me lev' aa cova

com seus grandes desfavores.

Sospiros tristes, que vêm

refinando dos sentidos,

trazem seus pendões tendidos

pela fee que vos nam têm.

Contra o que disse Nuno Pereira.

Vós cunhado, qu' alegastes

Narciso, tambem Mancias,

nam sei u lhe vós achastes

ou como cuidar cuidastes

que fez acabar seus dias.

Mas tu, sospirar, que cortas

alma, bofes, antredanhas,

nam alegas com estranhas

testemunhas que sam mortas.

Alegais-me vós Iseu

e Oriana com ela,

e falaes no cuidar seu

como que nunca li eu

sospirar Tristam por ela.

Milhor vos posso alegar

quem diz meos males sobidos

es fazer los mis gemidos

y sospiros esforçar.

Mas por nam ir maes ò cabo

do falar com nossos males,

nisto soo convosco acabo,

que diss' outro, nam por gabo,

sospiros, ansias mortales.

E assi que se vos cata

cuidado vida segura,

lembrando sa fremosura

sospirar por el[e] mata.

Com as quaes rezões concluso

vaa, senhor, o rezoado,

e acharês nele confuso

quem cuidado tem por uso

se nam tem maes que cuidado.

Mas ser morte mui inteira

sospirar negar nam posso,

e ser visto pelo vosso,

vosso Jorge da Silveira.

Do Coudel-moor à dita

senhora por fim de

seu rezoado.

Pois vossa grã fremosura

nos pôs todos em cuidado,

conheça quem tem tristura

que por sa desaventura

sospiros lhe daes de grado.

Ca por lei dos amadores

o cuidar sospirar ponho,

cuidar é cuidar no gronho,

sospiros, vivos amores.

Cantiga que dá o Coudel‑

-mor por maes decra‑

raçam do sos‑

pirar.

Do cuidar que dá cuidado

sem com ele sospirar,

ser de pouco namorado

é cuidar.

Quando cuidado s' aviva

em tempos que dá paixam,

dá o triste coraçam

sospiros em voz esquiva.

Mas estar deles calado

mostra sem paixões estar

ou de pouco namorado

se cansar.

Segue-se ũa protestaçam que

fez o Coudel-moor, porque lhe foi

dito que algũus eram roga‑

dos de fora, que aju‑

dassem contra os

sospiros.

Honrado tabaliam

ou escrivam,

qualquer que soes deste feito,

por guarda de meu dereito

vos dou esta pitiçam.

E faço requerimento

que assentês com bom tento

neste auto que s' esguarda

e com todo ũu estormento

me darês por minha guarda.

E com isto vos repito

ser-me dito

d' algũs grandes trovadores,

que vêm como valedores

escrever ou têm escrito.

digo que nam queiraes

assentar nem escrevaes

cousa que vos dada seja,

que mui bem o nam vejaes,

qu' eu primeiro o nam veja.

E des i logo no meo,

qu' hei raceo

de vir Jorge d' Aguiar,

que me mata seu trovar,

quando suas cousas leo.

E porem sede avisado

não vos tome salteado,

mas abri mui bem o olho,

e aqui vos solto cuidado,

e o sospirar vos tolho.

De Jorge d' Aguiar, que deu ajuda

em favor do cuidado con‑

tra o sospirar.

Ante tanta fremosura,

ante saber tam sobido,

ante quem siso s' apura,

hei por mui grande baixura

de bater no ja sabido.

Que pera sua mercê

haver de ser acupada

no que tam craro se vê,

no que todo mundo crê,

hei por cousa mui errada.

Cuidado faz nam dormir,

cuidado faz nam comer,

cuidado faz nunca rir,

cuidado ensandicer,

cuidado nam ter prazer.

Cuidado dá mil paixões,

cuidado dá mil cuidados,

cuidado mil corações,

cuidado mil namorados

tem feito desesperados.

Cuidado suas folganças

são em muito sospirar,

cuidado suas bonanças,

todo seu desabafar,

é em mil sospiros dar.

Sospiros sam testemunhas,

sospiros sam pregoeiros,

sospiros sam caramunhas

dos cuidados e marteiros

dos amores verdadeiros.

Mas quem pode sospirar

vai de pena j' alivando

e quem nam pode falar

em cuidando e maginando

vai seus dias acabando.

Assi que quit' à primeira,

pois soes tam namorado

que falaes contr' ò cuidado,

senhor Jorge da Silveira,

mas nam quita à derradeira.

Muitos vi esmorecidos

cair de grandes cuidados,

com sospiros e gemidos,

qu' ee sinal de ressurgidos,

os vejo sempr' acordados.

Assi que cuidado mata

e sospirar aviventa,

e, s' aquesta nam contenta,

nam sei quem maes rezam cata,

poes vos esta tanto ata.

Vede bem que perdiçam

vem de cuidado sofrer,

olhai bem por Dom Joam

que jaz ja pera morrer

soo de gram cuidado ter.

E por verdes que cuidado

traz consigo curta vida,

nunca vistes descuidado

que lha nam visseis comprida

mais que todos sem medida.

Cantiga sua que daa

contra os sospiros.

Sospiros nam me prasmeis,

pois soes todos fengidores,

dizer-vos que merecês

nunca ser cridos d' amores.

Com braados desentoados

cuidaes de me fazer crer

que vindes de namorados,

que vindes de padecer.

Ja me nam enganarês

dinos de mil desfavores,

pois sei que nunca nacês

senam dos maes fengidores.

Do Coudel-moor em forma

d' arrezoado por parte do

sospirar, em que res‑

ponde a estas de

Jorge d' Aguiar.

Vossas copras receando

tinha feitos meus processos,

mas pois se vem devulgando

pelo que m' is alegando

revolver compre Dejestos.

Que certo voss' alegar

vai per maneiras fundado,

que cuidar fará cuidar

que precede oo sospirar

u nam for bem esguardado.

Fundastes em dardes nome

de mil modos ò cuidado

s' i ha quem vos assome

far-lh' -ês qu' um espanto tome

que fique com' assombrado.

Mas olhando a qualidade

deste negro sospirar,

acharês ũa verdade

de ũa conformidade

qu' ee ja maes que recuidar.

Alegaes que o cuidar

em sospirar tem folgança

pois como pode matar

o cuidar, poes seu folgar

tam prestesmente se alcança?

Tambem dizês qu' esmorece

quem sofre grande cuidado

mas isto mas s' acontece

em quem se trata padece

se vê do braço sangrado.

Mas posto, nam outorgado,

que com cuidar s' esmoreça,

vejamos: nam jaz folgado

quem nam sente seu cuidado

nem dor grande que padeça?

Pois quando lhe vem a vea

que se torna sensetivo,

sospirar, com que descrea,

lhe dá tanta maa estrea,

qu' é milhor morto que vivo.

Qu' assi daqui concrudo

que sospirar tem o cume,

e qu' amores tenham tudo,

sospirar pelo meudo

de paixões faz moor velume.

Nam dá vida, mas dá morte,

nem folgar, mas dá tristezas,

sem azar nunca faz sorte,

faz o mal brando mui forte,

todo seu bem são cruezas.

Sua à dita senhora.

Senhora, grande senhora,

que poder tem sobre tantos,

lance cuidados de fora,

poes sospiros em fort' hora

têm consigo taes quebrantos.

Mande-nos vossa mercê

julgar esta deferença,

ca pois s' a verdade vê,

senhora, mandar querê

que nos dêm nossa sentença.

De Dom Joam de Meneses

em modo de repricaçam,

por parte do cuidar

contra o sos‑

pirar.

Senhor Jorge da Silveira,

n' ũa copra dizês vós:

cuidar é cousa primeira,

pola qual à derradeira

vós mesmo falaes por nós.

Que pois primeiro cuidamos

chamaremos o cuidar

e os sospiros ũs ramos

de tristeza que levamos

em cuidar.

Vosso irmão anda devoto

de ser contra o qu' eu falei,

mas eu juro e faço voto

que lhe vi trazer por moto:

Cuidado, que vos farei?

Mas des que se lhe casou

por quem vevia penado,

sospirou pelo passado,

e despoes que sospirou

nam sentio mais o cuidado.

Suas enderençadas

ao Coudel-moor.

Se por alegar cantiga

cuidaes de vencer por arte,

inda tendes mais fadiga,

que convem, senhor, que diga

das que sei por minha parte.

Porem quero que saibaes

que, se fosseis namorado,

rerieis das que falaes,

que sei que vos nam lembraes

del dolor de mim cuidado.

E outra tenho guardada

pera vossa perdiçam,

a qual foi tam bem cuidada

que parece qu' ee tirada

do meu triste coraçam.

Com esta sam eu perdido,

com esta será ganhado

quem for do nosso partido:

mins querelhas he vencido

siempre me venc' el cuidado.

Pelo qual de vós m' espanto,

poes vós soes o mesmo paço,

e sabês qu' ee tal quebranto

o cuidar que nam doe tanto

a morte com gram pedaço.

E meus cuidados estranhos

alegar por si enviam,

por todos ficardes manhos,

que sospiros dam tamanhos

na rua onde nam fiam.

Mil bocijos vi quebrados

em sospiros, que mostravam

ser do coraçam tirados,

mas aqueles que os davam

sospiravam d' enfadados.

Vi mais dama falsamente

sospirar, mas sospirava,

porque se nam despejava

a casa de toda a jente,

por se ir quem lhe falava.

Dom Vasco mil dados tem

por minha senhora e filha,

de vossa mercê tambem,

mas nam será maravilha

querer-lhe eu muito moor bem.

E ela, se d' enfadada

estando cos servidores,

sospira pola pousada,

levantai qu' ee namorada

ou que vem isto d' amores.

Sua às damas.

Senhoras, pois sospiraes

por pexegos, por melão,

por peras, figos orjaes,

marmelos, uvas ferraes,

aas vezes por queijo e pam,

confessai que quem sospira

nam faz nada,

que sospiros sam mentira,

cuidar, dor que se nam tira

sem ser muito bem cuidada.

Cantiga sua em favor

do cuidado.

Levo gosto em padecer,

levo gosto em sospirar,

levo gosto em me perder,

mas cuidar no qu' ha-de ser

d' antemão me quer matar.

Mas nunca farei mudança,

porque quanto mais penar

tanto mui maior lembrança

leixarei, quando leixar

vida tam sem esperança.

Cuidar faz adoecer,

cuidado desesperar,

cuidado me faz morrer,

mas porem torno a viver,

como posso sospirar?

Responde Francisco da Silveira

ao moto que lhe apontou e

às cousas passadas que

lhe alembrou.

Renovar dores passadas

escusareis, Dom Joam,

por m' as nam dardes dobradas,

que assaz tenho levadas,

sofridas sem galardam.

Metestes mais ũu casar

de por quem vivo nam ando,

por maes asinha fundar,

a quem, soo por lhe lembrar,

sospiros lh' estão tirando.

Inda vós nam sabês bem

que dores fazem lembranças,

quando se fazem de quem

nenhũu remedio ja tem,

mas antes desesperanças.

Se vós foreis namorado

tanto com' eu sam perdido,

nam m' alembreis passado

por vos eu contr' ò cuidado

neste preito ter vencido.

Pera nam serdes tachado

por nam ser vosso louvor,

se quisereis, por cuidado,

em outra guisa alegado

fora sem me dardes dor.

Mas com' a quem se recea

da maa querela que tem,

passada paixam nomea,

com que meu siso rodea

a me nam lembrar ninguem.

Dizês, senhor, que mandei

moto ja em que dezia:

Cuidado, que vos farei?

Por ele vos provarei

qu' ee boa minha perfia.

Preguntava que faria

o cuidado, nam sospiro,

porque o cuidar sabia

que remedeo se daria,

mas nam o com que sospiro.

Se por me lançardes fora,

cuidastes que vencereis,

fostes lá mui em fort' hora,

pois ficaes com quem nũ hora

vos fará crer o que mal crieis.

Mas aqui nam presta manha

que cuidaes vencer por arte,

buscai-lh' outra dor estranha,

que lhe dê pena tamanha,

que vos leixe sua parte.

E entam des que ficardes

vós e quem todos sõoes ũs

poderês, des que cuidardes

e vos bem aconselhardes,

sospiros dar por nenhũs.

Ca despois que juntos fordes,

sem contra vós ser ninguem,

poderês tirar e poerdes

e nam fazer, mas despoerdes

do dereito a quem o tem.

Sua à dita senhora, em que

lhe pede vingança de

Dom Joam.

Quis Dom Joam alegar

quem cem mil dores me deu,

por m' os sentidos trovar

e me fazer desviar,

senhora, o prucurar meu.

Peço-vos dele vingança

e leixo o mal de meu irmão,

ca por me fazer lembrança

de quem perdi esperança

me cae a pena de mão.

Do Coudel-moor em que res‑

ponde ao que disse Dom

Joam contra ele e dá

estas em favor do sospirar.

Pois quisestes repricar

com querelas alegardes,

e querês arrapiar

o cuidado e o cuidar

pera o mais arrapiardes,

sospirar alegaraa

o triste que sabereis

que dezia entrai laa:

― Sospiros, leixae-me jaa,

com meu mal nam me mateis.

Sospirar está provado

que nunca traz interesse,

mas traz mal continuado

que brada desesperado:

― Oh quem vista nam houvesse!

Pera meus danos dobrados

cada dia me convida

e diz sobre meus cuidados

com sospiros tam forçados

darem cabo a minha vida.

Ũu falar nam mui donoso

cab' aqui, pois o quisestes:

quando and' algũu cuidoso,

diz por ele o gracioso:

― Vós, que carracas perdestes?

Mas s' o sospirar dobrado

vejo andar com desfavores,

digo cá em meu calado  

s' anda bem apassionado

aquele com seus amores.

Du nam fiam, nam fiêes,

nam recebo aqui tal prova,

mas das damas que dizeis

respondo que ja sabeis

qu' a mais doce maes emnova.

Quem sospira por pousada

tem pesares do serão

ou paixam sobr' agastada,

pelo qual nam desfaz nada

o feito de seu irmão.

Do Coudel-moor à dita senhora,

em que lhe pede outra

vez sentença pelo

sospirar.

O que vos, senhora, digo,

olhe vossa fremosura,

com sospiros m' afadigo,

porque dobram quando sigo

minha moor desaventura.

E pois ser nam é cuidado

o sospiro nem chegar,

saia deste processado

o de todas e mandado

que os mate o sospirar.

Cantiga do Coudel-moor em favor

do sospirar, pelos mesmos con‑

soantes da que fez Dom

Joam em favor do

cuidado.

Por meu triste padecer

me mata meu sospirar,

mas que me veja perder,

cuidando que pode ser,

nam m' acabo de matar.

Nam posso fazer mudança

das forças de meu penar,

mas vem-me triste lembrança

por sospiros nam leixar,

leixando minha esperança.

Faz-m' assi adoecer

contino desesperar,

que vida m' ee ja morrer

e nam por vida viver

com tal mal de sospirar.

De Pero de Sousa Ribeiro,

ajudando o sospirar.

Eu nam posso falar mal

naquisto que sam chamado,

pois sospiros e cuidado,

tudo tam mal empregado,

em mim nunca vejo al.

E porque o sei tam bem,

digo, como quem o sabe,

que cuidados cousas tem

que no sospirar nam cabe.

No cuidado ha cuidar

em mim tem acontecido

que quem muito prefiar

e servir sem anojar

haveram dele sentido.

Vede camanho conforto

tem quem se quer enlear,

mas o triste sospirar

é oficio d' homem morto.

Aqueste nam dá vagar

pera mil confortos vãaos,

este nam leixa folgar,

este é o que matar

vai assi com suas mãaos.

Aqueste nam tem parceiro

pera ser aconselhado,

toma logo o mal primeiro,

que nam faz o cuidado.

Sua a Nuno Pereira.

Vós, senhor Nuno Pereira,

sede mui arrependido,

o qu' aqui tendes metido,

por nam ser todo perdido,

dae com el' em outra feira.

E se nam achardes venda

da perfia que tomastes,

eu vos quito a emmenda

pois j' o trabalho levastes.

Cantiga sua em favor do sospirar.

Nam queira ninguem falar

em falar tam escusado

como dizer qu' o cuidado

é igual do sospirar.

O cuidado é gram prazer,

que prazer é ter espaço

em qu' homem possa dizer:

— Quanto mal nisto a mim faço!

E por isto escusar

deve qualquer namorado

de dizer que o cuidado

é igual do sospirar.

De Nuno Pereira à dita senhora,

em que pede por estas copras

de Pero de Sousa lhe

dêm a seguinte

pena:

Nam ha i nenhũa cousa

em que se graça nam meta,

provo pela chanceleta

que meteo Pero de Sousa.

E pois vossa mercê mede

e a todos dereito guarda,

posto qu' ele a nam pede,

dê-se-lhe porem albarda.

Sua a Pero de Sousa, porque disse

que os sospiros tinham mãaos

com que se matavam e que

fosse vender o cuida‑

do a outra feira.

Em ũa copra metês

ũa soo rezam que ata;

ha mester que a provês,

pois que sospiro dizêes

que tem mãaos com que se mata.

Dai testemunha jurada,

e nam falês por semelha,

vestis-lhe capirotada,

ou saio com enseada,

ou sombreiro com guedelha.

I buscar quem vos entenda,

que eu nam sam tam letrado,

que tam alto me estenda

em saber como se venda

em canastras o cuidado.

Como se pode fazer

per alqueires tal medida?

Como se pode vender

o cuidado sem a vida?

Nem é falar de galante

qu' em cuidado venda caiba,

vossa morte querê ante

que por Dona Violante

ũa tal cousa se saiba.

Fazês do paço mercado,

isto nam no saiba El-Rei,

pelo vosso calar-m' -ei

por nam serdes degradado.

Sua à dita senhora, em

que faz por sua parte

o feito concruso.

Vejo tam grande processo

e tam gram prolixidade,

que d' enfadado ja cesso

alegar mais na verdade.

Vá o feito ja concruso

ante quem morte m' ordena,

Jorge da Silveira acuso,

cuidado lhe dêm por pena.

Do Coudel-moor à dita senhora,

sobre ũ correo que de deos do

Amor lhe chegou a gram

pressa, por vir ante

de se dar senten‑

ça neste feito.

Tendo ja meu rezoado

pera mais nam rezoar

e assaz bem decrarado

como nam chega cuidado

pelos pees ò sospirar,

da corte d' Amor me veo

ũu correo

sobr' este feito, a gram pressa,

com estas copras que leo

com receo

de se nam tornar avessa.

Seguem-se as copras com que chegou

este correo, que logo deu e foram

vistas pola dita senhora a

quem vêm ende‑

rençadas.

Deos d' Amor em sa cadeira

cos de seu conselho estando,

vendo Jorge da Silveira

andar com Nuno Pereira

em seus males altrecando,

sabendo qu' esta perfia

ante vós s' aderençava,

quis dar forma todavia

como vossa senhoria

visse o que determinava.

Chamou logo ũ sacretareo,

o mais fiel que achou,

e mandou fazer somario

costante, nam voluntareo,

do que se determinou.

O qual logo em comprimento,

porque seu servir s' alegue,

pera vosso avisamento,

senhora, fez ũu assento

da cantiga que se segue.

Cantiga que o secretareo

de deos d' Amor fez por seu

especial mandado, pera

mais decraraçam

deste auto.

Sospiros, gram sospirar,

é cousa tanto d' amores

que s' enganam fengidores

com eles par' enganar.

E por estes qu' assi ousam

fengir verdades, decraro

que sospiros custam caro

onde seus males se pousam.

Pois que mais autorizar

querês este mal d' amores,

pois sospiros sam senhores

de matar com seu matar?

De Nuno Pereira em modo

de petiçam à dita senhora,

porque lhe foi dito que

a parte contraira

dava enforma‑

çam de fora.

Foi-me caa dito, senhora,

que o qu' ee contra mim parte

vem com petiçam de fora,

por mostrar que quer agora

meter outros modos d' arte.

Quer demanda perlongada

por se mostrar mais agudo,

eu nam dou por isso nada,

nam seja cousa assentada

sem haver vista de tudo.

Seguem-se mais ũas rezões que

deu Nuno Pereira, provando

a sua parte do

cuidado.

Quem s' algũas vezes vio

nũ cuidar cotemprativo,

se o muito perseguio,

diga que pena sentio,

se se vio morto ou vivo.

Ou se se nele lembrava

de cousa qu' entam fazia,

quando em gram cuidar estava,

se lh' alguem entam falava,

se somente respondia.

É morte nam conhecida

causada de gram paixam,

o cuidado encurta vida,

qu' ee ũa chama encendida

em que arde o coraçam.

Sospiros pelo contrairo,

pois donde cuidado estaa,

acudem por dar repairo

à dor grande que lhe daa.

Disse-me que me guardasse

o Doutor Mestre Rodrigo

de cuidar e que cuidasse,

s' o cuidado me tomasse,

qu' era jaa morte comigo.

Ca cuidar nam no curava

fiseca nem solorgia

e mais se o dama dava

que servir-la nam prestava

leixar nam na podia.

Cantiga sua que oferece

à dita senhora com

estas rezões

alegadas.

Que saibaes que ũ de nós,

senhora, por vós sospira,

do cuidado qu' ele tira,

eu o tenho ja por vós.

Eu o tenho ja, senhora,

pera nele padecer,

quem se dele tira fora

maes deseja de viver.

Qual merece mais de nós:

ele, enquanto sospira,

ou eu, de quem se nam tira

cuidado que vem de vós?

Do Coudel-moor à dita senhora,

sobre ũas testemunhas que

houve despois do feito ser

concruso, as quaes daa

em favor do sospirar,

em modo d' enfor‑

maçam.

Senhora, valha-me Deos,

valha-me vossa mercê,

valê-me, senhora, vós,

poes meu agravo se vê.

Ũa testemunha tenho

que, no caso desta afronta,

fará muito a meu dereito,

e pois inda a tempo venho,

pagarei todo o que monta,

mandai-a assentar no feito.

Nam corre nela perigo

de lhe porem sospeiçam,

faz muito aquele artigo

que fala do coraçam.

É dina de receber,

pois que quando morrer quis

bradava: — Mataime ja

nem me leixeis mais viver,

sospiros, pues que venis

du min coraçam está.

E por mais decraraçam

dos sospiros serem pena,

vos alego a Definçam

d' amores per Joam de Mena,

a qual diz em seus decretos,

por seus males concrodir

e amores decrarar:

Sam dulces males secretos,

ũu sospirar e gemir,

ũu vergonçoso lhorar.

Outra tinha pera dar

que, se eu tempo tivesse,

poderia bem provar

por ela quanto quisesse.

Mas vossa gram descriçam

sente s' ee maes padecer

o cuidar se sospirar;

qu' ee parte de perfeiçam

senti-lo sem no saber,

sabê-lo sem no gostar.

Cantiga sua que daa com

o dito das testemunhas

à dita senhora, em

favor do sospirar.

Sospiros nom podem ser

sem ser cuidar,

cuidados se podem ver

sem sospirar.

Assi que sospiros logo

têm seu mal e o alheo,

nem é meu cuidado cheo,

se sospiros lhe revogo.

Cuidar se pode manter

sem sospirar,

mas sospiros nunca ser

sem ser cuidar.

Desembargo posto per mandado

da dita senhora nas costas desta

enformaçam e razões que

por parte do sospirar

foram dadas.

Estas rezões que se dam,

e s' algũa mais se der,

tod' assente o escrivam,

diga mais quem mais quiser.

Trovas do Coudel-moor ao escrivam

do feito, requerendo que assente no

feito as de Joam Gomez que

deu por o cuidado, por‑

que s' espera ajudar

delas em favor

do sospirar.

Os da lide contestada,

s' escrivam têm boom por marco,

crêm-no como ũ Sam Marco

avangelista formada.

Ca nam mingua nem acrecenta,

nem risca, nem tira folha,

as partes ambas contenta,

igualmente tudo assenta,

porque falso nom acolha.

Porem deveis assentar

neste auto, neste mero,

ũas trovas, ũ trovar

de Joam Gomez, que foi dar,

das quaes m' ajudar espero.

Pois logo com a reposta

assentai todas aquelas,

por vermos onde s' acosta

quem cuidar, sospirar gosta

ou quem mais provar por elas.

Seguem-se as trovas de Joam Gomez

por parte do cuidado, as quaes

andavam de fora do feito e a

requerimento do Coudel‑

-moor foram tor‑

nadas a

ele.

Senhor Coudel-moor, cuidaes

por fazerdes muitas cobras,

com mil graças que falaes

que nos encalameaes

outras verdadeiras obras.

Mas com falar e falar

sem concludir,

e trobar e mais trobar,

mal vos vejo decernir

cuidado sospiros dar.

Onde vós virdes desejo

que desejo deva ser,

posto que seja sobejo,

quer com pejo quer sem pejo

sospiros podereis ter.

Causa de s' isto provar

é devulgada:

se deleite es desear,

quanto más ser deseada,

esta nam podeis negar.

E vós sospirar meteis

em caso de baronia,

e sospirar defendeis

e que seja, vós quereis,

de Pedro quer de Maria.

O galante por quem ama

se desvela,

com cuidado e por fama

poderá sospirar dama

por quem seu sentido vela.

Mesturastes os cuidados

d' amores da salvagina

nesses vossos razoados,

os meus nom tendes gostados

nem sabês sua doutrina.

Cuidado é de tal raça

e nacimento

que se nam sofre de graça

e quem s' apoja mal caça

nô s' ha pôr a barlavento.

Vós quisestes desfazer

no mal que faz o cuidado,

e quereis-me encarecer

o sospirar e gemer

e o mal deles causado.

Mas a verdade falar,

pois nam empolga,

deve-se de confessar

qu' este vosso sospirar

nunca quebra nem amolga.

Polo qual desenganae

quem vos trouxe esta questam

e vossa teima leixae,

mas saib' este que vos cae

em estreita obrigaçam,

por lhe dardes desenganos

do que faz

e conheça seus enganos,

confessando-nos os danos

que cuidado sempre traz.

Do Coudel-moor em que res‑

ponde a estas de Joam

Gomez, em favor

do sospirar.

Vosso sobido trobar

meu saber todo desmancha,

mas cuidai que com cuidar

quanto mais quereis cortar

tanto mais feris de prancha.

Dizeis que vossos cuidados

nunca repousam nem folgam

e entam bem aprefiados

quanto mais examinados

sospiros menos amolgam.

Nam vos presta que digaes

cuidados dam muita pena,

nem que sam males mortaes,

se o nam autorizaes

per teistos de Joam de Mena,

d' Estunhiga ou Aguilar,

ou per bos termos e meos,

ca vos nom val alegar

sem o alegado provar,

disto sam os livros cheos.

Dizeis-me que faz desejo

sospiros acrecentar,

eu confesso se lhe vejo

por tempo curto, sobejo,

vir algũ desesperar.

E pois ser desesperado

os sospiros desatina,

em tempo tam mal gastado

sospirar d' alma lançado

em paixõoes se determina.

Co desejo qu' alegaes,

daes pedrada em vosso escudo,

porque quando desejaes

se vos nisso deleitaes

de vós mesmo vos concludo.

Pois deleite é desear,

argumento é de fazer,

cuidado traz desejar,

desejo traz deleitar,

ergo cuidado, prazer.

Das outras partes m' escuso

por nelas mais nom dobrar,

sospirar vos tem confuso

per custume e per boom uso,

per antiga posse estar.

Per boa confirmaçam

que temos de Joam de Mena,

Joam Rod[r]iguez del Padram,

Manrique e quantos sam

ham sospiros por moor pena.

Mas s' i ha quem crer se peja

estes doutores modernos,

porque mais craro se veja

creamos a Santa Egreja,

que segura dos infernos.

Pois olhai, quando rezamos 

a nossa Salve Regina

nam diz ela em ti cuidamos,

mas diz a ti sospiramos,

por a causa ser mais dina.

Trova sua que daa por cabo de seu

razoado, em que concludindo

pede à senhora que lhe

mande dar sua

sentença.

Que digaes que deite a longe

meus ditos de papassaal,

porque disso estou mui longe,

quando vos meterdes monge,

cuidarei que disse mal.

Mas peço com reverença

à senhora que nos cumpra

de justiça com femença

e nos mande dar sentença

que torno pedir ut supra.

Cantiga do Coudel-moor, que

dá com este seu razoado

por mais decraraçam

do sospirar.

Cuidando remedear-me,

nom sinto tanto perder-me,

desesperando valer-me,

sospiros querem matar-me.

Em meus males ter sahida

cuidando tenho descanso,

e cuidando minha vida

poder seer restetuhida,

com minhas paixõoes amanso.

O cuidar faz consolar-me,

se cuido poder valer-me,

mas u nam sei socorrer-me,

sospiros querem matar-me.

Desembargo que a senhora man‑

dou pôr no feito, pera satis‑

fazer ao dito das par‑

tes, antes de dar

sentença.

Se mais querem rezoar

sobelo qu' ee alegado,

dê-se a vista ò cuidado

e despois ò sospirar.

De Dom Joam rezoando con‑

tra o sospirar, pedindo à se‑

nhora que nam desse sen‑

tença até ele nam seer

sam e nam dar lu‑

gar a prova.

Senhora, qu' a castelhanos,

senhora, qu' a portugueses,

a poder de desenganos

a vida de muitos anos

lhe tiraes em poucos meses.

Estou cos pees pera a cova,

por isso nam faço trova,

mas visto minha doença

nam devês de dar sentença

té nam dar lugar a prova.

Pai e filhos mui perfeitos,

que saiba poucos dereitos

e poucas alegações,

sinto todalas paixões

que sam provas de taes feitos:

qu' em minha alma e minha vida,

em mim e meu coraçam,

jaz mais tristeza metida,

mais dores e maes paixam

do que pode ser sabida.

Mas por verdes qu' em amores

é cuidar das mores dores

qu' eles têm poder de dar,

sendo vós contr' oo cuidar,

fostes seus ajudadores,

qu' alegaes contra cuidados

algũs pontos mui falsilhos,

em qu' estaes tam enleados,

que poderês ser tomados

o pai e depois os filhos.

E se todos nam aponto

é por nam fazer ũu conto

muito moor qu' ò galarim,

se laa achardes a mim

em erro vá em desconto.

Porem soo pelo qu' entendo,

hei de vós, senhor, piadade,

porque em estas copras lendo,

sei qu' havês d' estar dizendo:

— Dai ò demo, diz verdade!

Contra Francisco da Silveira,

porque se queixou de lhe

lembrar cousas

passadas.

Vós, senhor irmão, de quem

ha todo meu mal por bem,

por fazer de vós penado,

chamaes-me mao namorado,

mas bem sei dond' isto vem.

Porem, pois vos faz penar

ver que voltas dam amores,

s' isto lembra com cuidar,

per aqui posso provar

qu' ee cuidar cume d' amores.

Que cuidar triste penando

faz lembranças do passado:

cuidar lembra o qu' ha-de vir,

sospiros sam ressurgir

da morte que daa cuidado.

Cuidado traz à memorea

memorea de mil tristezas,

tristeza vos dá por grorea,

porem grorea e nam vitorea

nunca dá contra cruezas.

E pois do cuidar s' ordena

grande dor e nam pequena,

vós bem me podês culpar

que vos dê em que cuidar,

mas cuidar vos deu a pena.

Pelo qual devês chamar

vós e quem vivês penado

oos sospiros descansar

do cançaço qu' ee cuidar,

mas a dor é o cuidado.

Cantiga sua à dita senhora sobre

Francisco da Silveira, que lhe

pede dele vingança, porque

diz que lhe fez cair a

pena da mão com

cousas que lhe

lembrou.

Senhora, pois que s' ordena

do cuidado grande pena

e o sospirar a tira,

conhecê que quem sospira

nam na tem senam pequena.

E quem diz que de paixam

lhe cae a pena da mão,

chamai-lhe mao namorado,

que quem tem algũ cuidado

vêm-lhe mil oo coraçam.

E por verdes que s' ordena

do cuidar dor nam pequena

e que sospirar a tira,

a todo homem que sospira

lhe verês cair a pena.

Enderença sua fala ao Coudel‑

-moor em favor do seu

cuidado.

Vós, senhor, a quem nam sabem

louvar vosso merecer,

vós, a quem por mais que gabem,

das vertudes qu' em vós cabem

as maes ficam por dizer,

cuidando ja qu' era morto

de paixam, de desconforto,

quisestes naquele feito

fazer do torto dereito

a quem tem dereito torto.

Mas por naquesta questam

sabêlo que sei agora,

fui tanto pela paixam

que cheguei ao coraçam,

em que todo pesar mora.

O qual cuidado matava,

o qual cuidado penava,

o qual de cuidar morria,

mas com quanto mal sentia

de si mesmo se queixava.

Vi que estava cercado

de tristezas e de dores,

de paixões acompanhado,

metido em gram cuidado,

cuidado triste d' amores.

Mas do que lhe preguntei

e da reposta que achei,

se quiserdes ouvir novas,

i lendo por estas trovas

e nelas vo-lo direi.

Pregunta sua ao coraçam.

Coraçam, que tantos dias

ha que vives tam penado,

que vivendo nam vevias,

coraçam, que o de Mancias

nunca foi tam namorado.

Coraçam, leal amante,

de quem te nam quer por seu,

coraçam, que, sendo teu,

és de Dona Violante.

Tu, que vives sem ser vivo,

tu, que morres de paixam,

tu, que sentes mal esquivo,

coraçam, triste cativo,

servo d' outro coraçam,

qu' ainda sejas amado,

sospirar, cuidar, coitado,

di qual has por moor tormento.

Respondeo qu' era um vento

sospirar peroo cuidado.

Preguntei porque fizerom

sospiros leixai-me jaa.

Respondeo: — Nam no dixeram.

S' eles minha dor tiveram,

mas nam na tem quem os daa.

Preguntei despois daquisto

de quem era tam malquisto,

quem lhe dava tal paixam.

Respondeo: — De ũ coraçam,

que nam sente nada disto!

Quis ver como defendia

sospiros, ansias mortales.

Respondeo sem alegria:

— Milhor disse quem dezia

ay mins cuidados i males!

Contei-lhe do gracioso

que preguntou ò cuidoso

quantas carracas perdera.

Respondeo que conhecera

nele que era cobiçoso.

Que cuidado nam soomente

entristece o namorado,

mas a toda outra jente

faz que viva descontente

como tem algum cuidado.

Mas a dama oo servidor

que quer fazer desfavor

promete pelo matar

que lhe dê em que cuidar,

porque esta ha por mor dor.

Sua por fim de seu razoado

contra os que procuraram

pelo sospirar.

E pois este coraçam

ha sospiros por prazer,

cuidados por gram paixam,

vós de ter outra tençam

vos devês de repender.

Porque nas cousas d' amores

por que sente tantas dores

nam devês d' aprefiar,

qu' ele deve de julgar

e vós ser precuradores.

Cantiga sua ao cuidado por

cabo de suas rezões.

Cuidado, quem cuidaria,

se jaa cuidou algum hora,

de ver o que vê agora?

Quem cuidou ver namorados

chamar pena oo sospirar?

Quem cuidou que vós, cuidados,

por verem que vão errados

lhe nam dês em que cuidar?

Cuidado, quem cuidaria

qu' o cuidado nam melhora

quand' homem sospira e chora?

De Francisco da Silveira, que

responde a este derradeiro

rezoado de Dom Joam,

no que tocou à sua

parte.

Vosso falso defender,

vosso mao aprefiar,

vosso nam vos conhecer

me fez por vós responder

de m' ora vivo tornar.

Nam vos nego que cuidado

sobre males nam faz mal,

mas o mal é mais dobrado,

quando sospiro forçado

se mete no caso tal.

Sua em que responde à cantiga

que diz que cae a pena

da mão a quem

sospira.

Em cantiga me metês

que cae a pena a quem sospira;

verdade grande dizêes,

pois com sospiro morrês

e a pena entam se tira.

O cuidado que doi mais

nam é mais que dar-vos pena,

cos sospiros vos finais,

com eles alma apartaes,

o mor mal deles s' ordena.

Mas vosso alvoraçar

é coraçam da pousada,

por saberdes bem trovar

cuidaes de fazer cuidar

que sospiros nam sam nada.

Vaa rir essa presunçam

nam chamar mais namorado,

pois nam tendes coraçam,

nem vos vejo ter naçam

de sofrer mais que cuidado.

Leixai, leixai os amores

per oos que neles morremos

com seus bravos desfavores,

com tantas, tam tristes dores,

como sempre neles temos.

Tomai prazer, pois podês,

folgai com vosso cuidar,

e cuidado tal trarês,

se viver muito querês,

que nam chegue ò sospirar.

Porque sem o sospirar,

cuidar havês qu' ee d' amores,

estes sam os do cuidar

sem o poderdes negar

os mores oito senhores:

será primeiro Latam,

o segundo Samuel,

o terceiro Salamam,

o quarto será Faiam,

o quinto Abravanel.

Namorado é Palaçano,

Gualite, tambem Jacee,

pois que cuidam todo anno,

mas cuidam em dar seu pano,

mais do que vaal a la fe.

Cuidam no arrendamento,

quando cuidam d' encampar,

e cuidam qu' ee perdimento,

quando cuidam que por cento

trinta é pouco ganhar.

Chamai tambem namorados

òs qu' andam por traiçam

fora do reino lançados,

pois deles nunca cuidados

saem mil do coraçam.

Dai ò demo este cuidado,

confessai que sospirar

é de tal guisa fundado

qu' ee do mal o mais dobrado

qu' ee d' amores o matar.

Quem sospira nam sospira

senam só com mal d' amores,

o sospirar que se tira

d' alma nunca traz mentira,

mas devulga mortaes dores.

Sam grandes penas mortaes

sam males sem refrigeiro,

sam dores mui desiguaes

d' amores sem ter remedeo.

Sospirar nam desaliva

como laa atras dizês,

mas antes paixões aviva,

a dor faz ficar mais viva

mui maior do que gemêes.

Prova-se, pois do sospiro

tal choro vem apos ele,

que se nele me consiro,

de meu mal nunca me tiro,

mas antes me moiro nele.

Sua que daa por fim do

arreezoado à dita

senhora.

Vejo estar ja tam provado

este triste sospirar,

tam visto, tam decrarado

qu' hei por tempo mal gastado

o que mais nisso gastar.

Pois queira vossa mercê

dar o seu a cujo ee,

que quem tem olhos e vê,

e nos sospiros nam crê,

é hereje em nossa fee.

Do Coudel-moor em que responde

ao que diz Dom Joam neste rezoa‑

do que deu contra o sospirar, e

primeiro algumas outras que

ficaram atras assentadas no

feito contra o dito sos‑

pirar oferecidas, a

que nam foi res‑

pondido.

Vosso alto procurar

e tal soster de questões

nos faz todos espantar

por irdes, senhor, achar

ũu coar de taes rezões.

Porque sendo contrafeitas,

parecem vereficadas

e parecem logo feitas

por d' enves fazer dereitas,

de mão de mestre forjadas.

Porem eu responderei

essas partes mais forçadas

e tambem repricarei

a outras por que passei

qu' havia por escusadas,

cuidando que o cuidado

se desse ja por vencido,

mas pois tam aperfiado

o por ele alegado

será por mim respondido.

Começa logo o Coudel-moor a

responder ao que disse Nuno

Pereira na sua primeira

copra, dizendo que cui‑

dado lhe tolhia o

sospirar.

Foi graça, notai-a bem,

u meu cunhado s' acolhe,

diz-nos que lugar nam tem

de sospirar, mas retem,

porque seu cuidar o tolhe.

Se cuidar lho faz tolher,

o qu' eu nam posso cuidar,

d' hoje mais cuido dizer

que cuidar nam é saber,

pois nam sabe sospirar.

Responde ao que disse Nuno

Pereira que d' enfadado

cessava ja de falar

neste feito.

Pera qu' ee mais testemunha,

pois vosso falar s' emborca,

nos tempos da moor caramunha

lançar sua coroa unha

na pouca dor que vos toca.

Que dizês que d' enfadado

querês do feito cessar

nam vem de grande cuidado,

que u ele jaz dobrado,

nam cessa seu sospirar.

Responde ao que disse Dom

Joam que sospiros vêm

por descanso e sua

dor que é mais

pequena.

Dar sospiros por descanso

achei laa em outra vossa,

e s' em al diz que vem manso,

mas eu com sentido canso

por nam ver como ser possa.

Pois sospirar é paixam

e nam vem sem ser cuidado,

quand' estes dous juntos sam,

ambos nam me doeram

mais qu' a vós um apartado.

Responde a outra em que disse

que sospiros sam conforto

e repairo dos

cuidados.

Sospiros serem conforto

nam é regra d' algarismo,

pois dizês que sam deporto

é ir contra o enfroismo.

Hipocras por perigosa

dor os chama e lh' ha gram medo:

ele diz em teisto e grosa

que sospirar lutuosa

sam sinaes da morte cedo.

Responde à cantiga de Jorge

d' Aguiar em que disse que

os sospiros eram gran‑

des fengidores.

Sospiros per fengidores

Aguiar lhe fez cantiga,

sabendo que nos amores

sam boias dos desfavores,

das paixões e da fadiga.

Quando sem paixam sam dados,

sam por outros comprimentos,

pois falsamente cuidados,

cuidados sejam culpados,

pois cuidam tais fengimentos.

Responde ao que disse Dom

Joam, que vira ja mil

bocijos quebrados

em sospiros.

Bocijar sobr' enfadado

per sospirar nam se conte,

que logo é desenxergado

sospiro que vem lançado

d' u paixões se põe em monte.

Eu falo do sospirar

que me vem fresco da forja,

d' ũ querer que me quer matar,

d' ũ triste desesperar,

d' ũ alma que ja escorja.

Responde ao que disse às da‑

mas que sospiravam por

peras e melão e

figos.

Sospirar por figos, peras,

por melão, bolo folhado,

nam é sospirar deveras,

que doutras fruitas mais feras

vem o sospirar formado.

Falemos do sospirar

que vir de paixões s' entenda,

que o al mais é cuidar

aa vontade do paadar

pera as cousas da merenda.

Responde ao que disse Dom Joam,

que pois primeiro é o cuidar,

que o cuidado será moor

pena e os sospiros se‑

riam ramos.

Que chamês por ser primeiro

o cuidar pena maior,

nam é falar verdadeiro,

mas antes por derradeiro

fica sempre o matador.

Pois que os sospiros sejam

do cuidar ramos chamados,

nam nos vejaes nem vos vejam,

que matam, quando pelejam,

onde dam vida os cuidados.

Torna o Coudel-moor a responder

às rezões de Dom Joam, que

ora tocou neste seu

razoado.

Pois venhamos apertar

vossas rezões derradeiras,

por mais me nam dilatar

e se vem vosso alegar

qual se vem das empulgueiras.

Mas posto que em respeito

vosso ja calar devia,

ver a verdade do feito

e ver que temos dereito

esforça minha perfia.

Responde ao que Dom Joam disse

que se alegavam alguns pontos

falsinhos contra os cuidados,

metendo ele consoantes fal‑

silhos à can‑

tiga que fez contra

Francisco da

Silveira.

Falsilhos pontos nam sam

verdade ha de diante,

mas meter o coraçam

com a mão, com a paixam,

faz falsilho consoante.

Peroo tudo isto leixado,

falemos a bem de feito

e seja sentenceado

polo alegado e provado

como quer nosso dereito.

Responde ao que disse que seu

coraçam lhe respondera por

sospiros, ansias mortales,

que milhor dezia quem

dezia ay mins

cuidados i

males.

Cuidar ter em que cuidar

por forma de seu descanso

voolo fostes alegar,

com mins cuidados lembrar

i males com que já canso.

Porque laa pela contiga,

se nam lerdes ò reves,

acharês pee que vos diga

que descanso dá fadiga

en pensar quanto mal es.

Responde ao que diz que os sos‑

piros sam ressurgir da morte

que daa cuidado, como

foi ja alegado mui‑

tas vezes.

S' assi é por ressurgir

sospiros fazem sua porte

fá-lo-am por se seguir

mais longa e pessoir

vida qu' ee pior que morte.

Porque lá temos autor

que, vendo seu mal tamanho,

em sua pena maior

escolh' o triste amador

la muerte por menos danho.

Outro com desesperança

bradava desesperado:

O morrer me era folgança,

pois por morte se alcança

fim del mal continuado.

E em meu caso tam forte,

porque descanso s' ordene,

morrer hei por boa sorte

por ver se terná la muerte

lo que la vida no tiene.

E por iss' o namorado,

com paixões entrestecidas,

diz por si triste coitado:

Mim bevir atrebulado

nom se conte antre las vidas.

Nam devês pois arguir,

qu' ha bem só fazer viver,

ca sobre males sentir,

es el remedeo morrir,

ouvi mil vezes dizer.

E assi que sospirar

nam daa vida por viver,

mas por mais e mais penar

e sabês que ha trocar

maa vida por bom morrer.

Ja foi isto alegado

e tantas vezes se trouve

que por ser tanto dobrado

ficará enfastiado

o coraçam que o ouve.

Responde ao que diz que seu cora‑

çam lhe respondeo que o cuidoso

pelas carracas que perdera

seria algum grande

cobiçoso.

Pois se vosso coraçam

do cuidoso presumio

que seu mal, su' afriçam,

seu cuidar, sua paixam,

de cobiça se seguio,

devês logo confessar

que amores nam sam nada

pera nos fazer cuidar,

mas faz cuidar e matar

cobiça desordenada.

Responde ao que disse que a

dama por desfavor diz ao

servidor que lhe dará

em que cuidar.

E daqui quem esguardasse

o que a dama dezia

que daria em que cuidasse,

s' ele nunca cobiçasse,

seu cuidar nam o creria.

E que ja ao meaçar

com dar que cuidar alguem,

sem pena por seu cuidar,

mas sem paixões sospirar

isto nam pode ninguem.

Prossegue o Coudel-moor

outras rezões em favor

do sospirar.

Vossas tais alegações

fazem pouco contra nós,

ca tocaes em corações

de que vêm vossas rezões

a só precurar por nós.

Entam dizês que cuidar

tem voss' alma trespassada

e querê-lo aprefiar

como que co sospirar

que me quedo em la posada.

Se gostastes a paixam

que dam sospiros forçados,

nam dirieis si por nam

u falassem na questam

dos sospiros, dos cuidados.

Mas derieis: — Oh camanhos

sinais sam de vida triste!

Oh que males sam tamanhos,

sospiros, choros estranhos,

como os grosa Vita Criste.

Donde venho concrodir

que cuidado pena seja,

sospirar, quem no sentir,

vê-lo-am sempre ferir

na moor força da peleja.

É tam lindo cortesãao

que sempre brada por damas,

amores onde tem mãao

seus tristes sospiros vam

ardidos todos em chamas.

Do Coudel-moor enderençada à

dita senhora por cabo de seu

rezoado, em que pede que

lhe mande dar sua

sentença.

Senhora, nam se dilate

sentença sobre tal prova,

mas diga, sem mais debate,

sospirar, posto que mate,

nam seja por cousa nova.

Paixões posso acrecentar

com mil lembranças que cata,

vindo com desesperar

tenha poder de matar

como de cote nos mata.

Cantiga sua que daa por cabo

de suas rezões que tem ofe‑

recidas por parte do

sospirar.

Onde cuidar desbarata,

sospiros querem matar,

porque sobre carregar

dizem que mata.

Sospiros serem paixam

negar-se nam poderaa,

pois vindos do coraçam

com cuidado e afeiçam

dizem quem os sofreraa.

Tenho-m' aa primeira cata

das feridas do cuidar,

mas, quando vem sospirar,

sabêe que mata.

De Joam Gomez a Dom Joam, por‑

que lhe foi dito que sendo ele au‑

sente donde se o feito tratava,

que a parte do cuidado nam

ia bem, e com elas lhe

mandou outras que

oferecesse por

parte do cui‑

dado.

Senhor Dom Joam, senhor  

de mim e mais que de mim,

vós m' havei por servidor

vosso em um tal tenor,

que nam m' abata zinzim.

Tambem pera contrejar

contra quem vós contrejardes,

tudo me podês mandar

e do serviço d' açucar

se me na Ilha mandardes.

Acerca do que compre ser,

falando por retrocado,

vi quem nam quisera ver

centatantas copras ler

dos sospiros e cuidado.

E somos precuradores

e tam mal nos concertamos

que ja fomos autores

e morrem nossos favores

pelo mal que procuramos.

E segundo me parece

a quanto entender pude,

o Coudel-moor favorece

sospiros e prevalece

em guisa que nos concrude.

E que tenhais rezoado

por copras mui treunfantes

dou-m' oo demo entregado,

que vos achei recusado

em mais de dez consoantes.

Pelo qual, senhor, convem

que estas ofereçaes,

se vos parecerem bem,

a quem pertença ou tem

o feito que procurais.

E se mais houver mester,

vossa mercê mo escreva,

quer aqui quer u estiver,

no que se fizer mester

porei a força que deva.

Seguem-se as copras que Joam

Gomez dá por ultimas

rezões suas.

Lembrança me faz cuidar

no que o cuidado manda,

cuidado em maginar

faz cuidar e descuidar,

porque andando desanda.

Cuidado mil vezes gira,

enquanto faz e desfaz,

d' u s' afirma nam se tira,

quanto mais d' amor se ira

des que no coraçam jaz.

Daa lembrança do passado

com desejo do futuro,

em o tear do cuidado

se tece mui resforçado

terçopelo verde escuro.

O qual se neste sentindo,

despõem-se temporizando,

nunca se gasta servindo,

rompem-s' asinha fingindo,

sempre dura bem amando.

Ó tu gentil terçopelo,

color de mea esperança,

tu, d' escuro Set' Estrelo,

tu, d' amores cotovelo,

donde dor nam faz mudança.

Quem te poderaa vestir

com viva paixam d' amores,

que te mais possa despir,

salvo se em ti sentir

sospirar ou desfavores.

Porque fim do sospirar

é desejo descuberto,

cuidado dessemular

faz sofrer e soportar

sobre certo e nam certo.

E assi convem que seja

sentido de graves tiros,

vida que viver enteja,

sofrer que morte deseja

o cuidado sem sospiros.

Sentido com desejar,

em que esperança cabe,

é cheo de sospirar

d' ũ desejo tam doçar

que mui docemente sabe.

Tal sentir nam me cativa

nem dá pena sem descanso,

mas minhas paixões aliva,

dá-me limbo em que viva

de doçar cuidado manso.

Aquele cuidado esquivo

que nam dá mais que sofrer

ao coraçam cativo,

no qual eu morrendo vivo

em grado de bem querer.

Este tal me vence e lega,

este todo mal me cata,

este nunca m' assessega,

este sempre me trasfega,

d' amores na fim me mata.

As quaes partes concrudindo,

por fim do que digo e sento,

amores sempre servindo,

suas raivas encobrindo,

seu mortal abafamento,

achei que com sospirar

mil vezes desabafei,

achei-me em soo cuidar

e calar e reportar

que ja nunca descansei.

Sua à dita senhora por fim

de seu rezoado.

Estas de fino retrós,

madeixas de meu sentido,

rezões de que me despido,

dama, recomendo a vós.

Vossa mercê as comprenda

e desponha

como quem preito apaga,

o cuidado da contenda

devulgando por peçonha,

os sospiros por triaga.

Cantiga sua que daa em

fim destas rezões por

parte do cui‑

dado.

Cuidado, despois que és

no coraçam,

por certo cuidado és,

sospiros nam.

Cuidado, tu de cuidado

contigo fazes penar

de sentimento forçado,

que nam leixas sospirar.

És tam feito ò revés

per condiçam

que sempre cuidado és,

sospiros nam.

No coraçam teu inferno

és assi como pecado,

és perdido in eterno,

és em coraçam tomado.

Nam tu inventurus es

a salvaçam,

depois que cuidado és

no coraçam.

Os amores conservando

em aceso fogo vivo,

maginas desesperando,

triste cuidado cativo.

Despois que aceso és

no coraçam

a la fe cuidado és,

sospiros nam.

Responde o Coudel-moor a estas

ultimas rezões que Joam

Gomez deu contra

o sospirar.

Vossas ultimas rezões,

tiradas pola fieira,

movem tantas concrusões,

que nos ficam por lições

como lidas de cadeira.

Mas quem revolve a folha

e prol contra esguardar,

nam ha cousa a que s' acolha

que tolher possa nem tolha

seu primor ao sospirar

Ca sospirar tem primores

tam altos e tam sobidos

que nam sam senam amores,

mas trauta seus servidores

de mais a menos perdidos.

Que vem sobre saudade,

vem sobre grande cuidado,

vem sobre amor verdade,

mas dobra mais a metade

sobre ser desesperado.

O veludo que tecestes

no tear que daa cuidado

laa nos liços lhe metestes

ũa esperança que destes

ò galante namorado.

