LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em
meio eletrônico
Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende
Edição de base:
GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.
VOLUME I
ITavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . ‡ .
De Gil Moniz a ũa molher. fo. LXII
D' Afonso Valente a Dona Guiomar e grosa d' ũa cantiga e ũa pregunta. fo. LXII
De Rui Moniz a sua dama. fo. LXII
‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às fo.LXIIII
De Tristam Teixera, tres cantigas. fo. LXIIII
De Jorge d'Aguiar contr' as molheres. fo. LXIIII
Trovas e cantigas suas. fo. LXV
De Fernam da Silveira aas damas, em que se fez morto. fo. LXV
‡ Trovas e cantigas suas. fo. LXVII
De Diogo Marcam em ũa partida e duas cantigas suas fo. LXVIII
De Joam Gomez da Ilh'aa razam. fo. LXVIII
Trovas e cantigas suas. fo. LXX
De Dom Goterre, nove cantigas fo. LXX
Do Conde de Borba, dez cantigas. fo. LXXI
Do Conde de Vila Nova desavindo e grosa sua a ũ moto. fo. LXXI
Do Conde de Tarouca, ũa pregunta. fo. LXXII
D' El-Rei Dom Pedro, quatro cantigas. fo. LXXII
Do Ifante Dom Pedro a Joam de Mena e a reposta. fo. LXXII
Do Ifante sobre o menospreço do mundo. Obra grande. fo. LXXIII
Do Conde do Vimioso a ũa senhora. fo. LXXIX
Trovas suas e d' Aires Telez, sobre ũa perfia d' amores. fo. LXXX
‡ Trovas e cantigas do Conde, desta folha atee às folhas fo. LXXXVI
De Dom Diogo, filho do Marquês, trovas e cantiga sua. fo. LXXXVI
Do coudel-mor Francisco da Silveira a Alvaro da Cunha. fo. LXXXVI
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às fo. LXXXVIII
De Joam Fogaça a Dom Gonçalo. fo. LXXXVIII
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. XC
De Diogo Brandam aa morte d' El-Rei Dom Joam. fo. XC
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. XCVII
De Luis Anriquez aa morte do Principe. fo. XCVII
‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. CVI
‡ De Joam Rodriguez de Castel Branco a Antoneo Pacheco. fo. CVI
Trovas e cantigas suas. fo. CVII
De Rui Gonçalvez, trovas suas. fo. CVII
Dezasseis cantigas suas. fo. CVIII
Do Doutor Francisco de Saa, grosa d' ũa cantiga. fo. CIX
Outra grosa e cantigas suas. fo. CX
D' Anrique de Saa a Diogo Brandam. fo. CX
‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. CXII
De Fernam Brandam, trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. CXII
De Joam Rodriguez de Saa, sobre algũs escudos d' armas. fo. CXIIII
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. CXXVII
190
DE GIL MONIZ.
Pois naci por vos amar
e ser vosso ta morrer
sem me partir,
eu nam devo recear
coitas, trabalhos sofrer
por vos servir.
Ca pois sempre vos amei
e vos amo certamente,
dizer posso
que ja nunca poderei
doutra ser inteiramente
senam vosso.
De vos eu aquele ser
que vos sempre fui e sou
ategora,
vós o devês firme crer
qu' esta fe nam se mudou
de mim, senhora,
pois que outra liberdade
nunca pude desejar,
nem queria
senam soo vossa vontade
sempre comprir e guardar
como devia.
Eu nam creo que nacesse
quem mais males soportasse,
nem sentisse,
nem que d' amar me vencesse,
como quer que bem amasse
ou servisse.
E coitas desesperadas
e tantos padecimentos
tenho passados
que soo de serem lembradas
os meus tristes sentimentos
sam torvados.
Pois leixarei por ventura
de vos sempre ser leal
sem gualardam?
Ou fará minha tristura
meu desejo querer al?
Por certo, nam!
Ante soportar aquela
vida mal aventurada, em que naci,
por vós, sesuda donzela,
mais dina de ser amada
de quantas vi.
Aqueles que bem amaram
e lealmente serviram
no passado
fama de si vos leixaram,
polas penas que sentiram
e cuidado.
A qualquer que bem ama
de si leixa tal memoria
em meus dias,
eu soo devo ser na fama
em ũa igual gloria
com Mancias.
Fim.
Ó vós, minha esperança,
todo meu bem e prazer
tam sem medida,
minha grande segurança
em cujas mãos e poder
é minha vida,
tanto devêes ser lembrada
e com tam grande sentido
de meu dano,
quanto sões vós desejada
e servida, sem partido
nem engano.
D'
AFONSO VALENTE À
SENHORA DONA
GUIOMAR DE
CASTRO.
Triste eu segui o mar
donde fermosura mora,
vi tam descreta senhora
e dama tam sengular,
que nam compre navegar
a desora.
Este mar é mui brigoso,
tem em si mui doces portos,
é d' ares mui avondoso,
de navegar perigoso,
que tem ja mil homens mortos.
Este mar é Guiomar,
a diesa que se adora,
esta se deve louvar,
esta se deve adorar
por senhora.
192
CANTIGA.
Dond' estás que no te veo,
¿ qu' es de ti, esperança mia?
A mi que verte deseo
mil anhos se me faz ũ dia.
Mas tal es tu hermosura
y tu terna juventud,
que con tu gentil fegura
me fieres y das salud.
Comigo mismo guerreo,
si desamar te podria,
mas al fim cativo creo
quedar de tu senhoria.
Grosa d' Afonso Valente
a esta cantiga, em
ũa partida.
¡ Que triste partir parti,
que dolor y que deseo,
que vida tengo sen ti!
Desconsolado de mi,
¿ dond' estás que no te veo?
Que ando triste mirando
no veo tu senhoria,
la muerte ando lhamando,
lhorando ando cantando
¿ qu' es de ti esperança mia?
Neste canto dolorido
desta ausencia que poseo,
con este negro d' olvido,
es gran cuidado venido
a mi que verte deseo.
Por saber se es lembrada
desta triste passion mia,
por saber se es guardada
la fee que te tengo dada,
mil anhos se me faz ũ dia.
Y ando loco sin seso,
deseoso sin ventura,
de mil passiones aceso
todo mi plazer despeso.
Mas tal es tu hermosura
que si pensa mi memoria
tu beldad y multitud
de tus gracias y tu gloria,
me da gloria tu vitoria
y tu terna joventud.
Mas ay que ninguna buena
vida por ti m' assegura,
es mi mal mayor que suena,
es por ti clara mi pena,
que com tu gentil fegura
te posistes dos senhales
de bondad y de vertud,
mas no te duelen mis males,
que son tales com los quales
me fieres y das salud.
Mas tal salud de morir
do tu piadad no veo,
claro te quiero dezir:
— Sabe que por te fuir
comigo mismo guerreo.
La razon me da la fe
que cierto bien me seria,
diz mi mal: — Consentiré.
Mas amor me diz: — No sé
si desamarte podria.
Fim.
Y con esta turbacion
do mil consejos rodeo,
que te fuya mi passion
me concluye la razon,
mas al fim cativo creo,
segum el luengo cimiento
del gran amor, que me guia,
qu' es vano tal mudamiento,
pues qual bivo tal consiento
quedar de tu senhoria.
193
AFONSO VALENTE AO
COUDEL-MOOR.
Prudencia y descricion
segum en vos, senhor, suena,
ocurra de vos la buena
y perfeita avisacion.
Pues cegué donde más via
y veo donde más ciego,
negué el bien que tenia,
el mal que tengo no niego.
Ca nestes tristes amores
do mi gualardon s' alarga,
quanto más le sufro carga
más le siento sus dolores.
Amor me comproo dolor,
mi libertad apenhando,
desto pido y demando
como seré, mi senhor.
O Coudel-moor polos
consoantes.
Pues es cierta conclusion
que no lhoeve como truena,
el dezir de vuestra pena
no me cause alteracion.
Ni a la descricion mia
procure mal assusiego,
mas si presuncion me guia
ante vos delha arreniego.
Ante vos com mil temores
mi saber assi s' embarga,
que ya os riendo mi darga
y las armas maas mayores.
de vuestras quexas tornando
con aussencia le pagando
el tiempo quita el penhor.
194
DE RUI MONIZ NAM
ESTAN‑
DO BEM COM SUA DAMA,
POR FAVORECER
OUTRO.
Donzela que me desama,
de vos tam bem conhecer
me pesa mais que pensaes,
porque vejo vossa fama
em ponto de se perder,
da qual vós pouco curaes.
Quem cuidou que fosseis tal,
que por seguirdes vontade,
negando vossa verdade,
folgasseis com vosso mal?
Que vos moveo a fazerdes
ũa cousa tam errada,
por seguir maginaçam,
e a folgar de viverdes
com raiva de namorada
em tam grande sogeiçam?
Grande foi vosso pecado,
que vos sogigou a quem
vos nam pode querer bem
nem sente vosso cuidado.
Se vos tal vontade atura,
em triste dia nacestes,
bom vos fora nam ser viva,
triste foi vossa ventura,
pois por quem ũu tal perdestes
vos tem quasi por cativa.
Pois pesar me rezam é
por serdes de tal linhagem,
mais que por vossa menagem
quebrardes nem vossa fee.
Vosso bem tanto me monta,
porem se foreis sesuda
nem perdera vossa graça
ca vos devera lembrar
como vos servi seis anos,
esquecido de meus danos
sem vos nunca desamar.
Fim.
Pois nam é de comparar
vossa culpa sem escusa,
do erro que vos acusa
quem vos poderá salvar?
195
RUI MONIZ,
ALEGANDO DITOS
DA PAIXAM, PERA MATA‑
REM ŨA MOLHER DE
QUE S' AQUEI‑
XAVA.
Expedite unam
mulie‑
rem mori.
Por tal de nam perecerem
as molheres virtuosas
nem suas famas perderem
as damas gentis, manhosas,
assi s' escreve, senhores,
na Paixam por seu castigo,
e eu assi vo-lo digo,
avangelista d' amores.
Nom licet mittere
eam
in carbonum.
Nam é necessaria cousa
desta molher fazer vida
em casa, onde repousa
bondade tam conhecida.
Porque seria pecado
daquesta viver u nam
mora falso coraçam
do que deve mal lembrado.
Secundum legem debet mori.
Segundo lei morrer deve,
pois em si tanto mal traz,
a molher que se atreve
a fazer o qu' esta faz.
As leis humanas o querem,
os direitos o consentem,
e os que dela se sentem
sempre sua fim requerem.
Tole, tole, crucifige eam.
Logo a crucifiquemos,
pois se nam quer correger
ou morte cruel lhe demos
por mais males nam fazer.
Porque se muito andar
no lugar em que andamos,
com as que mais desejamos
nos ha sempre de trovar.
Hanc dimittis nom es
amicus Cesaris.
Se viva sobola terra
deixamos quem nos quer mal,
destroindo o mais leal,
consentindo quem mais erra,
imigos das nossas vidas
somos verdadeiramente,
e nam das nossas soomente,
mas das que temos servidas.
Tradidit eam
illis ut
crucifixeretur.
Com pregam seja levada
desta gentil corte fora
esta imiga provada
da fama de na senhora.
196
RUI MONIZ.
X. p. f. a. til,
maçaroca frita,
desprazer de quem vos ama,
parecês galante dama
que a todos dizeis ita.
A todos mostraes ũ geito,
maçaroca, mal pecado,
e todos levam sospeito
de vossa lãa ũ bocado.
X. p. f. a. til,
nam é bem que mais repita
vossas manhas, gentil dama,
pois de vós corre tal fama
que a todos dizeis ita.
197
CANTIGA DE RUI MONIZ.
Leixar-vos é caso forte,
porque vos amo sem fim,
amar-vos é par de morte
pera mim.
Nam posso detreminar
o que devo de fazer,
se servir, se vos leixar,
se por vosso me perder.
Ca leixar-vos caso forte
é, sem ver-vos minha fim,
amar-vos é par de morte
pera mim.
198
OUTRA SUA.
Ũu novo conhecimento
de meu padecer esquivo
me fez que tornei isento
de cativo.
Servia quem nam curava
de dano que me viesse,
servia quem m' enganava
sem nenhũ bem que me desse.
Polo qual meu sentimento,
de morto tornado vivo,
me fez que tornei isento
de cativo.
199
DE RUI MONIZ.
Pois lá trazes em teu punho
todo meu prazer çarrado,
se eu houve mal falado
desses delo testemunho.
Mas se eu nam falei al
senam bem, dá-me rezam,
senhora, porque tam mal
feriste meu coraçam.
Nam é muito de louvar
quem fere cousa vencida,
se a morte e a vida
qual quiser lhe pode dar.
Pois nam sei porque feriste
meu coraçam tam vencido
que milhor que ser tam triste
me fora nam ser nacido.
Tu me feres com tristeza
que mui sem rezam me dás,
cuidando que cobrarás
per' aqui tua crueza.
Porque sabes muito bem
se com ferro me ferisses,
que saber podi' alguem
o que calar presumisses.
Se te praz e tu quiseres
que eu anojado viva,
mata-me, ó tu esquiva
mais que todalas molheres!
Que nam é vida chamada,
mas morte podem dizer,
vida tam anojada
como me fazes viver.
E sento bem que divera
ser-me bem galardoado,
mas bem vejo, mal pecado,
que nam naci em tal era.
Que cousa que por bem faça
a bem ma queiras contar
tu, senhora, cuja graça
nam leixo de desejar.
Porende, minha senhora,
em concrusam eu te digo
mal fazer a teu amigo
em ta fama nam melhora.
Que se nela melhorasses,
eu te juro certamente,
ainda que me matasses,
que seria mui contente.
E se es de mim servida,
assi es de mim amada,
que muito serás culpada
em me ser desconhecida.
Lembre-te que te servi
e amei tam de verdade,
despois que te conheci,
que nunca mudei vontade.
Fim.
Em te manter lealdade
tenho eu grand' assessego,
pois havê tu piedade,
senhora, do teu Rodrigo.
200
TROVAS DE RUI
MONIZ, EM
QUE METE NO CABO
DE TODAS ŨA
CANTIGA.
Como quem morre vivendo
ũu viver desesperado,
senhora, nam m' atrevendo
a dizer-vos meu cuidado,
digo que por meu pecado
tam gentil vos fizo Dios
que soy yo muy más contento
d' ir mal librado de vos
que d' otra com libramento.
Nam m' atrevo decrarar-vos
minha coita nam pequena,
receando d' anojar-vos,
a qual por vós se m' ordena.
Mas com toda minha pena
tan gentil vos fizo Dios
que soy yo muy más contento
d' ir mal librado de vos
que d' otra con libramento.
Sento triste pelo vosso
cuidado nam conhecido,
o qual escrever nam posso
como tenho no sentido.
Que por vós seja perdido,
tam gentil vos fizo Dios
que soy yo muy más contento
d 'ir mal librado de vos
que d' otra com libramento.
Desposto por vos amar
a fama perder e vida
sento, nam ouso falar,
minha pena sem medida.
Sento-a, sem ser sentida
de vós, que tal vos fizo Dios
que soy yo muy más contento
d' ir mal librado de vos
que d' otra com libramento.
Fim.
Vós serês de mim servida,
porque tal vos fizo Dios
que soy yo muy más contento
d' ir mal librado de vos
que d' otra com libramento.
201
CANTIGA DE RUI
MONIZ,
EM QUE ACONSELHA
ŨAS SENHORAS.
Senhoras, com cedo
cimbrar ou casar,
qu' a quem lhe tardar,
par Deos, hei-lhe medo.
E lembre-vos bem
aquelas coitadas
que Deos ja lá tem
por tarde casadas.
Havei ora medo,
sabê-vos lograr,
nam queirais tomar
a morte com cedo.
E pois vistes duas,
guardar de terceira,
assentar-lhe a calveira
vestidas ou nuas.
E com este medo
de tarde casar,
nam compre tardar,
mas cimbrar com cedo.
Qu' assi fez aquela
por sua saude
que mui ameude
lhe dam cambadela.
E com este dedo
se pode mostrar
quem se foi furar
sem lume, com cedo.
Quem gosta a duçura
e a pode saber
ha o outro viver
por desaventura.
Portanto, sem medo
cimbrar sem tardar,
ca vos ha-de pesar
de nam ser mais cedo.
Mas a que o gosta
nam lhe pesa nada
de ser cavalgada
d' ilharga ou de costa.
Passará dos doze,
o mais nam é cedo,
s' amor vos escoze
perdê-lhe o medo.
Guardar d' esperança
muito perlongada
e seja lembrada
per nome Costança,
que lambeo o dedo
despois de gostar
e foi-se finar,
do que vos hei medo.
Pegar pelas cristas
a qualquer escuro,
cimbrar a nam vistas
é caso seguro.
E posto em segredo,
folgar e calar,
deixai-vos andar,
sem disso haver medo.
Ja se nam costuma
pedir virgindade
e que se presuma
nam ha i verdade.
Com mão ou com dedo
podês-vos furar
sem arrecear,
nem disso haver medo.
Quem for derribada
pelo fodicam,
quer caia quer nam,
nam vá arrufada.
Assentar-lh' o bredo,
cimbrar e folgar,
mas quem vos levar
deve d' haver medo.
E nam é mentira
que Deos disse a Adam:
— Fazei geraçam.
E daqui se vos tira
que folgar com cedo
nam é de prasmar,
mas de lhe tardar
deveis d' haver medo.
Por ser defamadas
nam leixês fazer,
ca destas vem ser
as mais bem casadas.
Ca nam é segredo,
quem sabe folgar
nam perde casar,
nem hajaes disso medo.
Fim.
Notai esta copra
e sabei como vai,
a molher de meu pai
tomai-a por sogra.
E nam sendo cedo
vos pode pesar,
mas se eu lá entrar
perdei vós o medo.
202
OUTRAS DE RUI
MONIZ A
TRES FREIRAS DUM
MOESTEIRO.
Senhoras, vós todas tres
porque soes de mui bom tento,
por mercê responderês
e isto decrarareis,
em nome desse convento.
Dizemos cá antre nós,
e todos têm por tençam,
se nam é frade
que quem jaz cũa de vós,
que lhe cai arma da mão,
se é verdade.
E tambem muitos s' afastam
d' andar convosco d' amores
e cá pelo lugar catam
outros amores, que matam
todolos vossos favores.
E dizem que o Antecristo
ha-de ser de vós gerado,
por mercê decrarai isto
se quem vos coçou foi visto
em sua morte alterado.
Cabo.
E porque nós nam sabemos
tam bem arte do cantar
como vós, nem n' aprendemos,
em gram mercê vos teremos
ensinardes-nos solfar;
e mandai tudo num rol,
senhoras, por vossa fee,
e dizei-nos, em bemol,
se folgais por mi, fa, sol,
se por ut, re.
203
CANTIGA DE RUI
MONIZ A ŨA
MOLHER QUE ELE JA CONHE‑
CEO E MANDOU-LHE
ŨA MUITO MAA
REPOSTA.
Dama do jentil despacho,
que pouco dais por ninguem,
eu sei que vós sabeis bem
se sam femea, se macho.
Eu vos nam avorrecia,
eu sei bem que vos coçava
e que quando m' aprazia,
em osso vos cavalgava.
Pois sequer havei empacho,
vós molher de pouco bem,
de quem vos em Santarem
cavalgou sem barbicacho.
DE
TRISTAM TEIXEI‑
RA, CAPITÃAO DE
MACHICO.
Folgo muito de vos ver,
pesa-me quando vos vejo.
Como pod' aquisto ser,
que ver-vos é meu desejo?
Isto nam sei que o faz
nem donde tal mal me vem,
sei bem que vos quero bem
com quanto dano me traz.
Mas ist' ee para descrer,
ter, senhora, tam gram pejo,
morrer muito por vos ver,
pesa-me, quando vos vejo.
205
DE TRISTAM TEIXEIRA.
Da pena a mais pequena
peroo tarde m' acordei,
meus olhos, tapar-vos-ei,
ò menos nam sentirei
o que vista mais m' ordena.
De vos ver ou nam vos vendo,
nam sei certo qual quisesse,
porque tal prazer houvesse
que nam vivesse morrendo.
Ca me vejo com tal pena
sem me poder remediar,
que m' ee forçado tapar
os olhos por nam olhar
que vendo mais mal m' ordena.
206
OUTRA SUA.
Se ventura m' ordenasse
que vos ja mui cedo visse
como queria,
posto que me Deos matasse,
porque tal prazer sentisse,
folgaria.
