Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

 Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende


Edição de base:

GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.

Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

VOLUME I

I

Tavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . .

De Gil Moniz a ũa molher.  fo. LXII

D' Afonso Valente a Dona Guiomar e grosa d' ũa cantiga e ũa pregunta.   fo. LXII

De Rui Moniz a sua dama.        fo. LXII

‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às      fo.LXIIII

De Tristam Teixera, tres cantigas.         fo. LXIIII

De Jorge d'Aguiar contr' as molheres.     fo. LXIIII

Trovas e cantigas suas.   fo. LXV

De Fernam da Silveira aas damas, em que se fez morto.        fo. LXV

‡ Trovas e cantigas suas.         fo. LXVII

De Diogo Marcam em ũa partida e duas cantigas suas   fo. LXVIII

De Joam Gomez da Ilh'aa razam.  fo. LXVIII

Trovas e cantigas suas.   fo. LXX

De Dom Goterre, nove cantigas     fo. LXX

Do Conde de Borba, dez cantigas.       fo. LXXI

Do Conde de Vila Nova desavindo e grosa sua a ũ moto.    fo. LXXI

Do Conde de Tarouca, ũa pregunta.      fo. LXXII

D' El-Rei Dom Pedro, quatro cantigas.    fo. LXXII

Do Ifante Dom Pedro a Joam de Mena e a reposta.      fo. LXXII

Do Ifante sobre o menospreço do mundo. Obra grande.   fo. LXXIII

Do Conde do Vimioso a ũa senhora.   fo. LXXIX

Trovas suas e d' Aires Telez, sobre ũa perfia d' amores.   fo. LXXX

‡ Trovas e cantigas do Conde, desta folha atee às folhas    fo. LXXXVI

De Dom Diogo, filho do Marquês, trovas e cantiga sua.    fo. LXXXVI

Do coudel-mor Francisco da Silveira a Alvaro da Cunha.   fo. LXXXVI

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às     fo. LXXXVIII

De Joam Fogaça a Dom Gonçalo.     fo. LXXXVIII

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas     fo. XC

De Diogo Brandam aa morte d' El-Rei Dom Joam.         fo. XC

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas     fo. XCVII

De Luis Anriquez aa morte do Principe.     fo. XCVII

‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas       fo. CVI

‡ De Joam Rodriguez de Castel Branco a Antoneo Pacheco.   fo. CVI

Trovas e cantigas suas.   fo. CVII

De Rui Gonçalvez, trovas suas.   fo. CVII

Dezasseis cantigas suas.      fo. CVIII

Do Doutor Francisco de Saa, grosa d' ũa cantiga.    fo. CIX

Outra grosa e cantigas suas.      fo. CX

D' Anrique de Saa a Diogo Brandam.      fo. CX

‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas   fo. CXII

De Fernam Brandam, trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas      fo. CXII

De Joam Rodriguez de Saa, sobre algũs escudos d' armas.     fo. CXIIII

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas     fo. CXXVII

 

190

DE GIL MONIZ.

Pois naci por vos amar

e ser vosso ta morrer

sem me partir,

eu nam devo recear

coitas, trabalhos sofrer

por vos servir.

Ca pois sempre vos amei

e vos amo certamente,

dizer posso

que ja nunca poderei

doutra ser inteiramente

senam vosso.

De vos eu aquele ser

que vos sempre fui e sou

ategora,

vós o devês firme crer

qu' esta fe nam se mudou

de mim, senhora,

pois que outra liberdade

nunca pude desejar,

nem queria

senam soo vossa vontade

sempre comprir e guardar

como devia.

Eu nam creo que nacesse

quem mais males soportasse,

nem sentisse,

nem que d' amar me vencesse,

como quer que bem amasse

ou servisse.

E coitas desesperadas

e tantos padecimentos

tenho passados

que soo de serem lembradas

os meus tristes sentimentos

sam torvados.

Pois leixarei por ventura

de vos sempre ser leal

sem gualardam?

Ou fará minha tristura

meu desejo querer al?

Por certo, nam!

Ante soportar aquela

vida mal aventurada, em que naci,

por vós, sesuda donzela,

mais dina de ser amada

de quantas vi.

Aqueles que bem amaram

e lealmente serviram

no passado

fama de si vos leixaram,

polas penas que sentiram

e cuidado.

A qualquer que bem ama

de si leixa tal memoria

em meus dias,

eu soo devo ser na fama

em ũa igual gloria

com Mancias.

Fim.

Ó vós, minha esperança,

todo meu bem e prazer

tam sem medida,

minha grande segurança

em cujas mãos e poder

é minha vida,

tanto devêes ser lembrada

e com tam grande sentido

de meu dano,

quanto sões vós desejada

e servida, sem partido

nem engano.

191

D' AFONSO VALENTE À
SENHORA DONA
GUIOMAR DE
CASTRO.

Triste eu segui o mar

donde fermosura mora,

vi tam descreta senhora

e dama tam sengular,

que nam compre navegar

a desora.

Este mar é mui brigoso,

tem em si mui doces portos,

é d' ares mui avondoso,

de navegar perigoso,

que tem ja mil homens mortos.

Este mar é Guiomar,

a diesa que se adora,

esta se deve louvar,

esta se deve adorar

por senhora.

192
CANTIGA.

Dond' estás que no te veo,

¿ qu' es de ti, esperança mia?

A mi que verte deseo

mil anhos se me faz ũ dia.

Mas tal es tu hermosura

y tu terna juventud,

que con tu gentil fegura

me fieres y das salud.

Comigo mismo guerreo,

si desamar te podria,

mas al fim cativo creo

quedar de tu senhoria.

Grosa d' Afonso Valente
a esta cantiga, em
ũa partida.

¡ Que triste partir parti,

que dolor y que deseo,

que vida tengo sen ti!

Desconsolado de mi,

¿ dond' estás que no te veo?

Que ando triste mirando

no veo tu senhoria,

la muerte ando lhamando,

lhorando ando cantando

¿ qu' es de ti esperança mia?

Neste canto dolorido

desta ausencia que poseo,

con este negro d' olvido,

es gran cuidado venido

a mi que verte deseo.

Por saber se es lembrada

desta triste passion mia,

por saber se es guardada

la fee que te tengo dada,

mil anhos se me faz ũ dia.

Y ando loco sin seso,

deseoso sin ventura,

de mil passiones aceso

todo mi plazer despeso.

Mas tal es tu hermosura

que si pensa mi memoria

tu beldad y multitud

de tus gracias y tu gloria,

me da gloria tu vitoria

y tu terna joventud.

Mas ay que ninguna buena

vida por ti m' assegura,

es mi mal mayor que suena,

es por ti clara mi pena,

que com tu gentil fegura

te posistes dos senhales

de bondad y de vertud,

mas no te duelen mis males,

que son tales com los quales

me fieres y das salud.

Mas tal salud de morir

do tu piadad no veo,

claro te quiero dezir:

— Sabe que por te fuir

comigo mismo guerreo.

La razon me da la fe

que cierto bien me seria,

diz mi mal: — Consentiré.

Mas amor me diz: — No sé

si desamarte podria.

Fim.

Y con esta turbacion

do mil consejos rodeo,

que te fuya mi passion

me concluye la razon,

mas al fim cativo creo,

segum el luengo cimiento

del gran amor, que me guia,

qu' es vano tal mudamiento,

pues qual bivo tal consiento

quedar de tu senhoria.

193

AFONSO VALENTE AO
COUDEL-MOOR.

Prudencia y descricion

segum en vos, senhor, suena,

ocurra de vos la buena

y perfeita avisacion.

Pues cegué donde más via

y veo donde más ciego,

negué el bien que tenia,

el mal que tengo no niego.

Ca nestes tristes amores

do mi gualardon s' alarga,

quanto más le sufro carga

más le siento sus dolores.

Amor me comproo dolor,

mi libertad apenhando,

desto pido y demando

como seré, mi senhor.

O Coudel-moor polos
consoantes.

Pues es cierta conclusion

que no lhoeve como truena,

el dezir de vuestra pena

no me cause alteracion.

Ni a la descricion mia

procure mal assusiego,

mas si presuncion me guia

ante vos delha arreniego.

Ante vos com mil temores

mi saber assi s' embarga,

que ya os riendo mi darga

y las armas maas mayores.

Mas a las compras d' amor

de vuestras quexas tornando

con aussencia le pagando

el tiempo quita el penhor.

194

DE RUI MONIZ NAM ESTAN‑
DO BEM COM SUA DAMA,
POR FAVORECER
OUTRO.

Donzela que me desama,

de vos tam bem conhecer

me pesa mais que pensaes,

porque vejo vossa fama

em ponto de se perder,

da qual vós pouco curaes.

Quem cuidou que fosseis tal,

que por seguirdes vontade,

negando vossa verdade,

folgasseis com vosso mal?

Que vos moveo a fazerdes

ũa cousa tam errada,

por seguir maginaçam,

e a folgar de viverdes

com raiva de namorada

em tam grande sogeiçam?

Grande foi vosso pecado,

que vos sogigou a quem

vos nam pode querer bem

nem sente vosso cuidado.

Se vos tal vontade atura,

em triste dia nacestes,

bom vos fora nam ser viva,

triste foi vossa ventura,

pois por quem ũu tal perdestes

vos tem quasi por cativa.

Pois pesar me rezam é

por serdes de tal linhagem,

mais que por vossa menagem

quebrardes nem vossa fee.

Vosso bem tanto me monta,

porem se foreis sesuda

nem perdera vossa graça

ca vos devera lembrar

como vos servi seis anos,

esquecido de meus danos

sem vos nunca desamar.

Fim.

Pois nam é de comparar

vossa culpa sem escusa,

do erro que vos acusa

quem vos poderá salvar?

195

RUI MONIZ, ALEGANDO DITOS
DA PAIXAM, PERA MATA‑
REM ŨA MOLHER DE
QUE S' AQUEI‑
XAVA.

Expedite unam mulie‑
rem mori.

Por tal de nam perecerem

as molheres virtuosas

nem suas famas perderem

as damas gentis, manhosas,

assi s' escreve, senhores,

na Paixam por seu castigo,

e eu assi vo-lo digo,

avangelista d' amores.

Nom licet mittere eam
in carbonum.

Nam é necessaria cousa

desta molher fazer vida

em casa, onde repousa

bondade tam conhecida.

Porque seria pecado

daquesta viver u nam

mora falso coraçam

do que deve mal lembrado.

Secundum legem debet mori.

Segundo lei morrer deve,

pois em si tanto mal traz,

a molher que se atreve

a fazer o qu' esta faz.

As leis humanas o querem,

os direitos o consentem,

e os que dela se sentem

sempre sua fim requerem.

Tole, tole, crucifige eam.

Logo a crucifiquemos,

pois se nam quer correger

ou morte cruel lhe demos

por mais males nam fazer.

Porque se muito andar

no lugar em que andamos,

com as que mais desejamos

nos ha sempre de trovar.

Hanc dimittis nom es
amicus Cesaris.

Se viva sobola terra

deixamos quem nos quer mal,

destroindo o mais leal,

consentindo quem mais erra,

imigos das nossas vidas

somos verdadeiramente,

e nam das nossas soomente,

mas das que temos servidas.

Tradidit eam illis ut
crucifixeretur.

Com pregam seja levada

desta gentil corte fora

esta imiga provada

da fama de na senhora.

196

RUI MONIZ.

X. p. f. a. til,

maçaroca frita,

desprazer de quem vos ama,

parecês galante dama

que a todos dizeis ita.

A todos mostraes ũ geito,

maçaroca, mal pecado,

e todos levam sospeito

de vossa lãa ũ bocado.

X. p. f. a. til,

nam é bem que mais repita

vossas manhas, gentil dama,

pois de vós corre tal fama

que a todos dizeis ita.

197

CANTIGA DE RUI MONIZ.

Leixar-vos é caso forte,

porque vos amo sem fim,

amar-vos é par de morte

pera mim.

Nam posso detreminar

o que devo de fazer,

se servir, se vos leixar,

se por vosso me perder.

Ca leixar-vos caso forte

é, sem ver-vos minha fim,

amar-vos é par de morte

pera mim.

198

OUTRA SUA.

Ũu novo conhecimento

de meu padecer esquivo

me fez que tornei isento

de cativo.

Servia quem nam curava

de dano que me viesse,

servia quem m' enganava

sem nenhũ bem que me desse.

Polo qual meu sentimento,

de morto tornado vivo,

me fez que tornei isento

de cativo.

199

DE RUI MONIZ.

Pois lá trazes em teu punho

todo meu prazer çarrado,

se eu houve mal falado

desses delo testemunho.

Mas se eu nam falei al

senam bem, dá-me rezam,

senhora, porque tam mal

feriste meu coraçam.

Nam é muito de louvar

quem fere cousa vencida,

se a morte e a vida

qual quiser lhe pode dar.

Pois nam sei porque feriste

meu coraçam tam vencido

que milhor que ser tam triste

me fora nam ser nacido.

Tu me feres com tristeza

que mui sem rezam me dás,

cuidando que cobrarás

per' aqui tua crueza.

Porque sabes muito bem

se com ferro me ferisses,

que saber podi' alguem

o que calar presumisses.

Se te praz e tu quiseres

que eu anojado viva,

mata-me, ó tu esquiva

mais que todalas molheres!

Que nam é vida chamada,

mas morte podem dizer,

vida tam anojada

como me fazes viver.

E sento bem que divera

ser-me bem galardoado,

mas bem vejo, mal pecado,

que nam naci em tal era.

Que cousa que por bem faça

a bem ma queiras contar

tu, senhora, cuja graça

nam leixo de desejar.

Porende, minha senhora,

em concrusam eu te digo

mal fazer a teu amigo

em ta fama nam melhora.

Que se nela melhorasses,

eu te juro certamente,

ainda que me matasses,

que seria mui contente.

E se es de mim servida,

assi es de mim amada,

que muito serás culpada

em me ser desconhecida.

Lembre-te que te servi

e amei tam de verdade,

despois que te conheci,

que nunca mudei vontade.

Fim.

Em te manter lealdade

tenho eu grand' assessego,

pois havê tu piedade,

senhora, do teu Rodrigo.

200

TROVAS DE RUI MONIZ, EM
QUE METE NO CABO
DE TODAS ŨA
CANTIGA.

Como quem morre vivendo

ũu viver desesperado,

senhora, nam m' atrevendo

a dizer-vos meu cuidado,

digo que por meu pecado

tam gentil vos fizo Dios

que soy yo muy más contento

d' ir mal librado de vos

que d' otra com libramento.

Nam m' atrevo decrarar-vos

minha coita nam pequena,

receando d' anojar-vos,

a qual por vós se m' ordena.

Mas com toda minha pena

tan gentil vos fizo Dios

que soy yo muy más contento

d' ir mal librado de vos

que d' otra con libramento.

Sento triste pelo vosso

cuidado nam conhecido,

o qual escrever nam posso

como tenho no sentido.

Que por vós seja perdido,

tam gentil vos fizo Dios

que soy yo muy más contento

d 'ir mal librado de vos

que d' otra com libramento.

Desposto por vos amar

a fama perder e vida

sento, nam ouso falar,

minha pena sem medida.

Sento-a, sem ser sentida

de vós, que tal vos fizo Dios

que soy yo muy más contento

d' ir mal librado de vos

que d' otra com libramento.

Fim.

Vós serês de mim servida,

porque tal vos fizo Dios

que soy yo muy más contento

d' ir mal librado de vos

que d' otra com libramento.

201

CANTIGA DE RUI MONIZ,
EM QUE ACONSELHA
ŨAS SENHORAS.

Senhoras, com cedo

cimbrar ou casar,   

qu' a quem lhe tardar,

par Deos, hei-lhe medo.

E lembre-vos bem

aquelas coitadas

que Deos ja lá tem

por tarde casadas.

Havei ora medo,

sabê-vos lograr,

nam queirais tomar

a morte com cedo.

E pois vistes duas,

guardar de terceira,

assentar-lhe a calveira

vestidas ou nuas.

E com este medo

de tarde casar,

nam compre tardar,

mas cimbrar com cedo.

Qu' assi fez aquela

por sua saude

que mui ameude

lhe dam cambadela.

E com este dedo

se pode mostrar

quem se foi furar

sem lume, com cedo.

Quem gosta a duçura

e a pode saber

ha o outro viver

por desaventura.

Portanto, sem medo

cimbrar sem tardar,

ca vos ha-de pesar

de nam ser mais cedo.

Mas a que o gosta

nam lhe pesa nada

de ser cavalgada

d' ilharga ou de costa.

Passará dos doze,

o mais nam é cedo,

s' amor vos escoze

perdê-lhe o medo.

Guardar d' esperança

muito perlongada

e seja lembrada

per nome Costança,

que lambeo o dedo

despois de gostar

e foi-se finar,

do que vos hei medo.

Pegar pelas cristas

a qualquer escuro,

cimbrar a nam vistas

é caso seguro.

E posto em segredo,

folgar e calar,

deixai-vos andar,

sem disso haver medo.

Ja se nam costuma

pedir virgindade

e que se presuma

nam ha i verdade.

Com mão ou com dedo

podês-vos furar

sem arrecear,

nem disso haver medo.

Quem for derribada

pelo fodicam,

quer caia quer nam,

nam vá arrufada.

Assentar-lh' o bredo,

cimbrar e folgar,

mas quem vos levar

deve d' haver medo.

E nam é mentira

que Deos disse a Adam:

— Fazei geraçam.

E daqui se vos tira

que folgar com cedo

nam é de prasmar,

mas de lhe tardar

deveis d' haver medo.

Por ser defamadas

nam leixês fazer,

ca destas vem ser

as mais bem casadas.

Ca nam é segredo,

quem sabe folgar

nam perde casar,

nem hajaes disso medo.

Fim.

Notai esta copra

e sabei como vai,

a molher de meu pai

tomai-a por sogra.

E nam sendo cedo

vos pode pesar,

mas se eu lá entrar

perdei vós o medo.

202

OUTRAS DE RUI MONIZ A
TRES FREIRAS DUM
MOESTEIRO.

Senhoras, vós todas tres

porque soes de mui bom tento,

por mercê responderês

e isto decrarareis,

em nome desse convento.

Dizemos cá antre nós,

e todos têm por tençam,

se nam é frade

que quem jaz cũa de vós,

que lhe cai arma da mão,

se é verdade.

E tambem muitos s' afastam

d' andar convosco d' amores

e cá pelo lugar catam

outros amores, que matam

todolos vossos favores.

E dizem que o Antecristo

ha-de ser de vós gerado,

por mercê decrarai isto

se quem vos coçou foi visto

em sua morte alterado.

Cabo.

E porque nós nam sabemos

tam bem arte do cantar

como vós, nem n' aprendemos,

em gram mercê vos teremos

ensinardes-nos solfar;

e mandai tudo num rol,

senhoras, por vossa fee,

e dizei-nos, em bemol,

se folgais por mi, fa, sol,

se por ut, re.

203

CANTIGA DE RUI MONIZ A ŨA
MOLHER QUE ELE JA CONHE‑
CEO E MANDOU-LHE
ŨA MUITO MAA
REPOSTA.

Dama do jentil despacho,

que pouco dais por ninguem,

eu sei que vós sabeis bem

se sam femea, se macho.

Eu vos nam avorrecia,

eu sei bem que vos coçava

e que quando m' aprazia,

em osso vos cavalgava.

Pois sequer havei empacho,

vós molher de pouco bem,

de quem vos em Santarem

cavalgou sem barbicacho.

204

DE TRISTAM TEIXEI‑
RA, CAPITÃAO DE
MACHICO.

Folgo muito de vos ver,

pesa-me quando vos vejo.

Como pod' aquisto ser,

que ver-vos é meu desejo?

Isto nam sei que o faz

nem donde tal mal me vem,

sei bem que vos quero bem

com quanto dano me traz.

Mas ist' ee para descrer,

ter, senhora, tam gram pejo,

morrer muito por vos ver,

pesa-me, quando vos vejo.

205

DE TRISTAM TEIXEIRA.

Da pena a mais pequena

peroo tarde m' acordei,

meus olhos, tapar-vos-ei,

ò menos nam sentirei

o que vista mais m' ordena.

De vos ver ou nam vos vendo,

nam sei certo qual quisesse,

porque tal prazer houvesse

que nam vivesse morrendo.

Ca me vejo com tal pena

sem me poder remediar,

que m' ee forçado tapar

os olhos por nam olhar

que vendo mais mal m' ordena.

206

OUTRA SUA.

Se ventura m' ordenasse

que vos ja mui cedo visse

como queria,

posto que me Deos matasse,

porque tal prazer sentisse,

folgaria.

Folgaria por cuidar

de vos ver como desejo,

esperando d' escapar

ò meu mal mortal sobejo,

que nam sei que me causasse

per que deste mal partisse

soo ũu dia,

salvo se Deos ordenasse

que vos ja mui cedo visse

como queria.

207

DE JORGE D' AGUIAR CON‑
TR' AS MOLHERES.

Esforça, meu coraçam,

nom te mates, se quiseres,

lembre-te que sam molheres.

Lembre-te qu' ee por nacer

nenhũa que nam errasse,

lembre-te que seu prazer

por bondade e merecer

nam vi quem dele gostasse.

Pois nam te des à paixam,

toma prazer, se poderes,

lembre-te que sam molheres.

Descansa, triste, descansa,

que seus males sam vinganças,

tuas lagrimas amansa,

leix' as suas esperanças,

ca pois nacem sem rezam,

nunca por ela lh' esperes,

lembre-te que sam molheres.

Tuas mui grandes firmezas,

tuas grandes perdições,

suas desleais nações

causaram tuas tristezas.

Pois nam te mates em vão,

que quanto mais as quiseres,

verás que sam as molheres.

Que te presta padecer,

que t' aproveita chorar,

pois nunc' outras ham-de ser,

nem s' ham nunca de mudar.

Deix' -as com sua naçam,

seu bem nunca lho esperes,

lembre-te que sam molheres.

Nam te mates cruamente

por quem fez tam grande errada,

que quem de si se nam sente,

por ti nam lhe daraa nada.

Vive lançando pregam

por u fores e vieres

que sam molheres, molheres!

Cabo.

Espanha foi ja perdida

por Letabla ũa vez

e a Troia destroida

por males qu' Helena fez.

Desabafa, coraçam,

vive, nam te desesperes,

ca a que fez pecar Adam

foi a mãai destas molheres.

208

CONSELHO DE JORGE D' AGUIAR
AO CONDE DE BOORBA, QUE
LHE MANDOU PREGUN‑
TAR QUE FARIA
EM AMORES.

Pois me tendes por amigo,

a mim mesmo erraria

em calar isto que digo,

pois por vós morrer m' obrigo

e sem vós bem nam queria.

E qu' entenda mui grosseiro,

j' ouverieis algum hora

que quem tem o tavoleiro

nunca tem o ver inteiro

como quem joga de fora.

Se houvesseis d' escolher,

bem o saberei pintar,

mas nam está em querer

nem rezam nam tem poder

pera tal vos obrigar.

E assi vossa vontade

vos aviso de mandar

a quem queirais de verdade,

com gram fee e lealdade,

sem vos disso afastar.

Deveis muito de fazer

que vos hajam por calado,

bom falar, bom escrever

vos fará muito valer,

mas nam seja furgicado.

Pouco rir, pouco falar,

isto nam demasiado,

guardar-vos-eis do zombar

nem mostrar muito folgar,

pois nam vem de gram cuidado.

Nam cureis de tal terceiro

de que sejaes receoso,

antes peitai um porteiro

com vestido e dinheiro

e seja porem dioso.

S' i houver compitidor

nam lhe mostreis amizade,

qu' ee sinal de pouca dor,

antes muito desamor

lhe mostrai e maa vontade.

Quando quer que lhe falais

sempre vos conheça pejo

e mostrai que vos torvais

em dizer o que passais,

qu' ee sinal de bem sobejo.

Com as outras despejado

nam despejo tras saido,

em tratá-las mui ousado,

em gabá-las nam calado

por ser mais favorecido.

S' assi fordes esquençado

que vos vejais melhorar,

quanto mais favorizado,

vos mostrai mais agravado

a quem com ela pousar.

Mostrai-vos seu servidor,

e que tudo lhe palraes,

queixai-vos de desfavor,

porem cousa de favor

jamais nunca lhe digaes.

S' em tal lugar vos topardes

nem prestem brados nem choro,

porque quanto ali ganhardes,

des que reconciliardes,

vos ficará ja por foro.

Nam vos force bem querer

que vos tolha ousadia,

que poderaa mui bem ser

que nam podereis haver

em mil anos ũ tal dia.

O gabar vos nam defendo,

pois i pende vosso feito,

ca segundo o eu entendo

quanto vós guanhaes morrendo

com gabar seraa desfeito.

E nam soo o ja ganhado

vos fará gabar perder,

mas d' amor bem esperado

podeis ser desesperado,

se vo-lo vem a saber.

Perfioso seguidor,

mas nunca façaes mudança,

que sejaes bom dançador,

nunca danceis esta dança.

Logo podereis dançar

por seguirdes gentileza

fia qu' ouvi nomear,

inda qu' ee maa de dançar

a qu' algũs chamão firmeza.

Fim.

Seguir isto nam vos peje,

eu, senhor, vos dou as armas,

nam hajais por mal tomar-mas

e buscar lá quem peleje.

Porque ja minha tençam

é servir Deos nũa serra,

pois em fee limpa e nam em guerra

estaa minha salvaçam.

209

CANTIGA SUA.

Ũ cuidado que me cansa,

se o calo, abafarei,

dizê-lo nam me descansa

nem com outro nam s' amansa,

que farey?

Vivo assi como Deos sabe

neste cuidado que sigo,

cal' o que ja cá nom cabe,

temo que cedo m' acabe,

pois abafo e nam o digo.

Doutra parte nam descansa,

dizê-lo nom o direi,

soportá-lo a vida cansa,

e com outro nam s' amansa,

que farey?

210

OUTRA SUA.

Pesares, nojos, tristezas,

nam vos temo,

pois vivendo vi o estremo

de todas vossas cruezas.

Que me podeis ja fazer

com que me possa anojar

nem que posso ouvir dizer

que me deva quebrantar?

Usai vossas asparezas,

nam vos temo,

que ja passei o estremo

de todas vossas cruezas.

211

DE JORGE D' AGUIAR.

Coraçam, ja repousavas,

ja nam tinhas sojeiçam,

ja vivias, ja folgavas,

pois porque te sogigavas

outra vez, meu coraçam?

Sofre, pois te nam sofreste

na vida que ja vivias,

sofre, pois te tu perdeste

sofre, pois nam conheceste

como t' outra vez perdias.

Sofre, pois ja livre estavas

e quiseste sogeiçam,

sofre, pois te nam lembravas

das dores de qu' escapavas,

sofre, sofre, coraçam.

212

JORGE D' AGUYAR
A ESTE MOTO:

Ves, amor, que groria das.

Pagareis lo que fezistes,

ojos tristes, des hoy más,

si matastes, recebistes

vida com que sereis tristes,

ves, amor, que groria das.

Si por vos mucho bevian

vida sin ningum plazer,

si por vos males sofriam,

si por vos bivos morriam,

pueden biem vengados ser.

Que tal vida recebistes

que sereis siempre ja más

tristes, pues tristes fezistes

sin plazer, pues no lo distes,

ves, amor, que gloria das.

213

PREGUNTA DE JORGE
D' AGUIAR AO COU‑
DEL-MOOR.

A vós, sô cujo poder

jaz saber e descriçam,

a vós que por entender

podereis pervalecer

o gram sabio Salamam.

A vós de quem bem conheço,

sem haver qu' ee isto gabo,

que oo que nam sei começo,

sem trabalho e com despreço

podereis achar o cabo.

Pregunto qu' ha-de fazer

quem quer bem desesperado

a quem nunca pode ver

nem falar nem escrever

parte de seu gram cuidado;

nem tem a quem seja ousado

descobrir-se que lho diga,

homem tam desesperado

e tam desaventurado

que vida mandais que siga ?

Reposta do Coudel‑
-moor.

O vosso gentil saber

quer tomar encrinaçam,

cousas se leixa dizer,

que faz neste pee caber

a honra dos que a dam.

E pois m' eu nam desconheço

nisto soo, senhor, acabo

que num louvor de tal preço,

ante vós, o que mereço

se me torna em meu desgabo.

Nem leixo de conhecer

ser caso bem escusado

a quem sabe responder,

mas eu hei-de prospoer

tudo por comprir mandado.

E digo, pois é forçado,

qu' em caso de tanta briga,

quem quer ser remediado

deve ser determinado

fazer amigo d' amiga.

214

CANTIGA DE JORGE
D' AGUIAR.

Mil cousas que de vós sei

me faram

que ja vosso nam serei

nem por vós cativarei

meu coraçam.

Nam terês mais em poder

meu prazer nem meu pesar,

nem por vós hei-de perder

ũu soo dia de prazer

com quem o poder tomar.

Que taes cousas de vós sei

que me faram

que ja vosso nam serei

nem por vós cativarei

meu coraçam.

215

JORGE D' AGUIAR

A ESTE MOTO:

Qualquiera tiempo passado

fue mejor.

¡Oh bevir mal empreado,

oh dias mucho peor,

de deziros soy osado

que qualquer tiempo passado

fue mejor!

¡Oh vida, la que bevi,

muerte, la que ora bivo!

¡oh plazer, que fue de ti

no te veo, ja te vi

en servir a quien no sirvo!

Que diré yo desdichado,

pues calharme es pior,

vivo tan mal a mi grado

que qualquer tiempo passado

fue mejor.

216

DE FERNAM DA SILVEIRA ÀS
DAMAS, EM QUE SE
FEZ MORTO.

Quem ja perdeo o folgar

nam pode nunca partir-se

de paixam,

por ele devem chorar,

por ele devem carpir-se

com rezam.

Por isso ũu saimento

me façam, pois que fez fim

meu conforto,

ataude e moimento,

os sinos dobrem por mim,

que sam morto.

Pois que me mostraveis tanto,

donzelas d' alta Rainha

e gram Princesa,

fazei por mim ũu tal pranto

que digam da morte minha

que vos pesa.

E mui cubertas de luto

mostrareis, senhoras todas,

gram sentido,

chorareis por mi mui muito,

oulhai bem pera que vodas

vos convido.

Diraa Senhora de Sousa:

— Era este mal logrado

ũu Mancias!

Oh que milagrosa cousa,

que o vi tam namorado

ha tres dias!

Direis vós, gentil Pereira,

com ũa fala que sões

tam oufana:

— Ora, Fernam da Silveira,

j' agora nam bradareis

por Vilhana!

Mazcarenhas Lianor

que tanto senhora minha

soia ser

diraa: — Sento grande dor,

morrerdes-me tam asinha

sem vos ver!

Que viestes cá fazer,

dizei, quem vos demoveo

a tal jornada?

Porque viestes morrer

por quem vos nam agradeçeo

nunca nada?

Dirá aquela que se chama

como quem por meu pecado

nam tem sê:

— Qual foi a tam crua dama

que matou tal namorado

sem porquê?

Dirá a galante Vaquinha:

— Oh que prazer é o destes

atamanho!

Ó mana, ó prima minha,

oh que servidor perdestes

tam estranho!

A da Silva, que cuidei

qu' haveria por solaz

ver-m' em laços,

diz com doo que de vós hei:

­— O coraçam se me faz

em pedaços!

E canta mui entoada

esta letra que no coos

traz cosida:

Da morte sam lastimada,

porque sempre contra vós

fui na vida!

Gabar-m' -á Dona Guiomar

e diraa: — Ó morte fera,

tam esquerda,

que cousa foste matar!

Ó Jesu, que homem era,

oh, que perda!

Quero ver dentro na cova

qu' envenções leva consigo

que lhe gabe.

Oh que desastrada nova

pera meu irmão Dom Rodrigo,

se o sabe!

Eis minha senhora vem,

como que nada nam erra,

se a viste,

diz: — Bem sei que me quer bem

lá u jaz de sô a terra

esse triste.

Que da hora que me vio

nunca mais seu coraçam

fez mudança,

e de quanto me servio

nunca lhe dei gualardam

nem esperança.

E diraa Dona Maria,

a de Melo: — Oh coitado,

guai de ti,

que quando t' alma saia,

triste desaventurado,

eu te vi

ũu tal desfavor fazer

a essa tua senhora

que m' espanto,

e nam te pude valer,

mas pagá-lo-ei agora

neste pranto!

Como esta que nomeei

chamam quem soio chamar

que me valha,

diz: — Oh quanto trabalhei

por vós sem nunca prestar

nemigalha!

Ó morte triste, roim,

ó mal que todos engole

mui profundo,

desconsolada de mim,

ja nam ha quem me console

neste mundo!

Quando responso cantar

ouvirdes, em voz erguida,

temeroso,

entam vos deve lembrar

como parto desta vida

saudoso!

Entam lembre como vou

com gram dor, com grã fadiga

desigual,

nam culpem quem me matou,

que nam quero que se diga

dela mal.

Fim.

E se quiser meu servir

quem todo este prantear

fazer fez,

bem me pode ressurgir,

entam tornar-m'-á matar

outra vez.

Reposta de Dom Joham
de Meneses polas
damas.

Antr' estas damas dond' era

gram rezam que vos carpissem

com paixões,

pus meus juelhos em terra,

pedindo-lhe que m' ouvissem

tres rezões.

E disse com sentimento:

— Senhoras, ouvi ũu morto

que vos fala!

Entam li o testamento,

o que foi de desconforto

nom se cala!

E elas sem mais ouvir

todas juntas começaram

nesse ponto

tam fortemente carpir

qu' as lagrimas que choravam

nam têm conto!

Cada ũa com gram sanha

dezia desta maneira:

— Oh mezquinha,

que perda que foi tamanha

morrer Fernam da Silveira

tam asinha!

A todas tanto pesou,

que sentindo grandes dores

preguntaram:

— Vós sabês quem o matou?

E eu disse: — Desfavores

o mataram,

qu' eram tantos e ele soo

que os nam pôde vencer

com bem amar!

Eu em parte hei dele doo,

doutra folgo de morrer

polos matar.

Disse entam Dona Joana:

— Pois tal homem foi matar,

pola querer,

esta dama de Vilhana

devia-lhe d' alembrar

qu' ha-de morrer!

E pois que todas choramos

por causa desta senhora

nomeada,

bem será que lho digamos

por ficar daquesta hora

cavidada.

Dona Lianor Mazcarenhas

dezia por vós chorando:

— Morte fera,

vem por mim, nam te detenhas,

pois o nam fizeste quando

eu quisera!

Se t' havias de deter,

fora quando a quem levaste

deeste fim,

mas por me mercê fazer

j' agora, pois o mataste,

vem por mim!

Dona Filipa cuidava,

que polo nome que tem

e nam por al,

nam chorasse, e ela chorava

ousadas assaz de bem

por vosso mal.

Des que se punha a chorar,

dizendo como ereis sua

carne e unha,

era maa d' acalentar,

em que partes tende crua

pol' alcunha.

Dona Lianor Pereira

cobrou convosco grã fama

de dorida,

ca chorou de tal maneira

que nunca vós vistes dama

tam carpida!

E diz que por vos vingar

de quem vos daa dor crecida

sem rezam,

que jura que ha-de matar

se vos nam torna a dar vida

seu irmão!

Chorava Dona Maria

como aquela que perdera

mais que digo,

dizendo que nam queria

mais viver, pois lhe morrera

tal amigo!

E fazia tam gram pranto

que o que digo é nemigalha,

nem falei

e nam foi maior nem tanto

o que se fez na Batalha

por El-Rei!

Disse Dona Caterina,

quando a sua copra leram:

— Ai má hora,

vistes nunca mor mofina?

E as outras responderam:

— Nam, senhora!

Diss' ela: — Quant' este morto,

se morrendo esperasse

de o ver,

por lh' ir dar algum conforto,

mal viv' eu se me pesasse

de morrer!

A vossa terceira e prima

daquela, que vos matou

pola quererdes,

aquela ponho acima

daquelas a que pesou

de vós morrerdes.

Esta ponho por cimeira,

esta diz que a leixastes

em morrendo

de muitas paixões herdeira,

mil penas que lhe causastes

em vivendo.

Gabou-vos Dona Guiomar

e disse: — Oh mal esquivo

com tristura,

a mim mesma foi matar

quem matou este cativo,

sem ventura!

Ja da vida desespero,

pois tal homem foi morrer

e de tal fama,

sem ele vida nam quero,

nem deve querer viver

nenhũa dama!

Dezia vossa senhora

a quem quer qu' em vossos danos

lhe falava:

— Oh quanto milhor lhe fora

tomar os meus desenganos,

pois lhos dava!

Nem me culpem se o mato,

e os outros qu' isto virem,

se me querem,

pois todolos azos cato,

pera m' eles nam servirem,

desesperem.

Disse quem me fez penado

em vida morte sofrer

com doo da vossa:

— Pois morreo tal namorado,

ja nam quero mais viver,

inda que possa.

Dizendo que muito errara

quem vos deu tal galardam

sem no sentir,

como s' ela nam matara

o triste de Dom Joham

pola servir!

Tamanho pranto fizeram

sobre vosso saimento,

ca segundo

as cousas qu' ali disseram,

vós deveis partir contento

deste mundo!

Que todas se ali carpiram

sobre vossa sepultura,

e mais eram

os responsos que diziam;

ouvi lhantos d' amargura

que fizeram!

Fim.

Assi foi muito sentida

vossa pena, triste, forte

mui danosa.

A quem foi tam mal na vida

devia-lhe ser a morte

proveitosa!

Elas ficam saudosas,

todas cheas de paixam

atá nam mais,

porem andam tam fermosas

como vós sabeis que sam

lá ond' estaes.

217

PREGUNTA DE FERNAM DA SIL-

VEIRA AO COUDEL-MOOR.

Manda-me que a nam queira

nem sirva, quem eu mais quero,

a vontade estaa inteira,

tam firme, tam verdadeira

que deixá-la ser-m'-aa fero.

Doutra parte o qu' ela manda

tanto fazê-lo desejo

qu' em gram cuidado me vejo:

hei-d' escolher ũa banda,

em ambas tenho gram pejo.

Seja por vós conselhado,

senhor, e eu servirei,

pois me vejo em tal cuidado,

em caso tam desastrado

que farei?

Reposta do Coudel‑
-moor.

Em caso tam perigoso,

tam grave, tam dovidoso,

qual é, senhor, este vosso,

nam vos podem nem vos posso

dar conselho proveitoso.

Mas o meu, se o tomardes,

é que compre nam soltardes,

mas jazer mui de remate,

ca mais vale qu' ela vos mate

que depois vós vos matardes.

Senhor, eu isto faria

como digo que se faça,

e meu mal confortaria

cos que dizem que perfia

mata caça.

218

DE FERNAM DA SILVEIRA A
ESTE MOTO DA SENHORA
DONA FELIPA DE
VILHANA:

Coitas, afam sem medida.

Se fosseis arrependida

de quanto mal me fazeis,

nam me darieis por vida

coitas, afam sem medida,

que vós por moto trazeis.

Mas vossa brava crueza,

que de matar-me estaa perto,

me vestio com aspereza,

desta livree de tristeza

de que me vedes cuberto.

Ó vida de minha vida,

peço-vos que m' acabeis,

mas por ter pena crecida,

coitas, afam sem medida,

bem sei que o nam fareis.

219

CANTIGA SUA.

Para os desesperados

gram conforto é saber

que ham certo de morrer.

Vós me dais paixam tam forte,

vida tam sem alegria

noite e dia,

que si nam houvesse morte,

vós cuidai qu' eu morreria

todavia.

Mas saber que meus cuidados

comigo fim ham-d' haver,

descansa meu padecer.

220

DOM RODRIGO DE CRASTO E DOM
ALVARO D' ATAIDE E DOM GOTERRE
E O COMENDADOR-MOOR D' AVIZ
E DOM PEDRO D' ATAIDE FIZE‑
RAM ESTE RIFAM E COPRAS A
FERNAM DA SILVEIRA, POR‑
QUE CORREO A CARREIRA
COM ŨU MONGI DE
VELUDO PRETO,
FORRADO DE
MARTAS.

Rifam.

Ahinda m' agora abalo

de te ver como te vi,

vestido no teu mongi

a cavalo.

Vós dizeis:— Guarda carreira!

E vós nam vos guardais dela

e vindes à derradeira

ũu batissela.

Ũus dizem: — Ei-lo badalo!

Outros: — Nunca o eu tal vi!

E tal vai a quem mongi

vest' a cavalo.

Parecias ferdizelo

ou qualquer ave de pena,

ou genro de Jam de Melo,

ou senhor de Caracena.

Parecias-te co galo

moncosi,

em concrusam qu' em mongi

pareces mal a cavalo.

Parecias monseor

da cabeça atá òs pees

e ũu patram de galees

muito mao cavalgador.

D' hoj' avante nam te falo,

nem te prestes mais de mi,

pois atarracas mongi

a cavalo.

Reposta de Fernam da Silveira
a todos estes senhores,
a cada ũu sua
cantiga.

A Dom Rodrigo de Crasto.

Eu te vi aquele dia

tam feo, tam desairado

que nam foi detreminado

s' eras tu, se a judia,

a puta da putaria.

Eu nam te sei nenhũ erro

pera andares bem com touro,

porque tu pareces perro,

nam ja mouro,

mas judeu ourivez d' ouro.

Trazias filosomia

de fanado

e nam ja na mouraria,

co teu caris engelhado

de custureiro rapado

muito tira da judia,

quando veens mais recachado

em som de sobrançaria.

A Dom Alvaro d'Ataide.

Eu hei-d' escrever mil cartas

como vos vi com tabardo

sobr' artilheira de martas,

a que vós chamais bastardo.

Vós soes mui gentil galante,

mas vinheis tam repinchado

que parecieis pintado

com pee de porco diante.

Daveis tal aar ò tabardo

qu' eu vos farei juras fartas

que vós ieis mais bastardo

qu' oo vosso saio de martas.

A Dom Goterre.

Eu ouvi dizer a Telho

que nunca vio diabrete

tam desforme nem tam velho

a ginete.

— Sabes quantos anos has?

Ũu que chamam Satanas,

que te parece no geito,

diz que tu,

quando naceo Barzabu,

eras jaa diabo feito.

E que jaa entam fodias

e ias contr' òs immigos,

e trazias

tam boa beesta de figos

com' agora qu' ees de dias.

E disto s' espantou Telho,

Dom Calvete,

seres tu ũu velho relho,

diabrete.

Ao Comendador-moor d'Aviz.

Quem te vio como t' hei visto

daraa voz

que pareces biaroz

de dar papa a Jesu Cristo

e disto.

Nam te diga a ti ninguem

qu' a cavalo es fermoso,

de mula pareces bem,

porqu' ees airoso.

Em dama nam farás choz,

saibam laa que dig' eu isto,

que pareces biaroz

que vas fartando d' apisto

Jesu Cristo

e disto.

A Dom Pedro d' Ataide.

Eu te vi tam arredado

n' escaramuça metido

qu' ee forçado

seres de mim apodado

e corrido.

Tu ias ũu serafim,

cousa pera ver do ceo,

com teus apupos d' aleo,

contente do cramesim.

Teu pai vi envergonhado,

dizendo com gram sentido:

— Oh coitado

cramesim, mal empregado,

escarnecido!

221

ESTE RIFAM ESCREVERAM ŨUS
CASTELHANOS À PORTA DO
PAÇO EM CASTELA, AN‑
DANDO LAA O DUQUE
DOM DIOGO.

Portugueses, mantengaos Dios

y vos guarde de las manos

de los crudos castelhanos.

Qual prazeraa más a vos

¿ chofres, o bofes, o levianos?

E Fernam da Silveira, como
a vio, escreveo estou‑

tra ao pee, em

reposta.

Castelhanos, mantengaos Dios

y guarde de tal afruenta

qual fue la d' Aljubarrota,

onde meus e teus avoos

ali chofres nos a vos,

nos como lindos galanos,

vos como putos marranos

fuyendo delante nos,

no vos valiendo las manos.

222

DE DIOGO MARQUAM PARTIN‑
DO-SE DONDE ESTAVA SUA
DAMA, EM QUE LHE DAA
CONTA DO CAMINHO, E
EM CADA TROVA METE
NO CABO ŨA CANTI‑
GA FEITA PER
OUTREM.

Por verdes em que cuidado

estes dias despendi,

que vos nam vi,

sendo de vós apartado

nestas trovas o passado

escrevi,

assi como me sentia

cada dia trabalhado

por vós mais do que soia,

mas o que me mais fazia

ser triste tenho calado.

O dia que fui partido,

indo triste em vós cuidando,

trabalhando

com tristeza meu sentido,

por partir sem ser querido,

sospirando,

com gram pena mui crecida,

mui grave de resestir,

comecei em voz erguida:

Oh que forte despedida,

oh que pena m' es partir,

oh quam malo es de sofrir

ver enagenar mi vida

em poder de quem me olvida!

Depois, no segundo dia,

me veio ũu gram desejo

mui sobejo

de vos ver, que parecia

que oulhando vos veria

sem mais pejo.

E com isto levantei

os olhos com mal que farte

e sem vos ver comecei:

— Pensando que te verei,

miro triste a cada parte,

com leal amor sin arte

que te yo vi e verei.

O outro dia passei

cuidando de que maneira

na primeira

por vosso tanto me dei

qu' em outra cuidar nam sei

inda que queira.

E com esta mui comprida

sojeiçam d' em vós cuidar,

comecei: — Muito sentida

senhora, pues no olvida

mi coraçon tu pensar,

cierto es que deve estar

en tu poder la mi vida.

No quarto, ũu sentimento

me veio com gram despeito,

por respeito

de sentir meu perdimento

em vos amar tam sem tento,

sem proveito.

E com este mal que via

de meu dano tam estranho,

agravando me dezia:

—Amor que com gram porfia

procura siempre mi danho

m' ha fecho com grand 'enganho

más amador que solia.

No quinto, acompanhado

fui de ũa mortal pena

nam pequena,

por me ver tam desamado

que a morte, mal pecado,

se me ordena.

E com tanto mal sentir,

saindo d' antre dous vales,

comecei de repitir:

Tan asperas de sofrir

son mis angustias y tales

que de mis esquivos males

el remedio es morir.

O outro dia cuidar

em meu tempo mal despeso,

com gram peso

o passei, com me lembrar

que mostrar de vos amar

m' ee defeso.

E com este defender

muito forte d' encobrir

me conveio de dizer:

— É gram pena de sofrer,

é gram mal de consentir

haveer sempre de fengir

a quem quero nam querer.

Vendo-me mui alongado

de vós e nam de vontade,

saudade

crecia, sem ser menguado

meu querer, mui mais dobrado,

de verdade.

E por meu mal assi ser,

comecei mui descontente

mui fora de meu poder:

― Aunque no vos puedo ver

siempre vos tengo presente,

quanto más de vos ausente

tanto más crece el querer.

Sentia mui gram pesar

por me ver tam saudoso

e cuidoso,

sem de vós bem esperar

nem meu grande desejar

ser proveitoso.

Mas com quanto mal me veo

dezia por onde ia:

¿Donde estás que no te veo,

qu' es de ti, esperança mia?

a mi que verte deseo

mil anhos se me faz d' ũ dia.

Nam cria que ser podesse

que, por gram bem vos querer,

tal poder

amor sobre mim tevesse,

o que tanto mal me fizesse

assi sofrer

e tirar a Deos a fee

por seguir vossas carreiras.

Diss' entam, pois assi é:

—Amor, yo nunca pensé

que tan poderoso eras

que pudiesses tener maneras

pera trastornar la fee,

hasta ora que lo sé.

Vendo ja que me tornava

donde de vós me partira

e vos vira,

por vos ver tanto folgava

que comer nam me lembrava,

sem mentira!

E naquisto me perdi

por ũa mui brava serra

e andando disse assi:

Amor, desque no te vi

va mi plazer a pie terra

y el dolor y triste guerra

a cavalho contra mi.

O outro dia esperança

de vos ver me soportava

e cuidava

na mui pouca segurança

que d' haver vossa mostrança

m' amostrava.

E sem ser de mim partida

esperança, comecei

de dizer: — ¡ Oh muy querida

esperança, muy comprida,

la hora que te verei

me sostem, nom al en vida!

Vindo acerca do lugar

onde estaveis, sospirei

e cuidei

se por meu triste chegar

podereis vós folgar,

e dovidei

de meu mal ser socorrido

como eu por vós queria.

Entam disse mui sentido:

Si como queira recebido

soy de vos, senhora mia,

causa de tanta alegria

no tuvo hombre nacido.

Fim.

Assi foram meus sentidos

polo vosso trabalhados

dos cuidados

passados, nam despendidos

nem minguados, mas crecidos,

mui dobrados.

Polo qual sem mais desmaio

vós deveis em concrusam

a meu mal dardes repairo,

ca fazerdes o contrairo

me fazeis gram sem rezam.

223

CANTIGA DE DIOGO
MARQUAM.

Pois nam pode ser pior,

se milhor me nam fizerdes,

fazei o pior e milhor,

senhora, que vós souberdes.

O pior ja feito é

que pior nam pode ser,

o milhor tenho por fee

que de vós nunc' hei-de ver.

Pois que pode ser pior,

se milhor me nam fizerdes,

fazei o pior e milhor,

senhora, que vós souberdes.

224

OUTRA SUA.

É gram pena de sofrer,

é gram mal de consentir

haver sempre de fengir

a quem quero nam querer.

E por força demostrar

a contra do que me praz,

porque mais dano me traz

descobrir que me calar.

Em tal caso de sofrer

me convem, por encobrir

meu desejo, por fengir,

a quem quero nam querer.

225

DE JOHAM GOMEZ
DA ILHA.

Queria saber

u vive razam,

se na entençam,

se em bem fazer,

se em bem querer

a quem bem me quer,

se a quem me der

eu conresponder.

Se em bem falar,

se em bem sentir,

se em comedir

em qualquer obrar;

em exercitar

o que justo for,

se é no senhor,

se mais no vulgar.

Se é aquerida

a fim do proveito,

se soo no dereito

é constituida.

Se é na medida

do dar galardam,

se na puniçam

da alma perdida.

E por aprender

u razam está,

a quem se mais dá

amo conhecer,

se mais oo poder,

se mais aa vertude,

assi na saude

como no doer.

E donde procede

razam per efeito,

e se do defeito

razam se despede.

Ou se se desmede

contra desmedido,

ou no arroido

em parte concede.

Se é cousa viva

em vida soomente,

ou se é vivente

no que vida priva.

Se é sensitiva

em soom d' animal,

se racional,

se vigititiva.

Se tem natural

razam seu sojeito,

se d' outro respeito

arteficial.

Se é aumental,

se demenuida,

se é per si vida,

se cousa mortal.

Se reje per si

ou se é regida

ou se é mais querida

aqui que ali.

Se é mais no .y.

do que é no .g.,

se tem .a.b.c.,

se tem quis ou  qui.

E quanto s' estende

em sua doutrina

e quanto ensina,

se tudo s' aprende.

Também se reprende

quem dela nam usa,

e se sua musa

sua arte defende.

Bem saber queria

em qual destas vive,

pera que s' alive

minha fantesia:

se na cortesia

da livre vontade,

se pela verdade

tomar melhoria.

Rezam a fadairos

nam sei se resiste,

nem sei se consiste

em dous aversairos.

Ou aos contrairos

s' ordena comũa

ou tem part' algũa

em algũus desvairos.

Porque me parece,

segundo que entendo,

que nada comprendo

d' u razam falece.

E no que carece

eu me desatino,

desejo ser dino

ver u permanece.

A quem me dissesse:

razam é tal cousa,

e em que repousa

saber me fizesse,

enquanto podesse

eu o serviria

per ũa tal via

que satisfizesse.

Pelo qual m' encrino

aos trovadores,

espiculadores,

que me dêm ensino

no que determino

aprender, se posso,

com graça do nosso

ũu soo Deos e trino.

Cabo.

E mande-me quem

ensino me der,

ca no que queser

saiba que me tem.

Ensine-me bem

u vive razam

per vista visam,

segundo convem.

226

CANTIGA DO COUDEL‑
-MOOR.

Servir-vos nam leixaria

por mal que me ja viesse,

porque ser nam poderia

que outrem prazer me desse.

Mas em vós está soomente

meu prazer e meu pesar

e em vós é ordenar

que viver possa contente.

Polo qual nam leixaria

servir-vos, peroo podesse,

pois que ser nam poderia

que outrem prazer me desse.

Grosa de Joham Gomez
da Ilha a esta
cantiga.

Senhora Dona Maria,

em caso que eu podesse,

servir-vos nam leixaria

por mal que ja viesse,

nem dano que me fizesse,

dama, vossa senhoria,

porque ser nam poderia

que outrem prazer me desse.

Nem vontade me consente

d' algũa bem desejar,

mas em vós estaa somente

meu prazer e meu pesar.

Nem me podeis pena dar

mais que meu coraçam sente,

e em vós é ordenar

que viver possa contente.

D' amar-vos nam me desvia

mal que tenha nem tivesse,

polo qual nam leixaria

servir-vos, peroo pudesse.

Lembrança, se vos prouvesse,

terdes de mim bem seria,

pois que ser nam poderia

que outrem prazer me desse.

227

DE JOHAM GOMEZ
DA ILHA.

Yo os di mi libertad,

la vuestra quedó com vos,

sim part' alguna

me quedar y teneis dos,

yo ninguna.

Mirando vuestra beldad,

nel primero que la viesse,

que mi libertad os diesse

ordenoo mi voluntad.

O fue de necessidad,

senhora, o quiso Dios

o la Fortuna

que toviessedes vos dos,

yo ninguna.

228

CONFISSAM DE JOHAM
GOMEZ DA ILHA.

Joham Mourato, meu senhor,

sajes em todo trautar,

d' honra bem merecedor,

mais inteiro trovador

do que posso decrarar.

Eu vos tenho por amigo

verdadeiro, e nam de jogo,

polo qual fee consigo

que aceitareis meu rogo.

Espero que m' acorrais

onde virdes meu desterro,

espero que me sejais

mais dos mais especiais

amigo sem nenhũu erro.

Espero de vós socorro,

espero de vós ajuda,

e porque cedo concruda

o que de mim se nam muda

me faz que a vós m' acorro.

Sei que vos confessareis

polo ano e seus dias,

vós de mim aceitareis

tres pecados que sabeis

que condenaram Mancias.

E a vosso confessor,

des que os vossos disserdes,

sereis dos meus relator

e ter-m'-eis por servidor,

quando meu servir quiserdes.

Vós dizei que sam casado

e quero bem a casada,

sendo d' amor tam forçado

que nam sento por pecado

ela ser de mim amada.

Nem me posso conhecer

senam tam sojeito dela,

que cuido que padecer

e tras padecer morrer

devo soportar por ela.

E o pecado segundo

lhe direis: Que meu sentido

nam se funda nem me fundo

senam sempre neste mundo

querer mal a seu marido.

E a morte lhe desejo

mais cedo que possa ser

e o demo nele vejo,

e hei gram prazer sobejo,

quando a ela posso ver.

O terceiro concrusam

vós dizei: Que sam tam forte

amador por condiçam

que nam sento contriçam

nem receo minha morte.

Nem d' alma nam sam lembrado,

nem de rezam nem de fama,

nem é outro meu cuidado,

salvante ser namorado

daquesta casada dama.

Requerereis a pendença

pera mim, vereis quejanda,

que nam prive bem querença

que toda minha femença

é fazer quanto amor manda.

O padre pode mandar

quanto m' ele mandar queira,

mas nam seja desamar,

ante me mande matar

per outra qualquer maneira.

Se me mandar gejunar,

dizei que hei por gejum,

quando nam posso cobrar

a vista de quem pesar

me dá e prazer nenhũu.

Se que veele vos disser,

dizei que veelo cuidando

na mais fermosa molher

das que Deos fez nem fizer,

pola qual vivo penando.

Fim.

Se que reze orações

vos mandar, dizei que bem,

mas seram muitas paixões,

danos e tribulações

que meu coraçam sostem.

Se vos mandar que esmole,

gaste-se quanto dinheiro

tiver, pero que m' esfole,

fique com que me console

ser servidor verdadeiro.