E pois teme esperança

cuidado nem traz perdido,

que cuidado na bonança

grorea de i, s' alcança,

conforta todo o sentido.

Cuidar, enquanto cuidar,

que seu nome ser esquivo

pod' em bem e mal estar,

antre prazer e pesar

forma tem d' alternativo.

Mas sospiros matadores,

u prazer nunca se mete,

sempre sam perseguidores

e sam çoçobra d' amores

com' em catorze de sete.

Dissestes que sospirar

faz desejo descobrir,

deve-s' isto decrarar

que descobre um sospirar

de paixões graves sentir.

Descobre seu triste mal,

descobre sa triste vida,

descobre pena mortal,

descobre que lhe nam val

bem servir quem tem servida.

Mas estes descobrimentos

nam se dêm por reprensam,

pois a causa dos tormentos

e dos tais padecimentos

fica lá no coraçam.

Nam era cousa pejosa

de julgar que nam dá vida,

porque a dama chorosa,

essa se ha por mais fremosa,

que de mais é homecida.

Alegais um desejar

que d' esperança tem parte,

entam vindes apertar

que dali vem sospirar

com mil duçuras que farte.

Arguis-me com desejo

de cousa qu' haver s' espera,

nam sacude isso o pelejo,

mas outro em que me vejo,

que mata, que desespera.

Dizês que cuidado pega

sas paixões mui per inteiro

e que todo vos trasfega,

mas a vós nam se vos nega

que cuidar fere primeiro.

pois cuidar pena daa

sobr' esperança perdida,

confessai que mataraa

sospirar com que seraa

de mim e de minha vida.

Tambem cuidado dizês

que se põe em esperança,

mas este confessar-m' -ês

que nam doe nem no neguês,

pois de si traz confiança.

Tambem tendes confessado

dar cuidar paixões fengidas,

u por vós foi alegado

que ja i nam ha cuidado

que sofra tantas feridas.

Ò cuidado nam se tira

sua parte de paixam,

mas enquanto nam sospira

nunca fere sua vira

de frecha no coraçam.

Pelo qual fica notado

que, quando cuidar derrama

sospiro desesperado,

que ja entam nam é cuidado,

mas é morte que o chama.

Bem sabês vós que cuidar

é lança solta que anda

ca e laa pera pousar,

e que nam vem sospirar

sem ja trazer a demanda.

Assi que se vos aperta,

quando s' a paixam refina,

este meus males esperta,

por vir sobre paixam certa,

cujo mal me desatina.

Trouvestes na derradeira,

por fim de vosso falar,

comparaçam mui inteira

por assentar a calveira

com triaga oo sospirar.

Mas ahinda que vos traga

sospirar, que desbarata,

diz entam: — Por aqui paga

de mim como de triaga

quem com vós muito se mata.

Do Coudel-moor por cabo de seu

rezoado à senhora, com que o

feito vaa concruso.

Nam dê vossa senhoria

dilaçam mais neste feito,

cesso ja mais vigaria,

cesse o mal que nos seria

nam nos guardardes dereito.

E pois caso era confuso

dar lugar mais a tal briga,

nem vossa mercê o queira,

mas vaa o feito concruso

com mais esta soo cantiga

que dá Jorge da Silveira.

Cantiga que dá Jorge da Silveira

à dita senhora, em que responde

ao que Nuno Pereira disse,

quando disse cuidado de

minha vida, vos chamo

sempre por nome.

Que vos chame quem vos chama

de sua vida cuidado

nam diz muito meu cunhado,

se com' eu mesmo vos ama.

Que eu, senhora, vos chamo

sospiros de minha morte,

com que de vida brasfamo,

pois vos quero, pois vos amo,

sem cuidar que me conforte.

E pois sei que me defama

vosso mal desesperado,

sospiros de meu cuidado

minh' alma sempre vos chama.

Do Coudel-moor à dita senhora

em nome de Jorge da Sil‑

veira pelas dilações

que sam dadas

neste feito.

Ha tanto que sam metido

naquesta triste demanda,

que me vejo destroido,

perdido mais que perdido

com meu mal que nam s' abranda.

Nam nos dam aqui pousada

mas temos acolhimento,

a vida tenho gastada,

e vós nam despachaes nada,

senhora de meu tormento.

Olhai bem que sospirar

vos dá ũas rezões taes,

qu' i nam ha em que cuidar

nem devieis aqui dar

as dilações que nos daes.

Mas ainda outro mais bravo

nos querês fazer exame

e i revitaes o cravo,

vai tam alto voss' agravo,

que nam sei como lhe chame.

Porem vossa mercê queira

por direito vos guardar,

qu' esta sentença longueira

nam seja mais referteira,

pois por nós se deve dar.

Ou se quer vossa mercê

que do feito mais s' alegue,

estes logo recebê

sete artigos que vos lê

esta copra que se segue.

Diz e provar entende

sospirar contr' oo cuidado

que seu mal mais mal comprende,

que seus sospiros acende

mais fogo de namorado.

Qu' ee sa pena mais esquiva

que o seu mal nam resiste,

que sa dor nunca s' aliva

qu' ee sua paixam mais viva,

qu' ee sua vida mais triste.

Assi que devem de ser

meus artigos recebidos,

dar lugar e nam reter

a prova, pera se ver

meus males ser mais sobidos.

Nem curemos doutras minas,

que eu quero oferecer

testemunhas de fee dinas

e rezões outras tam finas

que sejam de receber.

Desembargo posto per mandado

da senhora nas costas desta

petiçam e artigos que,

por parte do sospi‑

rar, lhe foram

dados.

Recebo os artigos dados,

venha a prova sem tardar

e assentem tudo no feito.

Entam sejam-me levados

pera o eu determinar

como achar que é dereito.

Do Coudel-moor que dá em

prova do que disse dos sete

artigos que tem dados

neste feito, por

parte do sos‑

pirar.

O primeiro está provado

que em si mais mal contem,

pois sospirar e cuidado

está assi tam abraçado,

que seu mal d' ambos lhe vem.

E os fogos encendidos

prova-se per ti que fales,

Estunhiga, de teus gemidos

e sospiros, que sofridos

sem morte nam sam seus males.

Ser mais esquiva sa pena,

que foi artigo terceiro,

nam se negue, pois s' ordena

das paixões, quando têm lena,

que nos ferem por inteiro.

Donde vem que ressurgir

nunca foi quem seu mal visse

nem sa dor demenuir,

e si posso concrudir

o que em meus artigos disse.

E tambem pera se crer

que mais viva paixam leva,

isso craro é de ver,

pois sospirar tem seu ser,

nas paixões em que se ceva.

E assi fica verdadeiro

ser mais triste sua vida

qu' ee artigo derradeiro

tá o qual des o primeiro

minha prova dei comprida.

Sua à dita senhora em que pede

que proveja per si esta

inqueriçam.

Senhora, querê prover

nossa inquiriçam per vós

e acharês logo em na ler

a rezam que devês ter

pera julgardes por nós.

Pois dai-nos esta sentença,

qu' o dereito no-la daa,

nem haja mais deferença,

ou se nam dai-nos licença,

qu' apelar nos convirá.

Cantiga que dá Jorge da Sil-

veira à dita senhora, por-

que o seu precurador

disse que esperava

d' apelar.

É bem de mim apelar,

quer façaes dereito ou torto,

no feito do sospirar,

pois me nam sei agravar

de vós sobre me ver morto.

Porem esta apelaçam

seguirei, pois que me segue

sospirar com sa paixam,

e pois quer meu coraçam

que lhe meu servir nam negue.

Mas qu' este negro apelar

me nam traga algum conforto,

pois o quer meu sospirar,

fá-lo-ei sem agravar

de vós sobre me ver morto.

Antrelucatorea da dita senho‑

ra sobre o feito que

lhe foi levado

concruso.

Pois o feito vem concruso

da mão dos precuradores,

por nam ir termo confuso

mandá-lo ver nam m' escuso

algũs grandes trovadores.

Ũ seja Alvaro Barreto,

o outro Alvaro de Brito,

aos quaes logo remeto,

e pois a ambos o cometo

dêm seus votos por escrito.

E venha tudo cerrado

asselado e bem coseito,

sendo bem examinado

todo o que foi alegado

de pro e contra no feito.

E desi visto per mim

seus votos, sua tençam,

darei neste feito fim,

e as custas ò galarim

pagará quem for rezam.

Segue-se o voto d' Alvaro de

Brito, que pôs neste feito

per mandado da dita

senhora.

Sogeiçam traz desejar,

desejar daa sentimento,

sentimento faz cuidar,

cuidar causa trabalhar,

trabalhar padecimento,

donde vem com desatento

ũu languido sospirar.

Sospiros devem chamar

pena de maior tormento.

Segue-se o voto d' Alvaro Barreto,

que neste feito pôs per

mandado da dita

senhora.

Pois por vossa comissam,

que faz que me desatine,

comprindo-me que m' ensine,

me mandais que detremine

ũa tam alta questam.

Eu, senhora, por comprir

a todo vosso mandado,

que nam seja tam letrado,

faz-me a isso ousado

vontade de vos servir.

Porem pera s' entender

neste caso a verdade,

convem de necessidade

alegar autoridade,

que seja de receber.

E pois que pera juiz

vossa mercê me obriga,

antes que se mais persiga,

alego esta cantiga

que daquesta guisa diz.

Segue-se a cantiga alegada

per Alvaro

Barreto.

En esto siento pardios

el grande amor que vos he

em que nunca sospiree

por otra sino por vos.

See que cosa es sospirar,

despues que vos conoci,

porque no vos pude negar

la parte que haveis em mi.

Y se se fallarem doos

que amem com toda fee,

el uno so yo, porque

sospiro siempre por vos.

Alego este autor

com outros que ja passaram,

que por copras nos leixaram

ser vivo fogo d' amor.

Sem fazerem tam soomente

memorea que o cuidar

é cousa de nomear,

senam pera praticar

e usar com tod' a jente.

E pois os autorizados

tiveram esta tençam,

seguir outra openiam

nam fariamos rezam,

que iriamos errados.

Que nam temos por saber

onde nam é contrafeito

desejo d' amor prefeito,

sospirar ser seu efeito

sem al se poder fazer.

O que cada ũu deseja

pera si d' amor procede,

e quem por amores pede,

de sospirar nam s' espede

tá que o pedido veja.

Pois que podemos dizer

ou quem pode al notar

senam que o sospirar

vem do propio amar

e nam de cuidado haver?

Sentença.

Pelo qual visto o processo

e o por ele mostrado,

eu julgo contr' oo cuidado

e o hei por condenado,

pois vai da verdade avesso.

E o sospirar assolvo

do contra ele pedido,

porque é por mim sabido

que o têm favorecido

estes livros que revolvo.

Segue-se a sentença dada

per a dita senhora sobre

ter visto os votos

dos trovadores

alegados.

Olhando com bom respeito

o que cada ũu demostra

e alega de seu dereito,

digo que, visto este feito

e o que se per ele mostra,

que cuidado em lugar

pode estar sem sospirar,

assi como está provado

sospirar nam ser achado

sem este mesmo cuidar.

E tambem visto o alegado

infroismo e sa doctrina,

e com' ee autorizado

o qu' estaa encorporado

na nossa Salve Regina,

item como do cuidar

vem o primeiro ferir

e nam em vos aleixar,

e visto que sospirar

vem sobre o consentir;

E visto o mais que s' alega

E se mostra pelo feito,

O sospirar nam sonega,

que o mal em que s' entrega

lhe faz craro seu dereito.

E porque nisto m' afirmo,

concrudo prenunciando

ouça quem quiser ouvir-mo,

estes dous votos confirmo,

neles porem decrarando

Que nam s' haja por cuidar,

nem cuide que dá paixam

pera dela se falar,

cuidado que sospirar

nam mete no coraçam.

Nem lhe quero receber

alegar que sofre e cala,

ca sobre ver-se perder

paixões dinas de sofrer

o mudo com elas fala.

Nem lhe recebo que diga

que cala por ter segredo,

ca posto que o persiga

sospirar com sa fadiga

nam na amostr' ele co dedo.

E mais podemos cuidar

do cuidar qu' estaa calado

que se leixa assi calar,

por se menos querer mostrar

contente sobr' agravado.

E porem pois julgador

sam supremo neste feito,

julgo nos autos d' amor

sospirar por vencedor

sobre vencido sogeito.

E assi hei por confirmadas

pelo dito sospirar

as sentenças que sam dadas,

custas hei por relevadas,

por ser rezam letigar.

Provicaçam desta sentença

que a dita senhora deu

pelo sospirar.

A nove dias do mes

dos onze meses do anno

da era d' oitenta e tres,

desta sentença medês

e auto palenceano,

foi feita provicaçam,

dentro na corte outrossi

do grande Rei Dom Joam,

e eu, dito escrivam,

qu' esto todo escrevi.

Emformaçam à dita senhora, que

lhe deu o Coudel-moor por parte

do sospirar, agravando-se das

custas, emmenda e corregi‑

mento que lhe nam jul‑

gou, pedindo porem

sua sentença.

Com todo o agravo que sento,

pois julgar nos nam quisestes

emmenda e corregimento,

dêm-me a mim um estormento

desta sentença que destes.

Mas porem podês mandar,

nam havendo i outro cobro,

que se mais aprefiar

cuidar contr' oo sospirar

que pague as custas em dobro.

Desembargo da dita senhora,

posto nas costas desta enfor‑

maçam que por parte do

sospirar se deu.

O que mandei, o que disse,

isso torno a mandar,

nam hei jamais d' ennovar,

porem quod escripse escripse.

Copras que fez Nuno Gonçalvez,

alcaide-moor da fortaleza d' Alcobaça,

em favor do cuidar contra a sentença

que foi por parte do sospirar dada, a

qual aqui revogou deos do Amor de

seu propio moto. Havendo primeiro a

vista de todo o processo, deu sentença

na qual daa com suas vozes Mancias e

Tarquino, Joham de Mena e Joham

Rodriguez de la Camara, em que faz

mençam o dito alcaide, que ha mil

annos e nove dias que é finado, e

como é sacretareo de deus do Amor,

endereçando estas copras a Dom Joham

de Meneses, segundo adiante se segue.

Fala logo o autor.

Senhores, grandes senhores,

querê saber esta nova,

como servistes amores,

quaes ficastes vencedores,

ouvi a quem vem da cova:

— Mil annos e nove dias,

ha que sam morto, finado,

comigo pousa Mancias,

Mena, Padram das ancias,

e Tarquino desterrado.

Quantos jazem sô a terra

que foram mal navegados,

quantos amor fazem guerra

que na sua lei mal erra, 

todos sam meus convidados.

Laa no limbo dos ardores

onde têm algũu poder,

ali sofrem disfavores,

ali tormentos e dores,

segundo seu merecer.

Estando estoutro dia,

deos d' Amor desembargando,

veo ũu homem que gemia

bradando e se carpia,

dos olhos muito chorando,

dizendo: — Ouve, senhor,

ouve ũu tam grande mal,

ouve ũu tam grande error,

que se faz contra Amor

no reino de Portugal.

Fala deos d' Amor.

Deos d' Amor muito espantado

respondeo nesta maneira:

— Fala, fala, mais pausado,

conta-m' o feito passado,

todo bem pela carreira.

Se trazes enformaçam

ou trazes o mesmo feito,

forma nisso petiçam

e descanse teu coraçam,

que logo haveras dereito.

Fala o autor.

E o qual como descreto,

avisado cortesam,

tornando a cor despeto,

acodio logo desperto

co propeo feito na mão.

Dixe-lhe: — Senhor, verás

aqui ũu feito muito feo,

dentro nele acharás

cousas bem per que farás

grandes justiças arreo.

Provicaçam do feito.

O qual logo provicado

foi nesse mesmo momento,

bem levado e decrarado,

como foi arteculado

e contestado,

vio-se todo com bom tento.

Era ja sentenceado

em tal maneira

que o primo da Silveira

leuou grado.

A tençam do feito e

os competidores.

E foi seu procedimento,

segundo seu relatar,

qual era maior tormento

e dava mor sentimento,

o cuidar ou sospirar.

Pereira, Meneses, Guiar,

Joham Gomes tambem da Ilha,

estes se querem matar

por ele aa maravilha.

Silveira, Silveira, Silveira,

pai e filhos com saber,

pela ponta da fieira

buscam mui nova maneira

por sospiros defender.

Brito, Barreto condenaram,

a dama sentenceou,

pelo sospirar julgou,

o cuidado condenaram

e assi se confirmou.

Artigos, protestações,

com outros autos formados,

cantigas, enformações,

todos foram praticados.

Deos d' Amor a que pertence

toda a final sentença

visto o que aparece,

no auto que s' oferece,

com risonha contenença,

Lançou os olhos em roda

contra nós outros, finados,

e dixe: — Como s' enloda

este feito a que gram noda

querem pôr aos cuidados!

Disse mais: — Pois sois passados

daquele segre da vida,

nam sereis afeiçoados,

ponde vossos assinados

da verdade bem sabida.

Porque quero bem rever

este feito e escoldrinhar,

e do que me parecer

por todo o mundo saber

quero per mim sentencear.

Pera cada ũu o ver

lei ponho feito na mão,

todos quatro ham-de dizer,

segundo seu entender

e dar seu conselho são.

Põe Mancias sua tençam.

Sospiros e sospirar,

messajeens d' atrebulado,

o meu mal podem mostrar,

mas nam me podem matar

como me mata cuidado.

Cuidar é ũa negrura

que nam tem consolaçam,

sospiros ũa folgura

qu' aliva minha paixam.

Sospirar nunca sessega,

vai e vem como sezam,

cuidado, despois que pega,

chupando no coraçam,

chupando todo prazer,

tira-lhe toda folgança,

fá-lo todo emnegrecer,

fá-lo secar e morrer,

quando tem desesperança.

Comparaçam.

Vejo ũa grande fervura,

fervura d' agua viva,

se a panela bafura,

lança fora da quentura,

é certo que logo aviva.

A meu coraçam impiro,

que anda todo em fogo,

que al tem senam sospiro,

que al tem senam respiro,

porque nam se fina logo?

Cantiga dele.

Cuidado, triste cuidado,

sem conforto,

é tu mal tam trebulado,

que me nam leixa cuidado

senam morto.

Quem tivesse algũu lugar,

quem tivesse algũu descanso,

quem tivesse ũu sospirar,

porque quem me quer matar

fosse mais manso.

Mas tu, mal desesperado,

sem conforto,

é ũu mal tam revitado

que me nam leixa coitado

senam morto.

Fala com a dama.

Senhora, nova senhora,

mui fermosa,

porque vossa mercê nam chora

esta dor tam enganosa?

É certo, se nam m' achasse

cos d' amor no desembargo,

vossa mercê nam passasse

esta vez que nam gostasse

sobr' este caso gram cargo.

Se meu conselho tomardes,

senhora mui graciosa,

por algũu tanto ativardes

e bem em tanto cuidardes

nessa parte algũa grosa.

Pois o feito se perdeo

soo por vossa concrusam,

decrarai que vos venceo

afeiçam.

Põe Tarquino sua tençam.

Fala com Lucrecia.

Lucrecia, meu bem inteiro

ordenado

pôs em mim tam gram cuidado

que fiquei seu prisioneiro

verdadeiro.

Seu olhar dessemulado

m' as causou,

cuidado que me matou

com degredo mal logrado,

desterrado.

Este degredo sentindo

por vales, outeeiros, branhas,

era-me milhor partindo,

sospirar, andar carpindo,

descanso das entradanhas.

Cuidado nam me leixava

somente desfolegar,

sospiro, quando chegava,

algũu tanto m' alivava

pera logo nam finar.

Comparaçam.

Ũu fogo grande que farte,

dobrado fogo inmenso,

as faiscas que reparte

manifestam grande parte

do grande fogo itenso.

Empero nam sam tam feras

com' ao fogo que tiro,

quem quiser oulhar deveras

poderá saber por elas

quanto menos é sospiro.

Cantiga dele.

Cuidados e sospirar

ambos sam causa d' amores:

sospiros pera mostrar,

cuidados pera matar,

quando sam com disfavores.

Os sospiros sam escuma

que cuidados botam fora,

sam assuvios de chulma.

Concrodindo: tomam suma

como afirmo e digo agora.

Cuidados e sospirar

ambos sam causa d' amores,

sospiros pera mostrar,

cuidados pera matar,

quem os tem com desfavores.

Fala com a dama.

Senhora mui eicelente,

fermosa por eicelencia,

neste processo presente

vossa mercê bem atente,

nam fique por negrigencia.

Que neste limbo d' amores

onde em brasas ardemos,

nam se esguardam favores,

nem quitam males nem dores

se por nós o merecemos.

E pois voss' alma conhece

o erro dado no fito,

nam façaes que vos esquece,

mas pedi a quem pertence

ũu perdam com grande grito,

e livrai alma de pena

que vos é aparelhado

nam pequena,

pelo mal que se ordena

do passado.

Tençam de Joam Rodriguez de la

Camara, em que se queixa de

la fortuna por lhe lem‑

brar o passado.

¡ Oh lhagas de mis passiones,

remedio de min trestura,

lembrança de mins dolores,

mil e mil tribulaciones

me traes desaventura!

Yo digo que pensamientos

me cortaran

e raviosos sentimientos,

cuidados con sus tormentos

me mataran.

Con lo qual tengo provado

lo que digo:

que cuidado

es un fuego denodado

sin abrigo.

El sospiro es dar fama,

el galante

sospirando por su dama

es mostrança qu' ele ama

por delante.

Comparaçam.

¿ El fuego que la lombarda

respara refogueando,

queda elha más quemada,

más ardida, más brasada,

o el tom que va tronando?

Quien d' amor sabe los giros

por esta comparacion

hallará que los sospiros

no son al sino los tiros

del cuidar del coraçon.

El cuidar desesperado

es un fuego encendido,

es un mal tan redoblado

que dolor de condenado

no es tal ni tan subido.

Su primor e gualardones

al sentir

no son al sino clamores,

cuyos bienes e perdones

es morir.

Cantiga dele.

Sospiros mil se darão

al querer del paladar,

cuidados no poderão

demostrar sua paixam

sem bien amar.

Os sospiros levemente

se podem contraminar,

cuidados de fogo ardente

com agua nem d' outra mente

nunca se podem matar.

Mas sospiros mil darão

al querer del paladar,

cuidados no poderão

demostrar sua paixam

sem bem amar.

Fala com a dama.

- Senhora, cuja fegura

resplandece,

esmalte de fremosura,

a quem graça e soltura

obedece.

Por caridad,

tal enganho que florece

emmendad,

pues vuestra merce conote

la verdad.

A lo menos decrarando

ser enganhada,

e gemiendo y lhorando,

a nuestro dios soplicando

que vos haya perdonada.

No quiera dios que veamos

vuestra venida

nel fuego onde estamos,

em lo qual triste gustamos

muerte y vida.

Tençam de Joam de Mena.

El sospiro amortecido

es senhal

que nos dize qu' el sentido

quasi, quasi es fenecido

el mortal.

¿ Mas guiem ha sentido

o cuidar,

cuidado desfavorido,

cuidando que es venido

com amar?

cumpre más argumento,

ni obras de lisongeros,

cuidados pierdem los tientos,

cuidados, vivos tormentos,

sospiros, los mensageros.

Cuidados, los raviosos,

cuidados, penas mortales,

cuidados, muy desseosos,

cuidados, muy saudosos,

sospiros, delhos senhales.

Compraçam.

Hablo com benivolencia,

como el medico conece

por las aguas la dolencia,

assi por sospiro parece

em aquel que lo padece

ũu dolor sim paciencia.

No que sea el dolor

ni tam poco la passion,

mas es ũu amostrador

del dolor y del fervor

del cuidar del coraçon.

Cantiga dele em favor

do cuidado.

Biva muerte deveria

de morir quien esto nega,

quien afirma otra falsia

por cierto yo deria

que del dios d' Amor se nhega.

O renhegar es una suerte

hecha de tal calidad,

renegar nos da la muerte,

renegar tormento fuerte

sin ninguna piadad.

Polo qual luego devria

de morir quiem esto nhega,

quiem afirma otra falsia

por cierto yo deria

que del dios d' Amor se nhega.

Copra à dama.

Vida soes, senhora, vida,

vida soes, pues floreceis,

nel mundo no fue sabida

otra dama, nim nacida,

del valor que vos valeis.

Toda beldad e lindeza,

toda gentil galania,

toda vertud y nobleza,

toda la gram gentileza

es em vos claror del dia.

Pues teneis toda vertud,

y teneis toda verdad,

conservad vuestra salud,

conservad vuestra beldad,

afirmando

que la sentencia passada,

biem mirando,

tirando de vuestro mando

fue mudada.

Em tal maneira

vuestra culpa tresmudamos,

que vuestra beldad

no queme em la foguera

em que nos tristes ardemos.

E tu, gram beldad soberana,

por tu gram vertud sostiene

una dama tam galana,

em fuego que tanto dana

no se queme.

Cantiga portugues que cantam

todos quatro em favor

do cuidado.

Amores, bravos cuidados,

cuidados, bravos amores,

amores, olhos quebrados,

sospiros, raios lançados,

mui penados valedores.

Cuidados, todo seu mal

com mortal pena sofremos,

cuidados, mal natural,

sospiros, acedental,

e assi que bem dizemos:

Cuidados, bravos amores,

amores, bravos cuidados,

cuidados, olhos quebrados,

sospiros, raios lançados,

mui penados valedores.

Com tudo vai o feito concruso

a deos d' Amor pera dar

sentença.

Com estas quatro tenções

dam o feito a seu senhor,

todos fazem orações,

todos jejuns, devoções,

por a dama a deos d' Amor.

Todos bradam, todos gritam,

todos fazem gram façanha,

todos grandes brados tiram

 e a deos d' Amor enviam,

que amanse sua sanha.

Petiçam dele a deos d' Amor.

— Tu, mui alto deos famoso,

por ter grande nome e fama,

sê agora piadoso

esta vez e gracioso,

nam condenes esta dama.

Por lembrança e por aviso

d' ũ senhor que deos se chama,

dizemos que será quiso

nam levar ao paraiso

ũa tam luzente dama.

Que tenhas sol, tambem lũa,

que tenhas tambem estrelas,

com a fremosura sua

é certo ũa por ũa

que abata todas elas.

Pois que grande bem seria

e que cousa tam errada

goiã de tam gram valia

perder tua senhoria

d' ũa flor tam esmaltada.

Pois torna, torna, senhor,

por as tuas dez mil chagas,

amansa teu gram furor

que com todo mal apagas.

E nós todos, com gram femença

e com mui abertos braços,

recebemos ta sentença,

sairemos em pendença

com os pees todos descalços.

Diz o autor como deos d' Amor

saio pobricar sua

sentença.

A vinte dias passados

desse mes ante d' Agosto,

com pendões alevantados,

com crarões mui resonados,

mostrança de ledo rosto,

deos d' Amor em seu estado,

sua pompa que nam erra,

suas opas de brocado,

ũu paje mui bem armado

de paz e tambem de guerra,

Saio ledo e motejando

da sua camara d' ouro.

Todos vinham gracejando,

empero nunca leixando

parato de bravo touro.

Seu conselho derredor,

com mui grande acatamento,

senado de grande honor,

muito moor d' emperador

era seu assentamento.

Em o qual, como chegasse,

foi-se logo assentar,

e ante que al falasse,

ante que pronunciasse,

fez todos assossegar.

E em som mui entoado,

gracioso de ouvir,

este feito apontado,

todo nele processado,

començou de resumir.

E despois de resomido,

sem fazer outra detença,

todo muito bem ouvido,

todo mui bem entendido,

provicou esta sentença.

Da qual suas entenções,

seus decretos e primor,

seu resgar d' openiões,

com outras decrarações,

assi segue seu teor.

Segue-se a sentença.

Visto mui bem este feito

e o nele processado,

e visto todo seu preito,

visto sobre o dereito

todo mui bem decrarado.

Visto todo precurar

per ũa e outra parte,

visto negar e provar,

todo fundado por arte,

Mostra-se que o alegado

por parte do sospirar

todo é contraminado,

todo falso logicado,

à vontade do padar.

Mostra-se que o cuidado,

de que vem toda paixam,

põe unha que ò unhado

põe seu mal mui bem pegado

primeiro no coraçam.

E bem sabe Portugal

nam será homem que remonte,

que todo é ũu papassal,

pois d' i nace todo o mal

como rebeiros de fonte.

E assi confessaremos

e dizemos craramente:

cos cuidados padecemos,

com eles todos morremos,

sospiros sam acidente.

Eles cansam, eles matam,

sam premeiros e mais inteiros,

sempre vos tristeza catam,

des que pegam, nam apartam,

sospiros sam ventureiros.

Vendo-se bem o passado

por sem sospeita, juizes

polo alegado e provado

julgaram pelo cuidado

e o al por garridicis.

Deferenças que faz deos d' Amor

do cuidado e sospirar.

A deferença que é

do cuidar ao sospirar:

cuidado é ũu libré

que filhando deu a fee

de matar com seu filhar.

Mas do triste coraçam

que nunca perde cuidado,

de que ha grande paixam,

que lhe dá o negro cam,

sospiros levam recado.

Toma outra concrusam

que todos mui bem notai:

cuidar é no coraçam

ũu ardor mui sem rezam,

sospiros fumo que sai.

Estoutra por acabar,

pois que ata e mais que ata:

sospiros e sospirar

sam podengos de mostrar,

cuidados rede que mata.

Qu' aleguem Salve Regina,

cantigas e outros motes,

é palavra sancta e dina,

mas lá fica outra más fina

metida dentro nos bofes.

Grande fee e confiança

da senhora que chamamos,

do cuidar na esperança

com temor da tribulança

dali sae o sospiramos.

Pois as outras picaduras,

qu' alegam de namorados,

nam sam al senam feguras,

nam sam al senam pinturas

e sinaes de seus cuidados.

O cuidar é incuberto,

nam se tanje com badalos,

os que têm seu mal secreto

que sua dama o saiba certo

tanjem-lh' aqueles chocalhos.

Ũu triste corpo cuidando,

ũu cuidar desesperado,

d' amores desconfiando,

anda sempre maginando

e vivo anda queimado.

Seus males desconfiados,

seu ardor de quando em quando,

seus cuidados debrasados

sospiros mui magoados

por faiscas vam lançando.

Seu coraçam tomou tençam,

mostrando seu mal estranho,

mostrando sua paixam,

que fere no coraçam

donde vem seu mal tamanho.

Porque a dama sentida

vendo tam estreita dor,

vendo ũu alma tam perdida,

por nam ficar homecida

antremete algũu favor.

E assi que bem concrudo

esta dor desta amargura,

o cuidar ante que mude,

se o sospiro nam acude,

causa nossa sepoltura.

Cuidar é de tal naçam,

que daa morte conhecida,

sospirar, sua tençam,

a que traz por presunçam

a tal morte buscar vida.

Acho aqui mais alegado

por parte do sospirar,

deixo ora ũu bom ditado

que faz mais polo cuidado

que por quem o foi buscar.

Digo a vós, que o notaes

em vossos grandes favores,

que mal é que nam oulhaes

e que lhe chamam sinaes,

mas nam ja os matadores.

Pelo qual vós alegaes

escrito com vossa pena,

vós por vós vos degolaes

e por vós vos outorgaes

no que dixe Joam de Mena.

Pois vós otros leterados,

que meti nesta balança,

afirmaes com grandes brados:

matadores, os cuidados,

sospiros, sua mostrança.

Torna deos d' Amor

à sua sentença.

E assi que moto propio

e esponte livremente,

junto todo meu consilio

e de propio meu apilio

publico esta presente.

E digo que a passada

sentença toda renovo,

condano-a por queimada,

mando que seja guardada

esta que faço de novo.

Em que salvo o cuidado

e o torno em liberdade,

d' amores lhe dou o grado,

ele soo é namorado,

pois sempre guarda verdade.

E os sospiros condano

como cousa echadiça,

falsuras de muito dano,

poder ter coma mao pano

falsa cor e fengediça.

Faço-lh' esta concrusam

mui limpa de falsidade:

O cuidar sua tençam

sempre estaa no coraçam,

sospiros no arravalde.

Esta deve de matar

todas outras demasias,

que quem maes perto d' amar,

mais perto de bem gostar,

e assi leixar perfias.

Contradiz o correo que o Coudel‑

-moor alegou que lhe che‑

gara por parte do

sospirar.

Item quanto ao correo

por parte do sospirar

alegado em rodeo

meu legido e nam leo

tal cousa nunca passar.

E certo nam passaria

ũu tal erro nem passou

por minha chancelaria;

se tal cousa parecia,

meu selo nunca levou.

Mas passe logo mandado

pera meu corregedor:

Se tal correo for achado,

moira logo atenazado

por falsairo e tredor.

Se outrem o quis fazer

por salvar sua tençam,

triste deve de sofrer

penas d' amor e viver

sem haver satisfaçam.

Aqui julga deos d' Amor contra

aqueles que deram sen‑

tença por parte do

sospirar.

Brito, Barreto, concordantes

na sentença do entrejo,

sempre sejam boons andantes,

na cama nunca possantes

e tenham grande desejo.

E por maior pena deles,

tambem de Pero de Sousa,

as damas jaçam com eles,

e chegando-se par' eles,

desejando bem a cousa.

E assi sempre veram

os rostos desconsolados

das damas que serviram,

e por i conheceram

os males que sam cuidados.

Estas custas do processo

em que sam reos culpantes,

pois tiraram d' arremesso

e foram de todo aveso,

paguem polos consoantes.

As outras custas maiores

nam curo de as julgar,

porque sam de taes valores

os que ficam vencedores

que as nam ham-de levar.

E nam parando oitavo,

onde falam as desputas,

assi diz que é d' escravo

mais que d' homem livre, alvo,

levar injurias nem custas.

Sentençea deos d' Amor

a dama que deu a

sentença.

De dobrado fogo d' amores

a dama se fez culpada,

pois que quis com desfavores

antre taes competidores

dar sentença tam errada.

Mas os gritos e cramores

que ouvi de meus cuidados,

as pendenças e ardores,

os grandes brados e dores

que me viam lastimados;

Isso mesmo a lembrança

das refeições que lhe direi,

dos olhos e fina mostrança,

d' amores toda folgança,

mas descreta em sua lei.

Estas suas doces fruitas,

falo convosco verdade,

muito mais doces que truitas,

com lembrança doutras muitas,

me movem à piadade.

E assi que lhe perdoo

por amor dos sopricantes,

movido com grande doo,

porque sei que eras antes

espelho das mais galantes.

Porem com tal condiçam,

pois ha decrarar as artes,

que faça tal devaçam,

que haja por concrusam

ũu gentil perdam das partes.

Vam estas decrarações,

que aqui sam decraradas,

sem outras repricações

singelas nem trepecadas.

Esta lei sempre seraa

estavel e firme e forte,

esta se confirmaraa

e esta se guardaraa

sô pena d' esquiva morte.

Aqui assina deos d' Amor

a sua sentença.

Dez mil chagas, dez mil dores,

ũu soo bem com muito mal,

bravos fogos, mil ardores,

mil cuidados matadores

isto trago por sinal.

Selo do coraçam de deos

d' Amor, com que mostra

que sam amores.

Ũu fogo que nunca cansa,

ũu amor de meu sentido,

ũu fogo que nam s' amansa

ũu mal que nunca descansa,

de secreta dor ferido.

Mil agravos, mil despreços,

mil tristezas, mil cuidados,

mil achaques, mil começos,

mil antojos, mil empeços,

mil tormentos mui dobrados.

No milhor muitos embates,

abrolhos d' agudos pregos,

mil ceumes, mil rebates,

muitas raivas, mil combates,

e os olhos ambos cegos.

Mil desmaios, muitos medos,

esforços desconfiados,

desfavores d' olhos quedos,

muito mais bastos que dedos,

desconfortos magoados.

Mil desdenhos, mil quebrantos,

mil robores, mil vergonças,

mil beocos, mil espantos;

de gemidos sabês quantos?

mil quintaes e dez mil onças!

Mas o lindo namorado

que lealmente guerrea

tem o grao mais esforçado,

mais limpo, mais esmerado

que comprido a Garrotea.

E despois de acabado

este negro encantamento,

vem ũu bem tam apurado,

ũu prazer tam graduado

em que mil ganha por cento.

Sua dama descaida

com amor mui aficado,

mea morta, esmorecida, 

se outorga por vencida

em galardam do passado.

Em que cobra toda grorea,

toda bem aventurança,

que milhor grorea, que vitorea,

que leixar grande memorea

de tal amor, tal folgança!

Que tam sabido prazer

e tam grande galardam!

Que digo que o entender

destas cinco copras sam

meu selo, meu coraçam.

Aqui diz o autor como deos d' Amor

o mandou com embaixada tra‑

zer a sentença enderençada

a Dom Joham de

Meneses.

A qual como pobricasse

mandou a mim, seu secretario,

que logo a treladasse

e o propeo leixasse

por registo em seu almareo.

E assi m' adereçasse pera

vir embaixador

e qu' estes autos pobricasse

a vós, Dom Joam, senhor.

E assi em comprimento,

com despacho segui via,

venho com grande tormento,

caminhando noite e dia.

Fiz ũ bordo em Alcobaça,

onde fico mui cansado,

achei no meo da praça

este correo que caça

qualquer partido de graça.

O qual vos logo aderenço

por minha grande fraqueza,

e por ele vos estenço

estes autos de gram preço,

receba-os vossa nobreza.

E conserve sua fama

como mui lindo fidalgo,

pois ardês em viva chama

e deos d' Amor vos tanto ama

que soes do seu desembargo.

Fim de todo processo.

Recebimentos fareis findos

lanheados com do ouro,

mandarês repicar sinos,

sairês esses mais dinos

com rico paleo de ouro.

Ca pelos reinos alheos

por u venho de passada,

me fazem festas, torneos,

mais ricos, com mais arreos

qu' a esta santa cruzada.

 

2

DOM JOHAM DE MENESES A ŨU HOMEM

QUE SE LHE MANDOU ESPANTAR PER

ŨAS TROVAS COMO, SAINDO DE

ŨS AMORES, PODIA ENTRAR

EM OUTROS, E QUE LHE

RESPONDESSE POR

CASTELHANO.

Los que sienten vidas lhenas

de tristezas y dolores

em poco tienem las penas,

que pensar em las ajenas

consientem los amadores.

Mas yo lo tomo al reves

y loo que en tal empriende,

y que me digan despues

mal de muchos gozo es,

yo sé bien como s' entiende.

Comparacion.

Ya muchos que mal firieron

pensando se conortaron,

no nel golpe que les dieron,

mas em muchos que devieron

de matar y no mataron.

Y se vuestro pensamiento

com vuestro mal haver duelo

oos dexo, de lo que siento,

fue por dar al gram tormiento

que vos mat' algun consuelo.

Mas si soes de mi culpado,

o yo quexoso de vos,

es em darme em lo passado

por hombre que fue penado,

si mirais quien es mi dios.

Que sola la fremosura

de quien yo por mi mal veo

haz dicha mi desventura,

y ser glorea la tristura

que passé y que posseo.

La passada porqu' ha poco

su pena com la presente;

la presente por ser loco

d' amores, y fago poco,

segun es por quien se siente.

Assi que puede dizer

quien supiere cuyo so

qu' es a mi triste bevir

no vida lo por venir,

ni muerte lo que passó.

 Fim e comparacion.

La garça toma receio

dei remontador templano,

mas ya libre de su vuelo

conoce su fim nel cielo

nel que sueltan de la mano.

Assi yo en los amores

passados bien conocia

qu' eran mis remontadores,

mas estos son matadores

de la vida e muerte mia.

3

CANTIGA SUA.

Pois soes tam sem piadade

qu' em meu mal levaes tal glorea,

ja nam quero moor vitorea

que vencer minha vontade.

Nam dá pena nem prazer

bem nem mal que me façaes,

folgo menos de vos ver

do que vós a mi folgais.

Faz-me algũa saudade

virem cousas aa memorea

que passei; mas, na verdade,

nam me dam pena nem glorea.

4

MOTOS GROSADOS A ESTAS SENHO‑

RAS POR DOM JOHAM DE MENE‑

SES, ENDERENÇADOS A

SUA DAMA, EM ŨA

PARTIDA.

Dona Felipa de Vilhana.

Los dias de mi bevir

ya los cuento por passados.

¡ Oh mi vida, por quien vida

vivo lheno de tristura,

por quem pena dolorida

sobra em mi con la partida

como em vos la fermosura!

Con este triste partir

no parten de mi cuidados

y solo por vos servir

los dias de mi bevir

ya los cuento por passados.

Dona Joana de Sousa.

Destes fim al coraçon.

Mas como son despendidos

por amaros y doleros,

aunque sean mal bividos,

no los cuento por perdidos,

pues se perden tras quereros.

Perderlos é qu' es ganar

por vuestra gran perfecion

a quen no puedo negar

que solo por vos amar

distes fin al coraçon.

Dona Lianor Mazcarenhas.

Oh vida desesperada.

Y pues ya vedes cativo

que muero por vos querer

y mi mal qu' es tam esquivo,

piedad de como bivo

haved ora, qu' es d' haver.

No seaes desconocida,

pues en al no soes tachada,

que no tiene merecida

lhamarse por vos mi vida

oh vida desesperada.

Dona Guiomar de Castro.

Oh triste gloria passada.

Conoce que soy perdido,

por vos, vida y muerte mia,

ca, fuera ser merecido,

está ya tan conocido

que negar no se devia,

que siempre fue mi bevir

y mi vida tam penada

qu' aun estaa por venir

lo por que yo devo dezir

oh triste gloria passada.

Dona Maria de Melo.

Lo que mi sentir calhava.

Que de vos nunca pensee

falharme sino qual quedo,

gloria nunca la pasee

ni jamas nunca me see

menos triste ni más ledo.

Y quando triste fengia

qu' este mal no me matava,

mucha más pena sentia,

porqu' enton contrafazia

lo que mi sentir calhava.

Dona Felipa Anriquez.

No veo como seria.

Ya d' aca donde partistes

todo cuanto haves andado,

vo lhorando por du fuistes,

dando mil sospiros tristes

com' hombre desesperado.

Y sabés que tales son

sospiros sin alegria

que salem del coraçon,

mas salir desta passion

no veo como seria.

Dona Lianor Pereira.

Quem podesse saber quem

sabe parte de meu bem.

E como quem vos nam via

anojado de viver

outra cousa nam fazia,

toda a noite, todo dia,

senam chorar e gemer.

E dezia saudoso

sem meu mal sentir ninguem:

— Oh cativo desditoso,

quem podesse saber

quem sabe parte de meu bem.

Dona Violante.

Quiça que terná la muerte.

Pues muriendo os dó plazer,

a la vida fim dar quiero,

sin la qual no puede ser

yo dexaros de querer

y querendoos desespiero.

Y despues de fenecida

mi dolor y pena fuerte

quedar puede guarecida

que lo que falta em la vida

quiça que terná la muerte.

5

TROVAS QUE FEZ DOM JOAM DE

MENESES POR LETRA D' ŨA CUM‑

PUSTURA QUE FEZ DE CANTO

D' ORGAM, QUE SE CAN‑

TA TODAS TRES VO‑

ZES POR ŨA

SOO.

Todas tres vozes por ũa

acordaram contra mim

que paixões ò galarim

me causem sem caus' algũa

triste vida, triste fim.

Sendo falsas acordavam

com tal som e harmonia,

tais enganos mesturavam

que ninguem nam conhecia

de que vento se formavam,

Senam eu que sei e sento

seus erros e donde vem

com' a quem perdido tem

paixam e contentamento

de seu mal e de seu bem.

E em som de verdadeiras,

com palavras enganosas,

fazem obras lastimeiras,

sam por bem muito danosas

e por mal pouco guerreiras.

Almas, honras, corpos, vidas,

tudo trocam por fazendas,

dam repouso por contendas

com sospeitas mal havidas,

falam muito sem pôr prendas.

Trazem linguas afiadas,

com que dam golpes mortais,

as vontades mui danadas

i em fim, quand' apertais,

tudo é nada das nadas.

Cabo.

Têm em pouco pola vida

de muitos em deferença,

levemente dam sentença

contra parte nam ouvida

sem fazer disso pendença.

Mas quem manda sobre tudo

tem juizo tam perfeito

que ninguem por muito rudo

nunca perde seu dereito,

nem o ganha por agudo.

6

TROVA SUA QUE MANDOU A LUIS

DA SILVEIRA, QUE PARTIA

DE LIXBOA AO CERCO

DE TANJER.

Co estes ventos d' agora

perigoso é navegar,

que se mudam cada hora,

e quem vai de foz em fora

nunca mais poode tornar.

O navio pend' à banda,

a rezam nam é ouvida,

a vontade tudo manda,

e quem ha-d' andar desanda,

quem tem alma nam tem vida.

7

GROSA DE DOM JOAM DE MENESES

A ESTA CANTIGA QUE DIZ:

DI, AMOR, PORQUE

QUESISTE.

¡Oh beldad, que no me dexas

olvidar lo por que peno,

havé duelo de mis quexas,

pues por ti de quien m' alexas

soy de mi cativo ajeno!

No m' acuerdo de más vida

de la que me destroiste,

y pues la he por ti perdida,

darme pena tam crecida

di, amor, porque quesiste.

Qual rezon te comovió

assi nelha me matares,

pues cativo, triste yo,

solo verte convertió

mis plazeres em pesares.

Que la hora que te vi,

triste fue la postumera

de mi vida, ca morri,

con en verte consenti

que amasse en tal manera.

Y de lexos he servido

com gram fe tu hermosura,

tu a mi, triste, perdido,

al reves del merecido

immortal diste tristura.

La qual mata y nunca muere

con querer triste que quiera

tu beldad, mas elha quiere

cativo que desespere,

porque yo biviendo muera.

Y tu bien puedes matarme,

mas nunca verme matar

terná poder de mudarme,

ca no puedo tanto amarme

que te pueda desamar.

Con tudo mi mal estranho

de mi muerte mensagero,

la qual he por menos danho,

sé que no fuera tamanho

si yo fuera lisongero.

No digo que recelando

tu perderme te ganara,

si te pierdo bien amando,

mas porque mi mal tirando

mi querer te no tirara.

Ansi que tanto quererte

fue causa de mi penar

y perderme de perderte,

pues sin tanta fe tenerte

no me dieras tal lugar.

Con el qual desesperado

soy de vida sin dolor,

no porque m' hayas falhado

de ti siendo desamado,

nunca menos amador.

Ni porque mi gran querer

te saliesse mentidero,

ni por ser rezon de ser,

mas quieres verme perder

porque amo, verdadero.

Ansi que pensar devria

que no siendo tanto tuyo,

más aina fueras mia,

mas por desta fantasia

no morir, de razon fuyo.

La razon sin la qual muero,

si triste quiero mirar,

me faze que desespiero,

porque quanto más te quiero,

quieres mi pena doblar.

Y con tanta mal andança,

quitado de todo vicio,

no pude fazer mudança,

ni puede desesperança

quitarme de tu servicio.

Ni puedo dexar mi vida,

porque bivo de ser triste,

pues le distes la salida,

no al fim que t' ee servida,

mas al fim que lo feziste.

Yo con fim de fasta elha

tanto te servi sin falha,

piensando qu' em tal querelha

ganava más en perdelha

qu' en otra parte ganalha.

Mas si tu beldad ordena

que mi vida no te quiera,

no podendo ser ajena

de doblar toda mi pena

fue por me buscar manera.

Cabo.

Acabo porque son tales

las penas triste que tengo

que de vivas son mortales;

ni son ya males los males

que sin ti por ti sostengo;

mas bienes si me quitaren

la vida que no tuviera,

y vida, si me mataren,

y muerte, si me dexaren,

porque yo biviendo muera.

8

DOM JOAM DE MENESES.

Mi tormiento desigual

pera más pena sentir

me tiene fecho immortal

y no me dexa bevir.

Porqu' es tormiento tan fiero

la vida de mi cativo,

que no bivo, porque bivo,

y muero, porque no muero.

Es mi vida tan mortal,

tormiento pera sofrir,

que me fue dado el bevir

por pena más infernal.

9

CANTIGA SUA.

Ojos tristes, desdichados,

de todo mal causadores,

vos fezistes mis cuidados,

doloridos, lastimados,

pera sempre ser d' amores.

Vos fezistes mis tormentos,

desastrados, graves, crudos,

solo em ver

quien por sus merecimentos

vos fizo quedar desnudos

de plazer.

Assi que por mis pecados

nos dimos por servidores

de quien nos tiene robados

de plazer y nos ha dados

mil cuidados por amores.

10

OUTRA SUA.

Pois minha triste ventura

nem meu mal nam faz mudança,

quem me vir ter esperança

cuide qu' ee de mais tristura.

E pois vejo que em morrer

levais groria nom pequena,

antes nam quero viver

que viverdes vós em pena.

Quero triste sepultura,

quero fim sem mais tardança,

pois nunca tive esperança

que nam fosse de trestura.

11

CANTIGA SUA QUE MANDOU

ÀS DAMAS EM JAZENDO

DOENTE.

Senhoras, meu coraçam

querei por Deos confortar,

que por querer

é doente de paixam,

e jaz em cama d' amar

pera morrer.

Querei dar-lh' algũs conforto,

pois isto nam vem d' olhado,

mas d' oulharem

meus olhos quem me tem morto

dias ha, sem ser culpado,

em me matarem,

e à honra da paixam

e morte qu' hei-de passar

pola querer,

confortai meu coraçam

que jaz em cama d' amar

pera morrer.

12

CANTIGA SUA.

Agora sei que maldade

fiz a mim em vos querer,

agora sei a verdade,

que vejo com que vontade

folgastes de me perder.

Se taqui por vós sentia

tristeza, pena, paixam,

polo bem que vos queria

esperava e merecia

dardes-m' outro galardam.

Tinha posto na vontade

servir-vos atee morrer,

mas depois soub' a verdade

e acho que mor maldade

ca qu' eu fiz nam pode ser.

13

DE DOM JOAM DE MENESES A

SUA DAMA EM ŨA

PARTIDA, SENDO

MOÇO.

Senhora, por vos lembrar

a tristeza qu' em mim cabe

e tambem por vos gabar,

quis aquisto começar,

mas nam sei como vos gabe.

Ca vos vejo sem vos ver

tam fermosa qu' ee danar-vos

louvar vosso merecer,

nem sei cousa que dizer

que nom seja desgabar-vos.

Vejo-vos, minha senhora,

nacida sem par no mundo,

vejo a mim que milhor fora

ca me ver sem vós agora,

ter-m' a terra ja de fundo.

Vejo-me por vós penado,

vejo Deos por vos fazer

ser de todos mais louvado

que por ser cruceficado

nem por seu gram padecer.

Vi a mim fazer partida

com qu' espera de partir

deste mundo minha vida,

porque nisto soo dovida

de vos mais ver nem servir.

Dovida e eu dovido,

pois desta hei-de morrer,

nem quero que possa ser,

vendo-me de vós partido,

ter vida nem mais viver.

Que bem sei que m' ee sobejo

viver eu, e isto digo,

porque se cumpro o desejo

vosso, meu, segundo vejo

que folgais pouco comigo.

E se taqui desejava

de ter vida ou a queria,

era soo porque vos via

e por vos ver comportava

quanto mal m' ela fazia.

Mas agora a saudade

de vossa gram fremosura,

sem nenhũa piadade,

faz mudar minha vontade

por fim de minha tristura.

E faz-me qu' hei por sobeja

vida tam sem esperança

e o qu' a vida deseja

é estar onde vos veja

ou morrer sem mais tardança.

E por isto se comprir,

minha vida e meu viver

querem morte consentir

e eu soo por vos servir

nam me pesa de morrer.

Que bem sei que folgareis,

como de feito folgais,

e bem sei que al nom quereis

e tambem que morrereis

se me cedo nom matais.

Polo qual sem esperar

de vos ver mais em meus dias

como quem se vê matar,

dixo isto por lembrar

que me nam chegou Mancias

em amar nem em querer,

conquanto teve grã fama,

sem se nunca desdizer,

e depois triste morrer

por amor de sua dama.

Por ser de vós apartado

me vejo neste perigo,

e por ser tam namorado,

triste, mal aventurado,

vejo a morte ja comigo.

Sem vos ver, porque vos vi,

vejo morto meu viver,

e tambem, porque parti,

é a pena que senti

tal que nom na sei dizer.

Vejo a morte ja vir perto

soo porque de mim cativo

é meu mal trist' encuberto

tamanho que hei por certo

que sam morto sendo vivo.

Chorála triste começo,

que bem vejo que me cata,

de viver mais me despreço,

aos que errei perdam peeço

perdoo a quem me mata.