Folgaria por cuidar
de vos ver como desejo,
esperando d' escapar
ò meu mal mortal sobejo,
que nam sei que me causasse
per que deste mal partisse
soo ũu dia,
salvo se Deos ordenasse
que vos ja mui cedo visse
como queria.
DE
JORGE D' AGUIAR CON‑
TR' AS MOLHERES.
Esforça, meu coraçam,
nom te mates, se quiseres,
lembre-te que sam molheres.
Lembre-te qu' ee por nacer
nenhũa que nam errasse,
lembre-te que seu prazer
por bondade e merecer
nam vi quem dele gostasse.
Pois nam te des à paixam,
toma prazer, se poderes,
lembre-te que sam molheres.
Descansa, triste, descansa,
que seus males sam vinganças,
tuas lagrimas amansa,
leix' as suas esperanças,
ca pois nacem sem rezam,
nunca por ela lh' esperes,
lembre-te que sam molheres.
Tuas mui grandes firmezas,
tuas grandes perdições,
suas desleais nações
causaram tuas tristezas.
Pois nam te mates em vão,
que quanto mais as quiseres,
verás que sam as molheres.
Que te presta padecer,
que t' aproveita chorar,
pois nunc' outras ham-de ser,
nem s' ham nunca de mudar.
Deix' -as com sua naçam,
seu bem nunca lho esperes,
lembre-te que sam molheres.
Nam te mates cruamente
por quem fez tam grande errada,
que quem de si se nam sente,
por ti nam lhe daraa nada.
Vive lançando pregam
por u fores e vieres
que sam molheres, molheres!
Cabo.
Espanha foi ja perdida
por Letabla ũa vez
e a Troia destroida
por males qu' Helena fez.
Desabafa, coraçam,
vive, nam te desesperes,
ca a que fez pecar Adam
foi a mãai destas molheres.
208
CONSELHO DE JORGE
D' AGUIAR
AO CONDE DE BOORBA, QUE
LHE MANDOU PREGUN‑
TAR QUE FARIA
EM AMORES.
Pois me tendes por amigo,
a mim mesmo erraria
em calar isto que digo,
pois por vós morrer m' obrigo
e sem vós bem nam queria.
E qu' entenda mui grosseiro,
j' ouverieis algum hora
que quem tem o tavoleiro
nunca tem o ver inteiro
como quem joga de fora.
Se houvesseis d' escolher,
bem o saberei pintar,
mas nam está em querer
nem rezam nam tem poder
pera tal vos obrigar.
E assi vossa vontade
vos aviso de mandar
a quem queirais de verdade,
com gram fee e lealdade,
sem vos disso afastar.
Deveis muito de fazer
que vos hajam por calado,
bom falar, bom escrever
vos fará muito valer,
mas nam seja furgicado.
Pouco rir, pouco falar,
isto nam demasiado,
guardar-vos-eis do zombar
nem mostrar muito folgar,
pois nam vem de gram cuidado.
Nam cureis de tal terceiro
de que sejaes receoso,
antes peitai um porteiro
com vestido e dinheiro
e seja porem dioso.
S' i houver compitidor
nam lhe mostreis amizade,
qu' ee sinal de pouca dor,
antes muito desamor
lhe mostrai e maa vontade.
Quando quer que lhe falais
sempre vos conheça pejo
e mostrai que vos torvais
em dizer o que passais,
qu' ee sinal de bem sobejo.
Com as outras despejado
nam despejo tras saido,
em tratá-las mui ousado,
em gabá-las nam calado
por ser mais favorecido.
S' assi fordes esquençado
que vos vejais melhorar,
quanto mais favorizado,
vos mostrai mais agravado
a quem com ela pousar.
Mostrai-vos seu servidor,
e que tudo lhe palraes,
queixai-vos de desfavor,
porem cousa de favor
jamais nunca lhe digaes.
S' em tal lugar vos topardes
nem prestem brados nem choro,
porque quanto ali ganhardes,
des que reconciliardes,
vos ficará ja por foro.
Nam vos force bem querer
que vos tolha ousadia,
que poderaa mui bem ser
que nam podereis haver
em mil anos ũ tal dia.
O gabar vos nam defendo,
pois i pende vosso feito,
ca segundo o eu entendo
quanto vós guanhaes morrendo
com gabar seraa desfeito.
E nam soo o ja ganhado
vos fará gabar perder,
mas d' amor bem esperado
podeis ser desesperado,
se vo-lo vem a saber.
Perfioso seguidor,
mas nunca façaes mudança,
que sejaes bom dançador,
nunca danceis esta dança.
Logo podereis dançar
por seguirdes gentileza
fia qu' ouvi nomear,
inda qu' ee maa de dançar
a qu' algũs chamão firmeza.
Fim.
Seguir isto nam vos peje,
eu, senhor, vos dou as armas,
nam hajais por mal tomar-mas
e buscar lá quem peleje.
Porque ja minha tençam
é servir Deos nũa serra,
pois em fee limpa e nam em guerra
estaa minha salvaçam.
209
CANTIGA SUA.
Ũ cuidado que me cansa,
se o calo, abafarei,
dizê-lo nam me descansa
nem com outro nam s' amansa,
que farey?
Vivo assi como Deos sabe
neste cuidado que sigo,
cal' o que ja cá nom cabe,
temo que cedo m' acabe,
pois abafo e nam o digo.
Doutra parte nam descansa,
dizê-lo nom o direi,
soportá-lo a vida cansa,
e com outro nam s' amansa,
que farey?
210
OUTRA SUA.
Pesares, nojos, tristezas,
nam vos temo,
pois vivendo vi o estremo
de todas vossas cruezas.
Que me podeis ja fazer
com que me possa anojar
nem que posso ouvir dizer
que me deva quebrantar?
Usai vossas asparezas,
nam vos temo,
que ja passei o estremo
de todas vossas cruezas.
211
DE JORGE D' AGUIAR.
Coraçam, ja repousavas,
ja nam tinhas sojeiçam,
ja vivias, ja folgavas,
pois porque te sogigavas
outra vez, meu coraçam?
Sofre, pois te nam sofreste
na vida que ja vivias,
sofre, pois te tu perdeste
sofre, pois nam conheceste
como t' outra vez perdias.
Sofre, pois ja livre estavas
e quiseste sogeiçam,
sofre, pois te nam lembravas
das dores de qu' escapavas,
sofre, sofre, coraçam.
212
JORGE D' AGUYAR
A ESTE MOTO:
Ves, amor, que groria das.
Pagareis lo que fezistes,
ojos tristes, des hoy más,
si matastes, recebistes
vida com que sereis tristes,
ves, amor, que groria das.
Si por vos mucho bevian
vida sin ningum plazer,
si por vos males sofriam,
si por vos bivos morriam,
pueden biem vengados ser.
Que tal vida recebistes
que sereis siempre ja más
tristes, pues tristes fezistes
sin plazer, pues no lo distes,
ves, amor, que gloria das.
213
PREGUNTA DE JORGE
D' AGUIAR AO COU‑
DEL-MOOR.
A vós, sô cujo poder
jaz saber e descriçam,
a vós que por entender
podereis pervalecer
o gram sabio Salamam.
A vós de quem bem conheço,
sem haver qu' ee isto gabo,
que oo que nam sei começo,
sem trabalho e com despreço
podereis achar o cabo.
Pregunto qu' ha-de fazer
quem quer bem desesperado
a quem nunca pode ver
nem falar nem escrever
parte de seu gram cuidado;
nem tem a quem seja ousado
descobrir-se que lho diga,
homem tam desesperado
e tam desaventurado
que vida mandais que siga ?
Reposta do Coudel‑
-moor.
O vosso gentil saber
quer tomar encrinaçam,
cousas se leixa dizer,
que faz neste pee caber
a honra dos que a dam.
E pois m' eu nam desconheço
nisto soo, senhor, acabo
que num louvor de tal preço,
ante vós, o que mereço
se me torna em meu desgabo.
Nem leixo de conhecer
ser caso bem escusado
a quem sabe responder,
mas eu hei-de prospoer
tudo por comprir mandado.
E digo, pois é forçado,
qu' em caso de tanta briga,
quem quer ser remediado
deve ser determinado
fazer amigo d' amiga.
214
CANTIGA DE JORGE
D' AGUIAR.
Mil cousas que de vós sei
me faram
que ja vosso nam serei
nem por vós cativarei
meu coraçam.
Nam terês mais em poder
meu prazer nem meu pesar,
nem por vós hei-de perder
ũu soo dia de prazer
com quem o poder tomar.
Que taes cousas de vós sei
que me faram
que ja vosso nam serei
nem por vós cativarei
meu coraçam.
215
JORGE D' AGUIAR
A ESTE MOTO:
Qualquiera tiempo passado
fue mejor.
¡Oh bevir mal empreado,
oh dias mucho peor,
de deziros soy osado
que qualquer tiempo passado
fue mejor!
¡Oh vida, la que bevi,
muerte, la que ora bivo!
¡oh plazer, que fue de ti
no te veo, ja te vi
en servir a quien no sirvo!
Que diré yo desdichado,
pues calharme es pior,
vivo tan mal a mi grado
que qualquer tiempo passado
fue mejor.
DE
FERNAM DA SILVEIRA ÀS
DAMAS, EM QUE SE
FEZ MORTO.
Quem ja perdeo o folgar
nam pode nunca partir-se
de paixam,
por ele devem chorar,
por ele devem carpir-se
com rezam.
Por isso ũu saimento
me façam, pois que fez fim
meu conforto,
ataude e moimento,
os sinos dobrem por mim,
que sam morto.
Pois que me mostraveis tanto,
donzelas d' alta Rainha
e gram Princesa,
fazei por mim ũu tal pranto
que digam da morte minha
que vos pesa.
E mui cubertas de luto
mostrareis, senhoras todas,
gram sentido,
chorareis por mi mui muito,
oulhai bem pera que vodas
vos convido.
Diraa Senhora de Sousa:
— Era este mal logrado
ũu Mancias!
Oh que milagrosa cousa,
que o vi tam namorado
ha tres dias!
Direis vós, gentil Pereira,
com ũa fala que sões
tam oufana:
— Ora, Fernam da Silveira,
j' agora nam bradareis
por Vilhana!
Mazcarenhas Lianor
que tanto senhora minha
soia ser
diraa: — Sento grande dor,
morrerdes-me tam asinha
sem vos ver!
Que viestes cá fazer,
dizei, quem vos demoveo
a tal jornada?
Porque viestes morrer
por quem vos nam agradeçeo
nunca nada?
Dirá aquela que se chama
como quem por meu pecado
nam tem sê:
— Qual foi a tam crua dama
que matou tal namorado
sem porquê?
Dirá a galante Vaquinha:
— Oh que prazer é o destes
atamanho!
Ó mana, ó prima minha,
oh que servidor perdestes
tam estranho!
A da Silva, que cuidei
qu' haveria por solaz
ver-m' em laços,
diz com doo que de vós hei:
— O coraçam se me faz
em pedaços!
E canta mui entoada
esta letra que no coos
traz cosida:
Da morte sam lastimada,
porque sempre contra vós
fui na vida!
Gabar-m' -á Dona Guiomar
e diraa: — Ó morte fera,
tam esquerda,
que cousa foste matar!
Ó Jesu, que homem era,
oh, que perda!
Quero ver dentro na cova
qu' envenções leva consigo
que lhe gabe.
Oh que desastrada nova
pera meu irmão Dom Rodrigo,
se o sabe!
Eis minha senhora vem,
como que nada nam erra,
se a viste,
diz: — Bem sei que me quer bem
lá u jaz de sô a terra
esse triste.
Que da hora que me vio
nunca mais seu coraçam
fez mudança,
e de quanto me servio
nunca lhe dei gualardam
nem esperança.
E diraa Dona Maria,
a de Melo: — Oh coitado,
guai de ti,
que quando t' alma saia,
triste desaventurado,
eu te vi
ũu tal desfavor fazer
a essa tua senhora
que m' espanto,
e nam te pude valer,
mas pagá-lo-ei agora
neste pranto!
Como esta que nomeei
chamam quem soio chamar
que me valha,
diz: — Oh quanto trabalhei
por vós sem nunca prestar
nemigalha!
Ó morte triste, roim,
ó mal que todos engole
mui profundo,
desconsolada de mim,
ja nam ha quem me console
neste mundo!
Quando responso cantar
ouvirdes, em voz erguida,
temeroso,
entam vos deve lembrar
como parto desta vida
saudoso!
Entam lembre como vou
com gram dor, com grã fadiga
desigual,
nam culpem quem me matou,
que nam quero que se diga
dela mal.
Fim.
E se quiser meu servir
quem todo este prantear
fazer fez,
bem me pode ressurgir,
entam tornar-m'-á matar
outra vez.
Reposta de Dom
Joham
de Meneses polas
damas.
Antr' estas damas dond' era
gram rezam que vos carpissem
com paixões,
pus meus juelhos em terra,
pedindo-lhe que m' ouvissem
tres rezões.
E disse com sentimento:
— Senhoras, ouvi ũu morto
que vos fala!
Entam li o testamento,
o que foi de desconforto
nom se cala!
E elas sem mais ouvir
todas juntas começaram
nesse ponto
tam fortemente carpir
qu' as lagrimas que choravam
nam têm conto!
Cada ũa com gram sanha
dezia desta maneira:
— Oh mezquinha,
que perda que foi tamanha
morrer Fernam da Silveira
tam asinha!
A todas tanto pesou,
que sentindo grandes dores
preguntaram:
— Vós sabês quem o matou?
E eu disse: — Desfavores
o mataram,
qu' eram tantos e ele soo
que os nam pôde vencer
com bem amar!
Eu em parte hei dele doo,
doutra folgo de morrer
polos matar.
Disse entam Dona Joana:
— Pois tal homem foi matar,
pola querer,
esta dama de Vilhana
devia-lhe d' alembrar
qu' ha-de morrer!
E pois que todas choramos
por causa desta senhora
nomeada,
bem será que lho digamos
por ficar daquesta hora
cavidada.
Dona Lianor Mazcarenhas
dezia por vós chorando:
— Morte fera,
vem por mim, nam te detenhas,
pois o nam fizeste quando
eu quisera!
Se t' havias de deter,
fora quando a quem levaste
deeste fim,
mas por me mercê fazer
j' agora, pois o mataste,
vem por mim!
Dona Filipa cuidava,
que polo nome que tem
e nam por al,
nam chorasse, e ela chorava
ousadas assaz de bem
por vosso mal.
Des que se punha a chorar,
dizendo como ereis sua
carne e unha,
era maa d' acalentar,
em que partes tende crua
pol' alcunha.
Dona Lianor Pereira
cobrou convosco grã fama
de dorida,
ca chorou de tal maneira
que nunca vós vistes dama
tam carpida!
E diz que por vos vingar
de quem vos daa dor crecida
sem rezam,
que jura que ha-de matar
se vos nam torna a dar vida
seu irmão!
Chorava Dona Maria
como aquela que perdera
mais que digo,
dizendo que nam queria
mais viver, pois lhe morrera
tal amigo!
E fazia tam gram pranto
que o que digo é nemigalha,
nem falei
e nam foi maior nem tanto
o que se fez na Batalha
por El-Rei!
Disse Dona Caterina,
quando a sua copra leram:
— Ai má hora,
vistes nunca mor mofina?
E as outras responderam:
— Nam, senhora!
Diss' ela: — Quant' este morto,
se morrendo esperasse
de o ver,
por lh' ir dar algum conforto,
mal viv' eu se me pesasse
de morrer!
A vossa terceira e prima
daquela, que vos matou
pola quererdes,
aquela ponho acima
daquelas a que pesou
de vós morrerdes.
Esta ponho por cimeira,
esta diz que a leixastes
em morrendo
de muitas paixões herdeira,
mil penas que lhe causastes
em vivendo.
Gabou-vos Dona Guiomar
e disse: — Oh mal esquivo
com tristura,
a mim mesma foi matar
quem matou este cativo,
sem ventura!
Ja da vida desespero,
pois tal homem foi morrer
e de tal fama,
sem ele vida nam quero,
nem deve querer viver
nenhũa dama!
Dezia vossa senhora
a quem quer qu' em vossos danos
lhe falava:
— Oh quanto milhor lhe fora
tomar os meus desenganos,
pois lhos dava!
Nem me culpem se o mato,
e os outros qu' isto virem,
se me querem,
pois todolos azos cato,
pera m' eles nam servirem,
desesperem.
Disse quem me fez penado
em vida morte sofrer
com doo da vossa:
— Pois morreo tal namorado,
ja nam quero mais viver,
inda que possa.
Dizendo que muito errara
quem vos deu tal galardam
sem no sentir,
como s' ela nam matara
o triste de Dom Joham
pola servir!
Tamanho pranto fizeram
sobre vosso saimento,
ca segundo
as cousas qu' ali disseram,
vós deveis partir contento
deste mundo!
Que todas se ali carpiram
sobre vossa sepultura,
e mais eram
os responsos que diziam;
ouvi lhantos d' amargura
que fizeram!
Fim.
Assi foi muito sentida
vossa pena, triste, forte
mui danosa.
A quem foi tam mal na vida
devia-lhe ser a morte
proveitosa!
Elas ficam saudosas,
todas cheas de paixam
atá nam mais,
porem andam tam fermosas
como vós sabeis que sam
lá ond' estaes.
PREGUNTA DE FERNAM DA SIL-
VEIRA AO COUDEL-MOOR.
Manda-me que a nam queira
nem sirva, quem eu mais quero,
a vontade estaa inteira,
tam firme, tam verdadeira
que deixá-la ser-m'-aa fero.
Doutra parte o qu' ela manda
tanto fazê-lo desejo
qu' em gram cuidado me vejo:
hei-d' escolher ũa banda,
em ambas tenho gram pejo.
Seja por vós conselhado,
senhor, e eu servirei,
pois me vejo em tal cuidado,
em caso tam desastrado
que farei?
Reposta do Coudel‑
-moor.
Em caso tam perigoso,
tam grave, tam dovidoso,
qual é, senhor, este vosso,
nam vos podem nem vos posso
dar conselho proveitoso.
Mas o meu, se o tomardes,
é que compre nam soltardes,
mas jazer mui de remate,
ca mais vale qu' ela vos mate
que depois vós vos matardes.
Senhor, eu isto faria
como digo que se faça,
e meu mal confortaria
cos que dizem que perfia
mata caça.
218
DE FERNAM DA
SILVEIRA A
ESTE MOTO DA SENHORA
DONA FELIPA DE
VILHANA:
Coitas, afam sem medida.
Se fosseis arrependida
de quanto mal me fazeis,
nam me darieis por vida
coitas, afam sem medida,
que vós por moto trazeis.
Mas vossa brava crueza,
que de matar-me estaa perto,
me vestio com aspereza,
desta livree de tristeza
de que me vedes cuberto.
Ó vida de minha vida,
peço-vos que m' acabeis,
mas por ter pena crecida,
coitas, afam sem medida,
bem sei que o nam fareis.
219
CANTIGA SUA.
Para os desesperados
gram conforto é saber
que ham certo de morrer.
Vós me dais paixam tam forte,
vida tam sem alegria
noite e dia,
que si nam houvesse morte,
vós cuidai qu' eu morreria
todavia.
Mas saber que meus cuidados
comigo fim ham-d' haver,
descansa meu padecer.
220
DOM RODRIGO DE
CRASTO E DOM
ALVARO D' ATAIDE E DOM GOTERRE
E O COMENDADOR-MOOR D' AVIZ
E DOM PEDRO D' ATAIDE FIZE‑
RAM ESTE RIFAM E COPRAS A
FERNAM DA SILVEIRA, POR‑
QUE CORREO A CARREIRA
COM ŨU MONGI DE
VELUDO PRETO,
FORRADO DE
MARTAS.
Rifam.
Ahinda m' agora abalo
de te ver como te vi,
vestido no teu mongi
a cavalo.
Vós dizeis:— Guarda carreira!
E vós nam vos guardais dela
e vindes à derradeira
ũu batissela.
Ũus dizem: — Ei-lo badalo!
Outros: — Nunca o eu tal vi!
E tal vai a quem mongi
vest' a cavalo.
Parecias ferdizelo
ou qualquer ave de pena,
ou genro de Jam de Melo,
ou senhor de Caracena.
Parecias-te co galo
moncosi,
em concrusam qu' em mongi
pareces mal a cavalo.
Parecias monseor
da cabeça atá òs pees
e ũu patram de galees
muito mao cavalgador.
D' hoj' avante nam te falo,
nem te prestes mais de mi,
pois atarracas mongi
a cavalo.
Reposta de Fernam
da Silveira
a todos estes senhores,
a cada ũu sua
cantiga.
A Dom Rodrigo de Crasto.