229

DE JOAM GOMEZ DA ILHA
A RUI MONIZ.

Que d' ũ cravo sois doente,

meu senhor, cá me foi dito,

tal cravo seja maldito,

pois em vossa dor consente.

Dizem-me que vos curais

per solorgia,

serdes sam bom me seria,

porque d' ũ ou de dous

tais como vós me curaria.

Quanto mais d' ũ que me tem

le cor de moi travessado,

causou-se d' ũ apartado

e mui longo querer bem.

Per vezes fogo lhe ponho

de bem amar,

mas nam val a desamar,

porem como me desponho

vós curardes me curar.

Reposta de Rui Moniz
polos consoantes.

Crede verdadeiramente,

o assi sam com dor afrito,

que se gasta meu esprito

em o sentir certamente.

O cravo de que falais

cada ũu dia

me daa, per Santa Maria,

moor pena da que pensais

nem eu dizer poderia.

De meu mal cura ninguem,

triste, desaventurado,

nem quem amo tem cuidado

de quanto dano me vem.

Mantenho-me no que sonho

por espaçar,

como quer que meu sonhar

se torna cuidar no gronho

mais que nojos afastar.

Joham Gomez polos
consoantes.

Por serdes quem pena sente

qual demostra voss' escrito,

de confortar-me nam quito

mon cor em seu mal presente.

Nam folgo porque penaes,

ca me seria

crueza de vilania,

mas porque me semelhaes

quem d' amores aperfia.

Como eu que hei d' alguem

trabalho sem ser pensado,

sam sem ferrar encravado,

manco e magro porem.

Sempre rincho e preponho

soportar

pena de meu desejar,

vós a fruito de madronho

me podês bem apodar.

Rui Muniz polos
consoantes.

Minha chaga é tam razente

que, quando me curam, grito

tam alto que sam desdito

ousadas bem feamente.

Nam queira Deos que sintaes

o qu' eu sintia,

quando m' o judeu metia

dous ferros quentes, mortaes,

que alma m' estremecia.

Pois que trabalhais por quem

e nam viveis enganado

que me pês mal a meu grado

por amores vos detem.

Havê-vos com' oo cegonho,

se medrar

quiserdes ou despertar,

ca, par Deos, se m' apeçonho,

é por nam querer peitar.

Joham Gomez polos
consoantes.

De quanto soes descontente,

senhor, nam sentir evito,

mas do que vós soes contrito

sam eu per contra contente.

A cousa que devulgaes,

que vos doia,

por nichil a sentiria,

ca do que mais vos queixaes,

acho que guareceria.

Porque em mim se contem

fee, pena de namorado,

com despreços apedrado,

porque moor paixam me dem.

Em cativeiro m' enfronho

sem resgatar,

ca nam pera baratar

é a que servo risonho,

pero deva de chorar.

Rui Moniz polos
consoantes.

Mandam-me de paciente

comer de cote ũu palmito

ou cordela de cabrito

peor que forçadamente.

Soporto tormentos quaes

nam sofreria

por ser sam, por gram contia

d' ouro nem doutros metaes

nem de pedras de valia.

Aquela que vos pertem

me traz assi derreado,

que com nojos sam tornado

mais cão que Matusalem.

Como morto sam medonho

no olhar,

ja nam sam pera prestar,

de ser ledo m' avergonho

mais que outrem de furtar.

Joham Gomez polos
consoantes.

É meu mal tam trançadente

que em comer nam labito

nem de dormir me guarito,

mas sofro como valente.

O mais que de vós gastaes

bem gastaria

dobrado e dobraria

no valor do que gabaes,

cuidando que sararia.

Nam me pesa, pois retem

na saude vosso lado,

por quem meu nojo passado

fez presente por desdem.

O que sento nam desponho

por calar,

soomente por esperar

nem me lhe desavergonho,

por me nam desesperar.

Rui Moniz polos
consoantes.

Porque nam sam eloquente

meus pesares nam repito

a vós, ó homem precito,

per amores craramente.

Cansai ja que nam cansaes

desta perfia,

porque mais vos compriria,

pois com trovar nam cegaes,

cegar-vos Santa Luzia.

Pois do que mais vos convem

vos vejo pouco lembrado,

leixo-vos, homem coitado,

vou-me caminho d' Ourem.

Queria-vos pôr com conho,

por mudar

ũu mortal acutelar

e ũu olhar-vos tristonho

em ũu doce conversar.

230

DE DOM GOTERRE, PORQUE SE
CASOU SUA DAMA EM
BENAVENTE.

Lembrança nam é perdida

de vós, meu mal, Benavente,

dor que meu coraçam sente

e sintirá toda sa vida.

Que prazer pode ja vir

que me possa dar prazer,

ou quem poderei servir,

porque deixe de sentir

a perda de vos perder?

Minha dor é tam crecida

que por meu mal, Benavente,

sempre ja tenho presente

a morte bem conhecida.

231

OUTRA SUA.

Ó campo de Santarem,

altas torres d' Almeirim,

fazeis-me lembrar de quem

me fez esquecer de mim.

Ó tempo, como passaste

que me deixaste tal guerra,

morte, que nam me mataste,

dize porque me deixaste

mais vivo sobre a terra?

Se entam fizera fim

todo meu mal e meu bem,

nam me fezera Almeirim

lembrança nunca de quem

me fez esquecer de mim.

232

OUTRA SUA.

Por vos ver assi perdida

como vos vejo, meu bem,

mui triste será mi vida

polo mal qu' a vossa tem.

Se vos ja servir nam posso,

senhora, vós o fizestes,

vós por outrem vos perdestes,

eu perdi-me polo vosso.

Oh que vida tam perdida

temos vós e eu, meu bem,

a minha por vossa vida,

a vossa por nam sei quem!

Tomastes mal pera vós,

destes-nos muita paixam,

triste de meu coraçam

amar os tristes de nós.

Mal empregada, perdida

soes, senhora, em quem vos tem

e por isso é minha vida

tam triste sem nenhũu bem.

233

OUTRA SUA.

Cuidados tristes, por quem

tal morte me quereis dar?

Por quem me quereis matar,

cuidado de mim nam tem.

Ja cuidado nem sentido

nam tem de mim nem memoria,

de me ver por si perdido

nam leva pena, mas gloria.

Outro cuidado nam tem

senam soo de me matar

e leva gloria em cuidar

que me perdi por seu bem.

234

OUTRA SUA.

Alegre com mi tristeza,

alegre com mi partir,

senhora, de vos servir

por vossa pouca firmeza.

Vosso desconhecimento,

vossa fera condiçam

nam daram

ja nenhũu padecimento

a meu triste coraçam.

D' hoje mais vossa crueza

nam espero de sentir,

que leixar de vos servir

seraa leixar-me tristeza.

235

OUTRA SUA.

A vida será tristura,

meu prazer seraa pesar,

se minha triste ventura

se nam mudar.

Se de vós é ordenado

que tarde meu galardam,

morrerá meu coraçam

de triste, desesperado.

Que sua morte segura

nam pode muito tardar,

se minha triste ventura

se nam mudar.

236

OUTRA SUA.

Pois leixar-vos me é tam fero

que viver sem vós nam posso,

outro bem de vós nam quero

senam que m' hajaes por vosso.

Que me dê grande tormento

servir-vos sem nenhũu bem

consenti, pois eu consento

que o com que me contento

nom se contenta ninguem.

De vosso bem desespero,

vosso mal leixar nam posso,

consenti que seja vosso,

pois de vós mais bem nam quero.

237

OUTRA SUA.

Triste de mim, que farei,

que será de mim, coitado?

Se me segue este cuidado,

perder-m'-ei.

Perder-m'-ei por se ganhar

quem me tanto mal ordena

e leva pena

por mais cedo me nam matar.

Que farei, desesperado,

u m' irei?

Se me segue este cuidado,

perder-m'-ei.

238

OUTRA SUA.

Pode-me ventura dar

tristeza quanta quiser,

mas nam se pode

mudar meu querer.

Posso perder o folgar,

que nunca tive ganhado,

posso ser desesperado,

podem-m' a vida tirar.

Se eu nam desvariar,

pode-s' o mundo perder,

mas nam se pode mudar

meu querer.

239

DO CONDE DE BORBA A ŨA
DAMA QUE DEU A OUTRA
ŨA COUSA, QUE LHE
PEDIO POR VIDA
DELE.

Pois destes por minha vida

o que nam posso servir,

deveis-lhe de consentir

que por vós seja perdida.

Que perdida ou ganhada

ja nam é em meu poder

de poder ninguem fazer

que de vós seja apartada.

Pois de vós é ja vencida,

vós devieis de sentir

nam quererdes consentir

que por vós seja perdida.

240

OUTRA SUA.

Se na fim tanta tristeza

me leixou desesperado,

fê-lo assi minha firmeza

por ficar mais magoado.

Toda a magoa fica a mim,

eu a tenho bem presente,

este mal será sem fim,

pois ficais dele contente.

E pois vejo a crueza

em que fica meu cuidado,

far-m'-aa ser minha firmeza

para sempre magoado.

241

OUTRA SUA.

É meu mal ja tam crecido,

em casos tam desvairados,

que por serem mal olhados,

fico eu assi perdido.

Eu devera ser julgado

por quam bem sempre servi

e o bem que nunca vi

me devera de ser dado.

E pois tenho merecido

descanso de meus cuidados,

se nam foram mal olhados,

eu nam fora tam perdido.

242

OUTRA SUA.

Nam trabalhe ja ninguem

em buscar vida segura,

se nam for desaventura.

Ca ter outra esperança

será mais qu' a ser perdido

e meu bem bem destroido,

se nam vem outra mudança.

E por isso s' alguem tem

algũu bem, nunca lhe dura

por ser moor desaventura.

243

OUTRAS SUAS.

Desconforto d' apartado,

de que todos desesperam,

fica a mim nam ser culpado

deste mal que me fizeram.

Mas pois ja é acabar

de nam ter de mim cuidado,

acabai de me matar

que ja som desesperado.

Mas o mal que me fazeis

por vos sempre bem servir,

vós, senhora, o quereis

por de mim vos despedir.

Fazei ja o que quiserdes,

pois conheço a verdade

que é fazer quanto poderdes

por me terdes maa vontade.

244

OUTRA SUA.

Por meu bem vim a Sam Bento

onde soube acertar

ter ũ tal conhecimento

em qu' espero d' acabar.

Acabar em vós cuidando

como sempre andei perdido,

por deixar d' andar buscando

o que tenho conhecido.

Mas pois isto tanto sento,

sem ter certo aproveitar,

sofrerei este tormento

em qu' espero d' acabar.

245

OUTRA CANTIGA
DO CONDE.

Vejo tudo desviado

e fora do que mereço

e conheço,

que me foi assi causado,

por ficar meu mal dobrado.

E ficou-me conhecer

minha vida ser perdida

e vós nam arrependida

de me tanto mal fazer.

E co mal deste cuidado

é tamanho o que padeço

que conheço

que me foi assi causado

por ficar meu mal dobrado.

246

O CONDE DE BORBA À SE‑
NHORA DONA LIANOR
DA SILVA.

Sempre m' a Furtuna deu

tristezas com que nam posso,

des que deixei de ser meu

polo ser de todo vosso.

Que depois que vos servi

com tal firmeza, senhora,

nunca de vós ategora

ũa mercê recebi.

Desd' entam pedeci eu

mil males com que nam posso,

porque deixei de ser meu

polo ser de todo vosso.

247

OUTRA SUA A ESTA
SENHORA.

Ordenou meu coraçam

de servir-vos, sem mudança,

mais a vós sem esperança

qu' a outrem com galardam.

Estaa mais oferecido

sofrer por vós juntamente

do que seria contente

em ter outro bem vencido.

Por isso meu coraçam

antes quer, sem mais mudança,

servir-vos sem esperança

qu' a outrem com galardam.

248

OUTRA SUA.

Tomai bem quam bem conheço

nam estar em mais meu bem

que vir de través alguem

que me tire o que mereço.

Foi em balde meu cuidado,

fica-me muita paixam

por ficar desenganado

sem achar nisso razam.

Mas a moor dor que padeço

é estar todo meu bem

em vir de través alguem

que me tire o que mereço.

249

DO CONDE DE VILA NOVA, SENDO
MOÇO, A ŨA DAMA QUE SER‑
VIA, PORQUE SEUS PAIS
DELE E DELA LHE DE‑
FENDERAM QUE SE
NAM FALASSEM.

Que seraa, meu bem, de nós,

quando fará isto fim?

Vosso pai mandou a vós

e o meu matou a mim.

O vosso vos pôs defesa

que me nam deveis vós fala,

e o meu, qu' assi se cala,

certo é que lhe nam pesa.

O que fazem contra nós

queira Deos que haja fim,

o meu nam faz bem a vós,

o vosso matou a mim.

Onde farei triste vida,

ja serei sempre perdido,

porem nam arrependido

de vos ter tam bem servida.

Meu bem, que seraa de nós?

Nam pode ir bem a mim,

pois por querer bem a vós

quis que fosse minha fim.

Vivirei com pena forte

em pesar, sem alegria,

farei vida tal que morte

me deseje cada dia.

Que nos nam falemos nós

é sinal de minha fim,

se isto dura por vós

cedo o faram por mim.

Dou ò deemo vosso pai,

vós podês-lhe dar o meu,

pois que polo caso seu

convosco tam mal me vai.

Ja sam ambos contra nós,

nam me deis tam triste fim,

pois que tudo estaa em vós,

por mercê, olhai por mim.

Com pena e com paixam

vivirei enquanto viva,

pois vejo que sem rezam

me mandais que vos nam sirva.

Nam sei que seja de nós,

milhor fora minha fim,

pois em m' apartar de vós

me parto triste de mim.

O princepe da vozaria

anda comigo em contenda,

porque, senhora, queria

qu' estivesse todo o dia

na fazenda.

Sobre saber qu' antre nós

sois anjo ou serafim,

quer que nam cure de vós

por desembargar Faim.

Tristeza e saudade,

minha vida, me deixais

e outras dores mortais

que calo cá na vontade.

Enquanto vivermos nós

nam s' apartaraa de mim

triste lembrança de vós

que causastes minha fim.

Fim.

Mas pois é vossa naçam

perder o por vós perdido,

nam culpeis, senhora, nam,

se meu triste coraçam

em al puser o sentido.

Nisto que se faz a nós

perco eu quanto servi

e direi que guanhais vós,

pois folgais perder a mim.

250

GROSA DO CONDE DE VILA
NOVA A ESTE MOTO
D' ŨA SENHORA:

Leixai-me,

porque chore minha dor.

Tristezas e desfavor

acabai ou acabai-me

e se nam quereis, leixai-me,

porque chore minha dor.

Dai-me ũ pouco de vagar,

nom mais que para poder

em minha vida cuidar,

porque soo com me lembrar

me podeis vós esquecer.

E se cuidais qu' ee favor

isto que peço, matai-me,

e se nam quereis, leixai-me,

porque chore minha dor.

251

DO CONDE DE TAROUCA
A DOM JOAM DE
MENESES.

A vós qu' em cavalaria

e valentia

dais toque a Cepiam,

a vós qu' em sabedoria

precedeis rei Salamam,

a vós sô cujo poder

jaz tod' arte de trovar,

se deve d' ir preguntar

o que sem vosso saber

nom ouso detreminar.

Pregunta.

Dous homens sam namorados

de quem muito bem parece

e ambos pior tratados

do que cada ũu merece.

Se é moor groria ou pesar

indo eles ambos vê-la,

ver ũu o outro falar

ou ir falando co ela.

Reposta de Dom Joam
de Meneses polos
consoantes.

Porque nom m' abastaria

poesia

nem saber nem descriçam

em lovar-vos, louvaria

nam tomar acupaçam.

E quem quiser emader

vossa fama por louvar,

lançará agua no mar,

cuidando qu' ha-de crecer

e nam poode nem minguar.

Reposta.

Mas pesar oos tam penados

s' outrem fala nam falece

e falece oos escuitados

o prazer se s' acontece.

E pois se pode acertar

falando groria perdê-la,

eu hei por moor o penar

de ver a outrem falar

que prazer falar co ela.

252

D' EL-REI DOM PEDRO
A ŨA SENHORA.

Mais dina de ser servida

que senhora deste mundo,

vós soes o meu deos segundo,

vós soes meu bem desta vida.

Vós soes aquela que amo

por vosso merecimento,

com tanto contentamento

que por vós a mi desamo.

A vós soo é mais devida

lealdade neste mundo,

pois soes o meu deos segundo

e meu prazer desta vida.

253

OUTRA SUA.

Onde acharãao folgança

meus amores?

Onde meus grandes temores

segurança?

Tristeza nam daa lugar,

menos consente receo,

temor me faz sospirar,

mudança faz que nam creo.

Doutra parte esperança

daa favores,

sem haverem meus amores

segurança.

254

OUTRA SUA.

Buem deseo me embia

cometer vida estranha,

soledad me acompanha

desque supe que partia.

Sobretodo pensamiento

no se quier partir de mim,

dizendo siempre: — ¿ A que fim

hazes tal apartamiento?

Tu pensamiento bevia

isento y sim tristeza.

Yo respondo: — Gentileza

es aquelha que me guia.

255

OUTRA D' EL-REI DOM PEDRO.

Oh desejosa folgança

u fazem pausa meus males,

nom es em vano esperança,

se me vales.

Se me vales tornaraa

todo meu mal em prazer,

a meus trabalhos daraa

gualardam meu merecer.

Mais poderaa confiança

que todos meus tristes males,

morrerá desesperança

se me vales.

256

DO IFANTE DOM PEDRO, FILHO
D' EL-REI DOM JOAM, EM
LOUVOR DE JOAM
DE MENA.

Nom vos será gram louvor

por serdes de mim louvado,

que nam sam tam sabedor

em trovar que vos dei grado.

Mas meu desejo de grado

a mim praz de vos louvar

e vós o podeis tomar

tal quejando vos é dado.

Sabedor e bem falante,

gracioso em dizer,

coronista abastante

em poesias trazer

ou de novo as fazer

u compre, com gram meestria,

de comparar melhoria

dos outros deveis haver.

D' amor trovador sentido

com' a quem seu mal sentio

e o houve bem servido,

e os seus segredos vio,

e de todo departio

mui fermoso e mui bem,

como poode dizer quem

vossas copras ler ouvio.

De louvar quem a vós praz

aconselhar lealmente,

desto sabeis vós assaz

fazei-lo sajesmente.

E assentar-s'oo o presente

creo nam terdes igual,

de consoar outro tal

julgue-o quem o bem sente.

Fim.

Por todo esto sam contente

das vossas obras que vejo

e as nam vistas desejo,

fazê-me delas presente.

Reposta de Joam de Mena.

Princepe todo valiente,

em los fechos muy medido,

el sol que naaçe en oriente

se tiene por ofendido

de vuestro nombre temido,

tanto luze en ocidente.

Soes de quien nunca os vido

amado publicamente,

tan prefeto, esclarecido

que por sirdes bien regido

Dios vos fizo su regiente.

Vos de reys engendrado

y de reys engendrador,

hijo dino mui loado

de rey santo vencedor.

Linaje d' emperador,

cabeça de gram senado,

de lealtad y d'amor

tam gran fruto havés mostrado

que a vuestro gram honor

dos reys y ũu senhor

son y es muy obrigado.

Nunca fue despues ni ante

quien viesse los atavios

y secretos de levante,

sus montes, insoas y rios,

sus calores y sus frios

como vos, senhor Ifante.

Antre moros y judios

esta gram virtud se cante,

entre todos tres gentios

cantaram los metros mios

vuestra perfecion delante.

Fim.

Vos de mi no dar loores,

mas recebirlos deveis,

vos, gran senhor de senhores,

que haveis fecho y fazeis

tanto que grandes autores

muy acupados teneis

en dezir vuestros dulçores,

porque siempre vos lhameis

princepe de los mejores,

porque creçan los lavores

desse reino portugues.

Reprica o Ifante.

Como terra frutuosa,

Joam de Mena, respondestes,

com messe mui abastosa

do fruito que recebestes.

Mas em esto vós errastes

louvar mais do merecido,

mas por mim é recebido

que louvando m' ensinastes.

Fim.

Aquelo que devisastes

seguirei a meu poder,

sequer que possam dizer

que muito nam sobejastes.

257

DO IFANTE DOM PEDRO, FILHO

D' EL-REI DOM JOAM DA GRORIO‑

SA MEMORIA, SOBRE O MENOS‑

PREÇO DAS COUSAS DO

MUNDO, EM LINGUA‑

JEM CASTELHANA,

AS QUAES TÊM

GROSA.

De contempto del mundo.

Introduze y invoca.

Miremos al excelso y muy grande Dios,

dexemos las cosas caducas y vanas,

retener devemos las firmes con nos,

las utiles, santas, muy buenas y sanas.

¡Oh tu, gran Minerva! que siempre emanas

muy veros preceptos, en grand abastança,

imploro me muestres tus leys sobranas

y fiere mi pecho con tu luenga lança.

Invoca.

Dame tu escudo claro, cristalino,

y armame todo con armas seguras,

para que contraste al mortal venino

y ravias caninas, feroces muy duras.

Tu, sabia maestra, tu que nos procuras

sciencias santas, humanas, divinas,

arriedra mi seso de mundanas curas,

distila em mi tus dulces doctrinas.

Prosigue.

De la mal fiable Fortuna.

Sirvamos virtud, burlemos Fortuna

que nunca da gozo sin duro tormento,

nin nadi coloca en firme coluna,

antes nos rebuelve con gran detrimento.

Remire un poco nuestro pensamiento

su cara falace y jamas dubdosa,

verá que es cruda, y sin todo tiento,

a todos estados y siempre dañosa.

Compara los dones de la Fortuna al
palo, que come la corcoma,
fermoso de fuera y de
dentro podrido.

Si presta honores en breve los toma,

si oro, argento, ellos se consumen

como al palo faze la corcoma,

assi los sus dones se gastan y sumen.

Nom fabrica muro de firme betumen,

sus bienes trasmuda en grave tristor,

y rasga la foja de su grand volumen,

mudando su gozo en fuerte dolor.

La ley de Fortuna.

La ley que posseye es ley incostante,

buelve y rebuelve su exe a menudo,

al bueno faze ser muy mal andante,

prospero faze al torpe y rudo.

Por tanto, o gente mundana, no dubdo

que yerro vos toma, atrahe y convoca

a seguir su moto veloce, muy crudo,

daquesta señora, non cuerda, mas loca.

De la prospera y adversa Fortuna.

La prospera, dulce Fortuna engaña

con su fraudulenta y arte mañosa;

la triste, adversa siempre desengaña

mostrando su fruente toda luctuosa.

Assi que la una es muy provechosa,

la otra es bella, llena de engaños;

aquella es vera, esta mentirosa,

celando los males, muertos los daños.

Exemplifica.

Trastornó a Crasso, rey de los lidores,

y a Policrato muy más crudamente,

haviendo con ellos estrechos amores

tractó sus caidas engañosamente.

E traxo a Dario a morir vilmente

despues que lo hovo alto colocado,

e Alcibiades mató feamente,

el qual con honores havia ornado.

Adicion.

Seguis tras Boreas, fuis lo amable,

quereis lo muy vil, dexais lo precioso,

deseais lo falso, no lo deseable,

plazevos lo feo, mas no lo fermoso.

Desechais lo cierto, amais lo dubdoso,

no curais de Jove, servis Proserpina,

nin mirais al celso y bien abundoso,

nin acatais cosa de acatar digna.

De la mundana Riqueza.

A los sin animas, cuerpos terrestes

vos subjudgades faziendovos viles,

dexando las altas y cosas celestes,

mirais las infimas, no punto gentiles.

Seam vuestras mentes por Dios más sotiles,

tras lo perdido perder no querais,

mirad otramente que no los gentiles

aquel Sumo Bien do vos emanais.

¿ Que valen o prestan, sin vos no lo sé

las muchas riquezas de vos deseadas?

Aquellas sin vos son sin obras fe,

vos sin aquellas sois cosas honradas.

Por vos si lo son, son ellas preciadas,

vos no por ellas sois de más valor,

antes sirviendo cosas denigradas

denigrais a vos e vuestro grand honor.

Son de caidas grandes causadoras,

ni nuestro tiempo caresceraa dellas,

son de señores terribles señoras

de que dam los pobres muy grandes querellas.

Y solo entonce se fazen ser bellas,

quando a muchos son bien repartidas,

pues fazed amigos, por Dios, de aquellas

que son como nada si son retenidas.

Exemplifica y prossigue.

Reguarda a Mida, tragador de oro,

mirad aquel Crasso, que murió tragando,

y mirad a otros daqueste vil coro:

vereis a los ricos no vivir gozando,

mueren por cierto en cobdiciando

henchir a sus cofres de oro y d' argento.

Mirad al Maestre si vivió penando,

mirad luego juncto su acabamiento.

Invoca y conceja.

Hecate se dexe, ayude Dios solo,

fuyamos de Venus, sigamos Diana,

amemos la fe, echemos al dolo,

miremos al trono de luz diafana.

Miremos la celsa virtud sobirana,

dexemos a Ceres y sus bienes falsos,

pues quien los sirve pierde y no gana,

miremos los veros y sus cadahalsos.

De la engañosa Fama.

¿ De ti que diré, oh bolante Fama,

y de tus veloces y alas fermosas?

Tu siempre engañas aquel que te ama

con cosas más bellas, que no provechosas,

las quales por ser en si engañosas

perescen, faziendo perescer la vida.

Todas tus mercedes, tristes no gozosas,

se muestran al fin con dura salida.

Prosigue y exemplifica.

Rebuelas con alas todo' l universo

y trahes desseos caducos de gloria,

los rectos asuelas y giras enverso,

jamas otorgando perfecta vitoria.

Ser tu no felice es cosa notoria,

pues que tu don es don terminado,

fenesce por tiempo la clara memoria,

nin será Cesar por siempre loado.

Yo nada digo de la Fama vera

que todos sus bienes assienta en virtud,

mas digo daquella que piensa se mera

todo el vulgo y la multitud,

que pone en loor toda sua salud

y liga y prende con feble cadena

a la mayor parte de la joventud,

y siempre su gozo nos da doble pena.

Exemplifica.

Presentad delante aquel muy mal hombre

que mató Felipo Macedoniano,

que por fazer grande su fama y nombre

cometió tal acto, crudo y profano.

Presentad delante aquel hombre insano

que quiso abraçar el templo de Diana:

vereis el desseo de gloria ser vano

y las más vezes la sua obra vana.

Exortacion y conciliaria.

Temed con espanto el fondo cahos,

dexad a la Fama y su vanidad,

¡oh vos, mortales, semblantes a Dios,

abraçad con vos virtud y bondad!

Abraçad aquella vera felicidad,

la qual no peresce jamas in eterno,

mas dura por siempre su eternidad,

nin teme a Cerbero, perro del infierno.

De los honores y dignidades
no reyales.

Ser deven de vos menospreciados

los vanos honores y las dignidades,

las quales non dignos ni menos honrados

vos fazen por cierto. Si bien lo mirades

sobre flaco cimiento grand torre fundades,

pensando con ellas fazervos más dignos;

mas es lo contrario: que vos no pensades

que las más vezes vos fazen indignos.

Los malos más malos fazer poderam,

mas no enmandarlos nin los corregir,

los buenos mejores por ellas no seram,

más vezes pueden matar que guarir.

Con verdad pues se puede dezir

no ser provechosa la tal possession

que faze los buenos la maldad servir

y a los malos no da correpcion.

Quanto más alto suben, el decenso

más presto tienen ahi aparejado;

quanto más oro nos dam y más censo,

tanto más cresce el triste cuidado.

Que quanto más firme piensa su estado,

tanto más feble se falla del todo;

jugar el tal juego Fortuna ha usado

y siempre rebuelve por aqueste modo.

Exemplifica.

Al magno Pompeo no fizo seguro

la dictadoria ni el consulado;

ni falló Scipion serle firme muro

de ser en honores tanto sublimado.

Mario se falla morir deshonrado,

que hovo siete vezes el honor consular,

mataron a Johan, duque del Condado,

no pudo su estado su muerte evitar.

De la real y imperial dignidad.

Menospreciad aquell' alta cumbre

de los imperios y de los reinados,

pues non contiene en si clara lumbre,

nin faze los hombres bienaventurados.

Son siempre los reys llenos de cuidados

y temen aquellos de que son temidos,

son con amor vero de pocos amados

nin las más vezes carescen de gemidos.

De los buenos reyes.

Los buenos congoxas padescen inmensas

por ver muchas cosas contra su querer,

ser suyas estiman a todas ofensas

que en sus regiones pueden contescer.

Desean al ceptro derecho tener

y de otra parte imploran clementia

o tales personas que satisfazer

o de velo quiero la su grand prudencia.

De los malos reys.

Los malos de todos son vituperados,

sus mismos vicios los atormentan;

de toda la gente son muy desamados,

de si claro nombre muy lexos ausentam.

Con muertes, engaños, los suyos los tientam,

son aborrescidos de Dios y del mundo.

Dezid, pues, ¿ que gozo los tales reyes sientam

ya vivos viviendo en fuego profundo?

Exemplifica.

Mataron Priamo, rey muy poderoso,

y fue su grandeza toda asolada;

murió Agamenos, rey grande, famoso,

a manos de Egisto, persona malvada;

e Nero, que tuvo assi sojuzgada

la mar y la tierra, murió con su mano;

el magno Alixandre con fin celerada

fenesció suas dias y su poder vano.

De la Privança.

Bolvamos la pluma a ti, oh Privança,

ufana, ingrata, mintrosa, irada,

tu pones en hombre toda tu fiança,

porende de males eres recercada.

Tu has en arena tu casa fundada,

si presto te vienes, más presto te partes,

de quien te conosce eres desamada

por tus no fermosas ni gentiles artes.

Prosigue y compara.

Tu mal es el bien mayor que posseyes,

gozo y salud da tu gran ferida,

tus propios daños no miras ni veyes,

si no si delante veys tu caida.

Entonce de los tuyos eres conoscida,

los quales a beudos son bien comparados,

pues quando su pompa dellos es fuida

retornan en si con menos cuidados.

Tu las más vezes te fallas burlada,

pensando los reys tener sojuzgados,

al fin bien demuestra tu fecho ser nada,

pues y desemparas todos tus criados.

Contesce a menudo los reyes sus privados,

a que sublimaron, de los abaxar

com muertes, tormentos crudos no pensados,

pensando potentes assi se mostrar.

Exemplifica.

Ya pues veyamos Aman que razona

de ti, o que siente de bien o de mal,

fable el Maestre, senor d' Escalona,

diga si le fueste fiel y leal.

Y fable Seneca de ti, el moral,

y fable Joab, veamos que llaman,

pues que tu venino gustaron mortal,

y digannos luego que tanto te aman.

De los deleites.

Fuid los deleites, pues non dan deleite

perfecto nin bueno, nin tan poco sano.

A todos engaña su falso afeite,

sin sentir mata el su gozo vano;

a todos arriedran del bien soberano,

jamas no aplazen que no den tristeza,

aforjan cadenas del sotil Vulcano

con que encarcelan a toda nobleza.

Compara y prosigue.

Aquellos venereos, aquellos de Baco

¿ ya quien osará llamarlos gozosos?

los quales comparo al tirano Caco

con sus feos actos, non punto fermosos.

Al cabo siempre son muy enojosos

y muestran el mal que tienen celado,

dexando los hombres tristes, dolorosos,

feridos con fierro muy emponçoñado.

El cuerpo destruyen, el anima matan

y fieren la fama de llaga mortal,

al vero juizio bien presto lo atan

con arte falace y muy desleal.

Mostrando ser bien aquello qu' es mal

y assi durando en la tal ceguera

fenesse por tiempo lo qu' es divinal

y vive aquello que morir devera.

Exemplifica y prosigue.

Aquel Sadarnapolo, rey muy vicioso,

con fama muy fea murió deshonrado,

mas hovo tormento que no fue gozoso,

de sus grandes crimines siempre molestado.

Fieren como Furias el nuestro cuidado,

reposo ni descanso jamas otorgando,

Xerses por siempre será desnotado,

siguiendo deleites fuyó batallando.

De la insigne generacion.

¡Oh clara prosapia! tu dime que vales,

sin de la virtud ser acompañada,

tu de origen más fermosa sales,

pero si despues no eres ornada

de claras virtudes y eres ligada

con vicios feos y les fazes feudo,

por cierto más fea deves ser juzgada

que si con nobleza no toviesses deudo.

Exemplifica.

La clara estirpe ser de preciar

assi la ha mostrado aquel luz de vida,

quando en la Virgem quiso encarnar

que de real sangre era produzida.

Pero aun quiso que fuesse guarnida

de todas virtudes la su gran alteza,

dandonos enxemplo dever ser unida

con claras costumbres la clara nobleza.

Aplicacion.

Todos somos fijos del primero padre,

todos traemos igual nascimiento,

todos havemos a Eva por madre,

todos faremos un acabamiento.

Todos tenemos bien flaco cimiento,

todos seremos en breve so tierra,

el propio noblesce merecimiento

y quien al se piensa, yo pienso que yerra.

De la Fermosura.

Agora vengamos a ti, oh beldad,

porque se demuestre claro, evidente,

ser tu colocada en grand vanidad

y ser de firmeza lexos y ausente.

Tu, que te piensas ser muy eminente,

cayes más aina que las verdes flores,

si retorna presto Febo al poniente,

tan presto fenescen todos tus favores.

Exemplifica.

Aquel de Toscana, varon valeroso,

quanto fue loado por a ti dexar,

feriendo su rostro gentil y fermoso,

fizo su fama muy lexos volar,

fuyendo ser causa de otro pecar

fizo a si feo con fama fermosa.

¡ Oh mano loable que supo domar

los torpes desseos en ser rigorosa!

Aplicacion.

Aquella Elena tan mucho famosa,

si con ojos linceos fuera reguardada

por los que juzgavan ser tanto fermosa,

dezidme ¿ no fuera diforme juzgada?

Pues esta beldad, de vos tan preciada,

no vos la ha dado la naturaleza,

mas solo la vista que no es delgada

falsamente juzga y vos da belleza.

De los fijos y de la angustia que causan
los malos fijos.

Dessear los fijos parescen engaños,

porque sus dolores son nuestro dolor,

e todos sus daños nuestro mesmo daño.

Mirad, pues, que gozo nos da su amor,

mirad que plazer, mirad que dulçor

es tener con muchos muy grandes amores,

porque nos den vida com muy más sudor

y los sus delictos immensos dolores.

Son causa los fijos de males muy fuertes

a los tristes padres, que los engendraron,

y lo que más feo buscan las sus muertes:

ya muchas vezes los fijos tentaron

de matar sus padres y los desterraron

de sus altos tronos y de sus reinados,

y en las tinieblas los encarcelaron

de su mesmo ser muy mal recordados.

Exemplifica

El rey Artaxerces gozar yo no

creyo

por tener de fijos grand multitud,

antes lagrimando los sus ojos veyo

llorar la sua vida sin toda salud.

Nin creyo Saturno en la juventud

de su fijo Jove haverse gozado:

el uno maldize la su senectud,

el otro reclama que fue desterrado.

Del pueblo y de su vano amor.

No amo ni punto el amor popular,

ny loo quien mucho en el se confia,

ca no sabe amar ni sabe desamar;

los más de sus fechos van torcida via,

sin razon, sin causa, mantiene porfia,

sin sazon, sin tiempo, se dexa daquella;

jamas discrecion no lieva por guia,

nin honra la virtud, nin se cura della.

Al caos profundo a horas abaxa,

a horas soblima al cielo loando,

en el piedad jamas se encaxa,

los sus beneficios siempre van errando.

Es todo ingrato, crudo y nefando,

los malos enxalça, los buenos oprime,

a la falsa fama jamas va mirando,

nin siento virtud que a el se arrime.

Exemplifica.

Desterró Camilo, hombre glorioso,

y a Curiola el pueblo romano,

desterró Teseo, duque valeroso,

y a Temiscodes el pueblo insano.

Servió aquel Cesar, famoso tirano,

servió aquel Sila, malo y cruel,

servió Dionisio, el Siracusano,

y fue a los buenos de raro fiel.

De la floresciente joventud.

Di en que tienes, loca joventud,

porque te estimes de tanto valor,

di porque maldizes a la senectud

y no le conosces su grande honor,

pensando ser fuera de todo dolor.

Pero tu acata, regarda, remira,

aquesto que diré, no en tu favor

lo que se dilata, pero no se tira.

Tu nudres los vicios feos y malvados,

tu das osadia para mal obrar,

tu forjas bien presto los torpes cuidados

y causas la causa del grave penar;

tu fazes los males perpetuo durar,

pues favoresces a tus mismos daños.

Por fuerça se sigue a vejez llegar

si siempre duraron en los verdes años.

Exemplifica

Di como salvaste al batallador

Hector y Troilo, su claro hermano,

di como salvaste al su matador

y aquel fermoso infante troyano.

Di como salvaste aquel rey hispano

nombrado Don Sancho, que cercó Çamora,

y aquel insigne Tito, el Romano,

del qual la riqueza era servidora.

De la corporal fuerça.

Quanto pues sea de honrar la fuerça

y quanto de nos deve ser querida,

miras quien de fuerças vencer se esfuerça

a los elefantes fuertes sin medida;

nin de los tigres su fuerça vencida

será de alguno por ser mucho fuerte,

fenesce la fuerça ante que la vida

y a todas fuerças se fuerça la muerte.

Exemplifica.

El claro consejo del vero Caton

no menos yo creyo nozer y dañar

a la grand Cartago que aquel Scipion,

que pudo sus fuerças vencer y domar:

uno reposando supo consejar

como a Cartago vencer se podria;

otro batallando, sin jamas cessar,

fue de lo pensado capitan y guia.

Exemplifica y prossigue.

Peresció la fuerça del fuerte Milon

y fue en momento presto consumida,

nin salvó aquella al magno Sanson,

nin evitar pudo su triste caida.

Es de los sabios en poco tenida,

es de servitud amiga y conforme,

la discrecion sola deve ser servida

muy bella en todo, en nada diforme.

De desseo sobrado de largo vevir.

El grande desseo de vida longeva

qual tan poco sabe que claro no veya

ser mucho mejor morir como Sceva

que no denostado el vevir posseya?

La vida es breve por luenga que seya

y quanto más dura, más dolores siente;

el luengo dolor la muerte dessea,

vevir es morir, en edad cayente.

Sin cuento los santos son muy gloriosos,

que han desseado morir prestamente

y con tal desseo fueron más famosos

que mucho viviendo viciosamente.

Yo esto gritaree y osadamente

ser el bien morir a los buenos vida,

y la mala vida muerte ciertamente

la qual de penar es dulce finida.

Exemplifica.

Caton Uticense quiso más matarse

que no reguardar el vulto tirano,

amando ser libre quiso delibrarse

con su virtuosa y propia mano.

Anibal, el grande duque africano,

más quiso morir que no ser traido

delante el aspecto del pueblo romano,

cuyas ligiones havia vencido.

De los amigos.

La dulce Fortuna engendra amigos

muy más lisonjeros que veros ni leales,

y la adversa los torna enemigos

aun no contenta de los otros males.

Y muestra no firmes ser y desleales

aquellos que primero mostrava fieles;

por aquestos juegos y por otros tales

sus bienes del orbe semblan infieles.

Quando los gemidos som más abivados,

el leal amigo alli permanesce;

de tales amigos son pocos fallados,

porque nuestro siglo de virtud caresce.

La maldad abunda, caridad fallesce,

siguen como moscas aquellos a la miel,

y a vera amistad ni es ni paresce,

apenas entre mil es uno fiel.

Escusase de exemplificar.

Reduzir enxemplos daquesta materia

no quiero, por ser cosa odiosa,

pero veo muchos con asaz miseria

que a mi reclaman en voz dolorosa,

deziendo: — Scrive, no te turbe cosa

de aquellos sin fe, amigos sin amor,

que han quebrantado la ley vigorosa

de amistad vera con mucho rigor.

Prosigue mostrando el bien sobirano.

Dexad y dexad, otra vez vos digo,

d' amar estas cosas de gran falsedad,

amad y quered haver por amigo

el bien sobirano, do es la verdad.

A este preciad, a este abraçad,

el qual faltareis en Dios solamente.

Temed Su justicia, amad Su bondad,

no, no sigais no al son de la gente.

Invoca.

¡Oh Dios verdadero, oh Hombre perfecto,

Tu, que de nada el orbe criaste,

Tu, que el mar bravo tornaste quieto,

Tu, que muriendo a todos salvaste!

¡Oh Rey de los reyes, qu' el cielo formaste,

Tu, que eres padre de la sapiencia,

prestame ajuda como la prestaste

al Rey Sapiente en grand afluencia!

Aplicacion.

Vosotros buscades muy profundamente

el bien sobirano por diversas vias,

buscais en tiniebras la luz eminente

y perdeis el tiempo tras cosas baldias.

Consumis las horas em vanas porfias,

errais y errando recebis passion,

no trabajeis siempre en contraversias,

lo uno y lo bueno una cosa son.

Compara y demuestra.

Quien busca pescados y belvas marinas,

no busca los montes, mas busca los mares,

pues menos se buscam las cosas divinas

en los tenebrosos y fondos lugares.

A la bienandança, tu, si la buscares,

busca la dentro en tu alma mera,

con esta te goza, si bien la fallares,

de las otras burla como de quimera.

Invoca.

Canta, santa Musa, en coplas y versos,

resuenen tus vozes, fieram los oidos

de todos los hombres buenos y perversos,

busca harmonia de dulces sonidos,

e sean remedios aqui pervenidos,

porque no prevenga la desesperacion;

demuestra los bienes que son infindos,

faz tu patente nuestra salvacion.

Idvos daqui, Musas, vos que en Pernaso

segund los poetas, fezistes morada,

idvos muy allende del monte Caucaso,

pues no sodes dignas daquesta jornada,

nin vuestra ponçoña será derramada

con la su dulceza en las venas mias;

ca ser no me plaze de vuestra mesnada,

ni soy homerista, nin sigo sus vias.

Mas ya pues dexando aquestas razones,

retornar queriendo a lo necessario,

ca no me agradan luengas conclusiones

antes, quanto puedo, sigo lo contrario.

Vedlo que diré em breve sumario,

a vos cristianos y gentes fieles,

porque no sirvades el grand adversario

que sumirvos quiere en ondas crueles.

Prosigue.

Las virtudes tres teologicas y las
quatro cardinales.

Amad la Fe santa, amad Sperança,

amad Caridad con grande femencia,

amad Fortaleza y amad Templança,

amad a Justicia y amad a Prudencia.

Amad al grand Dios, temed su potencia,

fazed buenas obras, fuid de las malas,

durad en aquesto, seguid mi sentencia,

y irés al cielo volando sin alas.

De la santa Pobreza.

Amad, o mortales, la santa Pobreza

de que ningund sabio jamas no querella

y assi posseid la mucha riqueza

como si nada posseyesseis della.

Amad la virtud, burlad de aquella,

fuid ocasion, raiz de pecado,

pues que grand fuego de chica centella

renasce más presto que no fue pensado.

Exemplifica.

Por boca d' Apolo Clodio s' escrive

ser muy más que Giges felice juzgado,

más claro su nombre daquel aun vive

que no del muy rico rey muy abastado.

El pobre varon será memorado

que hovo la vera bienaventurança,

el rico por tal no será notado

lleno de ansias, mas no de folgança.

Aplicacion.

Beatos los pobres, dize el Senhor,

de spiritu puro, muy libre y quito

de mala cobdicia, y de su amor

muy lexos y nada con aquel aflicto,

pues triste, cativo será y maldito

el que refuyere de buscar aquesto

raido del libro a do fue escrito,

porque no sigó lo bueno y honesto.

De Ocio y Soledad virtuosa.

Abraçad el Ocio, amad Soledad,

fuid multitud, fuid sus rumores,

aquella es madre de grand santidad,

la otra de graves y grandes dolores,

Con Dios la primera tiene sus amores,

ama la segunda lo vil y dañoso,

aquella no cura de muchos senhores,

esta lo diforme le sembla fermoso.

Exemplifica.

Amó Soledad el claro varon

Francisco, doctrina de vida muy santa,

amó Soledad aquel Sant' Anton

de cuyas batallas mi pensar s' espanta.

De Egipciaca esso mismo canta

la militante iglesia terreste

que en el desierto su virtud fue tanta

que mortal seyendo se mostró celeste.

Aplicacion.

¡Oh edad primera bienaventurada!

tu que los campos fieles amavas,

con lo necessario eras abastada

por cosas sobradas jamas sospiravas;

en duelos y fraudes no te deleitavas,

ni preciavas da triste moneda,

las guerras e muertes no las procuravas,

por tanto loarte no sé como pueda.

Exorta y conseja.

Temed a la muerte que a todos traga,

temed al infierno lleno d' espanto,

temed al pecado que tanto nos llaga,

fuid las Sirenas, fuid a su canto,

pues luego su gozo trasmuda en llanto;

fuid a Caribdis y fuid a Sila,

seguid a virtud, cobrid a su manto,

buscad su eterna y fulgente silla.

De Homildad.

Amad Homildad, desamad Sobervia,

pues el homilde a Dios mucho plaze

y del sobervio su dura protervia

sin comparacion al Senhor desplaze.

La una fabrica, la otra desfaze

la muy rica sala de merecimiento,

la una al cielo alcançar nos faze,

la otra por siempre nos busca tormento.

Esta es loada en sublime grado,

esta es primeira virtud cristiana,

a esta busquemos con todo cuidado

si ver desseamos la luz soberana.

Con esta la gloria eterna se gana,

esta es cimiento de todas virtudes,

esta el enfermo guaresce y sana,

de lo que te digo, leyente, no dudes.

Exemplifica.

En bestia tornado Nabucodonosor

fue con altives grande, desmedida,

dexando el celso y real honor,

pasciendo las yervas lloró su caida.

David por ser homil ganó la sobida

de soes pastor a rey muy potente,

plogó al muy alto muy mucho su vida,

fue siempre loado de gente en gente.

De Continencia y Abstinencia.

Amad Continencia con intimo amor

por no ser a bravas fieras comparados,

los varones fuertes buscan el sudor y fuyen los gozos blandos, delicados.

Venced las planetas, venced vuestros fados

pero nos inclinen vivir vida fea,

pelead con ellos y sed esforçados

qu' el constante fuerte vence la pelea.

Difinicion.

Es Continencia virtud que retiene

de los actos feos los nuestros sentidos,

los torpes desseos bien presos los tiene

porque triunfando los hovo vencidos.

Por cosas caducas jamas da gemidos,

desama luxuria, desama cobdicia,

por quien grandes reinos ya fueron perdidos,

vence y destroça la carnal malicia.

Exemplifica.

Muy mucho loable fue la continencia

daquel Marco Curio, varon invencido,

loar no se puede su grand abstinencia

de la mi rudeza en grado devido.

No es Diogenes en menos tenido,

no es Africano para ser callado,

ni digna de olvido será vista Dido,

ca su claro fecho deve ser notado.

De Misericordia.

Amad grandemente a Misericordia,

porque seais fechos bienaventurados,

Aquel que dar puede la paz y concordia

assi lo reclama, si sois recordados.

El que senhorea fortuna y fados

y se vos promete por esta virtud

que si la amardes sereis d' El amados,

haviendo de gozos grande multitud.

E esta y Justicia han un solo padre,

esta consuma del todo los males

de todos los bienes es nutriz y madre.

Ella y Justicia no son desiguales

en Dios ante digo que sean iguales.

A esta no presta defension ni muro,

ca las sus armas son celestriales,

sin esta muriendo, ninguno es seguro.

Exemplifica.

Aquesta virtud el Senhor mostró

en favor daquella Ninive cibdad,

quando a sus culpas perdon otorgó,

vencida con llantos su benignidad.

¡ Oh coraçon duro, sin humanidad,

el qual no se vence de lloros ni ruegos,

bien digno de nunca fallar piedad

y de ser quemado en quemantes fuegos!

De Obediencia. Invoca
y prosigue.

De Ti, sacro Dios, imploro potencia,

como yo indocto fable doctamente

de la virtud santa de Obediencia,

que Tu jamas donas salvo a prudente,

bienaventurado y a Ti temiente.

La qual mejor es que no sacrificio

que faze del flaco fuerte y potente

muy digno de grande ganar beneficio.

Obedescer manda primero el Senhor,

al Qual lieve cosa es obedescer,

despues a los hombres de grande valor,

o de gran potencia, o de gran saber.

Muy alegremente se deve excercer,

porque no passemos vida muy amarga

y muy más ganemos del buen merescer

y no se nos faga muy grave la carga.

Exemplifica.

Alcançoo ser madre del su Padre santo

nuestra gloriosa y santa Senhora,

porque obedesció, nos libró d' espanto,

seyendo de todos la reparadora.

Saul con avara mano robadora

desobedesciendo cayo de su trono,

fingendo cautela no muy sabidora,

hoyó del profeta aquel triste tono.

De Paciencia.

Quered Paciencia con vos abraçar,

pues quanto sofrides de Aquel vos viene

que rige el cielo, la tierra y el mar,

y todas las cosas en su poder tiene.

Dexad al Senhor que de vos ordene

y El saberá darvos lo mejor.

Que vuestro spiritu reclame y pene

con alegre gesto sostened el dolor.

La obra perfecta esta virtud faze,

quita el desseo de toda vengança

justa o injusta qualquier le desplaze,

nunca retrocede, mas siempre avança.

En Dios esta pone la su confiança,

quita la tristeza que es excessiva,

de adversidades es fiel folgança,

quita el odio y la ira priva.

Exemplifica.

Aquel santo Job por ser paciente

venció batallando el nuestro enemigo,

fue otro muy claro sol en oriente

y de fortaleza muy fiel testigo.

Fue del Excelso amado y amigo

y ganó de Aquel vida perdurable,

siguió de virtudes el vero origo,

no fue tan loado como fue loable.

De la fulgente Verdad.

Del malo enemigo eres enemiga,

tu, Verdad fulgente, de Dios muy amada,

de la santa gente eres muy amiga

y de los improbos te has separada.

En nuestra edad no eres fallada

ca tu aborresces al dissimular

y tienes grand odio con cara falsada

ni menos te plaze el blando lisonjar.

De toda malicia tu eres desnuda

y eres de nobleza ornada, vestida,

fuir tu engaño ya quien lo duda,

ca tu de claresa eras revestida.

De grande constancia eres bien servida

ado tu no moras, maldita la tierra

y la religion do eres partida,

dalli no se parte discension y guerra.

Exortacion y consiliaria.

Abraçad aquesta muy fermosa dueña

con todas las fuerças, vigorosamente,

de tanto mentir haved ya verguença,

sea la mentira lexos y ausente.

La Verdad es fuerte y siempre plaziente,

la otra es fabla, llena de tristeza,

no fagais, senhora, de muy vil sirviente,

inutil, profana, sin toda nobleza.

De Liberalidad loable.

Con vera franqueza tened amicicia

y fuid muy lexos la prodigalidad,

pero muy más lueñe la torpe avaricia,

propio cimiento de toda maldad.

Amad y tened la Liberalidad

que da donde deve con alegre cara,

que nasce y mana de la voluntad

y los beneficios perfectos prepara.

Esta no conosce el vulgo errado,

ni reguardar puede su grand eminencia,

aquesta posseye el medio loado,

nunca en estremos faze residencia.

Esta procura su grand preminencia

ser en virtudes, no en vana gloria,

esta requiere muy grand providencia,

daquesta muy pocos han vera victoria.

Exemplifica y prosigue.

Es mera franqueza a los pobres dar,

redemir cativos con liberal mano,

fundar hospritales, templos fabricar

adonde se loe el Dios soberano.

Socorrer al triste e tornar lo sano,

ajudar a todos, ninguno dañando,

son aquestos actos del grande Trajano

de clara justicia, claros emanando.

De Constancia.

Con mente constante, seguid a Constancia,

con animo fuerte sabelda elegir

más vale que d' oro muy grande abundancia,

nin quantos tesoros se pueden dezir.

Es fiel cimiento para bien vevir,

falange muy fuerte contra todos vicios,

tramite muy recto para bien morir,

fabro que fabrica leales servicios.

Loar la constancia en los viles fechos

¿ quien duda errada ser opinion?

Los firmes cuidados devem ser desfechos

quando no emanan de la discrecion.

Obedecer deve aquella a razon

pero quando della punto no desvia

dudar no se deve muerte ni prision,

y quantos más males, más firme todavia.

Exemplifica.

Mirad a las santas y santos varones,

que jamas dexaron su fe valerosa

por graves tormentos ni por grandes dones,

firmes sperando corona gloriosa.

Asaz manifiesta y patente cosa

es de los gentiles su grande firmeza,

qual fue la de Fabio en todo fermosa

y la de Scevola llena d' ardidesa.

De Clemencia.

¡Oh virtud muy buena, oh santa Clemencia!

dame licencia, pueda recontar

en baxo estilo y sin eloquencia

la tu sobirana beldad singular,

pues que tu eres sin todo dubdar

clipeo de Palas a los perseguidos

y fazes los reyes estables estar

y fazes los reyes de todos queridos.

Con los pusilanimes no has amistad,

ca siempre procedes de grand coraçon;

tu eres amada de la deidad,

ca tu de los tristes eres protecion

y de los culpados fuerte defencion,

y pues el Excelso se llama clemente,

devemos buscarte con grand afeccion

y no ser feroces a ninguna gente.

Exemplifica.

De aquesta virtud Cornelio usó

dando manseolo al su enemigo,

a esta virtud Alexandre amó

quando el vejo falló en el abrigo;

y quando de Poro se mostró amigo

a esta virtud siguió Pirro rey,

a la qual yo pienso y assi lo digo

que los reyes deven mirar como ley.

De loable Silencio.

Fuid multiloquio, amad el callar,

el qual las más vezes sana y guaresce.

¡Oh quantos se fallan fablando matar

jamas por cilencio ningund mal recresce!

En multiloquio crimen no fallesce,

amar el cilencio demuestra cordura,

el vero saber callando floresce,

es mucho fablar señal de locura.

Lieve es la fabla, ca lievemente buela,

mas fiere y llaga muy pesadamente,

lievemente passa, mas mata y asuela

assi como rayo furiosamente.

Penetra el animo muy ligeramente,

mas no lo revoca assi de ligero;

errar muchas vezes faze al prudente

de más quando buela de boca de artero.

Quatro cosas que en la fabla
se devem observar.

No solo acata el que es sapiente

aquello que fabla, mas aun el lugar

adonde lo fabla, si es congruente,

y tambien al tiempo que cumple fablar.

Quien es la persona, se deve mirar,

con la qual fablamos o de que valor.

Estas quatro cosas se devem guardar

y si no se guardan callar es mejor.

La boca del sabio en su coraçon

y por el contrario del loco aviene,

el uno callando con grand discrecion,

con muy fuerte freno su lengua contiene;

el otro ni cela cosa ni retiene,

todos de su fabla son mal ofendidos,

no se recordando el nescio que tiene

una sola boca y dobles oidos.

Exemplifica.

Mataron a Clito por mucho fablar,

murió Calistenes y fue destroçado.

Sin cuento de locos se pueden fallar,

ni será su numero jamas numerado.

Solo un filosofo hovo observado

el santo cilencio en toda su vida:

¡ Oh hombre muy cuerdo, o bienaventurado

de fama loable, muy esclarescida!

De Contempto virtuoso.

Si tu menosprecias a toda riqueza,

ser tu luego rico es cosa notoria,

y si menosprecias la dura crueza,

de los enemigos haverás victoria.

Y si menosprecias folgança y gloria,

luego glorioso serás y quieto,

pues retener deves en la tu memoria

aquesto que digo, si eres discreto.

No menosprecies a la pobre gente,

mas seyle siempre manso, gracioso,

contracta con ellos muy benignamente

y oye sus quexas con gesto amoroso.

El animo alto no es furioso

contra el del flaco y de poco poder,

ni diran que puede mucho el poderoso,

porque de los pobres se faga temer.

Contempne la muerte y sey esforçado,

pues eres seguro que, si bien obrares,

serás in eterno bienaventurado,

y con la tal muerte libre de pesares.