Mata-me querer-vos bem,

sam morto por vos amar,

matais-me vós, que ninguem,

qu' eu saiba, poder nom tem

senam vós de me matar.

Mata-me nom conhecerdes

camanho bem vos eu quero,

e às vezes nam me crerdes,

nem vos dar de me perderdes

me faz tal que desespero.

E se disto dovidais

sem vos eu errar em nada,

senhora, vós is errada

e vós mesma me matais,

e soes nisto açaz culpada.

Mas na hora qu' eu morrer,

onde for naquele dia,

de laa vos farei saber

que perdês em me perder

quem vos grande bem queria.

E sabeis como perdido

perderdes-me pode ser

morrer eu sendo partido,

ca sem isso é ja sabido

que me nam podeis perder.

Mas por vós serdes servida,

se nisto soes, senhora,

cuidarei nesta partida,

porque assi na minha vida

Darei fim logo ness' hora.

E se deste mal que sigo,

acho alguem que me conforte,

eeste tal sabeis que digo

que quem for mais meu amigo

folgue mais com minha morte.

E, senhora, por fazer-vos

a vontade no que posso,

perco a vida por querer-vos,

sem lembrar-vos nem doer-vos

qu' ee perdida polo vosso.

Polo vosso sem contenda,

como vedes, é perdida,

houve aquisto por emmenda,

porem nam que m' arrependa

de vos ter tam bem servida

na vontade; que nas obras

foram poucas como vistes,

e meu mal, que nom sentistes,

fez que fiz aquestas cobras,

dando mil sospiros tristes.

Fim.

Soes em cabo perigosa,

soes tambem crua sem par,

soes tambem sempre fermosa,

nam soes nada piadosa

pera quem podeis matar.

E eu sam tam namorado,

tam perdido e sem conforto,

d' amores tam decepado

que vos é mui mal contado

matar-me, pois que sam morto.

14

CANTIGA DE DOM JOAM

DE MENESES.

Por cousas que nam têm cura

hei por moor desaventura

qualquer dita que me vem,

nem desejo nenhũ bem

por nam ver quam pouco dura.

Ditoso de quem viver

livre, fora d' esperança,

digo eu, sem no saber,

coitado de quem alcança

ganhá-la para a perder.

Pois tudo tam pouco dura,

seguro que nam segura

nam no quero de ninguem

nem desejo nenhũ bem

com despreços de mestura.

15

CANTIGA QUE DOM JOAM DE MENE‑

SES FEZ EM CASTELA AO CONDE DE

FONSALIDA, QUE ERA CASADO COM

ŨA DAMA, A QUAL FOI MUITO SER‑

VIDA ANTE DE CASAR COM ELE,

E ELE JUGAVA A PELA PE‑

RANT' ELA E DEMANDAVA

MUITAS VEZES FAUTAS

E PERDIDAS, E DOM

JOAM ERA JOIZ E

JULGOU DESTA

MANEIRA.

Cantiga.

No fue falta del servicio

ni de la cuerda por Dios,

antes fue perdida em vos.

Por falta la demandastes,

siendo elha bien servida,

yo la juzgo por perdida

por quanto vos la tocastes.

Por gran dicha la ganastes,

que nunca me valga Dios,

si no es perdida em vos.

16

DOM JOAM DE MENESES ÀS DAMAS,

PORQUE ERROU ŨA BAIXA E

ELAS MANDARAM-LHE A

CONTA DELA À POU‑

SADA PER ES‑

CRITO.

Nam me deixe Deos errar

sem primeiro m' acabar

nesta regra que mandais,

pois a vida para mais

nam se poode desejar.

Nos senjelos e dobrados,

represas e contenenças

e mesuras,

ha passos dessemulados

que fazem mil deferenças

de vidas e de venturas.

Haa mudanças sem mudar

os olhos d' ũ soo lugar

como na regra mandais,

e erros em qu' acertais,

 porque sam de perdoar.

17

CANTIGA SUA A iA SUA CRIA‑

DA QUE SE CHAMAVA

CORREA.

Acorrê a minha vida,

nam lhe deis tam triste fim,

nam sejais desconhecida,

por nam serdes homecida

contra vós e contra mim.

Contra vós em me deixar

viver em tanta tristura,

contra mim em me matar,

guai d' alma qu' ha-de pagar

os danos da fremosura!

Ó vida de minha vida,

ja me nam pesa da fim,

mas hei doo, desconhecida,

de voss' alma qu' ee perdida

polo nam haver de mim.

18

SUA A ŨA SUA CRIADA.

Senhora, nam vos ousaram

os meus cuidados lembrar,

e, se vos nisso falaram,

a reposta me negaram

por me logo nam matar.

Mandai-lhe que vo-los diga,

sem receo de ninguem,

que por ser leal amiga,

nam vos pode vir fadiga

que nam seja por mais bem.

19

GROSA SUA A MEMENTO HOMO

QUIA CINES ES.

Lembre-te que es de terra

e terra t' has-de tornar,

nam queiras por outrem dar

a ti mesmo tanta guerra.

Perdoa a quem te erra,

se de cima perdam queres,

quia in cinere reverteres.

Nam catives teu cuidado

em cousas nam de cuidar,

porqu' assi ha-de passar

o porvir como o passado.

Olha qu' has-de ser julgado

polas obras que fezeres,

quia in cinere reverteres.

Cabo.

Guai de tua fremosura,

que conta lhe pediram

da perdida perdiçam

da minha triste ventura!

O dia da sepultura

pagarás quanto fezeres,

pois m' aqui pagar nam queres.

20

CANTIGA SUA, ANDANDO ELE

E O PRIOR DO CRATO D' AMO‑

RES COM DONA GUIOMAR

DE MENESES, E FEN‑

GIO QUE O FAZIA

PELO JOGO.

Rifam.

Pois nam tenho que perder

nem espero de ganhar,

para que quero jugar?

O jogo sempre traz dano

a quem joga mais verdade

o ganho vem por engano,

por bulras e falsidade.

E de tal enfermidade

poucos podem escapar

se nam deixam de jugar.

O perdido e o ganhado

tudo vai como nam deve,

o que menos dita teve

foi melhor aventurado:

leva menos emprestado,

terá pouco que pagar,

quando quer que o tornar.

Ũa joia preciosa

cujo era que perdi,

sendo falsa e enganosa

nunca cousa mais senti.

Porem nela conheci

qu' o triste que a levar

a vida lh' ha-de custar.

Com más cartas, má fegura,

com maos dados ma levou,

ambos temos maa ventura,

quem perdeo e quem ganhou:

eu, porque m' ela deixou,

o triste que a levar,

porque cedo o ha-de deixar.

Fim.

Levou-ma, mas nam por ter

melhores trunfos nem mais,

com muito poucos metais,

com muito menos saber,

senam soo por ela ser

tal que nunca pod' estar

ũ hora sem se mudar.

21

 

OUTRO VILANCETE DE DOM JOAM

A ŨA ESCRAVA SUA.

Cativo sam de cativa,

servo d' ũa servidor,

senhora de seu senhor.

Porque sua fermosura,

sua gracia gratis data,

o triste que tarde mata

é por mor desaventura.

Que mais val a sepultura

de quem é seu servidor

qu' aa vida de seu senhor.

Nam me daa catividade,

nem vida pera viver,

nem dita pera morrer

e comprir sua vontade.

Mas paixam sem piadade,

na dor sobr' outra dor,

que faz servo do senhor.

Assi moiro mans' e manso,

nunca leixo de penar

nem desejo mais descanso

que morrer por acabar.

Oh que triste desejar

para quem com tanta dor

se fez servo de senhor!

22

OUTRO VILANCETE SEU, ESTAN‑

DO DOENTE, PORQUE LHE

PERGUNTARAM QUE

DOENÇA ERA

A SUA.

Preguntais-me de que moiro,

nam no ouso de dizer,

porqu' hei medo de viver.

Se menos paixam me desse

poder-m' -ia queixar dela,

mas dizer-se nem sofrê-la,

tudo quis que nam pudesse.

Para ter em quem tevesse

e mostrasse seu poder

me deu vida sem viver.

Meu mal é decendimento

encobrir donde decende,

é paixam que nam s' entende,

nem sabe seu fundamento,

perdido contentamento

do que foi e ha-de ser

e muito mais de viver.

A dor é em si mortal,

s' a ventura m' ajudasse

para que me libertasse

de tantos males ũu mal.

Mas a causa principal

em qu' estaa ser e nam ser

nam se leixa comprender.

Cobresse-m' o coraçam

de tristezas encubertas,

tem de dores muito certas

mui incerto galardam.

E por mais condenaçam,

estando pera morrer,

nam me posso arrepender.

Se sospeita me tocasse

que meu mal se conhecia,

quando m' ela nam matasse,

eu por mim me mataria.

Que mor perigo seria

depois de dito viver

do que calando morrer.

Fim.

Nam vos dê meu mal sospeita,

que o causam desfavores,

nem tenho paixam d' amores

nem culpa de contrafeita.

Mas vi a rezam sogeita

de quem lh' ha-d' obedecer,

o mais nam quero dizer.

23

OUTRO VILANCETE SEU, ESTANDO

EM AZAMOR, ANTES QUE

SE FINASSE.

Tirai-vos lá desenganos,

nam venhais

a tempo que nam prestais.

Ja os dias de prestar

a meus males sam passados,

os que ficam por passar

a mais pena condenados.

As desculpas dos culpados

Valem mais

qu' a verdade dos leais.

Quem vos manda bem entende

que me nam podeis valer,

seguir vosso parecer

o seu dela mo defende.

Vós soltais e ela prende

com sinais

de vida que mata mais.

Deixastes os olhos ver

e o coraçam amar

a rezam, qu' ha-de mandar

da vontade se vencer,

os sentidos padecer

dores mortais

e agora m' aconselhais.

24

CANTIGA DE DOM JOAM

DE MENESES.

Fue buena ventura mia

ser tam mal aventurado,

que de mucho desamado

buelvo a ser por otra via

dichoso de desdichado.

Tanta fue mi gran tristura,

tanto fue mi mal esquivo

que fue buena mi ventura

ser tanta mi desventura

que me libroo de cativo.

¡Oh dichoso desdichado!

tal dicha no la queria,

aunque triste desamado

fue buena ventura mia

ser tam mal aventurado.

25

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Gran miedo tengo de mi.

De la hora em que te vi

lhorando lo que perdi

en tanto dolor me veo,

que se sigo mi deseo

gran miedo tengo de mi.

Mi deseo es matarme,

porque muera mi tristura;

tu dilatas por penarme,

yo consiento por hartarme

de lhorar mi desventura.

Lhoraré porque naci,

lhoraré porque perdi,

lhoraré porque bien veo

que se sigo mi deseo

no has de lhorar por mi.

26

VILANCETE SEU A DONA ANJEL,

SENDO GUERRA GUARDA

DAS DAMAS.

Porque nunca m' apartasse

de quem quiero, no queria

descobrir de que morta.

Haré ũu foyo en la tierra

do mi mal pueda dezir,

o por más lo encobrir

descobrirlo he a Guerra,

quando ya quiera morir.

Porque se bivo quedasse,

dizendo de que morta,

mayor peligro seria.

27

DOM JOAM DE MENESES E DOM

JOAM MANUEL A PERO DE SOUSA

RIBEIRO, PORQUE ENTRANDO

NA CAMARA DO PRINCIPE

LHE PROMETEO DE

DIZER DELES E

NAM DISSE.

Se vós laa dizeis de nós

o que cá de vós dizemos,

rezam é que nam entremos.

E direis que por medrar

sabemos mui bem fazer

cos de dentro: nam dizer,

cos de fora: mormurar.

Se taes somos com' a vós,

confessamos, conhecemos

qu' ee rezam que nam entremos.

28

DO COUDEL-MOR A ANRIQUE D' AL-

MEIDA, QUE LHE MANDOU PEDIR

NOVAS DAS CORTES QUE EL-REI

DOM JOAM FEZ EM MONTE‑

MOOR O NOVO, SENDO

PRINCIPE, O ANO DE

SETENTA E SETE,

SENDO EL-REI

SEU PAI EM

FRANÇA.

No mes de Janeiro,

e ano de sete,

na era que mete

dez setes primeiro,

em Moor Monte Novo,

os povos s' ajuntam,

respondem, preguntam

mil cousas de provo.

Se o que se cá passa

quereis lá sabê-lo

nam seja escassa

a mãao eescrevê-lo.

Mas pois o letreiro

ponto nam erra,

contará primeiro

estado da terra.

A dous o vermelho

nom val mais o branco,

a dez o coelho,

perdiz faz derranco;

a vinte a galinha,

de graça mil furtos,

doze turdos curtos

aquela chinfrinha.

A treze a cevada,

farelos a sete,

mas sua o topete

sobindo a calçada;

com pãao de real

punhada ao gato,

tres oitos o pato

e dous o açacal.

Tambem taverneiro

dá a quatro vinagre,

mas é moor milagre

quem cá tem dinheiro,

qu' a conta que leo

de peros roins

me dam sete e meo,

por boons tres quatrins.

A duzea e mea

se calça um pee,

o quarto d' um mee

val seis para a cea.

O qu' ee testemunha

da hora passada

faz ũu som de cunha

de cabo d' enxada.

A dez a ferragem,

mas cravos nam tem,

nam sofre estalajem

caber i ninguem;

pousadas defende

quem Deos nam mantenha,

de ũu asno a lenha

por nove se vende.

Val redea d' uvas

a cinco na praça,

mas nam ha i luvas

nem quem vo-las faça.

O gentil do cidram

a tres brancos se frisa,

real de sabam

nam lava camisa.

Mas estas deixemos

quedar de seu cabo,

e sem dar mais cabo

das cortes contemos.

Ouvi o que digo,

preponde notar,

que novas contar

vos cuido d' amigo.

Lixboa que sonha

no cardealado,

moordomo Noronha

tambem deputado;

i é Portimam,

Alvito, Penela,

Beringel com ela

que faz o sermam.

Aquestes despacham

o muito e o pouco,

Latam ficou rouco

mal pelo que acham,

que o trato de cá

e o modo da fala,

se s' ele entam cala

falá-lo-á laa.

Com barba de mouro,

toucar recoveiro,

ũ zunzum de besouro

em som lastimeiro.

Quem macho alcança

se ha por bençam,

mil falas de França

por este viram.

Rainha, Fernando

que dizem que vêm

com fama lançando

d' Ocres que ja têm.

E vêm mui per vista

em calça sevilha,

nom é maravilha

querermos dar vista.

Pois lá namorados

nam compre dormir,

fazê-me relir

cantar em ditados;

e pois lá vêm damas,

por amor das vossas,

convem ferir chamas

nas azes mais grossas.

Leixar piastram

fundar em loudel,

e seja cossel

valente rincham.

Qu' engeite carreira

querê-o vós tal

levand' a camal

que cubra calveira.

E pois vosso olho

todo isto vê bem,

as vossas convem

lançar em remolho;

mas fica a fadiga

com quem a tever

e oraçam diga

melhor quem souber.

Qu' os proves pedidos

dous deram soomente,

vassalos metidos

lá vaam de maa mente.

Dinheiro de praça

lhe daa crelezia

e quer fidalguia

que lanças refaça.

E com isto querem

favores comũus,

peroo ũus e ũus

partir-se ja querem:

porque se lh' alarga

o seu desembargo,

o gasto lh' amarga,

e mais nam m' alargo.

Fim.

 

Se pagar quereis

o que vos escrevo

por mim beijareis

as mãos a quem devo.

O mais nam vos tarde

às damas dezê-lo

nem tudo a Lordelo,

ca vos i vos arde.

 

29

REPARTIÇAM DOS BISPADOS QUE

EL-REI DOM JOAM DEU EM SIN‑

TRA, O ANNO DE OITENTA E

CINCO, A QUAL MANDOU

O COUDEL-MOOR A

ANRIQUE D' AL‑

MEIDA.

Sam Marcos fez-se primaas,

Dom Afonso elborensis,

tu Grijoo per via densis

em Lamego mitraraas.

Guarda tem quem na ja teve,

Silves deu-se ò cardeal,

Sancta Cruz, Vila Real,

Olivença se reteve.

Tambem dizem qu' ee bispado

Elvas com menistraçam,

outros metem mais milham

do mesmo ponteficado.

Cohimbra desta samarra

livrar seu pontefical,

Porto fica Porto tal,

Tinoco nam meteo barra.

Viseu ja tarde acudio

sobola pensam que tem,

se lhe nam val o item

que deixou quando partio.

Mas nam valeo oos mices

com todo o mundo ter treguas,

qu' o gentil de croqueleguas

deu co eles ò través.

 

30

O COUDEL-MOOR ÀS DAMAS, POR‑

QUE DERAM A ŨA QUE CASOU A

MELHOR PEÇA QUE CADA ŨA

TINHA PERA O CASAMEN‑

TO, ANTRE AS QUAES

LHE DERÃO O SEXO

DE DONA LU‑

CRECIA.

Polas praças de Lixboa

tantos louvores vos dam

que a mãao nunca lhe doa

quem fez tal,repartiçam.

Que no tal tempo de vodas

faça voda quem quiser,

mas por certo ha mester

que ali lh' acudam todas.

E pois tambem acudistes,

louvor grande vos acuda,

ca sem sexo se concruda

todas vodas serem tristes.

Mas ũ de nós cinco ou seis

esta questam fazer ousa,

que achastes essa cousa

u se remetam nas leis.

Er' ele sobelo ancho,

ou tira mais de redondo

ou tambem se lança gancho

quando está sobre cachondo;

ou se anda perfilado

como compre a donzela,

ou s' estando arreganhado

se verãao dele Palmela.

Se é per ventura calvo,

se toca de cabeludo,

se faz agua a seu salvo,

se mija coma sesudo;

se é faminto, se farto,

se é pardo, se vermelho,

se rapa como coelho,

s' arranha coma lagarto.

Se é manso, se brigoso,

se lança, coucea, espora,

ou quand' estaa forioso

se o quer dentro se fora;

ou se por matar a sede

a través toma mil saltos,

ou se lhe praz dos pés altos

arrimados aa parede.

Se tem risco no gargalo

do poço laa da fotea,

ou depois que papa e cea

se fica com bom regalo;

ou se tem crista de galo,

ou fala com boca chea,

ou apagando a candea,

que som faraa sem badalo.

S' ee de mole carnadura,

se tem cabelo de rato,

ou sobre vianda dura

se daa punhada ò gato;

quando estaa de si contente

a qual parte mais s' emborca,

ou se quando bate o dente

faz bacorinho com porca.

Fim.

Quanta soma d' almazem

cabe laa em seu carcaxo,

ou que tempo se detem

em fazê-lo altibaxo;

se é leesto marinheiro

em meter na moneta

ou se faz a çapateta

por si e polo parceiro.

 

31

TROVAS DE FERNAM DA SILVEIRA,

COUDEL-MOOR, A SEU SOBRINHO

GARCIA DE MELO DE SERPA,

DANDO-LHE REGRA PERA

SE SABER VESTIR

E TRATAR O

PAÇO.

Pois vos tacham de cortês

sobrinho, gentil cunhado,

sobr' alto, alvo, delgado,

nam ha mais em ũu frances.

E qu' a barba tenhaes pouca,

pois bem vestir vos alegra,

regê-vos por esta regra

que fundei vindo d' Arouca.

A qual, pois em si é boa

e geeralmente vem bem,

que fará ao que tem

bom corpo, boa pessoa?

E pois tendes estas ambas,

tendes quanto havês mester,

se o vaao d' amor vos der

per lugar que cubra as chambas.

Mas eu perdoado seja

se falar u me nam chamam,

pois que sam dos que vos amam

que mais vosso bem deseja.

Cunhado, nam duvideis

que isto trago por lei,

e por isso me fundei

d' escrever as que lereis

Duas cousas que nam calo

ha no paço de seguir:

ũa é saber vestir,

a outra saber tratá-lo.

As quaes ponho por escrito

em estilo verdadeiro,

e falo logo primeiro

no vestir ja sobredito.

Çapatos de Basileia,

pontilhas sobolo mole,

as calças tirem de fole,

roscadas como obrea.

Tragam-s' as de marcar,

forradas d' Irlanda parda,

ca cous' ee que muit' alarda

pera gram bomborrear.

Quem trouver porta d' Holanda

camisa trazer nam cure,

menores porem ature,

porque nam pendam aa banda.

O gibam de qualquer pano

na barriga bem folgado,

dos peitos tam agastado,

que seu dono trag' oufano.

De pelote se guarneça

pouco menos do artelho,

seja de branco e vermelho

que sam cores de cabeça.

Pardilho deve mantam

sobr' ele trazer cuberto,

polas ilhargas aberto,

ventaes polo cabeçam.

Deve trazer craminhola

nam menos de tres batalhas,

tam fina que tom' as palhas

com' aa d' Alvaro Meola.

O capelo ande no ombro,

feito como o do Sintrão,

trag' oo cabo em ũa mão

e na outra ũu cogombro.

Luvas d' ũu soo polegar,

feitas de pele de lontra,

galante que as encontra

nam lhe devem d' escapar.

Estas taes de meu conselho

todavia havê-las-á,

e item mais trazeraa

balverque em ũu joelho.

Traga cinta de verdugo,

pejada com capagorja,

ca tal par sabêe que forja

ũu valente patalugo.

De grandes bugalhos traga

ò pescoço ũu boom ramal,

porque escusa firmal

e a bolsa nam estraga.

O que for assi aposto

nam é galante de borra,

nem Deos queira que se corra

pero lhe corram de rosto.

Qu' algũus sam ja conhecidos,

e poder-s' -am nomear,

que trazem por pacejar

motejar dos bem vestidos.

Pero quem for ò serão,

polo modo dito em cima,

apupar alto lhe rima

e aas damas dá-l' a mão.

E falar fagueiramente

E aos outros derredor,

e se ouvir monseor

acodir mui rijamente.

Na outra parte segunda,

pois ja dei fim à primeira,

sobrinho, nesta maneira

a tençam minha se funda.

Peroo paço se trautar

estas manhas se requerem,

e nos que elas couberem

na corte sam de prezar.

É mui bom ser alterado

e ser gram desprezador

e é bom ser rifador,

mas melhor ser desbocado.

Outrossi é bom d' oufano

em todo caso tocar,

mas melhor é ja gabar

e mentir de macha mano.

É mui bom buscar punhadas

e meter nisso parceiro,

mas nam ser o dianteiro

por reguardo das queixadas.

Oos arroidos da vila acodir,

ser mui desposto,

mas s' alguem tiver o rosto,

havê los pees a la fila.

Item manha de lovar

é jugar bem o malham,

e ò jogo do piam

favor se lhe deve dar.

Nem sei por que mais vos gabe

ser gram pescador de nassa,

mas jugar a badalassa

em qualquer galante cabe.

Saber bem o pego chuna

e o cubre bem jugar,

sam duas pera medrar

galante contra fortuna.

Nem saberia a ũu filho

escolher milhor conselho,

senam que jog' o fitelho,

jaldeta, cunca, sarilho.

Quem estas manhas tiver,

que ja disse inteiramente,

pod' haver ao presente

quanto lhe fizer mester.

Ca u s' ele descobrir,

qual seraa tam sofruda

que lhe logo nam acuda

e lhe dê quanto pedir?

Mas que digo? Saiba, saiba

jugar d' espada e broquel,

porque dentro no bordel

como fora dele caiba.

E se lhe viesse à mão

poder-s' -ia nele ter

quem ajudass' a soster

seu andar sempre loução.

Regalo deve mostrar

que nam leva em colo duas

e que todas cousas suas

sam mui dinas de prezar.

Item mais falar em tudo

e aprefiar sem medo

e oos olhos ir co dedo

e fingir de mui agudo.

Falar nos feitos da guerra

as duas partes do dia,

esta manha louvaria,

pois o leva assi a terra.

E tomar mais outrossi

o caso sobre seu peito,

mas na concrusam do feito

o fazer buscai por i.

Item nam é manha fea

quem achar dam' oo escuro

estar quedo e mui seguro

e bradar pola candea.

Nem é menos verdadeira

que a outra do fitelho

mostrar ser gram dominguelho

e pegar pola primeira.

Eix aaqui outra tam boa

nem menos pera notar:

sempre o paço ir demandar

antr' a bespora e nona.

Porque nam desacotoe

com ombradas o pardilho,

qu' assi fazia o filho

daquele que Deos perdoe.

Tambem vos quero avisar:

nam vades como patãao,

se ventura no serãao

com damas vos for topar.

Da boca podês dizer,

mas a mão sempr' estê queda,

e tocae-lhe na moeda,

se se poode correger.

E per esta mesma guisa

sabê delas todavia

que recado se daria

a se bem tirar a sisa.

E falae-lhe no Outono

e nos outros temporaes,

ca co estas cousas taes

podês escapar ò sono.

Leix' em vossa descriçam

as que leixo d' escrever,

assi como quer dizer

luitar polo tavascam.

Da sacalinha de dentro

podês tirar, se quiserdes,

se dormir nam poderdes

socorrê-vos ò coentro.

Fim.

Boas sam, gentil sobrinho,

as manhas, nam dovidês,

e vós me nomearês,

se levaes este caminho.

E pois estas as melhores

sam, se as podês cobrar,

podem-vos todos chamar

ũu revolvê-lhas d' amores.

Dezia o sobreescrito destas, por‑

que iam cerradas

em forma de

carta.

O que vos vai na presente,

sobrinho, vos apresento

c' ũa vontade contente,

porque de vós me contento.

O podre lhe lançai fora,

guardae pera vós o sãao,

e des i beijae a mão

ò senhor e à senhora.

 

32

TROVAS DO COUDEL-MOOR A RUI

MONIZ, QUANDO DEFENDERAM

AS MULAS, E SAIO POR

COUTEIRO JOAM DE

BARBEDO, SENDO

TINHOSO.

Em trabalho somos cá

com Joane de Barbedo,

porque houve ũu alvará

com que mete a muitos medo.

Mas que seja temeroso

o poder qu' assi ganhou,

sei a quem mula coutou

que o coutou por tinhoso.

Mas porem pois é forçado

leixar mula e guarnimento,

eix o presente trautado

pera vosso avisamento.

Podês dele lançar mão,

se virdes que vos vem bem,

tomai-o como de quem

vos nam enxerga d' irmão.

E digo primeiramente

que comprês tal rocinato,

que se conheça por dente

e vos venha de barato.

E que seja descarnado,

os farelos fazem tudo,

qu' assi compra o sesudo

e vende bem anafado.

Trabalhai muito que seja

O cosel d' antre colores,

porque de longe se veja

antr' os outros corredores.

E que no freo carregue,

nam vos escape por i,

ca ò menos cuntari

lhe farês que assessegue.

Sobre suas mãos se ponha

na boca sangue faça,

traqueje como cegonha,

encabrite-se na praça.

A suor nam lh' estê queda,

ande sempre alvoraçado,

quando se vir salteado,

tropeçando dê aa seda.

Fundai-vos que dos sinaes

tenha sempre os milhores,

porque sempre estes tais

sam prezados dos senhores.

Nem tomês contentamento

por ter soo branco focinho,

mas tenha redemoinho

e na fronte ũu moimento.

Outrossi tenha peituga

tal qu' a cilha destempere,

nunca erre sambexuga;

item mais branco requer

pee dereito, mão ezquerda,

chamam-lh' eles trastravado,

deste tal empolinhado

nam se pode seguir perda.

Escolhê-o casquicheo,

mas, se tocar d' altiperno,

seguro ribeiro cheo

pode passar no Inverno.

Este tal é bom d' arado,

bom de carro, bom de jugo,

traga pele de texugo

polo nam ferir olhado.

E pois que o marroqui

s' afogou em Odiana,

traga sela valadi

com cuberta de badana.

E por ir milhor aposto

estribos deste metal

e com isso ũu tal buçal

que lhe cubra o mais do rosto.

Leve alto o rabo atado

e as comas encrespadas,

seu topete atouçado

com feita das cabeçadas,

as quaes devem ser vermelhas,

e a cilha desfiada,

se quiser comer cevada

qu' exagance aas parelhas.

Da guisa que vos escrevo

terês ũu loução cavalo,

e se vos conselho devo

é que vos fundeis buscá-lo.

E que vos pareça estranho,

trabalhae polo buscardes,

ca se nele vos achardes

ver-vos-ês bem dous tamanho.

Ora bem pois do arreo

que vos compre de trazer,

o mais esmerado creo

na presente vos poer.

Vós per ele nam passês

pois arraiar vos convem,

ca despois eu creo bem

que vós me nomearês.

Trazê vós logo primeiro,

peroo auto do ginete,

de gram feltro ũu sombreiro

posto sobolo barrete.

Item capa auguadeira

e gibam de çatim raso,

e por mais fazer no caso

ũu traçado sem conteira.

Quem mais o ginete segue,

preza-se de borzeguis,

mas eu hei por mais gentis

botas de mui fino pregue.

Estas louvarei se posso

sejam quer encabeçadas,

nem tragais calças cerradas

pera mais despejo vosso.

Com esporas sem cicates

e as hastes desdouradas,

meterês a ũs rebates,

farês outros sobarbadas.

E por junto co o braham

and' a adarga embraçada,

e oo partir da pousada

braadae polo remessam.

E des i: — Guarda carreira!

Verês todos afastar,

entam co a picadeira

começae-o d' aficar:

— Y de puta, cavalhero!

em voz alta bradarês,

e oo parar levarês

na mão o dito sombreiro.

E em caso que nam quer

a carreira bem tomar,

vaa e vaa por u quiser

que ele lhe daram lugar.

Mas porque besta nam fina

ha mester o amo destro,

se ela tirar ò sestro,

vós lançai-vos à bolina.

Mas porque o rocim magro

do amo nam faça jogo,

donde virdes sopee agro

guardai-vos como do fogo.

Mais vos digo eu que nada,

i-me vós bem entendendo,

ca em s' o estribo perdendo,

ganha sua canelada.

Por dar mate a Castilha,

por honra de Portugal,

feri ũa vez na cilha

e log' outra no ilhal.

A sela todo vos rima,

andae no arçam traseiro

e pegar ò dianteiro

por andardes sempr' em cima.

Item por fazer regalo

que sabês toda a maneira,

decer-vos-ês do cavalo,

des que passardes carreira.

E porque lh' esforço mete,

apartae-o a ũu cabo,

tirando bem polo rabo

e despois pelo topete.

E com isto assoviar,

vede se vos mijaraa,

e des i fazê-o andar

apos vós cá ora laa.

Palmada nunca s' errou

nas ancas logo se dar,

sej' oo par que desfechar

pera quem no albardou.

Fim.

Sem outro requerimento,

de minha vontade boa,

fiz cá este regimento

que vos laa mand' a Lixboa.

Em esta presente obra

acabo por acabar,

vós, por mais me contentar,

ponde meus ditos em obra.

 

33

TROVAS DO COUDEL-MOOR A JOAM

AFONSO D' AVEIRO, QUE SE FOI A

VIVER NAS ILHAS E DE LAA LHE

ESCREVEO QUE FIZESSE ALGŨAS

COUSAS POR ELE, EM QUE EN‑

TROU FALAR A SUA DAMA E

DESPACHAR OUTRAS COM

A SENHORA IFANTE E

CO DUQUE, MAS ISTO

VEO NO TEMPO DA

MOORTE DO

DUQUE.

Vai cá tempo tam contrairo

com aguageens sobre a terra,

que perd' a rota o cossairo

que do porto desaferra.

Quem quisera fazer guerra,

foi-lhe feita,

em quem coube haver sospeita

per si mesmo se desterra.

Passam cá tantas mudanças,

que nam val nenhũu terceiro,

e quem tem mais esperanças

dá de mão oo tavoleiro.

Ha-se cá por trunfo inteiro

o matador,

e louvam quem manteedor

se tornou d' aventureiro.

Polo qual quê nam dê conta

disso que me cá mandastes,

perdoae, pois esta afronta

temos cá, que nam leixastes.

Ca despois que vós passastes

eesas Ilhas,

sam cá feitas maravilhas

mais do que nunca cuidastes.

Mas o que de mim nam digo

sam cousas que daa o mundo,

pois daa mercês por castigo

e oos boons lança de fundo.

U ser boom jaz mais profundo,

menos cabe,

e faz andar quem mais sabe

às vezes mais vagabundo.

Faz mostrar preto por branco

e vender gato por lebre,

faz o sam reter por manco,

dá por rijo o que é febre.

Leva o frade que celebre

aas tavernas,   

bixigas por alanternas

nos faraa ja tá que quebre.

Estas cousas sam de caa,

lá nam sei nem nas devinho,

mas queria caa ou laa

ter-vos sempre por vezinho.

Se querês, façamos ninho

sem mais arte,

pois se acha em cada parte

pedaços de mao caminho.

Mas tornando à senhora

que mandastes que falasse,

nam falei, nem vi tal hora

que a vista me chegasse.

Mas nam cuido que me passe

se a vir,

e seraa graça sintir

que de vós lhe mais lembrasse.

Porem tudo o que tirar

dela vos farei saber,

vós vivei em esperar,

pois mantem mais que comer.

Entam vai tal escrever

que em chegando

vãao-s' espritos esforçando

e os torna a reviver.

Fim.

Pois que tendes meu querer

de vosso bando,

lembranças de quand' em quando

lhe farei por vos fazer.

 

34

TROVAS DO COUDEL-MOOR A FER‑

NAM CABRAL VINDO DA CORTE

COM DONA BRIOLANJA E AI‑

RES DE MIRANDA, QUE

ENTAM CASARAM, E

VINHAM TOMAR

SUA CASA A

EVORA.

Micer galante Cabral,

boas novas Deos vos mande,

sois em corte feo, grande,

e no campo outro tal.

Ũu Mancias sois segundo

por servir damas tornado,

e dos galantes sois dado

por espelho neste mundo.

No paço u vós trautaes

crêm as damas em vós todas,

sois revolvê-lhas de vodas,

mas das vossas nam curaes.

Picaes-vos muito d' amor,

quer vos venha bem quer mal,

nem ha i em Portugal

de damas tal servidor.

Ja corre cá vossa fama,

nam sei a que isto ponha,

mas tirai-me de vergonha,

nam venhais cheo de lama.

Se trouverdes borzeguis,

trazê atacas na curva,

e passando agua turva

levantae vossos pernis.

Vós dirês: — Quem vos metia

a me tal conselho dardes,

ca sem vós me avisardes

ja disso me percebia?

Mas eu vos responderei:

— Este conselho vos daa

quem Fernando gabou cá

por galante dos d' El-Rei.

Vós direis que milhor fora

de sospeita vir loução,

ca o gabar d' antemão

muitas vezes vai maa hora.

Eu direi que milhor é

gabar-vos log' aa primeira,

porque olhe a padeira

e vós dê milhor fee.

Vós direis: — Pois assi vai,

dizei que de mim dissestes,

assi vos venha mui prestes

a bençam de vosso pai.

Eu direi: — Assi vos pregue

vosso page o saio bem,

o qu' eu cá disse item,

é aquisto que se segue:

Da espora da galinha

vos gabei gram lançador,

outrossi motejador,

gram falador com vezinha.

De borzeguil com çapato

vos gabei de mui loução,

e que u lançaveis mão,

fazieis esfolagato.

Por metedor d' alvoroços

antre moças de pandeiro,

item mais de soelheiro,

gram gastador de tremoços

vos gabei cá na cidade.

Elas nam no querem crer,

e ficaram taa vos ver

por saberem s' ee verdade.

Fim.

Ora pois compre qu' entreis

co espada oo pescoço,

estoreando co moço,

que saibam que o trazeis.

Os pees em loros metidos,

capa sobola cabeça,

ò outro dia padeça

França em vossos vestidos.

35

TROVAS DO COUDEL-MOOR AO

CONDE DE LOULEE, QUE, SENDO

NAMORADO D' ŨA SENHORA A

QUE ELE JA SERVIRA, LHE

MANDOU PEDIR ŨU PO‑

DENGO PERA ŨU AÇOR

QUE COMPRARA E

MANDOU-LHE ŨU

QUE HAVIA NO‑

ME CHAPIM.

Senhor grande, cuja fama

s' estende por todo mundo,

cuja espada se chama

d' ũu Heitor outro segundo.

É o ver de vossa lança

òs contrairos tam contrairo

que em seu favor repairo

nos mores medos sa lança.

Quem vossos feitos conhece,

vossos favores procura,

porque sem vós lhe parece

que vive sem cobertura.

E porqu' este favor vosso

tam desejado desejo,

a vos servir me despejo

com todas forças que posso.

Quanto mais pois que me manda

vossa mercê que vos mande

podengo que busca banda

a qualquer parte que ande.

Com aquela qu' ee devida

a vossa mercê mesura,

vos mand' este que nam cura

de pasto nem de ferida.

Mas que nam busque rasteba

e a silva entre brando,

a vontade se receba

com que, senhor, vo-lo mando.

A qual é assi vezinha

a vos servir no que possa,

que em partes ja por vossa

a tenha mais que por minha.

Mas sabês do que m' espanto,

nam porque mais me desculpe,

de vos ver caçador tanto

que nam sei quem disto culpe.

Se a vós, se à senhora

que servis, pois daa lugar

pera irdes a caçar

nem sair dos muros fora.

Segui, segui os amores,

pois em vós tanto frorecem,

e leixae ser caçadores

os que seu bem nam conheçem.

Ca tal caso vos acusa

em grande parte, senhor,

salvo se o vosso açor

tias d' Arronches escusa.

Mas se vai doutra maneira

a tençam de vossa caça,

a dita senhora queira,

por fazer que se desfaça,

em cousas vos acupar

taes, de que outrem s' aqueixe,

por tal que tudo se leixe

por seu doce conversar.

O açor desse aleeo

nom devês dele curar,

ou aguias venham do ceo

que o façam trasmontar.

Guarida nom possa havê-la,

se a achar ache-se elo,

ca mais val, senhor, perdê-lo

que d' outra parte perdê-la.

Dae pois fim eesse d' Irlanda

nem preste contrairo rogo,

o podengo que se manda

nam viva mais, moira logo.

Queir' -o sua senhoria

mandar matar, pois matou

quem vo-lo triste mandou,

cuidando que vos servia.

Fim.

Ò triste chamam Chapim,

chegue Chapim em tal hora

que dê convosco o Chapim

essa de cujo chapim

nunca fui dino atá agora.

36

GROSA DO COUDEL-MOOR

A MIS QUERELHAS

HE VENCIDO.

Mirando vuestra beldad

mis querelhas he vencido,

porque nunca s' haa bolvido

contra vos mi voluntad.

Y siguiendo tal locura

siempre me vence el cuidado,

que por vuestra hermosura

hizo Dios o mi ventura

mi mal no remediado.

No bivo sim pensamiento

qu' hee de ser por vos perdido,

segun que fue repartido

por vos mi grave tormiento.

Pero esta confiança,

esperando ser ganado,

é por bien aventurança,

pues por muerte se alcança

fin del mal continuado.

Entam menos me oistes,

quando más vozes os di.

por lo qual jamas parti

del mal que darme quesistes.

Sostengo vida tan fuerte

con angustias de mis males,

que no sé como compuerte

los daños que por mi suerte

hazen mis llagas mortales.

Teniendo más merecido

menos alivio senti

daquel mal a que me vi

por vuestra causa venido.

Nunca me puedo quitar

de mis penas desiguales,

ni me puedo apartar

de los mis dias gastar

en las mis passiones tales.

No siento que modo siga

con temor de vuestro olvido,

ni s' aparta mi sentido

de querer su enemiga.

Y con este tal querer

ya mis quexas he forçado

y las he de posseer,

fasta fin poder haver

mi bivir apassionado.

Fim.

Hame vuestro desamor

de la muerte percebido,

porque sempre es recogido

em mi vuestro disfavor.

Em tanto que vivo ya

de la vida descuidado,

ni dudes que me seraa

el morir, quando vernaa,

menos bien que desseado.

37

PREGUNTA DO COUDEL‑

-MOOR A ALVARO

BARRETO.

Quem bem sabe, em tudo sabe,

e porem daqui concrudo

que a vós, que sabês tudo,

assolver as questões cabe.

E porem mui de verdade

peço que esta respondaes,

pera ver se concertaes

com minha negra vontade.

Ca eu ja me vi partir

e tambem despois chegar,

e senti todo o sentir

do prazer e do pesar.

Mas contudo é de saber

qual é vossa concrusam:

se partir dá mais paxam

ou chegar maior prazer.

Resposta d' Alvaro

Barreto.

De m' atrever que vos gabe

minha openiam mudo,

por nam ser ũu tam sesudo

que de vos louvar acabe.

E pois tal estremidade

sobre meu saber mostraes,

o nome que vós me daes

vosso gram louvor emade.

Porem sem detreminar

ante quem devo seguir,

ficando-m' eu de partir

ha-se por vós emmendar.

Que chegar tenha poder

d' alegrar ũu coraçam,

partir dá mais afriçam

u ha grande bem querer.

38

DO CONDE DOM ALVARO, QUE

MANDOU A ŨA SENHORA,

QUE ERA TERCEIRA

EM ŨUS SEUS

AMORES.

Des que fordes juntas duas,

vós essoutra que sabêes,

por mim tanto lhe dirêes:

— Ó senhora, nam destruas

aquele que em mãaos tuas

encomenda seu esperito.

E manda per este escrito

que cousa nam fique sua,

que toda nam seja tua.

Resposta do Coudel-moor, que

foi requerido pola senhora,

que respondesse

por ela.

Tres cousas queria nuas

ante qu' isso que dizeis,

que foram, nam duvideis,

dadas à filha de Fuas.

E viessem assi cruas

pera fartar apetito,

ca neste mundo maldito,

ante qu' ele me destrua,

quero-me fartar de bua.

39

DO COUDEL-MOOR A DOM GOTERRE

COM A METADE D' ŨU

CIDRAM.

Pôr por vós mui de verdade

a pessoa em qualquer bando

nam é chegar na amizade

u se vos manda a metade

d' ũu cidraom tal o quejando.

Nem d' outra parte compria

que moor quinham se vos desse,

porque minha cortesia

mais dano me nam fizesse.

40

DO COUDEL-MOOR A ŨA MOÇA QUE

LHE PEDIO ŨS ÇOCOS E QUE

FOSSE BOM PAR

DE LAVOR.

Por serdes milhor servida,

pois a perna tendes grossa,

mandai-me vós a medida,

eu farei todo o que possa.

E logo começareis

a medir polo artelho

e des i polo joelho

e na coxa acabareis.

E tambem quant' ee comprida,

e o pee quanto ter possa,

me amostrês a medida

da perna galante vossa.

41

DO COUDEL-MOOR A RUI DE SOUSA

COM ŨA CARTA DE SEGURO

EM QUE PAGOU POR

ELE SASSENTA E

NOVE REAES.

Sassenta brancos na palma

postos com tres vezes tres

fez de custos, que me pês,

os quaes ja dou por minh' alma.

Nem quero ter esperança

que homem vosso mos traga,

havei vós a segurança

e mao grado a quem na paga.

42

COUDEL-MOOR.

Pois se foram descobrir

vossos feitos pouco e pouco,

é mui bom homem ouvir

e nam ser mouco.

Ouço vos chamar madoma

porqu' amor em vós nam cansa,

e ouvi que soes tam mansa,

que qualquer homem vos toma.

Ouvi vos mais descobrir

por molher que sabe pouco,

e por isso é bom ouvir

e nam ser mouco.

43

TROVAS QUE FEZ O COUDEL-MOOR,

DE POESIA, INDO D' EVORA

PERA TOMAR, NA PON‑

TE DO SOR E

PAVIA.

De quinos trezenos bissete o ano,

passando seu meo com astres o Junho,

correndo Apolo o merediano,

ventura me trouve ò gram Paviano,

mostrar-me quem era o vincasi brunho.

Na universal do lageo grande

morada de fronte se mina fumerea,

cuberta das peles da madre da lande,

na qual melodias dulcissimas brande

a cega reinante na part' esquenterea.

Tambem tras o couce do grand' aparato,

sam vistos jazentes aquestes em torno

arelho cam geiro quem dá d' arrebato

com outros roliços crecentes no mato,

os quaes todos servem apos quadricorno.

Boim esteirado i faz cabeceira,

tendente per mesa tem grandes cadilhos,

ferrenhos tormentos teveram maneira

que desse Rui Vaca caldim na traseira

em velho fumereo de novos sorquilhos.

Apenas d' ali em Montargilado

me vi, ja Diana mostrando sa cara,

das forças humanas assi despojado,

que a poucas horas buscar foe forçado

lugar sonolento que ja procurara.

Es i dos sentidos com grande desmando,

vi cousas diformes oo ver repunantes,

em si desvairadas, contrairas no mando,

de que parte delas irei apontando,

porque tu, leitor, em lê-lo t' espantes.

Em casa creada de novo, poida,

vi musica doce, de canto griloso,

e Sertes estava em som recolhida

de ser abrasada, por ter afrigida

alma pesciva do gram bordaloso.

E rim machidonio u seus dentes lança

em partes devide os mais integrados,

cortifera febre é posta em balança,

ali onde outros com cor d' esperança

per linha mui fraca vi ser pendurados.

De terra cozida vi reste fornada

e canda bovina cá vim espigado,

e vi galiana da vida passada

que em dando voltas nos dava chilrada

nam menos que Jaques Menin gateado.

Tambem doutro cabo cantil s' alevanta,

cipelheo queda em terra jazente,

mas o padre grande da casa mais sancta

tintim nos tregeita, ca missas nam canta,

sendo senadores moeda corrente.

Fim.

As quaes cousas vistas causaram temores

a mim de tal forma que ponto nam pude

mais nelas sofrer os meus olhadores

por nam darem causa os tantos terrores

aa cousa contraira de minha saude.

Fundei-m' em partir mui acelerado,

tirei quanto pude, atras nam olhando,

porque do que vi fui tam espantado

que se nam valera batel esquipado

alaa se me fora coudel e Fernando.

44

COUDEL-MOOR POR BREVE DE ŨA

MOURISCA RATORTA QUE MANDOU

FAZER A SENHORA PRINCEZA,

QUANDO ESPOSOU.

A mim rei de negro estar Serra Lioa,

lonje muito terra onde viver nós,

lodar caitbela tubao de Lixboa

falar muao novas casar pera vós.

Querer a mim logo ver-vos como vai,

leixar molher meu, partir muito sinha,

porque sempre nós servir vosso pai,

folgar muito negro, estar vós rainha.

Aqueste gente meu taibo, terra nossa

nunca folgar, andar sempre guerra,

nam saber qui que balhar terra vossa,

balhar que saber como nossa terra.

Se logo vos quer mandar, a mim venha

fazer que saber, tomar que achar,

mandar fazer taibo lugar, Des mantenha!

E logo meu negro, Senhora, balhar.

45

OUTRA SUA.

Senhora graciosa, discreta, eicelente,

sentida, humana, d' amores immiga,

garnida d' oufana, d' honores amiga,

d' agora fermosa, secreta, prudente,

excrude em vós tacha castigo manante,

perfeita bondade, inteiro enxempro,

sogeita à verdade, verdadeiro tempro

virtude vos acha consigo costante.

Desta copra do Coudel-moor

atras escrita se fazem muitas

copras e foe feita sobre aposta

com Alvaro de Brito, porque

disse que nam na faria

ninguem tal como a

sua e apostaram

capõoes pera a

Pascoa.

Por comprir minha promessa

como quem o som vos furta,

esta fiz mais que depressa

por voss' arte, long' ee curta.

E pois nacem copras dela

nam menos da que fizestes,

fazê vós os capõoes prestes

qu' aqui é a Pascoela.

46

DO COUDEL-MOOR A EL-REI DOM

PEDRO QUE, CHEGANDO AA

CORTE, SE MOSTROU SER‑

VIDOR D' ŨA SENHO‑

RA A QUE ELE

SERVIA.

Pois me chegastes ò coiro,

dando-me mal sobre mal,

homem de sangue real,

a lonje vaa voss' agoiro.

Voss' agoiro a lonje vaa

e vossos motes d' amores,

mas eu fui laa eramaa,

pois me nam leixam senhores.

Pouco m' era compridoiro

vosso vir a tempo tal,

polo qual, sangue real,

a longe vaa voss' agoiro.

47

COUDEL-MOOR.

Pois nam vejo quem m' empare

e meu mal tornaes em dobro,

sobre mim convem pôr cobro,

que ja minha mãi nam pare.

Meti-me de companhia

por vosso bem desejar,

pera ver se medraria

como vi outros medrar.

Mas pois daes mal que m' enfare

e a outros bem em dobro,

sobre mim convem pôr cobro

que ja minha mãi nam pare.

48

COUDEL-MOOR.

Nam levaes boa maneira

para muito autorizar,

pois por amigos cobrar,

vos fazeis alcouviteira.

Mas que digo? Fazeis bem,

ca eu disso tal me pago,

ca pois vos nam quer ninguem

nam é bem qu' estês de vago.

Bom é ser mexeriqueira,

peroo paço emburilhar,

e pera amigos cobrar

milhor bo' alcouviteira.

49

COUDEL-MOOR A SUA CUNHADA

QUE LHE MANDOU ŨA ESCRE‑

VANINHA FRAANCESA,

QUE TRAZIA O CANO

NO TINTEIRO,

TUDO JUNTO

PEGADO.

Senhora cunhada minha,

deu-me grande torvaçam

esta vossa escrevaninha

qu' adavinha

a festa d' encarnaçam.

Nunca vi cousa tam nova

nem joia tam excelente,

mas dos cuidos que renova

seja a prova,

o tinteiro seu presente.

Ca jaz dentro na bainha

d' ũa tam nova feiçam,

que sem caso d' antrelinha

adevinha

a festa d' encarnaçam.

50

COUDEL-MOOR A ŨA SENHORA

QUE LHE ESCREVEO MOTES,

SOBRE TER PRENHE

SUA MOLHER.

Pois lá foi tam grande riso

d' ũ filho que Deos me daa,

que fora, senhora, jaa

s' eu nam fora para isso.

Com lembranças de quem quero

no que queria me fundo,

mas no cabo desespero

por achar outrem de fundo.

Fico morto emproviso

des qu' o feito passa jaa,

mas moor riso fora laa

s' eu nam fora pera isso.

51

COUDEL-MOOR

Quien gana pierde, aprendi

por mi mal, pues foe en hora

qu' em ganarvos por senhora

me perdi.

Verme del todo perdido

ganee triste por ganaros,

desamado por amaros,

por quereros no querido.

 Por me ver vuestro me vi

de mis sentidos tam fuera,

qu' en ganaros por senhora

me perdi.

52

COUDEL-MOOR AO PRIOR DO

CRATO, PORQUE LHE MANDOU

ŨA CARTA D' EL-REI QUE DE‑

ZIA QUE A CINCO DIAS LHE

MANDASSE SEIS LANÇAS

E NAM FALAVA EM

LHE HAVEREM DE

PAGAR SOLDO.

Pera as lanças que mandaes

que logo mande,

ũa duvida vem grande

per que vós, senhor, passaes.

Vós no soldo nom falaes,

per ventura nam cuidaes

qu' ham-de comer...

S' ham-de ser celestriaes

mui pouco tempo me daes

pera as mandar perceber.

 

53

DO COUDEL-MOOR.

Porque meu mal s' i dobrasse,

vos fez Deos fremosa tanto,

que nam sei santo tam santo

que pecar nam desejasse.

Polo qual sei que me vejo

de todo ponto perder,

por nam ser em meu poder

partir-me deste desejo.

Mas que m' este mal fadasse

e me traga dano tanto,

praz-me pois nam sei tam santo

que pecar nam desejasse.

54

DO COUDEL-MOOR A ŨA SENHO‑

RA QUE QUERIA FOGIR DE

PALMELA POR SE DIZER

QUE MORRERA I ŨA

MOLHER, E ELA

MORRERA DE

PARTO.

Que em trajos de donzela,

dona, motejês assi,

senhora, sobi aqui

e daqui vereis Palmela.

As novas cá tanto correm,

que d' ouvi-las ja sam farto,

que nessa vila nam morrem,

senhora, senam de parto.

E pois fingis de donzela,

nam fujaes por isso d' i,

mas podeis sobir aqui

e daqui vereis Palmela.

55

MEMORIAL DO COUDEL-MOOR.

D' Abril aos onze dias,

cinquenta e oito a era,

senti eu quanto é fera

a mortal dor de Mancias.

Porem quero que saibaes

que com suas mortaes dores,

nam de jogo aficadas,

passei polos Carregaes

tam carregado d' amores

que ousadas...

56

CANTIGA SUA.

Que de tal troca se siga

ser de todo meu bem fora,

pois me vejo em tanta briga

quero vos trocar d' amiga

por immiga e por senhora.

Immiga pera poder

todo meu bem destroir,

senhora pera querer,

pera amar, pera servir,

pera me dar nova briga,

pois que vos vi em tal hora.