Eu te vi aquele dia
tam feo, tam desairado
que nam foi detreminado
s' eras tu, se a judia,
a puta da putaria.
Eu nam te sei nenhũ erro
pera andares bem com touro,
porque tu pareces perro,
nam ja mouro,
mas judeu ourivez d' ouro.
Trazias filosomia
de fanado
e nam ja na mouraria,
co teu caris engelhado
de custureiro rapado
muito tira da judia,
quando veens mais recachado
em som de sobrançaria.
A Dom Alvaro d'Ataide.
Eu hei-d' escrever mil cartas
como vos vi com tabardo
sobr' artilheira de martas,
a que vós chamais bastardo.
Vós soes mui gentil galante,
mas vinheis tam repinchado
que parecieis pintado
com pee de porco diante.
Daveis tal aar ò tabardo
qu' eu vos farei juras fartas
que vós ieis mais bastardo
qu' oo vosso saio de martas.
A Dom Goterre.
Eu ouvi dizer a Telho
que nunca vio diabrete
tam desforme nem tam velho
a ginete.
— Sabes quantos anos has?
Ũu que chamam Satanas,
que te parece no geito,
diz que tu,
quando naceo Barzabu,
eras jaa diabo feito.
E que jaa entam fodias
e ias contr' òs immigos,
e trazias
tam boa beesta de figos
com' agora qu' ees de dias.
E disto s' espantou Telho,
Dom Calvete,
seres tu ũu velho relho,
diabrete.
Ao Comendador-moor d'Aviz.
Quem te vio como t' hei visto
daraa voz
que pareces biaroz
de dar papa a Jesu Cristo
e disto.
Nam te diga a ti ninguem
qu' a cavalo es fermoso,
de mula pareces bem,
porqu' ees airoso.
Em dama nam farás choz,
saibam laa que dig' eu isto,
que pareces biaroz
que vas fartando d' apisto
Jesu Cristo
e disto.
A Dom Pedro d' Ataide.
Eu te vi tam arredado
n' escaramuça metido
qu' ee forçado
seres de mim apodado
e corrido.
Tu ias ũu serafim,
cousa pera ver do ceo,
com teus apupos d' aleo,
contente do cramesim.
Teu pai vi envergonhado,
dizendo com gram sentido:
— Oh coitado
cramesim, mal empregado,
escarnecido!
221
ESTE RIFAM
ESCREVERAM ŨUS
CASTELHANOS À PORTA DO
PAÇO EM CASTELA, AN‑
DANDO LAA O DUQUE
DOM DIOGO.
Portugueses, mantengaos Dios
y vos guarde de las manos
de los crudos castelhanos.
Qual prazeraa más a vos
¿ chofres, o bofes, o levianos?
E Fernam da
Silveira, como
a vio, escreveo estou‑
tra ao pee, em
reposta.
Castelhanos, mantengaos Dios
y guarde de tal afruenta
qual fue la d' Aljubarrota,
onde meus e teus avoos
ali chofres nos a vos,
nos como lindos galanos,
vos como putos marranos
fuyendo delante nos,
no vos valiendo las manos.
DE
DIOGO MARQUAM PARTIN‑
DO-SE DONDE ESTAVA SUA
DAMA, EM QUE LHE DAA
CONTA DO CAMINHO, E
EM CADA TROVA METE
NO CABO ŨA CANTI‑
GA FEITA PER
OUTREM.
Por verdes em que cuidado
estes dias despendi,
que vos nam vi,
sendo de vós apartado
nestas trovas o passado
escrevi,
assi como me sentia
cada dia trabalhado
por vós mais do que soia,
mas o que me mais fazia
ser triste tenho calado.
O dia que fui partido,
indo triste em vós cuidando,
trabalhando
com tristeza meu sentido,
por partir sem ser querido,
sospirando,
com gram pena mui crecida,
mui grave de resestir,
comecei em voz erguida:
— Oh que forte despedida,
oh que pena m' es partir,
oh quam malo es de sofrir
ver enagenar mi vida
em poder de quem me olvida!
Depois, no segundo dia,
me veio ũu gram desejo
mui sobejo
de vos ver, que parecia
que oulhando vos veria
sem mais pejo.
E com isto levantei
os olhos com mal que farte
e sem vos ver comecei:
— Pensando que te verei,
miro triste a cada parte,
com leal amor sin arte
que te yo vi e verei.
O outro dia passei
cuidando de que maneira
na primeira
por vosso tanto me dei
qu' em outra cuidar nam sei
inda que queira.
E com esta mui comprida
sojeiçam d' em vós cuidar,
comecei: — Muito sentida
senhora, pues no olvida
mi coraçon tu pensar,
cierto es que deve estar
en tu poder la mi vida.
No quarto, ũu sentimento
me veio com gram despeito,
por respeito
de sentir meu perdimento
em vos amar tam sem tento,
sem proveito.
E com este mal que via
de meu dano tam estranho,
agravando me dezia:
—Amor que com gram porfia
procura siempre mi danho
m' ha fecho com grand 'enganho
más amador que solia.
No quinto, acompanhado
fui de ũa mortal pena
nam pequena,
por me ver tam desamado
que a morte, mal pecado,
se me ordena.
E com tanto mal sentir,
saindo d' antre dous vales,
comecei de repitir:
— Tan asperas de sofrir
son mis angustias y tales
que de mis esquivos males
el remedio es morir.
O outro dia cuidar
em meu tempo mal despeso,
com gram peso
o passei, com me lembrar
que mostrar de vos amar
m' ee defeso.
E com este defender
muito forte d' encobrir
me conveio de dizer:
— É gram pena de sofrer,
é gram mal de consentir
haveer sempre de fengir
a quem quero nam querer.
Vendo-me mui alongado
de vós e nam de vontade,
saudade
crecia, sem ser menguado
meu querer, mui mais dobrado,
de verdade.
E por meu mal assi ser,
comecei mui descontente
mui fora de meu poder:
― Aunque no vos puedo ver
siempre vos tengo presente,
quanto más de vos ausente
tanto más crece el querer.
Sentia mui gram pesar
por me ver tam saudoso
e cuidoso,
sem de vós bem esperar
nem meu grande desejar
ser proveitoso.
Mas com quanto mal me veo
dezia por onde ia:
— ¿Donde estás que no te veo,
qu' es de ti, esperança mia?
a mi que verte deseo
mil anhos se me faz d' ũ dia.
Nam cria que ser podesse
que, por gram bem vos querer,
tal poder
amor sobre mim tevesse,
o que tanto mal me fizesse
assi sofrer
e tirar a Deos a fee
por seguir vossas carreiras.
Diss' entam, pois assi é:
—Amor, yo nunca pensé
que tan poderoso eras
que pudiesses tener maneras
pera trastornar la fee,
hasta ora que lo sé.
Vendo ja que me tornava
donde de vós me partira
e vos vira,
por vos ver tanto folgava
que comer nam me lembrava,
sem mentira!
E naquisto me perdi
por ũa mui brava serra
e andando disse assi:
— Amor, desque no te vi
va mi plazer a pie terra
y el dolor y triste guerra
a cavalho contra mi.
O outro dia esperança
de vos ver me soportava
e cuidava
na mui pouca segurança
que d' haver vossa mostrança
m' amostrava.
E sem ser de mim partida
esperança, comecei
de dizer: — ¡ Oh muy querida
esperança, muy comprida,
la hora que te verei
me sostem, nom al en vida!
Vindo acerca do lugar
onde estaveis, sospirei
e cuidei
se por meu triste chegar
podereis vós folgar,
e dovidei
de meu mal ser socorrido
como eu por vós queria.
Entam disse mui sentido:
— Si como queira recebido
soy de vos, senhora mia,
causa de tanta alegria
no tuvo hombre nacido.
Fim.
Assi foram meus sentidos
polo vosso trabalhados
dos cuidados
passados, nam despendidos
nem minguados, mas crecidos,
mui dobrados.
Polo qual sem mais desmaio
vós deveis em concrusam
a meu mal dardes repairo,
ca fazerdes o contrairo
me fazeis gram sem rezam.
223
CANTIGA DE DIOGO
MARQUAM.
Pois nam pode ser pior,
se milhor me nam fizerdes,
fazei o pior e milhor,
senhora, que vós souberdes.
O pior ja feito é
que pior nam pode ser,
o milhor tenho por fee
que de vós nunc' hei-de ver.
Pois que pode ser pior,
se milhor me nam fizerdes,
fazei o pior e milhor,
senhora, que vós souberdes.
224
OUTRA SUA.
É gram pena de sofrer,
é gram mal de consentir
haver sempre de fengir
a quem quero nam querer.
E por força demostrar
a contra do que me praz,
porque mais dano me traz
descobrir que me calar.
Em tal caso de sofrer
me convem, por encobrir
meu desejo, por fengir,
a quem quero nam querer.
DE
JOHAM GOMEZ
DA ILHA.
Queria saber
u vive razam,
se na entençam,
se em bem fazer,
se em bem querer
a quem bem me quer,
se a quem me der
eu conresponder.
Se em bem falar,
se em bem sentir,
se em comedir
em qualquer obrar;
em exercitar
o que justo for,
se é no senhor,
se mais no vulgar.
Se é aquerida
a fim do proveito,
se soo no dereito
é constituida.
Se é na medida
do dar galardam,
se na puniçam
da alma perdida.
E por aprender
u razam está,
a quem se mais dá
amo conhecer,
se mais oo poder,
se mais aa vertude,
assi na saude
como no doer.
E donde procede
razam per efeito,
e se do defeito
razam se despede.
Ou se se desmede
contra desmedido,
ou no arroido
em parte concede.
Se é cousa viva
em vida soomente,
ou se é vivente
no que vida priva.
Se é sensitiva
em soom d' animal,
se racional,
se vigititiva.
Se tem natural
razam seu sojeito,
se d' outro respeito
arteficial.
Se é aumental,
se demenuida,
se é per si vida,
se cousa mortal.
Se reje per si
ou se é regida
ou se é mais querida
aqui que ali.
Se é mais no .y.
do que é no .g.,
se tem .a.b.c.,
se tem quis ou qui.
E quanto s' estende
em sua doutrina
e quanto ensina,
se tudo s' aprende.
Também se reprende
quem dela nam usa,
e se sua musa
sua arte defende.
Bem saber queria
em qual destas vive,
pera que s' alive
minha fantesia:
se na cortesia
da livre vontade,
se pela verdade
tomar melhoria.
Rezam a fadairos
nam sei se resiste,
nem sei se consiste
em dous aversairos.
Ou aos contrairos
s' ordena comũa
ou tem part' algũa
em algũus desvairos.
Porque me parece,
segundo que entendo,
que nada comprendo
d' u razam falece.
E no que carece
eu me desatino,
desejo ser dino
ver u permanece.
A quem me dissesse:
razam é tal cousa,
e em que repousa
saber me fizesse,
enquanto podesse
eu o serviria
per ũa tal via
que satisfizesse.
Pelo qual m' encrino
aos trovadores,
espiculadores,
que me dêm ensino
no que determino
aprender, se posso,
com graça do nosso
ũu soo Deos e trino.
Cabo.
E mande-me quem
ensino me der,
ca no que queser
saiba que me tem.
Ensine-me bem
u vive razam
per vista visam,
segundo convem.
226
CANTIGA DO COUDEL‑
-MOOR.
Servir-vos nam leixaria
por mal que me ja viesse,
porque ser nam poderia
que outrem prazer me desse.
Mas em vós está soomente
meu prazer e meu pesar
e em vós é ordenar
que viver possa contente.
Polo qual nam leixaria
servir-vos, peroo podesse,
pois que ser nam poderia
que outrem prazer me desse.
Grosa de Joham
Gomez
da Ilha a esta
cantiga.
Senhora Dona Maria,
em caso que eu podesse,
servir-vos nam leixaria
por mal que ja viesse,
nem dano que me fizesse,
dama, vossa senhoria,
porque ser nam poderia
que outrem prazer me desse.
Nem vontade me consente
d' algũa bem desejar,
mas em vós estaa somente
meu prazer e meu pesar.
Nem me podeis pena dar
mais que meu coraçam sente,
e em vós é ordenar
que viver possa contente.
D' amar-vos nam me desvia
mal que tenha nem tivesse,
polo qual nam leixaria
servir-vos, peroo pudesse.
Lembrança, se vos prouvesse,
terdes de mim bem seria,
pois que ser nam poderia
que outrem prazer me desse.
227
DE JOHAM GOMEZ
DA ILHA.
Yo os di mi libertad,
la vuestra quedó com vos,
sim part' alguna
me quedar y teneis dos,
yo ninguna.
Mirando vuestra beldad,
nel primero que la viesse,
que mi libertad os diesse
ordenoo mi voluntad.
O fue de necessidad,
senhora, o quiso Dios
o la Fortuna
que toviessedes vos dos,
yo ninguna.
228
CONFISSAM DE JOHAM
GOMEZ DA ILHA.
Joham Mourato, meu senhor,
sajes em todo trautar,
d' honra bem merecedor,
mais inteiro trovador
do que posso decrarar.
Eu vos tenho por amigo
verdadeiro, e nam de jogo,
polo qual fee consigo
que aceitareis meu rogo.
Espero que m' acorrais
onde virdes meu desterro,
espero que me sejais
mais dos mais especiais
amigo sem nenhũu erro.
Espero de vós socorro,
espero de vós ajuda,
e porque cedo concruda
o que de mim se nam muda
me faz que a vós m' acorro.
Sei que vos confessareis
polo ano e seus dias,
vós de mim aceitareis
tres pecados que sabeis
que condenaram Mancias.
E a vosso confessor,
des que os vossos disserdes,
sereis dos meus relator
e ter-m'-eis por servidor,
quando meu servir quiserdes.
Vós dizei que sam casado
e quero bem a casada,
sendo d' amor tam forçado
que nam sento por pecado
ela ser de mim amada.
Nem me posso conhecer
senam tam sojeito dela,
que cuido que padecer
e tras padecer morrer
devo soportar por ela.
E o pecado segundo
lhe direis: Que meu sentido
nam se funda nem me fundo
senam sempre neste mundo
querer mal a seu marido.
E a morte lhe desejo
mais cedo que possa ser
e o demo nele vejo,
e hei gram prazer sobejo,
quando a ela posso ver.
O terceiro concrusam
vós dizei: Que sam tam forte
amador por condiçam
que nam sento contriçam
nem receo minha morte.
Nem d' alma nam sam lembrado,
nem de rezam nem de fama,
nem é outro meu cuidado,
salvante ser namorado
daquesta casada dama.
Requerereis a pendença
pera mim, vereis quejanda,
que nam prive bem querença
que toda minha femença
é fazer quanto amor manda.
O padre pode mandar
quanto m' ele mandar queira,
mas nam seja desamar,
ante me mande matar
per outra qualquer maneira.
Se me mandar gejunar,
dizei que hei por gejum,
quando nam posso cobrar
a vista de quem pesar
me dá e prazer nenhũu.
Se que veele vos disser,
dizei que veelo cuidando
na mais fermosa molher
das que Deos fez nem fizer,
pola qual vivo penando.
Fim.
Se que reze orações
vos mandar, dizei que bem,
mas seram muitas paixões,
danos e tribulações
que meu coraçam sostem.
Se vos mandar que esmole,
gaste-se quanto dinheiro
tiver, pero que m' esfole,
fique com que me console
ser servidor verdadeiro.
DE
JOAM GOMEZ DA ILHA
A RUI MONIZ.
Que d' ũ cravo sois doente,
meu senhor, cá me foi dito,
tal cravo seja maldito,
pois em vossa dor consente.
Dizem-me que vos curais
per solorgia,
serdes sam bom me seria,
porque d' ũ ou de dous
tais como vós me curaria.
Quanto mais d' ũ que me tem
le cor de moi travessado,
causou-se d' ũ apartado
e mui longo querer bem.
Per vezes fogo lhe ponho
de bem amar,
mas nam val a desamar,
porem como me desponho
vós curardes me curar.
Reposta de Rui
Moniz
polos consoantes.
Crede verdadeiramente,
o assi sam com dor afrito,
que se gasta meu esprito
em o sentir certamente.
O cravo de que falais
cada ũu dia
me daa, per Santa Maria,
moor pena da que pensais
nem eu dizer poderia.
De meu mal cura ninguem,
triste, desaventurado,
nem quem amo tem cuidado
de quanto dano me vem.
Mantenho-me no que sonho
por espaçar,
como quer que meu sonhar
se torna cuidar no gronho
mais que nojos afastar.
Joham Gomez polos
consoantes.
Por serdes quem pena sente
qual demostra voss' escrito,
de confortar-me nam quito
mon cor em seu mal presente.
Nam folgo porque penaes,
ca me seria
crueza de vilania,
mas porque me semelhaes
quem d' amores aperfia.
Como eu que hei d' alguem
trabalho sem ser pensado,
sam sem ferrar encravado,
manco e magro porem.
Sempre rincho e preponho
soportar
pena de meu desejar,
vós a fruito de madronho
me podês bem apodar.
Rui Muniz polos
consoantes.
Minha chaga é tam razente
que, quando me curam, grito
tam alto que sam desdito
ousadas bem feamente.
Nam queira Deos que sintaes
o qu' eu sintia,
quando m' o judeu metia
dous ferros quentes, mortaes,
que alma m' estremecia.
Pois que trabalhais por quem
e nam viveis enganado
que me pês mal a meu grado
por amores vos detem.
Havê-vos com' oo cegonho,
se medrar
quiserdes ou despertar,
ca, par Deos, se m' apeçonho,
é por nam querer peitar.
Joham Gomez polos
consoantes.
De quanto soes descontente,
senhor, nam sentir evito,
mas do que vós soes contrito
sam eu per contra contente.
A cousa que devulgaes,
que vos doia,
por nichil a sentiria,
ca do que mais vos queixaes,
acho que guareceria.
Porque em mim se contem
fee, pena de namorado,
com despreços apedrado,
porque moor paixam me dem.
Em cativeiro m' enfronho
sem resgatar,
ca nam pera baratar
é a que servo risonho,
pero deva de chorar.
Rui Moniz polos
consoantes.
Mandam-me de paciente
comer de cote ũu palmito
ou cordela de cabrito
peor que forçadamente.
Soporto tormentos quaes
nam sofreria
por ser sam, por gram contia
d' ouro nem doutros metaes
nem de pedras de valia.
Aquela que vos pertem
me traz assi derreado,
que com nojos sam tornado
mais cão que Matusalem.
Como morto sam medonho
no olhar,
ja nam sam pera prestar,
de ser ledo m' avergonho
mais que outrem de furtar.
Joham Gomez polos
consoantes.
É meu mal tam trançadente
que em comer nam labito
nem de dormir me guarito,
mas sofro como valente.
O mais que de vós gastaes
bem gastaria
dobrado e dobraria
no valor do que gabaes,
cuidando que sararia.
Nam me pesa, pois retem
na saude vosso lado,
por quem meu nojo passado
fez presente por desdem.
O que sento nam desponho
por calar,
soomente por esperar
nem me lhe desavergonho,
por me nam desesperar.
Rui Moniz polos
consoantes.
Porque nam sam eloquente
meus pesares nam repito
a vós, ó homem precito,
per amores craramente.
Cansai ja que nam cansaes
desta perfia,
porque mais vos compriria,
pois com trovar nam cegaes,
cegar-vos Santa Luzia.
Pois do que mais vos convem
vos vejo pouco lembrado,
leixo-vos, homem coitado,
vou-me caminho d' Ourem.
Queria-vos pôr com conho,
por mudar
ũu mortal acutelar
e ũu olhar-vos tristonho
em ũu doce conversar.
230
DE DOM GOTERRE, PORQUE
SE
CASOU SUA DAMA EM
BENAVENTE.
Lembrança nam é perdida
de vós, meu mal, Benavente,
dor que meu coraçam sente
e sintirá toda sa vida.
Que prazer pode ja vir
que me possa dar prazer,
ou quem poderei servir,
porque deixe de sentir
a perda de vos perder?
Minha dor é tam crecida
que por meu mal, Benavente,
sempre ja tenho presente
a morte bem conhecida.
231
OUTRA SUA.
Ó campo de Santarem,
altas torres d' Almeirim,
fazeis-me lembrar de quem
me fez esquecer de mim.
Ó tempo, como passaste
que me deixaste tal guerra,
morte, que nam me mataste,
dize porque me deixaste
mais vivo sobre a terra?
Se entam fizera fim
todo meu mal e meu bem,
nam me fezera Almeirim
lembrança nunca de quem
me fez esquecer de mim.
232
OUTRA SUA.