Es breve dolor, si bien lo pensares,

que da fin y cabo a graves dolores,

jamas no la temas, si a Dios amares,

otramente teme sus graves temores.

Exemplifica.

Aqui ¡oh tu, Bias! rico sin riqueza,

aqui te muestra, hombre sapiente,

porque manifiestes tu vera nobleza

y fagas denuesto al siglo presente.

Aqui ¡oh tu, Socrates! varon excelente,

vernás tu, reyendo con alegre cara,

recebir la muerte del todo inocente,

con fama luziente y vida más clara.

De Honestidad.

Buscad Honestad, abundosa fuente

de todas virtudes, de todas bondades,

sea scolpida no solo en la fruente,

mas aun más dentro en las voluntades.

Esta es madre de todas verdades,

esta es del cielo muy patente via,

para que falledes el bien que buscades

esta es duquesa, adalid y guia.

¡Oh tu mortal hombre! qualquier que tu seas,

si la Honestad reguardar pudiesses

con ojos divinos, sin dubda me creyas

que grandes amores con ella toviesses

y todo por suyo a ella te diesses;

ca no es humana, mas divina dama,

cuyos grandes dones, si los rescibiesses,

siempre arderias en gozosa fama.

Quatro fuentes donde mana
la Honestidad.

De quatro fontanas aquesta emana,

y es la primera buscar la verdad,

la compañia observar humana

es luego la otra de grande beldade;

y es la tercera magnanimidad

que nasce y vive en grand coraçon,

dar modo a las cosas con abtoridad

será pues la quarta sin fingir ficcion.

Adicion.

El varon honesto fuye del pecado

bien como de una cruel señoria,

caso que supiesse serle perdonado

del alto Jesu jamas lo faria.

Y aunque pensasse que se celaria

para todo siempre delante la gente,

con todo aquesto el refuiria

más que de la muerte de ser su sirviente.

De verdadera y firme Libertad.

Amad Libertad, fuid servidumbre,

la qual se queredes ganar y haver,

buscad al excelso luzero y lumbre

de libertad vera, sin Le ofender.

Si esta queredes con vos retener,

sed libres primero de amor sobrado

las cosas no firmes de mudable ser,

arrancad daquellas el vuestro cuidado.

De tres singulares liberdades.

Aquel Señor pude darvos libertad

del triste pecado, cruel, tenebroso,

y de la miseria y necessidad

como rey muy grande, todo poderoso.

Buscad con cuidado muy estudioso

esta liberdad, triplice fermosa,

con la qual se cobra el bien abundoso

y aquella gloria siempre gloriosa.

Qual es verdadero libre.

El que a ninguna sirve cubdicia

aqueste ser libre es de estimar,

siervo es quien sirve la triste avaricia,

libre es el libre del torpe pensar.

Solo el sabio se puede llamar

veramente libre y no otro hombre,

aunque sojuzgues la tierra y mar,

si improbo fueres, siervo es tu nombre.

Exortacion y consiliaria.

Quando con muerte nos libró de muerte,

libre nos ha fecho el Verbo Incarnado,

pues irascimini venced toda suerte

porque no seades siervos del pecado.

Fuid el dominio daqueste malvado

principe tirano, cruel, engañoso,

servid al Señor con todo cuidado,

que es todo pio y no rigoroso.

De temor y amor de Dios.

Oyan los cielos lo que fablaré,

y oya la tierra, y oya la mar,

inclinen oidos a lo que diré,

oyan atentos el mi razonar.

Oyan animales mi breve fablar,

assi quadrupedes como racionales,

oyan las aves, señoras del volar,

oyan los mis versos todos los mortales.

Temed al Señor, gentio mundano,

temed al Señor, señor de senhores,

temed su muy justa y potente mano,

porque no temades ningunos temores.

Daqueste Señor sed vos servidores,

el Qual gualardona todos los servicios

y presto consume los nuestros langores

y da justas penas por todos los vicios.

Amad a quien ama aquel que Lo ama

y jamas desama sin justa razon,

que mira lo vero, lo falso y derrama

y faze sus bienes de grand perfeccion.

No da sus oidos a falsa ficcion,

ni es el su ser mortal ni finito,

a muy grandes culpas outorga perdon

y no desampara al qu' es más aflicto.

Exemplifica.

Aquel grande pueblo de duro creyer,

enquanto temia a Nuestro Señor,

venció su poder a todo poder

y a los más grandes puso más terror;

passó el Mar Rubro com muy gram honor,

y fue a el dada la celeste mana,

era de los fuertes fuerte domador,

a todos vencia su gloria mundana.

Mas como el dexó al su Dios muy santo,

luego fue opresso muy terriblemente

y fue destrunçado con mortal espanto,

de todos los bienes se falló absente.

Plañió sus langores y mal luengamente

y la su miseria dió fuertes gemidos,

su mal aun dura, segund es patente,

pues, si no temedes, no sereis temidos.

Prosigue concluyendo.

Contrastad con ira a los feos vicios,

honrad las virtudes y levad la mente

al Padre de dones y de beneficios,

muy sabio, fuerte, pio y clemente.

Tened vuestras preces en lo eminente,

no mireis las tierras con tanto cuydado,

mirad a lo alto, mirad lo fulgente,

lo vil de vos sea menospreciado.

Necessidad grande está a vos puesta

de amar virtud y seguir bondad;

si dissimular la verdad no presta

ni menos fingir falsa la verdad

por obrar delante la grand majestad

del omnipotente Dios uno e trino,

mirante las cosas en eternidad

muy justo juez, bueno y muy digno.

Cabo.

Si veys a los malos ser muy enxalçados

y a los buenos venir aflicciones,

ni por aquesso sed vos apartados

de guiar al bien vuestros coraçones,

porque los perversos con sus falsos dones

al fin in eterno sosternam tormentos,

los buenos, cobrando veros galardones,

seran fechos dioses de bienes contentos.

258

DO CONDE DO VIMIOSO A ŨA
SENHORA QUE SERVIA.

Quem vos poderaa servir

nem leixar de o fazer,

que nũa ming' oo poder

e noutra o consentir.

Mas nam compre de buscar

caminho nesta verdade,

pois tam bom é de deixar

a vida pola vontade.

Entam podereis sentir,

quando me virdes morrer,

que moiro por vos servir

sem ousar de o fazer.

259

OUTRA SUA.

Se fizesse fundamento

d' algũ bem em minha vida

dá-la-ia por perdida.

Mas nam tenho esperança

nem perco contentamento,

qu' este mal nam faz mudança

nem eu castelos de vento.

E co este fundamento,

nam faço conta da vida

nem na tenho por perdida.

260

TROVAS QUE MANDARAM O CONDE DO

VIMIOSO E AIRES TELEZ À SENHORA

DONA MARGARIDA DE SOUSA, SO‑

BRE ŨA PERFIA QUE TIVERAM

PERANTE ELA, EM QUE DEZIA

AIRES TELEZ QUE NAM SE

PODIA QUERER GRANDE

BEM SEM DESEJAR,

E O CONDE DEZIA

O CONTRAIRO.

Aires Telez.

Desejar e bem querer

sam, senhora, tam parceiros

qu' os amores verdadeiros

sem ambos nam podem ser.

Porqu' a causa é querer bem,

o desejar o efeito,

amores qu' este nam tem

nam me negará ninguem

que nam tem o ser perfeito.

Nam digo qu' o desejar

seja no homem primeiro,

mas venha por derradeiro

pera se certeficar

o bem querer verdadeiro.

Porque quem este nam tem

hei por mui certo sinal:

ou que nam quer bem nem mal

ou que quer pequeno bem.

E bem se poderá achar

desejar sem bem querer,

grande bem sem desejar

no homem nam pode ser.

E quem tal concrusam tem

contra a minha opiniam

vai tam fora da razam

como estaa de querer bem.

Sentir-s' -á, se se nam vir,

qualquer cousa desejada,

mas quem nam deseja nada

nam tem nada que sentir.

Ora vossa mercê veja

qual daquestes mais merece:

quem quer bem e nam deseja

ou quem deseja e padece.

O Conde do Vimioso.

Quem d' amores tem o cume,

quem vive vida acabada,

este nam deseja nada.

Nam se julga por costume

cousa desacustumada,

quem ousa de desejar

cuida o contentamento,

se o cuido, logo o sento,

e em meu mal nam pod' estar

prazer nem por pensamento.

Desejar o coraçam

é natural e verdade,

mas na grande afeiçam

dessimula a razam

os desejos aa vontade.

Nam pode amor sem arte

querer grorea pera si,

que por ela vejo em mim

que cuidar na menos parte

traz consigo minha fim.

O amor acustumado

este nace do desejo,

que desejando o que vejo

tenho-me por namorado,

digo qu' ee meu mal sobejo.

Mas quem chega a bem querer,

que sem respeito s' ordena,

nam deseja de viver,

nem cuida qu' i ha prazer,

nem lhe lembra sua pena.

Pois se prova o que digo,

nam cumpre mais arguir,

e mais este meu amigo

achará muitos consigo,

eu som soo no meu sentir.

Por mil penas que sofresse

todo meu mal se dobrasse,

se na vida que vivesse

tanto vos desacatasse

que algũu bem desejasse.

Aires Telez.

Este meu senhor quis vir

com tam falsas poesias,

que vem agora a cair

em maiores heresias.

Mas por mais o confundir

nesta sua openiam,

quero, senhora, arguir

contra sua concrusam

e provar minha tençam.

Se tem tam livre a vontade

que pode nam desejar,

nam lhe poderei negar,

senhora, que diz verdade.

Mas quem é muito sogeito,

sendo muito namorado,

vem-lh' o desejo forçado

e nam faz nada por geito.

Quem nam sente nada é morto

e de todo estremo ausente,

nam é triste nem contente,

nam tem mal nem tem conforto.

E por este fundamento

como s' afirma ninguem

que teraa merecimento

quem nam sente mal nem bem?

É moor descanso viver

sem desejar e sentir

que grande desejo ter,

que se nam pode comprir.

E que possa haver desejo

com grande desesperar,

isto, senhor, vos nam vejo

como se possa negar.

E s' algum homem nam ousa

desejar o que nam tem,

nam lhe vem de querer bem

mas da esencia da cousa.

E pois excelencia e ser

doutrem faz nam desejar,

nam se vá vinguem gabar

que lhe vem de bem querer.

O Conde.

Qu' aproveita bem falar

s' as razões nam vam provadas?

Sam modos d' acafelar,

sam sinaes de desamar,

palavras falseficadas.

Nisto mesmo qu' ele diz

se prova minha questam,

mas compre que o juiz

tenha tanta afeiçam

que lho sinta o coraçam.

S' a excelencia e ser

doutrem faz nam desejar,

como me podeis negar

que meu amor e querer

nam deseja descansar?

Pois me esta confessaes,

senhor meu, nam negareis

que senhora que amaes,

que por amor desejaes

por seu despreço o fazeis.

Dous contrairos nũu sogeito

nam se vio nem ham-de ver,

pera vir a bem de feito

desejo quer seu proveito,

amor quer tudo perder.

Se neles tal deferença

nam pode ser bem negada,

a rezam será forçada,

nam ficando por sentença

qu' amor nam deseja nada.

Amor é conformidade

em toda cousa igual,

ũa gostosa amizade,

amor é ũa vontade

que nam pode querer al.

Amor nam sabe o que quer,

como pode desejar?

Amor nam pode querer

outra cousa senam ser

e em si mesmo estar.

Desejo é ũu sintir

daquilo que pode ser,

sintir o qu' estaa por vir,

que obriga a servir

esperando merecer.

Como pode esperar

prazer quem por vós padece,

que, se bem nisso cuidar,

nam se pode desejar

cousa que se nam merece.

Vilancete.

Meu amor, tanto vos amo

que meu desejo nam ousa

desejar nenhũa cousa.

Porque se a desejasse

logo a esperaria

e se a eu esperasse

sei que vos anojaria.

Mil vezes a morte chamo

e meu desejo nam ousa

desejar-me outra cousa.

Aires Telez.

Sem outros maes argumentos

na sua mesma rezam

jaz, senhora, a confusam

de todos seus fundamentos.

No que diz contr' oo que digo,

nas rezões que dei arriba,

ele soo luita consigo,

ele mesmo se derriba.

Grande bem daa coraçam,

grande bem faz tudo ousar,

grande bem faz desejar

com rezam e sem razam.

E quem é tam temperado

que tem modo no desejo,

nam se vê no que m' eu vejo

nem é muito namorado.

Nam quer proveito o querer,

nem tambem o desejar

cousa tam longe de ser

que se faz desesperar.

Pois sam falsas as rezões

de quem disse que nam tem

desejar e bem querer

ũas mesmas condiçõoes.

S' amor nam sabe o que quer

nem deseja quem quer bem,

namorar-s'-ia alguem

da pintura da molher.

Mas nunca s' homem namora

senam sempre em tal lugar

que logo lhe nessa hora

lembra o fim do desejar.

Cousa de grande primor

por servir nam se mereçe,

mereçe-se por amor

de quem deseja e padece.

Desejo sem merecer

mil vezes, senhor, o vejo,

mas merecer sem desejo,

que vem de grande querer,

nam no ha nem pode ser.

Vilancete e cabo.

Meu amor, tanto vos quero

que deseja o coraçam

mil cousas contra rezam.

Porque se vos nam quisesse,

como poderia ter

desejo que me viesse

do que nunca pode ser?

Mas com quanto desespero

é em mim tanta afeiçam

que deseja o coraçam.

261

CANTIGA DO CONDE
DE VIMIOSO.

Tristeza, pois nam podeis

ter mor prazer,

contente deveis de ser.

O poder qu' em mim vos dei

nunca tamanho tevestes,

porque toda a mim vos destes

e eu em tudo vos tomei.

Pois que parte nam lexei

para prazer,

contente deveis de ser.

Outra sua.

Nam quero ter mais comigo

que quanta pena me daes,

porqu' esta me traz consigo

outra mor se ma tiraes.

Pois que parte nam leixaes

pera prazer,

contente deveis de ser.

Sua e cabo.

Se folgaes de dar cuidados,

se penas fazeis sentir,

meus males nam sam passados

nem estaa nenhũ por vir.

Pois onde vos podeis ir

tristeza ser,

senam menos de sofrer?

262

TROVA SUA A Ũ MOTO D' ŨA
SENHORA, QUE PÔS POR
ELE, E ELE TORNOU A
CULPA A ELA.

Moto.

Tantas cousas lh' avorrecem

qu' ee rezam que m' avorreça.

A vida nam dura mais

qu' enquanto males falecem

e por isso se ma dais

quantas vezes ma tirais

tantas cousas lh' avorrecem.

Mas se muitas vos pareçem,

senhora, nam vos esqueça

que de mim soo se padecem,

e pois tantas se oferecem

qu' ee rezão que m' avorreça.

263

TROVA DO CONDE SOBRE ŨU MOTO

QUE ESTAVA PONDO DOM PEDRO,

EM QUE SE CHAMAVA BEM

AVENTURADO E MAN‑

DOU-A COM OS

MOTOS.

Sam tam mal aventurado

que vejo boas venturas

nas alheas escrituras;

as mostras me dão cuidado,

os motos mores tristuras.

S' a ventura tal ordena

que se possa escrever,

eu digo que ver e ler

dá menos saber que pena.

264

ESPARÇA SUA.

Que terribel desconcerto

e forte dor

é amor com desamor,

que em jogo descuberto

quer dar cor a outra cor.

Duas cousas dou por certas,

tiradas pola fieira:

qu' em nenhũa verdadeira

nam pod' haver encubertas

nem verdade em terceira.

265

CANTIGA SUA.

S' alguem deseja prazer,

viva em no esperar,

que todo mais é achar

maneira de o perder.

Diga-me quem alcançou

bem algũ que desejasse,

se nunca tanto folgou

que disso se contentasse.

E pois s' acaba o prazer

que s' espera em s' alcançar,

quem esperar de o ter

nam ouse de o tomar.

266

CANTIGA DO CONDE A
ŨUS BOCAES DO BARÃAO,
FORRADOS DE PANO
E MUITO ES‑
TREITOS.

Ó mui estreitos bocaes,

em que nam ha duas quartas,

mais custosos soes que martas,

segundo vós demandaes

trovas fartas.

Estreitos, bem cerceados,

naturaes par' este Outono,

proveitosos, despejados,

para pejarem seu dono.

Pois que tam justo calçaes

que vos fazem duas quartas,

por mal que vós pareçaes,

eu pormeto que façaes

saldas as martas.

267

OUTRA SUA A AIRES TELEZ,
PORQUE SE APARTA‑
VA DELE.

Estudaes e fogis de mi,

soes latino,

que quedas daa o ensino

do latim!

Trareis todo decorado

o Metamorfoseos,

eu trar-vos-ei assombrado

de rir de vós.

Coitado, triste de ti,

homem mofino,

que foste nacer em sino

de latim!

268

TROVAS QUE FEZ O CONDE AO
BARÃO, PORQUE, VINDO COM
EL-REI D'ALMERIM PERA
LIXBOA EM O BATEL, SE
LHE DESTEMPEROU O
ESTAMAGO E SAHIO
EM ŨA CIRVILHA
A FAZER SEUS
FEITOS EM
ŨA LEZI‑
RIA.

Abaixo d' Escaropim,

atraves de Salvaterra,

o Barãao sahio em terra

quanto trouxe d' Almeirim.

Muito perto, i defronte,

nũa mui pequena ilha,

acodio ũa cervilha

e levou-o a pôr em monte.

Outra sua.

Deixou o barco e as redes

por seguir o salvanor,

fez os milagres que vedes

ant' El-Rei nosso Senhor.

Quando o viram desfraldar,

o arraiz temeo a chea

e bradava: — Cea, cea,

cara vos ha-de custar!

269

CANTIGA DO CONDE AO BARÃO
E A JORGE DA SILVEIRA E LUIS
DA SILVEIRA, PORQUE TODOS
TRES FEZERAM ŨA CANTIGA
A DOM PEDRO DE SOUSA,
SOBRE ŨA CAPA FRAN‑
CESA QUE FEZ.

Soes ajes no portugues,

nacestes para a gineta,

nam se meta

nenhũ de vossas mercês

em culpar trajo frances.

Parecer-vos-á tam mal,

porque nam vos está bem

senam bedem

e fota e todo o al

de Tremecem.

Mas pois tam bem parecês

ambos de dous à gineta,

ou todos tres,

nam s' antremeta

falarmos no que trazês

que vos falarão frances.

270

CANTIGA DO CONDE.

Que nam tenha mais prazer,

isto quero e nam al,

saber bem que certo mal

nunca pode falecer.

Foi melhor ter maa ventura

que descanso enganoso,

pois o mal que me segura

é decerto mais gostoso

que nenhũ bem dovidoso.

Se me mal quereis fazer

contra mim pouco vos val,

porque ja a vida é tal

que o tomo por prazer.

271

OUTRA SUA, PORQUE PAS‑
SANDO SUA DAMA DO CORO
LHE FECHARAM ŨA
PORTA DONDE
A VIA.

Passa a vida tam asinha

que nenhũ descanso tem

quem vê mal e vê tambem

os porteiros da Rainha.

Em mil dias só ũ hora

nam é dor menos sobeja,

nem val rei nem val igreja

para ver minha senhora.

Tudo passa tam asinha

que seria grande bem

acabar ou ver alguem

mais contente da Rainha.

272

OUTRA SUA A OUTRO PRO‑
POSITO A QUE CHEGOU
GUERRA, O POR‑
TEIRO.

Triste dom e triste terra,

triste paz e triste vida,

triste groria ja perdida

a que tempo veio guerra.

Se te lembraras de mi

em vida tam desigual,

mudança de bem a mal

que te nunca mereci.

Triste é quem se desterra

com esperança perdida,

triste foi quem teve vida

metida em mãos de Guerra.

273

OUTRA SUA.

Por esta regra segura

de quem vive sem ventura

nenhũ bem poder haver,

nam perco nem s' aventura

em quanto possa perder.

Antes quanto mais perdido

me vejo mais descansado

por ter ja tudo passado

quanto pode ser sofrido.

Nem ha i cousa segura

na vida que nam tem cura

senam de todo perder

por nam ter desaventura

em que possa empeecer.

274

OUTRA SUA A ŨA CONFISSAM.

Vão em conta meus cuidados

das culpas na confissam,

tristeza, door e paixam,

maiores que confessados.

E que vós nam nos causeis

bem sabeis quanto pecaes,

senhora, pois que podeis

porque nam nos emmendaes?

Estes devem ser lembrados,

que nacem no coraçam,

que os quer e em qu' estam

maiores que confessados.

275

OUTRA SUA.

Bem e mal tam pouco dura

que de pena nem prazer

nam é boa nem má ventura

parte ter.

Tudo vem a ũa conta

onde nam s' oolha rezão,

perde-se satisfaçam

e tanto monta

têla vida como nãao.

Faça de mim ja Ventura

tudo aquilo que quiser,

pois nam dá cousa segura

de molher.

276

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Como contento vevi

el tempo passado.

Amor, desque te servi

em tanto bivo penado

qu' en olvido es a mi,

como contento bivi

el tempo passado.

Que por ser más sin medida

mi dolor y padecer,

no bastó perder la vida,

mas con elha é perdida

la memoria del prazer.

Assi que, amor, por ti

soy del bien tan apartado

que no sé, triste de mi,

como contento bevi

el tempo passado.

277

CANTIGA SUA.

Ũ só bem de grande groria

trouxe comigo de ver-vos:

ter-vos sempre na memoria

que nam posso esquecer-vos.

Cada hora, cada dia,

me salteo de vos ver,

nem é mais o meu viver

qu' enganar-me a fantesia.

Porque, quando na memoria

eu podesse esquecer-vos,

a vida e sua groria

morte é por conhecer-vos.

278

OUTRA DO CONDE.

Quem de mim s' ha-de doer?

A mim soo devo culpar,

pois de todo me fui dar

a quem toma por prazer

de me matar.

Devera, pois conhecia

o mal que tenho sofrido,

de temer o que fazia,

primeiro de ser perdido.

Mas pois eu por meu querer

tal cuidado quis tomar,

rezão é nam estranhar

que tom' outrem por prazer

de me matar.

279

TROVAS QUE O CONDE DO VIMIOSO
MANDOU DE SANTOS A DOM RODRI‑
GO DE CRASTO, QUE ESTAVA NA
BEIRA, PER DOM JOAM LOBO,
SEU GENRO, EM QUE LHE
MANDA NOVAS DE TRES
DAMAS, A QUE ELE
CHAMAVA AS TRES
GUIOMARES.

Das tres grandes Guiomares,

aquela que cá leixastes,

singular das singulares,

nam me leixam seus pesares

dizer como lhes lembrastes.

Mas pois toco na trindade

fazendo uberticlos,

chamam a vós suma idade

e quanto aa saudade,

nam nacestes para nós.

Prosseguindo a rezam,

perdoe vossa mercê,

que m' estorva a paixam

tambem, porque Dom Joam

nunca quis perder maré.

Entendei-me por açenos,

porem nam vos enforqueis

e pois tudo conheceis

per ũ pouco mais ou menos

ja, senhor, bem m' entendeis.

Quis ficar em Santarem,

mas nam sei porque o quis,

aquela que mais vos tem,

por quem nam vivem tambem

outros sessenta d' Avis.

Nam sabemos s' ha-de vir,

se se vai par' Azeitão,

mas desisto presumir,

é alheo o fengir

sendo minha a paixam.

A outra per encubertas

veio todo este caminho,

enjeitando cousas certas

polas veniaes profertas

tam certas de Dom Martinho.

Faz-se santa nestes Santos

por nos dar mores aferes,

faz-se-me chea d' espantos,

mas oo mis secretos lhantos

qu' ũ preverso preverteris.

Fim.

O falar na derradeira

tenho eu por grão perigo,

porque vós estaes na Beira,

eu se cuido na primeira

quero calar o que digo.

Vai-m' assi dessimulando

que me rezão ja responso,

mas eu vou-me confortando,

porque brado por Hernando

e ela morre por Alonso.

280

TROVAS QUE O CONDE DO VI‑
MIOSO MANDOU A SIMÃO DE
SOUSA, DA MANEIRA QUE
HAVIA D' ACHEGAR
À CORTE, VINDO
D' ARZILA.

Guai de mim, se nam tevera

quem lá tem tudo na mão,

a chegar nam m' atrevera,

se vos eu nam conhecera

o pôr desses pees no chão.

Eu vou bem amedrontado

polo custume d' alem,

se lá achar paço picado,

compre-vos tomar cuidado,

que nam fale mal nem bem.

Tençam levo de seguir

todo auto de guerreiro

e damas nunca servir,

haver brigas sobre rir,

ser amigo d' escudeiro.

Direi lá que dei cá tudo,

falarei na valentia,

prezar-m' -ei de siso rudo,

meterei como sesudo

a Dom Nuno senhoria.

Assi espero de notar

o qu' El-Rei disser à mesa,

sofrego no meu lugar,

se comigo atrevessar

hei-d' amostrar que me pesa.

Nas portas, porqu' ee perigo,

siso é quem bem se poupa.

queria buscar amigo

que m' ouvisse o que digo

nas arcas da guarda roupa.

Tenho rocim da carreira,

ja sabeis, mouro mandil,

que supra por d' estribeira,

ha-d' andar alta a conteira,

agulhetas d' ouro mil.

Estribos de tauxia,

nominas, sela de Fez,

dous pontinhos d' aaravia,

quisera levar trosquia

por ir todo d' um jaez.

De pelote, de gibam,

me mandai certo preceito,

se capuz, se balandrão,

para chegar cortesãao

na contenença, no jeito.

Da barba e do cabelo

venha certa a contia,

porque me compre sabê-lo,

que queria ir a pelo

guardando fonfarraria.

Se virdes que vou errado,

vossa mercê o emmende,

lançar-m' -ei mais achumbado,

farei olhas do passado,

porque tudo se entende.

De tudo o que farei,

venham regras decraradas

e assi onde pousarei,

que nam digam que cheguei

lá per via d' alcaladas.

Cabo.

Guardai-vos, nam vades dar

co isto pola porrim,

qu' amigo podeis topar

que cuide que por trovar

mandar trovas cab' em mim.

Pode mais enfadamento

que escusar-me de certeza

e tambem contentamento

de ver vosso fundamento

para minha gentileza.

281

OUTRAS SUAS, DO CONDE.

Tivera mais que perder

se mais tempo esperara,

mas folgara de o ter

porque menos me custara

ter mais vida sem prazer.

Tive tempo e quis vida,

que nam ter milhor me fora,

acabada e perdida,

com mil males bem sofrida

pera se perder nũ hora.

Mudança nam dá lugar

pera mudar a vontade,

mas fez-me desenganar,

que foi milhor acabar

conhecendo a verdade.

Esperando por milhor,

passava danos contente,

conhecendo o desamor

que quando vi o pior

na verdade nam me mente.

É engano nenhũu bem

nem prazer que livre seja,

pois que quando se sostem

aind' ee por mal de quem

se destrue no que deseja.

E enfim por cousa certa

tudo fica dovidoso,

senam ũa encuberta

com que vontade concerta

desconcerto espantoso.

Folgara de ver passar

tristes penas de sofrer,

pera delas me lembrar

e sofridas enganar

pera outras o poder,

desejando sofrimento,

cuidando que lembraria,

e se meu padecimento

nam desse consentimento

qu' a lembrança mo daria.

Tudo vejo acabado,

tudo ja esprimentei

pera ser desenganado,

que de todo mal passado

em mor pena me salvei.

Salvei-me pera perder

desejada perdiçam

e ganhei em me valer

para sempre padecer

minha triste salvaçam.

Quem dirá males primeiros,

d' enganado fengimento,

julgados por derradeiros,

sofridos de verdadeiros,

em comprid' esquecimento?

Quem tempo perde por si,

pague-o em sua vida,

que, se nisso mereci,

nam se ganha nada assi

senam com rezam perdida.

Foi forçado acabar

sem vontade de saber

que me nam poss' enganar,

querendo meu mal passar

enganado do prazer.

Mas, porque me falecesse

tomar isto por conforto,

quis Ventura que soubesse

que, querendo o que quisesse,

nam me quer vivo nem morto.

Quisera poder seguir

o que tam craro entendo,

se podera consentir,

mas quando quero fogir

apartando-me me prendo.

Nam sam livre nem cativo,

pois per força sam isento,

sojeito de mal esquivo

e assi triste como vivo

de cativo me contento.

Cabo.

Querei ja dar concrusam

à vida desordenada,

dai lugar ou defensam,

pois que boons dous meios sam

tê-la ou ser acabada.

Aquele que mais quereis

é o maior bem qu' espero,

por isso nam dilateis

qu' em nenhũu deles podeis

tirar-me o que mais quero.

282

CANTIGA DE PERO
SECUTOR.

Voluntad, no os trabajeis

por alcançar buena vida,

que la mejor escogida

que fue, ni será, ni es,

cuidado es pera despues.

Qu' acordaros del passado

dulce tiempo en que os folgastes,

ya sabeis qu' este cuidado

más os mata que gozastes.

Por tanto no os congoxeis,

voluntad, por buena vida,

pues es cosa conocida

que su gloria muerta es

com la memoria despues.

Grosa do Conde do Vimioso
a esta
cantiga.

De cobrar gosto perdido

olvidarvos ya deveis,

biva quen bive n' olvido,

muera el bevir fingido.

Voluntad no os trabajeis

que de gloria y sossiego

ũu momento posseida

pera siempre queda luego

sospiros, lagrimas, fuego,

por alcançar buena vida.

Ni más procure deseo

dar a mis males salida,

que de vida yo posseyo

consuelo de mi, que veyo

que la mejor escogida

possession que da ventura,

quando se buelv' al reves

su deleite y su dulçura,

que fue, ni será, ni es

cuidado es pera despues.

Por tanto que nel bevir

puede ser bien deseado,

sabiendo que de sofrir

menos mal es el morir

qu' acordaros del passado.

Cesse pues vuessa profia

con que nunca descansastes

y muestre la vida mia

que fue daquel que solia

dulce tiempo em que os folgastes.

Brevemente posseido,

de passion perpetuado,

lhorado, dessocorrido

donde triste fue nacido.

Ya sabeis qu' este cuidado

tan estremo de pensar,

que por martirio cobrastes,

gostoso de desgostar,

qu' el deleite en el pesar

más os mata que gozastes.

Y pues vos moris penando

d' esperança que quereis,

que su gloria buscando

vuesso mal is alhegando,

por tanto no os congoxeis.

Remedio pera sofrir

con dolor no se despida,

que de tan triste bevir

solo queda el morir

voluntad por buena vida.

Cabo.

El qual es seguro puerto

de lembrança tan sentida,

galardam, descanso cierto,

que tarda por no ser muerto.

Pues es cosa conocida

do plazer no se recibe

voluntad, ni dar podeis

qu' el triste que assi bive

que su gloria muerta es

con la memoria despues.

283

CANTIGA DO CONDE
DO VIMIOSO.

Dulce vista y bien passado,

memoria de lo que fue,

trist' espanto,

si me dexasses, cuidado,

con la vida ya porque

cesse tu lhanto.

¿ Mas que se puede guanar,

do nunca falta ventura

ni bevir,

pera poder olvidar

quanta tristeza segura

el morir?

¡ O bevir demasiado

y sin vida! ya porque

duree tanto

el dolor de lo passado,

con que no muere la fe

y el espanto.

284

DO CONDE DO VIMIOSO A
ŨA MOLHER QUE
SERVIA.

Remedio de minha vida,

descanso de minha pena,

minha morte conhecida,

por quem meu mal se ordena.

Vós só me entristeceis

e m' alegrais,

vós, senhora, me valeis

e me matais.

Por vós é meu mal sem fim,

e sem vós viver nam posso,

nem tenho mais part' em mim

que aquilo que é vosso.

Vós soes só de meu prazer

destruiçam

e vós soes meu gram querer,

meu coraçam.

Assi me tendes vencido,

que outro bem nam espero,

nem me tem mais perseguido

cous' algũa que o que quero.

Querer-vos me atormenta

desamado,

desamar-vos m' acreçenta

moor cuidado.

Os dias que nam vos vejo

moiro triste desejando,

vendo-vos, desesperando,

maior fica meu desejo.

Nunca posso ledo ser

por vos amar,

que nam dobre padeçer

meu descansar.

Tam fora de meu sentido

o que vos quero me tem,

que cuido que me convem

servir-vos e ser perdido.

E com este tal cuidar

nunca repousa

meu querer e desejar

em outra cousa.

Nam ha mais em minha vida

que viver meu sentimento,

nem menos no mal que sento

que serdes dele servida.

Assi é desordenada

minha pena,

que de ser mais consolada

se ordena.

S' algũ hora apartar-me

me lembra de vos servir,

nam vivo em consentir

o que sinto em lembrar-me.

Nem em mais torno a viver,

qu' enquanto posso

saber que nam pode ser

nam ser vosso.

Tanto sinto o contrairo

daquilo com que folgaes

que tomo, porque mos daes,

meus males por seu repairo.

Pois vede qu' em assi sendo

nam nos sente,

que fará por vós vivendo

descontente.

Cabo.

De quem me posso aqueixar,

a quem me posso valer,

pois vós soes meu descansar

sendo vós meu padecer?

Senhora, de minha vida

havei ja doo,

pois por vós el' ee perdida

e vós soes soo.

285

OUTRAS SUAS A ESTA
MOLHER.

Se nam tivesse poder

em mim de vos nam amar,

era bem de vos sofrer.

Mas se me posso valer,

porque me leixo matar?

Nam serdes de mim querida

querendo podia ser,

mas amar-vos sem medida

me faz perdendo a vida

que o nam posso querer.

Assi que, sendo de grado

a vos querer sometido,

é a mim mais que forçado

que nunca perca cuidado

de me ver por vós perdido.

Que s' estaa a liberdade

em meu querer deste prigo,

amo-vos tam de verdade

qu' ee de força a vontade

de sofrer o mal que sigo.

E co esta fee forçosa

de mim mesmo costrangida,

minha vida dovidosa

é a mim mais trabalhosa

que por ser por vós perdida.

E isto porque conheço

que nam posso obrigar

por quem moiro e padeço,

que s' aa morte me ofereço,

eu por mim a vou tomar.

Mas que vós nam me mateis,

senhora, nem conheçais,

porque mais pena me deis

consentis, pois nam valeis,

e vós mesma me matais.

Matais-me com fermosura,

gentileza e descriçam,

mata-me vossa fegura

por minha boa ventura,

que vossa vontade nam.

Fim.

Que se por vosso querer

minha morte s' ordenasse,

que mais bem pod' i ser

que poder em mim haver

cousa que vos contentasse?

Isto me satisfaria,

que mil anos vos servisse

outro bem nam no queria,

mas bem sei que nam seria

tam ditoso que o visse.

286

CANTIGA SUA.

Oh quem nunca conhecera

todo bem que descobri

em vos ver, porque a si

e a ele nam perdera!

Do descanso conhecido

que soo fica por memoria,

nam ha mais, sendo perdido,

que dar pena sua groria.

E pois eu tanto perdi,

servir-vos nunca devera,

pois que ja sem vós de mi

nenhũ remedio s' espera.

287

DO CONDE DO VIMIOSO A
ESTE MOTO, PARTINDO-SE
ŨA MOLHER DONDE
ELE ESTAVA.

Moto.

Nunca tive tal cuidado.

Quando vendo-vos me via

de males acompanhado,

quando morte padecia

na vida qu' entam vevia

nunca tive tal cuidado.

Porqu' entam se me penava

sem esperança, tristura,

minha pena s' abrandava

em ver vossa fermosura.

Agora, triste queria,

com lembrança do passado,

fim que vida me seria,

pois quando morrer me via

nunca tive tal cuidado.

288

CANTIGA SUA QUE FEZ A
ŨA MOÇA DE SUA DAMA,
QUE SE CHAMAVA ES‑
PERANÇA, E ELE NAM
NA PODIA VER.

De quanto he trabajado,

triste, por vos conocer,

lo que tengo aprovechado

es que soy desesperado,

Esperança, de vos ver.

Busquévos, como me vi

com cuidados sempre tristes,

mas falhé que vos perdi

em me dar a quen vos distes.

Triste de mi, desdichado,

que vida puedo tener,

pues con mal nunca menguado

me veo desesperado,

Esperança, de vos ver.

289

OUTRA SUA, VENDO ŨA MO‑
LHER A QUE QUISERA BEM,
EM QUE OUTREM TINHA
PODER, HAVENDO MUI‑
TO QUE A TINHA
ESQUECIDA.

Vi mi mal enverdecer

mi passion y mi cuidado,

vi triste, cativo ser

el coraçon y querer

de quien tenia olvidado.

Reformóse mi tristura

muy mayor que dantes era,

ordenó mi desventura,

mi vida tan lastimera

que jamas mi padecer

no sea remediado,

viendo cativo seer

el coraçon y querer

de quien tenia olvidado.

290

OUTRAS DO CONDE DO
VIMIOSO EM ŨA
PARTIDA.

¡ Oh gloria de mi desseo,

tristeza de mi cuidado,

bien que todo es mudado

en dolor, porque no os veo!

Aora sin vervos siento

qu' haveria

el morir por alegria,

viendo vosso merecimiento.

Ventura desordenada

ordenó que me partiesse,

porque mi vida se viesse

biviendo ser acabada.

¡ Oh quanto mejor me fuera

no nacer,

qu' apartarme de vos ver,

mi querer, sola un' hora!

Que segun me atormenta

ver quan mala fue mi suerte,

es pera presto la muerte,

es un bem que me contenta.

Y el bevir más me condena

a ser penado,

fue a mi demasiado

por ser causa de mi pena.

Que puedo triste dezir

de passiones desiguales,

con que no faga mis males

menos asperos de sofrir.

De dezilhos yo deveria

escusarme,

si no fuesse confortarme

con lo que me contraria.

Yo vos vi, quando perdi

esperança y libertad,

y gané mi voluntad

ser del todo contra mi,

ganando que no falhassen

d' entam luego

mis males nunca sossiego

con que menos me penassen.

Mil tormentos he sofrido,

calhando lo que sentia,

los dias que encobria

verme del todo perdido.

Porque más me congoxava

vos pesar,

haver yo de decrarar

el dolor que m' aquexava.

Mas desque mi afeicion

no pudo ser encubierta,

la menos parte, sed cierta,

se supo de mi passion,

porque nadia poderia

bien dezir,

quanto yo pude sofrir

por vos vida y muerte mia.

Cuidados, lembranças tristes

de continos disfavores,

mudanças, dudas, temores,

por vida darme quesistes.

Desque mi fee conocistes

sin valerme

esperança de perderme,

sospiros, lhoros, me distes.

Y con esta vida tal

me distes por más tormento

ser mayor el sentimento

de lo que era mi mal;

nunca siendo rependido,

mal holgando

de me ver por vos penando

de todo bien despedido.

Mas de todo no contenta

la triste ventura mia

em dobro lo que sentia

de passiones m' acrecienta,

ordenando que mi vida

s' apartasse

de vos ver, porque falhasse

más causa de ser perdida.

Do con tal apartamiento,

si si sufre mi bevir,

es com groria de sentir

ser por vos my perdimiento

y esperar, que puede ser,

que bolveré

do con vervos sofriré

mi descanso el padecer.

Fim.

Mas si tarda tal remedio,

fuerça es de acabar

el bevir y sospirar

con passiones tan sin medio.

Por lo qual mi bien vos pido,

si s' ordena,

que muerto creais mi pena

y amor que vos he tenido.

291

CANTIGA SUA.

Lo que más muerte ordena

a mi vida qu' es morir,

ser forçado encubrir

de todo mi triste pena.

Forçado de fuerça tal

que muero por encobrilho

y soy cierto que dezilho

me seria mayor mal.

Assi triste que s' ordena

de mis males encobrir,

que no tarde el morir

por galardon de mi pena.

292

OUTRA SUA.

Yo vi triste sojuzgarme

do ser libre bien quisera,

mas halhé que libertarme

puede ser quando yo muera.

El sesso con la razon

precuravan más prenderme,

yo mirando mi passion

deseava defenderme.

Tanto que por libertarme

morir luego escojera,

mas razon de sojuzgarme

me forçó hasta que muera.

293

OUTRA SUA.

Es tan grave mi tormento

que si me basta mi fe,

es por el merecimento

con que yo me cativé.

Querer olvidar mi mal

seria loca porfia,

pues que es pena mortal

y la su fin es la mia.

Sufro tal padecimento,

que si me basta mi fe

es por el merecimento,

con que yo me cativé.

294

CANTIGA.

El morir triste consiento

que muy mejor me seria

que no bevir todavia

com tristura y tormento.

Ya la mi desaventura

tarda mucho em dar plazer

y arreda la cordura

y acrecienta el querer.

Pues com tal pedecimento

la muerte mejor seria

que no bevir todavia

com tristura y tormento.

Grosa do Conde do Vi-
mioso a esta cantiga.

Pues mi vida vos desplaze

el morir triste consiento,

que segum mi mal se faze,

claro veo que vos plaze

de mi triste perdimiento;

que ser menos mi querer,

que muy mejor me seria,

aunque vuesso merecer

lo dexasse en mi poder

ya triste no poderia.

Mas queria acabar

que no bevir todavia

sin poderme remediar,

pues la vida da lugar

a la triste passion mia.

Que quem sufre desamor

con tristura y tormento,

luego ve que es mejor

la muerte que el dolor

de su triste sentimento.

¿ Que puede hazer cuitado

y a la mi desaventura

de más dolor y cuidado,

que tenerme apartado

de ver vuessa fermosura?

Pues querer tan sin enganho

tarda mucho en dar prazer

lo que vivo triste planho,

qu' el remedio de mi danho

es morir sin me valer.

Turbado me ha amor

y arreda la cordura,

pues falho que es mejor

sojeicion con disfavor

que descanso con soltura.

Faze ser mis dias tristes

y acrecienta el querer,

porque sois la que vencistes

a mi vida, quando distes

triste fim a mi plazer.

Siempre vivo con deseo,

pues con tal padecimento

mis tristes cuidados veo,

que sintais lo que posseo

o muera con mi tormento.

Que con tal pena vevir

la muerte mejor seria,

pues se da por más sentir

maas tardança al morir

de quien muere todavia.

Cabo.

Bien se muestr' en mi firmeza,

que no bevir todavia

me libraraa de tristeza,

pues tengo vuessa crueza

y mi fee por companhia.

Y pues tal vida me daa

con tristura y tormento,

gran remedio me seraa

el morir, quando vernaa

acabar con lo que siento.

295

DO CONDE DO VIMIOSO A
MANUEL DE GOIOS, NAM
QUERENDO SUA DAMA
QUE A ELE SER‑
VISSE.

Amores, que meu cuidado

fizeram ser de tristura,

por me verem mais penado

me deram ja sem ventura

por maior pena soltura.

Soltura de nam quererem

ver-me em sua prisam,

porque sabem, se quiserem,

que sempre eu certo sam

e seu é meu coraçam.

Ter-me por seu avorrece

quem me forçou a o ser,

o triste de mim padece

em desejar e querer

por descanso seu padecer.

Assi que sempre penando

vivo livre e vencido,

dobram-se meus males, quando

me vejo d' amor ferido

e dele avorrecido.

Soo me sostem esperar

o fim de meu mal comigo,

que nam devia tardar,

pois desta vida que sigo

o viver é mor imigo.

E com esta esperança

minha dor é mais crecida,

porque com sua tardança

se alonga minha vida

e nam é ja concrudida.

Em tal estremo me vendo,

a vós me quis socorrer,

senhor meu, porque entendo

que com vosso entender

me possais vós soo valer.

Mas se deste mal tam forte

cura nam poder haver,

vós sintireis minha morte

e senti mais o viver,

pois vos dooe meu padecer.

Reposta de Manuel de Goios
polos
consoantes.

Ando triste, desvelado,

após toda criatura,

provicand' este cuidado

e acho qu' esta largura

é por maior estreitura;

pera milhor nos prenderem,

soltam com a condiçam

e têm lá para nos terem

nossa firme afeiçam,

que vence toda rezam.

O que me disto parece

sempre lho vereis fazer,

que a quem lhe mais merece

estimam menos perder,

polo nam satisfazer.

Polo qual isto julgando

que sejais muito sofrido,

da parte d' amor vos mando,

porqu' assi fere Copido

o vencedor com' o vencido.

Vosso gram desesperar

é da morte tam amigo

que nam se pod' apartar

a vida deste perigo,

qu' este bem vos traz consigo.

E deveis ter confiança

em cousa tam conhecida

e nunca fazer mudança,

por ser logo guarecida

ou primeiro destroida.

Deste mal ando gemendo

e nam posso guarecer,

nem somente me defendo

nem vos posso defender

de quem me tem em poder.

Em tam desastrada sorte

nam ha cura de saber

nem vida que a conforte,

mas viva vosso querer

pera mais cedo morrer.

296

ESPARÇA DO CONDE.

Em la vida que amor

tiene poder y su fuerça,

la Ventura da favor

al qu' acaba su dolor

com la vida que la esfuerça.

Yo em mi triste lo siento

con mi mal que es tam fuerte

qu' em plazer halho tormento

y en esperar soy contento

remedealho la muerte.

297

VILANCETE DO CONDE
DO VIMIOSO.

Meu bem, sem vos ver

se vivo ũu dia

viver nam queria.

Caland' e sofrendo

meu mal sem medida,

mil mortes na vida

sinto nam vos vendo.

E pois que vivendo

moiro todavia,

viver nam queria.

298

OUTRA SUA.

A vida sem ver-vos

é dor e cuidado

que sinto dobrado

querend' esquexer-vos.

Porque sem querer-vos

ja nam poderia

viver ũ soo dia.

Ja tanta paixam

valer nam podera,

se vos nam tivera

em meu coraçam.

Sem tal defensam,

meu bem, ũ soo dia

viver nam queria.

Ajuda de Garcia
de
Resende.

Sospiros, cuidados,

paixões de querer,

se tornam dobrados,

meu bem, sem vos ver;

nom sinto prazer,

sem vós ũ soo dia

viver nam queria.

Nam quero nem posso,

nem posso querer,

viver sem ser vosso
e vosso morrer.

Pois isto ha-de ser,

por morte haveria

nam vos ver ũ dia.

299

DO CONDE DO VIMIOSO.

Ó morto sentido de vivo sentir,

valido engano d' enganoso valer,

começo de cousas qu' em nada vam ter,

poucas cautelas, gram presumir,

perdido o geral, geral no fengir,

estreitos preceitos de bem te tratar,

por muitos que fazes em tudo falar

te deve quem ouve sempre servir!

Ó doc' escondido, nojoso rumor,

que nome porei a tu excelencia,

que tu nam es obras nem es eloquencia,

mas daqui nace teu doce sabor!

Saber te navega e nam ser senhor

e este saber porem guarnecido,

que pois per siso em ti é perdido

vede que fará ũ gram sem sabor!

Mas quem haveria que nada cuidasse

que de ti podia mostrar nem dizer,

se aquilo que fica par' o entender

em bem se calar se nam declarasse?

Sam cousas sem nome que quem nas mostrasse

per exce de poucos ind' as fiaria,

porque nam caissem em tal fantesia

que ja decraradas as mais nam danasse?

Pregunta do Conde do Vimioso
a Garcia de Reesende.

Qual é quela cousa que nunca se vio

e é mais conhecida por seu parecer,

para a bem sentir ciencia comprio,

sendo sentida sem entender?

Contraira e amiga do seu mesmo ser,

querida de quem por ela padece,

a quem mais descansa mais avorrece,

do bem e do mal efeito a meu ver?

Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.

Saber, gentileza, em vós s' envestio,

vertude quis tanto em vós frorecer,

que quem vos nam serve nem inda servio

seraa por bem craro vos nam conhecer.

E eu, por servir-vos, vos quis responder

e digo qu' em vós se vê e conhece,

é cousa de sorte que, se desfalece,

falece amizade e gram bem querer.

300

BREVE DO CONDE DO VIMIOSO D' Ũ MOMO
QUE FEZ SENDO DESAVINDO, NO QUAL
LEVAVA POR ANTREMES ŨU ANJO
E ŨU DIABO, E O ANJO
DEU ESTA CANTIGA
A SUA DAMA.

Muito alta e eicelente Princesa

e poderosa Senhora:

Por m' apartar da fee em que vivo,

muitas vezes fui tentado deste

diabo e de todas minha firmeza

pôde mais que sua sabedoria, por­-

que tam verdadeiro amor de tam

falsas tentações nam podia ser ven­-

cido. E conhecendo em seus esperi-

mentos a grandeza de minha fee

me tentou na esperança, pondo

diante mim a perda de minha vida

e de minha liberdade, havendo por

empossivel o remedio de meus

males. E com todas estas cousas

nam me vencera se mais nam pode­-

ram os desenganos alheos que o

seu engano, com os quaes desespe-

­rei e fui posto em seu poder. Mas

este anjo, que me guarda, vendo

que minha desesperança nam era

por mingua de fee nem minha

pena, por minha culpa se quis lem‑

brar de mi e de quem me fez perder

em me trazer aqui, porque com sua

vista o diabo me soltasse, e ela,

vendo meus danos da parte que

neles tem, se podesse arrepender.

Cantiga que deu o anjo.

Senhora, no quiere Dios

que seais vos homecida

em ser elh' alma perdida

de quien se perdió por vos.

Ordenó vuestra crueza

qu' este triste se matasse

en dexarvos y negasse

vuestra fee qu' es su firmeza.

Mas ha permetido Dios

que por mi fuesse valida

su alma y que su vida

se torn' a perder por vos.

301

DE DOM DIOGO, FILHO DO MAR‑
QUÊS, EM QUE S' AQUEI‑

XA CONSIGO

MESMO.

Se vivo com tanto mal,

justa rezam me sostem

saber certo que nam tem

comparaçam nem igual.

E ser disto sabedor

me faz ficar no sentido

qu' ee conforto do vencido

ser maior o vencedor.

Outras mil rezões daria

em favor deste cuidado,

mas nam pode ser falado

quanto sente a fantesia.

O qu' ela alcança a meu ver

nam se deve de falar,

porque seraa começar

cousa empossivel de ser.

O que posso maginar

de tam alta perfeiçam

é de tal costelaçam

que nam se pode alcançar

nem pode ter certa conta,

porque tem sem conto tudo,

donde falar e ser mudo

entendo que tanto monta.

Ó fantesia perdida,

ó maginaçam cansada,

porqu' andais tam derramada

após quem vos nam daa vida?

Se tevereis ũu soo dia

esperança desta graça,

quem perfia mata caça,

mas a vós mata perfia.

Da vida sem esperança

a causa me satisfaz,

porqu' ela consigo traz

esta mesma confiança.

Pois como hei-d' esperar

o que nunca cuidei ter?

E como nam pode ser,

nam no ouso desejar.

O grande contentamento,

que tenho de ser perdido,

me faz ser arrependido

do tempo que fui isento.

Mas que me presta cuidar

que tengo este querer,

pois quem me tem em poder

me pode dele mudar?

Fim.

Ordena-se minha fim,

a culpa temo-la nós,

sam engeitado de vós

e esquecido de mim.

Mas isto tem que lhe gabe

meu tormento tam estranho,

que nam ha i mal tamanho

que nam s' acabe ou m' acabe.

302

DE DOM DIOGO A ŨA GUEDE‑
LHA DE CABELOS, QUE VIO À
SENHORA DONA BRIATIS
DE VILHENA.

Cabelos de fremosura,

que me tanto namoraram,

ditosa minha ventura,

que sereis a sepultura

dos olhos que vos olharam.

Oh lembrança assi presente

em minha triste memoria,

achada por acidente,

mal de que sam tam contente

que me fica por vitoria!

E pois com isto se cura

os danos que me causaram

vossa nova fremosura,

alta foi sua ventura

dos olhos que vos olharam.

303

DE FRANCISCO DA SILVEIRA,
COUDEL-MOOR, A ALVARO DA
CUNHA QUE SAHIO DO PA‑
ÇO EM ROCIM MAGRO
E COM GRANDE
ALFORJADA.

Vimos-vos d' ũa janela

hoje do paço sahir

em rocim que fez bem rir

ũa donzela.

Ieis jentil caminhante

e temeroso,

mais meirinho que galante,

mais desairado qu' airoso.

No alforge gram panela

enxergámos de cá ir,

que foi azo de mais rir

esta donzela.

304

TROVAS SUAS A ŨA DAMA
SEM SE NOMEAR.

Dama, que o fostes jaa

e que nam soes ò presente,

velha que mil anos haa,

saam que parece doente.

Mantendes mal a menajem,

hetega de mil maneiras

garganta, mãos e trincheiras

dos que sô a terra jazem.

Ossos de qu' hei piadade

qu' a todo paço avorreçe,

tam imiga de verdade

como de quem bem parece.

Sobre todas envejosa,

conhecê-vos eeramaa,

qu' inda que fosseis fermosa

vosso tempo passou jaa.

Deixe o paço e as damas

quem for da vossa maneira,

inda que para mudanças

sereis a moor dançadeira.

É tambem d' aconselhar,

por muito que tendes visto,

podereis aproveitar

e servir o paço nisto.

Mas vosso conselho vãao,

que sae desse cascavel,

nam no ouvir era mais sãao,

porqu' ee azedo como fel.

Soes neste paço peçonha

e antr' as damas danosa

e soes a moor mentirosa

que vi e mais sem vergonha.

E nam digo eu soo isto,

mas a muitos o parece,

e no que vos acontece

o podeis jaa ter bem visto,

porque de quantos quereis,

vossa mercê quem na queira

nam acha nem por terceira

de ventura o achareis.

Tomai ora este conselho

em que seja d' homem moço:

lançai-vos ante nũ poço

que curardes mais d' espelho.

Mas isto, senhora, ouvi:

casai-vos co Salvador,

e servi Nosso Senhor

que nam soes jaa para aqui.

Fim.

Quem por si isto tomar

dessemule, nam se queixe,

porque quem mal quer falar

cumpre qu' em si falar leixe.

Nam cure d' arrapiar,

pois em salvo nam repica,

porque me faraa tornar

a dizer o qu' inda fica.

305

GROSA DE FRANCISCO
DA SILVEIRA A
ESTE MOTO:

Em pago del mal sofrido.

Choro-te, meu coraçam,

hei-te por mais que perdido,

pois te dam por galardam

tristezas, dor e paixam

em pago del mal sofrido!

Tuas firmezas passadas,

teu amor, tam de verdade,

agora te sam pagadas

em dores novas, dobradas,

sem nenhũa piadade.

Que novas, meu coraçam,

pera ser bem recebido,

que te dam por gualardam

tristezas, dor e paixam

em pago del mal sofrido!

306

CANTIGA DE FRANCISCO
DA SILVEIRA.

Que dor, que pena tam forte,

nam sei quem possa co ela,

vejo vir a olho a morte,

nam posso guardar-me dela.

Se pode ser moor paixam,

se pode ser moor tristeza,

ver perder meu coraçam,

ver-m' eu ir a perdiçam

sem valer fé nem firmeza.

Mas pois tal quis, tal soporte,

se dor tenho, moira nela,

pois vejo vir minha morte

e nam sei guardar-me dela.

307

OUTRA SUA.

Quem meu coraçam me pena,

quem de meu siso m' embroca,

quem todo meu mal m' ordena,

na cinta traz ũa roca.

Oh que ar, que parecer

dá a tudo quanto traz,

mas o que co ela faz

deve de mim de fazer!

Remedio seraa da pena

que jamais de mim se troca

pola dor que se m' ordena

deste nam fiar sem roca.

308

DE FRANCISCO DA SILVEIRA.

Que fera cousa de ver,

quam maa é de soportar,

que gram dor pera sofrer

haver eu triste de ter

olhos pera tal olhar!

Haver-vos de ver partir

e a mim ver-me ficar

nam no posso consentir,

nem que al deva fengir

nam vo-lo posso mostrar.

Ó olhos, porque quebrados

nam fostes, se tal sabieis,

por d' hoj' avante dobrados

nam verdes vossos cuidados

tam contrairos dos que tinheis!

Oh quem de tal se lembrara,

quanto bem a si fizera,

quanto mal remedeara!