Mas que meus danos consiga,

convem trocar-vos d' amiga

por immiga e por senhora.

 

57

D' ALVARO DE BRITO PESTANA A

LUIS FOGAÇA, SENDO VEREA‑

DOR NA CIDADE DE LIX‑

BOA, EM QUE LHE DAA

MANEIRA PARA OS

ARES MAOS SE‑

REM FORA

DELA.

Senhor meu Luis Fogaça,

sempre fui amigo vosso,

Deos o sabe,

pobre sam, nam sei que faça,

cousa começar nam posso

que s' acabe.

Consiro em tal vivenda

qual vivemos d' emborilhos

descontentes,

em desamor e contenda

os irmãos e pais e filhos

e parentes.

Sei que soes dos regedores

dessa cidade mui nobre

de Lisboa,

sei que mereceis honores,

nobre fama vos recobre

e tam boa.

Por saber que soes zeloso,

d' honesto viver e certo,

limpo, craro,

com os tais sam desejoso

de falar e mais esperto

menos  caro.

A vós, a que muito quero,

envio assi trovadas

minhas cobras;

nam aguardo nem espero

ver por isso mais louvadas

minhas obras.

Se vos muito nam contenta

sua rota, nam m' hajaes

por bom piloto,

nem leaes de sobre venta,

tá que de todo vejaes

se dam no goto.

Pera os ares corrutos

dessa cidade sairem,

os devassos,

torpes feitos dessolutos

compre que logo se tirem

sem trespassos.

Ante que o El-Rei saiba,

que os mande Su' Alteza

lançar fora,

cada ũu faça que caiba

bom estilo de limpeza

onde mora.

Ha mester bons quadrilheiros,

que oulhem mui bem e tentem

onde jazem

os podridos esterqueiros,

amoestem os que sentem

que os fazem.

Se os bem nam alimparem,

sem tardada dilaçam,

mais valeria

torpidades castigarem

que solene perciçam

nem romaria.

Algũs querem e requerem

que os façam dos pelouros,

por levarem

de todos quanto lhe derem,

de cristãos, judeus e mouros,

s' ajudarem.

Nam polo bom regimento

por eles haver emmenda,

se mandarem,

mas por bom aviamento

darem a sua fazenda

e folgarem.

Querem ser almotacees

e queriam ser juezes,

por encherem

talhadores e pratees

de coelhos e perdizes,

e comerem.

Querem suas mesas cheas,

nam havendo compaixam

dos vezinhos,

comer viandas alheas

de muitos que pobres sam

e mezquinhos.

Quem será do paao vermelho

que caçou por vil repairo

sem foram

d' ũa pobre ũu coelho,

de que fez o comissairo

ũu sermão.

Nam ha i ave nem cam,

que mate milhor a caça,

nem perfia,

do que mata tal saiam

por saber armar na praça

saioria.

Tal saiam ou outros taes,

estragadores saiõoes

de viandas,  

faram mui descomunaes

estercos de confusõoes

e demandas.

Saibam bem que leva peita,

logo lha façam tornar

ou pagá-la,

toda vileza mal feita

todos devem estranhar

e estranhá-la.

Bem limpas as esterqueiras

que jazem nessa cidade

dentro dos muros,

tirar-s' -iam más maneiras

de grandes perversidades

de monturos.

U convem ũu grande estremo

pera trazer a bom meo

tanto mal;

muitos gemem do que gemo,

mais grave dano receo,

desigual.

Receando maior ira,

maiores pragas e mortes

procederem

por tanta falsa mentira,

por males de tantas sortes

recrecerem.

Receo sanha mais grande

que nos mostra Deos que tem

contra todos,

e se querem que s' abrande,

alimpemo-nos mui bem

destes lodos.

Alimpemos brasfemar,

alimpemos negrigencias

e sefismas

de falso pronosticar,

e mouriscas giomancias,

seitas, cismas.

Todo mal cada ũu faz

por serem prevalecidos

seus estados,

cuidamos viver em paz,

e vivemos combatidos,

guerreados.

Esta morte nos guerrea

tantos annos tam sobeja,

em morrendo;

e pecar nam se recea

nem a vida nam s' enteja

mal fazendo.

Nam m' espanto ja dos moços,

mas dos velhos que revolvem

sa velhice

em valdios alvoroços

com bioucos, nam s' assombrem

da sandice.

Arruando bem as ruas,

alimpando freguesias

de malicias

e das torpidades suas,

que correm das judarias

sorratiçias,

veram boons antre daninhos;

mas escondem os louvados

malfeitores,

ca sobejam os espinhos,

ficam todos condenados

sem louvores.

Sobre todos vem doença,

sobre todos vem tal fame

que nos corta;

de Deos irosa sentença,

de justiça tal isame

desconforta:

os males favorecidos,

as vertudes encolhidas

sam escolas

de conluios enduzidos,

que conluiam nossas vidas

em embolas.

Buscam muitos como vivam

com embolas; sem trabalho

se refrescam,

da graça de Deos se privam,

armando laços d' engalho

com que pecam.

Suas redes e tresmalhos

sam gera nunca sairem

de cautelas, 

buscam todolos atalhos,

rodeam por nam cairem

em costelas.

E sam as cautelas tantas,

que parecem necessarias

por defesas

de muitas mentiras, quantas

se costumam voluntarias,

mal despesas.

Ũas trelas outras seguem,

levam varedas ezquerdas

em espias;

olhem, olhem, nam se ceguem,

como trazem grandes perdas

regatias!

Regatar e revender

fazem monturos mui altos,

fedorentos,

nam se podem desfazer

sem grandes tombos e saltos,

escarmentos;

arrenego de tal uso

de ganhar oo que lhe mercam

o tresdobro;

por costume tam confuso

boons costumes nam se percam;

hajam cobro.

Os uzeiros e vezeiros

i de falsas mercadarias

muito fedem,

as onzenas d' onzeneiros,

usuras e simonias

nos desmedem.

Se mandarem e varrerem

todas ousadas solturas,

nam duvido

de cessarem, nam morrerem,

de tam supitas quenturas,

Deos servido!

Vento é isto que falo

que passa pelos ouvidos

sem efeitos;

muitos somos em abalo,

de desejo constrangidos

e sogeitos.

Pera fazer diabruras,

mui sobejas demasias,

sem pulicia,

entram nisto mais mesturas

d' estrangeiras companhias

de malicia.

Estrangeiros partistando

levam desta nossa terra

ouro, prata,

nossas bolsas alivando,

com sa paz nos fazem guerra

que nos mata.

Levantam-se as moedas

quanto mingam nossos fruitos

temporaes;

estas praticas azedas,

estes nossos males muitos

sam geeraes.

Assi como vam da nao

todolos outros estantes

nos despenam:

levam ouro, trazem pao,

nossos tratos mercadantes

desordenam.

Por framengos, genoeses,

frorentins e castelhanos,

mal nos vindo,

com seus novos antremeses

dam-nos trinta mil avanos,

vam-se rindo.

Polos muitos corretores

ha i poucas corretagens

verdadeiras,

compradores, vendedores,

enfrascados em frascagens

barateiras.

Corretores e adelas,

em venderem e comprarem,

negoceam,

sabem bem roêlas trelas,

todos por nam se queimarem

as receam.

D' estrangeiras amizades

os corretores se cercam

de tal guisa

que se queimam novidades

dos vezinhos, porque percam

mais da sisa.

Com adelas o perder

é mais certo que ganhar:

onde vam,

se nam entram por vender,

entram por alcoovitar

de sobremão.

Cada ũu em seu oficio

todo feo interesse

nam refusa,

todo vergonhoso vicio,

como s' alma nam tivesse,

faz e usa.

Onde vergonha nom ha,

nem morder de conciencia,

haja medo.

Este caso nam estaa

em defesa d' inorancia,

nem segredo.

Os que s' acendem em furia

com sobejos apetitos

mui acesos,

nos ardores da luxuria,

que de solturas suditos

jazem presos.

Caçurrentos mais que pulhas

de seus males criminaes

se castiguem,

porque tantas maas borbulhas,

tam grandes dores mortaes

se metiguem.

Casados tem barragãas

e casadas barragãaos,

desta sorte

frades com freiras louçãas

nam dam doentes nem sãaos

pola morte.

Nossa lei do casamento

damos-lh' habito mourisco

mui bastardo,

no das ordens sacramento,

nam segundo Sam Francisco,

Sam Bernardo.

Por surdas alcouviteiras,

barateiras e beatas,

muitas ardem

em desonestas fogueiras;

desbaratem taes baratas,

nam lhe tardem.

Nam cuidem com elas ter

conversaçam sem doesto,

ca nam podem

muitos dias se manter,

que nam vam pelo cabresto

u s' enlodem.

Algũus ha na crelezia

que levam errados rumos,

mao costume

de vestir hepocresia;

sam devotos mais dos fumos

que do lume.

Levam pecados alheos,

mui gravemente defendem

e nam tardam

de fazer outros mais feos,

de que nunca se reprendem

nem se guardam.

Ca devassam as igrejas,

ermidas e moesteiros,

os sagrados;

por molheres ham pelejas,

por molheres sam guerreiros,

namorados.

Suas horas engroladas

em torpe vivenda çuja

desregrados,

suas manhas costumadas

dentro no porto de Muja

costumados.

Estudantes pregadores

metem sanctas escreturas

em sermõoes,

dirivados em amores

fazem de falsas feguras

tentaçõoes.

Quando virem tal caminho,

de maa preegaçam s' afastem

os que ouvem,

dêm-lhe todos de focinho,

taes metaforas contrastem

e deslouvem.

Sobrecrecem os demonios

e semeam vituperios,

d' u se criam

doestados matrimonios,

dessolutos adulterios

se cotiam.

As encrinações malinas

de satiras qualidades

destroi-las;

as que sam adulterinas

danariam mil cidades,

tres mil vilas.

Nam digo per todos isto,

que mui boons e boas nobres

têm aberto

seu mui craro louvor, visto

de ricos, tambem de pobres

descuberto;

mas nam sam de jeeral conto,

que se regem por ũs termos

negrigentes,

cujos males nam aponto

de que muitos sam enfermos

e doentes.

Antr' estes monturos moram

moradores vertuosos

que s' afastam

de maos ciscos, nam decoram

os partidos viciosos

nem contrastam

lodos taes, por nam poderem

ũs nem terem tal lugar

de o fazer,

e outros por nam quererem

seus amigos anojar

nem reprender.

Bulras habraicas sotis

danam verdades latinas,

ensaiando

agudos costumes vis,

desensinos por doutrinas

ensinando.

O apurado saber

nam é artefecial,

sobre partidos,

é ũu real entender,

é ũu siso natural

de boons sentidos.

Maa hora vimos judeus

e os seus modos viventes

aprendemos,

por sotis enliços seus

em todos maaos acidentes

nos metemos.

Nossa lei, nossa vertude,

nossa honra, nosso bem

avorrecemos,

nam procuramos saude,

do mal que cura nam tem

adoecemos.

Nisto caem os letrados

e os outros entendidos,

todos querem

dos judeos ser avisados,

servidos e percebidos;

nem esperem,

em cabo de seu serviço,

de sua negra aprestança,

senam dano;

tanto cega seu inliço,

que traz cor de ter bonança

sem engano!

E maa hora vimos artes

e lijunjas bem compostas

dessimular,

partidos de muitas partes,

amigos, lanças tras costas,

enganar.

Com interesses nos imos,

as amizades tornamos

desamores,

diversos rostos fengimos,

o que ganhamos gastamos

em vapores.

Nam guardamos nossa lei

de Cristo como cristãaos

bem fiees,

nem servimos nosso Rei

senam de serviços vãaos

e revees.

Isto faz o praticar

nossas maneiras judengas:

sem amizade,

esperamo-nos salvar

com viciosas arengas

de maldade.

Todas boas confianças

por malissimos enganos

sam perdidas,

justos pesos e balanças

danam judeus e marranos

e medidas;

assi sam algũs dereitos

torcidos em sem rezam,

dilatados,

perdidos muitos proveitos,

danados com afeiçam

os julgados.

Por marranos nam defamo

os que foram judeus sendo

cristãos lindos,

mas apostolos lhe chamo,

mui grandes louvores tendo,

mui infindos.

Sam marranos os que marram

nossa fee, mui infiees,

bautizados,

que na lei velha s' amarram

dos negros Abravanees

dotrinados.

Por nossos grandes pecados,

naquesta presente vida,

todos ora

vivemos desordenados,

nossa dor é recrecida,

nam melhora.

Como pegas aprendemos

bom estilo de falar

craro ou preto,

como pegas nom sabemos

qu' o que falamos obrar

dev' o discreto.

Em maa hora vimos varas

de juizo sem justiça

praticar

d' esconder as cousas craras,

pois dereitos esperdiça

seu julgar.

Com artes, enlevamentos

de novas bulras conhecem,

dam-lhe fee

por trazerem movimentos,

que o contrairo parecem

do que é.

Os cientes sabedores

guarnecidos de bondades

ham-de ser,

assi modernos autores,

que suas autoridades

devem crer. 

Estes sam mais cordeaaes

que frores de laranjeira,

d' autoridade

sam altos memoriaaes,

que nos mostram a carreira

da verdade.

Nunca vi tanta mesura

quanta falar se costuma

tam valdia,

palavras de pouca dura

revoadas como pruma

na fantesia.

Todos entram em senhor,

e todos pedem mercê,

desfalece

boa fee, leal amor,

a verdade nam se vê

nem parece.

Somos desavergonhados

em falar e presumir

quanto dizemos,

nas malicias ousados,

covardos pera seguir

o que devemos.

Com isto nos arredamos

de Deos, bem de nós s' arreda.

Merecemos,

polo mal que praticamos,

nam vivermos vida leda

qual queremos.

Todos queremos mandar

e queremos ser servidos,

nam sogeitos,

sem cuidar nem trabalhar

como sejam bem regidos

nossos feitos.

Com nossa pouca vergonha

nos queremos por linguajem

defender,

somos taes como quem sonha

grandes feitos d' aventagem

sem poder.

Por trajos demasiados,

em que todos sam iguaes,

sam confusos

os tres estados, danados,

alterados mesteiraaes

em seus usos.

Nom devemos ser comũus

senam pera Deos amarmos

e servirmos,

nam sejamos todos ũus

em ricamente calçarmos

e vestirmos.

Ca muitos baixos, indinos

de nobrecidos lugares,

pervalecem,

e com ricos trajos finos,

cadeas d' ouro, colares,

engrandecem.

Aos nobres sem dinheiros

nam lhe catam melhorias,

porque caiam;

menospreçam cavaleiros

onde se cavalarias

nam ensaiam.

Nos outros tempos passados

todos queriam viver

honestamente,

ordenados, compassados,

cada ũu em seu valer

era contente.

Nam havia presunçam

nem tomar de melhoria

endevida;

concordada discriçam

a mais da jente regia

per medida.

Todalas openiõoes

dos homens eram fundadas

em certeza,

todalas conversaçõoes

docemente conversadas

com destreza;

todos sem altevidade

honestamente folgavam,

cada ũu

segundo sa qualidade,

peroo todos desejavam

bem comũ.

Fez o tempo outra volta:

tornam-se boas vontades

maos desejos,

honram mais quem mais se solta,

e em todalas verdades

catam pejos.

Os que têm a governança

tomam conta com entrega

mui sem bico,

com sesuda temperança

nam se chegam onde chega

mexerico.

Ca revoulvem mizcradores,

por caberem com patranhas

onde sabem

que podem haver favores,

volvem mansidõoes em sanhas,

assi cabem.

É costumada simpreza:

cremos palavra sem prova,

torpe, fea;

maa sospeita traz crueza,

sem razam estranha nova

nam se crea.

Por falar no governar

e largar assi a brocha

nom espaço,

nem por muito reprochar

nom m' escuso de reprocha

e mal faço.

Ha i tanta çugidade

de maneiras mui perversas

tam notoria

e em tanta quantidade

que saaem culpas diversas

da memoria.

Destes fedorentos ciscos

muitos ha em cada casa

de logo,

sam piores que curiscos,

muita gente se debrasa

em tal fogo:

nossas vidas apoquenta,

nossas fazendas destrui

seu fedor,

ira de Deos s' acrecenta,

ora cada ũu conlui

sem temor.

Na fala partecular

todo bem e mal s' entende,

nam falece

quem milhor saiba pintar

isso que vê e comprende

e conhece.

Vãao errados os estilos,

nam se podem correger

levemente,

tantos bocados e engulhos

feros sam de conceder

a quem sente.

É mui fera beberajem,

é mui grande desacordo

u nam tomam

com repouso sem corajem

discreto conselho cordo,

nem assomam

com bem liquidada conta,

pero contra que vir possa,

porque vejam

quanto vale ou quanto monta

no ganhar ou perda grossa

d' u se rejam.

Os que governam e rejem

andem bem oos aparelhos

vivos, lestos,

essa cidade despejem

de monturos e fedelhos

desonestos.

Assi me vou espedindo,

de reprochar m' avergonho,

mais espinhas,

mui graves penas sentindo,

todalas outras posponho

polas minhas.

Fraca dita, fraco siso,

fraca renda, gram despesa,

mal que anda,

estas pagas que deviso

enfraquentam minha mesa

de vianda.

Os meus feitos vãao no fundo

minhas casas sam queimadas

u sabês,

as afriçõoes deste mundo

pelo de Deos comportadas

sam mercês.

Fim.

Cumpra Deos vosso desejo

e de quem vos bem deseja

neste segre,

com a pobreza pelejo,

ela faz que triste seja,

nam alegre.

Em fim de tudo concrudo,

assi bem ou mal notado

notefico

que nam contam por sesudo,

nem pode manter estado

senam rico.

58

ALVARO DE BRITO.

Vive mais morto que vivo

o livre que se cativa,

ledo, forro, sempre viva

quem se livra de cativo.

Nam é lei d' humanidade,

nem consente descriçam

leixar homem liberdade

por viver em sujeiçam.

Sendo contra si esquivo,

contra si todos esquiva,

ledo, forro, sempre viva

quem se livra de cativo.

Joam Gomez da Ilha.

Eu vi no tempo passado

afirmar-se por verdade

catividade de grado

ser inteira liberdade.

Mas por certo meu motivo

é contra quem se cativa,

ledo, forro, sempre viva

quem se livra de cativo.

59

ALVARO DE BRITO A EL-REI,

PORQUE O MANDOU AO ESMO‑

LER PEDINDO-LHE

MERCÊ.

Menospreço desconsola,

a verdade bem se vê,

que quem merece mercê

nom espera por esmola.

As esmolas de Deos sãao

chamadas esprituaes,

as mercês os reis as dãao

por galardão

dos serviços temporaes.

Este mundo ee d' embola,

bem estaa quem em Deos crê,

que quem merece mercê

nom espera por esmola.

60

OUTRA SUA

Breve vida te guerrea,

carne mesquinha, sospira,

abre los ojos y mira

la muerte como saltea.

Mirarás la poca dura

deste curso temporal,

que so regra de ventura

no segura bien ni mal.

Y porque mejor se vea,

em los passados consira,

abre los ojos y mira

la muerte como saltea.

61

OUTRA SUA

Sem pena ou sem favor,

nem per graça devinal,

nam pode bom servidor

medrar neste Portugal.

Sem pena sabeis qual pena

a certa pena da pata

que a vivos morte cata

e a mortos vida ordena.

Sem esta ou sem favor,

que queira Deos eternal,

nam pode bom servidor

medrar neste Portugal.

62

OUTRA SUA CONTRA OS ESCRI‑

VÃES DA FAZENDA.

Se filhos de quem nom teve

tendes mais que merecês,

a El-Rei muitas mercês,

que vos deu o que me deve.

E pois tendes recebida

a paga de meu serviço,

nam queiraes com vosso viço

brasfamar de minha vida.

Que nam tenha quem ja teve

e vós mais que merecês,

a El-Rei muitas mercês,

que vos deu o que me deve.

Decraraçam da divida feita

por Anrique de Figuei‑

redo, escrivam da

fazenda.

Deve-me muitas pancadas

que deu cá oo de Sampaio,

nas costas mui bem pagadas

polas culpas em qu' eu caio,

pois com sua mãao reteve

em lhas dar como sabês,

a El-Rei muitas mercês,

que lhas deu e a mim as deve.

63

TROVAS D' ALVARO DE BRITO FEN‑

GINDO NAVEGANDO COM TOR‑

MENTA, GROSANDO ŨA CAN‑

TIGA DO CAMAREIRO-MOOR

QUE DIZ: CUIDADOS DEI‑

XAI-M' AGORA.

Cuidados, deixai-m' agora

cuidar meu maior cuidado

com que meu coraçam chora,

porque vou de foz em fora

de prazer desamarrado,

com tam forte tempestade

que nam posso portar vela.

Com tam grande saudade,

com tam pouca piadade

perdimentos me revela.

Dexem-me vossos rumores

enquanto possa dizer

meus sospirados clamores

de tristezas, desfavores,

dores de meu padecer.

No contrairo do que quero

ventura me faz andar

agro caminho tam fero

que penando desespero

de viver sem me matar.

Penar me faz conhecer

em minha forçada via

quam longe sam de prazer,

conhecendo meu querer

amar mais que me compria.

Com desconsolada vida,

de perigos tam mortaes,

tam ferida, tam corrida,

oh minha triste partida

quantos males me causaes!

Neste negro navegar

grandes agonias sento,

em largas coitas passar

sam acerca de dobrar

com tormentas meu tormento.

Arvor seca vou correndo

sobre bancos de discordia,

antre baixas me perdendo,

nem destreza me valendo,

nem pedir misericordia.

Vou assi quasi perdido,

levo rota de trestura,

bem querendo, mal querido,

onde penso ter havido

o cabo de desventura;

nom podendo resestir

a meu gram padecimento

d' amar sem poder partir

a quem mostra nom sentir

quanto mal por ela sento.

Em vagas de mar aceso

contra vento e sem maree,

vejo meu prazer despeso,

vejo-me remeiro preso

em centina de galee.

Nam acho terra segura

que tenha seguro porto,

nem quem haja de mim cura

nestas ondas d' amargura,

de mil mortes vivo morto.

Assi mal afortunado

nas refegas destes mares,

de cuidados carregado,

contino desatinado,

guarnecido de pesares,

com afrontas nom achando

onde me possa ancorar,

contrairos tempos pairando,

sem governo govenando

todo meu desgovernar.

Nem gemer minhas paixões,

nem chorar, nem sospirar,

nem fazer lamentações

a minhas trebulações

nada me pode prestar.

Estorcendo toda hora

sem conto penar sobejo,

bradando vou: — Oo senhora,

socorrei quem vos adora,

vós meu bem e meu desejo!

Quanto mais costante sam

em vos manter minha fee,

tanto mais sem compaixam,

por me dar maior paixam,

vosso bem contra mim ee.

De soverano poder,

vós, que podeis, me salvai,

ou por menos mal sofrer,

pois me nam querês valer,

 sem dilatar me matai.

Fim.

Quem pode sofrer meu mal,

quem vio marteiro tam vivo

de dano tam creminal,

onde nom nacer mais val

que padecer tam esquivo!

Oh dama, em tal graveza

em que me fazeis morrer,

vós, primor de gentileza,

cece ja vossa crueza,

doia-vos ver-me perder.

64

TROVA SUA A FERNAM DE VAR‑

GAS, QUE ERA MUITAS VE‑

ZES JUIZ EM LIXBOA,

NA AUSENCIA

DOUTRO.

Juiz de meo ano,

tavanês,

que pera dez anos faz dano

em meo mes;

antre cortês descortês,

leviano,

com pouco favor ufano,

rosto de res.

65

OUTRA SUA AO ZEIMOTO, QUE

LHE PEDIO ŨU CONSO‑

ANTE PERA BEM.

Pedistes-m' um consoante

pera bem.

Dou-vos rosto de cofem

e na mão ũu puxavante,

nora mala qu' é galante

o Zeimoto,

unhas brancas de minhoto,

pescoço de lobagante.

66

OUTRA SUA A PERO BORGES,

PORQUE ESTANDO COM FE‑

BRE LHE DEU PIOR

DESPACHO QUE

EM SÃO.

Vós com febre, vós sem febre,

presumis de gram senhor,

Pero Borges contador,

demo soes em vez de lebre.

Arisco gozo, corrido,

saro ravasco, mostrengo,

nam ha mais nũ bexodido,

quasi quasi tengomengo.

Vossa presunçam nam quebre,

presumi d' emperador,

Pero Borges contador,

demo soes em vez de lebre.

67

OUTRAS SUAS AO GRIFO, SENDO

CORREGEDOR, PORQUE LHE

FOI FALAR E ELE

QUEIXOU-SE.

Pera que vos engrifaes,

pois que convosco nam rifo?

Cuidaes que por serdes Grifo,

que por i m' atabucaes?

Oulhai bem como falaes,

galante da mão inchada,

boca de cousa finada,

verdugo de pendençaes.

Alterou-vos ũ grifete

que deve ser basalisco,

e dizem que soes galisco.

Vede u s' este caso mete,

s' algũ convosco compete

no jogo de chaporras,

enquanto vos der no ás

tirar-lh' -ês polo topete.

Fim.

Nam soes homem nem bisonha,

enxarroco, nem caboz,

pareceis-me biaroz

enxertado em carantonha.

68

OUTRA SUA.

Isabel Diaz, aquela

que é guarda das donzelas,

se dizem que diz mal delas,

que diram dela?

Diram que se faz cartuxa

e que parece mundaira,

vertudes de si empuxa,

d' amizades se desvaira;

sem cautelas se cautela,

faz mui feas carapelas,

se dizem que diz mal delas,

que diram dela?

69

OUTRA SUA A EL-REI, QUEIXAN‑

DO-SE DE TRES DESEMBARGA‑

DORES, QUE ERAM JUIZES

D' ANTRE ELE E ŨU

VILÃO.

Senhor: Jam, Pero, Lois,

tres da vossa rolaçam,

o que Deos nam quer nem quis,

querem mostrar por rezam:

querem salvar ũu vilão,

querem condenar a mim,

querem fazer per latim

do nam si, e do si nam.

70

OUTRA SUA AO PROVISOR

JOAM GIL, PERANTE

QUEM ANDAVA

EM DEMANDA.

Que rigor e que primor

de provisor!

Que regalos de Jam Gil!

Sobre rustico, sotil,

e sobre vil,

sem saber e sem sabor,

servidor desservidor

d' El-Rei, contradiz El-Rei.

Que lhe farei?

Se fizer, desfazer-lh' -ei

e chamar-lh' -ei

gram Jam Gil emperador.

71

OUTRAS SUAS A JAM DE RAVO‑

REDA, PORQUE LHE NAM

QUIS PAGAR ŨU DESEM‑

BARGO E ELE

PARTIA-SE.

Senhor Jam de Raboreda,

sem moeda

me querês fazer partir,

tenho bem que vos servir.

Com vontade mui azeda

partirei, mas cá me queda

de vossa mercê despeito,

a respeito

de nam sei como soes feito,

acertarei a vereda.

72

RIFAM.

Vossas borbulhas me comem,

bom cristam quasi baru,

soes por quem disse Jesu:

— Pesa-me, porque fiz homem.

Soes sem fee, sem compaixam,

soes muito mao pagador,

soes mui negro de carão,

soes de negra condiçam,

gracioso sem sabor.

Soes galante de palomem,

cortesãao de Barzabu,

soes por quem disse Jesu:

— Pesa-me, porque fiz homem.

Fim.

Soes ũu bruto animal,

belfa quasi tartaruga,

soes ũu corvo carniçal,

soes ũu demo infernal,

nom sei quem de vós nom fuja.

Soes danado lobisomem,

primo d' Isaque Nafu,

soes por quem disse Jesu:

— Pesa-me ter feito homem.

73

ESTAS OITO TROVAS FEZ ALVARO

DE BRITO PESTANA A EL-REI DOM

FERNANDO, NAS QUAES METEO

O SEU NOME E LEM-SE DE

TANTAS MANEIRAS,

QUE SE FAZEM

SESSENTA E

QUATRO.

Forte, fiel, façanhoso,

fazendo feitos famosos,

florecente, frutuoso,

fundando fiis frutuosos.

Fama, fe, fortalezando,

famosamente florece,

fidalguias favorece,

francas franquezas firmando.

Exalçado, excelente,

ensinados estimando,

espritual evidente,

eresias evitando.

Em Espanha esmerado

espelho, esclarecido,

especial, escolhido,

estremado em estado.

Rei real, reglorioso,

reforçando receosos,

real rei remuneroso,

refreando revoltosos.

Ricos regnos recobrando,

ricamente resprandece,

redobrado remerece,

realissimo reinando.

Notem notoriamente

nestes notados notando,

nooto nestas novamente,

notem-no noteficando.

Notefiquem-no notado,

necessario nacido,

nobrecente nobrecido,

nobre nome nam negado.

Alto, alto, aumentado,

alto autor avondoso,

alto amante amado,

alto auto animoso.

Animo angelical,

altas altezas avendo,

altos altos abatendo

a Alexandre, a Anibal.

Merece maximo mando,

manifico maioral,

maiores mandos mandando,

mauno, modesto, moral.

Mostra-se merecedor,

merece mais melhorias,

merecendo monarquias,

merecente mandador.

De Deos dom deliberado,

dominante, dadivoso,

de Deos dino doutrinando,

dominando dereitoso.

De desejo devinal

descompassos defendendo,

diabruras desfazendo,

de dominius doutrinal.

Fim.

Onores ofeciando,

obsoluto ofecial,

ofeciaes ordenando,

onrador oniversal.

Ousado ordenador,

onestando ousadias,

orem-lhe oras, omilias

ò onrado onrador.

74

ESTOUTRAS OITO FEZ À RAI‑

NHA DONA ISABEL, SUA

MOLHER, DA MESMA MA‑

NEIRA E SAM EM

CASTELHANO.

Esclareces exalçada,

em Europa enlegida,

esperante esperada,

estrelha esclarecida.

Esplandor espritual,

electa espectativa,

especta, executiva,

estrema, esencial.

Leona, leda, loçana,

luminante lumbradora,

levantada, livre, lhana,

liquedada libradora.

Loança lhena lhamada,

lindamente lustrida,

lesta, limada, luzida,

loen, loente loada.

Ilustrissima jurada,

justamente influida,

incita justificada,

jentileza infenida.

Imagem imperial,

inmensa, impetrativa,

jenerosa, inventiva,

industriosa, igual.

Suprema, suave, sana,

serenisima senhora,

suma, salda, soverana,

sobrimante sopridora,

solene solenizada,

solenemente servida,

sacra, secreta, sentida,

subiendo siempre salvada.

Altissima, abastante,

adversidad amansaste,

amando alto amante

agras artes alhanaste.

Altezas, amor alcanças,

altivezas abaixando,

animosas animando

azes artas abundanças.

Beatisima bondad,

beatisima bonança,

beatisima beldad,

buen brason, buena balança.

Buscas brandezas beninas,

benenidad brasonando,

beneficios buscando

basteces buenas bastidas.

Excelsa examinante,

espanholes ensenhaste,

esguardada, elegante,

elh' estado exalçaste,

esforçando esperanças,

el eterno esperando,

el estilo esguardando,

esquivando esquivanças.

Fim.

Libertaste libertad,

levantaste la loança,

lealtaste lealtad,

letificas la liança.

Limas las lenguas latinas,

loas lindezas limando,

liberalmente librando

latino loor lominas.

75

TROVAS D' ALVARO DE BRITO

PESTANA, EM LOUVOR DE PERO

DIAZ, ESCRIVAM D' ANTE

O CORREGEDOR

DA CIDADE DE

LIXBOA.

Todos mui calados sejam

por bem ouvir e escuitar,

todos venham ver e vejam

como meedem e varejam

ũu que quero decrarar.

Estes todos numerados

do conto dos escrivãaes,

do civel, crime contados,

e assi doutros julgados,

e tambem tabaliãaes.

Antre todos escolhido

é este que vos direi:

Pero Diaz é havido

por homem que merecido

tem a Deos e a El-Rei.

A Deos tem as perfundezas

onde mora Barrabas,

lá tem cosas e riquezas

e tambem nas defesas

que partem com Satanas.

E tem mais ũa herdade

que houve com condiçam

de nunca falar verdade,

nem tambem a seu abade

em nenhũa confissam.

Tem oficio na cozinha,

das caldeiras mexedor,

sobre lombos de sardinha

bebe mais çumo de vinha

do que leva ũ tenor.

Tem mais, rindo e folgando,

por homem de mui bom tento

suas bochechas inchando,

oficio d' estar soprando

o fogo d' u dam tormento.

E mais é pousentador

de todolos que lá vam;

com rosto triste d' amor

os recebe pola mão,

porque lá tem gram favor.

Os quaes leva como damas

sô color de repousarem,

em fogo de vivas chamas

lh' ordena barras e camas

por se melhor aquentarem.

É desposto pasteleiro

do Arcanjo Lucefel,

de Barzabu carniceiro,

magarefe verdadeiro,

grande meestre de cristel.

Item mais é triagueiro

dos abismos boticairo,

faz a prova sem parceiro,

dá-vos purga sem dinheiro,

que vos é mui gram repairo.

Nos abismos sempre mora,

mas vem cá fazer serviço

polo qual su' alma chora,

e diz que muito maa hora

se meteo no seu cortiço.

Ja mudou a condiçam,

a Deos graças todos demos,

convertido de rezam

vos escreve o si por nam

assentando falsos termos.

De roim tem aparelhos,

o esprito tem malino,

de maçãas, d' escaravelhos,

com pimenta de coelhos

vos faz ambar muito fino.

Outras mil composições

vos faz desta guisa feitas,

tudo passa com razões,

porque tem tais condições

destes casos mui perfeitas.

Sabe-vos mui bem o canto

dos erros judiciaes,

porque o seu corpo santo

tem-nos em custume tanto

que trespassa seus iguaes.

É-vos tam bom tintoreiro

que nam foi melhor Gabai,

por quem lhe dá mais denheiro

faz do preto, mui ligeiro,

ũu mui fino verdegai.

Luita bem polo travessa

e tambem por sacalinha,

por quem dinheiro arrevesa

sua mão com grande pressa

mete logo antrelinha.

Nega sempre a verdade,

escreve sempre mentira,

porqu' a condiçam da herdade

foi assi e bem se sabe:

perguntem Duarte Xira,

perguntem Sabastiam,

perguntem Heitor Lamprea,

se é este o escrivam

e mais falso e mais bulram

que no mundo se nomea.

Perguntem a seu cunhado

e a todos em jeral,

vejam ũs autos: damado

ũu judeu, que foi queimado

no Ressio por seu mal.

Perguntem a Dom Joham,

d' Abranches é nomeado,

e ò conde seu irmão,

e mais quantos aqui sam,

salvo Fernam Penteado.

Mem Roiz m' esquecia,

porque nam é magoado,

mas pero mui bem seria

perguntar-lhe o que sabia

deste corpo sem pecado.

Porqu' ee homem que diraa,

assi Deos em bem m' acabe,

o que disso saberaa

e nam no dovidaraa

de dizer-nos o que sabe.

Deos lhe dá por galardam

o inferno para sempre,

pero, com tal condiçam

qu' ele seja, e outro nam,

o qu' as almas atormente.

Ele diz que é contente

do partido aceitar,

polo qual quer entramente

cá andar antre a jente

começar-se d' ensaiar.

Ora leixemos estar

o qu' a Deos tem merecido,

venhamos a decrarar

o que lh' El-Rei deve dar

polo ter tam bem servido.

Deve-o primeiramente

mandar bem apousentar

na casa de muita jente,

onde estê seguramente

com bom grilhão e colar.

A qual casa lhe daram

por tres anos assinados,

porque crie bom caram,

na qual bem o serviram

com conservas de privados

este tempo, porque saiba

o bem dos atribulados

e porque parte lhe caiba

e goste daquela raiva que

têm os encacerados.

Depois dele haveram

piadade os humanos

e dahi o tiraram

com grande voz e pregam

que decrare seus enganos.

Levá-lo-am passeando

dereito por seu caminho,

de seu cabresto tirando

a guia que for guiando,

ond' estaa o pelourinho.

E depois que lá chegar,

sem detença nem tardança,

por se mais nunca coçar

ali lhe faram leixar

sua destra mão da lança.

Porque nam mate nem feira

ja mais dos que mortos tem,

em dia de terça-feira

se terá esta maneira

porqu' as jentes vam e vem.

E dali o levaram

com diligencia, cuidado,

aa parte do aguiam

e de juro lhe daram

ũa casa sem telhado,

que tem paredes e cume,

estaa posta em bom chão,

na qual nunca fazem lume

por rezam que nam defume,

mas enxugue os qu' ali vam.

Se s' houver por agravado

das condições da pousada,

mui prestes seja tornado

oo pelourinho e levado

aa cabeça ser cortada.

E feito em quatro partes

e cinco com a fresura,

daram fim a suas artes

e prazer a muitas partes,

a que ele deu tristura.

A cabeça lhe poram

escontra o vendaval,

aa porta da rolaçam,

e tambem o coraçam

com que cuidou tanto mal.

Seus quartos lhe partiram

pelas casas d' u julgarem,

porque qualquer escrivam

saiba que tal gualardam

lhe daram se assi usarem.

Isto tem bem merecido

a dous reis que mortos sam,

sem de quanto tem servido

nunca ver nem ter havido

nenhũa satisfaçam.

Mas praza ao Rei Devino

que ponha no coraçam

deste nosso rei benigno

que de tudo o que for digno

lhe mande dar gualardam.

76

TROVAS D' ALVARO DE BRITO

À MORTE DO PRINCIPE

DOM AFONSO, QUE

DEOS TEM.

Morto é o bem d' Espanha,

nosso Principe Real,

chora, chora, Portugal,

choremos perda tamanha!

E carpindo lamentemos

dous, em ũu triste responso:

rei e principe choremos

Dom Afonso, Dom Afonso.

Oh que morte tam estranha,

oh que nojo, oh que mal!

Chora, chora, Portugal,

choremos perda tamanha!

Oh que queeda tam sanhosa

pera chorar e carpir!

Oh que queeda tam danosa,

que nos fez todos cair!

Oh quanta nobre companha

sente tristeza mortal,

chora, chora, Portugal,

choremos perda tamanha!

Choremos, que tal caida,

por nossos grandes pecados,

nos leixa desemparados,

mata toda nossa vida!

Que pesar nos acompanha,

que nunca foi visto tal,

é perdido Portugal,

choremos perda tamanha!

Choremos ũu inocente,

ũa sancta creatura,

que por nossa desventura

morre tam supitamente.

Oh que mal, que nojo, sanha,

que desemparo mortal,

nota todo Portugal,

choremos perda tamanha!

Fim.

Morreo nossa defensam

e morreo nossa liança,

morreo nossa esperança

de nom vir a sogeiçam.

Assi nos desacompanha

nosso Senhor natural,

o Senhor celestrial

o receba em sa companha!

77

LOUVOR D' ALVARO DE BRI‑

TO A ŨA SENHORA.

Graça de bem parecer

vos dá tanto poderio

que se nam pode saber

dama que per merecer

vos nam cate senhorio.

Vossas grandes perfeições

mui sobejas, nam danosas,

faz de todalas nações

tirálas openiões

das que se têm por fermosas.

Quem poderá presumir

nacerdes tal creatura,

qu' o que mais vezes vos vir

nam saberaa resumir

vossa menos fermosura.

E que o mundo vos gabe

e por boa vos afame,

louvar tanto vos nam sabe

quanto louvor em vós cabe,

pero sobejo vos ame.

Dizei-me per que maneira

em vós fale ousadamente,

se das fremosas primeira

soes, e serês derradeira

mais afamada da gente;

nom resguardando pessoa

nacida, nem se conhece,

que per grado de tam boa

merecesse tal coroa

qual vos dada ser merece.

Nam pode nacido ser

dino de tanta vertude,

que soomente em vos ver

possa tal esforço ter,

que dante vós nom se mude.

Vossa gentileza tanta

e beldade nam cũmũa

aos presentes espanta,

e às fremosas quebranta

enveja de cada ũa.

Aos que se vai mostrando

vossa fremosa posança

as vertudes decrarando,

de todos sempre tomando

mais d' amor que d' esquivança,

faz cuidar nam ser tam forte,

obrando de tal crueza,

que vencer-vos possa a morte,

nom leixando quem soporte

tam sengular gentileza.

Ser fortuna tam ousada

é poder nom comparado,

nom devendo ser forçada

vida de todos louvada,

de louvor nom acabado.

Ca perdas tantas e taes

vossa morte causaria,

que a vida dos mortaes

com sas raivas desiguaes

morrendo melhor seria.

Tam perfeita pareceis

ao que menos parece,

que bem vem que tal sereis,

qu' aa mais fremosa fareis

por vossa vista refece.

Ordenada vossa cara

sobre todas graciosa

sem fim se mostra tam crara

que nossos olhos empara

de vista nam luminosa.

Tal pareceis em dormir

qual pareceis ser esperta,

sem de vós nunca partir

ũa frol, que consentir

nunca quis doutra referta.

Ja tal nacestes, que posto

as cousas mudança façam,

nunca mudaes vosso rosto

d' ũ parecer sobreposto,

que nacidos nam alca[n]çam.

Nome e grandes façanhas

de vosso bem tam profundo

conhecidas e estranhas

as de mais perfeitas manhas,

de sa fama neste mundo.

Tanto que de vós se faz

os homens tam engalhados,

que per natureza os traz,

que padecendo lhes praz

serem a vós sogigados.

Com fremosura sobeja

tanta bondade vos vejo

que meu sentido peleja

como mais perfeito seja

o servir que vos desejo.

E peroo merecedor

d' haver tanto bem nam sam

sem haver de vós favor,

presunçam de servidor

me requer alteraçam.

U nam mereço falar

em vós sendo tam perfeita,

e querendo-vos louvar,

cabe mais injuriar

segundo rezam dereita.

Saber tanto nam podendo

em tal caso ser agudo,

que em vos louvar querendo,

fale em vós nam desfazendo,

ficando menos sesudo.

O mundo vos amaraa

nom segundo vosso bem,

mas porem nojo vos daa,

desamado sempre jaa

vos amo mais que ninguem.

Afirmando mais agora

acerca daqueste verbo,

ja nam posso ser afora

de serdes minha senhora

e eu sempre vosso servo.

Fim.

Falar em vossa bondade

vosso estado mo defende,

por nam dar autoridade

ao que a humanidade

juizo dar nam entende.

E pois louvar-vos nam sei,

por louvor calar me quero,

peroo se cousa falei

em que desprazer vos dei

perdam peço qual espero.

78

OUTRAS SUAS A ESTA

SENHORA.

Ja cousa nam sei que fale

acerca de vos amar

e menos nam hei que cale

nem que me possa prestar.

Fortuna é contra mim,

vós também,

a vida que me sostem

é pior que minha fim,

que tarde vem.

Rezam quer dezir-vos eu

sete sentimentos tristes,

que no sentimento meu

sento que vós repartistes.

Estes que sam departidos

por escrito,

afirmados por meu dito,

com força de meus sentidos

e esprito.

O primeiro sentimento

é o ver, e nam vos vendo,

dobrar meu padecimento

apartado de vós sendo.

Ca por vos nam ver s' aterra

minha vida,

com pena sobrecrecida

de nojos, danos e guerra

estroida.

O sentimento segundo,

desejo sem desejar

mais cousa daqueste mundo

que vosso gualardoar.

E desejando me fica

seu contrairo

movimento em desvairo,

que de todo danefico

meu repairo.

O sentimento terceiro

é falar nam vos falando,

havido por cativeiro

em que vivo pejorando.

Que sento, se vos falasse,

a querela

que sofro por vós, donzela,

qu' em falando se tirasse

parte dela.

E o sentimento quarto

é mortal temor, temendo

perder-vos donde nam parto

serviço forçar fazendo.

Que por vosso me obriguei

de guisa tal

que vida sem ser leal

é pena que sentirei

mais que mortal.

E o sentimento quinto,

contemprar contempraçam

em vosso estado destinto

de vossa conversaçam.

Donde gram pena m' atura

mui danosa,

sabendo que soes fremosa

sobre toda fremosura

e de mim sanhosa.

Sentimento seisto tenho

receo de falecer

este viver que mantenho

e perda vos receber.

Perda de tal servidor

é de sentir,

falece em vos servir,

sem outro tal amador

restetuir.

O sentimento seteno,

querer querendo prisam,

u forçadamente peno

sem sair de sogeiçam.

Ca por meu contentamento

descontente,

vivo vida padecente,

nam podendo ser isento

nem servente.

Fim.

Todos estes sentimentos

sento com vossa crueza,

nam por meus merecimentos,

nem sem vossa gentileza;

mas assi de nacimento

sam fadado,

que per caso m' ee forçado

conseguir o mal que sento

sem meu grado.

79

COPRAS D' ALVARO DE BRITO

PESTANA, ESTANDO PERA

SE FINAR.

Lá t' arreda, Satanas,

Cristo Jesu, a Ti chamo,

a Ti amo,

Tu, senhor, me salvarás.

O sinal da cruz espante

minha torpe tentaçam,

com devaçam

espero d' ir adiante.

Interrogaçam a Nossa

Senhora.

Ó Virgem madre sagrada,

de sobre todos Deos vivo,

eu, cativo,

Te chamo minha vogada.

Em Ti foi humanidade

unida com Deos eterno,

do inferno

me livre ta santidade.

Que senta grave paixam

d' homem fraco, pecador,

merecedor

de maior perseguiçam.

Se contempro com bom tento

que Deos quis morte tomar

por me salvar,

meu pesar por prazer sento.

Aquestas taes grorias vãas,

que o mundo dá e toma,

sam em soma

todas tristes e vilãas.

Enganosas fantesias

sam dominios, riquezas,

e tristezas,

consomidas senhorias.

Procuraram meus desejos

d' haver premios mundanos:

muitos annos

com trabalhos mui sobejos,

servi e segui mortaes;

deram-me por gualardam

fraca raçam,

a menor de meus iguaes.

Dá-me Deos mais que mereço,

pois que me dá conhecer

seu poder

e mais bem do que mereço.

Que s' i muito mais me dera,

de mais me tomara conta,

tal afronta

grandes danos me fizera.

Mas contudo nam m' escuso

de pecar, que nam m' atrevo

quanto devo

a Ti, Deos, a que me acuso!

Quantas mercês me tens feitas

sam de mim mal gradecidas,

mal servidas,

recebidas, nam aceitas.

Se pudesse sujuzgar-me

ò que razam me convida

nesta vida,

folgaria apartar-me

das afrontas mundanaes,

que me revolvem o siso,

sem aviso

dos acidentes mortaes.

Vou-me de dia em dia

atras esta vaidade,

de vontade,

esperando melhoria.

Sam no cabo da jornada

pera caminho trabalhado,

desviado

da passajem desejada.

Em tal medo m' ofereço

aa mui alta magestade

da Trindade,

por pecador me conheço.

E pois Lhe prouve salvar

e remir os pecadores,

porque louvores

folguei sempre de Lhe dar.

Dos que ham mundano bem

poucos a Deos agardecem,

nem conhecem

donde nem como lhe vem,

nem que o ham de leixar,

que seja seu patrimonio

com demonio

que nam cansa de tentar.

Asperezas sam mudanças

de pecados a vertudes

e saudes

sam as boas confianças.

Vertuosa continencia

com boa conversaçam,

com salvaçam,

recebem da Providencia.

Mas que farei eu, sugeito

a minha vontade maa,

que quer que vaa

errado contra dereito.

E em mal endurecido,

coitado, nam sei que faça,

se de graça

mais certo nam sam tangido.

Lembra-me tempos passados

todos de triste viver:

sei morrer

senhores d' altos estados,

sei morrer o nosso Rei

Dom Afonso mui amado,

como criado

sa morte senti, chorei.

E que seja choro vãao

e temporal desconforto,

sei ser morto

mui catolico cristão.

Torno-me deste caminho,

consiro em minha morte

de que sorte

me saltará no focinho.

Fim.

Na qual partida confio

em Deos trino, criador,

meu Redentor,

com que m' abraço e lio,

e protesto sempre crer

a santa fe firmemente,

mais contente

de prove que rico ser.

80

CANTIGA D' ALVARO DE BRITO POLO

PRINCIPE DOM AFONSO, QUANDO

ESPERAVA POLA PRINCESA, E

ESTE PRIMEIRO PEE, QUE

DIZ SIM PECAR, AS MES‑

MAS LETRAS DIZEM

PRINCESA.

Sin pecar

vos amo más que mi vida,

si tarda vuestra venida,

¿ que haré al dessear?

San todos mis pensamientos

em vos contemplar muy bivos,

siento graves sentimentos

de gran soledad esquivos

por amar

vuestra beldad infinda.

Si tarda vuestra venida

¿ que haré al dessear?

81

ALVARO DE BRITO

A MECIA D' ABREU.

Vossa vergonha m' apressa,

fremosa prima d' Abreu,

estas cinco da promessa

nam digaes que as fiz eu.

Louvarei vossa figura

em todas tee derradeira,

digo logo na primeira

que vossa firam fremosura

das damas é cobertura.

Na segunda que direi?

Ca por muito que vos gabe,

acabar nam poderei

quanto louvor em vós cabe.

Do que muito soes louvada

todos o dizem de praça,

que vossa comprida graça

é cousa nam comparada

que per Deos foi ordenada.

Na terceira se requere

decrarar vossa vertude,

a lembrança me refere

aqueste que sobre acude.

Vossa bem aventurança

naquesta presente vida

vos deu fora de medida

acabada temperança,

nom de fengida mostrança.

Nam posso louvor dizer

na copra presente quarta

que possa satisfazer

ao mais qu' em vós s' aparta.

O Senhor Deos vos quis dar

vertude de castidade

com tanta honestidade,

que por tam curto falar

se nam pode decrarar.

Fim.

E também na copra quinta

ũu louvor tratar vos quero,

queira Deos que vos nam minta

em quanto dizer espero:

sobre mui grande bondade

sempre jamais vos atura

continuada mesura

e tambem leda vontade

de sempre falar verdade.

82

GROSA D' ALVARO DE BRITO,

SOBRE TERRIBLES COI‑

TAS DESSEO.

Terribles coitas desseo,

vós nunca me daes vagar,

feris-me tam sem receo

que minha morte nam creo

que possa muito tardar.

Amo e praz-me servir

a quem meu querer ofende,

por me dar nojo sentir,

minha vontade partir

de a servir nam entende.

Linda dama, cujo sam,

yo vos quero preguntar

se vos parece razam

trabalho sem gualardam

me quererdes ordenar.

Como quem gram pena sente,

piadade vos demando

ante que mais s' acrecente,

pois vertude nam consente

sem culpa viver penando.

E com meu grande penar,

pregunto a vós, senhora,

se me podereis deixar

servir-vos sem pena dar

a quem tanto vos adora.

Cabo de sengular grorea

seria ja pera mim,

dina de ser em memoria,

haverdes vós por vitorea

desordenar minha fim.

Muitas vezes consirando

em vossa gram fermosura

u de vos ver m' apartando,

finadamente amando,

maldigo minha ventura.

Que de vos ver e falar

dias e tempos m' arreda,

mui caros de soportar,

sabendo que meu pesar

vos nam faz triste mas leda.

D' u partir com desatento,

sem vós segui minha via,

mas com gram padecimento

escrita no pensamento

fuestes em mim companhia.

Tenho levada tal pena

desejando vossa vista

que tristeza nam pequena

minha vida desordena

vós de mim sempre benquista.

Mostrastes crueza tanta

contra mim vosso sogeito,

que meu sentido s' espanta

e o que mais me quebranta

dardes contrairo respeito.

Mas agora bem seria

de cessar meu mal esquivo,

pois que vossa senhoria

sabe que nam poderia

partir de vosso cativo.

E que de vós recebesse,

por de mim serdes servida,

gualardam qual merecesse,

porque menos padecesse

em vos amar minha vida.

Que sequer de tanto mal

que me fossedes dexando,

porque meu dano mortal

nam fosse descomunal

mais desfavor esperando.

Sam a taes termos chegado,

por vossa crua vontade,

que ja desassemelhado

ando tam triste tornado

que é d' haver piedade

de mim vosso, nam alheo,

se vossa mercê o olhar

polo mal em que me veo,

senhora, com outro meo

me deveis remediar.

Tenho-vos bem refertados

todos meus merecimentos

polos trabalhos passados

em lugar de gasalhados

com mui asperos tormentos.

E peroo meu refertar

acende mais padecer,

pois me nam aconselhar,

yo vos quero preguntar

que querês de mim fazer.

Fim.

Minha grosa s' acabando

daquesta velha cantiga

a tempo que nam abrando

meu triste cuidado, quando

mais força d' amar obriga m' obriga.