Por vos ver assi perdida
como vos vejo, meu bem,
mui triste será mi vida
polo mal qu' a vossa tem.
Se vos ja servir nam posso,
senhora, vós o fizestes,
vós por outrem vos perdestes,
eu perdi-me polo vosso.
Oh que vida tam perdida
temos vós e eu, meu bem,
a minha por vossa vida,
a vossa por nam sei quem!
Tomastes mal pera vós,
destes-nos muita paixam,
triste de meu coraçam
amar os tristes de nós.
Mal empregada, perdida
soes, senhora, em quem vos tem
e por isso é minha vida
tam triste sem nenhũu bem.
233
OUTRA SUA.
Cuidados tristes, por quem
tal morte me quereis dar?
Por quem me quereis matar,
cuidado de mim nam tem.
Ja cuidado nem sentido
nam tem de mim nem memoria,
de me ver por si perdido
nam leva pena, mas gloria.
Outro cuidado nam tem
senam soo de me matar
e leva gloria em cuidar
que me perdi por seu bem.
234
OUTRA SUA.
Alegre com mi tristeza,
alegre com mi partir,
senhora, de vos servir
por vossa pouca firmeza.
Vosso desconhecimento,
vossa fera condiçam
nam daram
ja nenhũu padecimento
a meu triste coraçam.
D' hoje mais vossa crueza
nam espero de sentir,
que leixar de vos servir
seraa leixar-me tristeza.
235
OUTRA SUA.
A vida será tristura,
meu prazer seraa pesar,
se minha triste ventura
se nam mudar.
Se de vós é ordenado
que tarde meu galardam,
morrerá meu coraçam
de triste, desesperado.
Que sua morte segura
nam pode muito tardar,
se minha triste ventura
se nam mudar.
236
OUTRA SUA.
Pois leixar-vos me é tam fero
que viver sem vós nam posso,
outro bem de vós nam quero
senam que m' hajaes por vosso.
Que me dê grande tormento
servir-vos sem nenhũu bem
consenti, pois eu consento
que o com que me contento
nom se contenta ninguem.
De vosso bem desespero,
vosso mal leixar nam posso,
consenti que seja vosso,
pois de vós mais bem nam quero.
237
OUTRA SUA.
Triste de mim, que farei,
que será de mim, coitado?
Se me segue este cuidado,
perder-m'-ei.
Perder-m'-ei por se ganhar
quem me tanto mal ordena
e leva pena
por mais cedo me nam matar.
Que farei, desesperado,
u m' irei?
Se me segue este cuidado,
perder-m'-ei.
238
OUTRA SUA.
Pode-me ventura dar
tristeza quanta quiser,
mas nam se pode
mudar meu querer.
Posso perder o folgar,
que nunca tive ganhado,
posso ser desesperado,
podem-m' a vida tirar.
Se eu nam desvariar,
pode-s' o mundo perder,
mas nam se pode mudar
meu querer.
DO CONDE DE BORBA
A ŨA
DAMA QUE DEU A OUTRA
ŨA COUSA, QUE LHE
PEDIO POR VIDA
DELE.
Pois destes por minha vida
o que nam posso servir,
deveis-lhe de consentir
que por vós seja perdida.
Que perdida ou ganhada
ja nam é em meu poder
de poder ninguem fazer
que de vós seja apartada.
Pois de vós é ja vencida,
vós devieis de sentir
nam quererdes consentir
que por vós seja perdida.
240
OUTRA SUA.
Se na fim tanta tristeza
me leixou desesperado,
fê-lo assi minha firmeza
por ficar mais magoado.
Toda a magoa fica a mim,
eu a tenho bem presente,
este mal será sem fim,
pois ficais dele contente.
E pois vejo a crueza
em que fica meu cuidado,
far-m'-aa ser minha firmeza
para sempre magoado.
241
OUTRA SUA.
É meu mal ja tam crecido,
em casos tam desvairados,
que por serem mal olhados,
fico eu assi perdido.
Eu devera ser julgado
por quam bem sempre servi
e o bem que nunca vi
me devera de ser dado.
E pois tenho merecido
descanso de meus cuidados,
se nam foram mal olhados,
eu nam fora tam perdido.
242
OUTRA SUA.
Nam trabalhe ja ninguem
em buscar vida segura,
se nam for desaventura.
Ca ter outra esperança
será mais qu' a ser perdido
e meu bem bem destroido,
se nam vem outra mudança.
E por isso s' alguem tem
algũu bem, nunca lhe dura
por ser moor desaventura.
243
OUTRAS SUAS.
Desconforto d' apartado,
de que todos desesperam,
fica a mim nam ser culpado
deste mal que me fizeram.
Mas pois ja é acabar
de nam ter de mim cuidado,
acabai de me matar
que ja som desesperado.
Mas o mal que me fazeis
por vos sempre bem servir,
vós, senhora, o quereis
por de mim vos despedir.
Fazei ja o que quiserdes,
pois conheço a verdade
que é fazer quanto poderdes
por me terdes maa vontade.
244
OUTRA SUA.
Por meu bem vim a Sam Bento
onde soube acertar
ter ũ tal conhecimento
em qu' espero d' acabar.
Acabar em vós cuidando
como sempre andei perdido,
por deixar d' andar buscando
o que tenho conhecido.
Mas pois isto tanto sento,
sem ter certo aproveitar,
sofrerei este tormento
em qu' espero d' acabar.
245
OUTRA CANTIGA
DO CONDE.
Vejo tudo desviado
e fora do que mereço
e conheço,
que me foi assi causado,
por ficar meu mal dobrado.
E ficou-me conhecer
minha vida ser perdida
e vós nam arrependida
de me tanto mal fazer.
E co mal deste cuidado
é tamanho o que padeço
que conheço
que me foi assi causado
por ficar meu mal dobrado.
246
O CONDE DE BORBA
À SE‑
NHORA DONA LIANOR
DA SILVA.
Sempre m' a Furtuna deu
tristezas com que nam posso,
des que deixei de ser meu
polo ser de todo vosso.
Que depois que vos servi
com tal firmeza, senhora,
nunca de vós ategora
ũa mercê recebi.
Desd' entam pedeci eu
mil males com que nam posso,
porque deixei de ser meu
polo ser de todo vosso.
247
OUTRA SUA A ESTA
SENHORA.
Ordenou meu coraçam
de servir-vos, sem mudança,
mais a vós sem esperança
qu' a outrem com galardam.
Estaa mais oferecido
sofrer por vós juntamente
do que seria contente
em ter outro bem vencido.
Por isso meu coraçam
antes quer, sem mais mudança,
servir-vos sem esperança
qu' a outrem com galardam.
248
OUTRA SUA.
Tomai bem quam bem conheço
nam estar em mais meu bem
que vir de través alguem
que me tire o que mereço.
Foi em balde meu cuidado,
fica-me muita paixam
por ficar desenganado
sem achar nisso razam.
Mas a moor dor que padeço
é estar todo meu bem
em vir de través alguem
que me tire o que mereço.
DO
CONDE DE VILA NOVA, SENDO
MOÇO, A ŨA DAMA QUE SER‑
VIA, PORQUE SEUS PAIS
DELE E DELA LHE DE‑
FENDERAM QUE SE
NAM FALASSEM.
Que seraa, meu bem, de nós,
quando fará isto fim?
Vosso pai mandou a vós
e o meu matou a mim.
O vosso vos pôs defesa
que me nam deveis vós fala,
e o meu, qu' assi se cala,
certo é que lhe nam pesa.
O que fazem contra nós
queira Deos que haja fim,
o meu nam faz bem a vós,
o vosso matou a mim.
Onde farei triste vida,
ja serei sempre perdido,
porem nam arrependido
de vos ter tam bem servida.
Meu bem, que seraa de nós?
Nam pode ir bem a mim,
pois por querer bem a vós
quis que fosse minha fim.
Vivirei com pena forte
em pesar, sem alegria,
farei vida tal que morte
me deseje cada dia.
Que nos nam falemos nós
é sinal de minha fim,
se isto dura por vós
cedo o faram por mim.
Dou ò deemo vosso pai,
vós podês-lhe dar o meu,
pois que polo caso seu
convosco tam mal me vai.
Ja sam ambos contra nós,
nam me deis tam triste fim,
pois que tudo estaa em vós,
por mercê, olhai por mim.
Com pena e com paixam
vivirei enquanto viva,
pois vejo que sem rezam
me mandais que vos nam sirva.
Nam sei que seja de nós,
milhor fora minha fim,
pois em m' apartar de vós
me parto triste de mim.
O princepe da vozaria
anda comigo em contenda,
porque, senhora, queria
qu' estivesse todo o dia
na fazenda.
Sobre saber qu' antre nós
sois anjo ou serafim,
quer que nam cure de vós
por desembargar Faim.
Tristeza e saudade,
minha vida, me deixais
e outras dores mortais
que calo cá na vontade.
Enquanto vivermos nós
nam s' apartaraa de mim
triste lembrança de vós
que causastes minha fim.
Fim.
Mas pois é vossa naçam
perder o por vós perdido,
nam culpeis, senhora, nam,
se meu triste coraçam
em al puser o sentido.
Nisto que se faz a nós
perco eu quanto servi
e direi que guanhais vós,
pois folgais perder a mim.
250
GROSA DO CONDE DE VILA
NOVA A ESTE MOTO
D' ŨA SENHORA:
Leixai-me,
porque chore minha dor.
Tristezas e desfavor
acabai ou acabai-me
e se nam quereis, leixai-me,
porque chore minha dor.
Dai-me ũ pouco de vagar,
nom mais que para poder
em minha vida cuidar,
porque soo com me lembrar
me podeis vós esquecer.
E se cuidais qu' ee favor
isto que peço, matai-me,
e se nam quereis, leixai-me,
porque chore minha dor.
DO
CONDE DE TAROUCA
A DOM JOAM DE
MENESES.
A vós qu' em cavalaria
e valentia
dais toque a Cepiam,
a vós qu' em sabedoria
precedeis rei Salamam,
a vós sô cujo poder
jaz tod' arte de trovar,
se deve d' ir preguntar
o que sem vosso saber
nom ouso detreminar.
Pregunta.
Dous homens sam namorados
de quem muito bem parece
e ambos pior tratados
do que cada ũu merece.
Se é moor groria ou pesar
indo eles ambos vê-la,
ver ũu o outro falar
ou ir falando co ela.
Reposta de Dom
Joam
de Meneses polos
consoantes.
Porque nom m' abastaria
poesia
nem saber nem descriçam
em lovar-vos, louvaria
nam tomar acupaçam.
E quem quiser emader
vossa fama por louvar,
lançará agua no mar,
cuidando qu' ha-de crecer
e nam poode nem minguar.
Reposta.
Mas pesar oos tam penados
s' outrem fala nam falece
e falece oos escuitados
o prazer se s' acontece.
E pois se pode acertar
falando groria perdê-la,
eu hei por moor o penar
de ver a outrem falar
que prazer falar co ela.
D'
EL-REI DOM PEDRO
A ŨA SENHORA.
Mais dina de ser servida
que senhora deste mundo,
vós soes o meu deos segundo,
vós soes meu bem desta vida.
Vós soes aquela que amo
por vosso merecimento,
com tanto contentamento
que por vós a mi desamo.
A vós soo é mais devida
lealdade neste mundo,
pois soes o meu deos segundo
e meu prazer desta vida.
253
OUTRA SUA.
Onde acharãao folgança
meus amores?
Onde meus grandes temores
segurança?
Tristeza nam daa lugar,
menos consente receo,
temor me faz sospirar,
mudança faz que nam creo.
Doutra parte esperança
daa favores,
sem haverem meus amores
segurança.
254
OUTRA SUA.
Buem deseo me embia
cometer vida estranha,
soledad me acompanha
desque supe que partia.
Sobretodo pensamiento
no se quier partir de mim,
dizendo siempre: — ¿ A que fim
hazes tal apartamiento?
Tu pensamiento bevia
isento y sim tristeza.
Yo respondo: — Gentileza
es aquelha que me guia.
255
OUTRA D' EL-REI DOM PEDRO.
Oh desejosa folgança
u fazem pausa meus males,
nom es em vano esperança,
se me vales.
Se me vales tornaraa
todo meu mal em prazer,
a meus trabalhos daraa
gualardam meu merecer.
Mais poderaa confiança
que todos meus tristes males,
morrerá desesperança
se me vales.
DO
IFANTE DOM PEDRO, FILHO
D' EL-REI DOM JOAM, EM
LOUVOR DE JOAM
DE MENA.
Nom vos será gram louvor
por serdes de mim louvado,
que nam sam tam sabedor
em trovar que vos dei grado.
Mas meu desejo de grado
a mim praz de vos louvar
e vós o podeis tomar
tal quejando vos é dado.
Sabedor e bem falante,
gracioso em dizer,
coronista abastante
em poesias trazer
ou de novo as fazer
u compre, com gram meestria,
de comparar melhoria
dos outros deveis haver.
D' amor trovador sentido
com' a quem seu mal sentio
e o houve bem servido,
e os seus segredos vio,
e de todo departio
mui fermoso e mui bem,
como poode dizer quem
vossas copras ler ouvio.
De louvar quem a vós praz
aconselhar lealmente,
desto sabeis vós assaz
fazei-lo sajesmente.
E assentar-s'oo o presente
creo nam terdes igual,
de consoar outro tal
julgue-o quem o bem sente.
Fim.
Por todo esto sam contente
das vossas obras que vejo
e as nam vistas desejo,
fazê-me delas presente.
Reposta de Joam de Mena.
Princepe todo valiente,
em los fechos muy medido,
el sol que naaçe en oriente
se tiene por ofendido
de vuestro nombre temido,
tanto luze en ocidente.
Soes de quien nunca os vido
amado publicamente,
tan prefeto, esclarecido
que por sirdes bien regido
Dios vos fizo su regiente.
Vos de reys engendrado
y de reys engendrador,
hijo dino mui loado
de rey santo vencedor.
Linaje d' emperador,
cabeça de gram senado,
de lealtad y d'amor
tam gran fruto havés mostrado
que a vuestro gram honor
dos reys y ũu senhor
son y es muy obrigado.
Nunca fue despues ni ante
quien viesse los atavios
y secretos de levante,
sus montes, insoas y rios,
sus calores y sus frios
como vos, senhor Ifante.
Antre moros y judios
esta gram virtud se cante,
entre todos tres gentios
cantaram los metros mios
vuestra perfecion delante.
Fim.
Vos de mi no dar loores,
mas recebirlos deveis,
vos, gran senhor de senhores,
que haveis fecho y fazeis
tanto que grandes autores
muy acupados teneis
en dezir vuestros dulçores,
porque siempre vos lhameis
princepe de los mejores,
porque creçan los lavores
desse reino portugues.
Reprica o Ifante.
Como terra frutuosa,
Joam de Mena, respondestes,
com messe mui abastosa
do fruito que recebestes.
Mas em esto vós errastes
louvar mais do merecido,
mas por mim é recebido
que louvando m' ensinastes.
Fim.
Aquelo que devisastes
seguirei a meu poder,
sequer que possam dizer
que muito nam sobejastes.
DO IFANTE DOM PEDRO, FILHO
D' EL-REI DOM JOAM DA GRORIO‑
SA MEMORIA, SOBRE O MENOS‑
PREÇO DAS COUSAS DO
MUNDO, EM LINGUA‑
JEM CASTELHANA,
AS QUAES TÊM
GROSA.
De contempto del mundo.
Introduze y invoca.
Miremos al excelso y muy grande Dios,
dexemos las cosas caducas y vanas,
retener devemos las firmes con nos,
las utiles, santas, muy buenas y sanas.
¡Oh tu, gran Minerva! que siempre emanas
muy veros preceptos, en grand abastança,
imploro me muestres tus leys sobranas
y fiere mi pecho con tu luenga lança.
Invoca.
Dame tu escudo claro, cristalino,
y armame todo con armas seguras,
para que contraste al mortal venino
y ravias caninas, feroces muy duras.
Tu, sabia maestra, tu que nos procuras
sciencias santas, humanas, divinas,
arriedra mi seso de mundanas curas,
distila em mi tus dulces doctrinas.
Prosigue.
De la mal fiable Fortuna.
Sirvamos virtud, burlemos Fortuna
que nunca da gozo sin duro tormento,
nin nadi coloca en firme coluna,
antes nos rebuelve con gran detrimento.
Remire un poco nuestro pensamiento
su cara falace y jamas dubdosa,
verá que es cruda, y sin todo tiento,
a todos estados y siempre dañosa.
Compara los dones de la
Fortuna al
palo, que come la corcoma,
fermoso de fuera y de
dentro podrido.
Si presta honores en breve los toma,
si oro, argento, ellos se consumen
como al palo faze la corcoma,
assi los sus dones se gastan y sumen.
Nom fabrica muro de firme betumen,
sus bienes trasmuda en grave tristor,
y rasga la foja de su grand volumen,
mudando su gozo en fuerte dolor.
La ley de Fortuna.
La ley que posseye es ley incostante,
buelve y rebuelve su exe a menudo,
al bueno faze ser muy mal andante,
prospero faze al torpe y rudo.
Por tanto, o gente mundana, no dubdo
que yerro vos toma, atrahe y convoca
a seguir su moto veloce, muy crudo,
daquesta señora, non cuerda, mas loca.
De la prospera y adversa Fortuna.
La prospera, dulce Fortuna engaña
con su fraudulenta y arte mañosa;
la triste, adversa siempre desengaña
mostrando su fruente toda luctuosa.
Assi que la una es muy provechosa,
la otra es bella, llena de engaños;
aquella es vera, esta mentirosa,
celando los males, muertos los daños.
Exemplifica.
Trastornó a Crasso, rey de los lidores,
y a Policrato muy más crudamente,
haviendo con ellos estrechos amores
tractó sus caidas engañosamente.
E traxo a Dario a morir vilmente
despues que lo hovo alto colocado,
e Alcibiades mató feamente,
el qual con honores havia ornado.
Adicion.
Seguis tras Boreas, fuis lo amable,
quereis lo muy vil, dexais lo precioso,
deseais lo falso, no lo deseable,
plazevos lo feo, mas no lo fermoso.
Desechais lo cierto, amais lo dubdoso,
no curais de Jove, servis Proserpina,
nin mirais al celso y bien abundoso,
nin acatais cosa de acatar digna.
De la mundana Riqueza.
A los sin animas, cuerpos terrestes
vos subjudgades faziendovos viles,
dexando las altas y cosas celestes,
mirais las infimas, no punto gentiles.
Seam vuestras mentes por Dios más sotiles,
tras lo perdido perder no querais,
mirad otramente que no los gentiles
aquel Sumo Bien do vos emanais.
¿ Que valen o prestan, sin vos no lo sé
las muchas riquezas de vos deseadas?
Aquellas sin vos son sin obras fe,
vos sin aquellas sois cosas honradas.
Por vos si lo son, son ellas preciadas,
vos no por ellas sois de más valor,
antes sirviendo cosas denigradas
denigrais a vos e vuestro grand honor.
Son de caidas grandes causadoras,
ni nuestro tiempo caresceraa dellas,
son de señores terribles señoras
de que dam los pobres muy grandes querellas.
Y solo entonce se fazen ser bellas,
quando a muchos son bien repartidas,
pues fazed amigos, por Dios, de aquellas
que son como nada si son retenidas.
Exemplifica y prossigue.
Reguarda a Mida, tragador de oro,
mirad aquel Crasso, que murió tragando,
y mirad a otros daqueste vil coro:
vereis a los ricos no vivir gozando,
mueren por cierto en cobdiciando
henchir a sus cofres de oro y d' argento.
Mirad al Maestre si vivió penando,
mirad luego juncto su acabamiento.
Invoca y conceja.
Hecate se dexe, ayude Dios solo,
fuyamos de Venus, sigamos Diana,
amemos la fe, echemos al dolo,
miremos al trono de luz diafana.
Miremos la celsa virtud sobirana,
dexemos a Ceres y sus bienes falsos,
pues quien los sirve pierde y no gana,
miremos los veros y sus cadahalsos.
De la engañosa Fama.
¿ De ti que diré, oh bolante Fama,
y de tus veloces y alas fermosas?
Tu siempre engañas aquel que te ama
con cosas más bellas, que no provechosas,
las quales por ser en si engañosas
perescen, faziendo perescer la vida.
Todas tus mercedes, tristes no gozosas,
se muestran al fin con dura salida.
Prosigue y exemplifica.
Rebuelas con alas todo' l universo
y trahes desseos caducos de gloria,
los rectos asuelas y giras enverso,
jamas otorgando perfecta vitoria.