Oh quanta dor escusara

s' os olhos foora tivera!

Oh quem podesse dizer

quanto mal consigo tem,

quem no podess' escrever

pera quem quisesse ver

quanta paixam d' amor vem!

Mas o nisso trabalhar

é trabalho por de mais,

é lançar agua no mar,

tam impossivel contar

sam minhas penas mortais.

Mas quem meu mal nam recea

fui ver e ver-me nam quer,

vim com muita maa estrea,

ca foi ũu ter de candea

que tem marido a molher.

Tal ir laa fora escusado,

por nam vir com más paixam,

mas pois tudo vai errado,

vença meu triste cuidado,

vá tudo contra rezam.

Quantos males, quantos danos,

quantos nojos e tristezas,

abastaram desenganos,

abastaram-m' os oit' anos

que me leva sa crueza.

Abastara-me sentir

minha gram pena e paixam,

mas pola assi ver partir

sô poder d' ũu dragam ir

nam me fica coraçam.

Que cousa tam piadosa

nam s' haja por sem pecado

quem deu dama tam fermosa,

tam galante, tam airosa,

a homem tam infernado!

Que lhe viera por sortes

por ũu gram reino salvar

qu' escusara a mil as mortes,

por suas condições fortes

nam se lhe divera dar.

Tam moça dama, tam linda,

por mão de Deos soo foi feita,

em bondades é enfinda,

a este mundo foi vinda

por ser dele a mais perfeita.

Quem n' assi encaminhou

que conta dará a Deos dela?

Como nam moiro ond' estou

por nam ver quem ma levou

nem tal fim a mim e ela?

Mas pois tudo foi errado

por ela ja no começo,

quem me manda ter cuidado

de quem me tem tant' errado

e feito  tanto despreço?

Mas que presta esta razam

nem outras cem mil que calo,

que nam quer meu coraçam

nem menos minha naçam

seu amor nunca leixá-lo?

Ó gram desaventurado,

sem nenhũu remedeo ja,

quanto mal tenho, coitado,

ó triste desesperado,

que farei e que faraa?

Que farei, pois tal senhora,

por minha triste ventura,

perdi hoje nesta hora?

Ond' irei aqui nem fora

ond' ache tal fermosura?

Onde me posso ja ir,

ond' iraa quem de vós parte,

que outrem possa servir

nem soo poder enfengir

em outra nenhũa parte?

Quem pod' achar em que ache

o dizemo do qu' ha em vós?

Que virei de quem m' empache,

ja nam ha de quem m' agache

nem a fez Deos antre nós.

Que gosto posso levar,

quem falar soomente m' ousa,

quem poderei ja olhar,

de que posso ja gostar,

pois perdi a milhor cousa?

Que vida pode ser vida

nem Portugal, Portugal,

se dele vós ja soes ida?

Vej' eu quem foi destroida,

começo, fim, deste mal.

Em Santarem começou

esta morte, se me credes,

neste tredor s' ordenou,

agora nele acabou

com' eu sinto e todos vedes.

Ele foi começo e meo,

fim de tod' esta crueza,

dele e da vida descreo,

pois nele por ela creio

nunca sair de tristeza.

O que milhor ja seria

era acabar esta vida,

por ver se descansaria,

por morte s' acabaria

dor tam alta e tam sobida.

E s' ela remedio tem

pera mim, ela m' acabe,

pois morte que em ninguem

dos qu' estam nem vam nem vem

remedio a mim se nam sabe.

Mas tam mofino sam eu

qu' agora que me vem bem,

quem este cabo me deu

por nam ser descanso meu

morte nam quer que me dem.

Agora é o meu viver,

ha-me d' achar Antecristo,

seguro sam de morrer,

por mais inda padecer

té vinda de Jasu Cristo.

Oh que dor me dam lembranças,

que gram pena daa cuidar,

tristes, tristes esperanças,

porque taes desesperanças

me quisestes juntas dar!

Vejo-vos ir e leixar-me,

de mim nam hei-de doer-me,

quem ha-de remedear-me,

se vós quisestes matar-me

e folgastes de perder-me?

Nam s' entenda este perder

que é por m' outrem ganhar,

ca isto assi pode ser

como se poderaa ver

ja no mundo vosso par?

Per aqui vereis quam certo,

minha vida, vosso sam,

em que da morte tam perto

me tendes com' ee incerto

em mim vosso gualardam.

Em hora triste naci,

triste foi minha ventura,

trist' o dia que vos vi,

pois d' entam prazer perdi

e d' entam meu mal me dura.

Mas porque, meu bem, vos via,

todo meu mal bem passava,

vossa dor nam me doia,

porqu' o mal que me fazia

vossa vista mo curava.

Por isso nenhũ mal vosso

pera mim nam era mal,

que com todo o vosso posso,

mas este é d' ambos, é nosso

e por isso me fez tal.

Ca s' ele fora soo meu,

sem vós terdes parte nele,

tudo bem soportar' eu,

mas vossa morte me deu

a mim morte que nam ele.

Assi que por isso ja

desespero de folgar,

porque sem vós cá nam ha

pera mim nem s' achará

quem prazer me possa dar.

Nem menos quem mal me faça

nem de quem seu dano sinta

encuberto, nem de praça,

nem em jogo, nem por graça

meu coraçam quer que minta.

A morte que viverei,

enquanto me nam levar,

é esta qu' aqui direi,

inda que triste nam sei

tam triste vo-la pintar:

viverei sempre chorando,

viverei mal me dizendo,

por vós, meu bem, sospirando,

por vosso mal brasfemando

e mais qu' oo meu me doendo.

Farei vida contemprando

falarei comigo soo,

sempr' em vós triste cuidando,

nunca d' outrem me lembrando

e aqui darei o noo.

Cada vez que cá vir festas

pera mim ham-de ser dores,

por sestas lembraram sestas

e honesta por honestas

e por amores, amores.

Ũu tempo outro lembrará,

ver damas lembrança faz,

ver paixam paixam faraa,

ver prazer a dobrará

em quem mim dobrada jaz.

Serãos lembram os que ja vi,

noite faz noite lembrar,

esperança a que perdi,

dia lembra dia aqui,

per lũar lembra lũar.

Ver casas em que vos vi,

ver com quem em vós falava,

lembrando-m' o que perdi,

oh triste, que nam morri

pois morte m' ist' escusava!

Que nam moira, que seraa

moor morte que se morresse?

Qual é o que poderaa

sofrer a dor qu' isto daa

qu' ante morte nam quisesse?

Ora ja tud' ist' acabe,

escusa de mais lembrança,

ca pera quem ela cabe

a verdade milhor sabe

quem me tirou esperança.

C' a lembrança nem sem ela

nunca muda fé inteira,

foi e serei sempre dela,

meu coraçam esquecê-la

nam quer nem pode que queira.

Fim.

Acabad' ee minha vida

e meus tristes fundamentos,

ja fez fim, ja é perdida,

ja cabou, j' é destroida,

mas nam ja meus pensamentos.

Estes seram sempre vivos,

estes tereis sempre laa,

eu com cuidados esquivos

cuidando no que j' ovi-vos

farei fim mui cedo caa.

309

CANTIGA SUA.

Senhora, soes perigosa,

a vós ninguem se registe,

nam soes nada piadosa,

soes sobre todas fermosa

e eu sobre todos triste.

Fostes do reino lançada

por nele fazerdes mal

nam coma dama infernada,

mas coma cousa danada

destroieis Portugal.

Tal ida foi mais danosa,

coraçam, tu o sentiste,

ó crua, nam piadosa,

soes sobre todas fermosa

e eu sobre todos triste!

310

GLOSA SUA A ESTA
CANTIGA.

Con qualquer pena que yo siento,

ver meu dano tam sobido,

ver meu triste perdimento,

se nam fora apartamento,

tudo bem fora sofrido.

Mas pois é, nam quero vida,

ante morte buscar venho,

por ser toda a dor que tenho

por vuestra causa venida.

Yo vivo mucho contento

vendo-me por vós perder,

hei por bem o mal que sento

por vosso merecimento,

por vosso gram parecer.

Ver minha vida perdida,

ver meu mal sempre presente,

com tudo fora contente,

mas no com vuessa partida.

Mas a todo mi penar,

se ver-vos sempre pudera,

pesar nam fora pesar,

meu mal nam fora cansar,

ante descanso me dera.

Mas pois nam presta que fale

meus nojos desesperados,

ja a meus tristes cuidados

ũu solo remedio cale.

El qual es siempre pensar

em vossa gram fremosura,

pera meu mal esforçar

e milhor poder passar

minha grã desaventura.

Mas que co ela me cale,

pois que nela hei-d' acabar,

meu descanso é cuidar

en la causa quanto vale.

311

CANTIGA SUA.

Vossa grande crueldade,

minha grã desaventura,

vossa pouca piadade

com minha gram lealdade

de mestura

fizeram minha trestura.

A qual ja dentro em mim jaz,

tanto nos bofes metida

que m' entristece e me faz

que me pese co a vida.

Cesse vossa crueldade,

mude-se minha ventura,

que pois tendes fermosura,

tende tambem piadade

de mestura,

nam me mate esta tristura.

312

OUTRA SUA.

Meus olhos, podeis quebrar,

que mingua me nam fareis,

pois vos nam hei-de mostrar

em que ja prazer me deis.

Nam me podeis fazer bem

nem vos hei nunca mester,

pois, meus olhos, nam vos quer

quem em seu poder vos tem.

Podeis-vos ambos quebrar,

que mingua me nam fareis,

pois vos nam posso mostrar

em que jaa prazer me deis.

313

OUTRA SUA.

Triste vida será a nossa,

triste é meu coraçam,

trist' ee minha pola vossa,

mas a vossa por mim nam.

Tristes dias viveremos,

tristes seram nossas vidas,

o passado choraremos,

que nam temos,

tendo ja as vidas perdidas.

E por isso a vida nossa

de ser triste tem rezam,

trist' ee minha pola vossa,

mas a vossa por mim nam.

314

OUTRA SUA.

Nam tem ninguem mais cuidado,

nem vive com mais tristura,

nem é pior esquençado,

nem tem mais desaventura.

De prazer todos mais tem,

de folgar mais s' acharaa,

mas ser mais triste ninguem

bem impossivel seraa.

Eu sam o desesperado,

sam o triste sem ventura,

nunca me leixa cuidado,

sempre me crece tristura.

315

OUTRA SUA.

Com quanto de vós s' aqueixa,

senhora, meu coraçam,

soidade nam o leixa

de vossa conversaçam.

Despois de vossa partida,

todolos dias me mata,

nam tem conto nem medida

as mil dores que me cata.

Consigo morre e se queixa,

quando vê tanta rezam,

mas soidade nam leixa

de vossa conversaçam.

316

DE JOAM FOGAÇA A DOM
GONÇALO COUTINHO.

Nam s' engana,

senhor, quem quiser dizer

que a senhora Dona Joana

de Vilhana

tem no melhor parecer

que se vio nem ha-de ver.

Se nisto digo verdade

seja-me Deos testemunha,

tambem Alvaro da Cunha,

qu' ee homem de tal idade

que nam diraa falsidade.

Nem s' engana

quem verdade quer dizer

que a senhora Dona Joana

de Vilhana

tem no melhor parecer

que se vio nem ha-de ver.

Para quem a ler.

Esta seja provicada

onde vos bem parecer

e, quem na ler,

guarde-se de a dizer

abiarozada.

317

DE JOAM FOGAÇA A JOAM COR‑
REA, COMENDADOR D'ALJAZUR,
POR SE DIZER QUE SE PER‑
DIAM OS MOVEIS DOS
COMENDADORES.

Quem tever gentil comenda,

se meu conselho tomar,

nam gastaraa sua renda

em nenhũu pano d' armar.

Ca segundo se cá diz,

e eu avento,

de ter cousa sem raiz

nam se faça fundamento.

E desse gado vacum

que a casa alumea

digo, senhor Joam Correa,

que nam tenhais sooment' um,

ca se vos vem peitogueira

ou ũa dor de costado,

dareis o boi a cruzado

sem achardes quem no queira.

Reposta de Joam Correa.

Sem dinheiro ou boa prenda

a risco corro jantar

e por isso é bom provenda

para s' homem segurar;

sede vós, senhor, juiz,

qu' eu o consento,

ca certo por bem o fiz

lançar-me cá ò convento.

E pois and' este zunzum,

que minh' alma ja arrecea,

convem, senhor, que vos crea

em nam ter moval nenhum.

E antes que a calveira

me assentem, é forçado

que o meu coopo picado

vaa por ũa panasqueira.

318

DE JOAM FOGAÇA A ŨA MULA
NOVA DO COMENDADOR‑
-MOOR, QUE ACHOU
AO BARCO DE
SACAVEM.

Rifam.

Ò barco de Sacavem

achei a vossa mulata,

que me pareceo tam bem

que me mata.

Se vos veio de Castela

ou se anda d' andadura,

nam no jurarei por ela,

mas a mim se m' afegura

que naceo em Paradeela.

Tudo mui perfeito tem,

senhor, a vossa mulata

e pareceo-me tam bem

que me mata.

E que soes dela contente

apostei dous portugueses,

e fui-lhe buscar o dente,

achei que no mes presente

çarra certo trinta meses.

Ó barco de Sacavem,

que passas a gram mulata,

a qual nam veraa ninguem

que nam diga que o mata.

319

DE JOAM FOGAÇA A ŨU FRADE

D' OSERVANCIA, QUE IA POR GUAR‑
DIAM A TANJERE E PEDIO-LHE
QUE PEDISSE AO CONDE
PRIOR QUE ESCREVESSE
AO CAPITAM, SEU FI‑
LHO, QUE O FAVO‑
RECESSE LAA. E
DEU-LHE ESTA
TROVA PERA
O CONDE.

Para Tanjere, senhor,

eleito por guardiam

vai ũu frade pregador,

porem deseja favor

laa do senhor capitam:

nam quer esmola nem renda,

mas por laa nam correr risco,

pede carta d' encomenda,

posto que se nam entenda

na regra de Sam Francisco.

320

OUTRA DE JOAM FOGAÇA AO
CONDE PRIOR POR ŨA MO‑
LHER D'Ũ MARINHEIRO
QUE FOI COM ELE À
TORQUIA E REQUE‑
RIA O SOLDO
DO MARIDO.

Essa molher é casada,

seu marido é marinheiro,

foi servir-vos nessa armada

e quer seu soldo em dinheiro.

Nam é desarrazoada,

senhor, em pedir o seu

e digo eu

que seja bem despachada

polo meu.

321

DE JOAM FOGAÇA A DOM
LUIS DE MENESES SOBRE
O COMENDADOR-MOOR
DE SANTIAGO, QUE LHE
FOGIO Ũ MOURO E A
QUANTOS ACHAVA
PERGUNTAVA
POR ELE.

Homem de potro cinzento,

que comprou a peso d' ouro,

anda em busca d' ũ mouro

que lhe fogio e nam mento.

Por sinal que and' aa brida

sem dele fazer burrela,

pesca ifantes com sedela

mui comprida,

com anzolo de cabrela.

Cabo.

Anda mais bravo qu' ũ touro

e a quem fala

pregunta de chiche cala:

— Senhores, vistes-m' ũ mouro?

Sabeis que m' aconteceo?

Sem haver nada co ele

logo desapareceo,

sem jamais ver fumo dele.

322

DE JOAM FOGAÇA A DOM
PEDRO DE CASTEL BRANCO,
PORQUE JUNTO COM ELE
POUSAVA CA MOÇA
QUE LHE PARE‑
CIA BEM.

Tenho cofre, tenho cinta,

tenho pano de Ruam,

o qual darei d' antemão,

mas hei medo que me minta,

porque ha i tanta trisca,

naqueste mundo cuitado,

que muitas ripam a isca

e fic' homem enganado.

323

OUTRA SUA.

Dou fraldilhas, dou camisas,

dou cootas e dou mantilhas,

dou alfaias de mil guisas,

dou firmaes e dou manilhas.

Dou dinheiro em dinheiro

e dou casas d' aluguer,

dou chapis de çapateiro

a quem quer

ser muito boa molher.

324

DE JOÃ FOGAÇA, QUANDO VEO
O EMBAXADOR D' ALEMANHA, SO‑
BRE O COMENDADOR-MOOR, DO
QUE LHE HAVIA DE PREGUN‑
TAR E MANDOU-AS A DOM
LUIS DE MENESES, ES‑
TANDO DOENTE E EM
SUA CASA DOM GAR‑
CIA E JOAM LOPES
DE SEQUEIRA.

Embaixador d' Alemanha

é entrado,

para o qual seraa chamado

o gram Gijono de Canha

pera ir oo sestro laado.

Perguntaraa por novela,

responderaa si e nam,

e dos grandes de Castela

que faram

e em Navarra e Aragam.

E tambem

lhe diraa por espedida

o Senhor de Rabastem

a qual das partes convem

e Madama Margarida.

Se viraa ou nam viraa

o Princep' este Veram

ou que faraa,

que cousas preguntaraa,

que cousas responderaa

se lhe nam forem à mam.

De Joam Fogaça a dom Luis

com estas trovas.

Senhor, tende tal maneira,

sem brados e sem perfia,

que Joam Lopez de Sequeira

e o senhor Dom Garcia

vejam esta derradeira.

E quem quiser ajudar

haja a vista

e pode-s' alevantar

daqui tamanha conquista

como foi a d' ultramar.

Fim.

E tambem se soes doente

nam hajaes, senhor, vergonha

dizer que é de peçonha,

pois que soes da mesma gente.

325

CANTIGA SUA A DOM RO‑
DRIGO DE CASTRO.

Senhor, vistes nunca tal?

Indo-me par' à pousada,

foi topar o de Lousada,

sabeis qual,

o da capa entretalhada.

Disse-lhe polo deter:

— Que é isso que levais?

Aguardai-me, qu' hei-de ver

quam mal o vosso gastais.

Amostrou-me tudo o al,

descobrio ũa esmaltada

na cinta mal recachada,

veedes qual

o da capa entretalhada.

326

TROVA SUA A GARCIA DE RESEN‑
DE, EM REPOSTA DOUTRA
EM QUE LHE MANDAVA
PEDIR TROVAS
SUAS.

Senhor, nam tenho lembrança

de cousa que ja fezesse

mais do que se faz em França,

porque, se o eu soubesse,

di-lo-ia sem tardança.

Oo gram Comendador-moor

me lembra ũa que fiz,

a qual diz:

Trova sua ao Comendador-moor
de Santiago, porque vindo El‑
-Rei e a Rainha batel, foi
tomar ũ Ifante no colo
e o tirou fora, indo
muito
mal vesti‑
do e de más
sedas.

Com duas sedas, nô mais,

e sem iscar o anzolo,

pescou Ifante no cais

que logo ripou no colo.

Sem veludo cremesim,

nem çatim avelutado,

mas çatim muito roim

e demasquim

azul e alionado.

327

CANTIGA SUA QUE FEZ POR
DUARTE DE LEMOS A ŨA MO-

LHER QUE PREGUNTAVA

COMO PODERIA DORMIR
COM SUA MOLHER,
SENDO TAM
GRANDE.

Se em pee, se, quando jaço,

quereis, senhora, saber

como posso ou como faço,

eu vo-lo quero dizer.

S' ela jaaz de pap' arriba,

ambos ficamos iguaes,

nem cuideis, se o cuidaes,

que, se m' ela nam derriba,

que sejamos desiguaes.

Se em pee, faço-m' anãao

e d' ilharga atravessado,

tam junto, tam conchegado

que nam ponho pee em chãao.

E tambem sam tam humano

e levo tamanho gosto

que por lhe ver bem o rosto

faço de mim pelicano.

Ela tambem de seu cabo

faz muitas galantarias

e fala mil aravias

que vos eu aqui nam gabo,,

e assi acabo.

328

SUA A JOAM DE SALDANHA POR
ŨA TOUCA QUE TROUXE AO
PAÇO MUITO MAL POSTA,
PARTINDO EL-REI.

Ouça quem quiser ouvir

ũa bem grande façanha

da touca de Joam de Saldanha

qu' hoje sacou oo partir.

Ela era mal lavada,

toda posta no toutiço,

de diante mal quebrada,

na pousada foteada

e no paço gram chouriço.

329

TROVAS SUAS AO COMENDADOR‑
-MOOR DE SANTIAGO, PORQUE PE‑
DIO A EL-REI NOSSO SENHOR
Ũ QUARTEL DE MORADIA, QUE
HAVIA DEZANOVE ANOS QUE
PERDERA E DIZIA QUE O
QUERIA PROVAR POR
TESTEMUNHAS.

O mui gram Comendador

pedio hoje neste dia,

oo vestir,

a El-Rei nosso Senhor

ũ quartel de moradia,

que lhe ficou por servir

haveraa dezanov' anos.

E diz que o quer provar

por tinta e papel.

Oh engano dos enganos,

cuidar que ha-de ripar

ũ tam antigo quartel!

Do Comendador-moor a quem
lhe quer comprar
o quartel
que tem ja desem‑
bargado.

Quem quer comprar ũ quartel,

que tenho desembargado

e apontado,

dê-me cá tinte e papel

e dar-lh'-ei ũ assinado

dele e tomarei panos

no tesoureiro,

porqu' ee de dezanov' anos,

ante que fosse escudeiro,

e vê-lo-ês em dinheiro.

Reposta de Pero de Madril,
cambador.

Diz caa Pero de Madril

que nam dará os seus panos

nem menos ũ soo ceitil

por quartel de tantos anos.

Mas por nam ficar em vãao,

lhe praz

de vos dar mui boom ruãao,

dando-lhe Gonçalo Vaz

penhores limpos na mãao.

Outro mercador.

E diz outro mercador,

porque vos ja sabe a manha,

se lhe derdes fiador

ou a comenda de Canha

de renda ou seu valor,

que vos serviraa, senhor,

sem carta nem estormento,

dando-lhe mui bom penhor

por este quartel de vento 

vos faraa boom pagamento.

Outro mercador.

Por este quartel de vento

de tantos anos perdido,

vos darei ũ guarnimento

todo d' ouropel tecido,

bem gentil e bem polido.

Mas haveis-me de ficar

que mo deis desembargado,

despachado e assinado,

e quem mo ha-de pagar

venha logo nomeado.

330

DE JOAM FOGAÇA A DOM GON‑
ÇALO COUTINHO, PORQUE VIO
DOM GARCIA DE MENESES
RAPADO À NAVALHA.

Vindo, senhor, este dia

do paço bem enfadado,

vi rapado Dom Garcia,

vi Dom Garcia rapado.

Vi-o tam abocetado

e tam porrim,

que disse logo antre mim:

Est' hoomem vem enganado.

331

SUA A DOM GOTERRE.

Senhor Dom Goterre, mano,

Vale, Viveiro, Nogueira,

m' avorrecem de maneira

que folgo com Arelhano

e com Lopo Soarez.

332

TROVA QUE FEZ JOAM FOGAÇA.

Senhores, sede devotos

dos anjos e dos arcanjos,

qu' estes deemos dos Briolanjos

fazem grandes terramotos.

Fazem lampados, torvõoes,

lançam pedras de corisco

e fogem d' ũ porco pisco

e sobr' isso sam ladrõoes.

333

DE DIOGO BRANDAM À MORTE

D'EL-REI DOM JOAM O SEGUNDO,

QUE É EM SANTA GRORIA.

Todos atentos na morte cuidemos

na qual duvidamos por mais nosso mal,

que dela sabendo ser cousa geral

mais nos espantamos do que nos provemos.

Os beens temporaes por alheos deixemos,

pois mais nos provocam a mal que nam bem,

os quaes, cuidando nos outros que temos,

eles com fortes cadeas nos tem.

Os bens que sam d' alma, aqueles sigamos

pois neles consiste o vero proveito,

os de fora busquemos, havendo respeito

a quam brevemente por eles passamos.

Riquezas, favores qu' aqui percalçamos

assi como passam se perde a memoria,

se bem neste mundo fazemos, obramos,

vive pera sempre no outro per groria.

Nesta fim logo sejamos prudentes,

pois toda grorea naquela se canta

e com boas obras e vida mui santa

devemos na morte mui bem parar mentes.

E se polas cousas que vemos presentes,

nom bem conhecemos o gram poder dela,

lembrança tenhamos de quam eixcelentes

princepes, reis passaram por ela.

Dizer dos antigos que sam consumidos

nam queero em gregos falar nem romãaos,

mas nos que nos caem aqui dantr' as mãaos,

vistos de nós e de nós conhecidos.

Despertemos de todo os nossos sintidos,

pois este mundo é tam inconstante,

creamos dos mortos que nam sam perdidos,

mas que sam idos ũ pouco adiante:

Nam pode ser pouco, pois é muito certo

que hoje se pode fazer esta via

e se este nom é o derradeiro dia,

sabei qu' ele estaa de nós muito perto.

Todos nacemos com este concerto

que quem tiver vida tem certo perdê-la,

e pois o viver nos é tam incerto,

vivendo na morte, cuidemos bem nela.

E pois tam aberta estaa esta via 

per ordem d' Aquele que a todos nos fez,

nam nos espantemos de vir ũa vez

aquilo que nos pode vir cada dia.

Assi cada ũ ordenar-se devia,

como se fosse aa morte chegado,

e desta maneira nos nam enganaria

se tivessemos dela na vida cuidado.

E de tal maneira devemos tratá-la,

que pois assi é sem mais duvidar

que ela nos espera em todo lugar,

devemos nós outros tambem d' esperá-la.

Devemos às vezes per nós desejá-la,

conformes com Deos em nossa desculpa,

porque a longa vida sem mais a prová-la

pola maior parte tem sempre mais culpa.

Que sendo compostos daqueste metal,

que sempre desejamos o qu' ee sem midida,

nunca tanto bem fazemos na vida

que mais nam façamos naquela de mal.

Crece naquesta cobiça mortal,

raiz e começo de todolos vicios,

abre-se mais o caminho infernal,

quando se çarram os boons eixercicios.

Tornando pois logo aquesta certeza

que todos ũa vez morrer nos convem,

esforçar-nos devemos fazê-lo tam bem

que a morte sintamos com menos tristeza.

Esta tomemos com toda firmeza,

pois ha-de vir de necessidade,

menos sintiremos a sua crueza,

quando a recebermos com boa vontade.

Antigos enxempros a parte deixados,

sem os alheos querer memorar,

os mortos em Canas deixemos estar,

com outros mil contos, que sam ja passados,

deixem de ser aqui relatados.

Abaste falar nos possuidores

desta nossa terra, que dela abaixados

foram assi coma pobres pastores.

Que se fez daquele que Ceita tomou

por força aos mouros com tanta vitorea,

o intitulado da Boa Memorea,      

que a si e aos seus tam bem governou?

As cousas tam grandes que vivend' acabou,

afora nas batalhas mostrar-se tam forte,

com outras façanhas em que s' esmerou,

nunca poderam livrá-lo da morte.

Seu filho primeiro, bom rei D. Duarte,

que foi tam perfeito e tam acabado,

reinando mui pouco, da morte levado

foe, como quis Quem tudo reparte.

Seus irmãos os Ifantes que tanta de parte

na vertude teveram polo bem que obraram,

tendo nas vidas trabalhos que farte,

com tristes socessos algũs acabaram.

O sobrinho destes, Ifante de grorea,

progenitor de quem nos governa,

que foi de vertudes tam crara lucerna,

tambem houve dele a morte vitorea.

Contodo nom pode tirar-lh' a memorea

de ser esforçado e forte na fee,

tomou este Princepe, dino d' estorea,

per força òs mouros o grand' Anafee.

O quinto Afonso nom quero calar

que, assi como teve vitorea crecida,

tantos trabalhos sosteve na vida

que lhe causaram mais ced' acabar.

Tambem acabou o filho de dar

fim eesta vida de tanta miserea,

no qual determino ũu pouco falar,

posto qu' emprenda mui alta materia.

Este foi aquele bom rei Dom Joham,

o mais eicelente que houve no mundo,

rei destes reinos, deste nome o segundo,

humano, catolico, sojeito aa razam.

Do qual mui bem creo, sem contradiçam,

julgando sas obras e como morreo,

que deve bem certo de ter salvaçam,

pois tam justamente sempre viveo.

Foe em vertudes tam escrarecido

que é mui deficil poderem-s' achar

louvores que possam cos seus igualar,

tam grandes assi como tem merecido.

Mas posto que fosse de todo comprido

de grandes bondades em que froreceo,

algũ louvor seu direi, nom fingido,

que seraa mais baixo do que mereceo.

Teve nas cousas de Deos eicelencia,

aquelas amava, honrava, temia,

em fabricas santas mui bem despendia

assaz largamente com manificencia.

Com justa medida e gram providencia,

suas esmolas mui bem repartia,

quem se prezava de santa ciencia

muito por certo ant' ele valia.

Nom sei com que lingua dizer se podia

como era grande e em todo manifico,

desejava ter mais o seu povo rico

que ele de o ser prezar-se quiria.

Por estas taes obras que sempre fazia,

a sua nobreza bem crara se vê,

havia por perda passar-s' algũu dia

sem que naquele fezesse mercê.

Jamais nos antigos, modernos, que leo,

s' achou outro tal em liberalidade,

partia com todos com tanta vontade

que nunca em nobreza oo mundo tal veo.

Segue-se logo daqui, como creo,

que havendo-se nisto assi grandemente,

que mal poderia tomar o alheo,

pois o seu dava de tam boamente.

Era ũ mesmo no prazer e na sanha,

das cousas virtuosas havia cobiça,

a todos igualmente fazia justiça

sem se lembrarem as teas d' aranha.

Era timido e amado em Espanha

e tal que nam sendo pera rei nacido,

segundo a sua vertude tamanha

devera pera isso de ser escolhido.

Que desta maneira estaa confirmado

que o rei e o princepe que ha-de mandar,

pera os outros saber emmendar,

deve primeiro de ser emmendado.

Este na vida foe tam acabado

que ele soo era a propia lei,

pera cada ũ viver castigado

sem mais outra regra nenhũa de rei.

Os princepes boons por seu boom viver

enxempro tomavam do bem que faziam,

os maaos isso mesmo por ele sabiam

as cousas que bem deviam fazer.

Deste devemos por certo de crer

que, ainda que cá muitos anos vivera,

na força do corpo podia envelhecer,

mas nunca d' alma velhice tevera.

Os reis que vierem para bem rejer

tomar devem deste enxempro geral,

pois é muito certo que aqueste foe tal

qual prometiam os outros de ser.

Os seus suditos por seu merecer

a Deos por ele somente rogavam,

sendo mui certos qu' em no assi fezer

por si, por seus filhos, por todos oravam.

Era em sas obras bem temperado

que o que per palavra ũa vez pormetia

de tal maneira com fee o compria,

como se fora por ele jurado.

Nam se groriava de ter alcançado

por favor de Fortuna nenhũ bem temporal,

toda sua grorea era tê-lo guanhado

por algũa vertude e bem divinal.

Com lijonjeiros mui pouco folgava,

eram os seus conselhos mui sãaos,

mostrava-se humano òs qu' eram meãaos,

os grandiosos e vãaos despreçava.

A vertude per obra mais exercitava

que nom por palavras nem outras maneiras,

as cousas do mundo assi as amava

que nam s' esquecia das mui verdadeiras.

Tinha prudencia, tambem fortaleza,

amava justiça com gram temperança,

fee, caridade, tambem esperança,

nele moravam com toda firmeza.

Ornaram-no estas de grande riqueza

e nunca jamais o deixaram na vida,

na morte lhe deram tamanha franqueza

que grorea por sempre recebe comprida.

Estas que digo vertudes jeraees

assi assomadas ũ pouco deixemos,

porque é justa cousa tambem que falemos

nas particulares e mais especiaes;

as quaes conhecidas por muito reaes,    

sendo a todos assi manifestas

ainda fez outras mui grandes e mais,

que eram maiores por serem secretas.

Daqui se consire na ordem que dava

em pagar divedas que seu pai devia,

pois como as suas ja mal pagaria

quem tam grandemente as alheas pagava?

Jamais dele orfãao nenhũ se queixava,

a todos por inteiro mui bem se pagou,

com pagas dobradas vi eu que pagava

a prata das igrejas qu' entam se tomou.

Pois em Castela, ahi nessa guerra,

se foe esforçado, mui bem se mostrou,

depois da batalha no campo ficou,

os mortos naquela metendo sô terra.

Tambem nessas pazes, s' a pena nam erra,

foi mui prudente e mui sabedor,

os meos tomando dos vales e serra,

que nestes consiste vertude maior.

Nam menos no reino por este teor,

no tempo que foe aquela discordia,

usou mais com eles de misericordia

do que nisso fez com justo rigor.

Era temido dos seus com amor

e a Deos temia com todo querer,

que, quando o rei de Deos tem temor,

entam o soemos mui mais de temer.

Com animo grande d' esperas reaes,

abrio o caminho de todo Guinee,

mais por crecer a catolica fee

que nam por cobiça dos bens temporaes.

Com ela fez rico os seus naturaes,

os infies trouxe haver salvaçam,

pois obras tam justas e tam devinaes

seram sempre vivas segundo razam.

S' em todo o ponente se sente gram grorea

por serem as Indias a nós descubertas,

ele foe causa de serem tam certas

e tam manifestas por nossa vitorea.

Pois é sua fama a todos notoria,

culpem-me muitas e mais d' ũa vez,

se dele nam faço aquela memorea

que justa merecem os feitos que fez.

A fim ja chegada de sua partida,

sendo de todas a cousa mais forte,

ja muito cerca da hora da morte

nam s' esqueeceo das obras da vida.

Tendo a candea ja quasi pedida,

a pena na mãao tremendo tomava,

e com moderada justiça de vida

tenças, mercês, padrões assinava.

Seus males e culpas gemendo com dor,

partio desta vida na fee esforçado,

polo qual creo que outro reinado

possui lá com Deos muito milhor.

Fez fim no Algarve, na vila d' Alvor,

no decimo mês aa fim ja propinco,

sendo da era de Nosso Senhor

quatorze centenas noventa mais cinco.

Com grande cirimonia a Silves levado,

dali foi dos seus que o muito sentiam,

quem antes ũ pouco as jentes seguiam

ali ficou soo de todos deixado.

Ó Morte, que matas quem é prosperado,

sem de fermoso curar nem de forte,

e deixas viver o mal aventurado

porque vivendo receba mais morte!

Dali a tres anos, nom bem precedentes,

foi com gram festa daqui trespassado

e posto no lugar qu' está deputado

em ser manseolo dos nossos regentes.

Quer Deos dali dar a muitos doentes

comprida saude, tocand' onde jaz,

em serem os Anjos com ele contentes,

nos é manifesto nas obras que faz.

Fez isto por ele o mui poderoso

Rei eicelente Manuel o primeiro,

quem ele deixou socessor verdadeiro

como rei justo e mui vertuoso.

Soube este Princepe mui animoso,

que hoje governa com tanta medida,

pagar-lhe na morte coma piadoso

o bem recebido daquele na vida.

Se honras, riquezas, vertudes, poder

poderam alguem da morte livrar,

este justo Rei, sem mais altracar,

nunca jamais poderá morrer.       

Mas pois qu' assi é que os boons ham-de ser

tambem sepultados, a vida deixando,

quanto mais devem os maaos de temer

que sempre jamais viveram pecando.

A grorea de Deos de tanta eicelencea

nam busca ninguem, sendo tam preciosa,

mas a do mundo, que é tam enganosa,

buscam nos homens com gram diligencea.

Oh como é de gram priminencia

quem põe em soo Deos seu amor e querer!

Quem o mundo nom ama com toda crencia

nam tem nele cousa que possa temer.

Seja nossa culpa de nós conhecida,

enquanto vivemos, façamos pendença,

que sem na fazermos, segundo sentença,

havermos na morte perdam se duvida.

Por santos doutores é mui repitida

aquesta doutrina que ver nos convem,

que quem sempre mal viveo nesta vida

é muito deficil poder morrer bem.

O eterno Deos com justa balança

permite com grande rigor e mui forte

que s' esqueça de si na hora da morte,

quem d' Ele na vida nam teve lembrança.

No bem que fazemos, tenhamos fiança,

que per suma justiça estaa ordenado

que sempre careça de toda folgança

quem nunca jamais careceo de pecado.

Fim.

Pois desprezemos o breve prazer,

que logo se converte em grave tristeza,

que mui facilmente o mundo despreza

aquele que cuida que ha-de morrer.

Quem firmemente aquesto tever

nas cousas de Deos será mui costante,

por bem aventurado se deve d' haver

aquele que a morte tem sempre diante.

334

DE DIOGO BRANDAM, ESTANDO

AUSENTE DE SUA DAMA,

ENDERENÇADAS A AN‑

RIQUE DE SAA.

Depois, senhor, que forçado

me trouxeram caa cativo,

ando tam desesperado

que nam vivo.

E sabês bem que conforto

se m' ordena?

Que por ser mor minha pena

nam sam morto!

Se o fosse, acabariam

minhas dores mais que fortes,

e meus olhos nam veriam

tantas mortes.

Mas, pois deste bem careço

sem ventura,

verês nesta a trestura

que padeço.

Mas naqueste triste canto

tende vós certo por fee

que nam posso dizer tanto

como é.

E pois terço do que sento

nam diria,

julgue vossa fantesia

meu tormento.

Que nenhũ nam foe tamanho

de passado nem presente,

é ũ grande mal estranho

ser ausente!

Que com este qu' em mim jaz

me comporia,

se eu visse cada dia

quem mo faz.

E com este apartamento

sem s' apartar minha vida,

é o meu padecimento

sem medida.

E aquesta dor presente,

que m' aqueixa,     

jamais viver nam me deixa

antre jente.

E vou-me por esses montes

desastrado sospirando,

os meus olhos coma fontes

vam chorando.

Das lagrimas desmedidas,

verdadeiras,

vam as aguas das ribeiras

mui crecidas.

Depois me dexo nos vales

com tençam que me descansem,

mas antes crecem meus males

que s' amansem.

Os doces cantos das aves,

mui suidosos,

assi me sam amargosos

como graves.

Os frescos prados e rios

que mil vidas a mi ventam,

muito mais meus desvarios

acrecentam.

Que minhas desaventuras

lastimeiras

nam se curam com frescuras

das ribeiras.

Nem as tristezas oos pares,

que meu viver desajudam,

por mudar muitos lugares

nam se mudam.

Porqu' amor, qu' assi me trata,

vai comigo,

que m' ee tam cruel imigo

que me mata.

Bosques que se vam oo ceo

em grandeza e crecimento

me causam beber ũ veo

por tormento.

Pois as fontes que manavam

dos roquedos

minhas sospeitas e medos

mais dobravam.

Arvoredas, qu' eixcediam  

grandes alturas e costas,

de donde os deoses soiam

dar repostas,

sendo muito graciosas

e prazentes,

em ar ver vejo serpentes

espantosas.

Par' òs desertos fugia

bradando com meus cuidados

e eu soo me respondia

a meus brados.

Oh quem das leteas aguas

se fartara,

porque mais se nam lembrara

destas magoas!

Dos olhos e coraçam

gram demanda nom se parte,

ambos bem culpados sam

que lhes farte.

Quem foi disto ocasiam

bem se vio,

pene, pues que consentio,

com razam.

Mil desatinos nam digo

que neste tempo fazia,

s' alguem topava comigo

m' avorrecia.

Simulava em nos vendo

meu morrer

e fingia ter prazer

nam no tendo.

Mas era bem conhecida

minha dor, que nam tem cura,

que nunca cousa fengida

muito dura.

E nos sinaes que fazia

de mortal,

viam bem o grande mal

que padecia.

Grande compaixam e doo

haviam de mi aqueles,

mas eu folgava mais soo

que co eles.

Em seus conselhos prudentes

e nam vãaos

vi que bem conselham sãaos

os doentes.

E querem que coma bem

com confortos que me dam,

mas mui mal come ninguem

com paixam;

e pior dorme sintindo

tantos danos.

Parecem-m' as noites anos

nam dormindo.

Trabalho nestes casais

por dormir de quebraantado

e isto tenho de mais:

velar cansado.

Desvelado de tal sorte

ando assi

que s' espantam mais de mi

que da morte.

Esta nam me satisfaz,

por ser tam desordenada,

que toda cousa que faz

vai errada:

que mata com mal sobejo

quem a nom quer

e a mim deixa viver

que a desejo.

Por aqui podês julgar

a vida que tenho agora,

bem ma podia mudar

minha senhora!

Ajudai-me polo amor

qu' em vós fica,

pois sabês bem como pica

esta dor.

E pois a tenho crecida,

algũ remedeo se cate,

esta seja dar-m' a vida

ou me mate.

E se mais com morte dar

se contenta,

outra vida m' acrecenta

em me matar.

Fim. 

E desta sorte, de caa

me parto sem meus sentidos,

que todos me ficam laa

bem perdidos.

Hajam de vós gasalhado,

pois sam vosso

mais do que dizer nam posso

de penado.

335

CANTIGA SUA.

Que saiba bem na verdade

receber de vós tormento,

quero dar consentimento

ò que quer minha vontade.

Quero descobrir por mim,

pois mais nam posso sofrer,

o que s' houvera de ver

mui cedo com minha fim.

E pois que vós, na verdade,

soes causa do mal que sento,

quero dar consentimento

ò que quer minha vontade.

336

OUTRA SUA.

Que viva neste cuidado

e me veja padecer

triste vida por querer,

muito mais vivo penado,

quando nam sam namorado.

Destas ambas se m' ordena

dobrado mal e fadiga,

pois cada ũa m' obriga

a sempre viver em pena.

Que seja desesperado

e padeça por querer

vida pior que morrer,

muito mais vivo penado,

quando sam desnamorado.

337

OUTRA SUA.

Sempre m' a Fortuna deu

tristezas com que nam posso,

des que deixei de ser meu

polo ser de todo vosso.

Que depois que vos servi

com tal firmeza, senhora,

nunca de vós ategora

nenhũu bem ja recebi.

Des entam padeci eu

mil males com que nam posso,

porque deixei de ser meu

polo ser de todo vosso.

338

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Nam falando, mas morrendo,

confessaram.

Os que logo decrararam

suas dores em querendo,

muitas vezes s' estimaram,

mas muito mais obrigaram

aqueles que padecendo

nam falando, mas morrendo,

confessaram.

Bem podem dizer fingidos

seus amores os primeiros,

mas aquestes ja vencidos,

pola morte conhecidos

sam seus males verdadeiros.

Ja se muitos confortaram

em suas penas dizendo

e disso se contentaram,

por tanto mais obrigaram

aqueles que padecendo,

nom falando, mas morrendo,

confessaram.

339

CANTIGA EM QUE ESTÁ O NOME
POR QUEM SE FEZ, POLAS PRI‑
MEIRAS LETRAS DELA.

Do grande mal que causaram

Os olhos, quando vos viram,

Nestes dias o pagaram

Afora quando partiram.

Vida qu' assi atormenta    

Ja melhor se perderia,

O penar, que s' acrecenta,

Ledo morrer me faria.

As lagrimas que se dobraram

No coraçam se sintiram,

Todas meus olhos choraram

Em vendo que nam vos viram.

340

GROSA DE DIOGO BRANDAM A
ŨA CANTIGA QUE DIZ: DE MI
VENTURA QUEXOSO.

Pues esperança perdida

tengo ya d' haver reposo

com muerte tam conocida

biviré toda mi vida

de mi ventura quexoso.

Y no teniendo segura

la vida por lo que siento,

yo triste sim ventura

me halho com mi tristura

de quien m' agravia contento.

Mi fe me manda que crea

no ser siempre desdichoso,

mas el mal que me possea

me haze que sempre sea

de mi remedio dudoso.

Assi bivo em desconcierto

com mui grave sentimiento,

de dolores no desierto,

por ser de mi bien incierto

y no de mi perdimiento.

Amor su fuerça mostroo,

porque libre no biviesse,

y porque más penasse yo

quiso logo e ordenoo

mi ventura que os viesse.

Y vista la perfeicion,

que más non pode falharse,

com voluntad y razon

el vencido coraçon

consentió que os amasse.

Assi que vuessa beldad,

porque más pena me diesse,

ordenó mi voluntad

querervos com lealtad,

y que vuessa bondad fuesse

tod' el mal de mi porfia

y que delha se causasse

ser triste la vida mia,

y em fim qu' elha seria

la muerte que me matasse.

Com dolor desesperando,

de mis bienes deseoso,

com mis males peleando,

em mi desdicha pensando,

assi bivo temeroso.

Que no puedem muchos anhos

tirar mis penas sin coento,

mas con todos estos danhos

me veo com mis enganhos

amigo del mal que siento.

Y por serdes vos el mal

com que bivo tam lhoroso,

no me da por causa tal

ser com pena desigual

de mi remedeo dudoso.

Puse sempre em vos amar

todo mi entendimento,

y vos, por más me matar,

havés de mi bien pesar

y no de mi perdimiento.

341

CANTIGA.

Pois tanto gosto levaes

com minha morte sabida,

pera me matardes mais

me devês dar esta vida.

Que desta sorte vivendo,

mil mortes receberei

e d' estoutra viverei

em ũ só dia morrendo.

E pois que tanto folgaes

com morte tam conhecida,

pera me matardes mais

me devês dar esta vida.

342

OUTRA SUA.

Vejo tanta pressa dar

a meu mal, que tal me tem,

que nam pode ja meu bem

a nenhũu tempo chegar,

que me possa aproveitar.

Porque sendo mui crecido,

sem a dor ser conhecida,

o seu remedeo comprido

é ja com perda da vida.

Pois se pode mal curar

o mal que tal força tem,

como pode ja meu bem

a nenhũu tempo chegar,

que me possa aproveitar?

343

OUTRA SUA.

Nam seria tam mortal

minha dor sem esperança,

se juntamente meu mal

de mim tomasse vingança.

Mas por mais m' atormentar

nesta vida de tristura,

me mata tam devagar

por maior desaventura.

Será sempre desigual

minha dor sem esperança,

pois juntamente meu mal

de mim nam toma vingança.

344

A ŨA SENHORA QUE LHE
DEU ŨU NOME DE JESU,
QUE SE TOMAVA
POR ELA.

O nome da perfeiçam,

que tomei com devaçam,

no meu livro s' apousenta,

mas o qu' ele representa,

que é o bem que m' atormenta,

tenho eu no coraçam.

345

TROVAS QUE FEZ DIOGO BRAN-

DAM E Ũ SEU AMIGO, PAR­-

TINDO AMBOS DONDE ESTA‑

VAM SUAS DAMAS, QUE

ERAM TAMBEM AMIGAS

E MORAVAM AMBAS

EM ŨA CASA.

Foram as nossa jornadas,

depois de sermos partidos,

muito passo caminhadas

e mui rijo sospiradas

com gemidos.

Fomos o primeiro dia

sem nos podermos falar,

nosso gram mal o fazia

e tambem no-lo tolhia

o chorar.

Recobrámo los sentidos

sendo ja noite fechada,

assi chegámos perdidos,

com nossos nojos crecidos,

à pousada.

A cear nos assentámos

tam tristes como partimos,

do comer pouco gostámos,

nũa cama nos lançámos,

sem dormirmos.

Outro dia levantados,

com nossos males contentes,

com lembrança dos passados

nos doiam mais dobrados

os presentes.

Tamanhas dores causavam

que é impossivel dizê-las,

os remedios que nos davam

muito mais nos renovavam

as querelas.

Mais nos matava lembrança

que o tempo que fazia;

nossa pouca confiança

nam nos dava esperança

d' alegria.

Feriam como cuitelos       

nossos males mui inteiros,

os sospiros nom singelos

dobravam como martelos

de ferreiros.

Toda cousa de prazer

era pera nós tristeza,

e com este tal viver

crecia nosso querer

com firmeza.

Ja queixar-nos nam queremos

de nossa costolaçam,

pois pela causa devemos

de sofrer estes estremos

com razam.

Os receos mais creciam,

as sospeitas nom minguavam,

e todos quantos nos viam

muito de nós se doiam

e magoavam,

porque craro conheciam,

polos de fora sinaes,

as que de dentro jaziam,

dores que nos perseguiam

desiguaes.

Fogiamos de povorados,

da vida mui pouco certos,

folgámos desesperados

com caminhos nom usados

e desertos.

Nosso triste pensamento

ali nunca repousava,

nam sei como tal tormento

e tamanho sintimento

nam matava!

Mas pois desta pena tal

nam morremos aa partida,

é muito certo sinal

guardar-se pera mais mal

nossa vida.

Mas nam sei que pode vir

ja pior do qu' ee passado.

Oh que cousa de sentir

haver homem de partir

namorado!

Fim  

E foram daquesta sorte

as jornadas fenecendo,

fora cousa menos forte

acabá-las ja com morte

que vivendo.

Senti ja o que sintimos

por tamanho bem querermos,

piedade vos pidimos,

pois que tantas penas vimos,

por vos vermos.

346

CANTIGA SUA.

Vejo tanto desengano

que nom tenho confiança,

mas eu com fals' esperança

infindas vezes m' engano.

Comigo na fantesia

mil vezes tenho cuidado,

cuidando se poderia

ter ũu dia descansado.

Por ver tanto mal e dano

tenho pouca segurança,

mas eu com fals' esperança

infindas vezes m' engano.

347

VILANCETE SEU.

Se descanso receberam

meus olhos, quando vos viram,

dobrada pena sintiram.

O falso contentamento,

que logo nisso tomaram,

mui de verdad' o pagaram

com pena do pensamento.

Assi que s' eles fezeram

algũ bem, quando vos viram,

dobrada pena sintiram.

348

PREGUNTA DE DUARTE DA
GAMA A ELE.

Pois que todolos nacidos

somos sojeitos nacendo,

de nós e d' outrem vencidos,

sem querer nada querendo,

pregunto qual sojeiçam

é maior das sojeições

e qual dá maior paixam

e se podem ser ou nam

nũ corpo tres corações.

Reposta sua.

Sojeiçam dos sometidos

às estrelas, em vivendo,

é maior qu' a dos perdidos

que d' amores vam gemendo.

A natural condiçam,

custumada em afrições,

causa menos afriçam

e ja vi d' emprenhidam

parir dous filhos barões.

349

DE RUI GONÇALVEZ DE CAS‑
TEL BRANCO A ELE.

Sem vossa galantaria

esta corte estava soo,

qu' era para haverem doo

de tanta sensaboria.

Da noite se torna dia

pola vós alumiardes,

qu' abasta para a salvardes

soo vossa sabedoria.

E pois vossa perfeiçam

é perfeita e acabada,

a esta pregunta errada

dai, senhor, a concrusam:

Porque com rei justo e santo

medram os que taes nam sam

e os dessa condiçam

muito menos e nam tanto?

Reposta.

Vai assi d' altenaria

tam sobido vosso voo

que nam sei quem sendo Joo

em saber responderia.

Sem falar lijunjaria,

como vós em me louvardes,

nacestes soo pera dardes

os remedeos desta via.

Mas pois temos a rezam

de doutores aprovada,

que tem Deos sem arrar nada

o coraçam do rei na mãao.

Desta concrudo qu' em quanto

é de Deos a permissam,

o rei nam faz sem razam

com quanto nos faz espanto.

350

CANTIGA SUA.

Em esta vida mortal

nom ha i prazer que dure,

nem menos tamanho mal

que por tempo nam se cure.

Assi bem aventurados

casos, bem acontecidos,

coma outros desastrados,

tam cedo como passados,

sam de todo esquecidos.

É ũa regra geral

nam haver i bem que dure

nem menos tamanho mal

que por tempo se nam cure.

351

OUTRA SUA.

Tantas novidades tem

esta vida, cada dia,

que nam descansa ninguem

nem repousa a fantesia

com quantos males lhe vem.

Quando mais libres se sentem

os corações de cuidados,

entam nacem mais dobrados,

de lugares nom pensados,

porque mais nos atormentem.

Se per dita temos bem,

tanto mal no-lo desvia

que nam descansa ninguem

nem repousa a fantesia

com quantos males lhe vem.

352

VILANCETE SEU A
NOSSA SENHORA.

Rainha celestrial,

repairo de nossas dores,

grandes sam os teus louvores!

Senhora, como naceste,

tua vertude foi tanta

qu' aquela embaxada santa

com grande fe mereceste.

Tam continente viveste

que nom bastam oradores

recontar os teus louvores.

A mercê que percalçaste

nossa vida repairou,

pois com teus peitos criaste

Aquele que Te criou.

Foste causa que mudou

o gram Senhor dos senhores,

em prazer as nossas dores.

Por em Ti ser encarnado

e por seres sua madre,

o nosso primeiro padre

foi dos tormentos livrado.

Somos livres de pecado,

quando queres dar favores

òs que sam teus servidores.

Ó fonte de piadade,

madre de misericordia,

quem de Ti nam faz memoria

vai mui longe da verdade.

Es chea de caridade

e de tamanhos primores,

que sam grandes teus louvores!

Mitiga nossos tormentos

que com tantos males crecem,

pois nossos merecimentos

sem os teus nada merecem.

Socorro dos que padecem,

que sejamos pecadores,

faze-nos merecedores.

Fim. 

E assi por teu respeito

dina Virgem e decora,

faze que hajam efeito

as nossas preces, Senhora;

que se nos deixas ũa hora

a nossos persiguidores,

nam teremos valedores.

353

ESPARÇA SUA.

Nam vos enganês, senhora,

nos desenganos que daes,

porque com eles causaes

que vos queira muito mais

o triste que vos adora.

Devês buscar outro modo

para vos mais descansar,

este nam podês achar

sem me matardes de todo.

354

CANTIGA SUA.

Passo secreta tormenta

que soo comigo se sente,

mas o que mais m' atormenta

é mostrar-me descontente

de quem muito me contenta.

Dessimulo que nam vejo

quem folgo muito de ver,

é ũ mal muito sobejo

mostrar contrairo desejo

do que desejo fazer.

Assi que passo tormenta

de nunca viver contente,

mas o que mais m' atormenta

é mostrar-me descontente

de quem muito me contenta.

355

OUTRA SUA.

Pois que tem comigo guerra

vontade, razam e siso,

asinha serei sô terra,

porqu' o reino em si deviso

mui prestamente s' aterra.

Todos sam desacordados

pera descanso me darem

e muito bem acordados

pera nunca me deixarem

meus males e meus cuidados.

Se se nam muda tal guerra,

fazendo paz emproviso,

asinha serei sô terra,

que o reino em si diviso

mui prestamente s' aterra.

356

CANTIGA SUA.

Senhora, nam vos temaes

que nam tenha o bem qu' espero,

que nam quero o que vos quero

pera que me vós queiraes.

Somente por vos pagar

camanho bem foi olhar-vos,

porque soo em contemprar-vos

m' acabo de contentar.

Por isso nam vos temaes

nem vos dê do bem qu' espero,

que nam quero o que vos quero,

pera que mo vós queiraes.

357

CANTIGA SUA.

De tal maneira me sento,

co a dor que me conquista,

que me daes com vossa vista

prazer e tambem tormento.

Donde, por este respeito,

m' afirmo que pouco sabem

os que dizem que nam cabem

dous contrairos nũ sojeito.

Tenho gram contentamento

deste mal que me conquista

e tambem sento tormento,

senhora, com vossa vista.

358

DE JOAM RODRIGUEZ DA SAA A
DIOGO BRANDAM, MAN‑
DANDO-LHE ŨU
MANDIL.

Quando o jenro d' ũ tetrarca

nam desdanha  de peitar,

que se deve d' esperar

d' ũ contador de comarca,

eleito pera medrar?

E por isso esse mandil,

que vem da regiam china,

nam é mandil, mas doutrina,

para vós, que soes sotil.

Reposta de Diogo Brandam
polos consoantes.

O presente foi de marca

para tropo s' estimar,

no mais nam ha que falar,

que quem quer encher sua arca

parte dela ha-de vazar.

Siguirei, se nam for vil,

senhor que tam bem ensina

que, sendo tam juvenil,

nos feitos de cousa dina

é Nestor e lá ora mil.

359

DIOGO BRANDAM EM

ŨA PARTIDA

Meus dias tam tristes por esta partida

seram pera sempre com pena tam forte,

que acabará milhor minha vida,

porqu' atalhará meus males a morte.