Ó raivas descomunaes,

graves coitas de pesar,

peço-vos que me digaes,

enquanto me nam mataes,

se me podereis deixar.

83

PREGUNTA D' ALVARO

DE BRITO.

Dama que faz gasalhado

e favores

a galante por amores,

que é com outra casado,

pregunto se faz pecado

ou vertude,

todo cortesam m' ajude

sem falar afeiçoado.

Resposta do Coudel-moor.

Quem mais perde por servir

mais obriga sua dama,

polo qual rezam a chama

a seu mal nam consentir.

Mas ante todo favor

lhe deve ser outorgado,

ca dito temos d' autor

que Dios al buen amador

nunca demanda pecado.

84

CANTIGA D' ANTOM DE MONTORO

EM LOUVOR DA RAINHA

DONA ISABEL DE

CASTELA.

Alta Reina soberana,

si fuerades ante vos

que la hija de Sanct' Ana,

de vos el Hijo de Dios

rescibiera carne humana.

¡Oh bella, sancta, discreta,

con espirencia se aprueve

que aquella Virgem perfecta

la divinidad ecepta

esso Le deveis que os deve!

Y pues que por vos se gana

la vida y gloria de nos,

si no pariera Sanct' Ana

hasta ser nascida vos,

de vos el Hijo de Dios

rescibiera carne humana.

 

85

D' ALVARO DE BRITO A ANTON

DE MONTORO, SOBR' ESTA

CANTIGA QUE FEZ

COMO HEREJE.

De vós, Montouro, brosnada

vi esta vossa cantiga,

que da Toura mui antiga

me parece ser forjada.

Polo qual vos ousaria

de dizer, por esta via,

qu' o que tenho de vós visto,

crerdes pouco em Jesu Cristo.

menos em Sancta Maria.

Que trovês tam d' avantajem,

como tendes grande fama,

tras a orelha achei escama

donde vem vossa prumagem.

Vós mostraes por vossa mão

que enxertado em cristão

soes em fazer ũu tal gabo,

tentando como diabo

a Rainha tam em vão.

Vós de vós mostraes agora

vosso mal donde vos vem,

igualando o mal co bem,

a serva com a Senhora.

Mas se vós dissereis

tal nos reinos de Portugal,

logo foreis, Dom Roupeiro,

cum baraço d' azeitero

oo fogo de Sant Barçal.

Vós a filha de Sanct' Ana

nomeastes tam em soma,

que daqui craro se toma

vossa lingua ser marrana.

Tal modo de brasfamar

eu m' espanto Deos passar,

por fazerdes tal parelha,

como a boca tras a orelha

vos nam pôs em no falar.

Vós na lei soes homem velho

da cabeça atee òs pés,

mui amigo de Mousees

e novo no Evangelho.

Vosso siso parvoeja,

pois que a Virgem coteja

co a serva que A roga,

sendo doutor na sinoga

sabeis pouco da igreja.

Isto adevinho co dedo,

porque o vejo por olho,

que nunca houvestes remolho

da pia, tarde nem cedo.

Ca segundo os sinaes

que de vós cá nos mostraes,

que a todos al pareça,

sem capelo na cabeça

me parece que andaes.

Pois em fim de vossos dias

mostrais o fio do pano,

nam digo que soes marrano,

mas neto de mil judias.

Se taes cousas acontecem

e passam, como parecem,

sem castigos, taes louvores,

feitores, consentidores,

igual a pena merecem.

Como homem mui increo

comparastes tam em vão,

como quem com sua mão

cuida de tomar o ceo.

Quem de Deus foi concebida,

d' ab enicio escolhida,

fazeis vós igual a sorte,

pondo a vida com a morte,

a morte com nossa vida.

A Virgem sancta e pura,

muito mais que dia craro,

comparaes com quem comparo

a ũa triste noite escura.

Como campo com a serra,

ou de grande paz da guerra

maior deferença tem

do que é do mal o bem,

ou dos altos ceos a terra.

Fim.

Quanto menos ũ ouçam

é de Deos em grao perfundo,

tanto menos todo o mundo

é em sa comparaçam.

Pola verdade se prove

que tudo quanto se move

à Reinha de Castela

é tam pouco pera ela

como de Deos a ũu prove.

86

GROSA DESTA CANTIGA DE MON‑

TORO, FEITA POR ALVARO

DE BRITO, ENDEREN‑

ÇADA A NOSSA

SENHORA.

Alta Reina soverana

Quem, em os ceos nem na terra

nam cabe, em Vós s' encerra

tomando carne humana,

Deos e homem se resume,

vindo do mui alto cume,

do gram seo de Deos Padre,

cuja filha soes e madre,

crara luz de nosso lume.

Si fuerades ante Vos

naqueste mundo nacida,

salvaçam de luz de vida

mais cedo dereis a nós.

De Vós nossa redençam,

de Vós nossa salvaçam,

Virgem sancta, mui honesta,

de Vós veo manifesta remir

nossa geeraçam.

Que la hija de Sanct' Ana

Vos chamem mui excelente,

criada primeiramente

fostes da vida mundana.

E provo-o por Salamam:

ante secula creata sam,

e assi o cremos nós

que depois de Deos soes

Vós sobre quantas cousas sam.

De Vos el Hijo de Dios

quis nacer, por nos salvar

humana carne tomar

do virginal ventre de Vós.

Vós, Senhora, soes o manto

que nos livra de mal tanto

por serdes do Filho madre

e a filha de Deos Padre,

esposa do Esprito Sancto.

Recibiera carne humana

nam podera Deos fazer

senam d' osoluto poder,

naquesta vida mundana,

senam Vós que em sa sina

antr' as molheres mais digna,

chea de graça comprida,

de Deos Padre concebida

ficando Virgem divina.

Oh bella, sancta, discreta,

Vos fez Deos per excelencia

da devinal Providencia

arca cerrada, secreta.

Depois de Deos a melhor,

depois de Deos a maior

das grandezas em grandeza,

sobre todas em alteza

depois de Nosso Senhor.

Con espiriencia se prueve

per vossa grande humildade,

per vossa gram piedade,

que de Vós nunca se move.

Per cujo merecimento

foi de Vós o nacimento

do Filho de Deos eterno,

que das penas do inferno

foi o nosso livramento.

Aquella Virgen perfecta,

Madre de nosso Mexias,

de que falam as profecias,

que foi de Deos escolheita,

esperança dos pecadores,

perdam de nossos errores,

Rainha de todolos Anjos

e dos Santos e Arcanjos,

remedio de nossas dores.

La divinidad ecepta

nem nos ceos, nem neste mundo,

de tam alto bem profundo

ninguem foi tanto perfeita,

ninguem foi em humanidade

de tam sancta santidade,

humana tam gloriosa,

tam humilde e graciosa,

cuberta de novidade.

Esso Le deveis que Os deve

ao mais perfeito Bem,

que ninguem, se Vós nam, tem,

nem teraa nem nunca teve.

Ca Vós soo sem ter igual

Vos fez Deos senhora tal,

tam fermosa e excelente,

mais que sol resprandecente,

fonte crara, devinal.

Y pues que por Vos se gana

nossa vida, nossa groria,

escusado é memoria

de rainha castelhana.

Porque hoje vivirá,

de menham nada seraa,

e todo vivo contempre

qu' o vosso louvor por sempre

jamais nunca cessaraa.

La vida y gloria de nos,

Rainha de todos e minha,

de nossos males meezinha,

nam é outrem senam Vós.

Vós soes luz de nosso dia,

conforto e alegria

dos tristes desconfortados,

esperança dos errados,

que nos salva e que nos guia.

Si no pariera Sanct' Ana,

nam leixareis de nacer,

pois ante do mundo ser,

ereis divina, humana.

Sem ser nacida, criada,

ereis ja sancta chamada

antes do mundo ser feito,

Senhora, per cujo respeito

soes dos Anjos adorada.

Hasta ser nascida Vos,

os Sanctos Padres estavam

no limbo, donde esperavam

redençam de todos nós.

Vós mostrastes a carreira

da luz clara, verdadeira,

que nos abrio o caminho

daqueste mundo mizquinho

pera a gloria mui inteira.

De Vos el Hijo de Dios,

por repairo e salvaçam

da humanal geeraçam,

tomou carne humana em Vós.

De Vós quis por nos remir

que podessemos sentir

esta grande maravilha:

que fosseis madre e filha

d' O qu' ouvesseis de parir.

Fim.

Recibiera carne humana,

de ninguem Deos nam pudera

senam de Vós, que fizera

sancta, divina, humana.

A Vós dêm todos louvores,

Rainha de reis, senhores,

perdam de nossos pecados,

salvaçam dos condenados,

esperança dos pecadores.

 

87

DE NUNO PEREIRA À SENHO‑

RA DONA LIANOR DA SILVA,

PORQUE EM TEMPO QUE

ELE A SERVIA SE

CASOU.

Pois que dama tam perfeita

consentio de a casarem

e quis ser d' outrem sogeita,

os servidores qu' engeita

têm rezam de praguejarem.

Oo crueza tam sobeja,

se for doona tal donzela,

quanto lhe desejo seja:

praza a Deos que tal se veja

como m' eu vejo por ela.

Seja muito na maa hora

um tam triste casamento,

pois se vai do paço fora

a senhora, minha senhora,

por meu mal e seu que sento.

Eu sento ver-me morrer,

sento vê-la enganada,

sento vê-la padecer

e sento vê-la vender

sô color d' encaminhada.

Pois se pôs em tal afronta

de querer saber de rocas,

de meadas tome conta,

e saiba quanto se monta

aa noite nas maçarocas.

Ainda a vejam coçar

seu marido na cabeça,

ainda a vejam criar

galinhas e as lançar

porque mais doona pareça.

Vaa morrer, pois me matava,

antre os soutos laa na Beira,

pois servi-la nam prestava,

pene laa quem pena dava

cá oo seu Nuno Pereira.

Donzela mal maridada,

que se nos vai desta terra,

Deos lhe dê vida penada,

porque lhe seja lembrada

minha pena lá na serra.

Pois que leixa com tal chaga

o meu triste coraçam,

eu lhe lanço mais por praga

que chaves na cinta traga

com ceitis em gram bolsam.

Pois se nam doe do marteiro

que me daa e nam lhe pesa,

ainda conte dinheiro,

e saib' eu qu' oo despenseiro

toma a conta da despesa.

Que viva sempre sentido

co cuidado sempre nela,

vingar-m' -á laa seu marido,

que vestido e desvestido

ha-de ter poder sobr' ela.

Pois casou com tal trigança

quem a si mesmo mal quer,

que me tirasse esperança,

nom quero maior vingança

qu' oo chamar minha molher.

Eu vivirei padecendo,

nunca mais servirei dama,

mas por s' ir arrependendo

ele com ela jazendo

lhe vir as costas na cama.

E quando se lhe virar,

diga-lhe: — Quero dormir!

Pola mais desnamorar

comece logo a roncar

e ela nom ouse bolir.

Por alcala vinho beba

com door de madre que tenha,

porque mais pena receba,

ele lhe tenha manceba

com que nunca ant' ela venha.

Tenha candea d' azeite

e lençoes gordos na cama,

crie seus filhos a leite,

antr' eles sempre se deite

que pareça mãi e ama.

Perder-m' -ei, mas mais perdida

será quem tal fim se deu,

cad' ano venha parida,

Deos lhe dê tam triste vida

com' eu tenho polo seu.

E pene tam de verdade,

com' eu peno cada dia

polo seu com saudade,

porque lhe doi a vontade

de quanto mal me fazia.

O marido lh' avorreça

e ele lhe queira mal,

um ò outro mal pareça

e com saudade padeça

por vivermos por igual.

Pois que minha vida ja

de todo prazer me priva,

folgaria qu' ela lá

padecesse, pois me dá

saudade com que viva.

Cabo.

Oo Furtuna, tu que mudas

na cousa noutra cousa,

daa doenças mui agudas

a que nam prestem ajudas,

nem jolepes oo de Sousa.

Porque nam possa casar

esta senhora de todas,

de si veja mao pesar

quem cantar e nam chorar

naquestas tam tristes vodas.

Ajuda de Francisco da

Silveira.

Eu teequi andei calado,

sem querer pragas lançar,

mas pois vós, senhor cunhado,

fostes lebre levantar,

quero-m' eu dotra vengar.

Sej' oo galante ipotente,

seja beijador mortal,

nunca sãao, sempre doente,

diante nam tenha dente,

nem queixal.

Na boca tenha tal cheiro,

que à legua nam s' aguarde,

e por lhe dar mor marteiro,

sempre lh' estê no poleiro

sem fazer cousa qu' alarde.

As gengivas tenha taes,

qu' arrevesse quem lhas vir,

por inda ver penar mais

quem minhas dores mortaes

fez sobir.

Seja mais tam namorado,

qu' haja ceumes do vento,

por qualquer olho lançado,

que lhe lance o convidado,

a meta logo a tormento.

Sobr' isto sempre avorrido

lh' estê na mesa e na cama,

seja antr' os homens corrido

e na guerra esbaforido

e de maa fama.

Ande vestido d' azul,

babe-se por mais arreo,

seja sem conto taful,

do bem parecer o sul,

e dos feos o mais feo.

Tenha tortalas queixadas,

cervees de cote traga,

camisas nunca lavadas,

da terra mal espulgadas

por moor praga.

Barrete pardo, frisado,

lhe vej' eu trazer em Junho,

e sobre bem encalmado

da grenha refoucinhando

co ela jogue de punho;

o cabelo sevilhano,

borzeguis marroquis roxos,

morda sempr' o castelhano,

vej' oo eu antes d' um anno

dos pees coxos.

Tenha cara tam medonha,

que supra por biarooz

alugue-a por carantonha,

porque nas festas se ponha

com ela medo feroz.

Seja tam mal assombrado

que dê olho a quem o vir,

çapato preto calçado

lhe vej' eu e engraxado

por mais rir.

Traga mais gibam d' Irlanda,

na moor força do Verãao,

com meas mangas d' Holanda,

por lh' a calma ser mais branda,

quando ventalo soãao.

Oos domingos calças bragas

do mesmo gibam aferre,

peugas brancas mais traga,

e por moor praga, as pragas

nom nas erre.

Por sem medida goloso

o vej' eu a todos tê-lo

e por d' outrem ja esposo

veja-lh' eu chamar potroso

perante ela e ele sê-lo.

Saib' eu mais que em seu logo

lhe meta quem perafuse

e por Deos fazer meu rogo

o roncar co sal no fogo

nam s' escuse.

Cabo.

E por mais desaventura

sua e vingança minha,

vej' eu sua fermosura

por este desta fegura

d' amores ser perdedinha.

Veja morto meu cuidado

por sua door nam sentir,

ou entam ja soterrado,

por nam ver meu mal dobrado

se tal vir.

Ajuda de Jorge da Silveira.

Se moiro por vos casardes,

se pena nisso recebo,

nom é senam por leixardes

os que deixaes, e tomardes

tal mancebo.

Se tomáreis cortesãao

louçam, gentil e galante,

nam praguejara meu irmão

contr' oo triste castelãao

de mao sembrante.

Por vós fezistes lembrar

a gentil mal maridada,

por vós havereis cantar,

e vós deveis de chorar

tal errada.

Sem ventura soes nacida

e eu por vos conhecer,

triste ee ja nossa vida,

seja jaa, pois perdida

quereis ser.

Cabo.

Milhor foreis vós, senhora,

como ereis sempre minha,

que ser sogeita agora

de quem vos ha-de ter fora

semp' em vinha.

Vós adubar-lh' a fazenda

e ele nam cure de vós,

nele nam haja emenda

e por ceumes qu' entenda

nos vingu' a nós.

88

TROVAS QUE NUNO PEREIRA

MANDOU A FRANCISCO

DA SILVEIRA.

Meu senhor e meu cunhado,

depois que vim de Lamego

fui descansado,

porque dei a meu cuidado

desengano d' assessego.

E sabeis em que maneira?

Nam me dá ja que me dem,

qu' aa derradeira

quem nam tem pees d' oliveira

nam cuide que nada tem.

Lá lograae vossos serãaos,

vossas damas e privanças

cos cortesãaos,

mas bom par de bois nas mãos

val seis pares d' esperanças.

Tambem sei que o sabeis

com outras cousas sabendo,

ja m' entendeis,

na reposta nam canseis,

ca tambem ja vos entendo.

Oh que enveja vos hei

a empuxõoes de porteiro!

Oh quam bem sei

ũu meter diante El-Rei

e entrar o derradeiro!

Hei mui grande saudade

do estar nũu pee aa mesa,

mas, na verdade,

nom ter muitos nũ herdade

d' oliveiras mais me pesa.

A vós faça Deos privar,

a mim guarde e defenda

de desembargar

e d' Alcaçova falar

e de Castro na fazenda.

Mais me quero ũ soo conchoso

de laranjas e limõoes

e com repouso

que preguntar onde pouso

oo d' Abreu sobre paixõoes.

Privar em cas da Rainha

Deos vo-lo deixe fazer,

e a mi na vinha

e regar na almoinha

em que tenho moor prazer.

Deos vos dê muita privança

com El-Rei nosso Senhor,

e a mi lavrança,

aguilhada em vez de lança,

vós paçãao, eu lavrador.

Se andaes lá namorado

faça-vos mui boa prol,

ca meu cuidado

é em fazer bom valado

e lavrar de sol a sol.

Por ter mais folgada vida,

lavro, cavo, quanto posso,

naquela ida

soube certo n' eespedida

qu' ee milhor o meu qu' oo vosso.

Pregunta.

E vós lá galantear

e eu com foce e padam,

vós damejar,

eu enxertos enxertar,

quem teraa menos paixam?

Vós na corte cortesãao,

eu com meu fogo e meu lar,

vós louçãao

e eu com açor na mãao,

qual é mais certo folgar?

O gingrar do meu caseiro

co chiote que traz roto,

par Deos verdadeiro,

qu' hei por prazer mais inteiro

qu' ouvir motes oo Zeimoto.

Lançar pulhas òs d' estrada,

tornando peroo casal,

e aa entrada

deitar a mãao pola quejada

nunca vistes prazer tal.

Cabo.

Ora lá vos avinde jaa

com vosso paç' em bo' hora,

que nam me daa

ja do bem nem mal de laa,

pois casou ũa senhora.

Deixai-me cá cos ceifõoes,

deixai-me cos podadores,

e sem paixõoes;

pera mim quero podõoes,

vós andai, senhor, d' amores.

89

PARENTESCO DE NUNO PEREIRA

COM DONA GUIOMAR DE CASTRO,

PORQUE QUERENDO-A SERVIR

LHE DISSE QU' ERAM PA‑

RENTES SEM O SER.

Que nós nos nam conheçamos

de tam estreita amizade,

senhor' , ambos nos criámos,

vós e eu nessa cidade.

E vosso pai e o meu

quatro giolhos, e nós

outro tanto, vós e eu,

soes a mi e eu a vós.

E a vossa mãi e a minha

ambas nũ lugar moraram,

ambas viram a rainha

e ambas se ja finaram.

Tambem eram nossos padres,

entrando por outro conto,

maridos de nossas madres,

nem mais nem menos, nem ponto.

E sam quasi vosso irmão,

ambos de ventre nacemos,

com cinco dedos na mão,

vede bem quanto seremos.

Ambos vimos de lugar

de que vindes, de que venho,

nem podiamos casar

se tivesseis o qu' eu tenho.

Fim.

Ambos d' ũa cousa somos

lá da parte decendentes,

e somos quanto nós somos

e ambos muito parentes,

de parentesco chegado.

Por esta mesma rezam,

como vos ja vai contado,

soes-me vós quanto vos sam.

90

TROVAS DE NUNO PEREIRA.

Ũu bem de muito prazer,

que ventura por si deu,

ordenou por caso seu

de se perder.

Todo bem que dá ventura

sempre dá voltas de mal,

muitas vezes caso tal

que pouco dura.

A Fortuna sempre cata

casos, tempos desvairados,

pera dar novos cuidados

com que mata.

O modo que sempre tem

ee que no tempo milhor

ali volta ser pior

o seu bem.

Sem cuidado do que calo,

sem me tal lembrar andava,

muito menos m' acordava

tal abalo.

A ventura mui sabida

me deu bem com sua ajuda,

o qual bem logo se muda

em triste vida.

Oh quem fosse o que falar

ũu tal caso bem ousasse,

que me tanto nam matasse

o sospirar!

Oh se nam tivesse pejo

com que descanso tivesse,

que alguem dizer podesse

meu desejo!

Que fará quem nada não

a ninguem ha-de dizer

o consigo soo sofrer

tal paixam!

Que grande padecimento,

que cousa pera sentir,

padecer e encobrir

o que sento!

Sinto mortal saudade

padecida só comigo,

sinto cousas que cá digo

na vontade;

sinto dor, mal encuberto,

que dizer nam ousaria,

meu descanso qual seria

não é certo.

Meu sentido nam repousa,

todo bem se me desvaira,

ũa cousa m' ee contraira

doutra cousa.

Tudo vejo ser contrairo

em a contra do que quero,

vejo morrer o qu' espero

sem repairo.

Pera mim morte s' ordena,

pera mim prazer se peja,

que direi que mais nam seja

de gram pena?

Pois nam deve de ser dita,

nem aproveita ser calada,

nom deve de ser falada

nem escripta.

Este mal escuro, forte,

tam caro de resestir,

faz viver e consentir

nova morte.

Porque moiro cada dia

sem saber aquesta fim,

o que vem melhor a mim

se me desvia.

E com isto mui cuidoso,

agastado d' esperança,

e cuidando, na lembrança

dovidoso.

E com estes sentimentos

sentidos com muito medo,

pola parte do segredo

fingimentos.

Que cuidado, que sentido,

pera quem em si padece

e que de fora parece

ser fengido!

Mostrando bravo mal manso,

com quanto sentir o tomo,

sem saber quando nem como

ter descanso.

Cabo.

Que descanso tomarei

ou que modo posso ter,

pera menos triste ser,

que o nam sei.

Senam se sonho sonhasse

que me via satisfeito

e no sonho bem perfeito

sempre tal sonho durasse,

que jamais nunca acordasse.

91

OUTRAS SUAS QUE ACABAM

SEMPRE EM DOS.

Que cuidados tam cansados

e tam sentidos,

e sentidos trabalhados

dos cuidados

donde nunca são partidos.

Meus desejos nam compridos

sam dobrados,

cada dia mais crecidos,

repartidos

em mil modos desvairados.

Os prazeres desejados,

escondidos,

porque sempre sam lembrados,

os passados

com mais força sam queridos.

Lembranças dos recebidos,

apartados,

sam sospiros e gemidos

nam ouvidos

da parte por quem sam dados.

Os esforços esmerados,

prometidos,

de muitas contras cercados,

conquistados,

de receos combatidos;

doutra parte socorridos

e esforçados,

nos esforços dos ouvidos,

merecidos

em nos ver contrariados.

Muitos dias mal gastados,

padecidos,

sospirados, enfadados,

e mostrados

mil prazeres infingidos.

Oh que dias tam perdidos

e tam minguados,

de mim mesmo perseguidos

e avorridos,

qual pior, pior contados!

Meus olhos nam sam culpados

mas vencidos,

meus dias foram fadados

e julgados,

pera pena ja nacidos.

Sigo caminhos seguidos,

despovoados,

em que caem e sam cahidos

e feridos

os presentes e passados.

Cabo.

Os dos que vam apartados

sejam lidos,

e nos cabos ajuntados,

concertados,

em cada regra metidos.

Galantes mui ressabidos

e avisados,

nam leixeis vós esquecidos,

nem partidos,

os dos dos cabos riscados.

92

TROVAS DE NUNO PEREIRA

A ANRIQUE D' ALMEIDA,

QUANDO VEO DE

CASTELA COM

O DUQUE.

Portugues ou castelhano

vós venhaes muito embora,

sei que vindes mui ufano

por ũu anno

qu' andastes de Moura fora.

Da Veiga lá de Granada

e das estejas da guerra,

vos nam hei ja d' ouvir nada,

nem d' embaixada

que trouxesseis eesta terra.

Nem das damas, seus amores,

nem dos que têm grandes rendas,

nem quais eram corredores,

nem quais senhores

alçaram primeir' as tendas.

Da Rainha nem d' El-Rei

nam quero nada saber,

mas sabê vós que vos sei

e direi

quanto haveis de fazer:

por isso compre calar

perante mim quando for,

portugues sempre falar,

e nam tomar

castelhano sem sabor.

Nam contar jente por lanças

antemãao vos logo aviso,

contai de vossas privanças

e esperanças

com que des infindo riso.

Quem me desse jaa metade

do que dizeis qu' esperais,

mas porem vós, na verdade,

ai Dom Frade,

quam contrairo vos cuidais.

Oh como sei que sabeis

o de laa tam bem contar!

Que envenções que fareis

e direis

que Castela nam tem par!

Fingireis de gram privado,

e falando com sospiros

vos venderês por honrado,

mal pecado,

olhai se vos sei os tiros.

Fim.

Sei que vindes mui sentido

por trovas de Joam de Mena,

oh homem grande, comprido,

soes perdido

nesta terra qu' ee pequena!

 

93

TROVAS DE NUNO PEREIRA

A ANRIQUE D' ALMEIDA, POR‑

QUE LHE DAVAM ŨA

IGREJA COM O

HABITO.

Muito embora vos seja,

na boa hora e no bom dia

vejaes vós vossa igreja,

comenda ou abadia.

E diria vosso ditado:

comendador, priol, abade,

ou em Cristos feito padre,

homem comprido d' estado.

Eu estando em Marvam

estas novas fui saber,

bem podeis cuidar que sam

pera mim muito prazer.

Quando vou nisto cuidar,

acho ũu caso mui profundo

irdes igreja tomar,

pois trovar ha i no mundo.

Quando igreja se vos dava,

igreja por vosso mal,

dizei-me se vos lembrava

que trovavam em Portugal;

e qu' ha i o moor Coudel,

e Francisco da Silveira,

e qu' ha i muito papel,

e ha mim Nuno Pereira.

Porem se foi por repairo

d' haverdes algũ dinheiro,

é mui bom serdes vigairo

e priol e reçoeiro;

sancristam apresentado,

prioste, comendador,

organista, contratenor,

conego, lecenceado.

Ou beato ou beguino,

segundo ja soes dioso,

trabalhai por serdes dino

do reino mais avondoso.

Vereis ora quant' andastes

co marido da senhora

e ela desfechou agora

com provincea que ganastes.

Sobre serdes de quorenta

annos com cinco contados,

parecendo de satenta,

e mais por vossos pecados,

d' haver honra, denidade,

bem a tendes merecida

bem servistes vossa vida

em paço de vaidade.

Vesti-vos de gabardina,

garnacha do mesmo talho,

com prosas, Salve Regina,

grandes contas de bugalho.

Ponde acipreste e palmas

na provincea que vos deram,

fazede como fizeram

os qu' haviam suas almas.

Ũu vaso de pao nam fique

de convosco laa levardes,

e chamar-vos-eis Anrique

que o mundo despresastes.

E ponde laa das colmeas,

porque é renda mais certa,

e fareis delas candeas

que se vendam lá na oferta.

Trazei pexes em viveiro,

fazei colheres de pao

e cestos de borrazeiro,

que tambem nam será mao.

Criai galinhas com galo,

corvas, coreixas e pãaos,

e outras cousas que calo,

com vosso falcam nas mãaos.

Visitando vossas granjas,

vossa sola crie a terra,

de limões e de laranjas

ũu pumar oo pee da serra.

E ò sol pola manhãa

ao portal da ermida,

fazêe das luvas de lãa

pera soster vossa vida.

Agulha pera coser,

sovela vos nam escape,

nem vos deve d' esquecer

algũa que às vezes rape.

Sempre convosco ũ gozinho

que ladre batendo aa porta,

cabaça sempre com vinho

porqu' ee cousa que conforta.

Fim.

Naquestas profetizando,

olhai bem que fim vos ponho,

que vos vejo ir açoutando

por quererdes soltar sonho.

E que dirá o pregam

e a voz do pregoeiro:

— Açoutem este truam,

porqu' usa de feiticeiro.

94

CANTIGA DE NUNO PEREI‑

RA, QUANDO CASOU COM

DONA ISABEL.

Amor, onde t' escondias

nos tempos que me matavas,

que tam forte parecias

e o mais bravo guardavas.

Acupado meu cuidado

com tuas forças senti,

mas era por teu mandado,

pois agora veens por ti.

Entam mandavas espias

pera ver como m' achavas,

mas pois tu vir nam querias

par' agora te guardavas.

95

OUTRA SUA A ESTA SENHORA.

Somos ũa cousa nós,

em ambos ũa soo fim,

eu nam sam em mim sem vós,

nem vós nam estais sem mim.

Em ambos ũa soo vida

a como cahir em soorte,

que nam pode ser partida

antre nós vida nem morte.

Todo o ser que for de nós

de qualquer cousa em fim,

eu nam sam em mi sem vós,

nem vós nunca soo sem mim.

 

96

D' ALVARO BARRETO A

ALVARO D' ALMADA.

Micer Alvaro galante,

presidente por teu pai,

escreve-me como vai

os d' El-Rei e do Ifante.

De todos ponto per ponto,

nam te falo no comum,

mas dos que seguem bom conto,

seja teu saber tam pronto,

que te nam fique nenhũu.

E do gram doutor sotil,

poeta mui estremado,

que das gentes é chamado

per nome Diogo Gil.

Nam per modo encuberto,

nem per via de vontade,

m' escreve sobelo certo,

se anda lonje ou perto

de querer bem de verdade.

Do Alcaide de Tavila,

o qual sempre Deos ajude,

m' escreve s' ee de saude,

nam me falando mentira.

E dir-lh' -ás que dizem caa

qu' ee ũu Gonçalo Murzelo,

e lhe tolheram parte jaa

dos dereitos do castelo.

A Nuno da Cunha.

Do frade provencial,

menistro d' ũ saio pardo,

que traz no cavalo sardo

guarniçõoes de papassal,

saberas que modo tem,

pois finge de servidor,

e se o nam fizer mui bem

põe-me tudo em ũu item

pera quando de cá for.

Joam Gomez Limam.

Parceiro de maracote,

esse Joam Gomez Limam,

que às donzelas de cote

servir traz openiam,

m' escreve como se acha,

querendo ser caçador,

qu' ha-de jugar com ũa facha,

sabemos que nam s' agacha

a Troilos ou a Heitor.

De Vasco Martiz Moniz,

senhor de trotam murzelo,

veador longo e belo,

tam alvo como ũu giz,

o certo dizer m' envia,

nem tardes, mas mui asinha,

se acabou a perfia

que este tempo trazia

cos sergentes da cozinha.

De Dom Garcia de Crasto

que nam cessa d' alegar,

gram Fernam de Toar

a voltas com Joam do Basto.

Porque sei que se poder

jamais ha-d' estar calado,

tu, por me fazer prazer,

de tudo quanto disser

me envia ũu tratado.

De Vasquinho, teu irmão,

fazedor de biornesa,

que nam deixa por defesa

vir ò domingo loução,

se é rijo e bem forte,

o certo m' escreverás,

que bem é o ter por sorte

cinco, seis e dous e ás.

Dom Gonçalo, monteiro-moor

Do esforçado caroz,

principe da vozaria,

que nos montes de Pavia

com brados perdeo a voz,

m' escreve por tua fee,

sem outra cousa que forjes,

sua mentira qual é

dele e de Joam Tomee

co valente Fernam Borjes.

Do gentil mossem Diego

de Melo, pousentador,

o maior juguetador

que haver pode no jogo,

m' escreve se em dançar

te parece mais esperto,

ou por se desenfadar

inda sabe remedar

seu senhor, o Duque Alberto.

Cabo.

Destes aqui nomeados

e outros que te nam digo,

m' escreve como amigo

em que sam mais acupados.

Isso mesmo das molheres,

que sei que te será viço,

e do mais que lá souberes,

se mo caa saber fizeres,

far-m' -ás prazer e serviço.

Reposta da senhora

Dona Felipa.

Repondo ò que preguntastes,

como estavam as donzelas,

e digo que todas elas

estam quaes as vós leixastes,

senam qu' estam saudosas;

dizem que nelas errastes,

pois tam curto preguntastes

por elas tanto fermosas.

 

97

D' ALVARO BARRETO A EL‑

-REI DOM AFONSO.

Muito alto, eicelente

e poderoso senhor,

cujo infindo honor

o Senhor Deos acrecente.

O todo vossa feitura

que vos adora e crê,

com a devida mesura,

faço nesta escretura

saber a Vossa Mercê.

Que depois que me parti,

em Santarem vos leixando,

sojeito do vosso mando

como sempre me senti,

a cas de vosso irmão cheguei,

do qual sem falecer ponto

quanto se fez vos direi,

por verdes se m' acupei

em vos dar delo bom conto.

E digo primeiramente

que o senhor vosso irmão

anda rijo, ledo e sam,

bem desposto e valente,

e traz por openiam

gram caçador e monteiro,

os quaes autos vos diram

ser de princepe guerreiro.

Do gram fazedor de busca,

micer Jam Freire Berlade,

ũu pouco menos d' idade

de Rui Gomez da Chamusca,

Voss' Alteza saberá

que na dança faz corvilhas,

pera ver se poderaa,

com trabalho que se daa,

desfazer as pantorrilhas.

Rui de Sousa que bem cabe

nesta terra em que somos

por tal fazedor de momos

qual ante nós se nam sabe,

nam no podemos chegar,

assi haja eu boa fim,

a fazer que queira dar

ũu pequeno de vagar

oo tenor de romatim.

O grande Lobo d' Alvito

que por se desenfadar

se tem seesta no Malvar

dig' oo Alvaro de Brito:

nam nos val brados poer

par' oo lançar da guarida,

nem basta nosso poder

a lhe podermos tolher

ũa Dona Margarida.

Nuno da Cunha, o Paão,

fermoso e deleixado,

que nunca é namorado,

salvo, Senhor, no Veram.

Porque se vai a freura

e se vai chegando Maio,

cos desejos da quentura

ja pelo presente cura

de vestir às vezes saio.

Deogo de Melo, o Lasso,

que o jugatar atiça,

e às vezes com preguiça

nam pode mover ũu passo,

sei que houve outra hora

d' Alvar' Eanes ensino,

porque nos motes d' agora

som uno de una mora,

raivo como cam varzino.

Vasco Martinz veador,

ingreme coma bafordo,

que nunca pode ser gordo,

pero é gram comedor,

por se nos mostrar mais moço,

u andamos com capuzes,

ordena tal alvoroço

com que meteo no pescoço

seu colar dos alcatruzes.

Vosso Alvaro de Moura,

que reza pelos salteiros,

se veste com os porteiros

com barba rapada loura.

Poder-lh' -ês, Senhor, mandar

ter cárrego dos liões,

pois se nam pode acupar

senam em ussos criar

de mui diversas feições.

Pero de Moura.

Ũu poeta que a pique    

de bem responder carece,

e no rosto se parece

com micer Joam do Vique,

aqui é, Senhor, chegado,

mas o seu nome nom sei

pelo que fez o trelado

de pôr em si eu o sei.

O gram felisteo chamorro,

Joam de Melo, copeiro,

que nos montes é parceiro

de Martim Pirez Bigorro,

Senhor, des que se degola

co barril na montaria,

copa-se com carminhola

do comprido Mestr' Escola

ou Josep Baramatia.

O das mangas regaçadas,

que Gomez Freire se chama,

que quando dança com dama

conta sempre tres passadas,

nam muda filosomia

por andar espenicado,

nem tira sa fantesia

de sospirar cada dia

poios saios deseado.

Cabo.

Rei humano, gracioso,

e senhor em que m' atrevo,

pois o certo vos escrevo,

falando nom dovidoso,

Vós, Senhor, que Deos mantenha,

querê a estas responder,

mandando quanto convenha

à maneira que cá tenha

em vos serviço fazer.

98

CANTIGA D' ALVARO BARRETO

À MORTE DO DUQUE, SOBR' Ũ

ENXEMPRO QUE DIZ: O

QUE FOI E NOM É,

TANTO É COMO

NOM SEER.

Ressalvando nossa fee

que sempre podemos ter,

o al que foi e nam é

tanto é como nam ser.

Que presta muita riqueza,

nem vida mui prosperada,

se por morte ou proveza

nam ha i daquisto nada.

Tiro fora nossa fee,

mas do al se deve crer

que o que foi e nam é

tanto é como nam ser.

Reposta de Joham Gomez.

O passado sem presente,

pois que foi, ser nam se tolhe,

pois que Deos todo potente

este poder nom recolhe.

Os feitos de Gudrufee

de Bulhom nos fazem crer

que o que foi e nam é

ser nichel nam pode ser.

D' Alvaro Barreto.

Esse Duque que dizeis,

que ganhou Jerusalem,

e outros de que tambem

memoria nam fazeis,

consirai se vam à ree,

e por i poderês ver

se o que foi e nam é

tanto é como nam ser.

De Joham Gomez.

É o ser certeficado

no que foi de bem a mal,

o presente vai passado,

o por vir é papassal.

Mudanças d' avante à ree

nam m' espanto de as ver,

pois o que foi e nam é

monta mais que de nam ser.

D' Alvaro Barreto.

Pois vai assi d' altrecar

vosso processo fundado,

digo que o trespassado

presente nam pod' estar.

Se confessaes que nam é

ja nam pode vida ter,

logo, quem foi e nam é

tanto é como nam ser.

De Joham Gomez.

Toda bem-aventurança

passada nos é memoria,

e faz com sua lembrança

haver-nos presente groria.

E assi quem for Tomé,

meta a mão se sabe ler,

e o que foi e nam é

verá nam leixar de ser.

D' Alvaro Barreto.

Escreverem coronistas

pera ler muito nos val,

mas é fala das conquistas,

trelado sem oreginal.

Cousa que ja foi em pee,

que seu ser leixa de ter,

esta se foi e nam é

tanto é como nam ser.

De Joham Gomez pelos

consoantes.

Querês outras sobre vistas

quem cercou Terçanibal

nos pôs dous avangelistas,

ambos por ũu principal.

Se por segundo nom é

que nunca se pode crer,

per inteiro como é

fez tambem Portugal ser.

D' Alvaro Barreto.

Pois seguis openiam

conhecendo a verdade,

e querês que a rezam

seja serva da vontade,

vaa caminho d' Anafee

todo este que nam crer

que o que foi e nam é

tanto é como nam ser.

Fim de Joham Gomez.

O bem nunca se consume,

pecados sam nemigalha,

quem com vicios presume

faz alicerces de palha.

Devemos d' haver por fee

e que bem nam pode ser,

mas do que foi e sempre é

e será se deve crer.

 

99

D' ALVARO BARRETO A

ŨA SENHORA EM QUE

LHE PEDE ALVARAA

D' APOUSENTADO.

Por jamais nunca partir

de vós todo meu sentido,

sam assi tam mal trazido

que canso de vos servir.

E por nam ser trabalhado

com tam mal despesa vida,

dai-m' alvara d' apousentado

polo tempo ja passado

que vos tenho bem servida.

Fazei-o, pois soes molher

tal que vos louvar nam sei,

ou estai, se vos prouver,

pel' ordenaçam d' El-Rei.

E se for vossa tençam

de per i seguir tal feito,

protesto que com rezam

queira vossa descriçam

guardar todo meu direito.

Aleego primeiramente

que lei destes reinos é:

quem for velho ou doente,

tanto que provado lh' ee,

nom deve ser requerido

para servir com senhor,

e de quem for costrangido,

pelo Rei seja punido

com pena de seu rigor.

E porque tee este ponto

sam velho em vos amar,

ja entro naqueste conto

sem me poder escusar.

E se vos estar apraz

pelo dito do artigo,

pois vedes quanto me faz,

se proveito me nam traz,

contestai o que vos digo.

Ou se, senhora, estar

a dereito nom quereis,

praza-vos de m' outrogar

isto que fazer podeis:

e dai-m' este alvaraa,

pois al requerer nom ouso,

ca des que o tever jaa,

sequer, senhora, seraa

começo de meu repouso.

Fim.

Porque tal necessidade

me causou serviço vosso,

usareis nam de vontade

em me dar tal liberdade,

pois vos ja servir nom posso.

100

D' ALVARO BARRETO

EM ŨA PARTIDA.

Que pene ser namorado,

faz fadiga mais sentida

fundamento de partida

sem poder ser apartado.

Que amar fadiga seja,

rezam al querer nom ousa,

por ser pena toda cousa

que per alguem se deseja.

Mas que cause gram cuidado

traz pena menos à vida

do que é fundar partida

sem poder ser apartado.

101

OUTRA SUA.

Quem se vê mui longe ser

do que deve de cobrar,

mais lhe val desesperar

que vãa esperança ter.

Porque por haver comprida

cousa que tarde s' alcança,

muitos em vãa esperança,

passam toda sua vida.

Assi que depois de crer

que se mal pode cobrar,

mais lhe val desesperar

que vãa esperança ter.

102

DE DUARTE DE BRITO EM QUE

CONTA O QUE A ELE E A OU‑

TRO LH' ACONTECEO COM

ŨU ROUSSINOL E

MUITAS COSAS

QUE VIO.

Dous tristes afortunados

debaixo das verdes ramas,

estando muito penados,

de prazer desesperados,

falando em nossas damas,

ouvimos cantar ũa ave,

qu' em seu canto parecia

roussinol,

manso, doce, mui suave,

per mui alta melodia,

per bemol.

Nós ouvindo sa duçura

per ũu contraponto manso,

dezia de nossa ventura

que nossa sobeja tristura

era ja sem ter descanso;

lembrou-nos males passados,

com dores, penas presentes,

desmedidas,

que nos fez, desesperados,

ser das mortes mais contentes

que das vidas.

Excramaçam.

Ó vós, Musas, qu' habitais

nas alturas de Pernaso

qu' oos mudos linguas daes

e òs inorantes mostraes

a gram fonte de Pegaso,

nesta obra começada

vossa ajuda vos demando

com favores,

pera que possa acabada

ir os males recontando

dos amores.

Vossas graças espirai

em meu saber e sentido,

a memoria alumiai,

o engenho espertai

de meu siso adormecido.

A ti, Caliope, invoco,

que minha lingua mui ruda

viva faças,

nesta materea que toco

nam me negues tua ajuda

com tas graças.

Começa a obra.

Com mui grande sentimento

d' acordanças mui sentidas,

em vencido pensamento,

nós sentimos com gram tento

que falava em nossas vidas.

Com vozes mui acordadas

começou com taes primores

estar cantando,

como fazem as levadas

d' espadas os jugadores

começando.

Eram tantos, tam doridos

os seus prantos e cantares

tam dorosos, tam sentidos,

qu' ali foram convertidos

meus prazeres em pesares,

d' ouvir as lementações

que sobre nós pranteava,

com tristezas

chorando nossas paixões,

que sem conto lementava

de cruezas.

E despois de entendidas

as mesajeens de seus cantos,

suas vozes convertidas

foram como nossas vidas

tornadas em altos prantos.

Com gemidos, nossas dores

maldiziamos, chorando

nossa sorte,

de nós mesmos matadores

nos viamos desejando

nossa morte.

Roussinol.

Ó vós outros, namorados,

de tormentos combatidos,

amadores desamados,

de seu bem desesperados,

por amores tam perdidos,

leixai vosso bem querer

por nam sentirdes o trago

de taes dores,

pois qu' a morte em prazer

dam de serviços em pago

os amores.

E pois vedes que vos vem

tanto mal por bem amar,

por amor sempre de quem

ha por mal fazer-vos bem

e por bem de vos matar,

nam cureis de mais chorardes,

ca rezam, siso defende

fazer tal,

porque quanto mais cuidardes

nisso tanto mais s' acende

vosso mal.

Reposta dos namorados.

Oh, pois sempre penas tantas

d' amores vives sofrendo,

que chorando sempre cantas,

leixa-nos chorar em quantas

dores vevemos morrendo.

Leixa-nos ambos chorar,

pois mais bem nam temos ja

que a morte,

ca mal pode confortar

quem conforto a si nam daa

que o conforte.

Roussinol.

— Que sem conto vós sofraes

tantas dores, nam choreis,

pois com isso nam cobraes,

nem menos remed[i]aes

os males em que viveis.

Nam choreis que tam crecida

é a coita que s' ordena

de vós tal

que morrendo vossa vida,

nam pode matar a pena

do vosso mal.

Os namorados.

—Amor é cousa tam alta,

preciosa cousa tanto,

que de Deos eterno salta

e no Filho s' esmalta,

tambem no Esprito Santo.

Amor antre os terreaes

é a cousa desta vida

mais excelente,

amor antre os animaaes

por singular cousa havida

é da gente.

Roussinol.

—Por verdes quam enganados

andaes com vosso amores,

sempre vi de namorados

vir mil casos desastrados,

muitas mortes, muitas dores;

vi fazendas destroidas

com cruezas dar gemidos

dessas guerras,

vi mortes de muitas vidas,

muitos reinos ser perdidos,

muitas terras.

Os namorados.

Por ser nosso caso tal,

nós houvemos por vitoria

de sofrermos tanto mal,

por amarmos desigual,

nossa morte por mais groria

sem fazer nunca mudança

desta fe, cuja firmeza

será viva,

sendo morta a esperança,  

que faz ser nossa tristeza

mais esquiva.

Roussinol

— Por verdes os desenganos

qu' amor sempre de si solta

com seus males grandes danos,

seu bem traz com mil enganos

em prazer a moort' envolta.

Amor traz sempre consigo

mortal dor com sospirar

sua paixam,

do prazer mortal immigo,

os desejos sam pesar

do coraçam.

Os namorados.

— Assi como desfalecem

ò ouvir as acordadas

musicas, que bem parecem,

qu' acordadas entristecem

as vontades namoradas,

assi nós com ta duçura

nam acabas ainda bem

nos confortar,

quando nossa firam tristura

sobre nós mais poder tem

de nos matar.

Roussinol.

— O prazer logo s' aparta

de quem ama verdadeiro,

de cuidar nunca se farta,

nam sei como vos reparta

este mal tam lastimeiro.

Nam cureis com mais perfia

fazer choros, nem taes prantos,

sem rezam,

segui minha companhia

por verdes d' amores quantos

perdidos sam.

Segue.

Com lagrimas de tristuras

começámos logo andar

per vales, montes, alturas,

grandes boscos, espessuras,

nam cessando caminhar,

per lugares apartados,

desviados dos viventes,

sem medida,

desertos, desabitados,

donde nunca foram gentes

nesta vida.

Per caminhos espantosos

passámos tantos desertos

que nos vimos temerosos

ser das vidas dovidosos

e de nossas mortes certos.

Onde tristes, alongados,

per longa estancia de terras

mui estranhas,

nos vimos de nós roubados,

cansados nas altas serras

e montanhas.

Assi tristes caminhando

pola gram estrelidade,

de morrermos desejando,

nos foi o dia negando

sua luz e craridade.

Com sa cara jovenil

primeira vimos Febea

estar cercada,

com seu rosto mui sotil,

da crara cham' apolea

metigada.

Comparaçam.

Como fazem por saberem

as frotas por onde vam,

que de noite por se verem

seguem, por nam se perderem,

o forol do capitam,

assi nós por nossa sina

seguiamos sem sentido,

em maneira

como quem a fogo atina,

que de noite é perdido

sem carreira.

Mas despois qu' a tenebrosa

noite escura escondeo

a luz crara, rediosa,

com curiscos espantosa

em trevas se converteo.

Com furia de grandes ventos

as cometas com seus raios

desiguaes

faziam taes movimentos

que eram nossos desmaios

mui mortaes.

Onde tristes mui perdidos,

muito mais que dizer ouso,

ficámos de nós vencidos,

sem nunca nossos sentidos

poderem tomar repouso.

Com nossas vidas chorando

com dores, coitas, mui graves,

lastimadas,

estivemos atee quando

cantavam as doces aves

as alvoradas.

Diana ja repousada

por seu curso natural,

de nossa vista privada,

os antipeles passava.

Com furia temporal

os ares ja resolutos

dos vapores congelados,

nevoentos,

ficaram fixos, enxutos,

mui sotis, craros, delgados,

espelhentos.

Sete planetas.

Ali vimos desterrado

ir Saturno, velho, prove,

e Jupiter, rico, honrado,

Mares em guerras armado,

Febus como rei se move.

Vimos Venus mui fremosa

e Mercurio escrevendo,

filosofando,

Diana, casta, briosa,

com qu' as aguas vam crecendo

e minguando.

As faldras do Ouriente

vinham ja esclarecendo,

e Venus resplandecente

de seu rosto mui luzente

a sua frol ja perdendo.

Apoio vinha correndo

em seus cavalos fetondos

de Quimera,

o gram Zodiaco vendo

per doze sinos redondos

da espera.

Doze sinos.

Vimos Friso com temor

ir no Verlo polo mar,

e a filha d' Ajenor,

vi com Polus e Castor

Perseo Cancro matar.

Leo em fogos acesos,

vi Virgo desemparando

os terreaes,

e vi Livras com seus pesos

os meritos tosos pesando

dos mortaes.

Vi o fero Escorpiam

passálas aguas sem barco

com a filha de Alciam,

e o velho Teriam,

Sagitareo com seu arco.

Capricornio no outeiro,

na selva de Creta andar

pacendo vi,

e Acarios ser copeiro,

e Cupido vi tornar

em Peixe ali.

Com coroa mui oufana

nos altos ceos colocada,

vi de Baco Adriana

e a fria Tresmontana

d' Apolo mui separada.

Vi a filha de Lucano,

Cenesura, Calistona

e Ouriam,

com as netas d' Oceano,

com seus filhos vi Latona

em o lam.

Comparaçam.

Como cativo que preso

trabalha de se soltar,

que com esforço mui teso

para fogir mui aceso

anda buscando lugar,

começámos com dor tal

romper as matas sombrosas,

mui escuras.

Fomos ter a ũ rosal

de muitas flores e rosas

e verduras.

Visam.

O lugar era cercado

d' arvores e ribeiras,

de verdes ramas cerrado,

de mil frescuras trocado,

de froles de mil maneiras.

Onde vimos duas damas

tam fermosas, excelentes,

com misura,

qu' ardiam em vivas chamas,

as caras resprandecentes

de fermosura.

Firmeza

A ũa delas vestia

um brial negro chapado

de mui rica argentaria,

d' ouro com gram pedraria

derredor quartepisado

d' esmeraldas e robis,

çafiras e diamantes,

e ũ manto

d' ũs lavores mui sotis,

preciosos e galantes

de grand' espanto.

Esperança.

De verde toda vestida,

de perlas toda borlada,

vi a outra emnobrecida

d' ũa roupa mui comprida,

per mil partes desfiada.

Ũ verde manto cobria

muito rico em derredor

e perfundo

ũa letra que dizia:

Mal haya quien fizo amor

neste mundo.

Comparaçam.

Como quem adormecido,

sem sentir pena nem groria,

qu' acordando embebecido

a perda de seu sentido

vai buscar a sa memoria,

assi nós com grande medo

de vermos tanta visam,

com gram temor,

cada ũ estava quedo,

pedindo a seu coraçam

algũ favor.

Com temor e ousadia

vendo suas gentilezas,

com tristeza e alegria

olhando a polecia

de suas grandes belezas,

começámos com gram tento,

com vontade mui segura,

de pagar

todo aquele devimento

que se deve à mesura

em tal lugar.

Fala às damas.

Todo o bem contrariado,

que nosso fado repuna,

damos por bem empregado

o tempo todo passado

de tam aspera fortuna.

E pois que nisto sentimos

nam nos ser de todo immiga

a ventura,

a vossas mercês pedimos

vossos nomes que nos diga,

por mesura.

Segue.

Como mui palencianas,

gentis damas mui briosas,

mais divinas que humanas,

tam corteses como oufanas,

de mil graças graciosas,

com mui grande cortesia

nos receberam, mostrando

gram prazer,

com mui grande alegria

nos começaram falando

de dizer.

Firmeza.

— De dizer-vos folgarei

que a mim chamam Firmeza,

que em vós sempre morei,

nunca vos desemparei

nem vós a mim com tristeza.

Essa dama é Esperança,

que aas vezes desespera

esperando,

outras vezes faz mudança

ò revés do que s' espera

nam cuidando.

Tam asinha acabadas

nam eram ainda bem

as palavras recontadas,

sem mais cousas preguntadas

dante nós vimos ninguem.

Assi com mudança tal

como quem seu siso fora

tem perdido,

ficámos com nosso mal

como quem canta e chora

sem sentido.

Propiadade da Fortuna.

 Fortuna que nunca cessa

com a roda de ventura

dar taes voltas tam depressa

que o bem dessa promessa

sempre pouco ou nada dura.

Nunca dura nũm  querer,

a roda mil vezes volta,

com mil mostranças

leixa de todo perder

o melhor donde o solta

com sas mudanças.