Ser tu no felice es cosa notoria,
pues que tu don es don terminado,
fenesce por tiempo la clara memoria,
nin será Cesar por siempre loado.
Yo nada digo de la Fama vera
que todos sus bienes assienta en virtud,
mas digo daquella que piensa se mera
todo el vulgo y la multitud,
que pone en loor toda sua salud
y liga y prende con feble cadena
a la mayor parte de la joventud,
y siempre su gozo nos da doble pena.
Exemplifica.
Presentad delante aquel muy mal hombre
que mató Felipo Macedoniano,
que por fazer grande su fama y nombre
cometió tal acto, crudo y profano.
Presentad delante aquel hombre insano
que quiso abraçar el templo de Diana:
vereis el desseo de gloria ser vano
y las más vezes la sua obra vana.
Exortacion y conciliaria.
Temed con espanto el fondo cahos,
dexad a la Fama y su vanidad,
¡oh vos, mortales, semblantes a Dios,
abraçad con vos virtud y bondad!
Abraçad aquella vera felicidad,
la qual no peresce jamas in eterno,
mas dura por siempre su eternidad,
nin teme a Cerbero, perro del infierno.
De los honores y dignidades
no reyales.
Ser deven de vos menospreciados
los vanos honores y las dignidades,
las quales non dignos ni menos honrados
vos fazen por cierto. Si bien lo mirades
sobre flaco cimiento grand torre fundades,
pensando con ellas fazervos más dignos;
mas es lo contrario: que vos no pensades
que las más vezes vos fazen indignos.
Los malos más malos fazer poderam,
mas no enmandarlos nin los corregir,
los buenos mejores por ellas no seram,
más vezes pueden matar que guarir.
Con verdad pues se puede dezir
no ser provechosa la tal possession
que faze los buenos la maldad servir
y a los malos no da correpcion.
Quanto más alto suben, el decenso
más presto tienen ahi aparejado;
quanto más oro nos dam y más censo,
tanto más cresce el triste cuidado.
Que quanto más firme piensa su estado,
tanto más feble se falla del todo;
jugar el tal juego Fortuna ha usado
y siempre rebuelve por aqueste modo.
Exemplifica.
Al magno Pompeo no fizo seguro
la dictadoria ni el consulado;
ni falló Scipion serle firme muro
de ser en honores tanto sublimado.
Mario se falla morir deshonrado,
que hovo siete vezes el honor consular,
mataron a Johan, duque del Condado,
no pudo su estado su muerte evitar.
De la real y imperial dignidad.
Menospreciad aquell' alta cumbre
de los imperios y de los reinados,
pues non contiene en si clara lumbre,
nin faze los hombres bienaventurados.
Son siempre los reys llenos de cuidados
y temen aquellos de que son temidos,
son con amor vero de pocos amados
nin las más vezes carescen de gemidos.
De los buenos reyes.
Los buenos congoxas padescen inmensas
por ver muchas cosas contra su querer,
ser suyas estiman a todas ofensas
que en sus regiones pueden contescer.
Desean al ceptro derecho tener
y de otra parte imploran clementia
o tales personas que satisfazer
o de velo quiero la su grand prudencia.
De los malos reys.
Los malos de todos son vituperados,
sus mismos vicios los atormentan;
de toda la gente son muy desamados,
de si claro nombre muy lexos ausentam.
Con muertes, engaños, los suyos los tientam,
son aborrescidos de Dios y del mundo.
Dezid, pues, ¿ que gozo los tales reyes sientam
ya vivos viviendo en fuego profundo?
Exemplifica.
Mataron Priamo, rey muy poderoso,
y fue su grandeza toda asolada;
murió Agamenos, rey grande, famoso,
a manos de Egisto, persona malvada;
e Nero, que tuvo assi sojuzgada
la mar y la tierra, murió con su mano;
el magno Alixandre con fin celerada
fenesció suas dias y su poder vano.
De la Privança.
Bolvamos la pluma a ti, oh Privança,
ufana, ingrata, mintrosa, irada,
tu pones en hombre toda tu fiança,
porende de males eres recercada.
Tu has en arena tu casa fundada,
si presto te vienes, más presto te partes,
de quien te conosce eres desamada
por tus no fermosas ni gentiles artes.
Prosigue y compara.
Tu mal es el bien mayor que posseyes,
gozo y salud da tu gran ferida,
tus propios daños no miras ni veyes,
si no si delante veys tu caida.
Entonce de los tuyos eres conoscida,
los quales a beudos son bien comparados,
pues quando su pompa dellos es fuida
retornan en si con menos cuidados.
Tu las más vezes te fallas burlada,
pensando los reys tener sojuzgados,
al fin bien demuestra tu fecho ser nada,
pues y desemparas todos tus criados.
Contesce a menudo los reyes sus privados,
a que sublimaron, de los abaxar
com muertes, tormentos crudos no pensados,
pensando potentes assi se mostrar.
Exemplifica.
Ya pues veyamos Aman que razona
de ti, o que siente de bien o de mal,
fable el Maestre, senor d' Escalona,
diga si le fueste fiel y leal.
Y fable Seneca de ti, el moral,
y fable Joab, veamos que llaman,
pues que tu venino gustaron mortal,
y digannos luego que tanto te aman.
De los deleites.
Fuid los deleites, pues non dan deleite
perfecto nin bueno, nin tan poco sano.
A todos engaña su falso afeite,
sin sentir mata el su gozo vano;
a todos arriedran del bien soberano,
jamas no aplazen que no den tristeza,
aforjan cadenas del sotil Vulcano
con que encarcelan a toda nobleza.
Compara y prosigue.
Aquellos venereos, aquellos de Baco
¿ ya quien osará llamarlos gozosos?
los quales comparo al tirano Caco
con sus feos actos, non punto fermosos.
Al cabo siempre son muy enojosos
y muestran el mal que tienen celado,
dexando los hombres tristes, dolorosos,
feridos con fierro muy emponçoñado.
El cuerpo destruyen, el anima matan
y fieren la fama de llaga mortal,
al vero juizio bien presto lo atan
con arte falace y muy desleal.
Mostrando ser bien aquello qu' es mal
y assi durando en la tal ceguera
fenesse por tiempo lo qu' es divinal
y vive aquello que morir devera.
Exemplifica y prosigue.
Aquel Sadarnapolo, rey muy vicioso,
con fama muy fea murió deshonrado,
mas hovo tormento que no fue gozoso,
de sus grandes crimines siempre molestado.
Fieren como Furias el nuestro cuidado,
reposo ni descanso jamas otorgando,
Xerses por siempre será desnotado,
siguiendo deleites fuyó batallando.
De la insigne generacion.
¡Oh clara prosapia! tu dime que vales,
sin de la virtud ser acompañada,
tu de origen más fermosa sales,
pero si despues no eres ornada
de claras virtudes y eres ligada
con vicios feos y les fazes feudo,
por cierto más fea deves ser juzgada
que si con nobleza no toviesses deudo.
Exemplifica.
La clara estirpe ser de preciar
assi la ha mostrado aquel luz de vida,
quando en la Virgem quiso encarnar
que de real sangre era produzida.
Pero aun quiso que fuesse guarnida
de todas virtudes la su gran alteza,
dandonos enxemplo dever ser unida
con claras costumbres la clara nobleza.
Aplicacion.
Todos somos fijos del primero padre,
todos traemos igual nascimiento,
todos havemos a Eva por madre,
todos faremos un acabamiento.
Todos tenemos bien flaco cimiento,
todos seremos en breve so tierra,
el propio noblesce merecimiento
y quien al se piensa, yo pienso que yerra.
De la Fermosura.
Agora vengamos a ti, oh beldad,
porque se demuestre claro, evidente,
ser tu colocada en grand vanidad
y ser de firmeza lexos y ausente.
Tu, que te piensas ser muy eminente,
cayes más aina que las verdes flores,
si retorna presto Febo al poniente,
tan presto fenescen todos tus favores.
Exemplifica.
Aquel de Toscana, varon valeroso,
quanto fue loado por a ti dexar,
feriendo su rostro gentil y fermoso,
fizo su fama muy lexos volar,
fuyendo ser causa de otro pecar
fizo a si feo con fama fermosa.
¡ Oh mano loable que supo domar
los torpes desseos en ser rigorosa!
Aplicacion.
Aquella Elena tan mucho famosa,
si con ojos linceos fuera reguardada
por los que juzgavan ser tanto fermosa,
dezidme ¿ no fuera diforme juzgada?
Pues esta beldad, de vos tan preciada,
no vos la ha dado la naturaleza,
mas solo la vista que no es delgada
falsamente juzga y vos da belleza.
De los fijos y
de la angustia que causan
los malos fijos.
Dessear los fijos parescen engaños,
porque sus dolores son nuestro dolor,
e todos sus daños nuestro mesmo daño.
Mirad, pues, que gozo nos da su amor,
mirad que plazer, mirad que dulçor
es tener con muchos muy grandes amores,
porque nos den vida com muy más sudor
y los sus delictos immensos dolores.
Son causa los fijos de males muy fuertes
a los tristes padres, que los engendraron,
y lo que más feo buscan las sus muertes:
ya muchas vezes los fijos tentaron
de matar sus padres y los desterraron
de sus altos tronos y de sus reinados,
y en las tinieblas los encarcelaron
de su mesmo ser muy mal recordados.
Exemplifica
El rey Artaxerces gozar yo no
creyo
por tener de fijos grand multitud,
antes lagrimando los sus ojos veyo
llorar la sua vida sin toda salud.
Nin creyo Saturno en la juventud
de su fijo Jove haverse gozado:
el uno maldize la su senectud,
el otro reclama que fue desterrado.
Del pueblo y de su vano amor.
No amo ni punto el amor popular,
ny loo quien mucho en el se confia,
ca no sabe amar ni sabe desamar;
los más de sus fechos van torcida via,
sin razon, sin causa, mantiene porfia,
sin sazon, sin tiempo, se dexa daquella;
jamas discrecion no lieva por guia,
nin honra la virtud, nin se cura della.
Al caos profundo a horas abaxa,
a horas soblima al cielo loando,
en el piedad jamas se encaxa,
los sus beneficios siempre van errando.
Es todo ingrato, crudo y nefando,
los malos enxalça, los buenos oprime,
a la falsa fama jamas va mirando,
nin siento virtud que a el se arrime.
Exemplifica.
Desterró Camilo, hombre glorioso,
y a Curiola el pueblo romano,
desterró Teseo, duque valeroso,
y a Temiscodes el pueblo insano.
Servió aquel Cesar, famoso tirano,
servió aquel Sila, malo y cruel,
servió Dionisio, el Siracusano,
y fue a los buenos de raro fiel.
De la floresciente joventud.
Di en que tienes, loca joventud,
porque te estimes de tanto valor,
di porque maldizes a la senectud
y no le conosces su grande honor,
pensando ser fuera de todo dolor.
Pero tu acata, regarda, remira,
aquesto que diré, no en tu favor
lo que se dilata, pero no se tira.
Tu nudres los vicios feos y malvados,
tu das osadia para mal obrar,
tu forjas bien presto los torpes cuidados
y causas la causa del grave penar;
tu fazes los males perpetuo durar,
pues favoresces a tus mismos daños.
Por fuerça se sigue a vejez llegar
si siempre duraron en los verdes años.
Exemplifica
Di como salvaste al batallador
Hector y Troilo, su claro hermano,
di como salvaste al su matador
y aquel fermoso infante troyano.
Di como salvaste aquel rey hispano
nombrado Don Sancho, que cercó Çamora,
y aquel insigne Tito, el Romano,
del qual la riqueza era servidora.
De la corporal fuerça.
Quanto pues sea de honrar la fuerça
y quanto de nos deve ser querida,
miras quien de fuerças vencer se esfuerça
a los elefantes fuertes sin medida;
nin de los tigres su fuerça vencida
será de alguno por ser mucho fuerte,
fenesce la fuerça ante que la vida
y a todas fuerças se fuerça la muerte.
Exemplifica.
El claro consejo del vero Caton
no menos yo creyo nozer y dañar
a la grand Cartago que aquel Scipion,
que pudo sus fuerças vencer y domar:
uno reposando supo consejar
como a Cartago vencer se podria;
otro batallando, sin jamas cessar,
fue de lo pensado capitan y guia.
Exemplifica y prossigue.
Peresció la fuerça del fuerte Milon
y fue en momento presto consumida,
nin salvó aquella al magno Sanson,
nin evitar pudo su triste caida.
Es de los sabios en poco tenida,
es de servitud amiga y conforme,
la discrecion sola deve ser servida
muy bella en todo, en nada diforme.
De desseo sobrado de largo vevir.
El grande desseo de vida longeva
qual tan poco sabe que claro no veya
ser mucho mejor morir como Sceva
que no denostado el vevir posseya?
La vida es breve por luenga que seya
y quanto más dura, más dolores siente;
el luengo dolor la muerte dessea,
vevir es morir, en edad cayente.
Sin cuento los santos son muy gloriosos,
que han desseado morir prestamente
y con tal desseo fueron más famosos
que mucho viviendo viciosamente.
Yo esto gritaree y osadamente
ser el bien morir a los buenos vida,
y la mala vida muerte ciertamente
la qual de penar es dulce finida.
Exemplifica.
Caton Uticense quiso más matarse
que no reguardar el vulto tirano,
amando ser libre quiso delibrarse
con su virtuosa y propia mano.
Anibal, el grande duque africano,
más quiso morir que no ser traido
delante el aspecto del pueblo romano,
cuyas ligiones havia vencido.
De los amigos.
La dulce Fortuna engendra amigos
muy más lisonjeros que veros ni leales,
y la adversa los torna enemigos
aun no contenta de los otros males.
Y muestra no firmes ser y desleales
aquellos que primero mostrava fieles;
por aquestos juegos y por otros tales
sus bienes del orbe semblan infieles.
Quando los gemidos som más abivados,
el leal amigo alli permanesce;
de tales amigos son pocos fallados,
porque nuestro siglo de virtud caresce.
La maldad abunda, caridad fallesce,
siguen como moscas aquellos a la miel,
y a vera amistad ni es ni paresce,
apenas entre mil es uno fiel.
Escusase de exemplificar.
Reduzir enxemplos daquesta materia
no quiero, por ser cosa odiosa,
pero veo muchos con asaz miseria
que a mi reclaman en voz dolorosa,
deziendo: — Scrive, no te turbe cosa
de aquellos sin fe, amigos sin amor,
que han quebrantado la ley vigorosa
de amistad vera con mucho rigor.
Prosigue mostrando el bien sobirano.
Dexad y dexad, otra vez vos digo,
d' amar estas cosas de gran falsedad,
amad y quered haver por amigo
el bien sobirano, do es la verdad.
A este preciad, a este abraçad,
el qual faltareis en Dios solamente.
Temed Su justicia, amad Su bondad,
no, no sigais no al son de la gente.
Invoca.
¡Oh Dios verdadero, oh Hombre perfecto,
Tu, que de nada el orbe criaste,
Tu, que el mar bravo tornaste quieto,
Tu, que muriendo a todos salvaste!
¡Oh Rey de los reyes, qu' el cielo formaste,
Tu, que eres padre de la sapiencia,
prestame ajuda como la prestaste
al Rey Sapiente en grand afluencia!
Aplicacion.
Vosotros buscades muy profundamente
el bien sobirano por diversas vias,
buscais en tiniebras la luz eminente
y perdeis el tiempo tras cosas baldias.
Consumis las horas em vanas porfias,
errais y errando recebis passion,
no trabajeis siempre en contraversias,
lo uno y lo bueno una cosa son.
Compara y demuestra.
Quien busca pescados y belvas marinas,
no busca los montes, mas busca los mares,
pues menos se buscam las cosas divinas
en los tenebrosos y fondos lugares.
A la bienandança, tu, si la buscares,
busca la dentro en tu alma mera,
con esta te goza, si bien la fallares,
de las otras burla como de quimera.
Invoca.
Canta, santa Musa, en coplas y versos,
resuenen tus vozes, fieram los oidos
de todos los hombres buenos y perversos,
busca harmonia de dulces sonidos,
e sean remedios aqui pervenidos,
porque no prevenga la desesperacion;
demuestra los bienes que son infindos,
faz tu patente nuestra salvacion.
Idvos daqui, Musas, vos que en Pernaso
segund los poetas, fezistes morada,
idvos muy allende del monte Caucaso,
pues no sodes dignas daquesta jornada,
nin vuestra ponçoña será derramada
con la su dulceza en las venas mias;
ca ser no me plaze de vuestra mesnada,
ni soy homerista, nin sigo sus vias.
Mas ya pues dexando aquestas razones,
retornar queriendo a lo necessario,
ca no me agradan luengas conclusiones
antes, quanto puedo, sigo lo contrario.
Vedlo que diré em breve sumario,
a vos cristianos y gentes fieles,
porque no sirvades el grand adversario
que sumirvos quiere en ondas crueles.
Prosigue.
Las virtudes tres teologicas y las
quatro cardinales.
Amad la Fe santa, amad Sperança,
amad Caridad con grande femencia,
amad Fortaleza y amad Templança,
amad a Justicia y amad a Prudencia.
Amad al grand Dios, temed su potencia,
fazed buenas obras, fuid de las malas,
durad en aquesto, seguid mi sentencia,
y irés al cielo volando sin alas.
De la santa Pobreza.
Amad, o mortales, la santa Pobreza
de que ningund sabio jamas no querella
y assi posseid la mucha riqueza
como si nada posseyesseis della.
Amad la virtud, burlad de aquella,
fuid ocasion, raiz de pecado,
pues que grand fuego de chica centella
renasce más presto que no fue pensado.
Exemplifica.
Por boca d' Apolo Clodio s' escrive
ser muy más que Giges felice juzgado,
más claro su nombre daquel aun vive
que no del muy rico rey muy abastado.
El pobre varon será memorado
que hovo la vera bienaventurança,
el rico por tal no será notado
lleno de ansias, mas no de folgança.
Aplicacion.
Beatos los pobres, dize el Senhor,
de spiritu puro, muy libre y quito
de mala cobdicia, y de su amor
muy lexos y nada con aquel aflicto,
pues triste, cativo será y maldito
el que refuyere de buscar aquesto
raido del libro a do fue escrito,
porque no sigó lo bueno y honesto.
De Ocio y Soledad virtuosa.
Abraçad el Ocio, amad Soledad,
fuid multitud, fuid sus rumores,
aquella es madre de grand santidad,
la otra de graves y grandes dolores,
Con Dios la primera tiene sus amores,
ama la segunda lo vil y dañoso,
aquella no cura de muchos senhores,
esta lo diforme le sembla fermoso.
Exemplifica.
Amó Soledad el claro varon
Francisco, doctrina de vida muy santa,
amó Soledad aquel Sant' Anton
de cuyas batallas mi pensar s' espanta.
De Egipciaca esso mismo canta
la militante iglesia terreste
que en el desierto su virtud fue tanta
que mortal seyendo se mostró celeste.
Aplicacion.
¡Oh edad primera bienaventurada!
tu que los campos fieles amavas,
con lo necessario eras abastada
por cosas sobradas jamas sospiravas;
en duelos y fraudes no te deleitavas,
ni preciavas da triste moneda,
las guerras e muertes no las procuravas,
por tanto loarte no sé como pueda.
Exorta y conseja.
Temed a la muerte que a todos traga,
temed al infierno lleno d' espanto,
temed al pecado que tanto nos llaga,
fuid las Sirenas, fuid a su canto,
pues luego su gozo trasmuda en llanto;
fuid a Caribdis y fuid a Sila,
seguid a virtud, cobrid a su manto,
buscad su eterna y fulgente silla.
De Homildad.
Amad Homildad, desamad Sobervia,
pues el homilde a Dios mucho plaze
y del sobervio su dura protervia
sin comparacion al Senhor desplaze.
La una fabrica, la otra desfaze
la muy rica sala de merecimiento,
la una al cielo alcançar nos faze,
la otra por siempre nos busca tormento.
Esta es loada en sublime grado,
esta es primeira virtud cristiana,
a esta busquemos con todo cuidado
si ver desseamos la luz soberana.
Con esta la gloria eterna se gana,
esta es cimiento de todas virtudes,
esta el enfermo guaresce y sana,
de lo que te digo, leyente, no dudes.
Exemplifica.
En bestia tornado Nabucodonosor
fue con altives grande, desmedida,
dexando el celso y real honor,
pasciendo las yervas lloró su caida.
David por ser homil ganó la sobida
de soes pastor a rey muy potente,
plogó al muy alto muy mucho su vida,
fue siempre loado de gente en gente.
De Continencia y Abstinencia.