Mas pois o ordena assi minha sorte

e quer que tal vida padeça vivendo,

ouvi minha dor, de mi vos doendo,

porque parte dela com isso conforte.

Sendo levado da parte d' alem,

postos os olhos nas vossas moradas,

chorei tantas lagrimas qu' em Jerusalem

tantas nom foram nem tam derramadas.

Minhas tristezas ali memoradas,

que mais crecentavam a minha paixam,

dos tristes sospiros de meu coraçam

estavam as jentes todas pasmadas.

Juntavam-se muitos, faziam gram moo,

quando me viam naquele cuidado,

estando com todos estava tam soo

como se fora nũ ermo lançado.

Era de muitos ali lamentado,

ja meus imigos de mim se doiam,

outros com magoa grande diziam:

—Olhai quem podesse ja ser namorado!

Por meu enxempro tomavam castigo,

juravam que nunca mais damas servissem,

mas eu dizia, falando comigo,

qu' aquilo seria se nunca vos vissem!

E lhes afirmava que tanto sintissem,

vendo a vossa mui grã perfeiçam,

que de cuidados, com muita paixam,

todas sas vidas jamais se partissem.

Dali me parti dond' eles estavam

ou me levavam aqueles com qu' ia,

se nesse caminho algũs me falavam,

bem sem preposito lhes respondia.

Muitos daquestes estremos fazia,

em soo sospirar descanso tomava,

nam era tamanha a dor que mostrava

como a grande que dentro sintia.

Meus olhos mais agua que fontes lançavam

mui grandes gemidos a voltas saiam,

meus tristes sentidos jamais repousavam,

mas antes seus males dobrados sintiam.

Prazer e descanso de mi se partiam,

a contra daquestes comigo ficava,

se minha firmeza esperança me dava

vossos desfavores matar-me queriam.

A pena crecida maior se fazia

por ver tam incerta minha esperança,

menos mil vezes a morte temia

que nom a graveza de sua tardança.

A razam me dá mui gram confiança

de minhas tristezas haverem ja fim,

mas a Ventura que é contra mim

jamais nam me deixa haver segurança.

Resestir meu cuidado com pena quiria,

buscando maneiras d' amor apartar-me,

estonces mais preso tomado me via,

quando buscava razões de livrar-me.

S' achava confortos algũs de salvar-me,

achava mil males que me condenavam,

assi qu' em lugar de fugir me levavam

meus grandes desejos a mais cativar-me.

Comparaçam.

Assi como quando se sentem tomar

as aves nos laços e redes armadas,

quando trabalham por mais se soltar,

acham-s' entam mui mais enlaçadas.

Desta maneira sento tomadas

todalas forças com todo poder,

que, se me nam vale quem me pode valer,

seram minhas dores per morte acabadas.

Este desejo sem mais dilatar,

porque se acabem meus tristes cuidados,

nam quer minha dita em tal outorgar,

porque os tenha vivendo dobrados.

Seram meus sentidos por sempre penados,

pois contra mim o mal se concerta,

a morte queria, pois é muito certa

folgança daqueles que sam tribulados.

Impossivel seriam as dores contadas

passei nestes dias de grandes tormentos,

foram mal dormidas e bem sospiradas

as noites daquestes com mil pensamentos.

Com a morte e vida naquestes tormentos

guerra rompida, cruel padecia:

com a morte, senhora, que nam me queria,

e eu menos a vida com taes sintimentos.

Ganhando mais males, perdend' alegria,

fizeram fim as tristes jornadas,

mas nam as tristezas e grand' agonia

que sempre me foram per vós ordenadas.

Nem podem por tempo ser remedeadas

como mil outras doenças que vem,

porque o soo remedeo que tem

é pola causa que foram causadas.

 Fim.

E pois o poder é em vós de salvar-me,

querei haver ja de mim compaixam,

nam levês gosto assi de matar-me,

pois moiro por vós com tal devaçam.

Havei piadade de tal perdiçam,

querei dar remedeo a tam triste vida,

porque vos nam hajam por desconhecida

e eu que nam moira tam sem galardam.

360

ESPARÇA SUA.

A ũa senhora, que se cha‑
mava da Costa.

Quem bem sabe navegar,

pola vida segurar,

a esperança tem posta

dentro no pego do mar.

Mas aqui por se salvar

deve certo vir à costa,

porque, posto que naquela

de vivo se veja morto,

ganha-se tanto por vê-la,

qu' ee milhor perder-se nela

que salvar-se noutro porto.

361

FINGIMENTO D' AMORES FEITO

PER DIOGO BRANDAM.

Eram da sombra da terra

as nossas terras cubertas,

quando parecem desertas

as habitações sem guerra;

ao tempo que repousam

os corações descansados

e os malfeitores ousam

cometer mores pecados.

Os nove meses do ano

eram ja quasi passados,

quando eram meus cuidados

crecidos por mais meu dano.

E assi com mal tam forte,

mais crecendo minha fee,

vi passar alem do pee

as Guardas do nosso Norte.

Se dormia, nam sei certo,

se velava, muito menos:

com meus males nam pequenos

nem durmo nem sam desperto.

Nam m' estrevo de torvado

dizê-lo, nom sei se cale,

dali me senti levado

e posto nũ fundo vale.

Ó divina sapiencia,

de todos tam desejada

e de mim pouco gostada

por nom ter suficiencia,

faze-me tam sabedor

que possa dizer aqui,

com favor de teu favor,

as grandes cousas que vi!

Por este vale corria

ũa tam funda ribeira

que estando junto da beira

escassamente se via.

Tanta tormenta soava

naqueste lugar eterno,

que se me representava

quanto dizem do inferno.

De mui escura neblina      

era o ar todo cuberto,

devia ser dali perto

o lugar de Proserpina.

O fogo sem s' apagar,

o mal sem comparaçam,

podiam bem demostrar

o dominio de Plutam.

Nom vi camaras pintadas

com ricos patins de fundo,

dos ricos daqueles mundo

por demasia buscadas.

Nem vi suaves cantores

com vozes mui acordadas,

mas mui discordes clamores

das almas atormentadas.

Nom vi aves mui suidosas

que cantassem docemente,

mas bradavam fortemente

serpentes mui espantosas.

Ali prazer nom senti,

antes descontentamento,

toda cousa qu' ali vi

era para dar tormento.

Dali quisera salvar-me

do que via temeroso,

e das armas do medroso

juntamente proveitar-me.

Mas achar nam pude via

pera me poder salvar,

entam mostrei valentia

para mais me condenar.

E sem fazer a vontade

nem esperar por saude,

quis ali fazer vertude

da minha necessidade.

E tambem por ser sem falha

esta verdade que digo:

qu' os que fojem na batalha

passam sempre mor perigo.

E como faz quem peleja,

vendo-se desesperado.

por honra tomar forçado

a morte que ja deseja,     

assi me fui juntamente

donde o fogo mais ardia,

por viver honradamente

ou morrer como devia.

Assi de todo mudado

ali junto me cheguei

e neste modo falei

assaz bem temorizado:

— Ó jentes atribuladas,

porque razam de vós dê,

dizei a causa porquê

sões assi atormentadas.

Logo de todo cessaram

daqueles grandes tomultos

e com mui disformes vultos

para mi todos olharam.

E logo s' alevantou

dantre todas ũa delas

e sem culpar as estrelas

desta maneira falou:

Este pranto, tam durido,

de tantas tribulações,

sam os justos galardões

dos sequazes de Cupido.

Que por lhe sermos leaes

tantas mortes nos perseguem

que nossas dores mortaes

som mui mais das que se seguem.

Penamos polas folganças

que vivendo procurámos,

qu' ee impossivel que hajamos

duas bem aventuranças:

que seria grand' estorea

e juizo mui profundo

levar lá prazer no mundo

e nestoutro tambem grorea.

Somos passados de frio

em grandissima quentura,

a vida nam tem segura

quem bebe daqueste rio.

Que neste fogo penados

sejamos sem esperança,

mata-nos mais a lembrança        

dos prazeres ja passados.

Polo qual, se tu quiseres

ser livre de nosso mal,

trabalha quanto poderes

por fugir caminho tal.

Sempre te guie razam,

governe como cabeça,

a vontade lh' obedeça

sem outra contradiçam.

E se quereis saber mais,

porque des conta de mi,

sam ũu dos que decendi,

nos abismos infernaes.

E fui lá com tal ventura

que quanto quis acabei,

mas depois me condanei

por nom guardar apustura.

E por mais certos signaes

d' Euridice foi marido,

por ela mesma perdido

nestas penas immortaes.

Eu fui aquele qu' ouvistes

que na museca soube tanto

que fiz com meu doce canto

nom penar as almas tristes.

Aquessas outras companhas,

que penam nessas cavernas,

antigas, tambem modernas,

som de mil terras estranhas,

que jamais se passa dia

qu' aqui nam sejam trazidos.

É mui espaçosa via

a que seguem nos perdidos!

Inda bem nom acabou

de dizer estas razões,

quando com lamentações

longe de mim s' apartou.

Quisera ser enformado

daquela gente que vira,

mas dali fui rebatado

e posto donde partira.

A manhãa escrarecia,      

quando com cantos suaves

nossas domesticas aves

dam sinaes de craro dia.

Polas cousas qu' ali vi

de que nada fui contente

o meu cuidado presente

de deixá-lo pormeti.

Comparaçam.

Mas fui tal dali passando

como homem que prometera

mui grandes mastos de cera

em fortuna navegando,

que, vendo-se daquela fora,

tornado jaa em bonança,

do que passou naquel' hora

nom lhe fica mais lembrança.

E como faz o doente,

a morte vendo diante,

que promete di avante

viver muito continente;

mas o medo ja passado,

é do que vio esquecido,

assi me vejo perdido

mais agora e namorado.

E bem como tem o norte

firmeza sem se mover,

espero firme de ser

na vida, tambem na morte.

Assi como cai direito

o dado quando se lança,

assi minha mal andança

nam me muda doutro jeito.

E bem com' agua do mar

nam muda jamais a cor

nem perde nunca sabor

por quantas nele vam dar,

assi eu, triste, nam posso

com mil males destes taes

deixar nunca de ser vosso,

em que sejam muitos mais.

Fim.

E pois com tanta verdade

vos sirvo com fe, senhora,

havei por Deos algũ hora

de meus males piadade.

Que se deste mal profundo

eu nam sam remedeado,

sam perdido neste mundo

e, no que vi, condenado.

362

DE DIOGO BRANDAM A ANRI‑
QUE DE SAA, SOBRE QUE CHE‑
GANDO A ŨU MOESTEIRO LHE
VEO ŨA FREIRA BEIJAR A
CAPA, SEM LHE DIZER
OUTRA COUSA.

Sem vida fazer em lapa,

as vossas amigas tanto

me têm por homem tam santo

que me vêm beijar a capa.

Mas por mais minha saude,

desejo saber em cabo

se ma beijam por diabo,

se por homem de vertude.

 Reposta d'Anrique de Saa.

De diabo vos seguro,

antes por homem de bem

estas senhoras vos tem,

pois nunca trepastes muro.

E por isso, ao que sento,

a beijam por ter saude,

que ham que tendes vertude

para dor d' esquentamento.

363

D' ANRIQUE DE SÁ A DIOGO
BRANDAM, SOBRE Ũ HOS‑
PEDE QUE TINHA.

Hospede que m' avorrece

sem se temer e sem briga,

pois eu nam sei que lhe diga,

dizei-me que vos parece.

Olhando, vejo maao rosto,

se fala, sensaboria,

faz-me de noite e de dia

estar mais seco qu' Agosto.

Dizei, senhor, que merece

e tambem o qu' eu mereço,

pois que tal vida padeço

com cousa que m' avorrece.

364

DE DUARTE DE LEEMOS A DIOGO
BRANDAM, SOBRE ŨA CADEA
D'OURO QUE TINHA SUA, QUE
LHE NAM QUIS MANDAR,
MANDANDO-LHA
ELE PEDIR.

Senhor, vossa mercê crea

que despachei mal o moço,

por nam tirar a cadea

do pescoço.

Por isso deixai andar,

de a vender sões seguro,

nam queiraes mais razam dar

per' arrancar,

porque som das presas duro.

Nem gastemos mais candea

nem venha cá mais o moço,

qu' eu afirmo qu' a cadea

eu a trarei ò pescoço.

Reposta de Diogo Brandam.

Senhor, dais-me tam má vida

que nam faço dela conta

pola cadea que monta

tanto com' a ser vendida.

O ouro que jaz em poço

a ninguem nam presta nada,

cadea dependurada,

se nam é no meu pescoço,

é pior que rematada.

S' esperança ja perdida

eu tevesse desta conta,

nam sintiria a que monta

tanto como ser vendida.

365

DE LUIS ANRIQUEZ AA MORTE
DO PRINCEPE DOM AFONSO,
QUE DEOS TEM.

¡Oh pueblo de Portugal,

lhorad la triste caida

em que perdistes

vuestro senhor natural,

vuestro emparo e vida

de vos tristes!

¡Y lhorad vuestro morir

pues tenés muchas razones

y no una,

lhorad su triste partir,

bien ansi sus perfeciones

y su fortuna!

¡Oh dia tam perdidoso

de martes, que más valiera

no ser dia!

¡oh dia triste, lhoroso,

do perdimos la bandera

y nostra guia!

Em dia lheno d' aguero,

em dia tam receloso,

de partir,

partiosse nuestro luzero,

partiendo tam deseoso

de bevir.

¡Oh maldita y triste hora,

lugar, sazon y momento

desastrado,

de nuestro mal causadora

em quien nuestro bien sin cuento

fue apartado!

Cavalho, triste carrera,

pareja cruel mortal

del padeciente,

que recebió morte fera

sin poder valer al mal

la su jente.

Princepe más eicelente,

Princepe más jeneroso

no lo havia,

más fidalgo y perflugente, 

más humano y vertuoso

se dezia.

Los passados ni presentes,

ni los que estam por venir

fueron iguales,

a quien las estranhas jentes

deseavan de servir

por naturales.

Animoso, muy humano

Princepe, más dadivoso

y más amado,

portugues y castelhano,

de la gram Princesa esposo

y namorado.

A quien eicelentes bodas,

fiestas, justas tam gozosas

y crecidas,

a las quales ivan todas

las jentes tam desseosas

de sus vidas.

¡Ricas ropas y colhares,

brocados, grandes baxilhas

y pedraria,

quanto gozo em los lugares,

em las cidades y vilhas

se hazia!

Ora por nuestros pecados

y males tam merecidos

falharés

grande luto em los poblados

y los lhantos muy crecidos

oyrés.

En el dia afortunado

em que mortes reecebierom

nuestras vidas,

dió caida el desseado

daquelhas que lo perdierom

doloridas.

Perdiolo su triste madre

de su vida desseosa

y de su gozo,

perdiolo el triste padre

y perdió la congoxosa

su esposo.

Más lo perdieron los suyos

criados, qu' el tanto amoo

y queria.

¿Cuyos se lhamarán, cuyos,

pues la morte les roboo

su senhoria?

¿A quien pidirés mercedes,

a quien los fijos darés,

tristes de vós?

que la perda que hoy perdedes,

cobrar no la poderés,

pues quiso Dios.

Admiracion del autor.

¡Oh desventurada, triste

noeva, cruel, espantosa,

desmaiada,

no siento quien te resiste

sin morir, morte raviosa,

haver contada!

¡Oh tu Reina, tu Princesa,

como voestros sintimientos

no sintiam

la tristura sin defesa,

las angustias y tormentos

que os veniam!

Las nuevas que lhevaran a la
Reina y Princesa.

― Esposa y madre de quien

cayo la mortal caida

del cavalho,

andad a ver vuestro bien,

antes que se vos despida

id buscalho.

Yo le dexo amortecido,

a su padre no responde

nadea, noo.

Id a ver vuestro marido,

ivos, madre, ai fijo donde

se cayo.

La partida delhas.

Solas las dos se partieron,

sin más esperar companhas,

desmaiadas,

corriendo quanto podierom,

las que levam sus entranhas

lastimadas.

Lhegando com gram dolor,

começam desta manera

gritos dando:

— Vida mia y mi senhor,

no me hablaes, fijo, siquiera ,

¿desde quando?

El triste rato del dia

y noche tam amargosa

estovieram

en el lugar do jazia

el que nunca dixo cosa

ni le oyeram.

Y despues a el segundo

dia triste em que morieram,

sin morir,

partiosse daqueste mundo

el por quien lhantos fizieron

d' escrevir.

El planto d'El Rey.

¡Fijo mio y mi amor,

vida de la vida mia,

desseada,

fijo, mi defendedor,

mi prazer, mi alegria

ya passada!

Mi dolor tam lastimero,

mi lembrança, mi passiom

sin deporte,

muerte mia com que muero,

fijo mio, mi prision

es tu morte!

¡ Muerte, que mal escogiste

em lhevar a quien lhevaste,

dexando a mim,

lhevaras al padre triste

y no a el que assi mataste

y diste fim!

¡ Oh morte triste, cruel,   

carecida de piedad

sim manera,

no lhevaras triste a el,

mas a mi em crueldad

lastimera!

Fim del planto con este
dicho de David:

Circundederunt me doloris
mortis et pericula.

Cercaramme los dolores

y la muerte triste en medeo

me tomó;

cercaramme los temores

de males tam sim remedeo,

triste yo.

Los peligros del inferno

me falharam mereciente

del tormento,

pero querrás Tu, eterno,

meter aquel inocente

em tu cuento.

El planto de la Reina.

Fijo, amor de mis entranhas,

la vida de mis plazeres

y conorte,

buelvense penas estranhas,

fijo, pues la causa eres

de mi muerte!

¡ Fijo da desconsolada

madre triste que vos parió

y amava tanto,

a morte cruda, malvada,

dezaseis anhos lhevó

por mi quebranto!

¡ Fijo, amor tan desdichado,

yo la madre más coitada

que nació,

vuestra pena ha findado   

y la mia trabajada

començoo!

Biviré sofrendo el trago

de la muerte, deseando,

fijo, veros;

biveré sempre nun lago

de tresturas, contemplando

el perderos.

Fim del planto con este otro
dicho del Profeta:

 Laboravi in gemitu meo.

Dias, noches, biviree

trabajante em gemido

y angustura,

el mi lecho regaree

com lagrimas y sentido

de tristura.

Regaree el mi estrado

com las fuentes de mis ojos,

no cessables,

pues que triste m' han entrado

los tormentos a manojos,

lastimables.

El planto de la Princesa.

¡ Oh amor de mi querer,

querido del coraçon

más que mi vida,

començo de mi plazer,

començo de mi passion

desmedida!

¡Oh fim de todo mi bien,

venero de mi tristura

sim compas,

sola yo, diram de quien

se partió boena ventura

por jamas!

¡ Yo soy la triste veuda,

cuberta de mil tresturas,

sim abrigo,

de todo mi bien desnuda   

y muy lhena d' amarguras,

sim amigo!

¡ Oo amor de muchos anhos

faltónos la piedad

ambos de dos,

mas no los terribles danhos

ni la triste soledad

que he de vos!

¡ Oh vida tam enemiga!

¡oh morte tam deseada,

que no vienes

dar manera como siga,

por quien vivo trabajada,

pues lo tienes!

¡ Doelete de mi congoxa,

doelete de mi tormento

a que no fuyo,

pues no mengua ni se afloxa,

sea mi enterramiento

con el suyo!

 Prosigue el planto con este
dicho de David:

Defecerunt in dolore vita mea.

Desfalhece em dolor

mi vida con el tormento,

qu' atormenta

la congoxada de amor,

la triste, que no tem cuento

su afroenta.

Los mis anhos em gemidos

acabaram su bevir

in mal inmenso,

¡ y los mis males sobidos

no se poderám dezir

por extenso!

Fim com este dicho de Job:

Dies mei velocios transierunt.

Tan a priessa y tam trigosos       

mis dias se trespassaram

mal logrados,

y com casos tam lhorosos

mis pensamientos quedaran

dessipados,

atormentantes de mim,

coraçom lheno de doelo

y d' espanto,

¿ oh porque no fago fim,

porque vivo neste suelo

de quebranto?

Fim y oraciom.

Virgem, cuya humildad

mereció ser tanto dina

que la Persona devina

quis tomar humanidad

y ser de tu ventre nacido,

por lo Qual mi alma implora

que al Padre rogadora

seas por el falecido.

366

LAMENTAÇAM AA MORTE D'EL-REI

DOM JOHAM, QUE SANTA GRORIA

HAJA, FEITA PER LUIS

ANRIQUEZ.

Chorai, Portugueses, o tam vertuoso

Rei Dom Joham, o segundo, que vistes,

tornai-vos de ledos a ser muito tristes,

pois de vós outros partio desejoso.

Nô menos vos lembre o mui animoso

Princepe, filho daqueste, defunto,

sas mortes e perdas chorai tudo junto

nô menos sa madre do triste repouso.

Ó Morte cruel, sem tempo chegada,

a ti, Lusitania, de lastima dina,

ó triste Fortuna, qu' assi nos assina

vestidos de xerga vida lastimada!

Ó patria triste, de males fadada,

chorem nos tristes de ti naturaes,

pois de tristezas têm tantas e taes       

que delas qualquer grand' era chamada!

Chorai pola morte do vosso bom Rei,

chorai a partida de suas vertudes,

chorai todos esses, que nom fordes rudes,

o gram pelicano da lei e da grei!

Ó vós, seus criados, chorai como sei

o que vos havia por filhos a todos,

chorai vós aquele qu' acima dos godos

era tam certo com' ee nossa lei.

Ó Morte, que matas sem tempo e sazam,

sem ordem nem lei te governas e fazes

sem grandes caudilhos ficar muitas azes

e deixas a muitos qu' obriga razam!

É tua inorme desassulaçam

assi adversaria à humana jente,

assi o que peca com' o inocente

a todos trestornas segum qu' ouviram.

O mauno Alexandre, do mundo senhor,

levaste no tempo que mais frorecia

e quando em vertudes mais permanecia

o mui esforçado troiano Heitor,

o forte Troilos com seu matador,

Pares e Febos e El-Rei Menom,

nô menos a Pirros e Agamenom,

que dos greceanos foi emperador.

E assi t' aprouve a todos pesando

levar-nos a perla do Princepe Afonso,

leixou-nos gram dor o triste responso

que em suas honras ouvimos cantando.

O que s' esperava que fosse imperando,

tam moço de dias, tam velho em saber,

fizeste-nos orfãaos, assi de prazer,

que nossa tristeza mais crece lembrando.

E nom acabados seriam cinc' anos,

quando tu, triste, cruel e tragoa,

levaste seu padre, qu' a fam' apregoa

passar em vertudes os bravos romanos,

e guerras ferozes com os africanos fazer,

e soster em paz seu reinado,

leixou-nos sa morte gram dor e cuidado,

vestindo-nos todos de mui tristes panos.

Mas como e quando aquele Deos inmensso

premite que vá de bem em milhor

reinos e casos daqueste teor,

assi nos deixou outro que ha censo

de muitas vertudes, as quaes por istenso

se nom poderiam aqui expressar,

que haja o reino d' herdar e reinar

per muitos anos sem nenhũ dicenso.

Est' ee o mui alto e mui perflugente,

mui serenissimo Rei e Senhor

Dom Manuel, de tanto louvor,

a quem em vertudes Deos sempre acrecente.

Est' ee o filho do mui eicelente

Infante Fernando da crara memoria,

é o bisneto do Rei, que vitorea

houve per vezes de mui prepotente.

Fim.

Assi, Lusitanos, que vossa graveza

devês confortar com Rei tam humano,

em sua bondade trespassa Trajano

e outro Alexandre em grande franqueza.

Roguemos a Deos por Sua Alteza

e polas almas do filho e padre,

tambem pola vida da molher e madre,

dos que sam causa de nossa tristeza.

367

DE LUIS ANRIQUEZ, QUANDO TROXERAM
A OSSADA D' EL-REI DOM JOAM O
SEGUNDO, QUE É EM
SANTA GRORIA.

As musas, qu' envocam famosos poetas

em suas obras e doce poesia,

a estas nam chamo nem quero por guia,

caso que sejam mui justas e netas.

Ajuda demando de Quem os planetas

e ceos obedecem, desde ab inicio,

a Ele invoco, que neste eixercicio

dê parte da graça que deu òs profetas.

E pera que seja de mim alcançada

a graça superna, que eu desmereço,

Madre sagrada, a Ti ofereço

este traslado de grand' embaixada,

a qual pelo Anjo Te foi presentada

da parte d' Aquele de Quem Tu es madre,

ó filha do Filho, esposa do Padre,

per Ti medeante me seja outorgada!

Ave Maria, do Verbo morada,

gracea plena do Esprito Santo,

Dominus tecum sei Tu a nós tanto,

benedicta Tu que foste gerada,

benedictus fruitus por Quem es chamada

madre e virge por mais eicelencia;

no auto presente influi ciencia,

porque nom seja a mi comparada.

Prossigue.

Pois foi vossa vida a todos notorea,

Rei mui potente per todo universo,

vejamos da morte, em este meu verso,

per quantas maneiras soes dino de grorea.

É bem que se saiba e fique memorea

de cousa tam justa de ser memorada,

notar caronistas, poer em estorea

cousa tam nova a mi demostrada.

Morrestes na fé atam esforçado,

tam contemprativo nas cousas devinas,

tam bem empregando vossas cinco quinas,

em quem tem o reino tam assossegado.

Foi tam aceito o per vós ordenado

diante daquele juiz ab eterno,

que vos fez herdeiro no reino eterno

donde por sempre será mui louvado.

Rei santo, Rei justo, Rei dino de ser

canonizado na igreja por santo,

pois vimos milagre tam dino d' espanto

que ũu soo no mundo e este é de ler:

O rosto Trajano sem terra comer

qu' o Papa Gregorio salvou de perdido,

jentilico sendo, per Deos premetido,

soo per verdade e justiça fazer.

Pois que diremos de vós, Rei Joham,

cristianissimo, justo com obras,

jazente quatr' anos com bichos e cobras

em terra tragante, sem farta ser nam.

O caso tam dino de admiraçam,

ũu corpo humano sô terra mitido

per tanto tempo sem ser corrompido

per cheiro nem outra pior curruçam!

Sem ser diferente, vós fostes achado

da propea forma de quanto no mundo,

per mando d' Aquele eterno, perfundo

composto do cheiro do ceo enviado,

pera que fosse a nós revelado

a fé e esperança, que n' Ele tevestes,

e a gram paciencia, com que recebestes

a morte, qu' a todos nos dobra cuidado.

Pera que fosse mais craro a nós

o merecimento que tendes com Cristo,

o grande misterio, qu' em vós temos visto,

faça-nos crer que soo fostes vós,

depois de Francisco, santissimo empós

ele, segundo tal bem alcançastes,

fazendo milagres no que demostrastes

ser mui aceita voss' alma com Deos.

Fostes trazido com tanta eicelencea

per mandado do Rei, primeiro no nome,

cujas vertudes nom haa quem assome

com toda moderna, antiga ciencia.

Este foi filho na obediencia,

este nas obras nam pode mais ser,

este com lagrimas quis preceder,

no modo e forma que tem priminencia.

Foi logo segundo, após Sua Alteza,

o vosso mui caro filho e amado,

chorando na forma qu' a filho é dado,

mostrando em sa cara dobrada tristeza.

Depois nos senhores, fidalgos, largueza

de muita tristura mostraram em ponto,

muito me culpo que nam sei nem conto

o meo das cousas, segundo se reza.

Fim.

Ali vos trouxeram, u sam congregados

todolos corpos de vosso abolorio,

durante o mundo será mui notoreo

a grande memoria dos i sepultados.

O Rei Manuel, a quem os passados,

presentes, foturos nom sam d' igualar,

em grande maneira vos prouve honrar

o corpo, praceiro dos canonizados.

368

DE LUIS ANRIQUEZ EM LOUVOR DE
NOSSA SENHORA, SOBRE AVE MA‑
RI'STELA, NA ERA DE QUINHEN‑
TOS E SEIS, ESTANDO O
REINO MUI ENFER‑
MO DE PESTE E
DE FAMES.

Mari' stela, Deos Te salve,

madre de Deos tanto santa,

que sempre virgem Te canta

a igreja mui suave!

Ó tambem aventurada,

porta do ceo, mater pia,

ante secula criada,

em teus louvores me guia!

Tu, tomante aquele avé   

concebeste Emanuel

por mesajem tanto grave.

Funda-nos em paz, Senhora,

pois mudaste o nome d' Eva,

todo pecador s' atreva

pedir graça qu' em Ti mora.

Tir' as presões òs culpados,

òs cegos dás craridade,

destrui nossos pecados

por tua gram piadade.

Nossos males de nós lança

dá-nos beens esprituaes,

roga polos temporaes,

segundo tua ordenança.

Amostra-Te seres madre,

recebe os rogos per Ti

Quem carne tomou de Ti

e see à destra do Padre.

E pois que por nós nacido

teu Filho lhe prouve ser,

salvar-nos de padecer

Lhe seja per Ti pidido.

Virgo singularis, mansa

mais que todalas nacidas,

a ira do Padre amansa,

nam pereçam tantas vidas!

E sendo nós desatados

de culpas e de maldade,

em mansidões e castidade

nos tem, Madre, conservados.

Dá-nos vida limpa e puro

caminho per onde vamos,

aparelha-nos seguro

este ser que desejamos,

por tal que vendo a Jesu

com Ele nos alegremos,

o qual bem nam merecemos

se o nam alcanças Tu!

Ò Padre por eicelencia

louvor, a Cristo vitoria,

ò Esprito Santo grorea,

tres em ũu Deos por essencia.

Graças a Nossa Senhora

que tanto bem mereceo

e o Padre A escolheeo

pera nossa intercessora.

Fim.

Por tua grande cremencea,

ó Rainha anjelical,

pid' ao Rei celestrial

qu' alevante a pestelencea

e fames de Portugal!

369

DE LUIS ANRIQUEZ, ÀQUELE PASSO
DE QUANDO NOSSO SENHOR
OROU NO HORTO, ENVIADAS
A ŨA SENHORA, EM
VALENCIA.

Invocacion al Sprito Santo.

Tu que alumbras, Tu que guias

a los errados y ciegos,

Tu que em lenguas de fuegos

la tu gracia nos embias.

Las defeculdades mias

dale tu gracia, Senhor,

pera que conte el dolor

de tus grandes agonias,

quando Tu morte sintias.

Prosigue contemplando.

Pues ya la cena passada,

los cristianos contemplemos

aquelha carne sagrada

de qual ya nos acordemos,

acordandonos lhoremos

la passion com que camina

al horto, donde s' enclina

por el mal que cometemos.

Exclamacion.

¡ Oh males endurecidos,

oh pecadores mundanos,

solo el nombre de cristianos

tenemos desconocidos!

Sentid, sentid los gemidos

del Senhor qu' en tal pelea

es posto, porque nos vea

librados de ser perdidos.

 Prosigue.

El Maestro conociendo

lo qu' era profetizado,

tres decipolos escogiendo,

camina tam fatigado.

Antes del horto lhegado

les dize: — Quedad aqui,

hasta qu' al Padre por mi,

amigos, haya rogado.

― Triste es anima mea

usque ad morte — les disse

antes que se despidisse.

La carne que lo recea,

com temor de la su muerte,

temblava tam sim abligo,

dizendo: — ¡ Velad comigo

naqueste passo tam fuerte!

El Senhor que ya sintia

la su passion venidera,

sintiendo qu' acerca era,

al Padre merced pidia.

Y lhorando Le dizia,

arrodilhado nel suelo:

— ¡ Padre mio y mi consuelo,

oye la piticion mia!

Pater, si possibele es

qu' este calez nom pasasse,

si tanta merced halhasse,

ya sabes Tu qual me ves.

Pero no como yo pido,

sino como Tu lo queres,

tu mando sea complido,

si por mejor lo tuvieres.

El Senhor, em acabando   

su primera oracion,

con el temor batalhando

sin tener consolacion,

fue hazer visitacion

a sus santos tres criados,

que dormian descuidados

de la su morte y passion.

Despues d' assi los falhar

dixo no como enemigo:

—¿ Nunca podistes comigo

una hora vegilar?

Vigilad, fijos, y orar,

em tentacion non entrés
y aqui m' esperarés,

que no sea de tardar.

Bien sabia el por venir

el Senhor que esto dizia

y com dolor que sintia

al Padre volve pidir,

de rodilhas se fincando,

com muy amargo dolor,

las manos al cielo alçando,

publicando su temor.

Oracion al Padre.

― ¡ Padre mio, yo tu fijo

Te demando piedad,

mira mi necessidad

del temor com que letijo!

Si no se puede escusar

este calez tam amargo,

obedezco sin embargo

de la morte recelar.

El autor.

Las angustias y temores

del Senhor y su recelo

le causam tales sudores

que regava todo el suelo.

Su corpo tam delicado

tanta fatiga sintió

que com força d' afrontado

gotas de sangue sudoo.

Contemplacion.

¡ Mira con ojos d' amor

pecador y pecadora,

contemplando nel Senhor

que olvidas cada hora!

¡ Contempla qual estaria,

tantos males esperando,

contempla que los sintia

como nel auto estando!

Contemplemos y lhoremos

la passion daquel momento

y assi no olvidemos

su muerte y padecimento.

Lhoremos con sentimiento

la consolacion del Padre

y las noevas que a su Madre

dieram dolores sin coento.

Desd' aquel impirio cielo

fue oido su pidir,

mas contempla que consuelo

del Padre pudo sintir.

¡ Oh Senhor, y quien sofrir

pudo consuelo tan forte,

que em lugar d' escusar morte

Te la mandam recebir!

Com una cruz en la mano

ũ Anjel Le apareció

da parte del Soberano,

aquelha Le ofereció,

diziendo: — Sabe, Senhor,

que tu morir sea prueva,

porque seas remidor

del danho que hizo Eva.

El Padre tuyo consente

que mueras morte muy cruda,

que su querer no se muda,

porque se salve la jente.

Y que seas obediente

d' homilde, manso cordero,

y mueras neste madero,

pero seas inocente.

Desque huvo entendido

del Anjel su embaxada,

com ũu amor encendido

forçó la temor passada.

Com voluntad muy ornada

de paciencia y d' amor,

caminó el Buen Pastor

donde estava su manada.

Lhegando donde dexó

los tres que dormiam ya,

dixo: — Dormid y folgad,

porque ya se concluyó.

El tempo es ya venido

em que el Fijo del hombre

sabed que será traido

por bien, por vuestro renombre.

Excramacion.

¡ Oh sangue de tanto precio!

¡oh precio tan mal mirado,

mal mirado y olvidado,

tenido en tanto desprecio!

¡ El Senhor tan humilhado,

sofriendo morte por nos!

¡ Oh mundo tam infernado,

no seguimos su mandado

ni sabemos se ha y Dios!

Oracion en nombre de
la senhora.

Senhor, por aquel dolor

com que al Padre oraste,

Senhor, por aquel fervor

del muy entranhable amor

com que la morte tomaste.

Por las lhagas, por la cruz,

açotes, clavos, corona,

por Ti mismo, que eras luz,

mis pecados me perdona.

Oracion a la cruz.

¡Oh consagrado madero,

que tanto bien mereciste,

que nuestro Dios verdadero

Lo toviste em peso intero

donde gran don recebiste!

Pues que has sido balança

de peso tam singular,

plegate de me guardar

mis fijos de mal andança.

370

PATER NOSTER GROSADO PER
LUIS ANRIQUEZ.

Cri' eleison, Crist' eleison,

Tu, Senhor, que nos fizeste,

dá-nos, pois que padeceste

por nós outros, salvaçam!

Dos filhos de maldiçam

a Ti praza que nos veles,

dá-nos, Senhor, contriçam,

Pater noster qui es in celes,

Santificetur nomem tuum,

mui temido e adorado,

de toda gente comũu

de sempre tee fim louvado.

Pois que com a devindade

es eterno Deos e ũ,

pois tomaste humanidade,

adveniat reinum tuum.

 Fiat voluntas tua,

Senhor, que nos has livrado

da eternal pena crua,

por teu ser crucificado.

E pois que da cruel guerra

nos livraste, Redentor,

damos-Te graças, Senhor,

sicut in celo et in terra.

Panem nostrum quotidiano,

em o qual per fe Te vemos,

praza-Te, pois que Te cremos,

que nos livres do gram dano.

Dá-nos o bem qu' esperamos

depois da morte per fee,

com a qual Te confessamos

Tu da nobis hodie.

Demita nobis debita nostra,

pois é mais ta piedade

que toda nossa maldade,

o bom caminho nos mostra.

Ó tres em ũa pessoa,       

donde nos todo bem vem,

perdoa, Senhor, perdoa,

sicut et nos demitimos, amen.

Et ne nos inducas in temptationem,

dá-nos firme fee sem cabo

per u livres do diabo

per tuam remissionem.

E se nos maginações

de Satam ou seu vassalo

vierem ou tentações,

sed libera nos a malo.

Oraçam do autor.

Tu, que as portas abriste

do lago do desconforto,

Tu, que o mundo remiste

per ta morte sem ser morto,

dá-me, Senhor, contriçam,

no ultemo desta vida,

firme fee e salvaçam

e guarda por ta paixam

minh' alma de ser perdida!

371

LUIS ANRIQUEZ A ŨAS MOLHE‑
RES QUE LHE DIZIAM MAL
DE SUA DAMA, QUE
FAVORECIA OUTRO
SERVIDOR.

Leixai-me ser enganado,

contente com meu engano,

porque sou tam namorado

que lembra meu cuidado

mais que vosso desengano.

Desta vida me contento,

pois que sei que se contenta

quem tem tal merecimento,

que quanto mais m' atormenta

menos sinto meu tormento.

E pois minha condiçam

é a que nestas presento,

nam me dê ninguem paixam,

pois minh' alma e coraçam

consente no que consento.

E os que bem me quiserem

queiram o que nisto quero

e se por mal o teverem,

todos de mim desesperem,

pois eu tambem desespero.

372

DE LUIS ANRIQUEZ.

Leteas, quem vos bebera,

porque nunca me lembrara

da grorea, se a passara,

da perda, se a perdera!

Fora bem pera meu mal,

se se podera fazer,

mas pois nam pode ser al

mude-s' a pesar prazer.

Oh se nunca conhecera

tanta grorea nem gostara,

porque nunca m' acordara

de quam cedo a perdera!

373

OUTRA SUA.

Toda cousa dá paixam

a quem dela se recea

e caso que se nam crea

lá o sente o coraçam.

Sente dor da presunçam

muito mais do que se vê

e qualquer maginaçam

é razam que pena dê.

E qu' isto traga paixam

a quem dela se recea,

ainda que se nom crea,

dá tristeza o coraçam.

374

LUIS ANRIQUEZ AO CONDE DE
PORTALEGRE, QUE LHE MAN‑
DOU FAZER ŨAS TROVAS
SEM LHE DIZER
SOBRE QUÊ.

Senhor, quem Deos acrecente

a vida, pois que no al

vos fez tanto eicelente

que ficastes precedente   

dos que vindes principal.

Porque graça e parecer,

franqueza, manhas, custumes

acharam em vós tal ser

de que se podem encher

de grandezas mil velumes.

Pois d' esforço diferente

nam serês vós dos Meneses,

de que vindes decendente,

no tempo conveniente

de tratardes os arneses.

Em o qual tempo s' espera,

pois vos Deos começou bem,

que vosso louvor s' esmere

e fama tanto prospere

que vos nam chegue ninguem.

Dê-vos Deos tanta vitorea

com que vossa senhoria

seja dino de memorea

e receba sempre grorea

vossa gram jenelosia.

E a mim deixe fazer

quantos serviços desejo,

porque possa merecer

de vós conhecida ser

esta vontade e despejo.

 Fim.

Se tanto nom sei louvar,

quanto se deve e queria,

crea vossa senhoria

que no saber foi minguar

quanto a vontade crecia.

375

CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
QUE LHE PREGUNTOU
COMO LHE IA.

Pois sabêes que me vai mal,

pera que mo preguntaes,

sendo vós quem mo dobraes?

Pois que me nom fazês bem,

nam m' acrecentês cuidado,

tenha seu mal quem no tem,

nam lho dês vós mais dobrado.

Pois sabês quam agravado

me tendes cada vez mais,

pera que mo preguntaes?

376

OUTRA SUA.

Que remedeo pode ter

quem vive com tal tristura,

senam desejar perder

a vida, pois a ventura

foi contraira do prazer?

Pois que se perdeo a grorea,

a vida que quero dela?

Será descanso perdê-la,

porque nam fique memorea

do mal qu' ee viver sem ela.

Oh se fora em meu poder

a morte com' a tristura,

podera descanso ter

a vida, pois a ventura

foi contraira do prazer!

377

ESPARÇA SUA.

Siendo grave de sentir

mi dolor dulce, secreto,

deseo sempre bivir;

tanto soy al mal sojeito

que descanso em lo sufrir.

Tengo mi pena por grorea,

por descanso mi tormento,

¡ oh mim dulce pensamento,

noo s' olvide la memorea

deste mal que soy contento!

378

OUTRA SUA.

Neste mal que me fazeis

sabês vós quanto ganhaes?

Eu me salvo e vós perdeis

mais do que vós nom cuidaes.

Se com morte soes servida,

meus males haveram fim

e fim de tam triste vida

será grorea pera mim.

Em perder-me perdereis,

qu' outro tal nunca cobrais,

nem servidor ja tereis

de culpada, que matais.

379

OUTRA SUA.

Quando vi meu bem comprido

e meu prazer acabado,

vi-me com maior cuidado

e mais perdido.

Vi crecer contentamento,

vi minguar minha tristura,

ditosa minha ventura,

alegre meu pensamento.

Vi meu desejo crecido,

vi meu descanso cansado,

por me ver com mor cuidado

despedido.

380

OUTRA SUA.

Se se podesse dizer

o que nam ouso falar,

nam queria mor prazer

pera tamanho pesar.

Pera meu mal outro bem

nam ha i senam dizer-se

e pera poder fazer-se

nenhũ remedeo se tem.

Pera quem soube entender

outro bem nam desejar,

devera-se d' ordenar

que se podera fazer.

381

OUTRA SUA.

Nam vos ouso de falar

e desejo, que podesse,

e temo, se o fizesse,

senhora, de m' acabar.

Conheço vossa crueza,

conheço meu bem querer,

e sei que minha firmeza

me lançou sempre a perder.

Eu nam vos posso negar

se meu bem mal nom fizesse,

que me nam visseis tornar

a sofrer o que viesse.

382

OUTRA SUA.

Pois conheço que folgais

com quanto mal me fazeis,

nunca me queixar vereis

por maior que mo façais.

Pois que me determinei

por vosso determinado,

quero viver nesta lei

satisfeito co cuidado.

No que vós determinaes,

nisso me satisfazeis,

mas queixar nom me vereis

por mor mal que me façaes.

383

DE LUIS ANRIQUEZ A Ũ HOMEM QUE
NAM CRIA QUE ELE FIZERA ŨAS
TROVAS D'ARTE MAIOR,
PORQUE LEVAVAM
MUITA POESIA.

Pues vos, mi senhor, tan mucho dudaes

em ũa mi obra de arte mayor,

si vos me tenés por desse teor,

no quero dezirvos em quanto erraes.

Mas a bueltas desto tambem no creaes

que pudo quem pudo y no lo que noo,

porque nunca hombre naqueste dudó

como por cierto vos lo porfiaes.

Assi dudarés no nacer Titom,

passada la sombra que ciega la gente,

ni menos crerés que nel oriente

el Febo s' esconde de nostra visiom.

Ni Polus y Castor que muy fixos som,

ni menos que muestra tres caras Diana,

ni ser nestas partes echado Fetom,

muerto por ravia de groria mundana.

Ni menos que a Cloto, Outropus, Laquises 

obram las vidas y fim de la gente,

ni menos qu' el duque, el fijo d' Anquises,

foy al Erebo, segum el prudente

Virgilio recuenta, por el conseguiente

que al su passaje tremió la paluda

ni que la Penea passó morte cruda

por el piadoso qual ela lo siente.

Ni que el grand' Hercoles partió con Teseo

al baxo caos furtar Proserpina,

prendendo el Cerbero muy presto y aina

aquel que dormió, tanhendo Orfeeo.

Ni menos que jaze sepulto Tifeo

do som las fornazas del forte Vulcano,

ni que las fijas al padre Peleo

mataram por verle no tam anciano.

Ni que las Gorganas ũ ojo tenian

y con aquel todas usavan del ver,

ni que los mirantes nun punto morian

quan presto le vian, sin más detener.

Ni que Perseo por arte y saber

pudo cegalhe y matar Medusea,

ni que com ravia d' amores Medea

sus fijos matara, por vengada ser.

Fim.

Lo del Minotauro ni su laberinto,

que Dodalo fizo, tambien dudarés

y del velhocino, con el entremes

que Jupiter fizo, dirés que vos minto,

d' Europa robada, mijor que lo pinto,

por quiem los hermanos foran desterrados

y a la su patria jamas retornados,

havendo otros reinos com forças estinto.

384

LUIS ANRIQUEZ EM QUE FINGE QUE
ESTANDO NA MINA, ANDANDO SOO, FOI
ACHAR EM Ũ VALE A TRISTEZA
E CONGOXA E ESPERANÇA EM
FORMA DE DONAS, E COMO
LHE PERGUNTA QUEM
ERAM E A REPOS‑
TA DELAS.

Doenhas muy dinas de gran cortesia,

com gram reverencia suplico e demando

perdon, se pregunto lo que nom devia

y algo anojaré, senhoras, fablando.

El triste desseio me traye buscando      

las selvas, los valhes por más solitarios,

los quales ham sido a mim tan contrarios

que vostras mercedes falhé, non pensando,

Em terras desertas de tales linages,

em terra de gente atam bestiales

que delhas a brutas y feras salvages

no som diferentes em seren iguales.

Em terras sim bienes tam lhenas de males,

tam desviadas de donde nacistes,

donde no viven sino los tam tristes

que como yo siguen los terminos tales.

Dezidme la causa de vuestra venida,

dezidme la sorte de vosso bivir,

dezidme si en algo vos puedo servir,

que nesto ternia descanso mi vida.

Dezidme la patria de donde nacida,

los nombres, ventura que aqui me truxo,

y no me hayades por tanto proluxo.

em demandarvos la merced pidida.

La una daquelhas responde diziendo:

— Em tu demanda bien es conocido

que tam tresportado está tu sentido

que todas nosotras vas desconociendo.

Contigo partimos, contigo viviendo,

nunca partidas de ti nos falhamos,

conoce aora, pues te declaramos,

las causas que assi nos estás preponiendo.

Foy mi repoesta: — Descreta senhora,

por cierto lo dicho yo no lo entiendo,

quanto más penso, voy menos sabiendo,

los casos motos muy más san aora.

Mi alma, mi vida, senhora, implora

que quieras lo cierto assi enformarme,

que no t' emportune ni pueda quedarme

doblada la pena que nunca mejora.

Reposta delha.

Quero dolerme de vossa passion,

quero los nombres dezirvos daquelhas

que tienem com vos a tal afecion

que sempre vos siguen y vos seguis elhas.

Oid, escuchad, las vuestras querelhas,  

tomad el entento daquelho que digo:

si tanto no fuessedes vuestro enemigo,

por cierto sus trajes diran quen son elhas.

Somos Tristeza, Congoxa, Esperança,

poca que tienes pera tu remedeo,

las quales em torno te toman el medeo

e cada qual usa daquelho qu' alcança.

Nacidas, criadas somos sin dudança

naquelha gram casa que dizen d' amor,

la ũa t' esforça, las dos dam dolor,

tomando de ti muy larga vengança.

Admiracion del autor.
Exclama.

¡ Oh mis companheras tan comunicables!

com los sintidos tam tristes, penados,

dezidme aora: — ¿ Serés perdurables

por siempre comigo con tales cuidados?

Respondem: — Por certo nom som revelados

estes secretos a nos, ni sabemos,

y baste lo dicho, que más no podemos

dezirte daquelho que siguen los fados.

Fim.

Despues de ser delhas assi enformado,

assi se somieram delante mis ojos,

que no vide más sino los despojos

que de mis fuentes haviam manado.

Seria al tiempo qu' el Febo boltado

de jus de la terra de nostro hemisperio,

falhém' acostado con el refrigerio

que quedam los tristes con tanto cuidado.

Cantiga por fim desta obra.

¡ Oh sentidos desterrados

de la gloria que perdistes,

pues que logo no moristes,

fue por serdes más penados,

lhorando los dias tristes!

¡ Oh lastimada partida!     

¡oh mi penado bevir,

como puede ya sofrir

tantas mortes una vida!

Fueran mis bienes tornados

em lhantos, sospiros tristes

y se logo no moristes

fue por sermos ordenados

a los males que quisistes.

¡ Oh vos ravias infernales,

sacad, sacadme daqui,

pues que mis bienes perdi

por troque de tantos males!

Sentidos desventurados

que tanta grorea perdistes,

com lamentaciones tristes

acabem nuestros cuidados,

con la fee que consentistes.

385

OUTRA SUA.

Sam mais vosso namorado

do que nunca foi ninguem,

pois nam desejo mais bem

qu' acabar neste cuidado.

Trago disto presunçam,

ando tam cheo d' oufano

que nam m' engana engano,

antes me salva tençam.

Se m' havês por enganado,

bem no pode ser alguem,

mas eu nom quero mor bem

qu' acabar neste cuidado.

386

LUIS ANRIQUEZ EM LOUVOR
DE ŨA SENHORA, QUE SER‑
VIA EM VALENÇA
D' ARAGAM.

Fue muy grande desvario

cometer pera loarvos

porqu' el poco saber mio

de cierto que yo no confio

que es más que per' adorarvos.

Y que tambem no rezone

esta rude pluma mia,

tome vuestra senhoria     

mi sentencia y perdone.

Perdone el atrevimiento

que de loarvos tomee,

yo perdono al pensamiento

que causó mi perdimiento

desque triste vos miree.

Porque vossa gram beldad

me sojuzgó de manera

que ternés fasta que muera

mi vida, mi libertad.

Porque havés sido nacida

entre nos com tal primor

que assi lhevaes de vencida

las damas em esta vida

que se muerem de dolor.

Moerense, jentil donzelha,

por quan linda vos mostraes,

los hombres tenem querelha,

porqu' a todos los mataes.

Que vuestra gran fermosura

y gracia tam singular,

vuestra beldad y mesura

em tanto grado se apura

que no se puede contar.

Y pues que vos fizo Dios

entre todas escogida,

sabed qu' el morir por vos

es causa muy conocida.

Fim.

Y pues la causa es clara,

la pena crelda de cierto

porqu' el mal que se os declara,

uun poco más se tardara,

sabed que ya fuera muerto.

Y pues que todo tenés,

no olvidés piedad

com que sanar poderés

lo que mata esquividad.

387

OUTRAS SUAS A ESTA SENHORA,
PORQUE LHE DISSE QUE A
DEIXASSE DE SERVIR, POR‑
QUE ERA MALCRIADA
E QUE O TRATA‑
RIA MAL.

Quanto más m' aconsejaes

que dexe de vos servir,

si en elho bien mirares

quanto más lo perfiaes

menos me puedo partir.

Y que mi vida se acorte

es gram bien que se sofriesse,

ca pues tengo ver la muerte,

más vale daquesta suerte

ca sim vos la recebiesse.

Bien muestra vuestra crueza

qu' era razon d' apartarme,

mas la mi mucha firmeza

por más que me des tristeza

no consiente de mudarme.

Que vuestra dulce prision

do tenés la vida mia

esme tal consolacion

sim la qual mi coraçon

no podrá bivir un dia.

Aunque me dexe turbado

algo vuestro desenganho,

em la fim determinado

es que viva enganhado

por la causa de mi danho.

Ca pues ya está sabido

qu' el penar por vos es glorea,

quanto más hovier sofrido

terné certo merecido

de mis males más vitorea.

 Fim.

Y pues veys mi fantesia

y tenciom tam sojuzgada,

dexaos dessa porfia,

porque pueda algun dia

sintir grorea deseada.

No cureis mostrar poder

contra quem poder no tiene

sino de más vos querer

y sofrir y padecer

los males qu' en si sostiene.

388

CANTIGA SUA.

Mal olhado  

é de vós meu gram querer

i de mi, pois que biver

consento neste cuidado.

Ha muitos dias e anos

que vos dei mui de verdade

minha fee, minha vontade,

vós a mi tudo enganos!

Lastimado

sam por tam certo saber

sermos ambos nũ querer,

pera matar-me forçado.

389

OUTRA SUA.

Tristeza, dor e cuidado,

leixai-me! Que me quereis?

Por ventura nam sabeis

que sou ja desesperado?

Sabei vós que vivo morto,

sem esperança de vivo,

nem espero ja conforto

do amor cruel, esquivo.

E pois sam ja condenado,

vossas forças nom mostreis,

ca sabei, se nom sabeis,

que sam ja desesperado.

390

DE LUIS ANRIQUEZ AO DUQUE DE BRA‑
GANÇA, QUANDO TOMOU AZA‑
MOR, EM QUE CONTA
COMO FOI.

A quinze d' Agosto de treze e quinhentos

da era de Cristo, nosso Redentor,

do que se passou estai mui atentos

no dia da Madre do mesmo Senhor:

O Duque eicelente, nosso guiador,

Dom James da casa d' antiga Bragança,

de jente levando mui grande pujança,

geral capitam partio vencedor.

Nom peeço favor que possa contar

o que se passou na santa viajem,

nem menos ajuda me praz d' invocar

aas antigas musas nem sua linhajem,

mas soo à Senhora qu' haa feito menajem

de virgem humilde por onde foi madre,

que Ela m' alcançe a graça do Padre,

pois que foi dina da suma messajem.

Partio com a graça d' O que triunfando

n' arbor da cruz alcançou vitoria,

per mando do rei que vai imperando

per gram vencimento de eterna memoria.

Os reis perseanos mui dinos de gloria,

da India, Arabia, tambem d' Etiopia,

e outros que fazem em soma gram copia

lhe sam trebutareos per fama notoria.

Crece seu mando, seus reinos alarga

per seus capitães na jente infiel,

o gram poderio dos mouros embarga

em gram quantidade per guerra cruel.

Oo mui serenissimo Rei Manuel,

a espera que trazes será triunfante,

se com tuas gentes passares avante,

ganhando a casa que foi d' Israel!

Volvamos a fala ò gram Gudrufé,

daqueste gram Carlos direi sas façanhas,

nom menos d' esforço do gram Jesué

em sua vitoria, grandezas tamanhas.

Nunca de Roma se vio nem Espanhas

tam gram capitam nem mais esforçado,

de reis infinitos parente chegado,

dotado de grandes vertudes e manhas.

No dia da festa da santa Assunçam,

partio de Lixboa com toda sa frota,

mui apontada em tal prefeiçam

qual outra nom vimos nem livros se nota.

Assi todos juntos seguiram sa frota,

juntando-s' em Faram a nobre companha

de condes, fidalgos, mais nobres d' Espanha,

onde surgiram tod' alma devota.

Levando consigo a bandeira real,

que nunca vencida se pode dizer,

pois é invencivel aquele sinal,

tomado das chagas que quis padecer

o Sumo Bem nosso com muitos marteiros,

porque salvasse o mundo perdido,

tambem senefica os trinta dinheiros

per cujo preço foi Cristo vendido.

Depois de chegados e todos surgidos, 

quando vio tempo mais conveniente,

senhores, fidalgos foram requeridos

qu' a ele se fossem todos juntamente.

Des que congregados com ele presente

lhes fez ũa fala de tanto primor,

como aquele que tem gram favor,

ajuda, sossidio, de mais eloquente.

Onde per ele lhes foi decrarado

toda a tençam d' El-Rei seu senhor,

que foi enviá-lo sobre Azamor,

pola maldade do erro passado.

Qu' a todos pidia que d' amor e grado

quisessem, sem outra vontade nem zelo,

em sua tomada tambem cometê-lo,

pera que sempre lhes foss' obrigado.

Porque depois de ter esperança

em Nosso Senhor de lhe dar vitorea,

em eles levava tanta confiança,

pera todo feito mais dino de grorea.