Segue.

 Pois tal vida pussuir

quer Fortuna com tristura

fazer-nos sempre sentir,

sem podermos regestir

nossa gram desaventura,

comecemos de tomar

de tam miseravel vida

possissam,

nam queiramos mais tardar,

sigamos nossa dorida

habitaçam.

Assi nós tristes seguindo

nossos craros perdimentos,

muitas mais dores sentindo,

nossas tristezas ferindo

nossas vidas de tormentos,

caminhando a triste via

vimos tantos, taes sinais

de tal sorte,

que bem craro parecia

que agoiros tam mortais

eram de morte.

Decer das altas montanhas

vi ũa aguea rompente,

com sas unhas mui estranhas

romper suas entradanhas,

de matar-se nam contente.

Em si amostrou primeiro

a cruel pena mui brava,

e sem tardar

me fez orfãao do parceiro,

com que triste consolava

meu pesar.

Minhas dores acendidas

vi entam de taes tristezas

qu' eram todas convertidas,

sem piadades movidas,

em mil sanhas de cruezas.

Em dor, coita tanta vim

ali soo donde ficara,

tam raivosa

que a morte contra mim

em matar-me s' amostrara

piadosa.

Comparaçam.

Com' a quem chora gemendo

sua coita desigual

com quem sempre vam crecendo

seus tormentos acendendo

as angustias de seu mal,

assi eu com tal viver

com minha vida me via

que desejava

de morrer, por nam morrer

tantas mortes cada dia

como passava.

Com perdida esperança,

guarnecida de pesares,

comecei sem mais tardança

possuir a esquivança

dos mui desertos lugares,

onde tanto quis mostrar-se

contra mim tam poderoso

meu mal

que nenhũu nam cobiçasse,

por mais que fosse envejoso,

vida tal.

Com lagrimas de tristuras

caminhando pola serra,

ũas vezes nas alturas,

outras vezes nas funduras

dos mais baixios da terra.

Nas montanhas e boscagem,

como as feras, estranhas

alimarias,

fazia vida salvajem,

nas mui espessas montanhas

solitarias.

Comparaçam.

Andando tantas jornadas,  

taes confortos recebendo,

como soem as desejadas

saudades apartadas,

em gram tempo nam se vendo.

Assi eu com vida tal,

d' esperança e d' alegria

ja roubado,

me vi tanto com meu mal

que à morte me sentia

mui chegado.

Polas serras tenebrosas,

sem ter ja de mim sentido,

nomeando com chorosas

vozes, tristes, piadosas,

a quem tinha ali perdido.

Seu calar me era reposta,

mas o eco polos vales

me seguia,

de meus cramores reposta,

por dar mais mal a meus males

respondia.

Vendo-m' assi padecer

vida de estremo tal,

meu alongado viver

me era mais recrecer

moores tormentos de mal.

Por onde quer que passava,

nas montanhas e boscageens,

quantas me viam

serpentes, quantas achava,

feras bestas e salvageens

me seguiam.

Via muitos animaes,

sagitarios, escorpiõoes,

tigres feros, desiguaes,

gigantes dragos, mortaes,

onças feras e liõoes.

Os olhos todos luzentes,

em fogo todo abrasados,

acendidos,

com batimento de dentes,

dando muito desvairados

bramidos.

Comparaçam.  

Como quem de cativeiro,

quando foge algũu cativo,

que de mal tam lastimeiro

por remedio derradeiro

nam tem em conta ser vivo,

com esforço mui ousado

põe a vida a mil perigos

de venturas,

e cuidando ser tomado

vai buscar algũs abrigos

nas espessuras,

Assi eu, com taes temores

que minhas forças vencia,

ja buscava valedores,

que valessem a minhas dores

e me dessem ousadia.

Nos matos por me salvar

de ver cousas espantosas,

fui com receo

e ali me fui achar

com as Harpias mui raivosas

de Fineo.

A morte, por nam sentir,

mais que vida desejava,

quando vi que me cobrir

nam prestava, nem fugir,

com meu mal os confortava.

Com sospiros lagrimosos

meus tristes olhos choravam

tam de verdade

que de bravos piadosos

de me verem se tornavam

com piadade.

Meu viver menos prezando

que o perigo da morte,

comecei andar chorando,

os desertos penetrando,

maldizendo minha sorte,

ferido de taes tormentos

que seraa menos victoria

de os passar

que tornar taes sentimentos,

redozi-los aa memoria

pera os contar.

Comparaçam.

Como quem se vê livrado

d' algũ perigro mortal,

ou como quem condenado

à morte sendo livrado

per milagre ou caso tal,

assi eu quando me vi

fora daqueste perigo

de morte,

a mim mesmo nam no cri

em cuidar ũu mal commigo

de tal sorte.

Vista do Inferno.

Sem ver dia nunca craro

cos sombrosos arvoredos,

com mui grande desemparo

polos montes de Travaro,

pelas rocas e roquedos,

andava triste seguindo

a mui gram desaventura

de meu viver,

o prazer de mim fogindo,

vendo mais minha tristura

em mim crecer.

Per lugares tenebrosos

aos humanos inotos,

com meus males mui dorosos,

ouvi gritos espantosos

com mui grandes terremotos.

De todo cuidei entam

minha vida mui cruel

que acabava,

olhando vi a Plutam,

as chamas que Mongibel

respirava.

Vi estar o cam Cerveiro,

com suas bocas tragantes,

de Bursires ser parceiro,

vi Sifo com gram marteiro

trazer pedras mui pesantes.

E na Istrigia vi Crina

com as Furias infernaes

indinadas,

vi Plutam com Proserpina,

com muitas gentes mortaes

ja passadas.

Ali vi a pregoeira

Tesifone mui sanhosa,

Aleto, cruel guerreira,

e com elas a terceira

vi em guerra mais raivosa;

tres juizes estar julgando

seiras Danão com jueiras

cheas d' agua,

e Dedalo ir voando

e Vulcano nas fugueiras

da gram fragua.

Ali vi estar a Priteo

e fogo do ceo furtar,

vi a Triste com Atreo,

e a madre de Penteo

seus membros espedaçar.

Vi na roda Exiam

ir e vir sempre volvendo

com pesares,

vi o forte Jeriam

com tres cabeças mandando

as Baleares.

Vi Tantalo esfaimado

com gram sed' estando n' agua,

e Cios muito penado

d' abutres espedaçado

em seu peito com gram magoa.

Vi outro muito gentio,

cujos nomes de sas famas

tem nas vidas

de mui grande senhorio,

ardendo em vivas chamas

acendidas.

Vi a fonte de Cotitos,

à passagem de seus portos

muitos corpos sem espritos,

onde a garça com mil gritos

traz a messajem dos mortos.

Vi as aguas do Leteo,

em na barca d' Acaronte,

vi remando

o parceiro de Teseo,

e Tiseo de sô ũu monte

fogueando.

Assi estando espantado,

temeroso, com gram medo,

sem meu siso ter cobrado,

nem o temor apagado

do que via, estava quedo.

Sem tardança me vi logo

cercado de muitas gentes

mui chorosas,

qu' ardiam em vivo fogo

de chamas vivas , ardentes,

espantosas.

De sas bocas  com furor

tam gram chama se alçava,

que do grande resprandor,

do gram fogo e meu temor

vê-los bem nam me leixava.

Tantas penas padecer

vi com dores desvairadas

de tormentos,

que me fizeram esquecer

as cousas todas passadas

de sentimentos.

Visam infernal.

D' arredor em companhia

via cousas mui inormes,

que d' espanto nam podia

poder-me dar ousadia

olhar rostos tam disformes.

Com seus basiliscos vultos

d' horrives disformidades

me parecia,

os que me eram mais ocultos

mais presentes fealdades

das que via.

Assi vendo com gram dor

minha morte conhecida,

de meu rosto minha cor

ja roubada, com temor

mais da morte que da vida,

fui levado per lugares

onde vi em vivas chamas

estar ardendo

muitas gentes com pesares

de namorados, com damas

padecendo.

Inferno dos namorados.

Com Erudice vi Orfeo

tangendo sa doce lira,

vi Driana com Teseo,

com Tanace Macareo

e Hercoles com Daimira.

Ali Paris com Helena,

vi Grismonda com Griscal

com muitas dores,

que chorava com gram pena

a gram coita desigual

de seus amores.

Ali Eco com Narciso 

vi, e Pasife com Minus

nas fonduras do abisso,

e a filha d' el-rei Niso

com sospiros mui continus.

Vi outros menos prezando

as grorias de seus viveres

e maneiras,

em sas ofensas mostrando

nas coitas grandes prazeres

d' alegrias.

Ali Poris com Tesena

e Clise por Febo Dane,

Arquiles com Policena

e Tereo com Filomena

e com Piramus Tisbe.

Vi Medea com crimezas

de Jasam, porque querer

mais lhe quisesse,

fazendo moores cruezas

do que nenhũu ofender

lhe pudesse.

Vi Lucrecia por Tarquino

ser de si mui penitente,

e vi Cila por rei Nino,

e as filhas de Cadino

em o Flegento ardente.

Hipolito, Fedra, Semeta,

Ardanlier com Liesa

namorados,

Panfilo com Fiometa,

Grimalte com Gradiesa,

desesperados.

Quem me daa vida penada

sem nos seus amores vi,

de penas tam lastimada,

tam triste, tam demudada

que quasi a nam conheci.

Mui triste, muito choroosa,

sospirando desigual,

mui sentida,

porque nunca piadosa

foi de mim nem de meu mal

nesta vida.

Os olhos por nam olhar

de piadade movidos

escondia com pesar,

mas os seus prantos tornar

me fazia de seus gemidos.

Com dorosos movimentos

tornava meus olhos, vendo

seus cramores

e seus grandes sentimentos

me faziam ir gemendo

minhas dores.

Muitas vezes meu poder,

trabalhando sem memoria,

provava de socorrer

se lhe poderia valer,

mas ficava sem victoria,

que da vida ja favor

nam tinha, nem esperava,

nem sentia,

a mim como defensor,

contra mim me esforçava

e socorria.

Com voz de pranto dorida,

como quem morte deseja

muito mais que ter tal vida,

falava com dor crecida,

dizendo nam sei que seja.

Quem me daa vida despoje,

ca de males tam dobrados

de tal sorte,

a primeira cousa que foje

oos tristes desesperados

é a morte.

De seus olhos mais chorando

do que falar me podia,

com mil dores sospirando,

suas chagas m' amostrando

com qu' as minhas acendia.

Com grã dor de meu pesar

des que piadade de mim

a venceo,

me começou de falar,

nesta maneira em fim

me respondeo:

—Tal enveja vos tem dado

minha grande saudade

que mal tam desesperado

quesestes seguir forçado

sem ter de vós piadade.

Fortuna que sempre ordena

tanto mal com sentimentos

cada dia,

por dobrar mais vossa pena

quis a meus grandes tormentos

dar companhia.

Estando nestes pesares

como morta minha vida,

ja nos infernaes lugares

com tormentos a milhares

de gram pena desmedida,

na volta dos mais perdidos

andava com dor chorando

tam desigual,

com taes prantos e gemidos,

que fazia estar olhando

todos meu mal.

Dali me veo tirar

quem me forçara seguir

caminho de tal pesar,

que nam se pode cobrar

nenhũu mal, nem redemir.

Mostrando-me verdadeira

fim d' amores de seu mal

o gualardam,

cantando desta maneira

como quem com voz mortal

lança pregam.

Fim.

Dos amores o que sento

todo o vivo contempre

que prazer, que daa tormento,

é groria de ũu momento

que condena pera sempre.

E seu bem é de tal sorte

em prazer que daa tristura

com tanto mal

que se faz eterna morte

com pena que sempre dura

mui mortal.

103

DE DUARTE DE BRITO.

Oh cruel pena mortal,

oh vida tam querelosa,

oh morte tam piadosa,

inteiro bem de meu mal!

Tam crecidos

sam meus males desmedidos

que sentem meus pensamentos,

que com força de tormentos

ja nam sento meus sentidos.

De dores tam lastimada

vejo minha triste vida,

qu' ee de mim sempre querida

minha morte desejada.

Esperar

o que nam posso cobrar

é mais causa de gram dor,

ou de morte, ou pior,

pois se nam pode curar.

Qu' a pena maior que tenho

nam sei quem ma dar podesse,

donde tanto mal viesse

qu' em vida morte sostenho.

Taal se sente

meu viver tam descontente

que de mim sam matador,

porque mais a minha dor

minha pena s' acrecente.

Vejo tanto contra mim

minhas chagas tam abertas,

com cruezas tam espertas,

que desejo minha fim.

Se meu bem

com a morte me nam vem,

que vida posso viver,

que me possa dar prazer

se em matar me detem?

A fim visse tam asinha

como é vontade vossa,

pois cousa que dar-me possa

bem nem vida nam é minha.

Por vos querer

meus males vejo crecer,

minguar toda piadade,

se matar-me havês vontade,

eu hei pouca de viver.

De meu mal se soes servida

com minha pena raivosa,

em matar-me piadosa

vos mostrai a minha vida.

Por acabar

minha vida de matar,

segundo meus males vejo,

muito mais meu mal desejo

do que vós me podeis dar.

104

DUARTE DE BRITO.

Vós vivendo, eu morrendo,

vós folgando, eu penando,

vós boa vida passando,

eu a minha maldizendo,

sospirando.

Vós de mim sempre querida,

eu de vós mui desamado,

e meu bem todo trocado,

da morte como da vida

desesperado.

Eu com dor e vós sem ela,

vós sem pena, eu com tormento,

vós prazer, contentamento,

eu de vós com gram querela

e sentimento.

Eu mui triste e vós mui leda,

ó senhora, ó senhora,

se o mal que sento agora

fosse d' ambos, como queeda

algũu hora.

Tal cuidar me dá alegria,

desengano m' entristece,

esperança me falece

todo meu bem se desvia,

meu mal crece.

Renova-se minha chaga

cada dia mais mortal,

vós dais pouco por meu mal,

mas sofrer me dá a paga,

vede qual!

Se sam de vós esquecido,

sam por me perder guanhado,

de vós, senhora, forçado,

mas de me querer vencido

do cuidado.

Com toda quanta crueza

contra mim possaes mostrar,

bem me poderá matar,

mas nunca por mais tristeza

me mudar.

Fim.

Nam sei qual pior me seja

se dizer ou encobrir

o que sento, se servir

quem tanto mal me deseja,

e seguir

o dano donde me vem,

vendo minha vida tal,

tam acerca de meu mal

e tam longe do meu bem,

que me nam val.

105

CARTA DE DUARTE DE BRITO A

DOM JOAM DE MENESES, PERA

QUE NAM SERVISSE

NINGUÉM

Estando triste, pensoso,

com meus males sospirando,

de meu bem mui duvidoso,

de minha vida queixoso,

vim estar em vós cuidando.

E lembrou-me que perdido

vos vi tanto por amores

que nam pode tanto crido

ser o mal como sofrido

tendes sofridas de dores.

E lembrou-me o mal gastado,

servido sem gualardam,

o tempo todo passado

em que sempre de cuidado

vos vi morto de paixam.

Onde a pena mui crecida

de vossos males dobrados

fez tam triste vossa vida,

que foi toda convertida

de sospiros e cuidados.

E lembraram-m' os tormentos

que por bem amar sofrieis,

dados sem merecimentos,

com que vossos pensamentos

veviam e vós morrieis.

Onde vi nojos crecidos,

coitas, pesares, tristezas,

sospiros, cuidar, gemidos,

dous tormentos e sofridos

trabalhos, fadigas, cruezas.

E vi a viva vontade   

de matar-vos, tam cativo

vos tinha sem liberdade,

morto tam sem piadade,

que nam cuido que soes vivo.

Sem haver nunca lembrança

de vós nem vossa tristeza,

que com vossa esquivança

vos fez morta a esperança,

mas nunca vossa firmeza

E vi mais ser as maneiras

de quem pena e tem cuidado

e dores mui verdadeiras,

em vós muito mais enteiras

do que pode ser falado.

De maneira que tam triste

foi vossa vida passada,

que de mil mortes se viste

o cuidar que se consiste

dor de dores tam penada.

Mas daquestes males fora

ficando de morto vivo,

is servir de novo agora

quem de vós fazeis senhora

e vós dela mais cativo.

Mas ũu conselho, senhor,

vos darei, à lei de França,

que nam vos fieis d' amor,

que é falso, enganador,

onde mal nam faz mudança.

Dizem que os escarmentados

que se fazem dos arteiros,

pois vós mais dos mais penados,

namorado dos namorados

que sofrestes taes marteiros,

pois seus males todos vistes,

dai ò demo este cuidado,

alembre-vos quem servistes,

que fez vossos dias tristes,

amador mui desamado.

Mas de mil temores tremo

por tomardes com quererdes,

amardes em tal estremo

que muito de vós me temo

perder-vos por vos perderdes,

porque cuido qu' escapar

nam godês de nam morrer,

ca palhas foi o penar

que sofrestes por amar

peroo qu' havês de sofrer.

Receando a trestura

que s' espera, mais vos culpo,

peroo vendo a fremosura

de quem ja vos fez ventura

ser cativo vos desculpo.

Assi que nam sei que diga,

nem que cuide, nem que pense,

nem que faça, nem que siga,

que vos livre de fadiga,

nem de morte vos defense.

Fim.

Se nam, pois quereis tomar

os amores, grã mostrança

mostrardes de bem amar,

sem amardes, pois penar

por amar nam faz mudança.

Mil enganos cada dia

cuidae sem terdes cuidado,

ser leal nunca seria,

por ver se por esta via

tornaria a ser amado.

106

DUARTE DE BRITO PAR‑

TINDO DE SAN‑

TAREM.

Oh campos de Santarem,

lembranças tristes de mim,

onde começou sem fim

desesperança sem bem!

Oh gram beldade, por quem

levo chea a memorea,

com tal cuidado que tem

a morte volta com grorea!

Oh vida desesperada

de dores e sentimentos,

oh lembranças de tormentos

qu' em pesares es tornada!

Oh ventura mal fadada,

cabo de toda crueza,

oh memoria retrocada

em dor de minha tristeza!

Oh desejo sem folgança,

tristura de meu folgar,

oh querer de meu pesar,

de meu descanso tardança,

de meus cuidados lembrança,

do meu coraçam cadea!

Oh vida sem esperança

de tristezas toda chea!

Oh coraçam lastimado,

cujo mal nunca se sente,

que tam longe es presente

de quem es tam apartado!

Que te presta ser lembrado

de quem sempre desejar

faz de força teu cuidado

de vontade com chorar.

Como aquele que sentindo

vai a morte quando vem,

que demostra o mal que tem

com gram dor e descobrindo,

assi eu de vós partindo,

desejo de minha vida,

vejo vir apos mim vindo

a morte que me convida.

Polas mui asperas vias

de tristezas caminhando,

vi meu mal meu bem matando,

dar fim minhas alegrias.

Todas minhas fantesias,

minhas penas refrescando,

o triste fim de meus dias

sem vos ver mo vam mostrando.

Vi as serras descubertas

de meus males com tresturas,

vi todas minhas folguras

de tristeza ser cubertas.

D' esperança vi desertas

minhas groreas sem vitorea,

com sospiros mui espertas

as lembranças da memoria.

Vi meu triste pensamento  

d' esperar desesperado,

com sospiros meu cuidado,

com lagrimas meu tormento.

Meu raivoso sentimento,

que calando encobria,

mil vezes com desatento

meu chorar o descobria.

Polas mui grandes montanhas,

caminho de meu pesar,

nam cessando caminhar

com dor de dores tamanhas,

todas minhas entradanhas

sem fogo s' iam queimando,

e nas terras mui estranhas

a morte ando buscando.

Com lagrimas de trestura

de minhas coitas raivosas,

vi as frores e as rosas

perder todas sas frescuras.

Os campos com as verduras,

com as sombras graciosas,

se tornavam amarguras

de mil raivas espantosas.

Por ver morrer meus espantos

feras bestas me seguiam

e os males reteniam

com as vozes de seus prantos.

Davam aves gritos tantos,

minhas querelas dobravam,

onde todos meus quebrantos

em lagrimas se banhavam.

Meu caminho se seguia,

minha dor nunca minguava,

minha pena s' esforçava

contra mim mais cada dia.

Com meus cabelos cobria

a mim todo com pesar,

em ver-me sem vós me via

mais de vontade chorar.

Com meu mal assi andando,

de me ver assi perdido

como cousa sem sentido,

andava sempre chorando.

A morte menosprezando,

mais que vida desejava,

meu desejo vigiando

sospirar me confortava.

Assi me levando ventura

com desatino perdido,

neste caminho vestido,

cuberto de gram trestura,

meu chorar, com amargura,

com voz triste mui cansada,

chorarei enquanto dura

minha cativa jornada.

Fim.

Pois que meu bem como vento

traspassando assi por mim,

e meu mal dura sem fim

em meu triste pensamento,

a memorea por tormento

ficará desta lembrança

em mim triste, porque sento

ser meu mal sem esperança.

107

DUARTE DE BRITO.

¡Oh vida de mis dolores,

oh dolor de mis cuidados,

cuidados de mis amores,

de tormentos matadores

y males desesperados!

¡Oh quanto mejor me fuera

no ver vuestra fermosura,

ni por vos no me perdiera,

ni pesar no me metiera

em poder de tal tristura!

¡Oh vida tan dolorida,

de vida muerte tornada,

oh muerte tanto querida,

de esperança convertida

en vida desesperada!

¡Oh muerte, como no vienes

a dar cabo a vida tal,

que la vida em que me tienes

es la muerte de mis bienes,

vida de todo mi mal!

Assi como el gran llorar

como sin fabla me dexa,

e assi con mi penar,

con gemir y sospirar

no puedo dezir mi quexa.

Mas ya que triste espero

que mi mal no tenga medio,

llorando morir me quiero,

pues del todo desespero

de cobrar nunca remedio.

Lloraré todos mis daños,

mi dolor y pena fuerte,

y dos mil males estraños

que los menos son tamaños

que mi vida es la muerte.

Lloraré catividad,

la vida triste que bivo,

con sospiros, soledad,

lloraré mi libertad

que por vos perdi cativo.

Sin tantas sombras de males

yo triste siempre biviera,

ni penas tan desiguales,

ni llagas tanto mortales,

en tanto grado sintiera.

Ni fuera mi sentimiento

un dolor tan sin medida

que segun los males siento

no es igual el tormento,

ni gana muerte a mi vida.

El penar demasiado,

la passion muy desmedida,

vuestro olvido y mi cuidado,

m' atormentan en tal grado

que tienen muerta mi vida.

De matarme no contentes

se contentam mis querelhas,

mis cuitas siendo presentes

ni por ver tornados fuentes

mis ojos reposan elhas.

Con temor mi gran desseo,

mi quereros y serviros,

los dolores que posseo,

las coitas en que me veo,

no puedo ni sé deziros.

Y con este mi penar

crece tanto qu' es perdida

esperança d' esperar

y remedio de cobrar

a mi y mi triste vida.

Fim.

De mis tristes perdimientos

y de mis males estraños

¡oh vida de mis tormentos,

dolor de mis pensamientos

por quien sufro tantos daños!

Si vos viesse haver sentido

de mis dolores doleros

por vos contento perdido,

todo el mal por vos venido

sufriria por quereros.

108

DUARTE DE BRITO

A tristeza encuberta

de meu triste pensamento,

verdadeira,

me faz minha morte certa

e a vida nam consento

que me queira.

Ca segundo tem poder

minha gram desaventura

mui cativa,

morrer nam basta vencer,

nem poder matar trestura

tam esquiva.

Sam meus dias em pesar

todos tristes convertidos,

em cuidados

meu viver e sospirar,

sam meus males mui crecidos

desesperados.

A vida sem esperança,

sem remedio meu desejo

tam cativo

que moiro na esquivança

da vida em que me vejo,

que nam vivo.

Por ser mor minha tristeza,

quer Fortuna que s' ordene,

por penar-me,

por fazer maior crueza,

dar-me vida com que pene

que matar-me.

E com aqueste temor

de pena mais desigual

que é morrer,

crece tanto minha dor

que seria menos mal

nam viver.

Fim.

Pois vivo triste sofrendo,

sem ventura desejoso,

mal tam forte,

ũa vida que vivendo

vivo dela mais queixoso

que da morte.

Ca de maneira me trata

meu mal com grande desdita

sem cansar,

qu' a vida é a que mata

e a morte a que me quita

de pesar.

109

DUARTE DE BRITO.

Sem descanso e sem ventura

desejosa vida minha

toda chea de trestura,

onde sempre meu mal dura,

o bem passa tam asinha

que nam dou dela sinal

senam todos de desejo,

os outros sinaes que vejo

todos sam de mais meu mal.

Por nunca sentir prazer

nesta minha triste vida

onde me vejo morrer,

nam posso cousa querer

que jamais veja comprida,

senam tudo ò revees

do que sempre desejei,

se algũu bem esperei

deu comigo a travees.

Oh vida desesperada,

oh manifesto engano,

oh morte dessemulada,

oh ventura malfadada,

donde vem sempre meu dano!

Qual esperança me tem

que nam me leixa tomar

qualquer morte que acabar,

pois perdi todo meu bem!

Nem a vida nam na quero,

nem a morte nam na quer,

d' esperar ja desespero,

o remedio que espero

é a morte, se vier.

Ca o mal que m' adoece

com sospiros m' atormenta,

minha dor se acrecenta,

o meu bem todo falece.

De tristezas e pesar

pode fim dar alegria,

se me podesse cobrar

com sospiros e chorar

algũu descanso seria.

Nem a vida em que me vejo

com tal mal nam se me tira,

se o que espero que a tira

nam se acha em meu desejo.

Fim.

Nam me vi com esquivança

de sofrer nunca cansado,

em meu mal nam faz mudança,

quanto menos esperança

tanto mais é o cuidado.

Quanto mais vejo prazer

tanto mais sento o pesar,

ja cansado de viver,

mas nunca de desejar.

110

DUARTE DE BRITO QUE LHE

PREGUNTOU SUA DAMA

PORQUE ANDAVA

TRISTE.

Com tantos males guerreo,

senhora, por te servir,

que la muerte del bevir

es la vida del deseo.

Tus mudanças mis firmezas

si acatas,

por darme vida me matas

com tus cruezas.

Es mi vida em tal estremo

de tantas lhagas ferida

que más receio la vida

de lo que mi muerte temo.

De ti siempre fui ferido

com tormiento,

mas nunca del mal que siento

socorrido.

Mi danho sim compasion

com dolor nunca se mengua,

no sabe dezir mi lengua

lo que siente el coraçon.

Que tal es mi gran trestura

de tal suerte

qu' es todo mi mal de muerte

sim ter cura.

Tanta es mi mal andança,

que la mi lhaga mortal

quanto más crece mi mal

se encerta el esperança.

El sospirar que renueva

mi cuidado

al morir desesperado

me lieva.

Por ti gano em perdelha

mi vida triste, cativa,

mas mi fee quedará biva

ante ti com mi querelha.

Mis sospiros a ti lhaman

sim olvido,

las mis vozes com gemido

a ti reclaman.

La mi vida tal se passa,

que por ti los mis gemidos,

em dolores encendidos,

mis entranhas hazem brasa,

mis lagrimas, sim me dar

assossiego,

hazem más bivo el fuego

de mi penar.

Fim.

¡Oh lhagado coraçon

de todo desacorrido!

¡Oh sim ventura nacido

por su dolor y pasion!

Que será triste de mi,

pues coitado

pera mi nació cuidado

quando naci.

111

DUARTE DE BRITO AOS MOTOS

DESTAS SENHORAS, OS QUAES

MOTOS SAM A DERRADEI‑

RA REGRA DE CADA

COPRA.

Dona Briatiz Pereira.

Esperando remedear

el dolor em que bevia,

por más gloria alcançar

mis cuidados fui doblar

y más mal que no sentia.

Ved que tal fue mi ventura,

que mi bien por mal troqué,

do falhee muy más trestura

quando la gloria busqué.

Dona Branca Coutinha.

Es mi triste pensamiento

tam vencido de deseo

que segum los males siento

es tornado em tormiento

el cuidado em que me veo.

Com dolor y gram porfia

de la mi desdicha fuerte

de perder la vida mia,

esperança y alegria,

temesse mi triste suerte.

Briatiz d' Azevedo.

La triste vida de males,

de tormientos y dolores,

que sostengo desiguales,

acrecientam mui mortales

mis tristezas matadores.

Mi plazer se va gastando

con el dolor que recebi,

la mi vida deseando,

y com tal pena passando

no vive quien assi bive.

Dona Margarida Furtada.

Por ver que nunca mejora

mi grande mal tan esquivo,

no queda dia ni hora

que los mis lhoros no lhora

la triste vida que vivo.

Pensando los por venir,

mi pena más s' acrecienta

y con este tal bevir

lo que queda por sentir

ya no siento quien lo sienta.

Briatiz d' Ataíde.

Pensamientos muy vencidos

de mi pena dolorida

com mis males desmedidos

peleam com mis sentidos

y la muerte com mi vida.

Yo triste no see manera

que tenga com mi porfia,

el dolor manda que muera,

yo no puedo hazer que quiera

com temor tal osadia.

D. Margarida Anriquez.

Com gemir y sospirar

bivo vida tam penada,

que no queda por passar

dolor, coitas, ni pesar,

que más no sienta doblada.

De la mi cativa suerte

mal por bien escogeria

y de mi pena tam fuerte

trocando vida por muerte

que muy mejor me seria.

Dona Orraca.

Por seren sem fin mis danhos

que dará viva memoria

de los mis males estranhos

que los menos som tamanhos,

que pesares me dam gloria.

Mi dolor com gran fatiga

no me dexa más bevir,

mas mi fee crecida diga

mi voluntad es amiga

de lo que se puede seguir.

Dona Guiomar de Crasto.

Mi trestura es fecha vida

do bive mi pensamento

y flama tam entendida

que no puede hazer fenida.

Mi cuidado e gram tormento

som los males que posseo,

tam esquivos de tal suerte

que la vida em que me veo

entre esperança y deseo

ay dos peligros de muerte.

Dona Isabel Pereira.

La mi gram coita presente

sobre todas muy mayor

de matarme nam contente

se contenta porque sente

que vevir es más dolor.

Los afanes desastrados

com las sobras de mi mal,

que sostengo trabajados,

los doo por bien empleados,

pues que Dios vos fizo tal.

Dona Maria d' Ataide.

Con angustias muy planhidas

vam mis dias com enojos,

y las noches mal dormidas  

em sospiros convertidas,

mal dormidas de mis ojos.

De tristeza toda lhena

es mi vida y de pasion

y mi libertad ajena

por morir em tal cadena

sofrir penas coraçon.

Dona Caterina Anriquez.

El bevir sim libertad

por bien amar y querer

no falhee em vos piadad

y servir com lealtad,

más esquiva y cruda ser.

El galardom que s' espera

por tanta fee vos tener

es una pena tam fiera

que em serviros no se muera

nada le pueda valer.

Dona Felipa Anriquez.

Si la mi triste ventura

com mis males descansasse

em dezir la mi trestura,

o de mal que tanto dura

se plazer ver esperasse,

folgaria de contar

la mi secreta passion.

Mas pues no puede prestar

escusado é hablar

com nadia mi coraçon.

112

DUARTE DE BRITO.

Olhar-vos fui desejar

pera sempre padecer,

e ver-vos, ver-me perder,

sem saber

maneira de me cobrar.

Porque assi me namorei

em ver-vos, quando vos vi,

que quando de vós parti,

parti-me de vós sem mi,

porque convosco fiquei.

Parti-me com afeiçam,

combatido de trestura,

trouxe vossa fremosura,

vossa duçura,

dentro no meu coraçam.

Que tanto me faz ser vosso,

de cuidado tam sobejo,

que sem vos ver eu vos vejo

tam vencido de desejo

que valer-me ja nam posso.

Pode vossa mercê crê-lo

que fiquei de vós roubado,

tam perdido d' ũ cuidado,

namorado,

que me daa gram dor dizê-lo.

Onde as horas por meus danos,

que se vam que nam vos vi,

polo plazer que perdi

horas sam que foram anos

de tormento pera mi.

Assi, dama graciosa,

a pena que me causastes,

quando vos vós amostrastes,

que matastes

com ver-vos tanto fremosa.

Matou-me logo querer

em ver-vos sem mais tardar,

perdi-me sem me cobrar

e matou-me em vos olhar

vosso lindo parecer.

E com isto de vós ja

é minha força vencida,

estaa em vós a medida

de minha vida

assi como em Deos estaa.

Vós tendes meu coraçam

cativo de vossa beleza,

eu por vós tenho tristeza,

vós de mim grande firmeza,

eu de vós sem galardam.

Fim.

Mas pois tanto mal consiste

em quanto vós causareis,

matar-me, pois, podereis

ou me fareis

alegrar ou fazer triste.

Me faz mui grande temor,

senhora Dona Ilena,

de dizerem que com pena,

que vossa mercê ordena,

morte ha ũu servidor.

113

DUARTE DE BRITO.

Com tal cuidado me vejo

des que, senhora, vos vi

que de morto de desejo

sem saber parte de mi

me perdi.

Perdi-me de namorado

de ver vossa fremosura,

donde quis minha ventura

que morresse de cuidado

com trestura.

E assi todo vencido

de olhar-vos, me senti

d' amores tanto perdido

que a mim desconheci

como vos vi.

Deu-me vossa fremosura

ũu cuidado mui sobejo

que me mata de desejo;

tenho por vós a trestura

em que me vejo.

Vejo-me de vós forçado,

quereloso com tristeza,

leixei convosco firmeza,

levo por vós ũu cuidado

mui dobrado,

de quem me vejo vencido

com querer-vos sem engano,

de quem tenho o desengano,

qu' está ante vós esquecido

meu dano.

Ver-vos me faz conhecer

minha morte conhecida,

e leixar-vos de vos ver,

ver logo de mim partida

minha vida.

E vejo, quando vos vejo,

a morte volta em prazer,

porque nam vos posso ver

quantas vezes eu desejo,

sem morrer.

Fez-me ser vosso cativo

vossa fremosura olhar,

que ter a vida que vivo

de cuidar e sospirar

e desejar.

Em vos ver mui desigual

senti pena mui dobrada,

vós ficastes descuidada,

do cuidado de meu mal

nam lembrada.

Eu fiquei de mi esquecido,

sem de mim mais me lembrar,

namorado tam perdido

que me nam sei emparar

nem remedear.

Dais-me mais pena crecida

que meu cuidado comporta,

com mal que nam se soporta

tenho eu por vós a vida

como morta.

Por vós sento e sei que é

minha vida em perigo,

ca por ter-vos firme fe

nam na posso ter comigo,

porque sigo

verdadeira fee e amor,

sem vos lembrardes de mim,

qu' ee sinal de minha fim,

mas nam fim de minha dor

des que vos vi.

Como vi vossa beleza,

que me daa vida penada,

vos tive tanta firmeza

como em vida namorada

nam é achada.

Com que ando contemprando,

todo perdido d' amores, 

vossos mui altos primores,

com sospiros confortando

minhas dores.

Fim.

Mas porque nam mate asinha

a pena qu' assi me trata,

enmendai, senhora minha,

quanto vossa vista mata

e desbarata.

Que nam me veja perder

de desejo cada dia,

porque tenha algũa via,

pois que nam vos posso ver

d' alegria.

114

PREGUNTA DE DUARTE DE BRI‑

TO A DOM JOAM DE

MENESES.

A vós que tendes poder,

poder pera insinar,

a vós que tendes saber,

saber pera responder

ò que quero preguntar.

De que qualidade vem,

pregunto, qual animal

quer mal a quem lhe quer bem

e bem a quem lhe quer mal?

Reposta de Dom Joam

polos consoantes.

Quem poder satisfazer

vossos louvores louvar,

poderá fazer e crer

que fareis vivos morrer

e mortos reçucitar.

Molher vi querer a quem

lhe queria mal mortal,

e ir mal a quem na tem

bem servido desigual.

115

DUARTE DE BRITO.

La mi vida sin ventura,

la mi ventura sin vida,

soledad com gran trestura

com vuestra gran fremosura

me dan muerte conocida.

Do com vida raviosa

quanto más mi muerte pido

tanto más veo forçosa

la querelha profiosa

de mi mal más encendido.

Tantos som los mis gemidos,

lastimados de dolor

y dolores encendidos

que de males tan crecidos

morir seria mejor

que vevir vida sofriendo

com deseo de morir.

Em vida muerte muriendo

menos piadad sintiendo

y más mal por vos servir.

Que vos pueda desamar

voluntad no me consiente,

ni por ver a mi matar

no puedo dexar d' amar

mi gran mal que no se siente.

I con tanta malandança

de la mi triste ventura

lo que dicha no alcança

seguiree con esperança

que me mate de trestura.

Mi vida desesperar

veo comigo morir,

viendo los fines estar

tam lexos de me cobrar

doo fim a lo por venir.

Com mis lhoros cada dia

viveran mis pensamientos,

morirá mi alegria,

muerte de la vida mia

y vida de mis tormientos.

Es mi pena tam crecida,

mi dolor tam desigual,

mi pasion tam sim medida,

que sostengo muerte em vida

quedando vivo mi mal.

Mis deseos encendidos

com sospiros y gemidos

y los mis tristes sentidos

más dudosos de perdidos

que de serem socorridos.

E com tanto mal crecido

de todo ya desespero,

que por vos triste cativo

ya no bivo porque bivo

y muero porque no muero.

¡Oh de min cativa suerte

quere ya mi bien sentirvos

de la mi plaga tam fuerte,

pues por vos mi vida muerte

nunca cesa de pedirvos!

Fim.

¡Oh si menos la mitad

como sam vuestras cruezas

tuvierades piadad,

no fuera catividad

lhena de tantas tristezas!

Mas tu que fim de tormiento

es de dolores fenida,

¡oh muerte, acabamiento!

porque acab' el mal que siento,

dad fim a mi triste vida.

116

DUARTE DE BRITO.

Oh sem ventura nacido

pera dor de sua vida,

d' amores mui mal ferido,

de cruel pena dorida,

por meo do coraçam

de ferida tam mortal

que nenhũa redençam

s' espera de tanto mal!

Se meu mal pesar vos desse

em meus dias soo ũu dia,

a morte que me viesse

por galardam tomaria.

Mas pois bem que me conforte

nam s' espera de vós nada,

milhor é ditoosa morte

que vida desesperada.

Mas com quanto mal me vem

por amar-vos desigual

nam queria ter mais bem

que pesar-vos de meu mal.

E meus desejos me fazem

contente morrer por vosso,

e meus olhos satisfazem

polo que dizer nam posso.

Algũa parte quisera

ter livre de sentimento

por ver triste, se podera,

dizer quantos males sento.

Mas tam morta é minha grorea

que de mim desesperado

o mor bem é a memoria

que me fica do cuidado.

Meu cuidado em vós cuidar

é por minha perdiçam

tam cruel em me matar

como vós no coraçam.

Meu desejo desejoso

me tem aa morte chegado,

justamente quereloso

e sem rezam condenado.

Fim.

Ó de mim tanto querida,

sobre todas em beldade,

havei ja mercê da vida,

da minha alma piadade.

Ca se nam quereis valer,

será, se muito tardar,

mais tempo de padecer

que meu mal remedear.

117

DUARTE DE BRITO.

¡Oh fuente de crueldad,

de lhoros y sintimentos,

robo de mi libertad,

y soledad

de mis tristes pensamientos!

Fuego mortal encendido

qu' em mi todo te derramas

y penetras com gemido,

Tu es cochilho que lhagas

mis entranhas com clamores

y renovas las mis plagas,

porque hagas

refrescarme mis dolores.

De matarme com tu ira,

cruel coraçon, reposa,

pues tu gram beldad te tira

a quien le mira

el nombre de piadosa.

Assi lhagam mis tristezas

tu coraçon dolorido,

como a mi las tus grandezas

de cruezas

com dolores me ham ferido.

I tal vida qual por ti

de mirar tu beldad tengo

tal la tengas tu por mi,

porque assi

crerás el mal que sostengo.

Por mostrares tu poder

enemiga com pasion,

plazer de mi desplazer

por te querer,

matar es tu galardon.

I por veres mucho más

tus cruezas desiguales

por plazer pesar me das,

es y serás

más alegre com mis males.

De los mis graves gemidos

tu eres mi triste deseo,

dolencia de mis sentidos

que perdidos

de pensar em ti los veo.

Tu eres el mi sospirar

y gloria de mis pesares,

que me hazes ir buscar,

pera lhorar,

los más desiertos lugares.

Muchas vezes hei tomado

de mi mal consolacion,

em pensar mi mal passado

he lhorado

vida tam sim compasion

que la mi ventura triste 

amando tu desamor,

quanto bien nelha consiste

no registe

com plazer el mi dolor.

Fim.

Veo tan sim fim mis danhos

de mi triste querelhoso,

y los mis males estranhos

ser tamanhos

qu' el morir m' ees descansoso.

Por serdes de mi querida

eres menos piadosa,

sola sim igual nacida

nesta vida,

sobre todas más fermosa.

118

CANTIGA DE DUARTE

DE BRITO.

Amor me fuerça y me prende,

temor me manda sofrir,

dolor me vaa descobrir

lo que mi seso defiende.

Amor con ansias mortales

de mostrar quiere mi pena,

temor com tristes senhales

todo mi bien desordena.

Amor que matar entende

mi mal se puedo sofrir

pues mesmo va descobrir

lo que mi seso defiende.

119

DUARTE DE BRITO.

Sam sete anos passados,

senhora Dona Ilena,

que vivo com tanta pena

que sam ja desesperados

meus dias, sem ter prazer,

com sospiros, pena tal,

que por nam sentir mais mal

peço morte por viver.

Por meu mal em vós folgar,

logo triste em vos ver

me comecei a doer

e tam tarde d' aqueixar

que minhas coitas dorosas

me nam dam lugar em fim

pera doer-me de mim

com lagrimas piadosas.

Cuidando de nam sentir

quanto mal por vós sentia,

amor me deu ousadia

pera meu mal descobrir.

Mas a pena encuberta

de minha justa querela

minha morte em dizê-la

veedes toda descuberta.

S' em dardes morte por vida

levais gram contentamento,

nam menos grorea sento

com meu mal, pois soes servida.

Que mais vos quero amando

morrer triste desta sorte

que mil vezes ver a morte,

minha pena vos calando.

Faz-me sentir menos mal,

mal de tam novo viver,

por nam poder esquecer

que moiro por ser leal.

Mas vossa grã esquivança

dores, coitas e tormentos,

com meus tristes pensamentos

vos daram de mim vingança.

Com grã dor, sem piadade,

de noite como de dia

sempre vivo em companhia

de desejo e saudade.

Faz-me triste quanto vejo

em cuidar cousas passadas,

as presentes sam choradas

de mim triste com desejo.

Se por mal meu bem haveis,

senhora Dona Ilena,

por esquecer minha pena

peço a morte que me deis,

pois vejo meu coraçam

sem emparo d' esperança,

com vossa pouca lembrança,

de meus males galardam.

E se algũs me julgarem

o estremo de meu mal

por fraqueza sofrer tal,

sei mui bem que se olharem

vossa grande fremosura

com vossos merecimentos

teram por bem os tormentos

em que vivo com tristura.

Faram menos minha culpa

minhas causas ser maiores,

que por vós com meus amores

desta culpa me desculpa.

Porque quem a vós perder

nam precure outra grorea,

e soo aquesta vitorea

alcanço por vos querer.

Fim.

Quem de meu viver ouvir

qu' em vida morte sostenho,

dirá quanta rezam tenho,

senhora, por vos servir:

porque quem a vós veraa,

s' algũa culpa m' assina,

vos fará disto tam dina

quanto a mim desculparaa.

120

CANTIGA SUA.

Pois quereis meu perdimento

sem de mim nunca sentir-vos,

se folgardes, mais consento

minha morte por servir-vos.

Com pena tanto crecida

tanto mal tenho sofrido

qu' antes morte que tal vida

quero, mais que ter perdida

esperança sobre perdido.

Pois com tantos males sento,

nam posso de mim partir-vos,

se folgardes, mais consento

minha morte por servir-vos.

121

DUARTE DE BRITO.

Haved dolor y pesar

de mis males grande duelo,

que despues de vos mirar

nunca más pude falhar

em vuestra beldad consuelo.

Ni reparo, porque muerte

no fuese de mi querida

mas que tal

vida triste, de tal suerte,

qu' es la vida dolorida

de mi mal.

Tanta es vuestra crueza

qu' el bevir me desempara,

tanto crece mi tristeza

quanto vuestra gram belheza

ante mis ojos se para.

Tanto em veros se acendió

em mi gram flama d' amor

com desear,

que mi gloria se perdió

y cobrase mi dolor

de vos mirar.

Quanto más triste deseo

ser menos mi mal que sea,

tanto más lo que poseo

dolor, coita, em que me veo

quiere que nunca lo vea.

Y con esto los mis males,

mis tristezas, y con elhas

mis enojos,

coitas y ravias mortales

acrecientan mis querelhas

a manojos.

La mi vida sostenelha

raviosa, cruda, fiera,

ganaria em perdelha,

mas la muerte por querelha

no me quiere que la quiera,

mas que viva por penarme,

porque muera más biviendo

quer ventura

darme vida y no matarme,

em que bivo yo muriendo

de tristura.

Son las sobras de tormientos

que mi lengua no renombra

los mis graves sentimentos

de dolores tam sim cuentos

qu' espanto delhos m' asombra.

No podiendo sobre tantos

esquivos males tamanhos

ya sofrir

pesares, lhoros y plantos

que los menos de mis danhos

puedo dezir.

Fim.

Io no siento mal que fuesse

que por mi se nom pasasse,

ni dolor que no sufriese,

ni muerte que me veniesse

que de grado no tomasse.

Mas la mi suerte cativa

de tantas lhagas me fiere

de cuidado

que la vida m' ees esquiva

y la muerte no me quiere

ya cuitado.

122

DUARTE DE BRITO JAZENDO

DOENTE, QUE LHE MANDOU

PREGUNTAR SUA DAMA

COMO ESTAVA.

A ti solo bien de mi vida

y plazer de mi tristura,

mi dulçor y amargura

por quem mi salud perdida

mi dolencia es sim cura.

A tal punto soy venido,

adolencido

com dolor del pensamiento,

que no sabe mi sentido

dezir triste lo que siento.

Nunca mi sospirar queda

de dar vozes com deseo,

mas dolor nunca te veo

de mi triste, por que pueda

descansar lo que poseo.

Nunca mis penas mortales,

desiguales,

em ti falhan compasion,

nunca gritos de mis males

despertarom galardom.

Nunca más te vi doler

de me ver por ti perdido

mas de ti sempre ferido

de mil muertes me vi ser

de ningum bien so querido.

Acurtaste mi bevir

por te servir,

mi dolor nunca t' olvida

donde más sem fim morir

veo triste la mi vida.

La mi vida pide muerte,

mi tormiento galardon,

mi cativo coraçon

de dolor y mal tam fuerte

no espera redencion.

Assi serviendo perdi

a ti y a mi,

a la fim com coita mia

piden muerte ante ti

mis tormientos cada dia.

Fim.

¡Oh inteira esperança

de los mis lhoros y pena,

de cruezas toda lhena,

de mi tristura folgança,

de mi soltura cadena!

La muerte que no me diste,

porque viste

que bevir es más dolor,

no la niegues a mi triste

sim ventura amador.

123

DUARTE DE BRITO.

Que dias tam mal gastados,

que noites tam mal dormidas,

que sonos tam desvelados,

que sospiros e cuidados,

que tristezas tam sentidas!

Que lembrança, que pesar,

que dor e que sentimento,

que gemer, que sospirar,

que males pera chorar

dentro em meu coraçam sento!

Sento sempre meu desejo

encontra de mim esquivo,

sento tanto mal que vejo

meu cuidado tam sobejo

que nam sam morto nem vivo.

Sento certa minha morte,

sento nam ver minha fim

sem ver bem que me conforte,

sento pena de tal sorte,

que nam sei parte de mim.

Vós, meu nojo e meu prazer,

meu pesar e minha groria,

meu desejo e meu querer,

vela de minha memoria,

descanso de meu viver.

Desamor de meu amor,

quem meu bem e mal ordena,

meu prazer e minha dor,

meu descanso, minha pena,

meu favor e desfavor.

Minha morte e minha vida,

meu bem e todo meu mal,

minha doença sentida,

minha doença e ferida

de minha chaga mortal.

Meu desejo e saudade,

de meus males galardam,

tormento sem piadade,

doce coita da vontade

de meu triste coraçam.

A memoria, enganada

de meus tristes pensamentos,

anda chea, desvelada,

em lagrimas mui banhada

com grã força de tormentos

e continua tristura,

com que ando sospirando

com voz chea d' amargura;

s' algum bem me daa ventura,

mo tiras desesperando.

Fim.

Dam a fee de meus gemidos

as lagrimas piadosas,

de que sentem meus sentidos

dos secretos escondidos

de minhas coitas dorosas.

Cada dia, cada hora,

assi ando desta arte,

de meu sentido tam fora

como quem canta e chora

que nam sabe de si parte.

124

CARTA DE DUARTE DE

BRITO A SUA

DAMA.

Senhora:

Pois vossa mercê nam crê

minha grande perdiçam,

dir-vos-á meu coraçam

quam mal faz vossa mercê

de matar a quem nam vê

outro bem

senam vós, triste por quem

sam perdido de remate,

sem saber vida que cate

e que me mate,

se folgais, milhor me vem.

Conquanto por vós s' ordena

mais meu mal, assi vos amo

e a mim tanto desamo

que folgo com minha pena.

É tam grande a mais pequena

dor que tenho

que vida, morte sostenho,

senhora, por vos amaar,

e se dor me faz cuidar

vos desamar,

comigo me desavenho.

Sempr' em vós, meu bem, cuidando

sam da morte desejoso

e da vida mais queixoso,

por meu mal se ir dobrando,

por vós mais me vam matando

as esquivanças

de minhas vivas lembranças

e raivas de meu coraçam,

que por vós vejo que sam

fim de minhas esperanças.

De vós mais que me cative,

eu sam mais desesperado

por amar-vos desamado,

ó mor bem que nunca tive;

e assi morrendo vive,

com esquivança,

a vida sem esperança

qu' ũa fee, cuja firmeza

nam pode vossa crueza

nem tristeza

fazer ja em mim mudança.

Se meus males à memoria

me vêm de quantos sostenho,

a vida por morte tenho,

a morte por viva grorea

onde mais sento vitorea.

De meus amores

sento triste tantas dores,

de tormentos tam crecidos,

que meus males desmedidos,

com gemidos,

de mim vejo matadores.

Por descanso de meu mal

vam crecendo meus cuidados,

de vós tam desesperados

qu' esperança me nam val,

e de vivo tam mortal

meu pesar

que muitas vezes cuidar

me faz cuidar o que sento:

que meu triste pensamento,

com tormento,

m' acab' entam de matar.

Se vos tanto nam amara,

nom sentira esquivança

de vós tam sem esperança,

ca se me desesperara,

nem por vós tal dor passara

como sento,

nem vira meu perdimento

ser ũa pena tam forte,

que nam sento nem sei morte

de tal sorte

que seja igual em tormento.

Oh quantas vezes cativo

vejo diante de mim

minha morte sem dar fim

à triste vida que vivo!

Ca meu mal é tam esquivo

qu' o que sento

com tam grande sofrimento

que será milhor morrer

ũa morte que sofrer,

por vos querer,

cada dia mais de cento.

Fim.

Leixo mil cousas passadas

de contar, cuja lembrança

sento sem ter esperança

de as ver gualardoadas.

Por nam serem mais lembradas

as desiguaes

tristezas minhas, mortais,

que sento por vos amar,

nam vos quero mais contar,

que as passar,

por me nam matarem mais.

125

DUARTE DE BRITO A SUA

DAMA, ESTANDO

PRESO.

Por vós, minha esperança,

fim de todo meu desejo,

de meus cuidados lembrança,

emparo da esquivança

dos males em que me vejo;

por vós vivo tam penado,

vida triste de tal sorte,

d' esperança tam roubado

que desejo ver trocado

minha vida pola morte.

Meu desejo com porfia,

com cuidado, é tam sobejo

que de noite e de dia

ante minha fantesia

sem vos ver sempre vos vejo.

Sem saber mais bem que cate

com que minha dor conforte,

mas meu mal neste combate

nam daa vida sem que mate

nem remedio sem dar morte.

Meu desejo com lembrança

querendo mais esforçar-me,

quanto bem dele s' alcança

leva logo a esperança

pera mais desesperar-me.

Minha vida por morrer

descontente se contenta,

ca por vosso merecer

meu pesar me daa prazer

quando meu mal me presenta.