Amad Continencia con intimo amor
por no ser a bravas fieras comparados,
los varones fuertes buscan el sudor y fuyen los gozos blandos, delicados.
Venced las planetas, venced vuestros fados
pero nos inclinen vivir vida fea,
pelead con ellos y sed esforçados
qu' el constante fuerte vence la pelea.
Difinicion.
Es Continencia virtud que retiene
de los actos feos los nuestros sentidos,
los torpes desseos bien presos los tiene
porque triunfando los hovo vencidos.
Por cosas caducas jamas da gemidos,
desama luxuria, desama cobdicia,
por quien grandes reinos ya fueron perdidos,
vence y destroça la carnal malicia.
Exemplifica.
Muy mucho loable fue la continencia
daquel Marco Curio, varon invencido,
loar no se puede su grand abstinencia
de la mi rudeza en grado devido.
No es Diogenes en menos tenido,
no es Africano para ser callado,
ni digna de olvido será vista Dido,
ca su claro fecho deve ser notado.
De Misericordia.
Amad grandemente a Misericordia,
porque seais fechos bienaventurados,
Aquel que dar puede la paz y concordia
assi lo reclama, si sois recordados.
El que senhorea fortuna y fados
y se vos promete por esta virtud
que si la amardes sereis d' El amados,
haviendo de gozos grande multitud.
E esta y Justicia han un solo padre,
esta consuma del todo los males
de todos los bienes es nutriz y madre.
Ella y Justicia no son desiguales
en Dios ante digo que sean iguales.
A esta no presta defension ni muro,
ca las sus armas son celestriales,
sin esta muriendo, ninguno es seguro.
Exemplifica.
Aquesta virtud el Senhor mostró
en favor daquella Ninive cibdad,
quando a sus culpas perdon otorgó,
vencida con llantos su benignidad.
¡ Oh coraçon duro, sin humanidad,
el qual no se vence de lloros ni ruegos,
bien digno de nunca fallar piedad
y de ser quemado en quemantes fuegos!
De Obediencia. Invoca
y prosigue.
De Ti, sacro Dios, imploro potencia,
como yo indocto fable doctamente
de la virtud santa de Obediencia,
que Tu jamas donas salvo a prudente,
bienaventurado y a Ti temiente.
La qual mejor es que no sacrificio
que faze del flaco fuerte y potente
muy digno de grande ganar beneficio.
Obedescer manda primero el Senhor,
al Qual lieve cosa es obedescer,
despues a los hombres de grande valor,
o de gran potencia, o de gran saber.
Muy alegremente se deve excercer,
porque no passemos vida muy amarga
y muy más ganemos del buen merescer
y no se nos faga muy grave la carga.
Exemplifica.
Alcançoo ser madre del su Padre santo
nuestra gloriosa y santa Senhora,
porque obedesció, nos libró d' espanto,
seyendo de todos la reparadora.
Saul con avara mano robadora
desobedesciendo cayo de su trono,
fingendo cautela no muy sabidora,
hoyó del profeta aquel triste tono.
De Paciencia.
Quered Paciencia con vos abraçar,
pues quanto sofrides de Aquel vos viene
que rige el cielo, la tierra y el mar,
y todas las cosas en su poder tiene.
Dexad al Senhor que de vos ordene
y El saberá darvos lo mejor.
Que vuestro spiritu reclame y pene
con alegre gesto sostened el dolor.
La obra perfecta esta virtud faze,
quita el desseo de toda vengança
justa o injusta qualquier le desplaze,
nunca retrocede, mas siempre avança.
En Dios esta pone la su confiança,
quita la tristeza que es excessiva,
de adversidades es fiel folgança,
quita el odio y la ira priva.
Exemplifica.
Aquel santo Job por ser paciente
venció batallando el nuestro enemigo,
fue otro muy claro sol en oriente
y de fortaleza muy fiel testigo.
Fue del Excelso amado y amigo
y ganó de Aquel vida perdurable,
siguió de virtudes el vero origo,
no fue tan loado como fue loable.
De la fulgente Verdad.
Del malo enemigo eres enemiga,
tu, Verdad fulgente, de Dios muy amada,
de la santa gente eres muy amiga
y de los improbos te has separada.
En nuestra edad no eres fallada
ca tu aborresces al dissimular
y tienes grand odio con cara falsada
ni menos te plaze el blando lisonjar.
De toda malicia tu eres desnuda
y eres de nobleza ornada, vestida,
fuir tu engaño ya quien lo duda,
ca tu de claresa eras revestida.
De grande constancia eres bien servida
ado tu no moras, maldita la tierra
y la religion do eres partida,
dalli no se parte discension y guerra.
Exortacion y consiliaria.
Abraçad aquesta muy fermosa dueña
con todas las fuerças, vigorosamente,
de tanto mentir haved ya verguença,
sea la mentira lexos y ausente.
La Verdad es fuerte y siempre plaziente,
la otra es fabla, llena de tristeza,
no fagais, senhora, de muy vil sirviente,
inutil, profana, sin toda nobleza.
De Liberalidad loable.
Con vera franqueza tened amicicia
y fuid muy lexos la prodigalidad,
pero muy más lueñe la torpe avaricia,
propio cimiento de toda maldad.
Amad y tened la Liberalidad
que da donde deve con alegre cara,
que nasce y mana de la voluntad
y los beneficios perfectos prepara.
Esta no conosce el vulgo errado,
ni reguardar puede su grand eminencia,
aquesta posseye el medio loado,
nunca en estremos faze residencia.
Esta procura su grand preminencia
ser en virtudes, no en vana gloria,
esta requiere muy grand providencia,
daquesta muy pocos han vera victoria.
Exemplifica y prosigue.
Es mera franqueza a los pobres dar,
redemir cativos con liberal mano,
fundar hospritales, templos fabricar
adonde se loe el Dios soberano.
Socorrer al triste e tornar lo sano,
ajudar a todos, ninguno dañando,
son aquestos actos del grande Trajano
de clara justicia, claros emanando.
De Constancia.
Con mente constante, seguid a Constancia,
con animo fuerte sabelda elegir
más vale que d' oro muy grande abundancia,
nin quantos tesoros se pueden dezir.
Es fiel cimiento para bien vevir,
falange muy fuerte contra todos vicios,
tramite muy recto para bien morir,
fabro que fabrica leales servicios.
Loar la constancia en los viles fechos
¿ quien duda errada ser opinion?
Los firmes cuidados devem ser desfechos
quando no emanan de la discrecion.
Obedecer deve aquella a razon
pero quando della punto no desvia
dudar no se deve muerte ni prision,
y quantos más males, más firme todavia.
Exemplifica.
Mirad a las santas y santos varones,
que jamas dexaron su fe valerosa
por graves tormentos ni por grandes dones,
firmes sperando corona gloriosa.
Asaz manifiesta y patente cosa
es de los gentiles su grande firmeza,
qual fue la de Fabio en todo fermosa
y la de Scevola llena d' ardidesa.
De Clemencia.
¡Oh virtud muy buena, oh santa Clemencia!
dame licencia, pueda recontar
en baxo estilo y sin eloquencia
la tu sobirana beldad singular,
pues que tu eres sin todo dubdar
clipeo de Palas a los perseguidos
y fazes los reyes estables estar
y fazes los reyes de todos queridos.
Con los pusilanimes no has amistad,
ca siempre procedes de grand coraçon;
tu eres amada de la deidad,
ca tu de los tristes eres protecion
y de los culpados fuerte defencion,
y pues el Excelso se llama clemente,
devemos buscarte con grand afeccion
y no ser feroces a ninguna gente.
Exemplifica.
De aquesta virtud Cornelio usó
dando manseolo al su enemigo,
a esta virtud Alexandre amó
quando el vejo falló en el abrigo;
y quando de Poro se mostró amigo
a esta virtud siguió Pirro rey,
a la qual yo pienso y assi lo digo
que los reyes deven mirar como ley.
De loable Silencio.
Fuid multiloquio, amad el callar,
el qual las más vezes sana y guaresce.
¡Oh quantos se fallan fablando matar
jamas por cilencio ningund mal recresce!
En multiloquio crimen no fallesce,
amar el cilencio demuestra cordura,
el vero saber callando floresce,
es mucho fablar señal de locura.
Lieve es la fabla, ca lievemente buela,
mas fiere y llaga muy pesadamente,
lievemente passa, mas mata y asuela
assi como rayo furiosamente.
Penetra el animo muy ligeramente,
mas no lo revoca assi de ligero;
errar muchas vezes faze al prudente
de más quando buela de boca de artero.
Quatro cosas que en la fabla
se devem observar.
No solo acata el que es sapiente
aquello que fabla, mas aun el lugar
adonde lo fabla, si es congruente,
y tambien al tiempo que cumple fablar.
Quien es la persona, se deve mirar,
con la qual fablamos o de que valor.
Estas quatro cosas se devem guardar
y si no se guardan callar es mejor.
La boca del sabio en su coraçon
y por el contrario del loco aviene,
el uno callando con grand discrecion,
con muy fuerte freno su lengua contiene;
el otro ni cela cosa ni retiene,
todos de su fabla son mal ofendidos,
no se recordando el nescio que tiene
una sola boca y dobles oidos.
Exemplifica.
Mataron a Clito por mucho fablar,
murió Calistenes y fue destroçado.
Sin cuento de locos se pueden fallar,
ni será su numero jamas numerado.
Solo un filosofo hovo observado
el santo cilencio en toda su vida:
¡ Oh hombre muy cuerdo, o bienaventurado
de fama loable, muy esclarescida!
De Contempto virtuoso.
Si tu menosprecias a toda riqueza,
ser tu luego rico es cosa notoria,
y si menosprecias la dura crueza,
de los enemigos haverás victoria.
Y si menosprecias folgança y gloria,
luego glorioso serás y quieto,
pues retener deves en la tu memoria
aquesto que digo, si eres discreto.
No menosprecies a la pobre gente,
mas seyle siempre manso, gracioso,
contracta con ellos muy benignamente
y oye sus quexas con gesto amoroso.
El animo alto no es furioso
contra el del flaco y de poco poder,
ni diran que puede mucho el poderoso,
porque de los pobres se faga temer.
Contempne la muerte y sey esforçado,
pues eres seguro que, si bien obrares,
serás in eterno bienaventurado,
y con la tal muerte libre de pesares.
Es breve dolor, si bien lo pensares,
que da fin y cabo a graves dolores,
jamas no la temas, si a Dios amares,
otramente teme sus graves temores.
Exemplifica.
Aqui ¡oh tu, Bias! rico sin riqueza,
aqui te muestra, hombre sapiente,
porque manifiestes tu vera nobleza
y fagas denuesto al siglo presente.
Aqui ¡oh tu, Socrates! varon excelente,
vernás tu, reyendo con alegre cara,
recebir la muerte del todo inocente,
con fama luziente y vida más clara.
De Honestidad.
Buscad Honestad, abundosa fuente
de todas virtudes, de todas bondades,
sea scolpida no solo en la fruente,
mas aun más dentro en las voluntades.
Esta es madre de todas verdades,
esta es del cielo muy patente via,
para que falledes el bien que buscades
esta es duquesa, adalid y guia.
¡Oh tu mortal hombre! qualquier que tu seas,
si la Honestad reguardar pudiesses
con ojos divinos, sin dubda me creyas
que grandes amores con ella toviesses
y todo por suyo a ella te diesses;
ca no es humana, mas divina dama,
cuyos grandes dones, si los rescibiesses,
siempre arderias en gozosa fama.
Quatro fuentes donde mana
la Honestidad.
De quatro fontanas aquesta emana,
y es la primera buscar la verdad,
la compañia observar humana
es luego la otra de grande beldade;
y es la tercera magnanimidad
que nasce y vive en grand coraçon,
dar modo a las cosas con abtoridad
será pues la quarta sin fingir ficcion.
Adicion.
El varon honesto fuye del pecado
bien como de una cruel señoria,
caso que supiesse serle perdonado
del alto Jesu jamas lo faria.
Y aunque pensasse que se celaria
para todo siempre delante la gente,
con todo aquesto el refuiria
más que de la muerte de ser su sirviente.
De verdadera y firme Libertad.
Amad Libertad, fuid servidumbre,
la qual se queredes ganar y haver,
buscad al excelso luzero y lumbre
de libertad vera, sin Le ofender.
Si esta queredes con vos retener,
sed libres primero de amor sobrado
las cosas no firmes de mudable ser,
arrancad daquellas el vuestro cuidado.
De tres singulares liberdades.
Aquel Señor pude darvos libertad
del triste pecado, cruel, tenebroso,
y de la miseria y necessidad
como rey muy grande, todo poderoso.
Buscad con cuidado muy estudioso
esta liberdad, triplice fermosa,
con la qual se cobra el bien abundoso
y aquella gloria siempre gloriosa.
Qual es verdadero libre.
El que a ninguna sirve cubdicia
aqueste ser libre es de estimar,
siervo es quien sirve la triste avaricia,
libre es el libre del torpe pensar.
Solo el sabio se puede llamar
veramente libre y no otro hombre,
aunque sojuzgues la tierra y mar,
si improbo fueres, siervo es tu nombre.
Exortacion y consiliaria.
Quando con muerte nos libró de muerte,
libre nos ha fecho el Verbo Incarnado,
pues irascimini venced toda suerte
porque no seades siervos del pecado.
Fuid el dominio daqueste malvado
principe tirano, cruel, engañoso,
servid al Señor con todo cuidado,
que es todo pio y no rigoroso.
De temor y amor de Dios.
Oyan los cielos lo que fablaré,
y oya la tierra, y oya la mar,
inclinen oidos a lo que diré,
oyan atentos el mi razonar.
Oyan animales mi breve fablar,
assi quadrupedes como racionales,
oyan las aves, señoras del volar,
oyan los mis versos todos los mortales.
Temed al Señor, gentio mundano,
temed al Señor, señor de senhores,
temed su muy justa y potente mano,
porque no temades ningunos temores.
Daqueste Señor sed vos servidores,
el Qual gualardona todos los servicios
y presto consume los nuestros langores
y da justas penas por todos los vicios.
Amad a quien ama aquel que Lo ama
y jamas desama sin justa razon,
que mira lo vero, lo falso y derrama
y faze sus bienes de grand perfeccion.
No da sus oidos a falsa ficcion,
ni es el su ser mortal ni finito,
a muy grandes culpas outorga perdon
y no desampara al qu' es más aflicto.
Exemplifica.
Aquel grande pueblo de duro creyer,
enquanto temia a Nuestro Señor,
venció su poder a todo poder
y a los más grandes puso más terror;
passó el Mar Rubro com muy gram honor,
y fue a el dada la celeste mana,
era de los fuertes fuerte domador,
a todos vencia su gloria mundana.
Mas como el dexó al su Dios muy santo,
luego fue opresso muy terriblemente
y fue destrunçado con mortal espanto,
de todos los bienes se falló absente.
Plañió sus langores y mal luengamente
y la su miseria dió fuertes gemidos,
su mal aun dura, segund es patente,
pues, si no temedes, no sereis temidos.
Prosigue concluyendo.
Contrastad con ira a los feos vicios,
honrad las virtudes y levad la mente
al Padre de dones y de beneficios,
muy sabio, fuerte, pio y clemente.
Tened vuestras preces en lo eminente,
no mireis las tierras con tanto cuydado,
mirad a lo alto, mirad lo fulgente,
lo vil de vos sea menospreciado.
Necessidad grande está a vos puesta
de amar virtud y seguir bondad;
si dissimular la verdad no presta
ni menos fingir falsa la verdad
por obrar delante la grand majestad
del omnipotente Dios uno e trino,
mirante las cosas en eternidad
muy justo juez, bueno y muy digno.
Cabo.
Si veys a los malos ser muy enxalçados
y a los buenos venir aflicciones,
ni por aquesso sed vos apartados
de guiar al bien vuestros coraçones,
porque los perversos con sus falsos dones
al fin in eterno sosternam tormentos,
los buenos, cobrando veros galardones,
seran fechos dioses de bienes contentos.
DO CONDE DO
VIMIOSO A ŨA
SENHORA QUE
SERVIA.
Quem vos poderaa servir
nem leixar de o fazer,
que nũa ming' oo poder
e noutra o consentir.
Mas nam compre de buscar
caminho nesta verdade,
pois tam bom é de deixar
a vida pola vontade.
Entam podereis sentir,
quando me virdes morrer,
que moiro por vos servir
sem ousar de o fazer.
259
OUTRA SUA.
Se fizesse fundamento
d' algũ bem em minha vida
dá-la-ia por perdida.
Mas nam tenho esperança
nem perco contentamento,
qu' este mal nam faz mudança
nem eu castelos de vento.
E co este fundamento,
nam faço conta da vida
nem na tenho por perdida.
TROVAS QUE MANDARAM O CONDE DO
VIMIOSO E AIRES TELEZ À SENHORA
DONA MARGARIDA DE SOUSA, SO‑
BRE ŨA PERFIA QUE TIVERAM
PERANTE ELA, EM QUE DEZIA
AIRES TELEZ QUE NAM SE
PODIA QUERER GRANDE
BEM SEM DESEJAR,
E O CONDE DEZIA
O CONTRAIRO.
Aires Telez.
Desejar e bem querer
sam, senhora, tam parceiros
qu' os amores verdadeiros
sem ambos nam podem ser.
Porqu' a causa é querer bem,
o desejar o efeito,
amores qu' este nam tem
nam me negará ninguem
que nam tem o ser perfeito.
Nam digo qu' o desejar
seja no homem primeiro,
mas venha por derradeiro
pera se certeficar
o bem querer verdadeiro.
Porque quem este nam tem
hei por mui certo sinal:
ou que nam quer bem nem mal
ou que quer pequeno bem.
E bem se poderá achar
desejar sem bem querer,
grande bem sem desejar
no homem nam pode ser.
E quem tal concrusam tem
contra a minha opiniam
vai tam fora da razam
como estaa de querer bem.
Sentir-s' -á, se se nam vir,
qualquer cousa desejada,
mas quem nam deseja nada
nam tem nada que sentir.
Ora vossa mercê veja
qual daquestes mais merece:
quem quer bem e nam deseja
ou quem deseja e padece.
O Conde do Vimioso.
Quem d' amores tem o cume,
quem vive vida acabada,
este nam deseja nada.
Nam se julga por costume
cousa desacustumada,
quem ousa de desejar
cuida o contentamento,
se o cuido, logo o sento,
e em meu mal nam pod' estar
prazer nem por pensamento.
Desejar o coraçam
é natural e verdade,
mas na grande afeiçam
dessimula a razam
os desejos aa vontade.
Nam pode amor sem arte
querer grorea pera si,
que por ela vejo em mim
que cuidar na menos parte
traz consigo minha fim.
O amor acustumado
este nace do desejo,
que desejando o que vejo
tenho-me por namorado,
digo qu' ee meu mal sobejo.
Mas quem chega a bem querer,
que sem respeito s' ordena,
nam deseja de viver,
nem cuida qu' i ha prazer,
nem lhe lembra sua pena.
Pois se prova o que digo,
nam cumpre mais arguir,
e mais este meu amigo
achará muitos consigo,
eu som soo no meu sentir.
Por mil penas que sofresse
todo meu mal se dobrasse,
se na vida que vivesse
tanto vos desacatasse
que algũu bem desejasse.
Aires Telez.
Este meu senhor quis vir
com tam falsas poesias,
que vem agora a cair
em maiores heresias.
Mas por mais o confundir
nesta sua openiam,
quero, senhora, arguir
contra sua concrusam
e provar minha tençam.
Se tem tam livre a vontade
que pode nam desejar,
nam lhe poderei negar,
senhora, que diz verdade.
Mas quem é muito sogeito,
sendo muito namorado,
vem-lh' o desejo forçado
e nam faz nada por geito.
Quem nam sente nada é morto
e de todo estremo ausente,
nam é triste nem contente,
nam tem mal nem tem conforto.
E por este fundamento
como s' afirma ninguem
que teraa merecimento
quem nam sente mal nem bem?
É moor descanso viver
sem desejar e sentir
que grande desejo ter,
que se nam pode comprir.
E que possa haver desejo
com grande desesperar,
isto, senhor, vos nam vejo
como se possa negar.
E s' algum homem nam ousa
desejar o que nam tem,
nam lhe vem de querer bem
mas da esencia da cousa.
E pois excelencia e ser
doutrem faz nam desejar,
nam se vá vinguem gabar
que lhe vem de bem querer.
O Conde.
Qu' aproveita bem falar
s' as razões nam vam provadas?
Sam modos d' acafelar,
sam sinaes de desamar,
palavras falseficadas.