Que lhes pedia qu' houvessem memorea

das cousas de Roma, quando prosperava,

em quanta maneira a lei se guardava,

segundo se nota na sua estorea.

Com Romus e Romulo tambem alegando,

de quando s' aquela cidade fundou,

a pena que houve, porque quebrantou

a lei que foi posta em se começando.

Que lhes pidia que nunca desmando

a guerra durante em eles houvesse,

mas que obedecessem ò qu' ele quisesse

e que ele sempre seria a seu mando.

Com doces palavras forradas d' amor,

com mui animoso desejo e vontade,

com mil cortesias, com grande favor,

com ũas entranhas de pura verdade,

assi os pervoca com tal mansidade

que todos respondem, dizendo: — Senhor,

nosso desejo é muito maior

do que nos pediis em gram quantidade.

Ouvindo palavras tam bem razoadas,

ficou de contente atam satisfeito

dessa senhoria atam estimadas,  

que o por fazer estimou por feito,

dizendo que sempre seria sogeito,

fazendo por todos, como bem veriam,

que d' i em diante eles conheceriam

as suas palavras ficar em efeito.

Prossigue.

Eram quatrocentas as velas d' armada

sobre cinquenta sem ũa faltar,

foi ũa das cousas mais pera notar

que vimos nem vio a jente passada!

Tam posta em ponto, tam aparelhada

de todolas cousas que se requeriam

e d' artelharia tam bem compassada

que nada faltava, segundo deziam.

Partimos em ponto sem mais esperar,

depois desta fala assi acabada,

e em poucos dias podemos chegar

aa boca do rio da cidad' honrada.

E porque a barra estava çarrada

e era ũ pouco perigoso d' entrar,

houve conselho com detreminar

que em Mazagam foss' a terra tomada.

Achámos o porto quieto, seguro,

a frota mui junta se pôs bem em terra,

mui bem concertada no auto da guerra

com grande recado, conselho maduro.

No dia siguinte depois do escuro

ser ja passado e sol ja saido,

saio toda gente, mais forte que muro,

d' esforço guarnida sem nada fingido.

Com muita prudencia, esforço, cuidado,

o Duque ordena sentar arraial,

mais trabalhando do que Anibal,

quand' houve os Alpes de todo passado.

Pôs suas estancias com tanto recado

e seus capitães em tanto concerto

que nunca antr' eles houve desconcerto

nem cousa que fosse escontra seu grado.

Onde tres dias lh' aprouve d' estar,

ainda qu' a toda mourama pesasse,

porque de todos de cresse e notasse    

que nom era gente de mais estimar,

que com seu esforço podia domar

mais que perdeo El-Rei Dom Rodrigo

e mais que levava tal gente consigo

com que podia gram terra ganhar.

Veio de Tite a lh' obedecer

o principal mouro que nele havia,

pidindo que paz lh' aprouvesse fazer

com toda a jente que nele vivia.

Foi a reposta de sa senhoria

que a ele soo sua casa segura;

o mouro, em vendo reposta tam dura,

ficou tam cortado que mais nom podia.

Pelo qual logo sem mais dar vagar

o jentil do Tite foi despovoado,

de medo cortado leixaram logar

tee serem per pazes a ele tornado;

ca viram seu feito ir tam mal parado

que desesperaram de bem esperar,

seria Mafoma bem pouco louvado,

pois nele socorro se nam pod' achar.

Foi antr' os mouros tamanho encanto,

por ver o que nunca cuidaram de ver,

que nenhũus cristãos podiam fazer

antr' eles demora de tanto quebranto!

Foram cortados com tanto espanto,

segundo per obra foi noteficado,

sas forças, esforço de todo quebrado,

que de seu desmaio nom sei dezer tanto!

Em o quarto dia o Duque mandou

sessenta navios com artelharia,

qu' entrassem no rio lhes encomendou,

porqu' ele partia em o mesmo dia.

Os quaes Deos aprouve levarem tal via

que todos entraram sem contradiçam,

queimando aparelhos que Moleiziam

com mil caniçadas por fogo queria.

Em o dia mesmo que era primeiro

deste Setembro da era presente,

partio o gram Cesar com toda sa jente

levando concerto de jentil guerreiro.

Ordena batalhas, andando fragueiro,     

correndo-as todas mil vezes nũ ponto,

mostrando-s' a todos ser mais companheiro

que princepe grande com' ee e vos conto.

Chegámos ja tarde àquela cidade,

porque nam pôde ser doutra maneira,

a qual achámos, falando verdade,

de muros e torres mui forte guerreira.

Sairam ũus mouros à porta primeira

cũus poucos dos nossos escaramuçar,

de volta com eles lhes foram matar

algũus cavaleiros de sua bandeira.

Isto acabado, a noite na mãao,

sentou-s' arraial ò longo do rio,

estanceas postas ja bem de serãao,

escuitas lançadas sem outro desvio.

O Duque provendo em seu senhorio,

como quem tanto no caso lhe ia,

a todas partes mui rijo provia

como quem corre de noite seu fio.

Aquela noite ninguem a dormio,

com grande trabalho, sem mais repousar,

o sono, preguiça de todos fugio;

artelharia se pôs no lugar,

donde combate s' havia de dar

no tempo e hora que foss' ordenado,

seria do dia o meo passado

e alem ũ hora depois doze dar.

D' i a pedaço nam muito tardou

que logo ao Duque recado nam veio:

que estava o campo de mouros tam cheo

que dos de cavalo dez mil s' apodou.

Naquele momento que s' isto contou,

ordena o Duque sem outro debate

que ũus começassem de dálo combate

e ele cos mais oos mouros passou.

Começou-s' a cidade tambem combater

com muito esforço, com tal pressa dar,

que em pouca d' hora se pôde bem crer

dos mouros de dentro seu grande pesar.

Artelharia começa a jugar,

as mantas e bancos nam muito tardavam,

as jentes das portas, qu' os muros picavam,

que ũus aos outros nam davam vagar.

Deu-s' o combate mui duro, mui forte,

gastando-s' o muro per tiros mui grossos,

tanto que os mouros se tinham nos mossos

julgando que tinham d' ali pior sorte.

Cid Almançor ali prendeo morte

antr' eles prezado e senhor de lanças,

viram nos mouros perder esperanças,

sem haver antr' eles tal que os conforte.

Per morte daquele a todos quebraram

seus corações, sua fortaleza,

e logo em ponto se detreminaram

laixála cidade de muita fraqueza.

O Duque esforçado com grand' ardideza

começa sa jente mui bem d' ordenar,

como aquele que espera de dar

fim a seu feito com muita proeza.

Foram batalhas mui bem concertadas,

assi de cavalo coma as d' ordenança;

ja tarde partiram, sas forças quebradas,

os mouros que viram aquela mostrança.

Fezeram na volta com muita trigança,

os quaes grande medo levarem se crea,

ficámos no campo tee noite ser mea,

sem os do combate fazerem mudança.

Os mouros de dentro que viram crecer

seu mal e seu dano, sem bem esperar,

com grande temor de vidas perder,

leixaram cidade por vidas salvar.

Fugindo sem tento, com tal pressa dar,

qu' ò sair da porta muitos se matavam,

os pais polos filhos se nom esperavam,

molher por marido podia aguardar.

Após mea noite tres horas seriam,

quando a cidade foi toda vazia

e ũu dos judeus, que nela vivia,

per corda do muro abaxo decia.

Ao senhor Duque a nova trazia

per' os de sa lei seguro pidindo.

Foi-lh' otorgado, as novas ouvindo,

com outro albitre que preço valia.

Sabado seguinte, oit' horas do dia,        

na grande cidade o Duque entrou

com grande vitorea que mais nom podia,

Deos seja louvado, qu' assi o guiou!

Per toda a terra sa fama soou

e pôs tal espanto com grande terror,

por ond' Almedina com muito temor

de toda sa jente se despovoou.

Fim.

Foi celebrado o oficio devino

com gram eficacia e gram devaçam,

dando-Lhe graças com tal contriçam

qual merecia o Verbo devino.

Oo Sumo Bem, oo ũu Deos e trino,

Tu que per morte salvar nos quiseste,

concede vitorea a quem esta deste

de imigos humanos, espirito malino!

391

DE LUIS ANRIQUEZ A SIMAM DE
SOUSA, SOBRE LHE MANDAR
PIDIR QUE LHE CONFIR‑
MASSE ŨU ALVARA DE
CAVALEIRO E MAN‑
DOU-LHO PIDIR.

Senhor, eu vos escrivi

e pidi,

por mercê, que me quisesseis

confirmar o que servi.

Mas pois o nam mereci,

é bem que o nam fezesseis,

porqu' é tempo mal despeso

trabalhar no escusado,

que nom é cousa de peso

nem eu estou tam acesso

polo qu' estaa ordenado.

Temos cá, senhor, por lei

do gram Rei,

a qual sendo bem olhada,

peço perdam se errei,

porqu' afirmo e direi

que deve ser derrogada.

Na qual se diz e contem

que a todo cavaleiro,

que cavalo seu nam tem,

das liberdades nem bem

nam goze com' estrangeiro.

Foi muit' eramaa nacer     

pera viver,

a quem Deos nam deu fazenda,

porque tee nisto empecer

lhe foi fazendo perder

a honra, qu' ee mor contenda.

E a muitos que a deu,

que cavalos podem ter,

alcança no jubileu

e os que o nam têm, com' eu,

vão-se de todo a perder.

Que nom pode ser mor mal,

desigual,

aos homens bem criados

que o vilãao bestial,

porque tem mor cabedal,

leve os boons nam abastados,

cujos paes, avoos, parentes

foram criados dos reis,

algũs capitães de jentes,

isto nam por acidentes,

mas consintem-nos as leis.

Aos homens de linhajem

a vantagem

deverãao dar nesse caso

e nam mostrar-lhes ultrajem

nem perderem sa menajem

e deixá-los taees no raso.

Porque quem nam tem cavalo,

polo nam poder manter,

sabe mui bem trabalhá-lo

e havê-lo e buscá-lo

ao tempo do mester.

Fim.

Sabem muito bem servir,

sem s' espedir,

quando lhes é requerido,

e os que tal sabem seguir

é de crer e presumir

serem dinos do pedido.

Mas pois isto j' assi vai,

nam quero confirmaçam,

meu alvara me mandai

e de mim, senhor, tomai

servir per obrigaçam.

392

DE LUIS ANRIQUEZ A ŨA MOÇA COM

QUE ANDAVA D' AMORES, ANTE DE

SE OS JUDEUS TORNAREM CRIS

TÃAOS, E Ũ JUDEU CASADO

E ALFAIATE, A QUE ELA

QUERIA BIEN, O FEZ

TORNAR CRISTÃO

E CASOU COM

ELE.

Vós que nacestes má hora,

vós que nela vivereis,

nom menos acabareis,

pois sois de Jamila nora.

Vós qu' achastes dentro ou fora

esse mazal que tomastes

de que, guai, vos contentastes,

em fort' hora

vos dei nome de senhora!

Qu' achastes ò ahanim

que vos assi namorou?

Rezar bem o Tafalim,

ou com que vos çabacou?

Em jurar por minha lei,

ou polos dez mandamentos,

ou dizer: — Viva El-Rei!

como sei,

em seus estrevançamentos?

Em rezar o baraha,

ou de que fostes contente?

ou em ser mui deligente

quando vãao a minaha?

Em guardar bem o sabá,

ou cheirar-vos à defina?

Como fostes tam mofina,

Katerina,

sobre serdes muito maa?

Pareceo-vos bem cadoz

ouvindo-lho algũu dia,

ou porventura seria

por quebrar co outro avoz?

Ou vos namorou sa voz

em cantando na sinoga?

Quem vos visse nũa soga

a cea voga

açoutar daqui tee coz!

Muito bem vos pareceo    

o seu meto-m' en elduy,

e tambem dizer yhuy,

nada vos avorreceo.

Ai, Adonai vos meteo,

Çabao nam vos tirou,

o que vos muito agradou

e contentou,

a budum vos nam fedeo.

Ora ja nam mo negueis,

bem sei eu que vos venceo,

com convites mereceo

este bem que lhe quereis.

Pipino grand', amarelo

e melão muito maduro,

com metade de marmelo,

verd' escuro,

dos que lança no munturo.

Com boa perna de galo,

com garavanço cozido

e de vós bem aceitá-lo

fez muito em seu partido.

Boas unhas de tenreira,

na fragua do cunhado,

vos fezerom tam maneira

que companheira

serdes sua foi forçado.

Ora volvamos-lh' a folha:

achá-lo-ês bem galante,

ele tem nariz de rolha

sobre ter ruim sembrante.

É ũu pouco ajudengado

no falar e no trazer,

é tambem cercuuncidado

quer fanado,

como folgastes saber.

Tem ũ jentil forgicar

pel' arte de seus parentes,

tem lá outro embolar

e jogueta de bulrar

sem lhe cairem nos dentes.

É crespo, refoucinhado

que lhe descobre a orelha,

é ũ pouco acogombrado,  

desmazalado,

e depois é ũa ovelha.

Pois vos o deemo tomou

a seguirdes tal errada,

co conselho que vos dou

ò menos i avisada.

E pois que ja sois casada,

sabei seguir esta via:

que os que vêm da lei cansada,

par Deos, nam lhes pesa nada,

jurá-lo-ia,

com cousas da judaria.

Por carne sempre mandai

de logar pera porgar

e com nome d' Adonai

lhe fazei cea, jantar.

Se for magra, do azeite

lhe lançai na cozedura,

seguro que a engeite,

mas que peite

a metade da custura.

Aprendei fazer hambria,

qu' ee vianda de seu gosto,

eu vos fico que mao rosto

lhe faça nem vos faria.

Mas é certo que daria

do seu muito por achar

albondegas ò jantar

e cear

este manjar cada dia.

Maraxeval é manjar

que se faz de boas favas,

tomar sempre tres oitavas

e em na Pascoa do asofar

fartalejos nam negar.

No tal dia será tudo,

e de cerizas fartar

e calar,

todo mundo seja mudo.

Nam esqueeça pam cencenho,

sabei seguir o que digo,

a palavra vos apenho

que seja mais vosso amigo.

Se tomais este castigo,

dous d' ũu tiro matareis,

a ele contentareis

e fareis

que façaes o que nam digo.

Quando com vossa camisa

andardes, terês aviso,

nam façaes daquesto riso,

gradecei quem vos avisa:

com ele vos nam jareis

mes passados sete dias,

o tavilaa vós fareis

e dormireis

co parente das judias.

Quando vieer ò comer,

que for ò partir do pam,

dir-vos-á ũ oraçam,

sabê-lhe vós responder:

— Baru ata Adonai Eloeno

sam as palavras que diz.

—Amoci leha minariz,

lhe responderês, e peno,

pois meu bem foi tam pequeno.

Depois do conselho dado

e nova vos quero dar

com que moiras de pesar,

de grande dor e cuidado:

vosso bem nam tem bezis,

que sam companhões, em habraico,

jurou-mo nũus Tafelis

ũ laa do povo judaico.

393

DE JOAM RODRIGUEZ DE CASTEL
BRANCO, CONTADOR DA GUARDA,
A ANTONIO PACHECO, VEADOR
DA MOEDA DE LIXBOA, EM
REPOSTA D'ŨA CARTA
QUE LHE MANDOU,
EM QUE MORTE‑
JAVA DELE.

Mafoma, primo, senhor,

dentones, xeque dentam,

das nogueiras capitam,

da moeda veador.

Em Valverde morador,      

d' aluguer que nam de graça,

dos encontros xuquetor,

de Lisboa a milhor taça.

Vossa carta recebi,

que me deu muito prazer

por me, senhor, parecer

qu' inda vos nam esqueci,

nem tam pouco vós a mim

nunca m' havês d' esquecer,

senam se for por beber

deste vinho qu' ee roim.

Saberês que sam tornado

des que vivo nesta Beira,

hetego, magro, coitado

e rebusto em grã maneira.

Tam disforme, tam beiram

que com quanto me querês,

ja vos nam contentarês

ser meu primo com irmão.

Estou cá perto da serra

onde habitam os pastores:

ja nam busco apontadores,

nem porteiros me dam guerra.

E sam ũu dos boons da terra,

Deos seja muito louvado,

e acho-me tam honrado

com' a bugia na serra.

De vinhas e d' olivaes

e de lançar mergulhões

sei ja tantas envenções

como vós lá dos metaes.

Porque disso espero mais

certo me dar de comer,

que servir e envelhecer

laa por esses espritaes.

Ja nam recebo pousada

de vosso apousentador,

panela nem telhador,

espeto, mesa quebrada,

cadeira desengonçada

e lençoes de mes em mes,

ò longo nem oo través,

me nam cobrem a bragada.

Quantas vezes pelejei

convosco sobola manta,

onde era a pulga tanta

quanta sabeis que matei.

Quantas vezes jejumei

sem ter muita devaçam,

Deos o sabe e vosso irmão

com que ja tambem pousei.

Quantas vezes sem candea

nos lançámos às escuras,

fartos de desaventuras

mais que de mui boa cea.

Isto que s' aqui nomea

nam hajaes disso vergonha,

porqu' em vossa carantonha

cabe toda cousa fea.

Eu nam sei quem vos engana

a sofrer fomes e frios,

qu' os milhores atabios

é um castiçal de cana;

ũa soo vez na somana

comer carne sem cozer,

que faz o ventre ferver

más qu' amores de Joana.

Porem como quer que seja,

quem algũa dita tem

é rezam qu' haja por bem

qu' estas cousas todas veja.

Mas quem é bem enfreado

e tem vergonha no rosto

vê o tempo mal desposto

para ser muito medrado.

Sam fora de requerer

veadores da fazenda,

oficio nem comenda

ja nam espero d' haver.

Ja me nam dá de comer

senam minha fazendinha,

Rei nem Roque nem Rainha

nam queria nunca ver.

O pagar das moradias

é o que me mais contenta,

o despachar da ementa,

as madrugadas tam frias,

trabalhar noites e dias

por ser na corte cabidos,

e, os tempos despendidos,

ficar com as mãos vazias.

Armadas idas d' alem

ja sabeis como se fazem,

quantos cativos lá jazem,

quantos lá vam que nam vem!

E quantos esse mar tem

somidos, que nam parecem,

e quam cedo caa esquecem,

sem lembrarem a ninguem!

E algũs que sam tornados

livres dessas borriscadas,

se os is ver aas pousadas

achai-los esfarrapados,

pobres e necessitados

por mui diversas maneiras,

por casas das regateiras

os vestidos apenhados.

Por isto, senhor Mafoma,

tresmontei cá nesta Beira,

por tomar a derradeira

vida que todo homem toma.

Porque ha lá tanta soma

de males e de paixam

que, por nam ser cortesão,

fogirei daqui tee Roma.

Fim.

Agora julgai vós laa

se fiz mal nisto que faço:

em me tirar desse paço

e mudar-me pera caa.

Pois é certo que se daa

algum pouco galardam,

lança mais em perdiçam

do que nunca ganharaa.

394

TROVAS QUE MANDOU JOHAM RO‑
DRIGUEZ DE CASTEL BRANCO A
ANTAM DA FONSECA, COMEN‑
DADOR DE ROSMANINHAL,
A ALCACER-SEGUER,
EM REPOSTA
DOUTRAS.

Porque sempre em vos servir

desejo ser acupado,

quis tomar este cuidado

para vos dar em que rir,

porque nam posso fogir

do que quer meu coraçam,

que vos tem tal afeiçam

que nam vos pode mentir.

As trovas que me mandastes

vos tenho muito em mercê,

porque vos dou minha fe

que bem as metreficastes.

Dos mouros que laa matastes

vos tenho muita enveja

e levo groria sobeja

da grand' honra que guanhastes.

E pois que, senhor, de laa

me fazeis mercê de novas,

quero nestas minhas trovas

dar-vos algũas de caa.

E a primeira seraa

contar-vos de nossa vida

e assi de quam perdida

a terra sem vós estaa.

Vós laa quebrantais as raias

e as tranqueiras dos mouros

e nós cá corremos touros

e fazemos grandes maias.

Nam curamos d' azagaias

nem d' armas muito lozidas,

mas gastamos nossa vidas

em capas, gibões e saias.

Entrastes em Tetuam

como gentis cavaleiros,

esforçados e guerreiros,

mais fortes que Cepiam.

Nós cá temos o Veram,

em logeas frias, sem calma,

sem buscar sombra de palma

nem favor do capitam.

Andamos muito seguros

pola vila e fora dela,

nam vemos rolda nem vela,

nem baluartes nem muros.

Somos mais moles que duros

pola froxeza da terra,

com ninguem nam temos guerra

senam soo com vinhos puros.

Item mais jugamos canas

dous por dous e tres por tres,

de duas em tres somanas,

às vezes de mes em mes.

Outras horas, que nos pês,

pola terra estar mui soo,

falamos cos que por doo

pooem a saia ao reves.

Nam temos cá montaria

de porcos nem de liam,

mas caça de gaviam

e às vezes pescaria.

Toda nossa fantesia

estaa posta em folgar

e às vezes em ganhar

em qualquer mercadoria.

Andamos algũas vezes

aos touros a cavalo,                                

somos de vós o pam ralo

de vossas doçuras feezes.

Nam temos ricos jaezes

nem arreos esmaltados,

mas temos algũs dourados,

outros negros como pezes.

Começamos de criar

gaviães par' o Inverno,

paraiso nem inferno

nunca nos pode lembrar.

Boiz de perdizes ũ par

vos estaa aparelhado,

o Cipreste tem jurado

que vo-las ha-d' espantar.

E o de que me mais pesa

dessa vossa frontaria

que vossa carniçaria

nom farta nenhũa mesa.

Nam sei se vos é defesa

polos imigos da fee,

se se defende, porque

tendes guerra tam acesa.

Porem, se se bem olhar,

nom vos deve dar paixam,

que, como teverdes pam,

o al se pod' escusar.

Porque a ordem melitar

nam requere gram fartura,

qu' às vezes tolhe soltura

ò tempo de pelejar.

Das perras em que falais

dai-as ò demo por suas,

quanto mais seguis as ruas

menos gualardam levais.

Bem sei ja que me tomais

nisto que quero dizer:

com quem sam de correger

se mostram esquecer mais.

Se com elas nos topamos,

levam tam fortes bocados

que, quando mais pelejamos,

somos mais desbaratados.

Nam por serem apertados

nem mui rijos de romper,

mas aturam o correr

que nos vencem de cansados.

E assi que nos tornamos

os mais de nós ipotentes,

porqu' eles sam tam valentes

que por vencidos nos damos.

E tal que, quando escapamos

da sua boca danada,

vento é mouros de Grada

par' oo medo que levamos.

Destas novas nam dou mais,

porque seraa demasia

querer falar aravia 

com vós, que a ensinais.

Porem, quando cá estais,

quantas vezes derribado

fostes e desbaratado

destes immigos mortais.

Eu tenho ja feito paz

com eles por ano e dia,

inda que por mais queria,

mas a eles nam lh' apraz

e quem mal cae mal jaz.

Eu ando mui avisado,

s' achar algũu desmandado,

bem sabeis como se faz.

Fim.

Aqui faço conclusam,

beijando com muita fe

as mãos de vossa mercê

e do senhor vosso irmão.

E nam vos esqueceram

Rui Lobo, Jorge de Sousa,

que nam podem mandar cousa

que negue meu coraçam.

395

VILANCETE.

¿Adonde tienes las mientes,

pastorzico descuidado,

que se te pierde el ganado?

No te pasmes, Joan Colado,

de la descuidança mia

qu' amorio m' ha robado

tod' el seso que tenia.

No reposo noche e dia,

em todo lo despoblado

no puedo caber coitado.

Grosa de Joam Rodriguez de
Castel Branco a este
vilancete.

¿ Adonde tienes las mentes

di, nigrigente pastor,

adond' estam tan ausentes

qu' a las ovejas presentes

mostras tanto desamor?

Que vemos unas mesarse,

otras de fambre morirse,

todas juntas apocarse,

tu hazienda mezcabarse

todo el tuyo destroirse.

Pastorzico descuidado,

solias bien pastorar,

solias ser alabado

d' hombre de mejor recado

que se podesse falhar.

Aora veyo tu vida

de todo desordenada,

tu persona entristecida,

tu majada mal regida,

tu memoria olvidada.

Que se te perd' el ganado,

mira bien qu' andas perdido,

mira qual eres tornado,

que eres de demudado,

de muchos nam conocido.

Mira qu' anda tu color

desvelada e denegrida,

vaste de mal a pior,

tal que seria mejor

tener la vida perdida.

No te pasmes, Joan Colhado,

ni s' espante tu persona

de me ver qual soy tornado,

que quien nesto m' ha causado

a nenguno no perdona.

Antes haze tanta guerra

a qualquier que sobreviene,

que de la qu' en min s' encerra

pasmo yo qual es la terra

que sobre si me sostiene.

De la descuidança mia,

de la perdicion de mi,

de no ser el que solia

fue la causa, fue la via

la libertad que perdi.

Que del dia que miree

aquelha por quien tal ando,        

del ganado descuidee,

de mi mismo m' olvidee,

nunca delha m' olvidando.

Amorio m' haa robado

mi fuerça com su poder,

hame descanso quitado,

hame todo apartado

de lo que causa plazer.

Hame dado tanta pena

su fuerça y esquevidad

qu' a la muerte me condena

otra voluntad agena

que sierve mi voluntad.

Tod' el seso que tenia

es tornado en aficion,

em pesar elh' alegria,

rebuelta la fantesia,

mudada la condicion.

Ageno nel pensamento

de mi propio el penar,

todo mio el sentimento,

livre del contentamiento,

sojeito del desear.

No reposo noche y dia,

momento, punto ni hora,

ni bivo como queria,

porque la ventura mia

sempre mi mal empiora.

Tal qu' en aquesta montanha

du ando con mi ganado,

es la lembrança tamanha,

la memoria tam estranha

qu' es de mi tud' olvidado.

Em todo lo despoblado

nunca pastor habitoo,

que vivendo tam penado
podesse continuado

sofrir lo que sofro yo.

Porqu' es de tal condicion

el mal que dió Fortuna

que viendo mi perdicion,

no puede mi coraçon

hazer mudança ninguna.

No puedo caber coitado   

en todas estas montanhas,

todo ando afortunado,

muy ardido y debrasado

del fuego de mis entranhas.

Aceso nel coraçon,

nacido de mi deseo,

conservado en afecion

de la mucha perfecion

daquel mi dios en que creo.

396

CANTIGA SUA, PARTINDO-SE.

Senhora, partem tam tristes

meus olhos por vós, meu bem,

que nunca tam tristes vistes

outros nenhũs por ninguem.

Tam tristes, tam saudosos,

tam doentes da partida,

tam cansados, tam chorosos,

da morte mais desejosos

cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes,

tam fora d' esperar bem

que nunca tam tristes vistes

outros nenhũs por ninguem.

397

DE RUI GONÇALVEZ DE
CASTEL BRANCO.

O gosto que me falece

para desejar a vida

por quem sabe que m' esquece

tem a groria escondida,

em lugar que nam parece.

Quem a de mim escondeo

val tanto com fremosura

que nam me pod' a Ventura

tornar o qu' ela perdeo.

Tudo ja tenho perdido,

tudo tenho ja deixado,

tudo faço sem sentido,

sendo certo qu' esquecido

som de quem sam tam lembrado.

Pois vivo desesperado,

que será de minha vida?

Que farei? Nam sei que pida

que me nam sej' escusado.

A morte nam satisfaz

quanto mal tenho sofrido,

a vida morto me traz,

nenhũa cousa me praz,

de toda cousa dovido.

Nenhũu assessego tem

minha triste fantesia,

cada hora, cada dia,

com mil acordos me vem.

Vivo tam embaraçado,

som ja tam fora de mim

que de mui desconcertado

muito tenho começado

e a nada nam dou fim.

Que tudo veja perder,

qu' em tudo seja culpado,

nam no posso conhecer

nem está em meu cuidado.

Porque sei donde me vem

quem tantos males me cata,

nam m' entendo com ninguem,

fujo de quem me quer bem,

quero bem a quem me mata.

Aperfio contra mi,

o mais contrairo escolho,

o que vejo com meu olho

nam posso crer que o vi.

Toda cousa m' atormenta,

cad' hora menos contente,

todo remedeo s' ausenta,

qu' a vida qu' ee descontente

de tudo se descontenta.

Falar é cous' escusada

a quem quer que seja mudo,

ja som no cabo de tudo

sem ter acabado nada.

Cabo.

A culpa que muitos tem

de si a querem tirar,

mas a que d' outrem me vem

me parece que tambem

que nam me pode culpar.

Nem me quero agravar,

que meu triste coraçam

a tudo m' acha rezam,

nam se me pod' emmendar.

398

CANTIGA SUA.

Os encubertos cuidados

por descuberta rezam

desculpam meu coraçam,

meus olhos tristes, culpados.

Quaes olhos vos podem ver

que irem-vos desejar,

que nam seja mais errar

ver-vos sem vos conhecer.

E co esta assolviçam,

com meus crecidos cuidados,

com descuberta rezam

tem meus olhos desculpados.

399

OUTRA DE RUI GONÇALVEZ.

Que de meus olhos partais,

em qualquer parte qu' esteis,

em meu coraçam ficais

e nele vos converteis.

Est' ee o vosso lugar

em que mais certa vos vejo,

porque nam quer meu desejo

que vos di possais mudar.

E por isso que partais,

em qualquer parte qu' esteis,

em meu coraçam ficais,

pois nele vos converteis.

400

OUTRA SUA.

Quem tantos males consente,

s' algũ remedio esperasse,

era bem que soportasse.

Mas é cousa conhecida

quem esperança nam tem que

nam pode nenhũu bem

ser moor que perder a vida.

S' o passado e presente
o porvir remediasse,

era bem que soportasse.

401

DE RUI GONÇALVEZ A
MORTE DA DUQUESA.

Ó descanso, ond' estás

que nunca te vê ninguém?

Quem cuidamos que te tem

nam sabe por onde vás.

Nam se pode conhecer

quem te nam sabe buscar,

pois te buscam com poder

e tu teens outro lugar.

Tam pouca parte nos dás,

é tam escuro teu bem,

que nunca te vê ninguem

nem sabe por onde vás.

402

OUTRA SUA EM ŨA PARTIDA.

Lembra-me qu' hei-de partir,

nam no posso afirmar,

com' hei-de poder sofrir

o que nam ouso cuidar?

Estaa em tal deferença

comigo meu coraçam

que me defenda a rezam

contr' ela me dá licença.

Desespero de partir

com vida deste lugar,

porque soo de o cuidar

começa alma de sair.

403

GROSA DE RUI GONÇALVEZ
A ESTE MOTO:

Que faz apartar as vidas!

Venturas mal repartidas,

serviços mal estimados

dam tam crecidos cuidados

que faz apartar as vidas.

Por isto se desesperam

os que têm milhor servido,

porque fica seu partido

a ventura que perderam.

Quem vos visse estroidas,

lembranças de meus cuidados,

pois sam tam desestimados

que faz apartar as vidas!

404

CANTIGA SUA.

Estaa muito por passar,

eu nam posso co passado,

com que me hei-d' ajudar,

do porvir desesperado?

E estas tristes lembranças,

com que encurto minha vida,

nam nas mudaram mudanças

nem esperança perdida.

O passado é passado,

o porvir é por passar,

hei por ele d' esperar

sobre tam desesperado.

405

OUTRA SUA.

Aperfia meu desejo

no que nam pode cobrar,

nam se quer desesperar,

desesperado me vejo.

Força-me com seu poder

a sofrer grave paixam,

espera por gualardam

donde nam pode nacer.

Tal poder tem meu desejo

que nam se pode mudar

nem se quer desesperar,

desesperado me vejo.

                                                                                    406                                    

OUTRA SUA.

Ũa esperança que tinha,

em que cabia prazer,

Ventura m' a fez perder,

porque soube que era minha.

Nunca cousa desejei

que m' ela nam estorvasse,

nunca nada receei

que muito tempo tardasse.

A maa ventura é minha,

que boa nam pode ser,

pois s' acabou de perder

ũa pequena que tinha.

407

OUTRA DE RUI GONZALVEZ.

Maas novas me dam de mim,

olhai por vós, coraçam,

nam creais qu' ha i rezam

nem sonheis com boa fim.

Querem-vos aconselhar

ante de vos conhecer,

bem deveis adevinhar

o que quer isto dizer.

Bom conselho d' antemão

é sinal de dar maa fim,

olhai por vós, coraçam,

pois eu nam olhei por mim.

408

OUTRA SUA.

A grande desaventura,

que se comigo criou,

todalas cousas mudou

pera mais minha tristura.

Deve-se desenganar

que nam pode mais fazer,

ja nam tem que me levar,

pois nam fica que perder.

Que ja me desenganou

o prazer e a trestura,

nam no tendes vós, Ventura,

que bem sei quem o levou.

409

OUTRA SUA.

A vida ja s' acabou,

o desejo é o que vive,

porque, como o de vós tive,

logo m' a vida tirou.

Porque manda que vos sirva,

achou em mim tanta parte,

este quero que me mate,

pois vós quereis qu' ele viva.

O desejo me ficou,

porque vida nunca tive,

que quem em desejo vive

nunca vida desejou.

410

OUTRA SUA.

Esperança, pois tardastes

ja vos nam aguardarei,

tanto me desesperastes

taa que me desesperei.

Vossos enganos cubertos,

fingidores da verdade,

m' encheram de vaidade

taa que foram descubertos.

Pois que sempre m' enganastes,

nunca mais m' enganarei,

castigado me leixastes,

desenganado fiquei.

411

VILANCETE DE RUI GONÇALVEZ.

Mil corações haa mester

quem vos houver de servir

ou nenhũ pera sentir.

Que vossas cousas nam sam

pera vos ninguem sofrer

nem eu nam sei coraçam,

em qu' elas possam caber.

Ha mester de o nam ter

quem vos houver de servir

ou mil pera se sofrir.

412

ESPARÇA SUA.

Quanto pude aperfiei

e nunca pude acabar,

quero agora começar

o com que m' acabarei,

que será desesperar.

Que dentro neste perigo   

nam hei mester quem m' ajude,

aqui acabo comigo,

pois que com outrem nam pude.

Trova sua que mandou a

Gar­cia de Resende com

estas trovas.

Porque nam haja memoria

de tam mal aventurado,

pond' isto entitulado

em quem disso levar groria.

Que bem mal pareceria,

em cancioneiro posto,

homem sem vida nem gosto

vir-lhe tal à fantesia.

413

CANTIGA DE DOM JORGE
MANRIQUE.

No sé porque me fatigo,

pues com razon me venci,

no siendo nadie comigo

y vos y yo contra mi.

Yo por haveros querido

y vos a mi desamado,

con vuestra fuerça y mi grado

havemos a mi vencido.

Y pues fui mi enemigo

em me dar como me di,

¿quien quererá ser amigo

del enemigo de si?

Do Doutor Francisco de Saa,
grosando esta cantiga
de Dom Jorge
Manrique.

Viendome tam lastimado,

muchas vezes me maldigo

com' hombre desventurado,

mas despues de bien mirado

no sé porque me fatigo.

Qu' aunque siento gram pesar

desd' el dia em que vos vi.

quando os buelvo a mirar

no sé de que me quexar,  

pues com razon me venci.

Y si vos me cativastes,

vos misma sed el testigo

de lo poco que acabastes,

quanto más que me tomastes

no siendo nadie comigo.

Y aun esto no abasto,

mas quando elh' alma vos di,

qu' a vuestras manos morió,

no era comigo yo

y vos y yo contra my.

Qu' es lo que ya no faree

por vos, pues por vos perdido

em gram prueva de mi fee

a mi mismo desamee

yo por haveros querido.

Aqueste comienço tal

ham mis amores lhevado,

mas que fim tam desigual,

que he yo querido mi mal

y vos a mi desamado.

Vuestra vista me robó,

¡ay de my desventurado!

lo que mi querer os dió

y quedé robado yo

con vuestra fuerça y mi grado.

Ved que milagro tamanho

si, stando desprecebido,

triste de mi, de mi danho,

comigo y con vuestro enganho

havemos a mi vencido.

¿ Do falharee piedad?

¿em quiem emparo y abrigo?

pues que de mi voluntad

me fize tal crueldad.

Y pues fui mi enemigo,

mi triste vida e querelha

quiem puedem falhar por si,

pues fui por cruel estrelha

contra mi y contra elha

em me dar como me di.

 Fim.

Pues solo por mi pecado

y por ageno castigo,

lhoraré yo mi cuidado,      

ca d' hombre tam mal mirado

¿ quiem quererá ser amigo?

¿ Qual será la voluntad,

aunque ja tarde lo vi,

do reine tal ceguedad

que no fuya elh' amistad

del enemigo de si?

414

CANTIGA DE FERREIRA.

Congoxas, tristes cuidados,

pensamientos desiguales,

lhorando presentes males

m' acuerdan bienes passados.

Mudanças que no pensé,

ni tu pensar las devrias,

me hazen ver que veré

muy cedo el fim de mis dias.

Ansi que los olvidados

mis servicios desiguales,

lhorando presentes males,

m' acuerdan bienes passados.

Grosa do Doutor Francisco de
Saa a esta cantiga.

Pues veo de mi fuir

los bienes tan bien guanados,

mientra no puedo morrir,

forçado m' es de sufrir

congoxas, tristes cuidados.

Ca grave angustia es venida

y grande extremo de males

y com dolor sin medida

fatigam mi triste vida

pensamientos desiguales.

Porqu' a la passada gloria

de bienes tam principales

esle dado tal vitoria

que lastimen mi memoria,

lhorando presentes males.

¿ Que fueron mis alegrias,

senhora, sino cuidados?

Pues las noches y los dias,

lhorando las penas mias,   

m' acuerdan bienes passados.

Y caso que cierto creo

que sabés bien el porqué:

vida y muerte del deseo

es la causa por que veo

mudanças que no pensé.

Ca pues que mi pensamiento,

senhora, tu lo regias

sim nunca hazer movimiento,

por justo comedimiento

ni tu pensar lo devrias.

Y porque mijor me creas,

bien querer, celos y fe

entre tam crudas peleas

la muerte que me deseas

me hazen ver que veré.

Ca serem passadas ja

mis glorias y alegrias,

tam triste vida me da

que cierto sé que verná

muy cedo el fim de mis dias.

Ansi qu' esta mi tristura,

ansi que los mis pecados,

ansi que mi desventura,

ansi que tu desmesura,

ansi que los olvidados

tus prometimientos vanos

y falsos y desleales

ma haran morir a tus manos,

pues juzgas por tan livianos

mis servicios desiguales.

 Fim.

Y pues al triste de mi

das mil penas, de las quales

ninguna te mereci,

suspiro el bien que perdi

lhorando presentes males.

Y aunque yo quiera, no puedo

tenelhos disimulado,

porqu' a mi, que ja fui ledo,

los tormientos em que ruedo

m' acuerdan bienes passados.

415

CANTIGA.

Comigo me desavim,

vejo-m' em grande perigo,

nam posso viver comigo

nem posso fogir de mim.

Antes qu' este mal tevesse,

da outra gente fugia,

agora ja fugiria

de mim, se de mim podesse.

Que cabo espero ou que fim

deste cuidado que sigo,

pois trago a mim comigo

tamanho imigo de mim?

416

OUTRA SUA.

Que remedio tomarei?

Pois tam certa a morte estaa

qu' a dor, que tal dor me daa,

se me segue, matar-m'-aa,

se me deixa, matar-m'-ei.

Nam é em poder humano

escusar-ma jaa ninguem,

pois ela tomado tem

meu remedio e meu dano.

Senhora, onde me irei?

Pois onde quer que me vaa

tam certa esta morte estaa

que convosco matar-m'-aa

e sem vós nam vivirei.

417

OUTRA SUA.

¡ Ay que vida tam esquiva,

do por enemiga suerte,

por lhoro y dolor se arriva

do se bive em pena biva

y se sale por la muerte!

Por do yo desventurado,

que juzgo mi desventura,

com deseo he deseado

que hoviera sido lhevado

del vientre a la sepultura.

Ca la mui alma cativa       

do quiera que se convierte,

cercada de pena esquiva,

no ve por donde reciba

menos mal que por la muerte.

418

ESPARÇA.

Porque podera abafar,

senhora, o mudo, s' ouvira,

a natureza lhe tira

o ouvir e o falar.

Pois s' havia de nacer

d' ouvir tal desejo em mi,

coitado, pera que ouvi,

pois que vos nam posso ver?

419

CANTIGA.

Antre temor e desejo,

vam esperança e vã dor,

antre amor e desamor,

meu triste coraçam vejo.

Nestes estremos cativo

ando sem fazer mudança,

e jaa vivi d' esperança

e agora de choro vivo.

Contra mi mesmo pelejo,

vem d' ũa dor outra dor

e d' ũ desejo maior

nace outro moor desejo.

420

OUTRA SUA.

Coitado, quem me daraa

novas de mim ond' estou?

Pois dizeis que nam som laa

e caa comigo nam vou.

Tod' este tempo, senhora,

sempre por vós preguntei,

mas que farei que ja agora

de vós nem de mim nam sei?

Olhe vossa merce laa

se me tem, se me matou,

porqu' eu vos juro que caa

morto nem vivo nam vou.

421

OUTRA SUA.

Oid y juzgad mi suerte,

senhora, que sois tan cruda,

que por vos pedir ajuda

antes la pido a la muerte.

A vos a quien he servido,

harto de más razon fuera,

que yo triste me socorriera

que no a quien me he socorrido.

Mas sois tan sorda y tan cruda,

o es tam cruda mi suerte,

que m' hazeis pidir ajuda

contra la muerte a la muerte.

422

ESPARÇA.

Cerra a serpente os ouvidos

aa voz do encantador,

eu nam, e agora com dor

quero perder meus sentidos.

Os que mais sabem do mar

fojem d' ouvir as sereas,

eu nam me soube guardar,

fui-vos ouvir nomear,

fiz minh' alma e vida alheas.

423

CANTIGA.

Triste de mi desdichado

que aquelhos con quien nasci,

por vos o por mi pecado,

los unos me ham dexado,

los outros som contra mi.

Dexóme mi libertad

y elh' amor qu' a mi tenia,

dexoume mi alegria,

dexoume mi voluntad.

Mi coraçom lastimado,

los ojos com que vos vi,

vida, memoria y cuidado,

estos nunca me han dexado

por serem más contra mi.

424

OUTRA SUA.

Ledo em minha tristura,

em meus descansos cansado,

querendo e sendo forçado,

ora cuidar m' assigura,

ora me mata cuidado.

Assi me tem repartido

estremos que nam entendo,

de todas partes corrido,

de todas desacorrido,

de nenhũa me defendo.

A vida nam estaa segura,

eu tenh' outro mor cuidado,

o mal tam bem estimado

que em tanta desaventura

me faz bem aventurado.

425

ESPARÇA.

Craro estaa meu perdimento,

nam sinto nenhũ tormento

a meu tormento igual,

mas veo cedo este mal

e tarde o conhecimento.

Perdido e desesperado

de toda parte cercado

d' agravos e desfavores,

tendes-me posto em estado

que posso doer aas dores

e dar cuidado oo cuidado.

426

D'ANRIQUE DE SAA A DIOGO
BRANDAM, MANDANDO‑
-LHE ŨAS TRUTAS
DE FREIRA.

Estas trutas são daquela

a quem vós dizeis: — a ponto!

levam ovos e canela,

nem co elas nem par' ela

nunca se vos põem em ponto.

Isto soube per ũ conto

qu' uma doona me contou,

em que pouco vos gabou.

427

REPOSTA D' ANRIQUE DE SAA ÀS

TROVAS DE DIOGO BRANDAM

QUE COMEÇÃO: DEPOIS, SE‑

NHOR, QUE FORÇADO

ME TROUXERAM

CÁ CATIVO.

Estando bem namorado
d' ũa senhora, que pena

minha vida e desordena

meu cuidado,

vossas trovas me chegarão

tão doridas

que, se tivera mil vidas,

m' as tiraram.

Mas eu nom tenho senão

ũa soo, mais que perdida,

porque sempre a minha vida

daa paixão,

sem querer nunca mudar

por outra via

senão sempre a fantesia

em me matar.

Por esta tenho crecida

tristeza que nom tem par,

por esta nom posso dar

a minha vida

consolação nem prazer

como soia,

antes crece cada dia

em padecer.

Por esta são mais que morto,

pois vivo vida penando,

sem saber como nem quando

terei conforto.

Querendo-lhe grande bem

desordenado,

são dela mais desamado

que ninguem.

Por esta noites e dias

me vejo sempre penado,

desta são mais namorado

que Mancias.

Desta soo me cativei

tee minha fim,

que ja doutra nem de mim 

nunca serei.

Esta faz que vos nom possa

ajudar como desejo,

porqu' a dor em que me vejo

desapossa

de maneira e de tal sorte

meu poder

qu' estou jaa, por nom na ver,

perto da morte.

Mas pois que de mi quereis

ajudar vossa requesta

nesta trova e depós esta

atentareis.

Nom terês em pouca estima

o que vos digo,

dê-me Deos tal par consigo

a vossa prima.

Dizei-me, senhor, quem possa

conselhar-me como viva

que me nom mat' est' esquiva

mais qu' a vossa.

Porqu' a vossa nunca perde

neste mundo

quem nom leixa ir ao  fundo

quem na serve.

E co esta confiança

deveis de ledo viver,

se vos der algũ prazer

ter esperança.

Porqu' eu nunca d' esperar

pude ver

como nom visse crecer

meu pesar!

Que quanto mais esperava,

sem d' esperança ver fim,

tanto mais ver-me sem mim

se me dobrava.

E pois isto ha sempre dor

d' acrecentar,

ver-me bem desesperar

hei por milhor.

Ò menos nom sintirei

quanta dor sinto esperando,

sem saber em certo quando

acabarei

este tão triste fadairo

em que me vejo,

pois sabês que o que desejo

m' ee contrairo.

Fim.

Senhor, estas trovas vossas

e esta reposta delas

parecem Cento Novelas

de finas mentiras grossas.

Se o juizo nom perdi,

ponde-vos mui bem ò posto

onde falaes em Agosto

e verês logo qu' ee assi.

428

CANTIGA SUA.

De mi vida desespero,

pues non quiere mi ventura

que vuestra grão fermosura

me quieira como le quiero.

Non quiere mi triste suerte

vir momento consolarme,

ni sé para remedearme

remedeo sino la muerte.

La qual venga, pues la quiero,

pues nunca quiso Ventura

que vuestra grão fermosura

me queira como le quiero.

429

OUTRA SUA.

Nom queiraes por Deos matar-me,

querei jaa de mim doer-vos,

possa mais o bem querer-vos

que vosso grão desamar-me.

Queira vos fermosura,

pois que soo tem o poder,

tirar-me desta tristura,

qu' esta vida sem ventura

nom se pode mais sofrer.  

Nom queiraes desconsolar-me,

pois que nom vivo sem ver-vos,

possa mais o bem querer-vos

que vosso grão desamar-me.

430

D' ANRIQUE DE SAA A NOSSA SENHO‑
RA, ESTANDO COM DOEN‑
TES DE PESTE EM
SUA CASA.

Oo fonte de perfeição,

oo piadosa Senhora,

Senhora da Conceição,

lembra-Te de nós agora

em nossa trebulação.

Manda-nos consolação,

qu' estamos desconsolados,

tãobem nos pide perdão

a teu Filho dos pecados,

Senhora, que tantos são,

que sem sua intercessão

nom podem ser perdoados.

431

CANTIGA SUA.

Meus olhos, vós m' ordenastes

ver-me de todo perder,

pois que fostes conhecer

de quem me desesperastes.

Ordenastes minha pena,

destroistes meu sentido,

ordenastes que s' ordena

ver-me de todo perdido.

Este mal que me causastes

terei enquanto viver,

pois que fostes conhecer

de quem me desesperastes.

432

D' ANRIQUE DE SAA.

Non oso mim mal dezir

temiendo mi danho creça,

ni se miete en cabeça

como lo pueda encobrir.

Ni halho manera como

no vea mi perdicion

ni tengo consolacion;

y nel remedio que tomo

el calhar quiero sofrir

em que mi vida padeça,

que temo que se recreça

más danho del descobrir.

433

OUTRA SUA.

Muito mais mal me sentira

da dor qu' os olhos ordena,

se os tivera sem pena!

Mas assi como lobrigo,

vi dama tão sengular

que tem taes cousas consigo

com que a todos pode dar.

O mal que tenho comigo

de mim me fez ser imigo,

pois busquei como s' ordena

morrer por ela de pena!

434

DE DIOGO BRANDAM AO BISPO DO
PORTO, SOBRE QUATRO MIL REAIS
QUE TINHA PROMETIDOS A
Ũ ESCRAVO DE MARTI‑
NHO DA MOTA, PERA
AJUDA DE SUA
ALFORRIA.

O cativo meo forro,

fusco dantre lobecão,

nom se diz em maa tenção,

vos pede, senhor, socorro

pera sua redenção.

Livrai-o de cativeiro

per inteiro,

sem minguar nenhũa jota,

porque Martinho da Mota

jaa nom quita mais dinheiro.

435

D'ANRIQUE DE SAA, ESTANDO
AUSENTE DONDE PODIA
VER SUA DAMA.

Nunca mais me partirei

pera fogir aa tristura,

pois que caa onde m' achei

ma daa vossa fermosura

tal que cedo acabarei.

Porque cuidava, senhora,

descansar

e acho que mais penar

vai caa fora.

Que se laa pena sofria,

soo em ver quem ma causava,

em que mil penas passava

algũ descanso sentia

desta dor que me matava.

Mas estando caa tão fora

de vos ver,

que farei senão morrer,

minha senhora?

Qual milhor me seraa

que viver vida de sorte

que ninguem nom vivirá,

senão eu a quem na daa

o vosso coração forte,

muito mais duro qu' aceiro,

pera quem

vos quer ũ tamanho bem,

tão verdadeiro.

Ando caa desesperado,

ando mil sospiros dando

e ando tão namorado

que, s' em vós estou cuidando,

meu rosto logu' ee regado

destas lágrimas tam tristes

como são,

as quaes vós, meu coração,

mil vezes vistes.

Fim de mi triste seraa

a vossa pouca lembrança

da maa vida que me daa,

porem minha confiança

nunca jaamais deixará

de ser vosso e vos querer

tee minha fim,

pois alheo nem de mim

nom posso ser.

436

CANTIGA D' ANRIQUE DE SAA
EM LOUVOR DE SUA
SENHORA.

Toda fermosa nacida       

ha-de morrer de tristeza,

pois toda arte de lindeza

soo de vós é possoida.

A vós soo quis Deos fazer

desigual em fermosura,

por nos dar a nós tristura

e a nossos olhos prazer.

Morreraa toda nacida

d' ũu mal que chamam tristeza,

pois toda arte de lindeza

soo de vós é possoida.

De Fernão Brandão.

Nom se pode comprender

por rezão, saber, nem siso,

vosso gentil parecer,

pois quem fez o paraiso

nom fez pouco em vos fazer.

E pois estaa conhecida

vossa grande gentileza,

a damas darês tristeza,

a galantes triste vida.

De Diogo Brandão.

Parecer tão excelente

nam se fez d' humanas artes,

devês de viver contente,

pois que tendes juntamente

quanto todas têm por partes.

Senhora, tão escolhida

vos fez Deos em gentileza,

que por vós serdes nacida

dizem mal à sua vida

as que vem vossa lindeza.

437

D' ANRIQUE DE SAA A FERNÃO
BRANDAM, CHEGANDO A ŨA
SUA QUINTÃA, EM QUE
NOM FOI BEM AGA‑
SALHADO D'UM
SEU CASEIRO.

Chegando muito cansado,

achei ũ vosso criado

na vossa quintãa d' Osela,

que me fez tal gasalhado

qu' outr' hora será forçado

passar bem de longo dela.

Falava em vossa amizade

mais vezes do que devia,

porem o que nos compria

fechava bem de verdade.

Mas, porem, por nom mentir

e fazer em vosso caso,

querendo-me jaa partir

os deu ũ alqueire raso

muito mao de repartir:

porqu' as bestas sete eram,

nom contando a minha mula,

e ũu alquer trouxeram.

Ora que querês qu' engula

cada ũa do que derão?

Dizei-me, por nom errar,

a quem devo de culpar

naqueste mao gasalhado:

s' este vosso paniguado,

se a vós por lho mandar.

Porque diz Deos verdadeiro,

O que aas fomes socorre,

que devês saber primeiro

se vem pelo despenseiro

se pelo senhor da torre.

Reposta de Fernão Brandão
de desculpa, mandando-lhe
Anrique de Saa com estas
trovas dous cobros de
cachaça magros e
de
delgados.

O mordomo que laa vistes,

que cevada tão mal deu,

inda, senhor, nom é meu

pelo qual vivemos tristes

por nom comermos do seu.

Mas a cachaça d' Abreu,

que vimos emberrigada,

em Osela foi cevada

ou em cas d' algũ judeu.

438

D' ANRIQUE DE SAA A DIOGO
BRANDAM, MANDANDO‑
-LHE Ũ PRESENTE
DE VINHO.

Senhor, protesto,  

qu' inda que vos saiba bem,

que a vós nem a ninguem

nam convide mais qu' o resto.

Porque vejais como presto

melhor do que mo fazeis,

vos mand' esse que proveis,

do que fica nam cureis

porqu' a ele me menfesto.

Reposta de Diogo Brandam
polos consoantes.

Eu contesto

polo qu' a vasilha tem,

mas eu queria, porem,

o vendedor manifesto,

para ser na compra lesto.

Que d' este sempre gosteis

e tenhais muito que deis,

isto soo me decrareis

e vereis como m' atesto.

439

TROVAS QUE FEZ ANRIQUE DE SAA
A ŨA SENHORA, QUE TOPOU EM
ŨA RUA E LHE PARECEO BEM,
ENDERENÇADAS A FER‑
NÃO BRANDÃO.

Estando bem longe de ser namorado

e disso os sentidos lançados bem fora,

topei com senhoras. Mas ũa senhora

me fez logo seu de muito meu grado.

Ando caa morto com este cuidado,

sem poder dela tirar o sentido

e pois são tão vosso e são tão perdido,

mandai-me conforto desapassionado.

Porqu' esta senhora por quem m' assi vejo,

ũ pouco vos toca em progenitura,

tem tal gentileza e tal fremosura

que faz cem mil homens morrer de desejo.

A mim faz da vida, senhor, ter entejo,

por sua vertude negar esperança

e pois outro bem daqui nom s' alcança

pera lhas lerdes, senhor, vos enlejo.

Pera que saiba de minha paixão

e pena mortal, que por ela sento,

e saiba que tenho de juro tormento

e qu' ela com graça tem meu coração.

E saiba que deve de ter presunção

de todalas graças que dona ha-de ter

e saiba que sabe em todo saber

senam que nom sabe em dar gualardão.

E saiba que vivo por ela penado

todalas horas da noite e do dia,

e que naquel hora perdi alegria,

quando a todos a vi ir matando.

Oo triste de mim, que nom sei jaa quando

veja o dia que a hei-de ver,

e s' inda nom sabe de meu padecer,

fazei-lho saber, por geitos falando.

Que vossa pessoa com minha paixão

e vossas palavras de grão gentileza

minguarão muito de sua crueza,

farão piedade em seu coração,

pera que nom queira minha perdição,

e vós pelo meu o devês de querer,

que nom haa molher tão dura de crer

que nom tenha geito d' haver compaixão.

Reposta de Fernão Brandão pelos con-
soantes.
Tem esta primera
que é introdição.

Posto que tenha o gosto perdido

de cousas pequenas, que tem vossa vida,

e outras maiores que são sem medida,

por menos descanso de vosso sentido

nestas, se posso, serês respondido.

Sem nada saber d' agora nem dantes

de partes, de silabas e boons consoantes,

respondo por eles por ser milhor rido.

 Reposta.

Estaveis, senhor, jaa tão enfadado

de cousas passadas e destas d' agora,

que jaa nom m' espanto da que vos namora,

mas como tornastes a ser enganado!

Se o fezestes por serdes tornado

antes do dia, qu' estava sabido,

foram amores de mui boom marido,

que nom se quer dar por tão derribado.