Menos de vós esperando

meu cativo coraçam,

sempre em vós, meu bem, cuidando

dá mais vida desejando

a meu mal por galardam.

De maneira que cativo

a triste vida que sento,

do meu grande mal esquivo,

meu cuidaddo torna vivo

quanto mata meu tormento.

Fim.

Folgara por nam penar

poder-vos nunca servir,

por leixar de desejar

a vida por vos amar,

a morte por nam sentir.

Chorarei, porque naci,

meus males sempre comigo,

ca, meu bem, des que vos vi

meus sospiros apos si

levam minh' alma consigo.

126

REPOSTA DE DUARTE DE BRITO

A ŨA CARTA QUE LHE

MANDOU SUA

DAMA

Ó vós, todo meu querer,

meu primeiro sospirar,

meu derradeiro prazer,

desejo de meu viver,

começo de meu pesar,

doei-vos de mim cativo,

que vivo e nam sei como,

pois nam sam morto nem vivo,

mas de tanto mal esquivo

por remedio morte tomo.

Sempre triste tal me vejo,

de prazer tam apartado,

que com bem e mal que vejo,

meus sospiros com desejo

me têm à morte chegado.

De ver ir com desamor,

tal vida como sostenho,

sempre de mal em pior,

em mim sempre fica dor

no mor conforto que tenho.

De vos ver me vejo tal

com dor qu' assi m' atormenta,

com pena tam desigual

que nam sento nem sei mal

que meu coraçam nam senta.

Sem lembrar-me de mais vida

da que servindo perdi,

qu' em sospiros convertida,

d' esperança despedida,

desd' a hora que vos vi.

Pois folgais com meu penar

e penais com meu prazer,

quero, por mais vos amar,

que vivais em me matar

e eu que moira em vos querer.

Pois vejo por vos servir

que meu mal nunca sentistes,

eu de mil penas sentir

minhas lagrimas seguir

vejo a meus sospiros tristes.

Com grã dor de meu cuidado,

de mortal chaga ferido,

tanto me vejo penado

que amando desamado

vos perdi e sam perdido.

Minha vida sem ventura,

d' esperança descuberta,

é tam chea de trestura

que o bem que me precura

é de ver a morte certa.

Fim

Tam cruel pena consento

que me sam mortal immigo,

mas que cale meu tormento,

os sospiros do que sento

vos diram o que nam digo.

Ó morte de mim querida,

nam queirais ja mais tardar!

Pois que vivo sem ter vida,

vós sereis nisto servida,

eu content' em acabar.

127

DUARTE DE BRITO QUE

HAVIA MUITO QUE NAM

VIRA SUA DAMA.

De vos ver a mi vencido

me veyo por vos morir,

por vos me veyo perdido

d' esperança despedido,

mas no de triste vevir.

Por vos morte se m' ordena

olhando vossa beldad,

es mi gloria fecha pena

y el mirarvos la cadena

que prendió mi libertad.

Sobre mi vuestro poder

com mi aspera crueza

mi servirvos y querer

hame dado a conocer

vuestro amor y mi tristeza.

Mas mirad que sim razon,

que por ser desconocida,

por matar el galardon,

dais la muerte al coraçon

que sim vos no vive vida.

Comigo por vos lhorando,

mi vida que nunca muere

anda la muerte lhamando

com deseo sospirando

que matarme nunca quiere.

Quer que biva por sofrir

mi dolor de tal manera

el bevir pera sentir,

el morir por no bevir,

porque no biva ni muera.

Com mil dolores mortales

mirando vuestra vertud

los estremos que som tales

em la muerte com mis males

vam buscar a la salud.

Y ansi por esta via

por la mi triste ventura,

com dolor sim gram porfia,

daraa fim la vida mia,

mas no fim la mi tristura.

Fim.

Pues que tanto lo que quiero

de mi lexos está dudoso,

doledvos de mi que muero,

lhorad la vida qu' espero,

coraçon triste, pensoso.

Porque a todo mi sentir

mis sentidos sojuzgados,

pensando los por venir

los dias de mi bevir

ya los cuentos por pasados.

128

DUARTE DE BRITO, ESPEDI‑

MENTO DA PARTIDA.

Antes de ser a partida,

que de vós me desespera,

que será de quem espera

de primeiro nam ter vida!

Que seraa triste de mim

que sem ver-vos, com pesar,

desejo de me matar

por meus males darem fim!

Com pena de mil tormentos

vevirei vida morrendo,

sem vos ver sempre vos vendo

em meus tristes pensamentos.

E com vida triste tal,

se vos nam vir desta sorte,

com esperança de morte

curarei todo meu mal.

Sem vos ver com gram pesar

com meus males desmedidos,

nam farei senam chorar

com sospiros e gemidos.

Porque morte que nam queira

nem a vida consentir,

o tempo que nam vos vir

passarei desta maneira.

E assi vivo sem vida

e desejo de morrer,

viverei onde viver

com dor de morte sentida.

Dos que vivem sem cuidados

meu viver seraa ausente,

com lembranças do presente

chorarei tempos passados.

Onde triste, sem ventura,

sendo mais vosso cativo,

serei morto sendo vivo

sem ver vossa fremosura.

Com minha vida cativa

sem esperar redençam

em meu triste coraçam

vos verei enquanto viva.

Fim.

E assi seraa meu mal

deste bem galardoado

e aqui seraa acabado

meu tormento desigual.

E aqui donde partir,

partindo com gram pesar,

olhos que me viram ir

nunca me veram tornar.

129

DE DUARTE DE BRITO A

JOHAM GOMEZ

DA ILHA.

Eu corto tanto d' agudo,

onde quer que ponho a lingua,

que farei falar o mudo

e calar ũu gram sesudo,

ou ficar em grande mingua.

Nam hajais por maravilha

nam vos errar ũa melha

por cortar por roupa velha,

mas nam pola de Sevilha.

Isto é como anagaça

por vos tirar da barreira,

por ouvir algũa graça,

mas cospinho pera a chaça

nam tereis à derradeira.

Eram vossos tempos autos

nas festas da Emperatriz,

mas agora calar chiz,

nam é tempo de cris autos.

Nam vos toco mais azedo

por nam desfechar em vãao,

mas nam ja com vosso medo,

porque sei que tarde ou cedo

m' haveis de cair na mão.

Precurai outra ciencia

leixar a mim o trovar,

nam vos quero mais picar

por cargo de conciencia.

Com minha orelha pença

que como lobo embuça,

leixo por vossa presença

dina de gram reverença

tornar mais a escaramuça.

Bem contesto quanto avonda,

pois dou sempre polo alvo,

quem repica, está em salvo,

quem houver medo, s' esconda.

Reposta de Joham Gomez

polos consoantes da pri‑

meira trova.

O vosso udo e meudo

me rompe pola relinga,

vem o treu cá tam sanhudo

que meu masto com seu tudo

ja vai fora da relinga.

Os pregos deixam a quilha

por ser muito velha relha,  

mas o irmão d' Avangelha

me salva com Calçadilha.

Duarte de Brito polos

consoantes.

Dais pedrada em vosso escudo,

vossa reposta me vinga,

com errardes vós concludo,

de meu fraco saber rudo,

qu' encalhastes na restinga.

Tal reposta ponde em pilha,

pois errastes toda aquelha,

tomai a pôr na querelha

trovar mal e parir filha.

Duarte de Brito a Joham

Gomez, porque lhe

nam respondeo.

Como beesteiro de monte,

que sabe furtar o vento

por fazer milhor chegada,

com sua beesta na fronte

passo e passo com gram tento,

porque dê milhor seetada,

assi eu com minhas trovas,

levemente, com saber,

vos furtei os consoantes

por ũas palavras novas

que d' agudas e galantes

nam lhe sabeis responder .

Reposta de Joham Gomez

polos consoantes.

Vós me fareis que remonte

o mais alto acimento 

como garça falcoada,

ou me fareis que tresmonte,

como de acossamento

faz ũu cervo de levada.

Ca me provais duas provas

mais fortes que diamantes,

assi craras d' entender,

que ressurgindo das covas

os cientes trespassantes

as nam possam comprender.

130

DE DUARTE DE BRITO

A ŨA SENHORA.

Desmaio de meus amores,

fim de minha triste vida,

oh cruel, mortal ferida,

oh chagas de minhas dores,

desejo desesperado

de meu triste pensamento,

galardam de meu tormento,

lembrança de meu cuidado!

Oh descanso de meu mal,

esperança de meu bem,

donde quanto mal me vem

hei por groria desigual!

Oh querer de meu querer,

oh causa de meus cramores,

começo de minhas dores,

fim de todo meu prazer!

Oh meu menos galardam,

oh de mim tanto querida,

desejo de minha vida

e dor de meu coraçam!

Oh de mim sempre memoria,

de meus dias sepultura,

minha dor e gram tristura,

de meus olhos vivos groria!

Tanto me forçou vontade

a querer-vos de tal sorte

que me dais vida por morte

mui cruel sem piedade.

Tantos sam os sentimentos

da minha grande tristeza,

que nam sento da crueza,

que nam senta de tormentos.

Tam vencido é o desejo

de meu triste pensamento

qu' ee tornado em tormento

o cuidado em que me vejo.

De maneira que viver

nam desejo nem queria,

de morrer me pesaria

por servir-vos nam poder.

Fim.

Mas a morte é forçado

de vós e de mim amiga

que vos livre de fadiga

e a mim triste de cuidado.

Assi triste acabaria

minha vida sem ventura,

com ajuda de tristura

muito mais a mim faria.

 

131

OUTRAS SUAS.

Alegre pena de mim,

doce tormento e mal

de minha vida,

de meus dias triste fim,

de mim sempre por meu mal

bem querida.

De meus olhos alegria,

trestura, dor e gemido

de meu coraçam,

por quem choro noite e dia,

viva dor de meu sentido

e perdiçam!

Doce pera meu desejo,

triste pera minha vida

mal lograda,

bem do mal em que me vejo,

minha morte conhecida,

desejada.

Cruel a mim desleal

que por meu mal escolhi

com grande amor,

e por quem sento meu mal,

mas bem nunca conheci

com desfavor.

Desfalece meu sentido,

meu juizo sem memoria

contemprando

esforça-se com gemido,

minha pena me dá groria

desejando.

Meu cuidado me desvela,   

meu coraçam piadade

vos demanda,

e minh' alma se querela

com pena de crueldade

em que anda.

Que gainho de minha morte

e perda de minha vida

tam cativa,

esperar pera tam forte

me dar pena tam crecida,

tam esquiva!

Nam sei que vos possa vir

de meus males outro bem

com minha fim,

senam folgardes d' ouvir

dizer mal quantos me vem

a vós por mim.

Pois galardam de meu mal

ha-de ser a sepultura,

ja, cativo,

sam chegado a tempo tal

que sam morto de tristura

sendo vivo.

Por amor qu' em mi sempr' aarde

faz-me bem e gram pesar

mui sem medida,

pera meu remedio tarde,

e cedo pera chorar

minha vida.

Fim.

Ó morte tam piadosa,

onda cruel e immiga

sem ventura,

de meus males desejosa,

de meus pesares amiga.

Com trestura,

gram conforto meu tormento

com a moorte tomaria

por acabar,

e meu triste pensamento

como eu descansaria

de sospirar.

 

132

DE DOM JOAM MANUEL À MORTE

DO PRINCEPE DOM AFONSO, QUE

DEOS TEM, EM MODO DE

LAMENTAÇAM.

A lagrimas tristes, a tristes cuidados,

a graves angustias, a mortal dolor,

tu t' apareja, discreto leitor,

lendo mis lhantos tan amargurados.

Mortales singultos, sospiros dobrados,

dad fim a mi vida, que es pena mayor,

y quebren mis ojos, pues viran quebrados

los vuestros ¡oh Princepe nuestro Senhor!

¿Que fue de la vuestra tan linda estatura,

que tanto excedia las otras del mundo,

la fronte serena del rostro jocundo,

que fue de la vuestra hermosa fegura?

¿Ado halharemos a la hermosura

de los vuestros ojos tan mucho estremados?

Vayamos, seguidme, ¡oh desventurados!

rompamos, rompamos la su sepultura,

A ver se halharemos sus muy sublimadas

virtudes ynmensas, autos muy humanos,

a ver se halharemos sus muy lindas manos,

por muchas mercedes de todos besadas.

¡Oh fiestas malditas, desaventuradas,

que luego tan presto vos haveis tornado

em lhoro el prazer, enxerga el borcado,

las danças en otras muy desatinadas!

¿Ado vos lhevaron, oh nuestro plazer,

que assi tan apriessa, Senhor, vos partistes,

que a vuestros padres y cara mujer

ninguna palavra dezir le podistes?

Ni a vuestro tio que tanto quesistes

cosa del mundo quisestes oir,

assi los dexastes a todos tan tristes

que fueron alegres d' entonces morir.

¿Que hará vuestro padre que assi vos amava,

que dia ninguno podia bevir

sin vervos naquel entrar y salir

dozientas mil vezes ado el estava?

El que de vervos jamas se hartava,

que muerte tan fiera le será el ausencia,

desesperado de ver la presencia 

daquel que com tanto recelo criava.

¡Guay de la madre que vio tan aina

el bien de su vida assi fenecer,

a quien solorgia, saber, medicina,

poder ni riquezas podieron valer!

Quedó despedida de jamas vos ver

ni de ver cosa que no fuesse pena,

¡oh muerte maldita, que más mal ordena

a quien en tal vida da permanecer!

¡Oh alta Princesa, la más virtuosa

que oyeron ni vieron jamas los humanos,

del vuestro marido sin fin deseosa,

sin fin deseada de los lusitanos!

Nefanda Furtuna y casos mundanos

por nuestros pecados han deliberado

de los vuestros braços ser arrebatado

y puesto de donde le coman gusanos.

¡O quan desimiles fueron y son

la vuestra venida y vuestra tornada,

la una tan prospera y tan sublimada,

la otra tan lhena de tribulacion!

De marmor por cierto es la condicion

que pudo sofrir ver como partistes,

se vido y se niembra de como venistes

de tan poco tiempo tan gran mutacion.

¡Oh inclito Duque, el tu sentimiento

aunq' escrevir quisesse mi pluma

es empossible que sola la suma

diga, si quiere dezir tu tormento!

Tus ojos nos muestran que tu pensamento

jamas no se parte de quien te partiste,

aquel su tristeza passó num momento

e tu pera siempre ternás vida triste.

A tal desventura, a mal tan crecido,

es emposible poder consolar

tu anima triste, que tiene perdido

habitaculo otro muy singular.

Por cierto naquesto no hay que dudar,

que es conclusion muy cierta y muy prima

qu' el anima nuestra alhi suelle estar

más donde ama que no donde anima.

Quan prospero fuera quien fuera delante,

por no ver la cumbre de tanta tristura,

y participara de su sepultura

quien fue de su camara participante.

Tristes daquelhos que agora denante

cantamos sus bodas en lento consorcio,

aora lhoramos su triste devorcio

del uno al otro no hovo un estante.

Fim.

Qualquiera que sufre tan grave manzilha

no busque manera de ser consolado,

no menos m' escusa aquesta obrezilha,

pues lamentacion sea intitulado.

Dios todo poderoso ser deve rogado

que aquesta muerte, que agora lhoramos,

que nos neste mundo da triste cuidado

nel otro nos cause que alegres seamos.

133

DE DOM JOHAM MANUEL.

Por donde começaremos,

coraçam triste, a dizer

tristeza quanta sofremos

que nos nam presta sofrer.

Nam presta dissimular,

muito menos descobrir,

nam val calar nem falar

serviços nem desservir.

Tudo vem a ũa conta

ante quem meu mal ordena,

por fadiga nem por pena

nenhũu mal se me desconta.

Ventura, vós que causastes

que nom sei remediar-me,

acabai ou acabai-me,

pois tam cedo começastes.

Ainda nam acabara

de chorar casos passados,

quando com novos cuidados

vossa vista me depara.

Vendo-me perder assi

nunca me quis desviar,

antes me deixei forçar

dos olhos com que vos vi.

Comprendeo esta querela

a vós, senhora, e a mim,

a vós que soes causa dela,

a mim que a consenti.

Mas s' a mim nam me desculpa

serdes vós tam acabada,

chamar quero a minha culpa

culpa bem aventurada.

Fim.

Ficamos eu desculpado  

e vós, senhora, obrigada

a sequer serdes lembrada

de meu cativo cuidado.

E se por consentidor

pena algũa mereci,

desconte-se pola dor

que de ver-vos recebi.

134

SUAS A ŨA SENHORA SEM

SE NOMEAR.

Quem, sem lho eu merecer,

me causou mal tam crecido,

nunca Deos lhe dê prazer

nem marido.

Todo seu segredo seja

descuberto,

nunca seu desejo veja

comprido com fim honesto.

E todolos seus amigos

lhe queiram mal de verdade,

hajam dela seus imigos

piadade.

E de quem for namorada,

cada dia

se veja tam desprezada

que moira de fantesia.

Deos lhe mande tristes fadas,

seus sospiros e gemidos

sejam dele respondidos

com rinchadas.

Mais que ela seja fermosa, 

a terceira,

seja dela tam raivosa

que se torne feiticeira.

Bocado quente nem frio

que dele fique da cea,

nem muito menos candea,

cabelos seus por pavio,

carta queimada e bebida,

que lhe dem,

a façam menos querida,

querendo-lh' ela mor bem.

Quanto bem fantesiar

polo contrairo lhe venha

e quanto mal esperar

tanto tenha.

Ao pee da fresta adormeça,

se vier,

e cada dia avorreça

a vida mais qu' o morrer.

Fim.

Com muito prazer se vaa

e ela fique chorando,

ande sempre preguntando:

— Casou jaa?

Respondam: — Por certo ham

que é casado,

para que fique vingado

Dom Joham.

135

CANTIGA SUA.

Minha ventura minguada

que amasse m' ordenou

a molher que mais errou

contra quem a mais amou

do que foi molher amada.

Oh se nunca conhecera

cousa tam desconhecida,

nam gastara minha vida,

nem folgara ter servida

quem mo nam agradecera!

Fortuna desordenada,

que meu bem desordenou,

fez errar a quem errou

contra quem a mais amou

do que foi molher amada.

136

PREGUNTA DE DOM JOHAM

MANUEL A ALVARO

DE BRITO.

Aprendi de Ciçarram

qu' ha via d' amoestar,

d' alegar ou d' ensinar

qualquer prudente sermam.

E pois sois outro Platam,

esta duvida pequena,

pondo no papel a pena,

ma tireis do coraçam.

Se fosse mui namorado,

cousa que Deos nunca mande,

qual terei determinado

de dous males qual mais grande:

sendo ela mui fermosa

achá-la muito sentida

de mim e muito quexosa,

ou antes mui esquecida?

Reposta d' Alvaro de Brito

polos consoantes.

Em prudencia soes Catam,

antre nós um singular

de inventar, executar

façanhas de Cepiam.

Com franca desposiçam,

senhor, sem tino, sem lena,

respondo ledo, sem pena,

à vossa gentil questam.

Namorar nam é pecado

onde amor nam se desmande,

mas o mui sobrepojado

eu nam sei como s' abrande.

Esquecida, desdanhosa,

mais mal traz sendo querida

que a queixosa, sanhosa,

sentida, nam esquecida.

De Dom Joam polos

consoantes.

Vossa muita discriçam,

gentil modo de trovar,

faraa crer e confessar

cousas de contradiçam.

Mas pois qu' esta altrecaçam

d' amores se nos ordena,

quem faz com eles querena

sabe sua condiçam.

Primeiro crucificado

me veja que neles ande,

qu' assi fiquei assombrado

d' ũus que me Deos nam demande.

Achá-la muito sanhosa

causa dor muito crecida,

esquecida pior vida,

dama menos trabalhosa.

Alvaro de Brito polos

consoantes.

Com alta repricaçam

me fezestes embranhar

e tornei-m' a confortar

com minha openiam.

Conformes a tal tençam

Mancias, Pares, Helena,

e com estes Joam de Mena,

Joam Roiz del Padram.

No namorado cuidado

força de fortes s' abrande,

d' esquecido, sogigado, 

nam sei mal que mais tresande.

Queixosa torna amorosa

quando se vê bem servida,

mas a dama que s' olvida

mata mais de grandiosa.

137

DE DOM JOHAM MANUEL ESTAN‑

DO NA GRACIOSA, EM

LOUVOR DE NOSSA

SENHORA.

Ó Virgem, madre de Quem

todalas cousas criou,

o Rei qu' em Jerusalem

por seu sangue nos comprou.

O Qual Te porificou

dando-Te vertude tanta

que Te fez cousa mais santa

de quantas Ele formou.

Tu louvada dos Profetas

e dos Anjos noite e dia,

Tu, vitoria nos envia,

dos danados macometas.

Perdam de culpas secretas

a teu Filho nos emplora

e tambem das descubertas,

pois es nossa entrecessora.

138

DOM JOAM MANUEL

EM LOUVOR DE

SANTO ANDRE.

Apostolo santeficado

primeiro na santa lei,

cujo corpo consagrado

assi foi cruceficado

como o devino Rei.

Que antes de padecer,

vendo a cruz espantosa,

começaste sem temer

alegremente dizer:

— Oh salvé cruz preciosa,

Exclamaçam.

Poetas ou trovadores

que despendeis vossos dias

em dizer cem mil primores

de Copido e de Mancias,

do bem nam diz bem ninguem,

e mal louvaes desigual,

sois trovadores do bem

e bendizentes do mal.

Mais fez certo Santo Andre,

santo per Deos escolhido,

por Jesu de Nazaree

que Piramo por Tisbee,

nem que por Eneas Dido.

Mas s' ele assi padecera,

como por Deos, por amores,

oh quam muitos de louvores

de vós todos recebera!

A graça com que trovaes

a vida de Deos eterno

com ela nunca O louvaes,

mas louvaes e invocaes

os diaabos do inferno.

Nom vedes que mereceis

por isto duro castigo,

sabeis que traiçam fazeis

co que d' Ele recebeis

is servir a seu immigo.

Mas viraa o espantoso

juizo de quem se conta,

qu' a Deos todo poderoso

de todo verbo oucioso

daremos estreita conta.

O qual pois que nos desconta

as palavras ouciosas,

por mentiras tam pasmosas

contemprai que se nos monta.

Oraçam em fim.

Apostolo santo primeiro,

de grande merecimento,

pois te quis Deos verdadeiro

na vida por companheiro

e por çocio no tormento.

A ti com gram devaçam

pedimos os sopricantes

qu' ante Deos tua paixam

de teu alto gualardam

nos faça partecipantes.

139

CANTIGA.

Triste ¿ que seraa de mi?

que mire tu gran beldad,

que temo desque te vi

no pierda libertad.

Y seré yo cativado,

siendo livre nacido,

y no seré libertado,

antes seré sometido.

A ti que poder en mi

tienes por tu gran beldad,

que temo desque te vi

no pierda la libertad.

Grosa de Dom Joham Manuel

a esta cantiga.

Pues es cierto a los que viven

penada vida por ti

que quanto mejor te sirven,

maiores penas reciben,

triste ¿que será de mi?

Si el que más te servir   

com fee, amor y lealtad,

mayor pena ha de sofrir,

por mi mal puedo dizer

que miree tu gran beldad.

Y por mi gran desventura

pienso que te conoci,

pues tu mucha hermosura

la muerte no me segura

que temo desque te vi.

Mas ni solo este temor

sostiene mi voluntad,

ca otro tiene mayor,

el qual es que por amor

no pierda la libertad.

La qual despues de perdida

viendome desesperado,

que vida será mi vida,

pues que hasta su fenida

seré yo cativado.

Ca por menos mal hoviera

la muerte que haver sido,

com toda mi pena fiera,

cativo fasta que muera

siendo libre nacido.

Assi que mi mal secreto

será tan continuado,

que sey tiengo por cierto

que por el seré yo muerto

yo no seré libertado.

Y mi coraçon dará

causa a mi mal tan crecido,

mas de si me vengaraa,

pues nunca libre seraa,

antes seré sometido.

Mas lo que me satisfaze

el mal qu' espero de ti

es que si muerte me traze,

soy cierto que no desplaze

a ti que poder em mi

tanto tienes que mudarme

no puede tu crueldad,

que seraa grande matarme,

pues que poder de salvarme

tienes por tu gran beldad.

Mas ni esta sogeicion,

ni los males que me di

desvian mi coraçon

de la terrible passion

que temo desque te vi.

Antes mi determinado

quiere su catividad,

mas lo que temor le ha dado

es que siendo desamado

no pierda la libertad..

140

CANTIGA DE DIOGO

DE SALDANHA.

Ojos tristes, ojos tristes,

triste coraçon pensoso,

estando ya de reposo

nuevo cuidado me distes.

De mi vida trabajosa

¿quien halharé que se duela?

Mi anima querelhosa

em pena mal se consuela.

Vos fezistes, vos fezistes

a mi de vos querelhoso,

ojos tristes, yo no oso

dezir de quien vos vencistes.

Grosa de Dom Joam Manuel

a esta cantiga.

¡Oh vida desesperada

de nunca plazer sentir,

triste, muy desventurada,

deseosa de morir!

¡Oh cativos amadores,

qu' el mal que siento sentistes,

doledvos de mis dolores!

¡oh de mi mal causadores,

ojos tristes, ojos tristes!

Por vuestra contemplacion

ordenoo mi triste suerte

a mi terrible passion

pues vuestra conversacion

a mi coraçon es muerte.

Y con este sentimiento  

vivo yo mucho quexoso,

pues por su contentamiento

tu recibes el tormiento,

triste coraçon pensoso.

Mas no tan mucho me diera

si el mal que de nuevo siento

naquel tiempo me viniera

en que yo desta manera

con mi mal era contento.

Mas mi ventura no buena

y mi hado desdichoso

dieron, por darme más pena,

a mi libertad cadena

estando ya de reposo.

Los quales tanta mudança

quieren que mi vida pene,

que ningun plazer alcança,

ni tiene más esperança

que quanta la fee contiene.

Y daquesto lastimada

me dizen: — Siempre quesistes

en muerte verme tornada,

pues que veo que de nada

nuevo cuidado me distes.

Mas yo, que más ajeno

de mi que de culpa soy,

le digo: — Se mucho peno,

de merecimento lheno

me haze el mal que me doy.

Replica hombre perdido:

— Dartean paga danhosa,

siendo ya de mi partido.

Y aqui quedee vencido

de mi vida trabajosa.

E quanto más la rezon

m' ees contraria de todo,

más me daa tribulacion,

pues viendo mi perdicion

le sigo contrario modo.

Por lo qual ¿quien con passion

terná del mal que m' assuela?

ca pues no mi coraçon

se duele de mi passion,

¿quien halharé que se duela?

Mas no se dev' entender

que quien causa desto fuesse

se no deva condoler

de la que hizo perder

el poder pera valerse.

Ca pues fue causa evidente

de mi muerte tan raviosa

qu' es el efeito siguiente

sentir deve el mal que siente

mi anima querelhosa.

El qual es de comportar

assi grave y tan profundo,

tan sin remedio penar,

que me haze desear

lo que teme todo el mundo.

Por morir mi pena fuerte,

que mi coraçon recela,

vida me dará la muerte,

pues que viviendo mi suerte

en pena mal se consuela.

¡Oh si nacido no fuera!

¡Oh fados, que m' otorgaastes

la vida que no tuviera,

tal vida no me prendiera

qual mis ojos me causastes!

Ca por vos me fue venida

mi passion, despues que vistes

quien es con mi mal servida

y ser tan triste mi vida

vos fezistes, vos fezistes.

Vos fezistes mi tormiento

tan grande ser y tan fiero,

que mi gran merecimiento

me deve tener contento

y la gran fama qu' espiero.

Fezistes mi perdicion

ser cierta, siendo dudoso

de recebir gualardon,

lo qual hizo con razon

a mi de vos querelhoso.

Item por más mi passion

ser terrible de sofrir,

feristes mi coraçon

con pena de tal facion

que no la oso dezir.

Y a quien dezir devria

halhome tan temeroso

que mil vezes en el dia

dezirle mi mal podria,

ojos tristes, y no oso.

Fim.

Contodo no tardaraa

dezirlo y guanaree

que algun bien me hará

o tanto mal me daraa

que muera y acabaree.

Y pues nel mal que me vino,

tristes ojos, me posistes,

por mi tormiento contino

haver fim yo determino

dezir de quien vos vencistes.

 

141

CANTIGA.

Despedistesme, senhora,

vida mia ¿ado m' iree?

No biviré sola un' hora,

cierto es que moriré.

Irme he a tierras estranhas,

ali tal vida haree,

vida com las alimanhas

tal consuelo me daree.

Altas bozes bradaree:

— ¿Do está la mi senhora?

No biviree sola un' hora,

cierto es que moriree.

Grosa de Dom Joham Manuel

a esta cantiga.

Naqueste tiempo de agora,

quando más triste me vi,

quando más pena senti,

despedisteme, senhora.

¡Oh fermosura sin medio!

¿como, me consolaree?

Sin vervos no ha remedio,

¿vida mia, ado m' iree?

Siempre mi pena empeora,

siempre crece mi cuidado,

pues sin vos desventurado

no biviree sola un' hora.

¡Oh triste! ¿ado fuiree

que no me mate tristura?

No viendo tu hermosura

cierto es que moriree.

En mi mostraste tus sanhas,

olvidada de mi danho,

mas pues mi hazes estranho

irme he a tierras estranhas.

Alhi siempre lhoraré

mi vida desventurada,

triste y muy desconsolada,

alhi tal vida faree.

Coraçon desventurado,

tu que siempre me acompanhas,

bivirás desconsolado

vida con las alimanhas.

Las yervas siempre comiendo

mis lagrimas beveree,

mis males siempre gemiendo

tal consuelo me daree.

Será em estremo acabada

mi vida, mas no mi fee,

y por mi muerte cuitada

altas bozes bradaree.

Y diree con gran tormiento,

de que fueste causadora:

—¡ Oh muy triste pensamiento!

¿donde está la mi senhora?

Fim.

Donde está que no la veo?

muestrame mi matadora,

ca pues tal vida posseo

no biviré sola un' hora.

Y a mi triste sentido

con veria descansaree,

que pues me ha despedido

cierto es que moriree.

142

ŨA FALA OU PALAVRAS MO‑

RAES, FEITAS POR DOM JOHAM

MANUEL, CAMAREIRO-MOOR

DO MUI ALTO PRINCEPE

EL-REI DOM MA‑

NUEL NOSSO

SENHOR.

Nunca vi antre privados

verdadeira amizade,

nem falar muita verdade

òs em tratos enfrascados;

nem serem mui aguardados

dos galantes seus senhores,

nem os muito sensabores

que fossem mui avisados;

nem homens mais enganados

que os princepes e reis,

nem ser ũas mesmas leis

a grandes e a pequenos;

nem homens que tenham menos

que os muito verdadeiros,

nem vi pobres lejongeiros

senam se sam mal descretos;

nem homens menos secretos

que os mui vaão  groriosos,

nem os muito graciosos

que nam sejam maldizentes;

nem vi nunca boons parentes

os da parte da molher,

nem oficio d' escrever

mal servido de presentes;

nem homens menos contentes

que os de mui grande estado,

nem viver desempenhado

quem vergonha ha-de pedir;

nem algum muito bolir

que fosse muito sesudo,

nem vi nunca grande agudo

que nam toque de doudice;

nem no mundo mor pequice

que casar com molher fea,

nem homem que pouco lea

que seja mui sengular;

nem vi muito rebolar

o ardido cavaleiro,

nem mais certo alcoviteiro

que o fisico judeu;

nem diligente sandeu

que nam dane quanto serve,

nem vi homem muito leve

que se nam queira vender;

nem homens menos saber

qu' os que presumem muito,

nem mor doudice que luto

mais de tres meses trazer;

nem dous negoceos ter

que ambos se nam perdessem,

nem trovas que s' escrevessem

assi como foram feitas;

nem milhor cousa que peitas

pera ser bem despachado,

nem homem mui esmerado

que fosse muito galante;

nem algum corpo gigante

de gigante coraçam,

nem serviço de vilãao

que folgueis ter aceitado;

nem santo canonizado

que fosse gram caçador,

nem algum brasfamador

que morresse d' entrevado;

nem rei de outrem mandado

que dos seus fosse benquisto,

nem mais certo Antecristo

que o velho vingativo;

nem emperador altivo

mais que o vilão honrado,

nem viver mui descansado

quem tem a mulher garrida;

nem no mundo milhor vida

qu' a da crasta ou do estudo,

nem quem quer falar em tudo

que saiba falar em parte;

nem no mundo milhor arte

qu' a qu' ensina a bem viver,

nem outro maior prazer

que esprementar amigo;

nem outro maior perigo

que pousar com moucarrõoes,

nem vi mais certas rezões

que d' escudeiro d' alem;

nem senhor que solte bem

que nam seja mui amado,

nem vi princepe louvado

que nam fosse liberal;

nem no reino maior mal

que roins desembargadores,

nem esmerados cantores

serem sempre d' um senhor;

nem vi neicio trovador,

nem sandeu mal razoado,

nem judeu gram leterado,

nem mouro mui verdadeiro;

nem ter soma de dinheiro

nenhum grande alquemista,

nem homem de pouca vista

que o queira confessar;

nem dama muito chilrar

que enjeite os servidores,

nem morrer homem d' amores

senam depois de casado;

nem outro maior cuidado

do que a sospeita daa,

nem vi condiçam tam maa

como é dos envejosos;

nem homens mui regurosos

que nam caiam em desordem,

nem bestas que mais engordem

qu' as que sofrem as esporas;

nem mui altivas senhoras

senam doudas craramente,

nem outra mais douda gente

qu' a do monte e d' estribeira;

nem algũa alcoviteira

que nam seja mentirosa,

nem alguem na Graciosa

que desse açucar rosado;

nem molher d' homem privado

que seja pouco pomposa,

nem cousa mais vergonhosa

que quem faz o que reprende;

nem velho que se enmende

de vicio habituado,

nem homem mais aviltado

qu' oo qu' algũas vezes mente;

nem neste mundo excelente

cousa mais que a boa fama,

nem amizade de dama

que dure boons quinze dias;

nem sostedor de prefias

senam desarrazoado,

nem homem mais esforçado

qu' oo vencedor da vontade;

nem vesitar a bom frade

as donas sempre da vila,

nem Caribides nem Cila

perigosas mais que o paço;

nem per' alma mor embaraço

do qu' ee esta honra negra,

nem outra mais linda regra

do que é a de Sam Barnardo;

nem homem que sendo sardo

nam fosse malecioso,

nem rico mui engenhoso

que lhe nam custasse caro;

nem vi homem mui avaro

senam cheo de limpeza,

nem outra maior cimpreza

que vãa groria de vertude;

nem nos vencidos saude

senam nam na esperar,

nem vi bispo vesitar

como deve seu bispado;

nem vi benefeciado

sem coroa ou semonia,

nem outra mor ousadia

que deixar aquele mundo,

por nom cair no profundo

inferno sem alegria.

 

143

REGRA SUA PERA QUEM

QUISER VIVER EM PAZ.

Ouve, vê e cala,

e viverás vida folgada.

Tua porta cerrarás,

teu vezinho louvarás,

quanto podes nam farás,

quanto sabes nam dirás,

quanto ves nam julgarás,

quanto oves nam crerás,

se queres viver em paz.

Seis cousas sempre vê,

quando falares te mando:

de quem falas, onde e quê,

e a quem, como e quando.

Nunca fies nem perfies,

nem a outro enjuries,

nom estês muito na praça,

nem te rias de quem passa,

seja teu todo o que vestes;

a ribaldos nam doestes,

nam cavalgarás em potro,

nem ta molher gabes a outro;

nom cures de ser picam

nem travar contra rezam.

Assi lograrás tas cãas

com tuas queixadas sãas.

144

ESPARÇA SUA.

Se m' atromenta tristeza,

que tantos males m' ordena,

é porque minha firmeza

é maior que minha pena.

E que me veja matar,

conforto devo de ter

em ver tam viva ficar

a rezam d' assi nom ser.

145

CANTIGA SUA.

Nam pode triste viver

quem esperança deixar,

nem ha no mundo prazer

igual a desesperar.

A esperança comprida

bem vedes quam pouco dura,

e dura sempre a trestura

antes e depois da vida.

Quem esperança tomar

sempre tristeza ha-de ter,

quem quiser ledo viver

saiba-se desesperar.

146

OUTRA SUA.

Cuidados, deixai-m' agora,

enquanto possa dizer

quam longe som de prazer.

Sam acerca de dobrar

o cabo de desventura,

nam vejo terra segura

onde me possa ancorar.

Pois me tam longe demora

sem ver porque me reger,

sem o ver m' hei-de perder.

Tant' a Fortuna correr

me fez que tenho alijado

quanto descanso e prazer

tinha antes deste cuidado.

Bradando vou: — Ó senhora,

pois me nam quereis valer,

doai-vos ver-me perder!

147

SUA.

Devieis d' agradecer

vossa infinda fermosura

a minha desaventura.

Quis-se Deos vingar de mim,

fazendo-vos tam fermosa

e tam pouco piadosa,

que folgais com minha fim.

E deu-vos tal parecer

qual nam deu a criatura

por minha desaventura.

148

OUTRAS SUAS A ŨA SENHORA

QUE SERVIA.

Des que de vós me venci,

sinto dor demasiada,

ganhando convosco nada,

quanto bem tinha perdi.

Perdi infindo descanso

e ganhei nom me quererdes

e pior me responderdes,

ainda que seja manso.

Perdi determinaçam

de nunca me namorar

e perdi a presunçam

que tinha de me guardar.

Mas quero-me confortar

com serdes vós soo, senhora,

a que podeis trasmudar

de mil anos nũ hora.

Quanto cuidado tomei

por nam ter este cuidado,

e ficou-m' assi dobrado,

pois nenhum deles deixei.

Forçou-m' o conhecimento 

de vosso sengular ser,

ganhei gram contentamento

de vos tam bem conhecer.

Mas tanto quanto entender-vos

minh' alma tem contentado,

tanto me pena querer-vos

vendo-me desesperado.

O fim de tam triste vida

será de meu bem começo,

pois o mais que vos mereço

é serdes de mim servida.

É grande mal ser privado

de grande bem conhecido,

polo qual tenho afirmado

ser milhor nom ser nacido.

Devieis, pois se padece

por vós pena tam crecida,

nom serdes desconhecida

a quem vos tam bem conhece.

Nom pertence à gentileza,

nem vós deveis de querer,

que quem vê tanta tristeza

nam veja nenhum prazer.

Mas se vos nam toca nada

ter por vós tanto tormento,

direi que meu nacimento

foi em hora minguada.

Ca meus males desiguaes

finjo qu' outrem mos ordena,

por fazer que nam tenhaes

a culpa de minha pena.

Ca seria desigual

cousa presumir ninguem

que tendo vós tanto bem

podesseis ter tanto mal.

Fim.

Mas vós, senhora, sabeis

que daa vossa fermosura

a mim mais desaventura

da que vós inda quereis.

E pois em final estremo

querer-vos me tem trazido,

doa-vos ver que nam temo

morte de nenhũ nacido.

149

OUTRAS SUAS.

Cuidado de minha vida,

tristeza de meu sentido,

gentileza mais sobida

de quantas no mundo ham sido.

Tanta infinda descriçam

deve de saber mui certo

que de minha perdiçam

sam mui perto.

Nam é em vosso poder

remedear minha pena,

de ver-vos e nam vos ver

d' ambos minha fim s' ordena.

E pois nam s' ha-d' escusar

que monta tê-la causado

vos amar

que ser de vós desamado?

Sendo desamado creo

que menos a senteria,

amando-vos, finar-m' -ia

ter dela qualquer receo.

E nunca posso querer

nem desejar

deixar de vos conhecer

nem menos de vos amar.

Cuido qu' ee milhor passar

quanto peno por querer-vos,

porque por soo conhecer-vos

se deve de comportar.

E isto faz

que minha desaventura,

que traga muita tristura,

mor contentamento traz.

Mas o qu' aproveitaraa,

pois que meu mal nam destrue,

antes gasta e demenue

o em qu' estaa.

Maneira mais desigual

nunca se vio de tormento,

pois mata contentamento

como qualquer outro mal.

Quem ousará de dizer

qu' amar-vos em tanto grado

me faz ser

de todo mundo apartado?

O que todos mais desejam

é o que menos queria

e o que mais arreceam,

por gram descanso haveria.

Assi que tanto vos amo

que do qu' espero

desesperado nam quero

deixar-me de quanto cramo.

Pois quem poderia crer

qu' eu tam fora d' esperança

vos vejo fazer mudança,

sem ma vós verdes fazer?

Fim.

E digo, em fim

daqueste triste tratado,

que a dareis vós a mim

ou ma dará meu cuidado.

Mas pois que d' outra maneira

aquisto nam pode ser,

esta mercê derradeira,

pois ahinda estou por ver

a primeira,

me devieis de fazer.

150

OUTRAS SUAS EM QUE METE

NO CABO DE CADA COPRA

ŨA CANTIGA FEITA

PER OUTREM.

Ja era quasi de dia

quando hoje adormeci

e parece-me qu' ouvi

nam sei quem que me dezia:

— Esfuerça, triste amador,

no te congoxes ni penes,

qu' en las batalhas d' amor

el menos merecedor 

alcança mayores bienes.

Fiquei tam desconsolado

co aquisto que lh' ouvi,

que como desesperado

sospirando respondi:

Sabe Dios con cuanto enojo

bivo yo sobre la tierra,

pues que yo fago la guerra

y otren lieva el despojo.

Para serdes consolado

segui-me, me respondeo,

e consigo me meteo

nũ bosco todo cercado

de mui terribles montanhas,

donde grandes alaridos

ouvi de feras estranhas

diformes a meus ouvidos.

Antr' estes grandes gemidos

ouvi d' homeens que andavam

tam tristes que bem mostravam

que d' amor eram feridos.

E vi qu' um deles dezia:

La terrible pena mia

nam se puede remedear,

antes crece cada dia

por dama tam singular.

Vi outro que se mostrava,

que tinha maior fadiga,

que nunca jamais ceçava

de chorar esta cantiga:

—Amor, tu non me gabaste

que yo bien te conocia,

mas forçó la volha mia

la senhora que me daste.

O terceiro mui pensoso

me parecia qu' andava,

com rosto mui lagrimoso

a grandes vozes bradava:

—¡Oh pena que me combates,

pues fuerça d' amor t' envia,

esfuerça por que me mates

qu' en morir descansaria!

Escassamente acabou

a cantiga toda inteira,

quando o que me guiou

começou nesta maneira:

Mi tormento desigual

pera más pena sentir

me tiene fecho imortal

y no me dexa bevir.

Começou-m' a parecer

fraqueza de coraçam

encobrir minha paixam

e comecei de dizer:

Harto de tanta porfia

sostengo vida tan fuerte

qu' es triste el anima mia

 hasta que venga la muerte.

Nom sei donde se mostrou

ũa donzela excelente,

a Faustina parecente,

qu' assi me desenganou:

Vuestr' amys vus vus ausem

d' atendre l' amurose grace,

altre que vus a plis la place 

vuestro fançois em vão usem.

E ficou muito contente

como qu' havia acertado,

mas eu ja desesperado

respondi mui mansamente:

—De mi muerte conocida

otra vengança no quiero

ca mueras del mal que muero,

pues queres sin ser querida.

Fim.

Quisera mais decrarar

se nam fora qu' acordey

e juntamente deixei

de dormir e d' esperar.

Tornou-se de bravo manso

meu mal que nunca descansa,

e troquei a esperança

e por outro tanto descanso.

151

PREGUNTA SUA.

Respondei-me, namorados,

desaventurados, tristes,

qual é mor pena que vistes

nom sendo desesperados.

E que cousa mais amados

vos fará de quem amais,

e se querês ser levados

de gentis homens casados

ou de solteiros nom tais.

Reposta de Pedr' Homem.

Digo, sem ser dos chamados

a que reposta pedistes,

ser grave mal se sentistes

ceumes os alongados;

e a segunda, avantejados

faz bom parecer os mais,

a terceira meus cuidados

por neicios sejam casados,

nunca por especiais.

152

CAMAREIRO-MOR.

Nom deveis tempo querer

pera mais merecimento,

pois abastou ũ momento

pera me por vós perder.

Perder, porque nam perdi

a vida que tinh' agora,

que ganhar-vos por senhora

é mil mundos pera mi.

Mas pois por vós num momento

me despedi de prazer,

pera mais merecimento

nom deveis tempo querer.

153

OUTRA SUA.

No falho en mis males culpa,

porque en mi terrible pena,

la causa que me condena

me desculpa.

A muerte me condenastes,

senhora, pues tanto os quiero

y luego me desculpastes

en serdes vos por quen muero.

Pues vuestra beldad desculpa

todos los males que ordena,

quen por vos no tiene pena

tiene culpa.

154

COPRAS SUAS, PARTINDO

SUA DAMA DONDE

ELE ESTAVA.

¡Que pena tan singular,

que marterio tam profundo,

verme de vos apartar

y no partir deste mundo!

¡Oh desastrado partir

qu' assi mata fieramente!

¡oh quien podera dezir

lo que siente!

¿Que seso puede ordenar,

que mano puede escrevir,

que lengua puede contar

mi tan penoso morir?

¡Oh triste desemparado

de vuestra vista y mi vida!

¡oh vida mui bastecida

de cuidado!

Ay de mi, que de quedar

sin ver vuestra fermosura,

la casa donde morar

a mi será sepultura.

Y seran mis atabios

lhenos de mucho tormento

y de mi contentamiento

muy vazios.

La cama será pensar

que vos vi y no vos veo

y qu' assi he d' aturar

con neste mal que posseo.

Y naqueste pensamento

de noche me lançaré

a ver si con lo que siento

moriré.

¡Oh que me da lhevantar

sin esperar de vos ver,

y hame d' anochecer

y no vos he de mirar!

Ni he de ver quien me diga

que naquel dia vos vido,

¡oh triste que a tal fatiga

foi metido!

¡Oh alma mia aflegida

de quantas penas te di!

¿por que no partes de mi,

pues de ti partió tu vida?

Dexame pues te dexó

todo quanto bien tenias,

y más razon te mató

que a Mancias.

No pueden nel mundo ser

tormentos más infernales,

ni se pueden comprender

la grandeza de mis males.

Ni quanta pena poderaa

pensar ningun coraçon,

a la mia no ternaa

comparaçon.

Ca todos los coraçones

son fenitos y acabados

y elhos y sus passiones

juntos seran sepultados.

Mas mi pena desigual

está nel entendimiento,

assi que el mal que siento

es inmortal.

Fim.

Nel inferno no se alcança

otro tormento mayor

que ser muerta el esperança

y inmortal el dolor.

Si nesta vida penosa

aquesto por vos padeço,

que fama tan groriosa

que mereço.

155

OUTRAS SUAS A DOM JOAM

DE MENESES, ESTANDO

EM ALJAZUR.

Depois que vos fostes lá

a viver naquess' estremo,

ũa dama, senhor, cá

fez de mim mangas ò demo.

Fez que desejo morrer

por ver a meus males fim,

fez que nam podereis crer

que fataxas fez de mim.

Fez que meus cinco sentidos

nam sentem nenhũ prazer,

fez meus cuidados crecidos

sobre crecidos morrer.

Fez que de mim nam s' aparte,

antes crece ò galarim

tanta pena que de mim

ja nam sei parte nem arte.

Meus olhos tal empressam

de sua fegura têm,

que lhes parece que vêm

sempre sua perfeiçam.

E tanto desta maneira

e afirma meu desejo,

que todo o al que vejo,

vejo como por pineira.

Polo qual tam cego ando

que me foi acontecer

achar o qu' ando buscando

e passar sem me deter.

Dizem-m' os que vam comigo

por que lhe nom quis falar,

e eu entam, por m' escusar,

busco mentira que digo.

Trago cheos os ouvidos

de palavras que lhe ouvi,

das quaes ũa é verdes i

que os mais tem destruidos.

A toda outra razam

acudo como sandeu,

ham-me ja por moucarrãao

e pior que o sam eu.

Em mil vergonhas me vi

com homens que m' apartaram,

e de quanto me contaram

nemigalha lhes ouvi.  

S' havia de responder,

deixava dias passar

atee lhes fazer cuidar

que me podia esquecer.

Que nam gosto me parece

do com que soia folgar

e o que mais alegrar

soia, mais m' entristece.

Isto é porque lembrar-me

algum prazer em tal pena

tanta tristeza m' ordena

que nom sei remedear-me.

Se m' acontece algũ hora

nestas senhoras falar,

querendo outra nomear,

nomeo minha senhora.

Que disto fique corrido,

tanto me soie d' alegrar

seu nome que meu sentido

me faz que folgo d' errar.

Assi como òs qu' acontece

andando polos outeiros

que com medo lhe parece

ser homẽes os sovereiros,

assi tem na fantesia

sa fegura meu cuidado,

que mil vezes cada dia

nas palhas m' acho empolgado.

E assi como vos digo

tam fora de siso ando

que de mim como d' imigo

me ando sempre guardando.

Ja nom ouso soo d' andar,

que vejo meu coraçam

ordenar de me matar

por ser fora de paixam.

A vos aquisto escrever

me moveram tres razões:

a primeira foi saber

que sentis minhas paixões,

a segunda, porqu' estou

em cuidar que sabereis

estas cousas que vereis

como quem tudo passou.

Fim.

A terceira, por haver,

de quem foi tam namorado,

conselho para poder

ser fora de tal cuidado.

Podeis-me, senhor, mandar

que m' esfole e me mate,

nom me mandeis desamar,

que isto jaz d' arremate.

156

DOM JOAM MANUEL A ŨA SE‑

NHORA, QUE LHE MANDOU QUE

LHE ESCREVESSE NOVAS DE

SI, VINDO ELE D' ŨU

CAMINHO QUE ANDA‑

RA COM ELA, FI‑

CANDO ELA EM

CASTELA.

Que yo cien bocas tuviesse

y la boz fuese de fierro

es emposible sin yerro

que mis angustias disiese.

Y mandaisme vos aora

mi triste vida escrevir,

es emposible, senhora,

en dos mil anhos dezir

lo que sufro cada hora.

Mas qu' esto sea verdad

seguiré lo acostumbrado,

qu' es hazer vuestro mandado

y nunca mi voluntad.

Y pues de mi perdimento

soes verdadero testigo,

vereis que de mi tormento

más de lo que puedo digo

y menos de lo que siento.

Desque soy por mi fortuna

de vuestra vista apartado,

mi lecho fago laguna

lhorando demasiado.

Y jamas ceçan mis males

ni mis cativos dolores

tam grandes que no sé quales

se puedan dezir maiores

aunque sean infernales.

Las noches mi sentimiento

de claras faz tenebrosas,

y mi triste pensamiento

de pequenhas espaciosas.

Naquelhas son memoradas

las mis angustias crecidas

presentes como passadas,

por lo qual son mal dormidas

maguer sean bien lhoradas.

No cuento yo por pasion

las lagrimas de mis ojos,

las quales de mis enojos

ham sido consolacion,

mas a mi triste memoria,

pues elha me desordena

todo bien, toda vitoria,

o com la presente pena,

o com la passada gloria.

¡O quan bienaventurados

son aquelhos que gustaram

el Leteo, pues quedaran

de sus hechos olvidados!

Mas ya yo no poderia

querer tal buena ventura,

ca maguer mi fantasia

me dé vida con tristura,

sin elha no beviria.

Porque la pena presente

d' algum passado plazer,

por grave que suele ser,

algo me dexa contente.

Mas este conocimiento

no me quita de pasion,

antes crece mi tormento,

sentiendo a mi perdicion

cada hora crecimiento.

La vuestra forma excelente,

que mi memoria retiene,

ante mis ojos se viene

como si fuesse presente.

Y con esto mi sintido

y mi trist' entendimiento

me dexa triste, aflegido,

tan cercano de tormento

quan apartado d' olvido.

Cada ũu dia imagino

como naquel vos miré

y la hora determino

en qu' estonces vos hablé.

Y digo lo qu' a mi ver

me parece que dizia

y no os viendo responder

antes mi muerte queria

que tal pena padecer.

Aquelhos lugares todos

do vos vi y no vos veo,

por cien mil vias y modos

cada hora los rodeo.

Y pues lhoro nel lugar

donde entonces m' alegré,

vos deveis imaginar

que haré donde lhoré,

pues no vos puedo olvidar.

Las sierras por dond' andamos,

aora sin vos las ando,

alhi donde descansamos,

alhi muero sospirando.

Los verdes prados y rios

es forçado qu' acrecenten

tanto los dolores mios

que no sé como se cuenten,

que no diga desvarios.