Nisto mesmo qu' ele diz
se prova minha questam,
mas compre que o juiz
tenha tanta afeiçam
que lho sinta o coraçam.
S' a excelencia e ser
doutrem faz nam desejar,
como me podeis negar
que meu amor e querer
nam deseja descansar?
Pois me esta confessaes,
senhor meu, nam negareis
que senhora que amaes,
que por amor desejaes
por seu despreço o fazeis.
Dous contrairos nũu sogeito
nam se vio nem ham-de ver,
pera vir a bem de feito
desejo quer seu proveito,
amor quer tudo perder.
Se neles tal deferença
nam pode ser bem negada,
a rezam será forçada,
nam ficando por sentença
qu' amor nam deseja nada.
Amor é conformidade
em toda cousa igual,
ũa gostosa amizade,
amor é ũa vontade
que nam pode querer al.
Amor nam sabe o que quer,
como pode desejar?
Amor nam pode querer
outra cousa senam ser
e em si mesmo estar.
Desejo é ũu sintir
daquilo que pode ser,
sintir o qu' estaa por vir,
que obriga a servir
esperando merecer.
Como pode esperar
prazer quem por vós padece,
que, se bem nisso cuidar,
nam se pode desejar
cousa que se nam merece.
Vilancete.
Meu amor, tanto vos amo
que meu desejo nam ousa
desejar nenhũa cousa.
Porque se a desejasse
logo a esperaria
e se a eu esperasse
sei que vos anojaria.
Mil vezes a morte chamo
e meu desejo nam ousa
desejar-me outra cousa.
Aires Telez.
Sem outros maes argumentos
na sua mesma rezam
jaz, senhora, a confusam
de todos seus fundamentos.
No que diz contr' oo que digo,
nas rezões que dei arriba,
ele soo luita consigo,
ele mesmo se derriba.
Grande bem daa coraçam,
grande bem faz tudo ousar,
grande bem faz desejar
com rezam e sem razam.
E quem é tam temperado
que tem modo no desejo,
nam se vê no que m' eu vejo
nem é muito namorado.
Nam quer proveito o querer,
nem tambem o desejar
cousa tam longe de ser
que se faz desesperar.
Pois sam falsas as rezões
de quem disse que nam tem
desejar e bem querer
ũas mesmas condiçõoes.
S' amor nam sabe o que quer
nem deseja quem quer bem,
namorar-s'-ia alguem
da pintura da molher.
Mas nunca s' homem namora
senam sempre em tal lugar
que logo lhe nessa hora
lembra o fim do desejar.
Cousa de grande primor
por servir nam se mereçe,
mereçe-se por amor
de quem deseja e padece.
Desejo sem merecer
mil vezes, senhor, o vejo,
mas merecer sem desejo,
que vem de grande querer,
nam no ha nem pode ser.
Vilancete e cabo.
Meu amor, tanto vos quero
que deseja o coraçam
mil cousas contra rezam.
Porque se vos nam quisesse,
como poderia ter
desejo que me viesse
do que nunca pode ser?
Mas com quanto desespero
é em mim tanta afeiçam
que deseja o coraçam.
261
CANTIGA
DO CONDE
DE VIMIOSO.
Tristeza, pois nam podeis
ter mor prazer,
contente deveis de ser.
O poder qu' em mim vos dei
nunca tamanho tevestes,
porque toda a mim vos destes
e eu em tudo vos tomei.
Pois que parte nam lexei
para prazer,
contente deveis de ser.
Outra sua.
Nam quero ter mais comigo
que quanta pena me daes,
porqu' esta me traz consigo
outra mor se ma tiraes.
Pois que parte nam leixaes
pera prazer,
contente deveis de ser.
Sua e cabo.
Se folgaes de dar cuidados,
se penas fazeis sentir,
meus males nam sam passados
nem estaa nenhũ por vir.
Pois onde vos podeis ir
tristeza ser,
senam menos de sofrer?
262
TROVA
SUA A Ũ MOTO D' ŨA
SENHORA, QUE PÔS POR
ELE, E ELE TORNOU A
CULPA A ELA.
Moto.
Tantas cousas lh' avorrecem
qu' ee rezam que m' avorreça.
A vida nam dura mais
qu' enquanto males falecem
e por isso se ma dais
quantas vezes ma tirais
tantas cousas lh' avorrecem.
Mas se muitas vos pareçem,
senhora, nam vos esqueça
que de mim soo se padecem,
e pois tantas se oferecem
qu' ee rezão que m' avorreça.
263
TROVA DO CONDE SOBRE ŨU MOTO
QUE ESTAVA PONDO DOM PEDRO,
EM QUE SE CHAMAVA BEM
AVENTURADO E MAN‑
DOU-A COM OS
MOTOS.
Sam tam mal aventurado
que vejo boas venturas
nas alheas escrituras;
as mostras me dão cuidado,
os motos mores tristuras.
S' a ventura tal ordena
que se possa escrever,
eu digo que ver e ler
dá menos saber que pena.
264
ESPARÇA SUA.
Que terribel desconcerto
e forte dor
é amor com desamor,
que em jogo descuberto
quer dar cor a outra cor.
Duas cousas dou por certas,
tiradas pola fieira:
qu' em nenhũa verdadeira
nam pod' haver encubertas
nem verdade em terceira.
265
CANTIGA SUA.
S' alguem deseja prazer,
viva em no esperar,
que todo mais é achar
maneira de o perder.
Diga-me quem alcançou
bem algũ que desejasse,
se nunca tanto folgou
que disso se contentasse.
E pois s' acaba o prazer
que s' espera em s' alcançar,
quem esperar de o ter
nam ouse de o tomar.
266
CANTIGA DO CONDE
A
ŨUS BOCAES DO BARÃAO,
FORRADOS DE PANO
E MUITO ES‑
TREITOS.
Ó mui estreitos bocaes,
em que nam ha duas quartas,
mais custosos soes que martas,
segundo vós demandaes
trovas fartas.
Estreitos, bem cerceados,
naturaes par' este Outono,
proveitosos, despejados,
para pejarem seu dono.
Pois que tam justo calçaes
que vos fazem duas quartas,
por mal que vós pareçaes,
eu pormeto que façaes
saldas as martas.
267
OUTRA SUA A AIRES TELEZ,
PORQUE SE APARTA‑
VA DELE.
Estudaes e fogis de mi,
soes latino,
que quedas daa o ensino
do latim!
Trareis todo decorado
o Metamorfoseos,
eu trar-vos-ei assombrado
de rir de vós.
Coitado, triste de ti,
homem mofino,
que foste nacer em sino
de latim!
268
TROVAS QUE
FEZ O CONDE AO
BARÃO, PORQUE, VINDO COM
EL-REI D'ALMERIM PERA
LIXBOA EM O BATEL, SE
LHE DESTEMPEROU O
ESTAMAGO E SAHIO
EM ŨA CIRVILHA
A FAZER SEUS
FEITOS EM
ŨA LEZI‑
RIA.
Abaixo d' Escaropim,
atraves de Salvaterra,
o Barãao sahio em terra
quanto trouxe d' Almeirim.
Muito perto, i defronte,
nũa mui pequena ilha,
acodio ũa cervilha
e levou-o a pôr em monte.
Outra sua.
Deixou o barco e as redes
por seguir o salvanor,
fez os milagres que vedes
ant' El-Rei nosso Senhor.
Quando o viram desfraldar,
o arraiz temeo a chea
e bradava: — Cea, cea,
cara vos ha-de custar!
269
CANTIGA DO CONDE
AO BARÃO
E A JORGE DA SILVEIRA E
LUIS
DA SILVEIRA, PORQUE TODOS
TRES FEZERAM ŨA CANTIGA
A DOM PEDRO DE SOUSA,
SOBRE ŨA CAPA FRAN‑
CESA QUE FEZ.
Soes ajes no portugues,
nacestes para a gineta,
nam se meta
nenhũ de vossas mercês
em culpar trajo frances.
Parecer-vos-á tam mal,
porque nam vos está bem
senam bedem
e fota e todo o al
de Tremecem.
Mas pois tam bem parecês
ambos de dous à gineta,
ou todos tres,
nam s' antremeta
falarmos no que trazês
que vos falarão frances.
270
CANTIGA DO CONDE.
Que nam tenha mais prazer,
isto quero e nam al,
saber bem que certo mal
nunca pode falecer.
Foi melhor ter maa ventura
que descanso enganoso,
pois o mal que me segura
é decerto mais gostoso
que nenhũ bem dovidoso.
Se me mal quereis fazer
contra mim pouco vos val,
porque ja a vida é tal
que o tomo por prazer.
271
OUTRA SUA, PORQUE
PAS‑
SANDO SUA DAMA DO CORO
LHE FECHARAM ŨA
PORTA DONDE
A VIA.
Passa a vida tam asinha
que nenhũ descanso tem
quem vê mal e vê tambem
os porteiros da Rainha.
Em mil dias só ũ hora
nam é dor menos sobeja,
nem val rei nem val igreja
para ver minha senhora.
Tudo passa tam asinha
que seria grande bem
acabar ou ver alguem
mais contente da Rainha.
272
OUTRA SUA A OUTRO
PRO‑
POSITO A QUE CHEGOU
GUERRA, O POR‑
TEIRO.
Triste dom e triste terra,
triste paz e triste vida,
triste groria ja perdida
a que tempo veio guerra.
Se te lembraras de mi
em vida tam desigual,
mudança de bem a mal
que te nunca mereci.
Triste é quem se desterra
com esperança perdida,
triste foi quem teve vida
metida em mãos de Guerra.
273
OUTRA SUA.
Por esta regra segura
de quem vive sem ventura
nenhũ bem poder haver,
nam perco nem s' aventura
em quanto possa perder.
Antes quanto mais perdido
me vejo mais descansado
por ter ja tudo passado
quanto pode ser sofrido.
Nem ha i cousa segura
na vida que nam tem cura
senam de todo perder
por nam ter desaventura
em que possa empeecer.
274
OUTRA SUA A ŨA CONFISSAM.
Vão em conta meus cuidados
das culpas na confissam,
tristeza, door e paixam,
maiores que confessados.
E que vós nam nos causeis
bem sabeis quanto pecaes,
senhora, pois que podeis
porque nam nos emmendaes?
Estes devem ser lembrados,
que nacem no coraçam,
que os quer e em qu' estam
maiores que confessados.
275
OUTRA SUA.
Bem e mal tam pouco dura
que de pena nem prazer
nam é boa nem má ventura
parte ter.
Tudo vem a ũa conta
onde nam s' oolha rezão,
perde-se satisfaçam
e tanto monta
têla vida como nãao.
Faça de mim ja Ventura
tudo aquilo que quiser,
pois nam dá cousa segura
de molher.
276
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Como contento vevi
el tempo passado.
Amor, desque te servi
em tanto bivo penado
qu' en olvido es a mi,
como contento bivi
el tempo passado.
Que por ser más sin medida
mi dolor y padecer,
no bastó perder la vida,
mas con elha é perdida
la memoria del prazer.
Assi que, amor, por ti
soy del bien tan apartado
que no sé, triste de mi,
como contento bevi
el tempo passado.
277
CANTIGA SUA.
Ũ só bem de grande groria
trouxe comigo de ver-vos:
ter-vos sempre na memoria
que nam posso esquecer-vos.
Cada hora, cada dia,
me salteo de vos ver,
nem é mais o meu viver
qu' enganar-me a fantesia.
Porque, quando na memoria
eu podesse esquecer-vos,
a vida e sua groria
morte é por conhecer-vos.
278
OUTRA DO CONDE.
Quem de mim s' ha-de doer?
A mim soo devo culpar,
pois de todo me fui dar
a quem toma por prazer
de me matar.
Devera, pois conhecia
o mal que tenho sofrido,
de temer o que fazia,
primeiro de ser perdido.
Mas pois eu por meu querer
tal cuidado quis tomar,
rezão é nam estranhar
que tom' outrem por prazer
de me matar.
279
TROVAS QUE O CONDE DO VIMIOSO
MANDOU DE SANTOS A DOM RODRI‑
GO DE CRASTO, QUE ESTAVA NA
BEIRA, PER DOM
JOAM LOBO,
SEU GENRO, EM QUE LHE
MANDA NOVAS DE TRES
DAMAS, A QUE ELE
CHAMAVA AS TRES
GUIOMARES.
Das tres grandes Guiomares,
aquela que cá leixastes,
singular das singulares,
nam me leixam seus pesares
dizer como lhes lembrastes.
Mas pois toco na trindade
fazendo uberticlos,
chamam a vós suma idade
e quanto aa saudade,
nam nacestes para nós.
Prosseguindo a rezam,
perdoe vossa mercê,
que m' estorva a paixam
tambem, porque Dom Joam
nunca quis perder maré.
Entendei-me por açenos,
porem nam vos enforqueis
e pois tudo conheceis
per ũ pouco mais ou menos
ja, senhor, bem m' entendeis.
Quis ficar em Santarem,
mas nam sei porque o quis,
aquela que mais vos tem,
por quem nam vivem tambem
outros sessenta d' Avis.
Nam sabemos s' ha-de vir,
se se vai par' Azeitão,
mas desisto presumir,
é alheo o fengir
sendo minha a paixam.
A outra per encubertas
veio todo este caminho,
enjeitando cousas certas
polas veniaes profertas
tam certas de Dom Martinho.
Faz-se santa nestes Santos
por nos dar mores aferes,
faz-se-me chea d' espantos,
mas oo mis secretos lhantos
qu' ũ preverso preverteris.
Fim.
O falar na derradeira
tenho eu por grão perigo,
porque vós estaes na Beira,
eu se cuido na primeira
quero calar o que digo.
Vai-m' assi dessimulando
que me rezão ja responso,
mas eu vou-me confortando,
porque brado por Hernando
e ela morre por Alonso.
280
TROVAS QUE O CONDE DO VI‑
MIOSO MANDOU A SIMÃO DE
SOUSA, DA MANEIRA QUE
HAVIA D' ACHEGAR
À CORTE, VINDO
D' ARZILA.
Guai de mim, se nam tevera
quem lá tem tudo na mão,
a chegar nam m' atrevera,
se vos eu nam conhecera
o pôr desses pees no chão.
Eu vou bem amedrontado
polo custume d' alem,
se lá achar paço picado,
compre-vos tomar cuidado,
que nam fale mal nem bem.
Tençam levo de seguir
todo auto de guerreiro
e damas nunca servir,
haver brigas sobre rir,
ser amigo d' escudeiro.
Direi lá que dei cá tudo,
falarei na valentia,
prezar-m' -ei de siso rudo,
meterei como sesudo
a Dom Nuno senhoria.
Assi espero de notar
o qu' El-Rei disser à mesa,
sofrego no meu lugar,
se comigo atrevessar
hei-d' amostrar que me pesa.
Nas portas, porqu' ee perigo,
siso é quem bem se poupa.
queria buscar amigo
que m' ouvisse o que digo
nas arcas da guarda roupa.
Tenho rocim da carreira,
ja sabeis, mouro mandil,
que supra por d' estribeira,
ha-d' andar alta a conteira,
agulhetas d' ouro mil.
Estribos de tauxia,
nominas, sela de Fez,
dous pontinhos d' aaravia,
quisera levar trosquia
por ir todo d' um jaez.
De pelote, de gibam,
me mandai certo preceito,
se capuz, se balandrão,
para chegar cortesãao
na contenença, no jeito.
Da barba e do cabelo
venha certa a contia,
porque me compre sabê-lo,
que queria ir a pelo
guardando fonfarraria.
Se virdes que vou errado,
vossa mercê o emmende,
lançar-m' -ei mais achumbado,
farei olhas do passado,
porque tudo se entende.
De tudo o que farei,
venham regras decraradas
e assi onde pousarei,
que nam digam que cheguei
lá per via d' alcaladas.
Cabo.
Guardai-vos, nam vades dar
co isto pola porrim,
qu' amigo podeis topar
que cuide que por trovar
mandar trovas cab' em mim.
Pode mais enfadamento
que escusar-me de certeza
e tambem contentamento
de ver vosso fundamento
para minha gentileza.
281
OUTRAS SUAS, DO CONDE.
Tivera mais que perder
se mais tempo esperara,
mas folgara de o ter
porque menos me custara
ter mais vida sem prazer.
Tive tempo e quis vida,
que nam ter milhor me fora,
acabada e perdida,
com mil males bem sofrida
pera se perder nũ hora.
Mudança nam dá lugar
pera mudar a vontade,
mas fez-me desenganar,
que foi milhor acabar
conhecendo a verdade.
Esperando por milhor,
passava danos contente,
conhecendo o desamor
que quando vi o pior
na verdade nam me mente.
É engano nenhũu bem
nem prazer que livre seja,
pois que quando se sostem
aind' ee por mal de quem
se destrue no que deseja.
E enfim por cousa certa
tudo fica dovidoso,
senam ũa encuberta
com que vontade concerta
desconcerto espantoso.
Folgara de ver passar
tristes penas de sofrer,
pera delas me lembrar
e sofridas enganar
pera outras o poder,
desejando sofrimento,
cuidando que lembraria,
e se meu padecimento
nam desse consentimento
qu' a lembrança mo daria.
Tudo vejo acabado,
tudo ja esprimentei
pera ser desenganado,
que de todo mal passado
em mor pena me salvei.
Salvei-me pera perder
desejada perdiçam
e ganhei em me valer
para sempre padecer
minha triste salvaçam.
Quem dirá males primeiros,
d' enganado fengimento,
julgados por derradeiros,
sofridos de verdadeiros,
em comprid' esquecimento?
Quem tempo perde por si,
pague-o em sua vida,
que, se nisso mereci,
nam se ganha nada assi
senam com rezam perdida.
Foi forçado acabar
sem vontade de saber
que me nam poss' enganar,
querendo meu mal passar
enganado do prazer.
Mas, porque me falecesse
tomar isto por conforto,
quis Ventura que soubesse
que, querendo o que quisesse,
nam me quer vivo nem morto.
Quisera poder seguir
o que tam craro entendo,
se podera consentir,
mas quando quero fogir
apartando-me me prendo.
Nam sam livre nem cativo,
pois per força sam isento,
sojeito de mal esquivo
e assi triste como vivo
de cativo me contento.
Cabo.
Querei ja dar concrusam
à vida desordenada,
dai lugar ou defensam,
pois que boons dous meios sam
tê-la ou ser acabada.
Aquele que mais quereis
é o maior bem qu' espero,
por isso nam dilateis
qu' em nenhũu deles podeis
tirar-me o que mais quero.
282
CANTIGA DE PERO
SECUTOR.
Voluntad, no os trabajeis
por alcançar buena vida,
que la mejor escogida
que fue, ni será, ni es,
cuidado es pera despues.
Qu' acordaros del passado
dulce tiempo en que os folgastes,
ya sabeis qu' este cuidado
más os mata que gozastes.
Por tanto no os congoxeis,
voluntad, por buena vida,
pues es cosa conocida
que su gloria muerta es
com la memoria despues.
Grosa do Conde do Vimioso
a esta cantiga.
De cobrar gosto perdido
olvidarvos ya deveis,
biva quen bive n' olvido,
muera el bevir fingido.
Voluntad no os trabajeis
que de gloria y sossiego
ũu momento posseida
pera siempre queda luego
sospiros, lagrimas, fuego,
por alcançar buena vida.
Ni más procure deseo
dar a mis males salida,
que de vida yo posseyo
consuelo de mi, que veyo
que la mejor escogida
possession que da ventura,
quando se buelv' al reves
su deleite y su dulçura,
que fue, ni será, ni es
cuidado es pera despues.
Por tanto que nel bevir
puede ser bien deseado,
sabiendo que de sofrir
menos mal es el morir
qu' acordaros del passado.
Cesse pues vuessa profia
con que nunca descansastes
y muestre la vida mia
que fue daquel que solia
dulce tiempo em que os folgastes.
Brevemente posseido,
de passion perpetuado,
lhorado, dessocorrido
donde triste fue nacido.
Ya sabeis qu' este cuidado
tan estremo de pensar,
que por martirio cobrastes,
gostoso de desgostar,
qu' el deleite en el pesar
más os mata que gozastes.
Y pues vos moris penando
d' esperança que quereis,
que su gloria buscando
vuesso mal is alhegando,
por tanto no os congoxeis.
Remedio pera sofrir
con dolor no se despida,
que de tan triste bevir
solo queda el morir
voluntad por buena vida.
Cabo.
El qual es seguro puerto
de lembrança tan sentida,
galardam, descanso cierto,
que tarda por no ser muerto.
Pues es cosa conocida
do plazer no se recibe
voluntad, ni dar podeis
qu' el triste que assi bive
que su gloria muerta es
con la memoria despues.