E a que vos tem com seu boom despejo,

des que partistes com vossa tristura,

foi hora minguada e de pouca dura

pera quem tem amor tão sobejo.

Mas pois me mandais que nem ponha pejo,

daqui vos prometo sem outra mudança

que ponha meu sangue em tanta balança

que todos s' espantem de como pelejo.

E vosso saber com grão descrição

e outros primores direi com tal tento

que saiba bem certo que nom sois isento,

mas antes cativo com forte prisão.

Se nesta primeira vir sua tenção

como quem vio e a pode bem ver,

direi o que disto se pode entender,

porqu' ela jaa sabe que tendes rezão.

E pois que mereço ser de tal bando,

por dar-vos descanso a vida daria

e crede, senhor, que nom sentiria

perigo nenhũ naqueste tratando.

Mas vejo meus dias ir jaa decrinando

e os vossos maiores tão bem perecer,

pois qu' esperança podemos jaa ter

de donaa que cria os seus embalando?

E digo, senhor, por final concrusão

que, se vos lembrardes de vossa nobreza,

livre serês daquesta tristeza,

pois dela nos nace maior gualardão.

E nesta m' afirmo e logo na mão

sem outras doçuras nem lindo dizer

e isto assi feito se pode bem ver

a vossa sentença sem contradição.

Pregunta de Diogo Brandam.

Sam sepultados em corpos de mortos,

quando se fundam matar aos vivos,

e nunca cativam, sem serem cativos,

nem usam dereito senam sendo tortos.

Dos cinco sentidos humanos, os portos

dos quatro se çarram em sua conquista,

a qual, ja nom sendo, entam é bem vista,

quand' os sepultados se tornam abortos.

 Reposta.

Dos quatro elementos nũ deles sam mortos

os que nos tres nam sam sensetivos

em outro daqueles depois d' alertivos

se pooem os tomados com fios retortos.

O homem recebe açaz de reportes,

quando picando vitoria. s' aquista,

tambem é doutrina qu' a boca resista,

pois eles por ela da vida sam cortos.

440

D' ANRIQUE DE SAA A DIOGO BRANDAM

SOBRE Ũ HOMEM QUE DISSE QUE SE PER

FIDALGUIA FOSSE, QUE JESU D' ABREU

LHE DEVIAM DE CHAMAR, O QUAL

NOME LHE FICOU E, QUANDO

MORREO O CONDE DE POR‑

TALEGRE, ENÇARROU-SE

POR ELE, NAM TENDO

COM ELE NENHŨU

PARENTESCO.

Mandai-me, senhor, dizer

s' ee jaa desençarrado

o vosso deos anojado.

Qu' eu tambem, senhor, estou

de loba, mas nam na friso,

e porem morto de riso,

porque se deos ençarrou.

Fazei-me logo saber

se é ja desençarrado

o nosso crucificado.

Reposta de Diogo
Brandam.

Antontem sahio à tarde

guedelha mais que ninguem,

e Nosso Senhor me guarde

deste filho que cá tem.

Nunca ja ouvi dizer,

antes de Ramos passado,

ser Cristo ressuscitado.

441

D'ANRIQUE DE SAA.

No sé porque Dios me dió

los ojos com que os vi,

pues con elhos me perdi.

Vi em veros mi dolor

y halhé mi sepultura

y vi triste mi tristura

venir de mal em peor.

Pues mi pena es la mayor

que se vio desque os vi,

no para que naci.

Fernam Brandam.  

Y los otros mi sentidos,

que libres de vos nacieron,

em os viendo se perdieron

y por vos son bien perdidos.

Mis cuidados som crecidos

desd' el dia que os vi,

pues en veros me perdi.

Outra sua.

Non tienen culpa los ojos

mas merecem em la verdad,

pues de sus tristes enojos

fue causa tanta beldad.

Com todo la ceguedad

fuera mejor para mi,

pues con elhos me perdi.

Gaspar de Figueiroo.

Naquesta pena y cuidado

que triste padesco yo,

pues por vida me lo dió

Dios deve ser el culpado

aunque de bien empleado

no culpo a El ni a mi,

pues en veros me perdi.

Culpa bienaventurada,

senhora, devo lhamar

a la que em os mirar

tiene mi vista turbada,

que vitoria es acabada

vencido quedar assi

contento, porque naci.

Afonso Pirez.

No vio bienes el nacido

que no vio vuestra figura,

si no vio tal hermosura,

tod' el guanar es perdido.

Los ojos que no ham vido

lo que com ver me perdi

no vieron lo que yo vi.

442

DE FERNAM BRANDAM A Ũ HOMEM

QUE LHE PREGUNTOU QUEM

ERA SUA DAMA.

De tam alto merecer

ha nacido mi passion

qu' em lugar del gualardon

he por bien el padecer.

Remedeo de lo que sento

no lo espero ni lo pido,

porqu' em verme assi vencido

descansa mi pensamento.

Y pues me muestra razom

el pago de mi querer,

contentese el coraçon

donde el bien es padecer.

443

COPRA SUA A ANRIQUE DE SAA
QUE LHE MANDOU PREGUN‑
TAR QUE CUIDADO TRAZIA.

Nam se parte meu sentido

d' ũa casada que vejo,

nem o seu de seu marido,

por onde tenho sabido

o que nom pode ser comprido

meu desejo.

Apartar-me é cousa forte

por camanho bem lhe quero,

em segui-la desespero,

este mal é de tal sorte

que nam sei quem me conforte!

444

OUTRA SUA DE LOUVOR.

Presumir de vos louvar

nam merecem meus sentidos,

pois que tendes dos nacidos

os louvores escolhidos

sem nenhum ficar por dar.

E o que cuida que sabe

nam vos gabe,

creamos-vos simprezmente,

que louvor d' humana gente

nam vos cabe!

445

PERGUNTA SUA A JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA, INDO PERA
ALEM, A PRIMERA
VEZ QUE FOI.

Porque sois o mais louvado

de quantos vimos nacer,

mandai-me, senhor, dizer,

porque fique descansado,

se levais maior cuidado

de morrer,

se de virdes murmurado.

E se fama ou nobreza,

se cristãao, se gentileza,

qual vos toca nesta ida

e tambem se vossa vida

nela padece tristeza.

Reposta pelos consoantes.

Sem tocar no lijonjado,

pera mais me nam deter,

quero logo responder

que vou, senhor, mui armado

da lembrança do passado,

que fez ser

este meu nome estimado.

Tambem temor de vileza

e de danar a lindeza,

por mal assadas de vida,

faz a vontade crecida,

a qual sobretudo preza

catolica forteleza.

446

SUA, DE FERNAM BRANDAM.

Se mi vida s' acabasse,

la muerte no sintiria

com tanto que s' acordasse

algũ dia

la causa que me matasse.

Y que fuesse tam mortal

que jamas sentiesse gloria,

tomaria por vitoria

la lembrança de mi mal.

Y que nunca descansasse

nel inferno alma mia,

se despues vos acordasse,

beveria

auunque muerto me falhasse.

447

CANTIGA SUA, PARTINDO-SE
DONDE ESTAVA SUA
MOLHER PERA
PRETO.

Pois que tal dor me conquista,

sendo tam pouco apartado,

que farei desesperado,

muitos dias alongado,

senhora, de vossa vista?

Mui mal se pode sofrer,

pois a tristeza d' ũu dia

doi muito mais, a meu ver,

do que podem dar prazer

muitos outros d' alegria.

Assi que pois me conquista

este mal tanto dobrado,

que farei desesperado

muitos dias alongado,

senhora, de vossa vista?

448

PREGUNTA SUA A ANRIQUE DE SAA.

Vos que nacistes por dardes cuidado

a grandes poetas y más oradores,

a vos que vos cabem devinos loores

y de los humanos lo más soblimado;

a vos de los hombres ũu solo dechado

donde sacamos lo bueno lavor,

a vos que los grandes vos tem por mayor

y todos los otros vos sirvim de grado,

Pregunto: — ¿Qual es aquelha volante

do nacem escritos sem ter curruçam

y jera los todos em solo un estante

y sem se juntar com su semejante

formam sus vidas em su perficiom?

Delha no tive jamas criaçam,

logo los dexa em serem nacidos,

y haze d' aquestos em partes sus nidos,

sim terem da madre nengun afeciom.

Reposta pelos consoantes.

Aqueste sobirme de grado em grado

em que me possistes com tantos honores,

teniendo vos todos aquestos primores,

quedais em la filha muy más exsalçado.

Querervos loar, no siendo loado   

como merece el vuestro primor,

de los poetas so yo el menor

y vos conocido por más acabado.

Es enojosa a todo trinchante

esta vuestra ave com mucha rezom

y tambem los hijos por su consonante

pera mantenelhos no es abastante,

mas criamse em carnes agenas sim pam.

Esta es la materia de su formaçam,

donde de chicos se hazem crecidos,

es esta la mosca, segun mis sentidos,

madre de muchos que moscas no sam.

449

DE FERNÃO BRANDÃO AO SENHOR
BISPO DO PORTO, PERA SE
LANÇAR DA CIDADE Ũ
HOMEM PECADOR.

Eu seguro a novidade

e o mais qu' está perdido,

se lançardes da cidade

o que fora foi nacido,

porque Deos seja servido.

E pois sõees nosso pastor,

das ovelhas curador,

esta seja castigada,

por nom ser contaminada

a manada

por vossa culpa, senhor.

450

PREGUNTA SUA A ANRIQUE DE
SAA, QUANDO HERDOU.

Pois que Deos vos tem curado

da necessarea doença,

pregunto coma privado

pela nova deferença,

se é este mor cuidado,

se o outro ja passado?

E pois digo da trindade

por saber bem a verdade,

sem me disso repender,

assi saiba da vontade,

que soiẽs antes ter,

se a move novidade.

Reposta d' Anrique de Saa

polos consoantes.

Sinto-me mais descuidado

com esta nova sentença,

que Deos tinha dilatado,

sem se lembrar da pendença

que tinha perto e forçado

com quem me tinh' emprestado.

E pois me deu liberdade,

far-lh' -ia gram roindade

de me mais engrandecer,

tambem quer siso e idade

o meu sempre vosso ser,

nam no mover vaidade.

451

VILANCETE SEU, DE FERNÃO
BRANDAM.

No puedo triste pensar

remedeo para la vida,

que no sea más perdida.

Y con este pensamiento

mil remedeos he buscado

y nenguno he falhado

que descanse mi tormento.

Y por más me lastimar,

pensando cobrar la vida,

antam la veo perdida.

452

CANTIGA SUA.

Nesta vida ũu soo dia

nam se vive sem marteiro

nem ha i prazer inteiro

que descanse a fantesia.

Mas a condiçam é tal,

enquanto nela vivemos,

que nam quer que descansemos

e com lagrimas tomemos

o seu bem e o seu mal.

E portanto nenhũu dia,

até ver o derradeiro,

nam verês prazer inteiro

que descanse a fantesia.

453

PREGUNTA SUA GEERAL.

A todolos trovadores,

jentis homens, namorados,

mancebos, velhos, casados,

poetas e oradores,

por mercê que me respondam

aa pregunta qu' aqui digo,

e, se mal trago comigo,

este bem nom mo escondam.

Desejo muito saber,

dos que sabem sem mais grosa,

as feições que ha-de ter

a dama pera fermosa.

E seja com condiçam

que nam toquem na feiçam

d' ũa soo que foi nacida

e escolhida

antre as filhas de Siom.

Porque n' Esta nunca toca

sentido pera entendê-la,

item mais nenhũa boca

nam merece falar nela.

Mas das outras qu' a meu ver

vemos todas enganosas,

saibamos o qu' ham-de ter

pera fermosas.

454

ŨAS TROVAS A ESTE VILANCETE
CASTELHÃO,SUAS.

Para mi triste nacieram

cuidados, desaventura,

para mi nació tristura.

Y las penas quantas son

nesta vida yo las siento,

porque nace mi passion

de muy alto pensamiento.

Nacieram triste, sem cuento,

cuidados, desaventura,

para mi nació tristura.

Del remedeo desespero    

y de toda esperança,

que pues muerte no s' alcança,

no pido nada ni quiero,

sino la fee com que muero

me queda por mi ventura,

para ter mayor tristura.

Ajuda d' Anrique de Saa.

No me pongas en olvido

tu muerte que tantos matas,

si con elhos nã me catas,

catame, pues te lo pido.

Tirarás de mi sentido

la que de mi no tiene cura,

pera mi nació tristura.

De Diogo Brandam.

Naceram, quando naci,

comigo sempre creceram,

yo triste padeci

más que quantos padecieram.

El más mal que me fizeram

es que seram de más dura

mis dias, por más tristura.

De Gaspar de Figueiró.

Toda cousa de paixam,

em que nam ha esperança,

tenho ja como d' herança

sentada no coraçam.

De juro nojos ma dam

cuidados, desaventura,

pera mi naceo tristura.

Afonso Pirez.

Ninguno de los penados,

ni los que ham de penar,

podem sus penas lhegar

a el mal de mis cuidados.

Para mi som concertados

dolores, desaventura,

la vida me daa tristura.

455

DE FERNÃO BRANDAM A Ũ HOMEM
QUE DISSE QUE SE PER FIDALGO
FOSSE QUE JESU CRISTO

O CHAMARIAM E ESTE

TOMOU ŨA SISA DA

CARNE, NA MAIA,

TERMO DO

PORTO.

Do gram milagre dest' ano

todo coraçam desmaia

em saber qu' o deos humano,

rendeiro por nosso dano,

quis tomar carne na Maia.

Por mais espanto mostrar

este cristo, Deos eterno

ordenou que do inferno,

por os mais atormentar,

o viessem caa ajudar.

456

DE FERNAM BRANDAM A ANRI‑
QUE DE SAA, PERGUNTANDO-LHE
POR SEU FILHO JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA, QUE VEO
D' ALEM, E POR
SUA CASA.

É tanto tempo passado

sem ouvir nenhũas novas,

que me foi, senhor, forçado

dar descanso a meu cuidado

com preguntas nestas trovas.

E por mais satisfazer

a meu desejo primeiro,

pregunto polo herdeiro

verdadeiro

da gram terra de Sever.

Se faz na corte detença

ou se torna a militar,

se despacha algũa tença

ou com dama traz pendença,

tudo compre preguntar.

Se mandou pedir dinheiro,

tambem venha nesta conta,

porque pode andar a monta

com afronta

o seu ruço ou foveiro.

Item mais quero saber      

se vem cá ter o Veram,

de seu tio Dom Joham

se requere, se na mão

lhe dá mais que o comer.

Item se foi cometido

pera que tome parceira

ou se traz em seu sentido

a sua dama primeira,

pois que dela foi vencido.

Após estas quero mais

da senhora principal

e da vida que lhe dais

e a vossa qual tomais,

pois nom é a devinai.

Da vossa filha primeira

e da segunda,

da madrasta em que se funda,

venha nova mui inteira,

e de Robres e da freira.

Fim.

Fico sem nenhũ cuidado

de saber nenhũa cousa

do presente nem passado,

nem pregunto por privado,

nem quero saber du pousa.

Vivo sem muita fadiga

nesta fazenda pequena,

da molher nenhũa pena,

porque Deos assi ordena,

senam da sua barriga.

Reposta d' Anrique de Saa.

Som ja tam desavezado

disto tal que me mandais,

qu' ha mester desd' hoje mais

nom me dardes tal cuidado.

Por agora foi forçado,

por fazer vosso mandado,

de fazê-lo,

mas se for em contrapelo

compre de ser descalado.

E as novas que primeiro

querês do qu' anda fanchono,

mil vezes leva dinheiro,

mas nunca do mealheiro

de seu dono.

Que por nom ser encetado

annuerca,

se algũa cousa merca,

é d' emprestado.

Nom quer cá vir no Veram,

que tem obras nũ caderno

pera solfar est' Inverno

com seu tio Dom Joham.

E ja crer de moucaram

embebecado,

se lhe nom metem cruzado

na sua mão.

A freira por bom caram

que farte tem de marteiro

e de muita devaçam,

se lhe falam no moesteiro,

vem-lhe dor de coraçam.

Por trovas e repulhõs

reza matinas

e todas suas endinas

devações.

O nome que nomeais,

que ninguém tê-lo deseja,

faz mil fundamentos tais

quais nunca consigo veja.

Mas aquele que castiga

o mal feito

castigará com direito

quem faz briga.

Robres anda na Ribeira

co as mãos negoceado,

mete freira e tira freira

coma dado.

E s' o monte nom sentir

a poesia,

preguntai-mo outro dia

pera riir.

Das filhas nom tenho novas,

mas, em que muitas tevesse,

nom creais que vo-las desse

por nom m' obrigar a trovas,

em que fazê-las soubesse.

A senhora que me tem

está bem grossa,

mais a serviço da vossa

que ninguem.

457

DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA,
DECRARANDO ALGŨUS ESCU‑
DOS D' ARMAS D' ALGŨAS
LINHAJEENS DE POR‑
TUGAL, QUE SA‑
BIA DONDE
VINHAM.

Por se levantar a gloria

das linhajes mui honradas,

que per obras mui louvadas

de si leixaram memorea

a quem lhes sigu' as pegadas,

suas armas devisando,

algũas irei lembrando

donde lh' a nobreza vem,

porque faça quem a tem

pola soster bem obrando.

E direi primeiramente

das altas quinas reaes

mandadas per Deos, as quaes

jaa conhece tanta gente

por senhoras naturaes:

que de Ceita atee òs chiins,

no Mar Roxo e abaxiins,

India, Malaca, Armuz,

com a espera e com a cruz

durarão tee fim dos fins.

El-Rei.        

As dadas por mãos devinas

a rei mais que terreal

armas são de Portugal:

sobre prata cinco quinas

cos dinheiros por sinal,

cujos reis, que jaa passarão,

com vitorias as pintarão

per Africa em grão tropel

e El-Rei Dom Manuel

onde os romãos nom chegarão.

O Principe.

Estas de tanto primor,

com risco branco, luzente,

do mui alto e excelente

Princepe nosso Senhor

são sem outro deferente.

Em esperança criado

pera como no reinado

em vertudes e poder

El-Rei seu pai soceder,

pera ser rei acabado.

O Duque.

A quem fende ũu labeo

de dous escudos reaes,

sem outros nenhũs sinaes

que nom chegue de voleo

atees quinas devinaes.

Sobrinho de seu senhor

é de muito moor primor

do que meu louvor alcança,

senhor Duque de Bargança,

o que tomou Azamor.

O Mestre.

Ũu labeo atraves fende

por ser sinal este tal,

que por rezão natural

com rezam se lhe defende

o propio escudo real:

oo senhor a quem são dados

ũ ducado e dous mestrados

com outra tanta rezão,

filho d' El-Rei Dom Joham,

por nom dizer mais estados.

O Marquês.

Quinas, castelo e lião

e o dourado paves,

escaques com estas tres,

lobos, barras d' Aragão,

espada traz o Marquês:

Marquês de Vila Real,

de Castela e Portugal,

tresneto dos reis passados,

d' antecessores louvados

e ele por sair tal.

Casa de Bragança.

Sobr' aspa fazem mostrança

as quinas d' outra feiçam,

cruzes co elas estam,

armas sam dos de Bragança,

que vêm d' El-Rei Dom Joam.

Debaixo destas s' entendem

tres titolos, que dependem

de sangue tam poderoso,

Mira, Tentuguel, Vimioso,

que todos juntos comprendem.

Noronhas.

Sem temor e sem vergonha,

onde quer qu' eles estêm,

azuis e de prata têm

escaques os de Noronha,

d' ouro e veirados tambem.

Noronhas são da montanha

e nom doutra terra estranha,

donde a terra tomada,

de mouros é recobrada

e tornada aa fee Espanha.

Coutinhos.

As cinco estrelas sanguinhas,

em campo d' ouro pintado

do sangue antigo e honrado,

são nobres armas coutinhas,

feitas d' ũ ceo estrelado.

E sabe-se desta jente      

que ganhou antigamente,

segundo a memorea alcança,

a casa por sua lança,

qu' agora tem no presente.

Castros.

Os que nom sofrem mais lastro

de nobreza, fidalguia,

seis arruelas diria

qu' azuis trazem os de Castro,

em campo d' argentaria.

E quem vir estes sinaes,

saiba que com estes taes,

vindos de Bizcaia ha tanto,

agora têm caa Monsanto

e a vila de Cascaes.

Eças.

Os que nũ cordão com noos

têm labeo d' armas reaes

e os pontos trazem mais

das quinas, têm por avoos

infantes e reis seus pais.

E que andem sem estado,

quejando foi o passado,

rezão nom será qu' esqueça

o real sangue dos d' Eça,

posto qu' o tempo é mudado.

Meneses.

Vem nos dourados paveses,

limpos de toda mistura,

a real proginitura

nos senhores de Meneses

d' Ordonho, rei qu' inda dura.

Cuja linhajem real,

que por muitas rezões val,

mete dentro em sua rede

Vila Real, Cantanhede

o Prior do Sprital.

Cunha.

Cinco cunhas testemunhas

sobre campo, qu' ouro banha,

s' hão-de vir de terra estranha,

o nobre sangue dos Cunhas

asselo mais em Espanha.

O certo nom sabem donde

mais que virem caa co Conde

Dom Anrique, no começo.

Santarem é de seu preço,

testemunha que lh' avonde.

Soasas.

De duas armas reaes

com quinas e com liões,

Sousas fazem quarteirões

por serem filhos carnaes

de dous reis por socessões:

d' ũu que teve tal valor

que foi par d' emperador,

doutro em Portugal seu par,

o primeiro no reinar,

primeiro conquistador.

Pereiras.

A veera cruz verdadeira,

joia de nosso tesouro,

que apereceo oo rei mouro

per milagre na pereira,

da vitoria certo agouro.

Em titolo de valia

florece hoje este dia

antre a montanha e o mar,

em Cambra, Feira e Ovar,

terra de Santa Maria.

Vasconcelos.

As que mil temores fazem

a quem ha-de navegar,

vermelhas ondas do mar

os de Vasconcelos trazem

sobr' azul mui singular.

Vasconcelos de Gasconha,

que nunca passou vergonha

em esforço e valentia,

no tempo que florecia,

nem agora ha quem lha ponha.

Melos.

Nom tem liões nem castelos,

mas seis brancas arruelas

e tres barras amarelas

o nobre sangue dos Melos,

que suas armas traz nelas:

é o que deles se toma

ser estrangeiros em soma

donde nom se sabe assaz,

ainda que o nome faz

presomir virem de Roma.

Silvas.

Do metal mais eicelente

os que trouxerem Lião

em prata Silvas serão,

que hoje s' acha presente

mais antiga jeração.

Foram seus progenitores

Capetos e Numitores,

reis d' Alva, donde vieram

os irmãos, que nom couberão

nũ soo reino dous senhores.

Albuquerque.

As cinco flores de lis

com quinas em quarteirão

os Albuquerques trarão,

os que d' El-Rei Dom Denis

trazem sua geração.

E por tocar tal estado

bem merece ser honrado

sangue que tem tal mistura,

per tão honrada natura

dino de ser nomeado.

Freires.

A banda que atraves fende

sobr' esmeralda luzente,

com cabeças de serpente,

Freire d' Andrade comprende,

de Galiza decendente.

E que laa tenha lugar

pera se mais nomear

e nos reinos de Castela,   

os que cá têm Bovadela

nom serão pera calar.

Almeidas.

Nas d' ouro seis arruelas

em seus escudos pintados

do sangue honrados perlados

sempre vimos dentro nelas

e outros leigos d' estados.

D' Almeida que jaa fez cumes

deu e ainda daa lumes

d' estado e de senhorio,

Abrantes, Crato e quem Dio

vio desbaratar os rumes.

Anriquez.

Estaa, mas nom posto em alto,

d' ouro ũ castelo real

em vermelho, a par do qual

fazem dous liões ũ salto

sobre o segundo metal.

Vinda do Conde Guiião,

Anriquez é jeração

que, com taes armas que tem,

dos reis de Castela vem,

mas nom jaa per socessão.

Soares.

A moor joia das devinas

em campo d' argentaria

traz a nobre fidalguia,

com orla das reaes quinas,

Soarez d' Albergaria.

E ũu destes a ganhou

e por grão preço alcançou

qu' em ũa peleja brava

ũ mestre de Calatrava

prendeo e desbaratou.

Azevedo.

Aguea celestrial,

ave que mais alto voa,

sobre eicelente metal

da coroa imperial

tirada, sem a coroa,

trouxerão d' Alt' Alemanha

os d' Azevedo a Espanha,

por testemunha e certeza

de sua grande nobreza

e rezão per que se ganha.

Castel Branco.

Onde se der campo franco

em novo mas dino estado,

rompente Lião dourado

trarão os de Castel Branco,

em campo azul assentado.

E de sua perfeição

e quanto val com rezão

dará muito certa prova

em seu Conde Vila Nova,

aquela de Portimão.

Reesende.

Nũ escudo em campo d' ouro

duas cabras ajuntadas,

de gotas d' ouro malhadas,

da cor qu' ee ũ negro mouro,

desta mesma cor pintadas.

Quem bem em nobreza entende

achará que a de Reesende

foi grande per sua lança,

ha muitos tempos em França,

donde s' acha que descende.

Moniz.

Da banda qu' ee contra o sul,

eesta terra antigamente

veio ũa nobre jente,

com cinco em escudo azul

estrelas d' ouro luzente.

Polo que destes se diz,

pouco digo e pouco fiz

do que seu primor merece,

segundo o que se parece

dos feitos de Egas Moniz.

Febus Moniz e seu filho.

Ambalas armas reaes       

de Chipre e Jerusalem

com armas mistura tem

de Moniz, mas estas taes

a ũ soo deles convem,

ũ soo a quem com rezão

chamem-se de Lusinhão,

seu pai lho foi alcançar,

por s' ajuntar e casar

com tão alta geração.

Moura.

Quem sete castelos doura

sobre vermelho acendido

é o sangue conhecido

por tomar oos mouros Moura,

donde trouxe o apelido.

Ũ Dom Rolim estrangeiro

foi destes o padroeiro

de cuja fama inda soa

na tomada de Lixboa,

que nom foi o derradeiro.

Lobos.

Em campo de prata tal

cinco lobos figurados,

de negra tinta pintados,

trazem os deste animal,

de suas armas chamados.

E destes estaa no fito

o dino de ser scrito,

por quem lhe dê seu louvor,

Barão d' Alvito senhor

e Vila Nova d'Alvito.

Saas.

Nos escaques celestriaes

e de prata, está mostrado

o mui nobre e mui honrado

e por batalhas reaes

sangue de Saa derramado,

com que o romão Columnes

se mesturou d' atraves,

cada ũ de grão primor,

forte, leal, sem temor,

em combates e galés.

Lemos.       

Antigas e nom modernas,

de sangue nobre e honrado,

em escudo nom dourado,

são d' ouro cinco cadernas,

mas de vermelho pintado.

Lemos é a geração

cujas estas armas são.

De Galiza antigamente

a Portugal esta jente

veio com justa rezão.

Cabral.

De purpura celestrial

sobre prata mui luzente,

a jeração mui valente,

que delas se diz Cabral,

traz sem ouro deferente.

E pera qu' estas aponte,

escrito trazem na fronte

seu esforço e lealdade,

naquela grão liberdade

o do castelo de Belmonte.

Silveiras.

Em ũu campo prateado

bandas de sanguinha cor,

cũa silva derredor

de qu' o escudo é cercado,

são armas de grão valor.

E em pendões e bandeiras

as podem trazer Silveiras.

Silveiras de Silvas vem,

o nome o diz e tambem

to estorias mui verdadeiras.

Falcão.

Os que mostrarem bordões

nũ escudo de romeiros

são mui nobres estrangeiros,

d' apelido de Falcões,

leaes e boons cavaleiros.

Co Duque mui afamado

d' Aalencrasto nomeado,

reinando El-Rei Dom João,

veio Mosem Jaão Falcão,

ũ cavaleiro estremado.

Goios.

Sobre prata d' ouro fino,

com as barras d' Aragão,

arminhos tãobem estão

e mais ũ castelo em pino,

armas de Dom Anião.

De Dom Anião d' Estrada

a quem primeiro foi dada

a vila de Goes d' herdade,

que à sua postridade

deixou dela a nomeada.

Pedrosa.

Ũa aguea temorosa,

de quatro pedras cercada,

no meo doutra assentada,

por armas oos de Pedrosa

antigamente foi dada.

Vierão d' Ingraterra,

com tenção que nunca erra,

despender vida e tesouros,

em ajudar contra mouros

os portugueses na guerra.

Faria.

Oo pee d' ũu castelo erguido,

por se nom ver abaixado,

jaz ũ corpo espedaçado

em muitas partes partido

por nom ser d' ũa apartado.

Fari' ee, que nom faria

per onde a cavalaria

se perdesse erro nem tacha,

que desta maneira s' acha

por guardar a que devia.

Pachecos.

Em campo d' ouro assentadas

caldeiras d' ouro luzente,

com cabeças de serpente

nas aas e faixas veiradas,

sãao armas d' antiga jente:

Pachecos de tal ventura

em soster e ter segura

sua nobreza e crecendo,

qu' em tempo de Cesar sendo,

ainda lh' agora dura.

Coelhos.

Em campo d' ouro ũ lião

de mui brava acatadura,

coelhos por orladura,

dos Coelhos se dirão

armas sem outra mistura.

Coelhos tal perfeição

d' esforço e d' opinião

sostêm,no que começarem,

que coração lhes tirarem

nom lhes tira o coração.

Dom Vasco da Gama.

A quem lh' achou novo mundo,

nova terra e novo clima,

deu El-Rei em grand' estima

sobre as da Gama, em fundo,

as suas armas em cima.

E enquanto dura a fama

que a India de si derrama,

sempre irá o nome diante

do seu primeiro almirante,

est' ee Dom Vasco da Gama.

Valente.

No bravo lião rompente,

per tres lugares faixado,

se mostra bem amostrado

sangue Ocquez e Valente

co nome mui concertado.

Ambos sairão da vide

do bom, que morreo na lide

d' Ourique diante El-Rei,

de louvor, segundo lei,

nom menos dino que o Cide.

Duas cabeças cortadas,

postas em campo dourado,

de mouros e, em cooraado,

duas torres assentadas,

onde o feito foi passado.

Armas que os Botos ganharão

sãao por mouros que matarão

naquelas torres em Ceixta,

quando da danada seita

portugueses a livraram.

Camara.

Nũa torre de menajem

dous lobos querem trepar

em campo cor d' ũ pumar,

que são armas da linhajem

mui dina de nomear.

Camara é seu apelido,

em Portugal mui sabido

e na Ilha da Madeira,

que sua vida primeira

destes a tem recebido.

Pina.

Em campo vermelho estão

dous mui floridos pinheiros

e em banda azul lião

d' ouro rompente, que são

nobres armas d' estrangeiros.

De Peno Pina declina

esta linhajem mui dina

de grão louvor e pregão,

veio cá ter d' Aragão

e dahi vêm os de Pina.

Brandão.

Cinco brandões, nom em cruz,

em campo vermelho jazem

e co resplandor que fazem

dão claridade e dão luz

de nobreza oos que os trazem.

De terras e possissõees

dos cavaleiros Brandões

achei antiga memorea      

em mui verdadeira estorea

d' antigas inquirições.

Cotrim.

De qu' os mais fazem tesouro

nũ escudo escaques são,

onde xaques nom darão,

se nom for em prata ou ouro,

dama, roques nem pião.

Co este que lugar tome

a geração e se assome

dos Cotrins rezão seria,

que maior foi na valia

qu' aa moeda de seu nome.

Linhajes de grande preço

outras tão boas e taes

ficão por nom saber mais,

mas quem seguir meu começo,

se as souber, diraa quaes.

D' algũas que nesta idade

em valia e em bondade

são vistas pervalecer,

com rezão se deve crer

que tal foi antiguidade.

Fim.

E nom por defeito seu,

qu' ee sabido que nom tem,

cuide que ficão alguem,

mas antes que polo meu

que as nom sabia bem:

porque nom quis porventura,

dando prova mal segura,

alguem do que seu nom é

tirar a outros a fee

do que vi per scritura.

458

EPISTOLA DE PENELOPE A OLIXES,
TRELADADA DE LATIM EM
LINGUAJEM PER JOAM
RODRIGUEZ
DE SAA.

Argumento.

Depois da guerra acabada 

e a Troia feita em brasa,

com fortuna desvairada

foi dilatada a tornada

d' Ulixes a sua casa.

Passando mil tempestades,

de reinos e de cidades,

de molheres, de varões,

conheceo as condições,

custumes e qualidades.

E nom perdendo esperança,

Penelope, dele ausente,

lhe manda a carta presente

acusando-lh' a tardança,

com que tanta pena sente.

Est' ee espelho daquelas

castas donas e donzelas

de que mais Grecia s' arrea,

que se detinha na tea

esperando suas velas.

Hanc tua, etc.

Ulixes, esta t' envia

a tua Penelope,

a ti cuja tardança é

muita mais da que devia.

E nom me respondas nada

se nam for com a tornada

que esperando me sostem,

que, se sem ti carta vem,

minha vida é acabada.

A Troia jaz destroida

e sua destroição

a quem deu muita paixão

das gregas avorrecida.

Rei Priamo escassamente

co a Troia e sua gente

poderiam merecer,

por eles perdidos ser,

a perda que caa se sente.

Prouvera a Deus qu' onda brava,

com gram tormenta de vento,

sovertera nũ momento

Pares, quando navegava.

Pois foi causa su armada  

e ser Helena roubada,

por ond' eu soo em meu leito

com muita pena me deito,

que causa tua tardada.

Nom me queixara de ver

fazer-se mais longo o dia,

quando meu mal, que crecia,

co ele via crecer.

Nem querendo ser manhosa

d' enganar noite espaçosa,

ela mesma m' enganara

co a tea que cansara

a mãao viuva e suidosa.

Quando foi que nom temi

perigos mais desestrados,

que sam os acustumados

que muitas vezes ouvi?

Cousa ee certo amor

de solicito temor

e desconfiança chea

que toda cousa arrecea

e sempre teme o pior.

Contra ti fantesiava

os troianos bravos vir,

d' Heitor somente ouvir

amarela me tornava.

Ou se ouvia contar

d' Antiloco, qu' escapar

nom pôde sendo tam forte,

era causa sua morte

do medo se me dobrar.

Ou co as armas alheas,

que Patrocolo vestira,

por Heitor morto caira

ante as troianas ameas.

Chorava por me temer

que podiam teu saber,

tuas artes, teus enganos,

que usavas contra os troianos,

de ventura carecer.

E quando m' eera contada

a morte de Tlepolemo,                             

a paixam do mal que temo

se me fazia dobrada.

E finalmente quem quer

que caa se ouvia dezer

que de vós outros morria,

muito mais que a neve fria

me fazia arrefecer.

Mas deos bem remediou

meu casto amor com rezão,

que ficando-me tu são

a Troia em cinza tornou.

Jaa os capitães voltaram,

os altares fumegaram

e põem òs deoses da terra,

barbaras presas da guerra,

que laa na Troia tomaram.

As donas agradecidas

polas ajudas passadas

pagam as joias dotadas

oos deoses e prometidas.

E dos maridos contados

sam os negocios passados

e os façanhosos feitos

dos troianos, jaa sogeitos,

destroidos e queimados.

Os velhos s' espantam caa

e as moças temerosas

das cousas mui espantosas

que ouvem dos que vêm de laa.

E enquanto seus maridos

dos casos laa contecidos

contam desvairados contos,

as molheres têm mui prontos

todos seus cinco sentidos.

E o comer acabado,

a mesa ficando posta,

cada ũ por prazer gosta

de pintar o que é passado:

pinta as batalhas campaes

e as pelejas mortaes

co campo delas sanguinho,

com poucas gotas de vinho        

per riscos e per sinaes.

Simois indo fazia

por aqui grande rodeo,

o promontorio Sigeo

eesta parte aparecia.

E os paços mui alçados

de Priamo nomeados

aqui eesta parte estavam,

tam erguidos que passavam

pelas nuveens seus telhados.

Per' ali Arquiles ia

sua jente e estendarte

e per aqueloutra parte

Ulixes em companhia.

Aqui o corpo partido

d' Heitor a rasto trazido,

que vivo Troia guardava,

os cavalos espantava

e ainda era temido.

Nestor de mui longos dias,

a quem eu mandei daqui

teu filho saber de ti,

em que lugar t' escondias,

disse estas cousas que sei,

as quaes eu dele tomei,

que despois que te partiste

dentro nesta casa triste

com muito poucos falei.

Contou que Reso e Dolão

forom mortos logo vindo

ambos, ũ deles dormindo

e outro por treição.

E assi eras ousado,

de mim tam pouco lembrado

tua vida aventurar

e cũ soo de noite entrar

em ũ arraial cercado.

E a tantos dares fim

d' ũu soo indo acompanhado,

bem eras tu avisado

e lembrado antes de mim.

E com muito grande medo

nom tinha o coração quedo,

mas cheo de mil abalos

atee seres cos cavalos

tornado em salvo mui cedo.

Mas que proveito me traz

ser a Troia com seus muros,

per vossos braços mui duros,

derribada como jaz?

Se de meu triste sentido,

todo mal entam temido,

toda dor nam fez mudança

e fê-la soo a esperança

de poder ver meu marido.

A Troia caida é jaa,

pera todas destroida,

mas pera dar triste vida

a mim soo ainda estaa,

a qual co medo perdido,

no campo jaa possuido

dos gregos i moradores,

lavradores vencedores

lavram co gado vencido.

Jaa se pode bem segar

a sementeira madura,

donde a Troia em grand' altura

se soia de mostrar.

E faz-se muito viçosa,

grossa, farta e avondosa,

co sangue troiano a terra

dos que morreram na guerra

desestrada e trabalhosa.

E muitas vezes feridos

sam, lavrando cos arados

oossos meos sepultados

sobola terra trazidos.

E as paredes caidas,

com ervas nelas nacidas,

quasi sam todas cubertas,

todalas casas desertas,

queimadas e destroidas.

Tu, vencedor, es ausente,

nem posso triste saber

que causa de te deter

te detem tam longamente,

ou em que parte alongada

do mundo tam desviada,

contra mim tam cruel sendo,                     

te andas assi escondendo,

que de ti nom sabem nada!

Quem quer que vem ter aqui

nom se vai deste lugar

sem primeiro m' escuitar

muitas perguntas de ti.

E a este com tençam

que em algũa regiam

te pode acertar por dita,

ũa carta dou scrita

que te dee de minha mão.

A cas de Nestor mandei

e os que de laa vieram

mui vãas novas me trouxeram

com que mais triste fiquei.

Mandei a Esparta tambem,

e de quantos vão e vem

nom se sabe nem s' alcança

onde fazes tal tardança

ou que terra te detem!

Agora sei jaa que fora

pera mim maior proveito,

se o muro per Febo feito

estevera ainda agora.

E de meu grande desejo,

que sempre tive sobejo,

jaa me pesa e arrependo,

pois que todas seu fim vendo,

eu triste soo nom no vejo.

Soubera onde pelejavas

e tam somente temera

o que seguir se podera

nas batalhas em que andavas.

E a dor que entam sofria,

quando co esta vivia,

nom era tam desigual,

porque menos é o mal

que se tem com companhia.

E sem saber triste jaa

cousa que possa temer,

como molher sem saber,   

tudo temo quanto i ha.

E mostra-se meu cuidado

ũ medo mui desvairado

de mil modos de temores,

que terei, enquanto fores

de mim como es alongado.

Quantos perigos no mar

e na terra s' acharam

todos hei que causaram

vosso sobejo tardar.

E pode ser que estrangeiro

amor vos tem prisioneiro,

segundo vós fazeis todos,

enquant' eu por tantos modos

doudamente me marteiro.

Per ventura lhe contais,

quando convosco estever,

que tendes ũa molher

que fiar sabe e nom mais.

Mas paass' eu antes engano

e ũ mal tam desumano

se desfaça em vento e ar,

que podendo vós tornar

nom no façais por meu dano.

Viuvo leito deixar

meu pai me quer costranger

e de jaa nom o fazer

nom me leixa d' acusar.

Sua força sofrerei,

nunca porem mudarei

meu querer nem minha fee,

mas sempre Penelope,

molher d' Ulixes serei.

Mas ele com grande dor

de mim é vencido logo,

quam castamente lho rogo

consirando o meu amor.

Luxuriosas companhas

daquestas terras estranhas,

Duliquia, Jacinto e Samo,

os quaes eu muito desamo,

de me haver buscam mil manhas.

E sem nenguem lh' acoimar

quanto mal lhe vem fazer,

consentem-lhe a seu prazer

dentro em teus paços reinar.

E minh' alma e coraçam,

que tuas riquezas sam,

é co isto espedaçado,

cada vez meu mal dobrado,

minha dor, minha paixam

É sobejo relatar,

por nom fazer dilação,

e Pisandro e Medãao

e Eurimaco contar.

E as mãaos mui cobiçosas

de Polibo, trabalhosas,

e d' Antino pera mal,

pois que dizer nom me val

suas maldades famosas.

E enquanto torpemente

es ausente do estado

por teu sangue e mão gainhado,

se mantem toda esta gente.

Por despreço derradeiro

Melanto, que é ũ vaqueiro,

Iro, que nada nam tem,

cos outros contra ti vem

acrecentar meu marteiro.

Tres somos soos sem poder:

eu quasi sem liberdade,

Laertes de grande idade,

Telemaco sem a ter,

que houvera estoutro dia

per treiçam, que se fazia,

de me ser quasi tomado

de todos, quando estorvado

a Pilo buscar vos ia.

Òs deoses com devação

peço qu' indo avante os fados

meus olhos sejam fechados

e os teus por sua mãao.

E isto faz o boieiro

e minha ama, e é terceiro,

neste rogo ajudador,

o fiel guarda e pastor

de teu gado curraleiro.

Antre tam grandes inmigos,

Laertes mal defender

teu reino pode e soster,

sogeito a tantos perigos.

A Telemaco viraa,

viva-m' ele e chegar-lh'-á

a idade e valentia,

que j' agora lhe compria

ajudare-lo tu jaa.

Nom tenho forças qu' abastem

pera me remedear

e teus imigos forçar

que de teus paços s' afastem.

Tu faze que venhas cedo

por me tirares do medo

com que tanta pena sento,

serás porto e manso vento

em que meu mal estê quedo.

Ũ filho acharás aqui,

queira Deos que viva muito,

a que jaa faria fruito

ser ensinado per ti.

Tambem em Laerte atenta,

que seu tempo s' apouquenta,

vem-lhe seus olhos çarrar,

que pouco pode tardar

que sua morte nom senta.

Cabo.

Eu que era moça aa partida,

dina de nom me leixares,

por mais cedo que tornares

m' acharás velha perdida.

459

EPISTOLA DE LAODOMIA A PRO‑
TESILAO, TIRADA DO OUVIDIO,
DE LATIM EM LINGUAJEM
POR JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA.

Argumento da epistola.

Depois dos gregos ja ter

gente prestes e armada,

dos deoses mandam saber

que fim havia de ser

o da guerra começada.

Mandam-lhe mil desenganos,      

de como havia dez anos

sua guerra de durar

e eles nela passar

infindas perdas e danos.

Qu' o que fosse arriscado,

primeiro a sair em terra,

estava determinado

que fosse sacreficado,

primeiro morto na guerra.

Pelo qual Laodomia,

que seu marido sabia

ser ousado cavaleiro,

que nam saisse primeiro

nesta carta lhe pedia.

Mitit et optat, etc.

A que muito mais queria

per si mesma o visitar,

mui triste Laodomia,

a Protesilao envia

seu marido saudar.

Vieram novas aqui

que te faz i dilaçam

o vento, qu' ee contra ti,

quando fogiste de mi,

esse vento ond' era entam?

Entam deveram os mares

contrariar a teus remos

e pera nom me leixares,

que te causaram pesares,

usar todos seus estremos.

Entam fora proveitoso

e mui honesto proveito

ser o mar mui furioso,

qu' em te ser a ti brigoso

o a mim fezera direito.

Mais abraços e mandados

a ti, meu marido, dera

e tinha fantesiados

infindos outros recados,

os quaes dizer-te quisera.

Mas foste-me arrebatado,

porqu' era o vento tendido,

dos marinheiros chamado,

deles muito desejado

e de mim avorrecido.

Oos mareantes bom vento,

maao a quem queria bem,

e estando mui sem tento

m' arrebatou nũ momento

de teus braços nom sei quem.

E a lingua sem saber

livremente usar de si

inda nom teve poder

d' escassamente dizer:

― Ó triste, bo' hora vos i!

Acodio rijo e mui forte,

encheo as velas da nao

mui bravo vento do norte,

veo tanto e de tal sorte

que o meu Protesilao

logo muito longe vi.

E enquanto o pude ver

tanto cuidei que vivi

e os teus olhos segui

quanto cos meus pôde ser.

Des que ver-te nom podia,

por ficar mui alongada,

o navio em que ias via,

enquanto aparecia

me teve a vista acupada.

E depois que nem as velas

nem a ti pude alcançar,

indo-m' os olhos tras elas,

vai-se-m' o lume com elas,

perdi a vista no mar.

Des qu' assi fiquei partida,

segundo depois ouvi,

co a triste despedida

como morta esmorecida

me disseram que cahi;

que escassamente poderam

vosso pai, donde jazia,

minha mãi, que ambos i eram,

o esprito que me dera

tornar-mo com agua fria.

Fezeram-me seu dever,    

que mui escusado me era,

pesou-me de nom poder

naquele tempo morrer

mesquinha como quisera.

E tornando-m' o sentido,

tambem nas dores tornaram,

que o grande amor devido

e paixam de te ver ido

a meu coraçam causaram.

Nom tenho cuidado jaa

de me mandar pentear

e nenhũ gosto me daa,

des que te foste de caa,

com horcados m' arraiar.

E como molher tocada

d' haste de Baco trazida,

qu' ee de pampilos cercada,

ando mui desatinada,

jaa quasi douda perdida.

Vêm-me aqui ver cada dia

estas donas principaes

e dizem-me com perfia:

― Veste-te, Laodomia,

de vestiduras reaes!

— Como eu trarei vestidas

— lhes digo com grão paixão ―

lãas em cremesim tengidas?

Nas batalhas mui feridas

ele andará de Iliaom!

Eu me pentearei

por curar de fermosuras,

novos vestidos trarei

e dele qu' anda, ouvirei,

cuberto d' armas mui duras?

Nom hei-de fazer assi,

mas hei-me de trabalhar,

qu' em mal me tratar a mi

digam que arremedo a ti,

enquanto a guerra durar.

Pares, dos teus grão perigo,

fermoso em mui grande grao,

quem eu mil vezes maldigo,

assi sejas fraco inmigo     

como foste hospede maao!

Infindo prazer me dera

que dela t' avorreçeras,

ou jaa qu' isto assi nom era,

que Helena te nom quisera

por quam mal lhe pareceras.

E tu, que tanto desejas,

Menelao, ser vencedor,

hei medo, triste, que sejas

com perdas muito sobejas

mui chorado vingador.

Deoses, mandai afastar

este agoiro desastrado,

venha meu marido dar

a Jove que o tornar

suas armas jaa tornado!

Mas quantas vezes me vem

a triste guerra alembrar,

ũ grande temor me tem

e meu choro posso bem

com a neve comparar,

com neve qu' ee derretida

de sol que sobre ela some.

Xanto, Tenedos e Ida,

Troia me dam triste vida

e espanto soo co nome!

Que nem tomara ousadia

Pares d' Helena roubar,

senam porque s' atrevia

em seu poder, que sabia

que s' havia de salvar.

Luzia ao longe e ao perto

d' ouro, segundo é a fama,

vinha das riquezas certo,

daquela terra cuberto,

que Frigia de nós se chama.

Trazia grande poder

de frota e cavalaria,

que quem guerra quer fazer

estas ambas haa-de ter,

e muita gente o seguia.

Foste, Helena, derribada

de o tam fermoso ver,      

e a toda Grecia ajuntada,

sua gente e sua armada

medo hei-de lh' empecer.

Temo ũ Heitor, nom sei qual,

que Pares diz que dezia

de quem o poder é tal

com mãao de ferro mortal

que crua guerra faria.

Quem quer qu' ee este Heitor,

se algũ bem me quereis,

se me vós tendes amor,

muito vos peço, senhor,

que seu nome arreceeis.

E depois de vos guardar

dele, doutros vos lembrai

tambem de vos arredar,

que nam ha i de minguar

muitos Heitores cuidai.

E cada vez que em peleja

prigosa houveres de ser,

esta lembrança em ti seja:

mandou-me quem me deseja

cuidado dela em mi ter.

E se é determinado

de s' a Troia destroir

co grego sangue espalhado,

sem ser o teu derramado

m' a leixe Deos ver cair.

Contra quem o desonrou

peleje em terras e mares

Menelao, pois o causou

a que Pares lhe robou,

por tornar roubar a Pares.

Por armas haja vitoria

de quem vence por rezam,

bem é que cobre com gloria,

por leixar de si memoria,

a molher que nom lhe dão.

Tua causa é desviada,

por isso has-de trabalhar

ser tua vida guardada,

por tornares de tornada

em meu regaço folgar.

De quantos mil laa sam idos,

troianos, aa vossa praia,

deste tirai os sentidos,

de seus membros laa feridos,

porque meu sangue nom saia.

A nenhũ homem convem

qu' armas e ferro deseje,

mais pode quem guerra tem

qu' o amor: tu queiras bem,

toda outra gente peleje.

Ja agora confessarei

que te quisera estrovar,

mas a lingua refreei

co medo qu' aainda hei

de maao agouro tomar.

Porque quando tu saiste

pola porta despedido,

em seu lumiar feriste

o pee, de que fiquei triste

co agouro conhecido.

E em o vendo gemi

e disse em meu coração:

Sinal de tornar aqui

seej' este sinal que vi

e nom seja de paixão!

E agora que to digo,

é por nom seres ousado

d' entrar a todo perigo,

faze qu' o medo que sigo

em vento seja tornado.

Dizem, que por fado estaa,

nom sei quem este ha-de ser,

que primeiro sairaa

na praia e este seraa

o que primeiro morrer.

Desditosa e desastrada

será quem primeiramente

caa for viuva chamada!

Os deoses façam qu' em nada

te queiras mostrar valente!

A tua nao derradeira

seja de mil que laa vam

e ela como zorreira

faça ondas da ribeira

mais cansadas do que sam.

E tambem te lembrarás,

se de mim nom t' esqueceste,

que oo sair sejas detrás,

porque essa terra a que vás

nom é terra em que naceste.

E ao tornar de laa

por te mais prestes trazer,

os remos e vela daa,

mostra-te tam cedo caa

como t' eu desejo ver.

Quer seja o sol escondido,

quer seja mui claro dia,

sempre dás a meu sentido

ũ pesar mui desmedido

que m' acupa a fantesia.

E porem na noite mais,

porque é tempo mais desposto

em que estas fadigas taes

dam dores mais desiguaes

e o contrairo mais gosto.

Na cama por enganar

trabalho o sono enganoso

e enquanto me minguar

o verdadeiro folgar,

folgarei com mintiroso.

Mas porque se m' oferece

em sonhos tua figura,

porque amarela parece

e no falar se conhece

que é triste tua ventura,

acordo mal acordada

e toda fantasma triste

logo é de mim adorada.

Esta vida atrebulada

tenho des que te partiste!

Nom fica nenhũ altar

em toda esta região,

em que leixe d' adorar

com encenço e misturar

lagrimas de devação.

As quaes em cima espalhadas

assi vejo reluzir

em chamas alevantadas

como as que soem nas obradas

do fogo e vinho sair.

Quando te poderei ver?

Quando te verei tornado?

E em meus braços jazer,

que me veja resolver

com prazer tam acabado?

Quando será juntamente

que eu contigo nũa cama

ouvirei de ti, presente,

teu esforço, que se sente

laa, e caa sabe per fama?

E enquanto t' escuitar

cousas com que folgarei,

com outras de mais folgar,

qu' o tal tempo soi de dar,

mil vezes t' estorvarei.

Com as quaes mui sem afronta,

por quam doces ham-de ser,

se fará muito mais pronta

pera contar o que conta

a lingua com mais prazer.

Mas quando me torna o vento

o mar e Troia à lembrança,

com temor triste que sento,

que me daa grande tormento,

perco toda esperança.

E o que me faz sentir

dobrarem-se minhas magoas,

que nom nas posso encobrir,

é quererdes vós partir

contra vontade das aguas.

Quem quereria tornar

à sua propia terra

contra vento e contra mar?

E vós querê-lo forçar,

indo dela pera a guerra!

Nom desembarga a estrada

Neptuno contra a cidade

que foi dele edeficada.

Ond' is, que nom prestaes nada?

Tornar-vos será verdade!

Ond' is? Escutai os ventos,

atentai sua mudança.

Gregos, olhai mui atentos,

nom sam isto aquecimentos,

mas misterio esta tardança.

De guerra tam trabalhosa 

que vitoria buscais?

Ũa molher enganosa,

desleal, desamorosa,

o cume das desleais!

E enquanto bem podês,

tornai-vos com vossa frota,

pois da guerra que fazês

tam baixa groria querês,

mandai que cambem a rota.

Mas que presta revogar?

Vai-t', agoiro, daqui fora!

Praza a Deos que venha ũ aar,

que as ondas faça abrandar

e vos leve muito embora.

Enveja hei disto que digo

aas donas qu' em Troia estam,

de terem perto o imigo

e seus maridos consigo,

que mortos enterraram.

E per si mesmo trará

a novamente casada

a seu marido e dará

as armas e lhe porá

por sua mãao a celada.

Dará as armas oo marido,

oo marido, e em lhas dando,

nom será nisso metido,

tam acupado o sentido,

que lhas nom dee abraçando.

E tal modo de comprir

cada ũ o seu dever,

assi oo ir como ao vir,

mui doce se ha-de sentir

d' ambos com grande prazer.

Qu' o marido, enquanto for

sem se poder apartar,

pedir-lh' -á com grande dor,

mesturada com amor,

que percure de tornar.

Dir-lh' -á: — Tornai-me a trazer

essas armas que levais,

pera as vir oferecer

a deos que vos defender

de mil perigos mortaes.

Ele, levando em cuidado   

os mandados que lhe der,

pelejará temperado

e será tambem lembrado

de sua casa e molher.

E ela lhe tirará

o capacete e escudo

e tambem despi-lo-á,

no regaço o lançará,

ter-lhe-' á cuidado de tudo.

Nós, tristes, o que caa temos

muitas incertezas sam,

e quantos males sabemos,

que podem ser tantos, cremos

que laa s' aconteceram.

Enquanto contra o imigo

tu pelejas com perfia,

teu vulto tenho comigo

de cera feito a quem digo

mil branduras cada dia.

Nunca o leixo d' abraçar,

porque tem tamanho grao

em bem te representar

que se lhe dessem falar

seria Protesilao!

Como se caa te tevesse,

d' olhá-lo jamais nom leixo,

e como s' ele podesse

responder, quando quisesse,

em vão com ele m' aqueixo.

Por ti e tua tornada,

que nom tenho outra moor jura,

e pola fee confirmada

per casamento ajuntada

com tua e minha ventura;

pola cabeça que salva

te via tornar ainda,

ainda que venha calva

ou de cãas toda mui alva

tornando velho da vinda.

Fim.

Te juro, senhor, e crê-mo 

que companheira te seja

ou s' aconteça o que temo

ou seja contrairo estremo

o que minh' alma deseja.

Neste pequeno mandado

s' acabe esta carta triste,

tem de mim grande cuidado,

de ti muito mais dobrado,

porqu' em ti meu bem consiste.

460

DE JOHAM RODRIGUEZ DE SAA
AO CONDE DE PORTALEGRE,
MANDANDO-LHE ESTA EPIS‑
TOLA DE DIDO A ENEAS,
QUE TRELADOU A
SEU ROGO.

Muito manifico Conde,

tome vossa senhoria

este serviço meu, onde

a obra lhe nom responde

como a vontade queria.

Tome todos sobre si

os erros que nele achar,

porque se m' eu atrevi

a lhos pobricar aqui

foi por ele mo mandar.