No sé quien padeceraa

nel inferno más tormento,

ni que fuego quemaraa

más que este pensamento.

¡Oh memoria de mi bien

lhorada noches y dias!

¡oh vos, senhora, por quien

no creo que Jeremias

más lhoró Jerusalen!

La musica que solia

mis cuidados amansar,

agora multiplicar

los ha fecho em demasia.

Si digo alguna cancion

que disse naquelhos dias,

son en tanta alteracion,

que no las lagrimas mias

sufrem desimulacion.

D' amigos y d' enemigos

m' es havido por gran mengua

seren mis ojos testigos,

contrarios de la mi lengua.

Y pues cantar y lhorar

m' acontece cada hora,

deveis vos considerar

se sim lagrimas aora

esto puedo recontar.

Assi qu' el tiempo presente,

que sin vos m' es otrogado,

es gastado interamente

em lhorar otro passado.

Los lugares a qu' amor

me causou vuestra presencia,

todos lhenos de dolor

los ha fecho vuestra ausencia

que no pudo ser mayor.

Fim.

Para que yo escriviesse

interamente mis danhos,

compleria que biviesse

grande multetud de anhos.

Mas es mi vida penosa

para mis males sentir,

en extremo copiosa

y corta para dezir

pena tan espaciosa.

157

OUTRAS SUAS AA MESMA

SENHORA.

Pues mis angustias escrivo

causadas por vos, senhora,

vida mia,

haved por cierto que bivo

más tal vida que ũ hora

no queria.

Ca mi tormento es aquel

que jamas antre los hombres

se veria,

pues que la muerte cruel

em mi ambos estos nombres

mudaria.

Ca se lhamaria vida

partiendo de mi la mia

tan penosa,

y se mi pena crecida

me quitasse, lhamars' ia

piadosa.

Y nombre más verdadero

y más propio le seria

que estranho,

porqu' el su nombre primero

sin duda pertenecia

a mi danho.

Pues vos, senhora, por quien

ya el mi bevir pasasse

este tranco,

llamarvos todo mi bien

es com' al negro lhamarse

Joam Branco.

Ca pues tormento mortal

mi bevir en tanta sobra

siempre tiene,

llamarvos todo mi mal

es nombre que con la obra

más conviene.

Ca de vos han procedido

los males que siempre peno

com que acupe

a mi bevir muy sentido,

porque bien ni mal ageno

no me toque.

Ni qu' el mundo se perdiesse,

vos quedando, me daria

alguna pena,

ni que yo senhor del fuese

sin vos no lo haveria

em dicha buena.

Todo el mundo convertieron

mis lagrimas y gemir

y sentimiento,

y a vos nunca podieron

enclinaros a sentir

mi tormento.

Ni sé yo quien no s' espante,

pues ninguna compasion

de mi haveis,

por cierto de diamante  

deve ser el coraçon

que vos teneis.

Como nunca vos tocaram

mis sospiros tam sentidos,

que consigo

la vida y elh' alma levaran,

como si fueran bramidos

de enemigo.

Antes pues tanto plazer

sentis em mi triste vida

ser tan fuerte,

yo la quiero perder,

porque más serés servida

con mi muerte.

En dos estremos vos vi

que causaran mi tristura

y gran pasion,

nel del reino em que naci,

nel otro de hermosura

y descricion.

Desde alhi muerte no temo,

y triste más que los tristes

a mi lhamo,

porque assi en tal estremo

vos vi y me parecistes

y vos amo.

Naquel dia me robastes

libertad, vida y salud

y alegria,

y a mis ojos causastes

de lagrimas multitud

cada dia.

A los otros fueran dados

los otros pera mirar

y dormir,

mas a mi son otrogados

para que gasten lhorar

mi bevir

A vos dió mi desventura

la vida y la muerte mia

en poder,

para bevir mi tristura,

y luego mi alegria

fenecer.

Y pues mis ansias mortales

que por vuestra causa sabés

que padeço,

dai ya fim a mis males,

pues a mi bien no querés

dar começo.

Este es el galardon

que merecem los cuidados

con que ando,

que nesta satisfaçon

de mis servicios passados

os demando.

Mas pues de quanto servi

otro bien no me consigue

ni le espero,

es lo que quiero daqui

que solo lo que se sigue

os requero.

Fim.

Que des fim a mi cativo

y a mi triste cuidado

y padecer,

pues la mano con qu' escrivo

me tiene desesperado

de plazer.

158

TROVAS QUE DOM JOHAM MA‑

NUEL, CAMAREIRO-MOOR, FEZ

SOBRE OS SETE PECADOS

MORTAES, ENDEREN‑

ÇADAS A EL-REI,

AS QUAES NAM

ACABOU.

Poderoso Rey, prudente,

manifico, liberal,

en quien el ceptro real

estaa dinissimamente.

Sobre senhores senhor,

muy homilde servidor

d' El qu' el mundo ha produzido,

de vicios nunca vencido,

d' enemigos vencedor.

Como yo la tu nobleza   

y virtud inmaginasse,

de cada qual su grandeza

mi juizio perturbasse,

en espirito arrebatado

supitamente lhevado,

sin saber en que manera,

me falhé d' una ribera

y grandes montes cercado.

Alhi dos caminhos vi

qu' a principio se juntavan

y despues afeguravan

el pitagorico y.

Mas en tanta alteracion

me falhé qu' a la sazon

tuve nenguna esperança,

ca la supita mudança

siempre causa admiracion.

Despues que mi coraçon

algun tanto reposó

y que mi sangre acupó

su primera habitacion,

sin saber lo que faria

estuve parte del dia

los caminos esguardando,

comigo mucho dudando

qual daquelhos seguiria.

El de la parte siniestra

era muy espacioso,

lhano, verde, deleitoso

y muy aucto a la polestra;

de gimifera ribera

y flor de mucha manera

se cercava y se cobria,

de manera qu' empedia

claridad a la carrera.

Era el otro tan contrario,

que dezir no se podria

quan oculto y solitario

questa riba parecia.

Era muy afectuoso

y a lugares dudoso

a quien fuesse insapiente,

mas a quien fuesse prudente

menos era trabajoso.

Como a nuestra humanidad

es el malo más possible,

no por ser más elegible,

mas por su facelidad,

caminé por el camino

por do nuestro padre vino

de su mujer enganhado,

quando antepuso ũ bocado

al mandamiento devino.

Andando por esta via

despues de muchas jornadas,

parecióme que sintia

bozes muy desacordadas.

Oí muy tristes jemidos,

clamores muy doloridos,

en sentencia concordados,

que los alhi condenados

no seriam redemidos.

El camino fenecia

en ũ pozo muy profundo,

adonde vi que caya

la mayor parte del mundo.

Alhi era setuado

el fuego perpetuado,

de los mortales tormento,

que por bienes de momento

quieren mal continuado.

Y vi otras seis carreras

nel gozo se consumir,

por las quales vi venir

jentes de muchas maneras.

Ya volver no me podia,

porque la jente venia

de rondon que me lhevava,

de manera que pensava

el mi postrimero dia.

Al fuego sin resplandor

me falhava condenado,

si del devino favor

no fuera remediado,

ca con gesto prefulgente

una donzelha excelente

vi al encuentro venir,

a cuya forma escrivir

no seré suficiente.

Aquesta como ocupó

el logar do yo estava,

del peligro me libré

tanto quanto deseava.

Mas yo que a la sazon

con poca disposicion

tan grande bien alcancé,

le dixe como diré

la sussequente oracion:

—¡Oh clarisima vision,

sobre toda claridad,

carece tu puridad

de toda comparacion!

A ti cuyo beneficio

me libró de precepicio

y d' enfinitos pesares,

suplico que me declares

el tu nombre y tu oficio.

Muy mansamente respuso:

—Divina gracia me digo

que sobre natura sigo

a quien bien se me despuso,

no la que es gratis data,

mas aquelha que desbarata

todo dilito mortal

y elh' anima infernal

ante Dios torna muy grata.

De tal respuesta turbado

y de coloquio tan alto,

despues que del sobresalto

me vi menos alterado,

le dixe: — Devina guia,

pues sin justicia mia

tanto bien se m' oferece,

aquesto qu' aqui parece

pone em mi sabidoria.

Aquelhos caminos dos,

dixo, que falhaste luego,

el uno fenece en Dios,

el otro naqueste fuego.

Y estas siete carreras

son otras tantas maneras

de pecados principales,

por do vienen los mortales

a inmortales fogueras.

   

De superbia y elacion

es el primero camino,

por donde Lucifer vino

de la celestre mansion.

Vinieron de Babilon,

con elato coraçon,

sus grandes fabricadores

y de Igito los mayores

con el rey Faraon.

Por aqui el rey Tarquino,    

postrero de los romanos,

por aqui el grande Nino

qu' imperó los asianos.

Por aqui rey Lamedon,

destruido el Elion,

por aqui Lucio Sila

y con sus socios Atila

vinieron al Fregeton.

Y muchos otros, que fueron

elatos naqueste mundo,

tanto quanto aca subieron,

descendieron al profundo.

Ca Dios ha determinado

que quien pone su cuidado

en sobir quanto podrá,

quanto Dios puede será

para siempre derrocado.

D' avaricia es el segundo,

do las Harpias han lugar,

por donde van al profundo

los que adoran el metal.

De Troya vino Antenor,

de Tracia Polinestor

con el rey Mida troyano,

de Roma Domiciano,

postrimero emperador.

Por aqui vino Nembrot,

que fue tirano primero,

y Judas Escariot,

que vendió Dios verdadero.

El Qual no fue poseido

del que lo huvo vendido

ni de los sus mercadores,

mas daquel qu' en sus dolores

y sangre fue redemido.

Que todos los qu' escrivieron  

en el mundo se juntassem,

no creo que numerassem

los que por aqui vinieron.

Si tanta generacion

ha venido en perdicion

por esta civil miseria,

es porqu' elha es la materia

de toda vuestra ambicion.

Los que a Venos adoran

por esta senda tercera  

cada dia se devoran

en infinita manera;

por aqui los sodomitas

y gentes casi infinitas,

qu' incestos muchos fizieron,

las quales tan muchas fueron

que no pueden ser escritas.

D' adulteros multitud,

multitud de forçadores

que finaran su salud

con infinitos dolores.

De los quales notaree

algunos y pediree

al Senhor de los senhores

qu' al escritor y lectores

asombre lo que diré.

Por aqui vino Aamon

qu' a Tamar huvo forçado

y su hermano Abselon

d' Aquitofel consejado.

La madrasta d' Hipolito

y Tolomeu, rei d' Egito,

que Overgetes dixieron

y s' y scrivis quantos fueron

farás proceso infinito.

Ansi concluyendo digo

que tanto a vuestra nacion

es este vicio amigo

que no lo priva razon.

Ca el Apostol dizia:

Muy impossible seria

que yo haya continencia,

si la divina clemencia

del cieclo la no embia.

Por aquesta quarta senda,

vienen los embediosos,

que con agena fazienda

siempre biven trabajosos.

Todos los mortales vicios

tienen dulces exercicios,

pero la gracia se seca,

este quantas vezes peca

tantos tiene de suplicios.

Enxemplifica.

El primero rey ungido

en el pueblo d' Israel,

el primer hombre nacido

que fue lhamado cruel.

Y los fijos de Coroe,

los primeros que se cre

que fuessem detratadores,

y los crucificadores

de Jesu de Nazeree.

De todo tiempo y lugar,

de todo estado y nacion,

no es possible contar

los que traxó esta passion,

porque, aunque los humanos

todos fuessen escrivanos

y solamiente quisieron

escrivir, nunca pudieron

los que traxó cortesanos.

Y por la quinta han venido

muchas gentes al caos,

las quales han presumido

que su ventre era su dios.

Toda comemoracion

daquesta bruta nacion

se deveria escusar

ni con los malos contar

por quanto pessimos son.

Mas para que se retrayam

los humanos de seguir

aqueste vicio, que sayam,

estos puedes escrivir:

Isau seya el primero

y luego su companhero

Sardanapolo seraa,

Lucio Luculo vernaa

nesta cuenta por tercero.

El quarto y ũ millhon

daquestos s' escreveria,

mas el processo seria

lhamado anticaton.

De prelados solamente

vino e viene grande gente,

de los quales yo diria

que qual es la perlacia

tal es la gula sequente.

Por estotra senda sexta

vinieron los airados

que d' otros siendo enojados

han consigo la requesta.

Todo emperador o rey

para bien juzgar su grey

d' ira deve ser guardado,

ca no ve la ley el irado,

mas es visto de la ley.

Ca contra todas las leys

Tifon Osiris matoo

y en partes vinte e seis

el su cuerpo devidoo,

porque a cada conjurado

su parte le fuesse dado

daquel qu' era su hermano.

¡ Un fecho tan inumano

por ira fue consumado!

Por aquesta ha descendido

la fija de Pandion,

que por culpa del marido

dió al fijo punicion:

este fue muerto y assado

de su madre y presentado

a su padre por manjar.

¡ La ira pudo causar

ũ fecho tan celerado!

Otros muchos han venido

y mujeres muchas más,

ca la vengança sabrás

que de fraqueza ha nacido.

Ca Dios, de Quien se pregona

que todo vicio perdona,

lhamamos onipotente

e aquel qu' es impotente

nunca perdona persona.

Por la seetima vinieron

aquelhos qu' en su oficio

dinidad o beneficio

siempre negligentes fueron.

Yo lhamo negligentes

a los que son deligentes

en los bienes temporales,

si de los celestriales

tienen desviadas mentes.

Por aquesta descendió

Candalo, rey lidiano,

y Seleuco siriano,

que dos anhos imperó.

Estos dos reys coronados

ansi fueron descuidados

en los reinos que rigieron,

que juntamente perdieron

las animas y estados.

     

Aquel malaventurado

Aurelio, rey d' Espanha,

pues con angustia tamanha

será siempre remembrado,

por libremente folgar,

a Mares fue tributar

mucha moneda y cavalhos

y hijas de sus vasalhos

qu' el diviera de casar.

El rey de Francia Grifon,

hijo de Carlo Martel,

con un muy grande tropel

olvidado a la sazon.

Prelados, que consintieron

que sus ovejas pacieron

todo lo qu' era vedado,

eterno tienem cuidado,

porque negligentes fueron.

Por estas carreras todas

vinieron a perdicion

aquelhos todos que nom

vistieron ropa de vodas.

Los qu' en notro habito son

solamente correcion

recibieron en su vida,

mediante su venida

por muy divina infusion.

Mas que sea aqueste fuego,

que tu miras, infernal,

que tu notes, yo te ruego,

qu' elha es pena acidental,

es el infinito mal.

Mas por razon teologal

te provariamos nos

que no ver el sumo Dios

es la pena essencial.

Ca quanto Dios es mijor

que todas las cosas buenas,

tanto no velhe es mayor

que todas las otras penas.

Mas esta razon que fundo

dexemos, pues que nel mundo,

por cierta fee la tuviste,

y deste camino triste

bolvamos a lo jocundo.

Yo que tanto queria

ser libre daquel logar

calhé por no importar

dilacion a la tal via.

Mas era tal la carrera

que muy impossible fuera

venir al fin deseado,

si no fuera sulevado

daquesta tal companhera,

Cuyo coloquio divino

ansi falhava suave,

que no se me fizo grave

el asperrimo camino:

porque quanto más andava

más dispuesto me falhava

para siempre caminar

y solamente cansava

quando dexava d' andar.

Subiendo siempre venimos

a ũu lugar eminente

de donde el mundo presente

en sus partes devidimos,

cuya poca quantidad

demostró la ceguedad

daquelhos que imperaron,

si por tan poco dexaron

la devina claridad.

Despues que fuemos venidos

en la más subleme altura,

d' una muy verde lhanura

nos falhamos recebidos:

vi quatro rios caudales

y d' arboles singulares

un infinito processo,

un tan ameno seceso

nunca vieron los mortales.

Dalhi eran desterrados

todos los falhecimientos,

qu' en todos quatro elementos

son en el mundo falhados:

el calor primeiramente

templado singularmente,

más que se puede narrar,

sin exceder ni minguar

cosa que fuesse nocente.

Era perpetuamente

el aire clareficado,

el sol em seteno grado

era alhi más prefulgente;

era tanto resplandor

sin exsecivo calor

e sin frio desmedido,

mas el medio posseido

con muy suave dulçor.

Las riberas proferidas,

que por el huerto corrian,

de una fuente nacidas

una cruz constituyan.

Y la linfia que fluya

tan clara que parecia

el suelo por do passava,

la sed por siempre matava

a quien daquelha bevia.

Toda la tierra criava

las plantas todas frotiferas

y las yervas odoriferas

solamente germinava.

Un narbor, que se nombrava

de la vida, preestava

a la fuente qu' es escrito,

cuya fruta en infinito

toda fambre extenuava.

Mis sentidos deseosos

de tantos bienes fruir,

d' obgeitos tan gloriosos

no podia despedir.

Ca la companhera mia

m' aquexava que complia

el camino acelerar,

par' al castilho lhegar,

que delante parecia.

Despues que propinco a el

mi hizo mi companhera,

vi quatro torres naquel

tocantes la prima espera.

En perpetu diamante

el titolo semejante

sobre la puerta dizia

que muerte no gustaria

quien alhi fuesse habitante.

La primera torre entramos,

adonde por tribunal

una donzelha falhamos

más que humana, angelical;

de gente muy mesurada

era siempre acompanhada.

Y era aquelha clausura

de perdurable pintura

sotilmente matizada.

Alhi eran matizados

los fechos que tu formaste,

con los quales ampliados

has los reinos qu' heredaste.

El grande maar oceano

mostrava ser a tu mano

con su ripa somitido

y gran pueblo convertido

de hereje cristiano.

Ũu Castilho sin egual

sub Cancro vi que tenia

aquel senhal en la qual

el Constantino vencia.

Cerca daquel s' esculpia

armado ũ rey que tenia

desnuda espada en su palma,

dezia que como palma

el justo floreceria.

 

159

DE DOM MARTINHO DA SILVEI‑

RA, ESTANDO EM ARZILA, A

SIMÃAO CORREA, EM RE‑

POSTA DOUTRAS QUE

LHE MANDOU

D' ALCACER.

Estando neste lugar

onde muita guerra achei,

sem com mouros pelejar,

sem corrermos, sem entrar,

depois que nele entrei,

vossa trovas recebi.

Gabá-las é escusado,

qu' elas o fazem per si,

mas direi novas de mi

como per vós m' ee mandado.

O dia qu' aqui chegámos

fez tormenta tam desfeita

qu' outro tanto nos molhámos

como laa, quando passámos,

a gram vereda de Ceita.

E pois dizeis e contaes

que fareis mui crua guerra

cos fronteiros qu' esperaes,

tambem quero que saibais

a qu' achei cá nesta terra.

Achei em gram devisam

os cristãos contr' os judeus:

o que tem mais sotil mãao,

mais maneiras d' apressãao,

mais ha dos benesses seus.

Doutro cabo por proveito

os deixam estar na vila,

julgai vós laa, s' ee bem feito,

qu' o povo pede dereito,

porque lhe comem Arzila.

  

Nisto mais nam falarei

porqu' alguem dano faria,

mas antes me calarei,

ca se dissesse o que sei

muito papel gastaria

à custa de ũu senhor

que nam quer bem òs que gastam.

E nam queirais mais penhor,

porqu' a bom entendedor

poucas palavras abastam.

Deos aqui nam n' O conhecem,

os melhores menos valem,

os piores permanecem,

mas calam-s' os que padecem,

porque lhes compre que calem.

Nam presta nem val rezam,

posto que seja bem vista,

dana-nos boa naçam,

estas guerras mortais sam

para quem nelas conquista.

Na mesa onde comemos,

ninguem nam diz o que sabe,

o que per siso sofremos

é tanto que nam sabemos

como jaa dentro nos cabe.

Pomolo bico no peito,

d' aprefiar nos guardamos,

porqu' à concrusam do feito

ou por força ou per geito

o que nom é outorgamos.

Sam-nos mil vezes mostradas

arreos, cousas defezes,

compre-nos serem gabadas

e dizermos qu' em tres gradas

nam se viram tais jaezes.

Ca se mostrar afiçam,

outro serviço nam prende,

que faraa, dai-me rezam,

quem nam tem de condiçam

contrafazer o qu' entende.

Fim.

Se nestas bem decrarado  

nom vai o que mais entendo,

nom me deis graças nem grado,

o que nelas vai calado

co vosso saber enmendo.

160

DOM MARTINHO DA SILVEI‑

RA, QUANDO CASOU

DONA BRANCA

COUTINHA.

Doo na corte polo serdes

tomaram mil coraçõoes

que namorastes,

por lembrar e por saberdes

quantas penas e paixõoes

lhe cá leixastes.

Diz-m' o meu com gram pesar,

com mortal dor s' aqueixando:

—Nam era para casar

dama que Deos trabalhando

quis formar!

E pois vemos nam poderdes

resistir às apressõoes

com que casastes,

doo na corte polo serdes

tomaram mil coraçõoes

que vós quebrastes.

 

161

DE DOM ROLIM.

Em gram peligro me veo,

em mi muerte no hay tardança,

porque me pid' el deseo

lo que me niega esperança.

Pedeme la fantesia

cosa muy grave de ser

y s' aquesto se desvia

es forçado padecer.

No me defiendo y peleo,

muerte havrá de mi vengança,

porque me pid' el deseo

lo que me niega esperança.

162

DE DIOGO DE MIRANDA.

Ó meu bem, pois te partiste

d' ante meus olhos, coitado,

os leedos me faram triste,

os tristes desesperado.

Triste vida sem prazer

me deixas com gram cuidado,

que por meu negro pecado

me vejo vivo morrer.

Meu prazer me destruiste,

meu nojo seraa dobrado,

porque sam cativo, triste,

de meu bem desesperado.

163

DE FERNAM TELEZ.

Vuestra gran beldad, senhora,

es em tal grado sin par

que despues que os vi, ni aora,

no me dexa sola un' hora

gran tormento y sospirar.

Ansy que por mi ventura,

comprida de mala suerte,

vuestra muy gran hermosura

haz a mi dolor tan fuerte

que queria más la muerte.

Y con este mal sin cuento

vos me hazeis en verdad

que viva triste contento,

¡ oh causa de mi tormento!

¡ oh cabo de crueldad!

Que teneis um parecer,

tan extrema gentileza

que vuestra gracia y lindeza

no es en mi poderla ver

sin vuestro cativo ser.

164

DE SANCHO DE PEDROSA A

MARIA JACOME, ESTANDO DE

NOITE FALANDO COM ELA

SEM NO ELA CONHECER

E LHE PEDIO QUE

LHE DISSESSE

QUEM ERA.

Se vos vira, que fizera,

pois ouvir-vos me matou,

nenhum remedio tivera, 

se vossa mercê quisera

parecer como falou.

Dizer-vos o nome meu

vos dei à fee jaa vencido:

o triste me chamo eu

a quem vossa mercê deu

presunçam de ser perdido.

Ouvir-vos nunca devera,

pois me tanto namorou

quem eu vira, se podera,

nam por dizer-vos quem era,

mas por ver quem me matou.

165

DE SANCHO DE PEDROSA.

Yo más triste de los tristes

y menor de los amados

en amores,

quando triste me vencistes

no tenia yo cuidados

ni dolores.

Mas por que mi mal creais

y mi fatiga tan fuerte,

que sabeis,

ahunque aora querais

dar remedio a mi muerte

no podeis.

Porque vos tal me hezistes

sobre los más enojados

en amores;

quando triste me vencistes,

no tenia yo penados

disfavores.

166

DE DIOGO DE PEDROSA

AO COUDEL-MOOR.

Pero que tenha jurado

de me nunca namorar,

por vossa filha balhar

meu juramento é quebrado.

E se nam foss' a revolta

que disto se seguiria,

log' hoje deprenderia

a fazer mourisca volta.

Mas porque vós soes a isca

pera minguar e crecer

esta ardente faisca

de meu pesar e prazer,

eu quero ser vosso genro

antr' os outros servidores,

porque sam ũu homem tenro

na idade dos amores.

O que foi desse Merlim

e doutros antes d' agora,

isso ha-de ser de mim

por vossa filha, senhora.

Licença tenho do papa,

nam é grande maravilha,

de todo por vossa filha

ganhar ou perder a capa.

Reposta do Coudel-moor

polos consoantes.

Quem sabe ser namorado

nam leixa tempos passar,

nem em tal caso quebrar

juras nunca foi pecado.

Quanto mais que n' agua envolta

sempr' haa fina pescaria

e quem sab' a parçaria

o amor tredor nam solta.

Doce bailo de mourisca

mil sentidos faz perder

e lá mete ũa tal trisca

qu' ee mui má de guarecer.

Quer sejais duro quer tenro,

procurai vossos favores,

mas sobre compadre, jenro,

duvidam niss' os doutores.

Mas se vos tresfoi Martim

fazeis inda sem demora,

medrareis ò galarim

segundo o al em vós mora.

Sede servidor de chapa,

se vos pregriça nam filha,

guardar de dor de virilha

porque sua cova tapa.

 

167

DE LUIS D' AZEVEDO À MORTE

DO IFANTE DOM PEDRO, QUE

MORREO N' ALFARROU‑

BEIRA, E VAM EM

NOME DO IFANTE

Pola morte de mim soo

e d' algũs vossos parentes,

vós outros, que soes presentes,

todos deveis filhar doo.

Os que tinheis em mim noo

e folgais com minha morte

antre todos lançai sorte

qual seraa mais cedo poo.

E do mal que me fizestes

entam sereis lá lembrados

e daquestes meus criados

que matastes e prendestes.

Empero todos perdestes

em mim ũa nobre doa,

sobre todos fui coroa

segundo todos soubestes.

Nom foi outro no oriente

tam perfeito em saber,

ja em mim foi o poder

d' escusar o mal presente.

Nunca usei em meu talente

de fazer cousa errada,

mas esta morte foi fadada

pera mim e minha jente.

Eu criei em gram alteza

ũu soo rei e seu irmão,

sempre lhe beijei a mão

e resguardei sa realeza.

Fui eu frol da jentileza

e na minha mocidade

usei sempre de verdade

e amei muito franqueza.

Qundo eu ante vós era

todos m' assi esguardaveis

e assi me adoraveis

como se vos eu fizera.

Agora je nenhũ espera

receber de mim mercês,

antes me avorrecês

como ũa besta fera.

Nam ha reinos em cristãos

que em todos nam andasse

e que sempre nom achasse

nos reis deles doces mãos.

Fidalgos e cidadãos

me serviam lealmente

e agora cruelmente

me matarom meus irmãos.

Eu andei per muitas partes

e por outras boas terras,

muita paz e tambem guerras

vi tratar per muitas artes.

Mas aqueste dia martes

foi infeles pera mim,

o meu sangue me deu fim

e rompeo meus estendartes.

Naturais de Portugal,

contra mim armas filhastes,

certamente muito errastes,

que vos nam mereci tal.

Roubastes meu arraial,

toda minha artelharia,

grande enveja e perfia

ordenou todo este mal.

Mal vos lembram as mercês

que vos fez El-Rei meu padre

com a Rainha minha madre

d' u melhores descedês.

Eu nam sei que guanharês

por minha destruiçam,

se o fezestes sem rezam

desto vos nam lavareis.

Muito trabalho levou

meu padre por vos criar,

muito mais por vos livrar

e leixar como leixou.

Se vos ele acrecentou

emmentres qu' ele viveo,

nem per mim nam faleceo

quanto meu tempo durou.

E vós fostes os culpados,

causadores de meu dano,

que ja passa de ũu ano

que andais aconselhados.

E com rostros desvairados

ma falaveis cada dia,

mas de vós nam me temia,

porque ereis meus criados.

Natureza nam devera

consentir-vos tal crueza,

bem mostrara jentileza

algũu que me vida dera.

Mas no ano desta era

tais pernetas sam correntes,

que amigos e parentes

todos andam por derrera.

A morte tenho passada

e o medo ja perdido,

pero levo gram sentido

da Infante lastimada

e da Rainha muito amada.

E meus filhos orfãos leixo,

desto todo me aqueixo,

que da morte nam do nada.

Ora lá vos temperai

o melhor que já poderdes,

pero se siso teverdes

sempre vos bem avisai.

Cada dia esperai

receber por u medistes,

a que ora de mim vistes

quando vos vier, tomai.

Cabo.

Todos fostes mui ingratos

e de pouco conhecer,

bem quisestes parecer

os do tempo de Pilatos.

168

CANTIGA SUA.

Que teus nojos todos cessem

e hajas alegres dias

faze-me como querias,

senhora, que te fizessem.

Se sentisses tu, senhora,

amor assi aficado

e tam curto gasalhado

como sente quem t' adora,

prazer-t' ia que te deessem

o que tu dar poderias,

pois faze como querias,

senhora, que te fizessem.

 

169

DE GIL DE CRASTO A ANRI‑

QUE D' ALMEIDA,

INDO PARA

CASTELA.

Pois que soes ũu dos que vam

nesta ida de Castela,

ser-vos-aa conselho sãao

corregerdes bem a sela.

Que vá sempre mui bem chea

bem rija dos arções;

por nom levantar rezões

falar pouco depois de cea.

E se em vossa companha

forem algũas donzelas,

nunca vos sais d' antr' elas

como ja tendes por manha.

Nom sirvaes sempre com ũa,

se vos mal disser a dita,

mas a quem vos disser ita,

a essa tanjei a mula.

Com quem vos der milhor jeito

servirês polo caminho,

nom leixês de ser daninho,

quando virdes tempo feito.

Honestamente e de dia

seja de vós bem servida

e por causa desta vida

nam leixês descortesia.

Como virdes o ar pardo

que ja quer anoutecer,

se tomar querês prazer

nunca vos mostrês covardo.

Leixai-vos ficar detras,

mandai os moços diante,

ũu desvio de galante

jaa sabeis como se faz.

Ordenai como se deça

pera correger a cilha,

e em cima da mantilha

fazei cousa que pareça;

sendo logo percebido

que mui bem lha alimpeis,

porque nam seja sabido

nada disso que fazeis.

Se a virdes mui queixosa,

amostrai grande braveza,

dizê-lhe: — Pera fermosa

nam é isso gentileza.

Seja a sela tornada

com gram prazer e ledice,

dizei que nam diga nada,

que faraa grande pequice.

Como fordes na pousada,

oulhai bem pola fazenda

e a bolsa bem guardada

que ninguem vos nam entenda.

Convidai de boamente

qualquer homem estranjeiro,

mas ũu olho nele atente

e o outro no parceiro.

Tereis mui bem avisado

algũu vosso servidor,

que vos traga do milhor

por guardardes vosso estado.

Remolhai-vos ameude

com medo do ar da serra,

que nam é pouca saude

regrar-vos bem nessa terra.

Com esses grandes senhores

tomarês conversaçam:

se falarem em amores,

ahi sões vós mixilhão;

se falarem na batalha,

nam digaes que fostes preso,

mas mostrai-vos barbiteso

sem temor de nemigalha.

Dizei-lhe: — Se eu lá fora,

nom creaes que me tornara,

que primeiro nam tomara

a ponte e mais Çamora!

Alargai mui bem a poja,

nom façaes parente prove,

contanto que vos nam tome

quem lá virdes que se anoja.

Se alguem virdes queixoso,

fazei a farinha branda,

ca vos será proveitoso

espaçar esta demanda.

Nom cureis de tomar brigas

com nenhũ desses de laa,

que nam ha i per' amigas,

indo tam poucos de caa.

Se vos lá chamar alguem

demo longo, negro e feo,

metei a barba no seo

e calai-vos muito bem.

Ante mordei castelhano

que falardes portugues,

guardai-vos d' algum reves,

que vos pode trazer dano.

Fim.

Meus conselhos nom sam taes

nem estava percebido

pera vós serdes servido

de mim como desejaes.

 

170

DE PEDR' HOMEM A DOM

JOAM MANUEL.

Pois reposta nam s' escusa

à que me trouxe Luis,

invoco El-Rei Dom Denis

da licença d' Arretusa.

Em seu nome mui tratado

haveraa tam cedo fim,

que se crea ser em mim

o seu escrito dobrado.

Luis de Santa Maria

chegou em hora tam forte

que lhe ocupou a morte

sua pousentadoria

Nam pude dele fruir

soomente novas de vós,

dizem qu' ee longe de nós

olhos que o viram ir.

Leixou a vila tam rasa

o medo desta conquista,

que todos perdem de vista

a mais derradeira casa.

A minha nam se derrama

nem pode, inda que queira,

porque tenho a companheira

como nunca tereis dama.

Mas como convalecer

a desora partirei,

para onde, nam no sei,

nem se deve de saber.

Per' aa corte nam seraa

a poder de minha tença,

porque nunca como laa

do que me vem de Valença.

De mim nam sei mais que diga,

doutros muitos direi eu,

se viesse jubileu

que segurasse fadiga.

Pero pois o i nam ha,

socorrer e leixar far,

mas dá-se tanto a vagar

que nam sei quando será.

A fama da devinal     

ia caminho da Beira,

e torceo desd' a Guerreira

por me dar nova de mal.

Disse-me mais a malina,

depois dos segredos mores,

que todolos mantedores

vos leixaram Faustina.

Fim.

Cousas que nam vem nem vam

escuso por vaidades,

bem sei das Sete Cidades,

bem sei de Fernam Seram.

E sei que des que vos vi

nam tomei nenhũu prazer

e mais sei quando naci,

nam sei quand' hei-de morrer.

171

CANTIGA DE PEDRO HOMEM,

QUANDO CASOU A SENHO‑

RA DONA BRANCA

COUTINHA.

Pois a todos, se casaes,

o viver seraa tam caro,

lembre-vos o desemparo,

senhora, que nos leixaes.

Leixais-nos toda trestura,

levais-nos toda alegria,

ditosa foi a ventura

de quem vio a sepultura

primeiro que tam mao dia.

Pera que vivemos mais,

pois morrer nos está craro,

vivendo no desemparo,

senhora, que nos leixaes?

Sua.

Tristes de nós que faremos?

Vossa mercê que faraa?

Com quem nos consolaremos

ou quem nos consolaraa?

Ó morte, porque tardais?

Vind' asinha ser emparo

de quem vê o desemparo,

senhora, que nos leixaes.

172

DE PEDRO HOMEM, ESTANDO

FORA DA CORTE, A DOM JOAM

MANUEL QUE ESTAVA

COM EL-REI EM

ALMEIRIM.

Sem tocar o Zodiaco,

sem tocar musas nem fadas,

sem tocar Venus, nem Baco,

sem fazer outras levadas,

vos começo de pedir

da corte novas,

se nam morrerdes de rir

de minhas trovas.

E sam de Nosso Senhor

as que primeiro queria

e nam ja do salvador,

senam as do regedor,

da sua cavalaria

e dessoutro soverano

venham todas,

e se lhe fazemos vodas

antes d' ano.

À conquista d' ultramar

m' escrevei s' imos alem,

porqu' eu, se deste escapar,

nam espero de parar

menos de Jerusalem.

Ca por nam saber se vam,

nam sei se vivo,

e tambem de Jam Falcam

se é ja cativo.

D' Almeidas nem d' Almeirim,

taforeas correger

nam quero novas saber

nem que as saibam de mim.

Na cruzada folgarei

falar o conto

e se a tomou El-Rei,

que é gram ponto.

Da corte saber queria

para onde faz mudança

e se ficou d' abadia

senam a vãa esperança,

e tambem se nos dam casa

por Janeiro,

dai-me lá figa ò porteiro

cor de brasa.

Fim.

Das damas certa novela

me mandai tambem, senhor,

e se ha gora laa donzela

que queira saltar janela

com' a de Soutomaior.

Porem, o que cá entendo

lá se crê,

senhor, em vossa mercê

m' encomendo.

Reposta de Dom Joham

Manuel.

Co desvio que tomastes

acerca da poesia,

grandemente m' ensinastes

o que me muito compria.

Deixo-a, pois a dexei

de mim partir

e digo as novas que sei,

ora ouvir:

Do Duque folgai saber

que é bem sam, a Deus louvores,

e tem deixados amores

que antes soia ter.

Mas que deixou nam creaes

galantaria,

antes nele crece mais

cada dia.

Está tambem de saude

o Princepe excelente

com quem crece juntamente

muita enfinda vertude.

Nom quer ter nem ver porteiro,

é mui sesudo,

e se nam fosse monteiro

teria tudo.

Do casamento dizer

nam ouço o que seraa,

mas sei que outras vodas cá

primeiro ele ha-de fazer.

Segundo o mundo çoçobra

eu me fundo

qu' ee sandeu quem se nam logra

deste mundo.

A cruzada tem tomada

Rei e Princepe tambem,

e é nova levantada

qu' imos no Veram que vem.

Mil cousas mando fazer

de preto e branco

e aqui neste barranco

hei-de morrer.

Esta mesma acupaçam

a muitos vejo trazer,

os quaes creo que faram

de sua perda a meu ver.

Espero-os naquele dia

neste laço,

que graça porem seria

s' eu lá jaço!

No feito de Joam Falcam

ainda s' agora sonha,

taforeas, capitam,

Duarte Galvam Bergonha.

A corte aqui se manea

neste prado,

mas logo benaventea

Abril passado.

Jejunaram damas todas

caa tres dias sem comer,

mas vós nam podereis crer

tal raiva de fazer vodas.

E tambem nam se lançaram

soo ũu hora,

mas ainda nam casaram

atee gora.

Fim.

Da abadia me ficou

a fadiga que tomei

e se centeo levei

a cruzada me chofrou.

Polas novas que vos mando,

mandareis

certeficar-me de quando

vós vireis.

173

PEDRO HOMEM A DOM

GONÇALO COU‑

TINHO.

Soube El-Rei neste caminho

que se diz cá polas ruas

qu' andais vós e Dom Martinho

dous com duas.

O diabo nam achará

tal agudeza d' amores,

nem manha com que pinchará

tam rijo competidores.

Desviar deste caminho

que cá se diz polas ruas

que ũa ri de Dom Martinho

e de vós, duas.

174

BREVE QUE FEZ PEDRO

HOMEM A ŨUS

MOMOS.

Vivemos desesperados,

fazem-nos mil desfavores,

crecem-nos nossos amores,

dobram-se nossos cuidados.

Sam-nos mui boons os serãaos

para ver e desejar

e momos para tomar,

inda que lhes pês as mãos

com que nos ham-de matar.

 

175

D' ANRIQUE D' ALMEIDA

PASSARO A ESTE MOTO:

Que verei que me contente?

Pois sem vós prazer nam sente

minha vida nem deseja,

se mandais que vos nam veja,

que verei que me contente?

Mas é forçado que sejam

sempre ja meus olhos tristes,

pois meu bem nam consentistes

nem quereis que mais vos vejam.

Vida triste, descontente,

a minha convem que seja,

se mandais que vos nam veja

que verei que me contente?

176

OUTRA SUA.

Ja me nam ha-de pesar,

meus olhos, em que quebreis,

pois vos nam hei-de mostrar

em que ja prazer me deis.

Nam me podeis fazer bem,

nam vos hei nunca mester,

pois meus olhos nam vos quer

quem em seu poder vos tem.

Podeis-vos ambos quebrar,

que mingua me nam fareis,

pois vos nam hei-de mostrar

em que ja prazer me deis.

177

D' ANRIQUE D' ALMEIDA EM

LOUVOR DE SUA DAMA.

Bem sei eu quem tem poder

frol do mundo se chamar,

seu nome quero calar

por meu mal se nam saber.

Esta dama por quem digo

tam gentil parecer tem

que todos quantos a vem  

sam postos em gram perigo,

porque se podem perder

todos pola desejar.

Seu nome quero calar

por meu mal se nam saber.

178

ANRIQUE D' ALMEIDA A DONA

ISABEL DA SILVA, ESTANDO PERA

CASAR COM Ũ VELHO, AVISAN‑

DO-A DO QUE ACONTECEO A

JOAM DE MELO, COMENDA‑

DOR DE CASEVEL, QUE

VELHO CASOU COM

ŨA MOÇA.

Casar si, mas nam consento,

com idade de Casevel

ante vós nunca casavel

que fazer tal casamento.

Sabei-o tomar d' idade

pouco mais ou menos vossa,

porque queira e porque possa

comprir bem vossa vontade.

E seja-vos escarmento

o bom senhor de Casevel

que tantas vezes cansevel

des que fez seu casamento.

179

ANRIQUE D' ALMEIDA

A ESTE MOTO:

Se fosses meu algum dia.

Com quanto nojo me desse,

coraçam, tua porfia

e por mal que me fezesse,

tudo se perdoaria

se fosses meu algum dia.

Mas sabes que outro bem

nunca vejo dahi jaa,

senam em servir a quem

tam triste vida me daa;

e que mais mal me fizesse  

coraçam, tua porfia

e por pena que me desse,

tudo por bem havria,

se fosses meu algum dia.

Ajuda do Coudel-moor.

Nom me es tu, coraçam,

no seo menos que brasa,

buscas minha perdiçam

e es-me nisso um ladram

que sab' os cantos da casa.

Mostras-me que é intaresse

seguir de nojo perfia

e buscaste quem ma desse,

mas todo te sofreria

se fosses meu algum dia.

180

ANRIQUE D' ALMEIDA

A ESTE MOTO:

Que milagre faria Dios.

De quantos penam por vós

a que nunca fazeis bem,

que milagre faria Dios

se penasseis por alguem.

De quantos vossa crueza

tem lançados a perder

e vidas fazeis sofrer

tristes mais que a tristeza,

por se mais vingar de vós

quem mais servida vos tem,

que milagre faria Dios

se penasseis por alguem.

Ajuda do Coudel-moor.

Pois pena tam desigual

me fazeis sempre sentir,

pois nam presta nem me val

amar-vos nem bem servir,

pois que tam certo de vós

é dar mal e nunca bem,

que milagre faria Dios

se penasseis por alguem.

181

CANTIGA D' ANRIQUE

D' ALMEIDA.

Contentai-vos do que vistes,

meus olhos, porque jamais

nam espero que vejais

quem vos faça menos tristes.

Que ja nam vereis prazer

com que vosso mal abrande

nem podeis ver mal tam grande

par' este vos esquecer.

Assi cuidar no que vistes

vos compre des hoje mais,

que nam ha i que vejais

que vos faça menos tristes.

 

182

DE JOHAM BARBATO COMO SE

HAM-DE SERVIR AS DAMAS:

DAA SETE AVISOS.

Deu-me tais padecimentos

com tam diversos cuidados

quem servi,

que fiz sete avisamentos

e todos espermentados

ja por mi,

nos quaes serei verdadeiro.

Mas veja quem os servir

u se mete,

qu' ee o aviso primeiro

que lhe compre de seguir

todos sete.

No primeiro, de tua dama

antes que seja servida

te dou pejo,

e sabe por sua fama

s' ela quer ou é querida

nesse ensejo.

Porque se querida for,

contanto qu' ela nam queira,

poderaas

dar-te por seu servidor,

mas se quis bem da primeira

partiraas.

No segundo, u for posta

ũa vez tua firmeza,

consentires,

com trabalhada crueza,

que te venha maa reposta

nam partires.

Que vees que se siguiraa

se deixares esta ũa

e outra metas,

nunca t' agasalharaa

em dias molher nenhũa

que cometas.

No terceiro aperceber,

lembre-te que te aviso

em tal maneira:

u puseres teu bem querer,

que seja molher de siso

e verdadeira.

E peroo presumirás

que o seu bom entender

te embeleca,

sirvi-a bem e verás

que milhor é de mover

que a peca.

No quarto, assegurar,

se poderes seja cedo,

nam te leixe,

e se vires tal lugar

tu lhe põe as mãos sem medo

que s' aqueixe;

ca que t' ela bem entenda,

finge nam no entender

e é-lhe viço,

e posto que se defenda,

todo seu bom defender

é fingidiço.

E no quinto, tu retem

ũa vez teu bem querer,

se poderes,

posto que lhe queiras bem,

nam lhe dês a entender

quanto lhe queres;

que s' ee molher entendida

conhecerá bem teu jeito

e maneiras

e ja toda tua vida 

sempre lhe serás sojeito,

que nam queiras.

Se quiseres servir amores,

tu sabe tomar aqui

tua ventagem,

esta dama que servires

nam valha menos que ti

por linhagem.

Milhor é menos amado,

posto que s' o homem afronta

com verdade,

e querer em alto estado,

que d' outra de menos

conta liberdade.

Fim.

No seteno, te concrudo:

se quiseres bem querer,

faz mester

que te tenha por sesudo

e de muito entender

esta molher.

Tu sê-lhe tal servidor

que saibas bem encobrir

sa poridade,

e eu fico por fiador,

quem sa dama assi servir

que arrecade.

 

183

DE JOHAM BARBATO A

VIOLANTE DE MEIRA.

Senhora, contar-vos-ei,

preguntai a Vasco Palha,

de um sonho que sonhei,

e do prazer que tomei

tornou-se-m' em namigalha.

Vós vinheis de cas da Rainha,

vós dizeis que fogida

e dizendo: — Oh mezquinha,

pois ventura tal é minha

ja creo que sam perdida!

E daveis ũu grande brado:

— Quem se doi daquesta dama?

Eu jazia ja deitado,

acordei estrovinhado

e saltei fora da cama.

E eu vos nam conheci,

quando foi pola primeira,

mas despois que vos bem vi,

senhora, disse assi:

— Sois Violante de Meira!

Quando chegastes a mim,

vós ficastes bem citada

e dixestes: — Oh coitada,

nam achava outra pousada,

o demo me troux' aqui!

—A la fee, diss' eu, donzela,

serês minha convidada,

pois vos tenho na pinguela,

eu creio que sois aquela

que doona serês tornada.

Vós vinheis este seram

mais vermelha que a brasa,

eu fui logo temporam

e tomei-vos pola mam,

meti-vos dentro em casa.

Ali, dezieis, senhora:

— Ó por amor dos donzes,

por mercê lançai-me fora,

perdoai-me por agora,

homilho-m' a vossos pees.

— Al me podês vós rogar,

respondi, senhora, eu,

mas de vos esta quitar,

eu seria de tachar

por muito mais que sandeu.

Entam, senhora, vos via

em tamanho desbarato

que vossa mercê dezia:

— Pois ventura tal é minha,

entregai-vos, Joham Barbato.

Estas rezões acabadas,

por delas nam fazer custa

nem despender mais palavras,

descalcei logo as bragas

e aparelhei-me de justa.

Eu vos posso afirmar

e dar de mim esta fee

que nam tivemos vagar

pera nos irmos lançar

e começámos em pee.

Despois disto começado,

vós dissestes ũa cousa:

— Pois ja tal é meu pecado,

amigo, sede lembrado

nam no saiba Rui de Sousa.

Respondi-vos desta guisa:

— Nam tenhais esta sospeita,

mas por ver vossa devisa

desvesti esta camisa,

quero ver como soes feita.

Vós desvestistes-vos logo

e oulhastes bem par' ele.

Quando vi o mais do jogo,

eu ardia em tal fogo

que nam cabia na pele!

Tornastes-vos a vestir

e lançastes vossos contos,

começastes de carpir:

— Quem me soia a servir

ma faz andar nestes pontos!

Bradando com boa vontade:

— Ó meu senhor e amigo,

pois levaes a virgindade,

obrai ora piadade

e casai ora comigo!

— Eu o quero ja fazer,

senhora, por conciencia,

mas vós tinheis o poder

e eu nunca pud' haver

ũa vossa audiencia.

Vós vistes que me prazia,

senhora, de eu querer,

e vossa mercê fazia

consigo tal alegria

que choraveis com prazer.

E a mim, que nam pesava,

me matava bem de riso,

porque, senhora, cuidava

que aquilo que sonhava

que era em todo meu siso.

Fim.

Toda a noite trabalhei

em andar nest' embeleco,

mas sabei: quando acordei,

eu certamente m' achei

um muito valente peco.

Qu' assi Deos me dei vitoria

em tal prazer qual estava,

despois houve menencoria

por perder aquela groria,

senhora, em qu' eu estava.

 

184

DE DIOGO FOGAÇA A ŨA

DAMA MUITO GORDA, QUE

SE ENCOSTOU A ELE

E ACAHIRAM AMBOS

E ELA DISSE-LHE

SOBRE ISSO MÁS

PALAVRAS.

Rifam.

Que gentil feiçam de damas,

nam sei como vo-lo diga,

que tudo é cu e mamas

e barriga.

As mamas dam polo ventre,

o ventre polos joelhos

e do cu at' oos artelhos

gordura sobressalente.

Arrenego de tais damas,

é forçado que o diga,

ca tudo é cu e mamas

e barriga.

Corregeram-na mui bem,

pero foi com muita pena,

ca lhe fizeram querena

no rio de Sacavam.

Revolta d' ambalas camas,

isto com muita fadiga,

ca tudo é cu e mamas

e barriga.

Corregeram-lh' o costado,

mas a quilha ficou podre,

ramendaram-lha com ũ odre

do avesso trosquiado

e com tres peles de gamas,

muita estopa d' estriga,

ca todo é cu e mamas

e barriga.

Nam prestou calafetar,

porque faz agua por fundo,

ja nam ha Crespim no mundo

que lha podesse vedar.

Ò diabo dou taes damas,

é forçado que o diga,

ca toda é cu e mamas

e barriga.

Cabo.

Mas quebraram-lh' as escoras,

encostou-se sobre mim,

teve debaixo Crespim

bem acerca de tres horas.

Ja renegava das damas,

saio com muita fadiga

debaixo de cu e mamas

e barriga.

185

DE DIOGO FOGAÇA.

Ai molher, eu vos hei medo

da ira de Dom Fadrique,

guardai-vos d' haver ũu pique

ou andai co rabo quedo.

Vejo-vos tal condiçam,

que d' ũ soo nam sões contente,

quem a corna nam consente,

vem-lhe de bom coraçam.

Havei bom conselho cedo

s' entendeis de vos casar,

confessar e comungar

ou andar co rabo quedo.

Manda Deos d' ũ homem soo

ser contente ũa molher

e quem mais que, ũu quiser

o demo haja dela doo.

Julga Luis d' Azevedo,

que tem a vara d' El-Rei,

que moira, segundo a lei,

ou ande co rabo quedo.

186

CANTIGA SUA.

Que m' algũs vissem sobir

e me vejam tanto em fundo,

nam s' espante quem me vir,

que assi entrou o mundo

e assi ha-de sair.

O mundo faz movimento

pero nunca é movido,

do ganhado faz perdido,

do perdido guanhamento.

Faz sobir e faz cair

do mais alto ò mais perfundo,

pois nam prasme quem me vir,

que assi entrou o mundo

e assi ha-de sair.

187

OUTRA SUA.

Deos nam daa consentimento

tu seres de mim servida,

ca é contra mandamento

e é teu destroimento

da honra como da vida.

A vontade é contraira

da bondade e da razam,

que seguir seu coraçam

de todo siso desvaira.

Deos nam deu conhecimento

da maldade conhecida,

pois passar seu mandamento

é vosso destroimento

da honra como da vida.

188

OUTRA SUA.

Pois quem amo quis assi

minha morte conhecida,

pesa-me porque naci,

despraz-me de tanta vida.

Vida tanta ja nam quero

e desejo minha fim,

a ledice nam espero

de quem amo mais qu' a mim.

Pois que sempre bem servi,

me faz triste na partida,

pesa-me porque naci,

despraz-me de tanta vida.

 

189

DE FERNAM LOBATO A ŨA

SENHORA QUE SERVIA.

A vós a que por meu mal

meu serviço obriguei,

que por morte acabarei

de vos ser sempre leal.

Tanto sam vosso, senhora,

quanto eu de mim conheço,

que nam quisera ser agora

polo mal que ja padeço.

  

Ca em mim nam estaa poder,

senhora, de me partir

nem vontade de servir

nunca m' haa-de falecer.

Ca raiva meu coraçam,

onde jaz na parte esquerda,

por temer que sem rezam

ha-d' haver mui grande perda.

E que perda tanto seja

quanta vos dizer nam posso,

a vontade de ser vosso

é, senhora, mais sobeja.

Ca segundo meus sentidos

vos fazem, senhora, de mim

os meus males conhecidos

vos faram ver minha fim.

Vossa fala graciosa

me tem posto tal cuidado

que per mim nam sam ousado

dizer sem licença vossa.

Mas peroo que tal desejo

algũ homem ter quisesse

em amar a tam sobejo

nam creo que ser podesse.

A vós per quem tribulança

o meu mal é a tam grande

que me faz vos nam demande

a verdadeira esperança.

E vós, senhora poderosa,

farês bem satisfazer,

com vontade piadosa,

a quem vive sem prazer.

Fim.

De mim se poderaa dizer

que vos amo lealmente,

sem poder de vós saber,

senhora, se sões contente.

FIM DO PRIMEIRO VOLUME