Defenderá juntamente

o seu Eneas comigo,

Eneas de quem a gente

dos da Silva é descendente,

como em outra parte digo.

E assi seguro são

que o vosso nome muro

e a vossa defensão,

escudo de Telamão

pera mi será seguro.

Epistola de Dido aa Eneas, tre
ladada de latim em lingua‑
jem por Joam Rodri‑
guez de Saa.

Argumento.

Daquela noite escapado,  

derradeira d' Iliom,

que foi por nom ser tomado

o conselho mui bem dado

do triste de Laocom,

chegou Eneas trazido

com tormenta e com afronta

a Cartago, onde Dido

o tomou por seu marido,

segundo o poeta conta.

E a rainha, ferida

de muito grave cuidado,

caia chaga envelhecida

bem dentro d' alma metida

d' ũ amor demasiado,

vendo como se queria

Eneas dela partir,

esta carta lh' escrivia,

trabalhando, se podia,

sua partida impidir.

Sic  ubi fata, etc.

Assi foi jaa, quando sente

o cirne seu fim chegar,

na ribeira mui prazente

de Meandro docemente

ante da morte cantar.

Nem te falo jaa cuidando

com meus rogos te vencer,

porque bem vejo qu' estando

demudado em outro bando,

isto começo a mover.

Mas pois tam mal perdi

a fama bem merecida,

perder palavras assi

por leve perda a senti

após a d' alma e da vida.

De me leixares e t' ir

muito certo ante ti é.

Verei, triste, enquanto vir

o vento que te servir

levar-t' as velas e fee.

Per ũ mesmo apartamnto

tens, Eneas, ordenado

as naos e prometimento,  

em te ventando bom vento,

desatar mui apressado

e ir Italia buscar.   

Que nunca viste de provo,

sem to poder estorvar,

o reino que te quis dar,

Cartago que fiz de novo.

O que deveras fugir

buscas e foges o feito,

terras has-de descobrir,

da que gainhaste partir

te queres tam sem respeito!

Quem ta leixará entrar,

dou-lhe que aches essa terra,

quem sofrerá devagar

suas herdades lavrar

oos estrangeiros sem guerra!

Fica-te pera buscar

outro amor e outra Dido,

outra fee pera apenhar,

com que possas enganar

de quem nom es conhecido.

Quando t' aconteceraa

que faças ũa cidade

com' eesta, que feita estaa,

e vejas teus povos jaa

em tanta prosperidade?

Mui alevantado estando

d' ũa torre mui erguida,

os vejas multipricando

quaes ves agora leixando

com tam crua despedida.

E que sem te tardar nada

teu desejo em tudo venha,

onde pode ser achada

outra molher enganada

que tamanho amor te tenha?

Triste são, toda queimada

como ũa facha acendida,

de muito enxofre cevada,

que quão asinha é tocada

tam prestes é logo ardida.

Quer seja noite quer dia   

nunca passo sem trazer

com muita dor, em perfia,

Eneas na fantesia,

que nunca leixo de ver.

E ele ingrato em demasia

é de quanto houve de mim,

e tal que melhor seria,

se nom fora tam sandia,

estar sem ele atee fim.

Nom lhe quero mal porem,

conhecendo seu cuidado,

queixo-me, porque me tem

bulrada, e quero-lhe bem

muito mais desordenado.

Perdoa, Venus, agora,

nom des mais pena oo sentido

a mim que são tua nora,

nem fiques nisto de fora

tu, seu irmão, deos Cupido.

Abraça teu duro irmão,

por quem triste desespero,

doi-te de minha paixão,

manda-lhe, pois é rezão,

que me queira o que lhe quero!

Ou ele, quem em primeiro

nom me despreço d' amar,

dê, que justiça requeiro,

a meu amor verdadeiro

materea pera durar.

E com qualquer esperança

me dê rezão d' esperar

e algũa segurança

d' acabar sua esquivança,

pera m' eu nom acabar.

Bem vejo que sam bulrada

e qu' ee imagem fengida

a que m' ee representada,

tarde sam triste acordada,

porque é depois de perdida.

Jaa vejo qu' ee todo engano,

bem se vê qu' ee tudo vam,

bem o vejo por meu dano

desviado e ser humano

e da mãi na condiçam.

De montes e pedra dura   

mui duro foste criado,

d' arvore de grande altura

nacida em montanha escura

ou fero animal geerado.

Ou es nacido do mar,

como agora and' em tormenta,

onde te vejo ordenar

de quereres navegar

com tam mao vento que venta.

O estorvo, que te dão

as Fortunas, nom atentas,

olh' as aguas co soão

quam revolvidas estão,

aproveitem-me as tormentas.

Leixa-me, que a liberdade

que a ti quisera dever,

que a deva à tempestade,

que mais justa na verdade

que ti se pode dezer.

Nom posso tanto valer

nem sam eu de tanto preço

que determines morrer

por muito longe viver

de mi, que assi t' avorreço.

Por preço grande sem par

exercitas com perfia

odio pera me matar,

se morrer por me leixar

teens em tão pouca valia.

Nom t' apresses que a bonança

e os bons tempos virão

e o mar logo se lança,

assi fezesses mudança

como eles a farão!

E creo que a farás,

que nom pode a natureza

fazer que fiquem detras

todalas arvores maas,

que as venças em dureza.

Às aguas, se nom souberas

quanto mal podem causar,

que menos disto fizeras

das que jaa viste tam feras,

assi te ousas de fiar.

E que agora o mar te diga 

que te alevantes daqui,

assaz lhe fica de briga,

de temores, de fadiga,

ainda dentro de si.

E tambem ter mal guardada

a fee que foi prometida

a quem faz no mar entrada

nunca la aproveita nada,

antes é risco da vida.

Que tal lugar de temor

deos por melhor escolheo

a ser da fee vingador

e mais nas cousas d' amor

cuja mãi dele naceo.

E eu dele destroida

nom quero vê-lo perder,

dá-me ũa dor sem medida,

por sua causa perdida

receo de lh' empecer.

E com medo m' afadigo

de tormenta o ceçobrar,

sem causa tal vida sigo

com medo de meu inmigo

beber as aguas do mar.

Pera melhor t' acabar

que doutra nenhũa sorte,

oos deoses quero rogar

que a vida te queiram dar,

porque me causes a morte.

Faze agora fundamento

e seja este agouro vão:

que grandes torvões e vento

no mar achasses sem tento,

que cuidarias então?

Logo te acordarias

das juras que quebrantaste,

nem menos t' esquecerias

que acabar Dido seus dias

com teus enganos causaste.

Da molher triste, enganada,

a muito triste figura

te será entam mostrada,

em sangue toda lavada,

com muita desaventura.

Entam com medo dirás:

— Tudo isto mereci!

Quantos coriscos verás,

todos juntos cuidarás

que os lançam sobre ti.

Daa ũ pouco de vagar

aa crueza que conheço,

que assi te faz apressar,

e seguro navegar

da tardança será preço.

Fá-lo-ás em o fazer

por teu filho e nom por mim

per muito deves de ter

poderem por ti dezer

que foste meu triste fim!

Ele e os deoses que trazes

nom merecem com rezão

os males que lhe tu fazes,

ja livres das gregas azes

e do fogo de Sinão.

Mas nom os trazes contigo,

como jaa te me gabaste,

nem menos teu pai antigo

de nenhũ grande perigo

sobre teus ombros salvaste.

Nada disto foi verdade

nem sam eu a que primeiro

de tua pouca bondade,

per juros e falsidade

tenho sofrido marteiro.

Dize-me onde será achada

a mãi de Iulo fermoso:

morreo mui desemparada,

de seu marido leixada

cruel e despiadoso.

Estas cousas t' escuitei

e pola fe qu' em ti tinha

todas cri e afirmei,

por isso por menos hei

a pena que a culpa minha.

Nenhũa coisa dovido,       

que de tuas santidades

ainda sejas perdido;

seete anos ha que detido

te trazem mil tempestades,

per muitas terras e mares,

dos quais per força lançado,

porto pera descansares

e tuas naos concertares

mui seguro te foi dado.

E ainda escassamente

sem teu nome bem saber,

no que fui pouco prudente,

de meu reino e minha gente

te fui dar todo o poder.

Aos deoses aprouvera

que atequi me contentara

nas obras que te fezera,

o mais calado estevera

e nunca se divulgara.

Aquele mui triste dia

foi o que mais m' empeçeo

quando a chuva que chuvia

e tormenta que fazia

nũa cova nos meteo.

Ouvi ũs gritos mortais,

cuidei que as ninfas oivavam,

eram Furias infernais

que davam craros sinais

das fadas que me fadavam.

Vergonha tam maltratada,

tomai a paga com dor

pera Siqueu de mim dada,

que vou dar triste, coitada,

com vergonha e com temor.

Num oratorio meu

de marmore, está sagrado

com muitos ramos Siqueu,

tres vezes donde ouvi eu

chamar-me com som delgado.

Desta maneira dizendo,

que me lembra muito bem,

de que ainda estou tremendo:

— Nom gastes tempo perdendo,

Elisa Dido, mas vem.

Vem, nom te detenhas nada,      

que vives contra vontade,

nom des tamanha tardada

à morte bem empregada,

que te ponha em liberdade.

Eis me venho a teu chamar,

que tua molher me vi

jaa em tempo de te honrar,

venho porem devagar

pola honra que perdi.

Se fores ũ pouco humano,

perdoarás minha culpa,

que quem me fez este engano

tem auto pera meu dano,

foi que per si me desculpa.

O pai velho que trazia,

a deosa mãi confiança,

o filho que o seguia,

ma davam que nom faria

daqui nenhũa mudança.

E jaa que havia de errar,

mui honestas causas tem

meu erro pera alegar,

pera mais me desculpar

a fee me dera tambem.

Pera todo sempre dura,

sempre estando d' ũ teor,

estaa costante e segura

a minha triste ventura

em ser cada vez pior.

Os altares tintos são

do sangue de meu marido

em Tiro, e desta treição

meu irmão Pigmalião

foi autor mui conhecido.

Levaram-me desterrada

e minha terra leixei

e a cinza mal queimada

de Siqueu pior guardada,

que muito mais estimei.

Per caminho são trazida

mui trabalhoso e contrairo,

de meu inmigo seguida

de quem, por salvar a vida,

nom podia haver repairo.

A terra estranha acheguei,

de meu irmão e do mar

jaa em salvo, onde merquei

esta praia que te dei,

que agora queres leixar.

Ordenei ũa cidade

larga, de fermosa vista,

de quem a prosperidade

e a muita quantidade

dos vezinhos foi malquista.

Começa-se a empolar

contra mim mui crua guerra,

sem as portas se acabar

eis m' aparelho d' armar

molher em estranha terra.

A pedir-me s' ajuntaram

mil homens de casamento

e com rezão s' aqueixaram,

porqu' engeitados s' acharam

por nom sei quem, mui sem tento.

Que dovidas de me dar

a Hiarbas em seu poder,

pois eu te fui dar lugar,

que possas executar

em mim todo teu querer.

Meu irmão prestes está

cuja mão despiadosa,

qu' espargeo o sangue jaa

de Siqueu, bem folgaraa

co meu de que é desejosa.

Leixa os deoses inmortais

e reliquias a quem dana

tocá-las tu e nom mais,

mal serve os celestriaes

a mão do cruel qu' engana.

Pois tu havias de ser,

despois deles escapar,

quem os trouxe, has-de fazer

que se ham-d' arrepender

de nom se leixar queimar.

Prenhe me leixas assi,

ó tredoro, por ventura,

e ũa parte de ti

s' esconde dentro de mi   

como nũa sepultura.

E o minino coitado

que matarás e nom viste,

primeiro morto que nado,

acrecentar-se-á ao fado

de sua mãi Dido triste.

E o irmão inocente

de Ascanio Iulo leixar,

a vida que inda nom sente

com sua mãi juntamente

e d' ambos ũa fim dar.

Se te deos manda partir,  

bem fora que te tolhera

de poderes aqui vir,

nom vir a Africa servir

oos troiãos que recolhera.

Co esse teu deos por guia,

nunca te jamais leixando,

tormentas em gram perfia

te trazem de noite e dia

no mar teu tempo gastando.

Tanta fadiga te dar

escassamente devera

querer aa Troia tornar,

que a poderas achar

quejanda vivo Heitor era.

O Tibre que vás buscar,

que a Simoenta nom vás,

e que possas acabar

eessa terra d' achegar,

hospede nela seraas.

Mas segundo na verdade

a terra fogir te vejo,

jaa serás de grande idade,

quando essa tua vontade

se comprir o teu desejo.

Polo qual ser-t' -aa mais são,

leixando de rodear

e de sofrer mais paixão,

os povos que se te dão

em casamento tomar.

E a mui grande riqueza     

de meu irmão escondida

possui-la com certeza,

com muito firme firmeza,

sem nenhũ risco da vida.

A Troia trespassa caa,

muito melhor estreada

do que foi essa de laa,

na cidade que aqui estaa

dos de Tiro edeficada.

E aqui neste lugar,

que comigo t' entreguei,

o ceptro podes tomar

e as cirmonias usar,

que sam devidas a rei.

Se desejas guerrear

e se teu filho deseja

tais vitorias alcançar,

de que possa triunfar,

e mil triunfos seus veja,

porque nada lhe faleça,

inmigo aqui lhe darei

que vença e que lh' obedeça,

porqu' este lugar conheça

qu' em paz e guerra põem lei.

Por teu pai, as sagradas

reliquias d' Iliaom,

polas setas namoradas

de chumbo delas douradas

do deos d' amor, teu irmão,

polos deoses companheiros

de tua triste saida,

assi todos teus parceiros

cumpram seus dias inteiros

com descanso e paz comprida.

Naquela guerra passada

tam dura, tam perigosa,

acabe de ser gastada

toda fortuna guardada

pera te ser trabalhosa.

Nela em que tantos artigos

de morte viste sem conto,

de todolos teus perigos,

do mar, do vento, d' immigos,

s' acabe d' encher o conto.

Assi bem aventurados,     

Ascanio cumpra seus anos

e os oossos enterrados

d' Anquises mui repousados

nunca senta nenhũs danos.

Perdoa a casa que a ti

toda se quis entregar,

que pecado achas em mi

senam que me someti

de todo ponto a te amar?

A mim jaa nom me criou

nem Pitia nem Micenas,

nem contra ti s' ajuntou

meu pai, per onde causou

o mal que agora m' ordenas.

Se te corres de saber

que te chamam meu marido,

hospeda podes dizer

que sam, que por tua ser

tudo sofrerá ser Dido.

Eu conheço muito bem

da costa d' Africa o mar,

quantas incertezas tem,

onde nom pode ninguem

sem perigo navegar.

Verás ventar mui bom vento

far-t' -aas aa vela por t' ir,

mas compre d' estar atento,

se te daa consentimento

a maree pera sair.

Manda-me tu atentar

polo tempo, e tua ida

tardará e, a teu pesar,

te farei desamarrar,

se vir tempo de partida.

Tua frota espedaçada,

que o mar ha mester manso

por nom ser bem repairada,

os companheiros d' armada

pedem que lhes des descanso.

Por algũ merecimento

e se ainda em mi mais haa,

pola esperança com tento

que tive de casamento     

algũ espaço me daa.

Tempo te peeço e nom al,

enquanto a vida me dura,

em que soportar meu mal,

pera mi tam desigual,

m' ensine minha ventura.

Enquanto o mar abrandar

e co tempo meu amor,

trabalho por m' ensinar

fortemente a soportar

qualquer muito grande dor.

Se nam com muita firmeza

faço conta d' acabar

vida de tanta tristeza,

nom pode tua crueza

contra mim muito durar.

Oo se me podesses ver

quejanda esta carta faço,

ver-ma-ias escrever

e tua espada jazer

lançada no meu regaço.

E per meu rosto sair

lagrimas sem nenhũ medo

na aguda espada cair,

que meu sangue ha-de tengir

em vez delas muito cedo.

Tua dadiva a meu fado

como lhe veo tam justa!

Meu saimento coitado

bem é de ti acabado

com muito pequena custa.

Que ferro ferio meu peito?

Nom é a primeira vez

esta, que por teu respeito,

amor bravo com despeito

jaa outra chaga lhe fez.

Ana, irmã verdadeira,

da culpa de minha fim

sabedor e conselheira,

faze a obra derradeira

aa cinza que sai de mim.

Nem, depois do corpo meu

ser gastado na fugueira,

diga no letreiro seu:        

Dido, molher de Siqueu,

mas diga desta maneira:

Fim.

Aqui a cinza guardada

jaz de quem por sua mão

da vida foi apartada,

Eneas lhe deu a espada

para a morte e a rezão.

461

DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA A LUIS
DA SILVEIRA, PORQUE LHE VIO MAN‑
DAR D' ALMEIRIM A LIXBOA POR
MUITA MANTEIGA E VIRA-LHE
LEVAR MUITA QUANDO SE
FORA, TENDO Ũ COZI‑
NHEIRO QUE SE
CHAMAVA MES‑
TRE PEDRO.

O que disse a mãai de Veiga,

hei medo que vós digais,

segundo o que caa mandais

que vos levem de manteiga.

E sabeis o que se diz

a quem o quer escuitar:

Que mestre Pedro em gastar

e em fazer amargar

fez de vós emperatriz!

Se nom trazeis muito meiga

a senhora com que andais,

pois nela vos nam forrais,

nom gasteis vossa manteiga.

Reposta de Luis da Silveira
polos consoantes.

Vós vireis cá de taleiga

e d' azagaia e nom mais,

e veremos se trovais

outroora mais pola leiga.

Vós nam podeis ser juiz    

em feito d' esperdiçar

e podeis em al falar,

pois gastar e pelear

nam fizestes com' eu fiz.

Vireis d' oossos em taleiga

vossos duzentos reaes,

atravessareis a veiga

com gram banda de zorzais

e ireis ter oos pinhais.

462

TROVAS QUE MANDOU JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA À SENHORA DONA
JOANA MANUEL E REPOSTA DES‑
TES MOTOS, QUE LHE MAN‑
DARAM A ELA ŨS SENHO‑
RES DE CASTELA, QUE
NOS MOTOS VÃO
NOMEADOS.

Ainda qu' outrem tenhaes

que cuideis que mais vos quer,

ao tempo do mester

jaa vedes bem quem achaes.

Servir-vos nom me tolhaes

e por esta liberdade,

eu solto à vossa vontade

as mercês a quem as daes.

E posto qu' haja mil anos

que nom chego a vos olhar,

nom creais que ham-d' acabar

sem a vida meus enganos.

Vim saber que castelhanos

vos ousaram d' escrever

e eu quis-lhes responder,

porque fiquem mais oufanos.

Ha mester que lh' hajais medo,

porque sam d' openiam

que vos tomaram a mãao

sem lhe vós dardes o dedo!

Nem me compre d' estar quedo,

porque mais mal nom aguarde,

que despois s' aqueixa tarde

quem se nom prove de cedo.

Quem tem vossa openiam,

senhora, favorecê,

que muito maior mercê

vos merece esta tençam,

e julgar-me sem paixão,

pois pera mais nom naci,

de quanto vos mereci

tomarei por gualardão.

Moto do Condestabre
de Castela:

Pues non se halha en Castilha

el remedio de mi mal,

venga ya de Portugal.

Trova à tenção deste moto.

Per ventura com mudança,

como mil vezes se ordena,

prazer se troca por pena

ou outra maior s' alcança.

É porem a esperança,

que muitas vezes lhe val,

por grande que seja o mal.

Reposta ao moto.

Pera os males, que laa

teraa vossa senhoria,

outro remedeo queria

e nom o que quer de caa,

que quem o tem nom o daa

a nenhũ seu natural,

por isso cuidai em al.

O Duque de Sogorbe.

Em la tierra que estaa el mio

 ya cierto,

que nunca se ha descubierto.

Trova à tenção deste moto.

Porque logo ao sentir

de tal maneira o achei

que por remedio tomei

principal o encobrir.

E s' algũu tempo se ouvir, 

saibam certo

que o saber-se é soo de perto.

 Reposta a este moto.

A quem nesta terra o tem

é tam conhecido jaa

a causa donde viraa

que nom s' esconde a ninguem.

Nom desejês mal nem bem

de caa, que certo

logo ha-de ser descuberto.

El Conde de Haro:

Ni le pido ni le quero,

porqu' el mal que hay em mi vida

es no tenelha perdida.

Trova a este moto.

A quem a Fortuna trata

cos males com que mais corre,

a morte que nunca morre

é a morte que mais mata;

porque a morte que desata

o mal da vida perdida

pera mim chamo-lh' eu vida.

Reposta ao moto.

Que remedio nom peçais,

senhor, nom desespereis,

o que vós o alcançareis

se meu conselho tomais,

que será: que a quem mandais

o moto, mandês a vida

e vós a verês perdida.

Dom Antonio de Valasco.

Yo que me pierdo por fee

devria ser remedeado,

qu' el que vos vio ya está pago.

Trova a este moto.

Nem a tem em vós inteira

quem pelo que vio vos crê,

porque a fee que se vê

nom é esta a verdadeira.

A minha é de tal maneira

que sam bem aventurado,

se per ela sam julgado.

Reposta ao moto.

Caa temos fee e obramos,

toda sua lei mantemos

e contodo nam podemos

alcançar que nos percamos.

Que remedio nom buscamos

nem ha i tam confiado

que lhe venha tal cuidado.

El Conde d' Onhate.

Si el mio está en algũa tierra,

em laa que me ha de cobrir

se tiene de descobrir.

Trova a este moto.

E quando for despedida

a vida co mal que tinha,

a causa donde me vinha

entam será conhecida:

saber-s' -á, se for sabida,

que a minha dor resestir

nom posso nem descobrir!

Reposta ao moto.

Se vierdes eesta nossa

onde a paixão é mais certa,

logo ha-de ser descuberta

toda dor e pena vossa.

Nom ha i quem tanto possa

que nom possa destroir

quem se nom pode encobrir.

De Dom Luis Ladram.

¿Adonde ire por remedio,

pues quien me lo puede dar

nom tiene cabo ni medio?

Trova a este moto.

A ũ mal que muito dura

pera se lhe dar repairo

ha-se de buscar contrairo

tam grande que lhe dê cura.

À minha desaventura

ũ soo se me pode achar

e este nom mo quis dar.

Reposta a este moto.

Que tenhais dores mui cruas

laa vos sofrê em Castelha,

porque caa d' ũa querela

se vos faram, senhor, duas,

que as mesmas paixões suas

a quem vos mandais queixar

nunca quis remedear.

Aos senhores que mandaram
estes motos.

Fim.

Senhores, minha tençãao

nom era ao começar

de pedir este perdãao,

porque então

antes leixara d' errar.

Agora depois d' achar

em meus erros o que neles

nom podês dissimular,

nisto m' havês de salvar:

em serem propios aqueles

que sam pera perdonar.

463

TROVA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A DOM JOAM DE ME‑
NESES EM AZAMOR, A PRI‑
MEIRA VEZ QUE LAA
FOI, O DIA QUE PE‑
LEJOU COM OS
MOUROS.

Soube vencer Anibal,

mas nom usar da vitoria,

que de Roma tinha a vida,

e se crera Marhabal

ficara sua memorea

sobre todas estendida.

Por isso vede, senhor,      

nom é isto aconselhar,

senom fazer-vos lembrança

que, se querês Azamor,

nom vos compre d' esperar

que se siga outra mudança.

464

OUTRAS TROVAS SUAS A LUIS
DA SILVEIRA SOBRE O SEU
FAETÃO QUE VIO PASSAR
EM ŨS SEUS REPOSTEI‑
ROS, INDO ELE RECE‑
BER EL-REI QUE VI‑
NHA D'ALMEIRIM.

Debaixo d' ũa genela

em qu' estava oo soelheiro,

vi ũa manta amarela

e nela

vi, senhor, ũ carreteiro.

Vi-lhe o rosto e feição

de mui disforme maneira

e cuidei qu' era visão.

Disseram-me: — É faetão,

o de Luis da Silveira.

Faetam, moor ousadia

foi esta que cometestes

em passar assi de dia,

do que seria

a da morte que morrestes.

Disse-lh' isto nom fingido,

senam por falar verdade.

Respondeo com gram sentido:

— Deos sabe que vou corrido,

mas nam tenho liberdade.

Mui grande cousa pedi,

immortal sendo eu mortal,

o carro que mal regi,

mas vir aqui

houve por muito moor mal.

— A culpa que nisso haa

tem o senhor que vos traz,

respondi, mas temos caa

quem saber o que traraa

ele soo sabe o que faz.

Passou ele e eu fiquei

e por ele e pola cama,

logo me certefiquei

que a lei,

e nom jaa nenhũa dama,

vos tira de vosso tento,

que vos faz, senhor, mudar,

qu' is per lamas e com vento

mais longe oo recebimento

que o velho de Tomar.                             

Mas por cousa tam honrada

e de proveito comum,

pola mostrar assinada

tudo é nada,

todo trabalho é nenhũ.

Tudo é bem empregado

por muito mais qu' inda seja,

porem, faetam coitado

merece de ser guardado

onde nunca mais se veja.

465

OUTRA SUA A LUIS DA SILVEIRA
SOBRE ALGŨAS ENVEN‑
ÇÕES QUE TRAZIA.

Desse vosso atalante

e da clave nom errante,

com sua conta vazia,

se nom fosseis tam galante,

eu nom sei o que diria.

E por nom ser heresia

presumir maa envenção

de tam gentil cortesão,

por sair desta agonia

em mercê receberia

dizerdes vossa tenção.

Reposta sua polos consoantes.

Pensamento mui pojante,

de que nam ha semelhante,

mete em minha fantesia

cem mil cousas por d' avante,

emnovadas cada dia.

Do que faço e que faria

nom tenho outro gualardão

senão ter muita paixão,

a qual certo vos diria,

mas todavia

magna petis faetãao.

                                                                                                                                                    

466

GROSA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A ESTE MOTO QUE
ŨA DAMA TRAZIA:

Porque esperou em mi,

o livrarei.

Grosa.

Dos males que dou sem fim,

no gualardão que darei,

sempr' este moto trarei:

Porque esperou em mim

o livrarei.

Senhora, mao gualardão

dais d' esperança e de fee,

pois a paga d' ambas é

liberdade e isençãao.

Ante creça sempre em mim,

e assi o tomarei,

vosso mal de que jaa sei

que liberdade nem fim

nunca vo-la piderei.

467

TROVA QUE MANDOU DOM PEDRO
D' ALMEIDA A JOAM RODRIGUEZ
DE SAA, VINDO D' AZAMOR,
PORQUE TROUXE A
BARBA FEITA.

Vós jaa guardai-vos de mim

e crede que vos convem,

que segundo a barba vem,

vós deveis de vir porrim!

Pelo qual temos jaa prestes

contra vós ũ bom juiz

e nom jaa pelo qu' eu fiz,

mas pola que vós fezestes.

Reposta de Joam Rodriguez de
Saa polos
consoantes.

Pois eu sãao e salvo vim,

com fazê-lo bem porem

polo julgar de ninguem

jaa nom darei ũ cotrim.

E se tal tenção tivestes

contra mim, fazê-lhe chiz,

porque dizem a quem diz

ouvirês do que dissestes.

468

OUTRA QUE LHE MANDOU DOM
PEDRO, PORQUE TRAZIA ŨA
CARAPUÇA DE VELUDO E
TIROU ŨU BARRETE QUE
TRAZIA, POR LHE DIZER
DONA ANA D'EÇA
QUE NOM LHE
ESTAVA BEM.

Pera contentar Dona Ana

ha mester ser tam agudo

que nom cuido que a engana

nem menos Dona Joana

carapuça de veludo.

Quanto mais qu' ela dezia,

e nisto bem s' afirmava,

todavia:

—S' o barrete bem volava,

la egua mijor corria.

Reposta de Joam Rodriguez de
Saa polos
consoantes.

A mim soo acho que dana

ser sandeu e ser sesudo,

sempre m' ee menos humana,

digo pola soberana

pera quem faço isto tudo.

Pera quem nenhũa via

achei que m' aproveitava

nem perfia,

com que s' a caça matava

e se mata cada dia.

469

TROVA QUE DOM PEDRO D'ALMEI‑
DA MANDOU AO CONDE DE VILA

NOVA, PORQUE LHE MANDOU

PEDIR ŨA CANA QUE

LHE EMPRESTOU

NO SERÃAO.

Nom saibam as castelhanas,

que andam em cas da Rainha,

que vos lembrastes de canas

tam asinha,

em tempo de louçainha.

E porem que isto assi vaa,

nom vos fiês na vontade,

mas em Joam Roĩz de Saa

que é homem de verdade.

Reposta de Joam Rodriguez de
Saa,
pelo Conde, polos
consoantes.

Brandas as acha e humanas

quem com elas faz farinha

e com tachas tam livianas,

com' esta minha,

querem cahir da bainha.

E por isso nom me daa

nom ma terdes em puridade,

que por mais me tem jaa laa

em penhor a liberdade.

470

TROVA DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA A
DOM LUIS DE MENESES, QUE ESTA‑
VA EM ŨA GENELA COM
SUA MOLHER, DON‑
DE VIA SUA
DAMA.

Aa mãao direita a rezão

e de fronte a má vontade

vos porá tal confusão

que nom sinto descrição

que escolha ahi a verdade.

Mas enquanto a concrusão

se não tira da questão,

oulhai bem nom vos acolhão,

que dizem que os olhos olhão

da força do coração.

471

TROVA DE DOM PEDRO A SIMÃO

DA SILVEIRA, PORQUE EL-REI

MANDOU CHAMAR ŨU HO‑

MEM E PRESUMIO-SE QUE

ERA PERA O CASAR

COM ŨA DAMA.

Se me eu nam enganei,

eu tenho sabido bem

qu' as falas todas d' El-Rei

sempre vêm por mal d' alguem.

E pois isto jaa se dana,

pera que fiquemos soos,

viva-me ũa castelhana

que outra virá por vós.

Reposta de Joam Rodriguez,
por ele, polos con‑
soantes.

Dond' eu a minha tirei,

quem jaa esperança nom tem,

nom teme a rei nem a lei

nem o falar de ninguem.

Mas quem se nom desengana,

ronca-lhe a todalas moos,

s' aa menos Dona Joana

ou lhe jaz pelas piós.

472

DE DOM PEDRO A DOM GONÇALO
DE CASTEL BRANCO, ES‑
TANDO DOENTE.

Folgai bem de ser doente,

pois que tendes tal demanda

que ũa moça que ali anda,

de que vós nom sois contente,

vosso mal mais que vós sente.

E quem é desta seguro,

e ante ela tanto val,

eu nom lh' acho nenhũ furo

pera s' ele sentir mal,

senom for do radical.

Reposta de Joam Rodriguez, 
por ele, polos con‑

soantes.

Quem m' isso fizesse vente,

far-m'-ia saltar em banda

o desejo de mais branda

ser a dor que tam assente

em meu mal está presente.

Porem, porque m' aventuro

a ser são do natural,

por me o seu ficar mais puro,

qu' eu tenho por divinal,

folgo de me ver mortal.

473

TROVA DE LUIS DE SILVEIRA, QUE

MANDOU A JOAM RODRIGUEZ ŨA

NOITE ANTE DE NATAL, POR‑

QUE FOI JUGAR COM

ELE E LEVAVA ŨS

ESCUDOS E GA‑

NHOU-LHE.

Eu fiquei tam magoado,

que pera depois de cea

vos hei por desafiado,

eu com a mão muito chea

e vós com punho çarrado.

Trazei antes ũa espada

com que me cortês d' agudo,

que o vosso velho escudo

que se nom passa com nada.

Reposta de Joam Rodriguez
polos consoantes.

Quem estaa desesperado

nenhũa cousa arrecea,

mas vós estai descansado,

qu' eu estou ũa balea

ou muito mais repousado.

E nom farei tal errada,

que nom são sesudo rudo,

pera jogo nom acudo,

mas irei aa consoada.

474

TROVAS QUE MANDOU JOAM RODRI‑
GUEZ A DOM PEDRO D' ALMEIDA,
PORQUE ELE E SIMÃO DA SIL‑
VEIRA LHE QUERIAM FAZER
TROVAS A ŨU CHAPEO
AZUL DE SEDA,
QUE TRAZIA.

Do autor tornar-se reo,

s' acontece cada vez,

e quem zombar do chapeo

cahir na cova que fez

é propia cousa do ceo.

Por isso sede avisado,

enquanto estais em franquia,

nom vos acolha o pecado,

que pecado ha d' ũ soo dia

que nunca é mais perdoado.

Este nom é de heresias

nem em que os anjos cairam,

mas ũ par de trovas frias

nom s' acha que se remiram

nem por vida do Mexias.

E enquanto a maa tenção

nom sai fora da pousada,

ahi val a descriçãao,

porque ũa trova mandada

é pedra que sai da mãao.

Mas se jaa detreminado

estaes, e como taful

nom querês ser conselhado,

guardai de fazê-lo azul,

qu' estaa mui adevinhado.

Guardai-vos tambem do vis,

nom vos sirva em consoante,

dizei cousas tam gentis

como d' homem tam galante

que nom ha tal em Paris.

E eu seguro o correr

e seguro o desafio,

mas quanto é oo responder

sabei que jaa me caa rio,

vendo o que ha-de vós de ser.

E nisto soo que vos digo

nom quisera ser profeta,

mas é ũ conselho antigo

de Platam, que a homem poeta

nom o tomeis por inmigo.

475

PERGUNTA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A DOM MIGUEL
DA SILVA.

Cume em que sa linhagem

dos da Silva mais empina,

a quem nom s' acha paragem

de eloquencia e de doutrina,

em latim, grego e linguagem.

Ante quem, quem a ventagem

dos outros tem com rezão,

perde tanto a presunção,

que se parece salvagem

assi mesmo ou aldeão.

Pois vos quis a natureza

tanto esmerar em saber

e co ele dar nobreza,

pera a ninguem o esconder

nem mostrar nisso graveza

e brandura e que despreza

os despreçeos d' altarada

e fantesia enlevada,

quando de tanta rudeza

como a minha é perguntada.

Pergunto: — Qual foi o mar

contr' oos deoses tam ousado

que nom quis fazer lugar

ao que mais alto estado

tem, vendo todos lhe dar?

Que nunca se vê mudar

com ondas, maree nem vento,

mas immoto e firme estar,

sem tam somente mostrar

nem sinal de movimento?

476

TROVA SUA A ŨA DAMA, QUE LHE
DEU Ũ DIA DE RAMOS ŨA
CRUZ DE PALMA.

Jaa mil tormentos provei   

e os mais vós os fezestes,

mas nesta cruz, que me destes,

foi o maior que passei.

Dar tormento oo corpo e alma

inda lhe nom satisfaz,

ũ soo proveito me traz:

mostrar-me que em vossa palma

haa soo vitoria e nom paz.

477

DE JOAM RODRIGUEZ DA SAA A ŨA
DAMA QUE DISSE QUE SONHARA QUE
ELE E OUTRO HOMEM ACHAVAM
CERTAS DAMAS DE NOITE DES‑
PIDAS E COMENDO PERAS
E QUE ELE QUE SE PU‑
NHA A COMER PE‑
RAS COM ELAS.

Senhora, nom me tenhais

por goloso de verdade,

se o nom sabeis de mais

que dos sonhos que sonhais,

que sonhos som vaidade.

E se eu peras comia

em tal lugar e tal hora,

isso seria,

porque com minha senhora

jugar peras nom queria.

Nom o posso porem crer,

ainda que mo jureis,

pois perdi jaa o comer

d' ouvir somente dizer

como estaveis todas tres!

Que fora jaa se vos vira,

segundo estaveis pintada,

como me das peras rira

ou fora mentira

e coraçam de pousada

o qu' eu caa de mim sentira!

Sua a Dom Pedro d' Almeida,
mandando-lhe mostrar estas
trovas, porque ele sabia
parte daquela estoria,
mas nom
sabia qual
era
o homem que
comia as

peras.

Eu era o homem qu' estava

à noite em cas da Rainha,

com tres damas em vasquinha

e de nenhũa apegava.

Antes diz que m' apartava

como bucheiro do porto

ũas peras de conforto

qu' o demo ali deparava.

E porque outr' hora nom vão

sonhar tal sonho comigo,

neste par delas lhe digo

toda minha condição.

Vão a vós co a tenção

que vos devem de buscar

pera se desenganar,

se devem laa d' ir ou não.

478

A DOM PEDRO D'ALMEIDA, MAN‑
DANDO-LHE MOSTRAR A EPIS‑
TOLA DE DIDO
A ENEAS.

Eu fico, senhor, corrido,

porque sei que vós rirês

de quam mal ensinei Dido

a falar o portugues.

Trabalhei mui bem meu giro,

trabalhei porem em vãao,

porque ela era de Tiro

e bem sabeis dond' eu sãao.

Ouvidio nos servia

de turgimão por latim,

o qu' eu menos entendia

do qu' ela entendia a mim.

Disso pouco que souber

vos podereis contentar

e por vós podeis julgar

que nunca vos vi molher

que podesseis amansar.

Reposta de Dom Pedro.

Bem sei eu que o partido

de Dido nunca vereis

tam alto nem tam sobido

como lho, senhor fazeis.

Bem me mato, bem me firo,

por ver se acho rezãao

de vos nom dar gualardão,

mas porem logo me viro

a morrer sô vossa mãao.

Ninguem nom tenha ousadia

de valer ũ só cotrim

ante a vossa fantesia,

qu' ee a que dizem sem fim.

Bem s' engana quem quiser

contra vós bando tomar,

mas haveis de perdoar,

pois is no cabo meter

mentira por gracejar.

479

OUTRA DE JOAM RODRIGUEZ DE
SAA A DOM PEDRO, MANDAN‑
DO-LHE MOSTRAR ŨAS
TROVAS QUE
FIZERA.

Pois minhas obras erradas

quereis ver, seraa rezam

verde-las com condiçam

que mas mandeis enmendadas

e nam, senhor, como vãao.

E co que laa lhe farão,

venham quentes coma brasa,

a dizer-me qu' em tal casa

taes borraduras lhe dão.

Reposta de Dom Pedro polos
consoantes.

Ahi haa horas minguadas,

nom o tomeis com paixão,

qu' eu nom vos tenho tenção,

porem nestas, aosadas,

qu' isto tudo está bem chão.

Nom digo quem nem quem não,

porem vós jazeis na vasa,

pois justaeis em sela rasa

comigo sendo quem são.

Reposta de Joam Rodriguez de Saa
polos
consoantes.

Desfechais mil badaladas, 

porque vos nom vão à mão

e eu vi outro folãao

que aas primeiras porradas

desejou logo o bastãao.

Abaixai a presunçãao,

que nem vós nom sois carasa,

guardai nom brite pol' asa,

senhor, vossa openiãao.

480

TROVAS QUE DOM PEDRO MANDOU
A JOAM RODRIGUEZ, SABENDO
ALGŨAS COUSAS QUE
TINHA PARA SE
VISTIR.

Por verdes que são olhadas

as vossas cousas de mim,

nom façais taes cavalhadas,

que de sedas bem coradas

des convosco em porrim.

E pois jaa errais capelo,

nom vades ser tam agudo

que danês ruam de selo

nem chamalote amarelo,

pois que jaa daneis veludo.

Vós nom credes o qu' eu digo,

tomais tudo à maa tenção,

se vos virdes em perigo

nom soom logo vosso amigo

e oulhai pelo cotãao.

Que quem tanta cousa erra

laa no porto m' ha-d' achar

e se nam quereis tal guerra,

lembre-vos que sois aa terra,

da terra haveis de tornar.

Quanto faz em vos danar

tud' ee pera mi ũ veo,

se vos quero desculpar

eis vos vão escorregar

gentis envenções do ceo.

Desespero de vós jaa,

bem sei qu' isto sam perfias,

porque bem craro estaa

que quem malas manhas ha

nom as perde em quinze dias.

Isto m' estava guardado,  

inda pera meu conforto,

vir a ter de vós cuidado

que nom vades mal betado

a vos perderdes no porto.

Sobre mim vem este cargo,

regê-vos pelo meu tempre,

sem haver i mais embargo,

e se nam eu vos alargo

d' hoje pera todo sempre.

Reposta de Joam Rodriguez de

Saa polos consoantes.

Conversações de pousadas

sempre vêm ter eeste fim

e nestas trovas, aosadas,

podem ser mui bem culpadas

as varandas d' Almeirim.

E por isto nom apelo,

porque bem mereço tudo

que me tragais atropelo,

como s' eu fosse alto, belo,

pois nom quero ser sesudo.

Nom traveis tanto comigo,

nom sejais tam zombeirão,

lembre-vos que o boi antigo

traz mais recado consigo,

põe mais rijo o pee no chão.

Nom vos metais pela serra

se por chão podeis andar,

sabei que quem tudo aferra

às vezes com peso berra,

que o faz agiolhar.

Quero-vos desenganar,

qu' eu são autor e vós reo,

em tudo o qu' eu vou sacar

vós com enveja e pesar

quereis lançar o arpeo.

Mas sempre Deos quererá

que vos mintam as estrias,

porque onde quer qu' eu vaa

nunca o olho vos verá

senam mil galantarias.

Diverês de ser lembrado   

que jaa vos eu vi no horto,

de todos mui afulado

e de mim soo bem tratado

por nom matar mouro morto.

Nom creaes que assi avargo,

buscai quem me bem contempre,

dir-vos-á, senhor, que amargo

muito mais que ũ espargo,

nom sei consoante a sempre.

481

TROVAS DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA, PARTINDO DONDE
FICAVA ŨA MOLHER.

Gram descanso levaria

meu coraçam se sentisse,

senhora, qu' eu nom deria

que, depois que me partisse,

vos lembrasseis algũ dia

de mim, que mais nom queria

outro bem nem gualardam,

de quanta rezam

com rezam sei que teria

de pedir satisfaçãao.

Satisfação do passado,

tempo tambem despendido,

bem despeso, bem gastado

em trazer quanto cuidado

por vós trago no sentido.

Que por ser milhor servido

nom posso servir em al,

ainda mal,

vosso merecer sobido

pera mim tam desigual.

Desigual, porque nom posso,

sem vós serdes deservida,

dizer que sofro esta vida,

senhora, porque são vosso,

até que seja perdida.

Mas sofrer a sem medida

pena, que sofro em calar,

faz dobrar

e ser muito mais crecida

a dor que me quer matar.

Matar, porque me convem,

nom convem, mas é forçado

partir-me de vós, meu bem,

meu bem sempre desejado,

mas que sois meu mal porem.

Pois sabendo que nom tem

outrem poder de me dar

vida e tirar,

nom ma dais, nem a ninguem

o poder de m' acabar.

Acabar de ver a fim

que me der minha ventura,

a ventura com que vim

onde vossa fermosura

vos deu poder contra mim.

Mas bem sei que será assi

como cada dia brado,

pois apartado

cedo m' hei-de ver daqui

de vossa vista alongado.

Fim.

Alongado de vos ver

e co este apartamento

sei que comprido ha-de ser

meu desejo e meu tormento

s' acabará co viver.

Mas que pestará morrer,

pois na mesma morte sei

que nom leixarei

muitas mais penas sofrer

das que na vida passei.

482

TROVA QUE MANDOU LUIS DA
SILVEIRA A JOAM RODRIGUEZ,
VINDO COM O CONDE DE
VILA NOVA DE SAN‑
TIAGO E EL-REI PAR‑
TIA O OUTRO DIA
PERA EVORA.

Vós co senhor Dom Martinho

diz que vindes per paradas,

pera meter a caminho

damas mal encaminhadas.

Outras novas que caa dão

nom as pode crer ninguem

que coube pelo padrão,

mas porem

sois tam zeloso de bem    

que a vossa boa tençãao

levaria a ele aalem.

Reposta de Joam Rodriguez
polos
consoantes.

Como moinho e meirinho

sam todas as suas passadas,

pera fazer cozcorrinho,

mas as minhas são baldadas.

As damas embora vão,

que jaa me nom vai nem vem

nelas prazer nem paixão,

que me dem,

ele nom ficou aquem,

porque minha condição

jaa sabeis que primor tem.

483

A ŨA MOLHER QUE LHE MAN‑
DOU Ũ SINAL QUE TRAZIA
NO ROSTO. CANTIGA DE
JOAM RODRIGUEZ
DE SAA.

Nom no empregastes mal

nem creio que sem rezão

em meu triste coraçam,

senhora, vosso sinal.

E tê-lo nele jaa posto

nom o faça em mim incerto,

onde está mais descuberto

do que era no vosso rosto.

Tem em mim este soo mal:

nom ser jaa o qu' era entam,

porque quando as cousas são

jaa nelas nom ha sinal.

484

PREGUNTA D' ANTONIO MACHADO
A JAOM RODRIGUEZ
DE SAA.

Pois passa tam sem vagar

o folgar por vossa vida

sem se poder conservar,

pergunto s' haa-de lembrar,

quando for mais sem medida,

o fim que tem de leixar.

Ou se se deve perder       

correndo desenfreado

me mandai, senhor, dizer,

porque meu fraco entender

o meio neste cuidado

nunca me soube escolher.

Reposta de Joam Rodriguez de Saa
pelos consoantes.

Quem mais quiser esperar

disto com que nos convida

este tam baixo folgar,

ponha todo seu cuidar

em cuidar que outra guarida

tem em que s' haa-de salvar.

E que caa neste viver

por pouco tempo e prestado

é falso todo prazer,

pelo qual compre, a meu ver,

lembrar-se homem do passado,

por lembrar-lhe o que ha-de ser.

485

PERGUNTA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A LUIS DA
SILVEIRA.

A mais discreta maneira

que homem pode buscar

pera vos louvar,

senhor Luis da Silveira,

é errar

tam acertada barreira.

E por assi acertar

duas mercês me fareis:

ũa é que me gabeis

e o que hei-de perguntar,

a outra que m' ensineis.

E dizei-me, senhor, qual

corpo sem ser sensitivo,

sem fegura de animal,

nem immortal nem mortal

tem porem nome de bivo;

quando s' apaga, s' acende,

esquenta-se em frieldade,

e por sua qualidade

o que toda cousa ofende

a ele daa claridade.

486

GROSA DE JOAM RODRIGUEZ DE
SAA A ESTE MOTO DE
ŨA DAMA:

Nunca tam livre me vi

nem m' houve tamanho medo!

Grosa.

Posto que tarde o senti

pera meu mal foi bem cedo,

pois pude dizer por mi:

nunca tam livre me vi

nem m' houve tamanho medo!

E que medo e liberdade

nom possam juntos caber,

pera m' a mi mal fazer

tudo vem a ser verdade

quanto nom podia ser.

Tudo pode ser assi

quer seja tarde quer cedo,

pois pude dizer por mi:

nunca tam livre me vi

nem m' houve tamanho medo!

487

TROVAS DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA
A LUIS DA SILVEIRA, QUE O FOI
VER A SUA CASA E, PORQUE
LHE DISSERAM QUE JAZIA
AINDA NA CAMA,
NOM QUIS LAA
ENTRAR.

Eu regi-me pela fama

que de vós ouço por fora:

que nom quereis que a senhora

vos ninguem veja na cama,

senom for ama

ou parteira

ou tam fiel covilheira

em que nunca houvess' escama.

Reposta sua polos consoantes.

Se homem oos que mais ama,

senhor, bem se nom afora,

é tal o mundo d' agora

que logo de vós brasfama

e defama,

de maneira

que logo pela primeira

se lh' haa-de tirar a mama.

488

EPITAFIO DE TIBULO, POETA,
TIRADO POR JOAM RODRI‑
GUEZ EM LINGUAJEM.

A morte mui desigual,

oo Tibulo, te levou

aa vida qu' é eternal,

tu que soo foras igual

ao que Mantua criou.

Porque mais i nom houvesse,

em elegias dissesse

quem amores desiguaes

ou as batalhas campaes

dos reis screver podesse.

489

PERGUNTA DE DIOGO FERNANDEZ,
OURIVEZ, A JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA.

Digo al que duerme despierto,

si vostro saber inora,

que contemple siendo cierto

qu' el dulce fruto del puerto

non es menor que clara amora.

La prudencia, gram senhora,

ante vos, senhor, se homilha

e nelh' alteza do mora

vuestra cumbre la desdora

y abaxa de su silha.

Yo remoto, insuficiente,

sim saber especulaar,

vengo a la muy clara fuente,

que del mar es procediente,

do espero navegar.

Y amando nom enojar,     

pido vuestro parecer,

pidolo por deprender

qual se deve más loaar:

el discreto perguntar

o el polido responder.

Reposta de Joam Rodriguez
de Saa pelos con‑

soantes.

Mi ierro muy descubierto

vuestra gracia assi colora,

que del muy seco desierto

de mi saber haze ũ huerto

vuestra pluma sabidora.

Y en esto superiora

de todas puedem dezilha,

que templa em tal punto y hora

mi saber, e assi mejora,

que queda a poder sufrilha.

Pues es causa tam vigente

vuestro ruego a me forçar

a dezir osadamente,

digo que es más de prudente

dar al perfeto su paar,

que nuevamente inventar

un enigma a su plazer,

do no se muestra saber,

mas vese em lo declarar

Josef Egipto mandar,

Edipo nombrado ser.

490

TROVAS DE LUIS DA SILVEIRA
A JOAM RODRIGUEZ DE SAA,
SOBRE ŨU SEU AMIGO, A
QUE ACONTECEO COM
ŨA MOLHER O
QUE DIZEM AS
TROVAS.

Este vosso moncosi

em chegando de improviso,

que maa hora o eu vi,

tinha-a eu fora de si

e el fê-la haver siso.

Nunca tal se vio fazer,

leva jaa Mestre Lião,

porque sem lhe pôr a mão,

sem a abrir, sem a coser,

soo de fora com a ver

lhe curou sua paixão.

Foi dele mui curada,

ja agora dela nam cura,

porem aa minha chegada

lhe sobreveio quentura

doutra materia causada.

Se lhe vida dar querês,

mandai-lho vir qu' eu o fio,

que a quentura com seu frio

segure como sabeis.

Reposta de Joam Rodriguez de Saa
polos
consoantes.

A homem que cura assi,

Deos lhe dê o paraiso,

e a vós, senhor, e a mim

tornamo-la ver aqui

e sempre co esse aviso.

Sostenha Deos tal saber,

dobre tal openião,

conserve-lhe a presenção,

que com muito ver e ler

nom na poderá aprender

sem natural descrição.

Que se nom fora avisada

per ventura e sem ventura,

pouco lhe prestara ou nada,

porque foi contra natura

ser tam bem remedeada.

Esta bem a entendês

qu' ee de Verãao, nom d' Estio,

a qual s' eu nom tresvalio

ela a tem por boas tres.

491

DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA
A ŨA DAMA, QUE LHE MAN‑
DOU PERGUNTAR SE TRA‑
ZIA Ũ RECADO PERA
ELA DE Ũ LUGAR
DONDE VINHA.

Nom tenho nenhũ recado  

pera vós nem pera mim,

senhora, nem fui nem vim,

nem estou nem são passado.

Nom tenho que vos dizer

cousa que queirais ouvir,

nem posso de vós mais ter

que males pera sentir

e vida pera os sofrer.

492

DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA A
Ũ VILANCETE DE GARCIA DE
RESENDE COM A TROVA
ABAIXO ESCRITA, QUE
LHE MANDOU, POR‑
QUE A MANDARA
TARDE.

O vilancete.

Coração, coração triste,

triste coração, coitado,

quem vos deu tanto cuidado?

Trova a ele.

Quem meu cuidado tomou,

quem nem cuidar me nom deu

inda mais acrecentou

ao mal que me causou

tirar-lhe o nome de seu.

Consento que seja meu

soo porque fique calado

o segredo do cuidado.

A Garcia de Resende.

Aacabado de a ler

de caa vos vejo zombar

e dizer:

— Tardar e arrecadar

nom s' haa nesta d' entender.

Porem qual vos parecer

nom se leixe d' assentar,

que muitos a podem ver,

a que pode contentar.

493

PERGUNTA DE JOAM RODRIGUEZ

DE SAA A AIRES TELEZ, QUANDO

O DUQUE IA A AZAMOR.

Cale-se ũ pouco, nom tanja Tritão,

o deos das batalhas repousa algũ tanto,

metam as armas seu medo e espanto

aa seita maldita, oo falso Alcorãao!

As deoses sagradas no monte Helicão,

isentas de humano e divino medo,

vos mandam, senhor, ũ pouco estar quedo,

ouvi-las e dar-lhes em mim atenção.

Filhas de Tespis, este meu ousar

de pôr-me no conto de quem vós servis,

abaste saber que mo nom consentis,

mas nom mo queirais porem acoimar.

O castigo fique pera outro lugar

e seja em vez dele agora ajudado

de vós todas juntas, até ser louvado

de mim quem nom posso sem vós nomear.

Aquele que jaa mil vezes tocando

a citara doce, com vossa harmonia,

eu vi outras tantas que os montes fazia

estar de seu curso seu som escuitando.

Os satiros, faunos, qu' andavão caçando,

silvanos dos montes e ninfas das aguas,

que tinha paixão perder suas magoas

e quem prazer tinha vi i-lo mudando.

A honra do nobre sangue dos Vilhanas,

dos Silvas, Meneses, o muito famoso,

em todalas cousas perfeito e ditoso

senão em amores lhe ir bem com Joanas.

Das outras vertudes, que são soberanas,

esforço, prudencia, em cabo dotado,

se de mais nom falo seja perdoado

e mais por louvar-vos de graças humanas.

Algũa esperança que receberês,

a minha prove era antre vossos loureiros,

me dão os enxempros de mil cavaleiros

nos quaes nunca a Febo Mars foi descortes.

E que Hercoles trouxe, como vós sabeis,

as Musas consigo per onde quer qu' ia,

os monstros matando e quanto trazia

o lebre de Pluto das cabeças tres.

Chamava Alexandre seu companheiro

aaquele das Musas espelho e arreo

que o filho inmortal faz ser de Peleo

por ser de seus feitos tam gram pregoeiro.

Na paaz e na guerra lhe era praceiro,

nem se despreçava de ser Scipiãao,

Enio em amor, quasi em grao de irmãao,

d' engenho mui grande e n' arte grosseiro.

Pois nom bota a lança, ante a faz aguda,

a disciplina da filosofia,

a doce, descreta, gentil poesia

que os grandes spiritus esforça e ajuda.

Nom o desprece de si nem excluda

este exercício vosso coração,

que Mars jaa foi visto na doce prisão

da deosa mui branda que os fortes muda.

A Deos immortal nem mortal senhor

nunca foi posto a nenguem por tacha,

quando serviços maiores nom acha,

servi-Lo com cousas de pouco valor.

Onde o coraçam é merecedor

nom desmereça em que s' aconteça

a obra ser tal que pouco mereça,

porque na vontade vai todo primor.

Busquei na fazenda com que serveria

e nom pude achar em tod' ela junta

nem em meu saber mais desta pergunta,

que acupará pouco vossa fantesia.

Vai confiada e leva ousadia

em vossa brandura sem ter a mais tento,

ainda, senhor, qu' este atrevimento

m' is logo tirando laa per outra via.

E muito mais longe do que certo o tenho

com outro desvio de vós m' apartais,

e isto, ainda que vós nom querais,

cos raios que lança de si vosso engenho.

No qual contemplando me cego e m' embrenho

e por milhor meo tomo desistir,

mas todavia me faz presumir

a condição vossa de que me sostenho.

Ha-d' ir convosco nesta expedição,

vê-lo-á o Mestre e toda a companha,

pelo mar Atlantico e pelo d' Espanha

causa de perda e de salvação,

aquele coitado que muita aflição 

o fez proveitoso aa vida humanal,

cousa a que nossa arte foi mais desigual

que a quantas no mundo produzidas são.

Immigo da terra, que queima e consume,

das ninfas, das aguas, que faz amargosas,

em pago das muitas e mui trabalhosas

fortunas de que tem grande volume.

Oo de saber e doutrina cume,

que eu inda espero de ver outro Furio,

dino de consul mais que de centurio,

aqui neste escuro mostrai vosso lume!

FIM DO SEGUNDO VOLUME