283
CANTIGA
DO CONDE
DO VIMIOSO.
Dulce vista y bien passado,
memoria de lo que fue,
trist' espanto,
si me dexasses, cuidado,
con la vida ya porque
cesse tu lhanto.
¿ Mas que se puede guanar,
do nunca falta ventura
ni bevir,
pera poder olvidar
quanta tristeza segura
el morir?
¡ O bevir demasiado
y sin vida! ya porque
duree tanto
el dolor de lo passado,
con que no muere la fe
y el espanto.
284
DO CONDE DO VIMIOSO A
ŨA MOLHER QUE
SERVIA.
Remedio de minha vida,
descanso de minha pena,
minha morte conhecida,
por quem meu mal se ordena.
Vós só me entristeceis
e m' alegrais,
vós, senhora, me valeis
e me matais.
Por vós é meu mal sem fim,
e sem vós viver nam posso,
nem tenho mais part' em mim
que aquilo que é vosso.
Vós soes só de meu prazer
destruiçam
e vós soes meu gram querer,
meu coraçam.
Assi me tendes vencido,
que outro bem nam espero,
nem me tem mais perseguido
cous' algũa que o que quero.
Querer-vos me atormenta
desamado,
desamar-vos m' acreçenta
moor cuidado.
Os dias que nam vos vejo
moiro triste desejando,
vendo-vos, desesperando,
maior fica meu desejo.
Nunca posso ledo ser
por vos amar,
que nam dobre padeçer
meu descansar.
Tam fora de meu sentido
o que vos quero me tem,
que cuido que me convem
servir-vos e ser perdido.
E com este tal cuidar
nunca repousa
meu querer e desejar
em outra cousa.
Nam ha mais em minha vida
que viver meu sentimento,
nem menos no mal que sento
que serdes dele servida.
Assi é desordenada
minha pena,
que de ser mais consolada
se ordena.
S' algũ hora apartar-me
me lembra de vos servir,
nam vivo em consentir
o que sinto em lembrar-me.
Nem em mais torno a viver,
qu' enquanto posso
saber que nam pode ser
nam ser vosso.
Tanto sinto o contrairo
daquilo com que folgaes
que tomo, porque mos daes,
meus males por seu repairo.
Pois vede qu' em assi sendo
nam nos sente,
que fará por vós vivendo
descontente.
Cabo.
De quem me posso aqueixar,
a quem me posso valer,
pois vós soes meu descansar
sendo vós meu padecer?
Senhora, de minha vida
havei ja doo,
pois por vós el' ee perdida
e vós soes soo.
285
OUTRAS SUAS A ESTA
MOLHER.
Se nam tivesse poder
em mim de vos nam amar,
era bem de vos sofrer.
Mas se me posso valer,
porque me leixo matar?
Nam serdes de mim querida
querendo podia ser,
mas amar-vos sem medida
me faz perdendo a vida
que o nam posso querer.
Assi que, sendo de grado
a vos querer sometido,
é a mim mais que forçado
que nunca perca cuidado
de me ver por vós perdido.
Que s' estaa a liberdade
em meu querer deste prigo,
amo-vos tam de verdade
qu' ee de força a vontade
de sofrer o mal que sigo.
E co esta fee forçosa
de mim mesmo costrangida,
minha vida dovidosa
é a mim mais trabalhosa
que por ser por vós perdida.
E isto porque conheço
que nam posso obrigar
por quem moiro e padeço,
que s' aa morte me ofereço,
eu por mim a vou tomar.
Mas que vós nam me mateis,
senhora, nem conheçais,
porque mais pena me deis
consentis, pois nam valeis,
e vós mesma me matais.
Matais-me com fermosura,
gentileza e descriçam,
mata-me vossa fegura
por minha boa ventura,
que vossa vontade nam.
Fim.
Que se por vosso querer
minha morte s' ordenasse,
que mais bem pod' i ser
que poder em mim haver
cousa que vos contentasse?
Isto me satisfaria,
que mil anos vos servisse
outro bem nam no queria,
mas bem sei que nam seria
tam ditoso que o visse.
286
CANTIGA SUA.
Oh quem nunca conhecera
todo bem que descobri
em vos ver, porque a si
e a ele nam perdera!
Do descanso conhecido
que soo fica por memoria,
nam ha mais, sendo perdido,
que dar pena sua groria.
E pois eu tanto perdi,
servir-vos nunca devera,
pois que ja sem vós de mi
nenhũ remedio s' espera.
287
DO CONDE DO VIMIOSO A
ESTE MOTO, PARTINDO-SE
ŨA MOLHER DONDE
ELE ESTAVA.
Moto.
Nunca tive tal cuidado.
Quando vendo-vos me via
de males acompanhado,
quando morte padecia
na vida qu' entam vevia
nunca tive tal cuidado.
Porqu' entam se me penava
sem esperança, tristura,
minha pena s' abrandava
em ver vossa fermosura.
Agora, triste queria,
com lembrança do passado,
fim que vida me seria,
pois quando morrer me via
nunca tive tal cuidado.
288
CANTIGA SUA
QUE FEZ A
ŨA MOÇA DE SUA DAMA,
QUE SE CHAMAVA ES‑
PERANÇA, E ELE NAM
NA PODIA VER.
De quanto he trabajado,
triste, por vos conocer,
lo que tengo aprovechado
es que soy desesperado,
Esperança, de vos ver.
Busquévos, como me vi
com cuidados sempre tristes,
mas falhé que vos perdi
em me dar a quen vos distes.
Triste de mi, desdichado,
que vida puedo tener,
pues con mal nunca menguado
me veo desesperado,
Esperança, de vos ver.
289
OUTRA SUA, VENDO
ŨA MO‑
LHER A QUE QUISERA BEM,
EM QUE OUTREM TINHA
PODER, HAVENDO MUI‑
TO QUE A TINHA
ESQUECIDA.
Vi mi mal enverdecer
mi passion y mi cuidado,
vi triste, cativo ser
el coraçon y querer
de quien tenia olvidado.
Reformóse mi tristura
muy mayor que dantes era,
ordenó mi desventura,
mi vida tan lastimera
que jamas mi padecer
no sea remediado,
viendo cativo seer
el coraçon y querer
de quien tenia olvidado.
290
OUTRAS DO CONDE
DO
VIMIOSO EM ŨA
PARTIDA.
¡ Oh gloria de mi desseo,
tristeza de mi cuidado,
bien que todo es mudado
en dolor, porque no os veo!
Aora sin vervos siento
qu' haveria
el morir por alegria,
viendo vosso merecimiento.
Ventura desordenada
ordenó que me partiesse,
porque mi vida se viesse
biviendo ser acabada.
¡ Oh quanto mejor me fuera
no nacer,
qu' apartarme de vos ver,
mi querer, sola un' hora!
Que segun me atormenta
ver quan mala fue mi suerte,
es pera presto la muerte,
es un bem que me contenta.
Y el bevir más me condena
a ser penado,
fue a mi demasiado
por ser causa de mi pena.
Que puedo triste dezir
de passiones desiguales,
con que no faga mis males
menos asperos de sofrir.
De dezilhos yo deveria
escusarme,
si no fuesse confortarme
con lo que me contraria.
Yo vos vi, quando perdi
esperança y libertad,
y gané mi voluntad
ser del todo contra mi,
ganando que no falhassen
d' entam luego
mis males nunca sossiego
con que menos me penassen.
Mil tormentos he sofrido,
calhando lo que sentia,
los dias que encobria
verme del todo perdido.
Porque más me congoxava
vos pesar,
haver yo de decrarar
el dolor que m' aquexava.
Mas desque mi afeicion
no pudo ser encubierta,
la menos parte, sed cierta,
se supo de mi passion,
porque nadia poderia
bien dezir,
quanto yo pude sofrir
por vos vida y muerte mia.
Cuidados, lembranças tristes
de continos disfavores,
mudanças, dudas, temores,
por vida darme quesistes.
Desque mi fee conocistes
sin valerme
esperança de perderme,
sospiros, lhoros, me distes.
Y con esta vida tal
me distes por más tormento
ser mayor el sentimento
de lo que era mi mal;
nunca siendo rependido,
mal holgando
de me ver por vos penando
de todo bien despedido.
Mas de todo no contenta
la triste ventura mia
em dobro lo que sentia
de passiones m' acrecienta,
ordenando que mi vida
s' apartasse
de vos ver, porque falhasse
más causa de ser perdida.
Do con tal apartamiento,
si si sufre mi bevir,
es com groria de sentir
ser por vos my perdimiento
y esperar, que puede ser,
que bolveré
do con vervos sofriré
mi descanso el padecer.
Fim.
Mas si tarda tal remedio,
fuerça es de acabar
el bevir y sospirar
con passiones tan sin medio.
Por lo qual mi bien vos pido,
si s' ordena,
que muerto creais mi pena
y amor que vos he tenido.
291
CANTIGA SUA.
Lo que más muerte ordena
a mi vida qu' es morir,
ser forçado encubrir
de todo mi triste pena.
Forçado de fuerça tal
que muero por encobrilho
y soy cierto que dezilho
me seria mayor mal.
Assi triste que s' ordena
de mis males encobrir,
que no tarde el morir
por galardon de mi pena.
292
OUTRA SUA.
Yo vi triste sojuzgarme
do ser libre bien quisera,
mas halhé que libertarme
puede ser quando yo muera.
El sesso con la razon
precuravan más prenderme,
yo mirando mi passion
deseava defenderme.
Tanto que por libertarme
morir luego escojera,
mas razon de sojuzgarme
me forçó hasta que muera.
293
OUTRA SUA.
Es tan grave mi tormento
que si me basta mi fe,
es por el merecimento
con que yo me cativé.
Querer olvidar mi mal
seria loca porfia,
pues que es pena mortal
y la su fin es la mia.
Sufro tal padecimento,
que si me basta mi fe
es por el merecimento,
con que yo me cativé.
294
CANTIGA.
El morir triste consiento
que muy mejor me seria
que no bevir todavia
com tristura y tormento.
Ya la mi desaventura
tarda mucho em dar plazer
y arreda la cordura
y acrecienta el querer.
Pues com tal pedecimento
la muerte mejor seria
que no bevir todavia
com tristura y tormento.
Grosa do Conde do Vi-
mioso a esta cantiga.
Pues mi vida vos desplaze
el morir triste consiento,
que segum mi mal se faze,
claro veo que vos plaze
de mi triste perdimiento;
que ser menos mi querer,
que muy mejor me seria,
aunque vuesso merecer
lo dexasse en mi poder
ya triste no poderia.
Mas queria acabar
que no bevir todavia
sin poderme remediar,
pues la vida da lugar
a la triste passion mia.
Que quem sufre desamor
con tristura y tormento,
luego ve que es mejor
la muerte que el dolor
de su triste sentimento.
¿ Que puede hazer cuitado
y a la mi desaventura
de más dolor y cuidado,
que tenerme apartado
de ver vuessa fermosura?
Pues querer tan sin enganho
tarda mucho en dar prazer
lo que vivo triste planho,
qu' el remedio de mi danho
es morir sin me valer.
Turbado me ha amor
y arreda la cordura,
pues falho que es mejor
sojeicion con disfavor
que descanso con soltura.
Faze ser mis dias tristes
y acrecienta el querer,
porque sois la que vencistes
a mi vida, quando distes
triste fim a mi plazer.
Siempre vivo con deseo,
pues con tal padecimento
mis tristes cuidados veo,
que sintais lo que posseo
o muera con mi tormento.
Que con tal pena vevir
la muerte mejor seria,
pues se da por más sentir
maas tardança al morir
de quien muere todavia.
Cabo.
Bien se muestr' en mi firmeza,
que no bevir todavia
me libraraa de tristeza,
pues tengo vuessa crueza
y mi fee por companhia.
Y pues tal vida me daa
con tristura y tormento,
gran remedio me seraa
el morir, quando vernaa
acabar con lo que siento.
295
DO CONDE DO VIMIOSO A
MANUEL DE GOIOS, NAM
QUERENDO SUA
DAMA
QUE A ELE SER‑
VISSE.
Amores, que meu cuidado
fizeram ser de tristura,
por me verem mais penado
me deram ja sem ventura
por maior pena soltura.
Soltura de nam quererem
ver-me em sua prisam,
porque sabem, se quiserem,
que sempre eu certo sam
e seu é meu coraçam.
Ter-me por seu avorrece
quem me forçou a o ser,
o triste de mim padece
em desejar e querer
por descanso seu padecer.
Assi que sempre penando
vivo livre e vencido,
dobram-se meus males, quando
me vejo d' amor ferido
e dele avorrecido.
Soo me sostem esperar
o fim de meu mal comigo,
que nam devia tardar,
pois desta vida que sigo
o viver é mor imigo.
E com esta esperança
minha dor é mais crecida,
porque com sua tardança
se alonga minha vida
e nam é ja concrudida.
Em tal estremo me vendo,
a vós me quis socorrer,
senhor meu, porque entendo
que com vosso entender
me possais vós soo valer.
Mas se deste mal tam forte
cura nam poder haver,
vós sintireis minha morte
e senti mais o viver,
pois vos dooe meu padecer.
Reposta de
Manuel de Goios
polos consoantes.
Ando triste, desvelado,
após toda criatura,
provicand' este cuidado
e acho qu' esta largura
é por maior estreitura;
pera milhor nos prenderem,
soltam com a condiçam
e têm lá para nos terem
nossa firme afeiçam,
que vence toda rezam.
O que me disto parece
sempre lho vereis fazer,
que a quem lhe mais merece
estimam menos perder,
polo nam satisfazer.
Polo qual isto julgando
que sejais muito sofrido,
da parte d' amor vos mando,
porqu' assi fere Copido
o vencedor com' o vencido.
Vosso gram desesperar
é da morte tam amigo
que nam se pod' apartar
a vida deste perigo,
qu' este bem vos traz consigo.
E deveis ter confiança
em cousa tam conhecida
e nunca fazer mudança,
por ser logo guarecida
ou primeiro destroida.
Deste mal ando gemendo
e nam posso guarecer,
nem somente me defendo
nem vos posso defender
de quem me tem em poder.
Em tam desastrada sorte
nam ha cura de saber
nem vida que a conforte,
mas viva vosso querer
pera mais cedo morrer.
296
ESPARÇA DO CONDE.
Em la vida que amor
tiene poder y su fuerça,
la Ventura da favor
al qu' acaba su dolor
com la vida que la esfuerça.
Yo em mi triste lo siento
con mi mal que es tam fuerte
qu' em plazer halho tormento
y en esperar soy contento
remedealho la muerte.
297
VILANCETE DO CONDE
DO VIMIOSO.
Meu bem, sem vos ver
se vivo ũu dia
viver nam queria.
Caland' e sofrendo
meu mal sem medida,
mil mortes na vida
sinto nam vos vendo.
E pois que vivendo
moiro todavia,
viver nam queria.
298
OUTRA SUA.
A vida sem ver-vos
é dor e cuidado
que sinto dobrado
querend' esquexer-vos.
Porque sem querer-vos
ja nam poderia
viver ũ soo dia.
Ja tanta paixam
valer nam podera,
se vos nam tivera
em meu coraçam.
Sem tal defensam,
meu bem, ũ soo dia
viver nam queria.
Ajuda de
Garcia
de Resende.
Sospiros, cuidados,
paixões de querer,
se tornam dobrados,
meu bem, sem vos ver;
nom sinto prazer,
sem vós ũ soo dia
viver nam queria.
Nam quero nem posso,
nem posso querer,
viver sem ser vosso
e vosso
morrer.
Pois isto ha-de ser,
por morte haveria
nam vos ver ũ dia.
299
DO CONDE DO VIMIOSO.
Ó morto sentido de vivo sentir,
valido engano d' enganoso valer,
começo de cousas qu' em nada vam ter,
poucas cautelas, gram presumir,
perdido o geral, geral no fengir,
estreitos preceitos de bem te tratar,
por muitos que fazes em tudo falar
te deve quem ouve sempre servir!
Ó doc' escondido, nojoso rumor,
que nome porei a tu excelencia,
que tu nam es obras nem es eloquencia,
mas daqui nace teu doce sabor!
Saber te navega e nam ser senhor
e este saber porem guarnecido,
que pois per siso em ti é perdido
vede que fará ũ gram sem sabor!
Mas quem haveria que nada cuidasse
que de ti podia mostrar nem dizer,
se aquilo que fica par' o entender
em bem se calar se nam declarasse?
Sam cousas sem nome que quem nas mostrasse
per exce de poucos ind' as fiaria,
porque nam caissem em tal fantesia
que ja decraradas as mais nam danasse?
Pregunta do Conde
do Vimioso
a Garcia de Reesende.
Qual é quela cousa que nunca se vio
e é mais conhecida por seu parecer,
para a bem sentir ciencia comprio,
sendo sentida sem entender?
Contraira e amiga do seu mesmo ser,
querida de quem por ela padece,
a quem mais descansa mais avorrece,
do bem e do mal efeito a meu ver?
Reposta de
Garcia de Resende
polos consoantes.
Saber, gentileza, em vós s' envestio,
vertude quis tanto em vós frorecer,
que quem vos nam serve nem inda servio
seraa por bem craro vos nam conhecer.
E eu, por servir-vos, vos quis responder
e digo qu' em vós se vê e conhece,
é cousa de sorte que, se desfalece,
falece amizade e gram bem querer.
BREVE DO CONDE DO
VIMIOSO D' Ũ MOMO
QUE
FEZ SENDO DESAVINDO, NO QUAL
LEVAVA POR ANTREMES
ŨU ANJO
E ŨU
DIABO, E O ANJO
DEU ESTA
CANTIGA
A
SUA DAMA.
Muito alta e eicelente Princesa
e poderosa Senhora:
Por m' apartar da fee em que vivo,
muitas vezes fui tentado deste
diabo e de todas minha firmeza
pôde mais que sua sabedoria, por-
que tam verdadeiro amor de tam
falsas tentações nam podia ser ven-
cido. E conhecendo em seus esperi-
mentos a grandeza de minha fee
me tentou na esperança, pondo
diante mim a perda de minha vida
e de minha liberdade, havendo por
empossivel o remedio de meus
males. E com todas estas cousas
nam me vencera se mais nam pode-
ram os desenganos alheos que o
seu engano, com os quaes desespe-
rei e fui posto em seu poder. Mas
este anjo, que me guarda, vendo
que minha desesperança nam era
por mingua de fee nem minha
pena, por minha culpa se quis lem‑
brar de mi e de quem me fez perder
em me trazer aqui, porque com sua
vista o diabo me soltasse, e ela,
vendo meus danos da parte que
neles tem, se podesse arrepender.
Cantiga que deu o anjo.
Senhora, no quiere Dios
que seais vos homecida
em ser elh' alma perdida
de quien se perdió por vos.
Ordenó vuestra crueza
qu' este triste se matasse
en dexarvos y negasse
vuestra fee qu' es su firmeza.
Mas ha permetido Dios
que por mi fuesse valida
su alma y que su vida
se torn' a perder por vos.
DE DOM DIOGO, FILHO DO MAR‑
QUÊS, EM QUE S' AQUEI‑
XA CONSIGO
MESMO.
Se vivo com tanto mal,
justa rezam me sostem
saber certo que nam tem
comparaçam nem igual.
E ser disto sabedor
me faz ficar no sentido
qu' ee conforto do vencido
ser maior o vencedor.
Outras mil rezões daria
em favor deste cuidado,
mas nam pode ser falado
quanto sente a fantesia.
O qu' ela alcança a meu ver
nam se deve de falar,
porque seraa começar
cousa empossivel de ser.
O que posso maginar
de tam alta perfeiçam
é de tal costelaçam
que nam se pode alcançar
nem pode ter certa conta,
porque tem sem conto tudo,
donde falar e ser mudo
entendo que tanto monta.
Ó fantesia perdida,
ó maginaçam cansada,
porqu' andais tam derramada
após quem vos nam daa vida?
Se tevereis ũu soo dia
esperança desta graça,
quem perfia mata caça,
mas a vós mata perfia.
Da vida sem esperança
a causa me satisfaz,
porqu' ela consigo traz
esta mesma confiança.
Pois como hei-d' esperar
o que nunca cuidei ter?
E como nam pode ser,
nam no ouso desejar.
O grande contentamento,
que tenho de ser perdido,
me faz ser arrependido
do tempo que fui isento.
Mas que me presta cuidar
que tengo este querer,
pois quem me tem em poder
me pode dele mudar?
Fim.
Ordena-se minha fim,
a culpa temo-la nós,
sam engeitado de vós
e esquecido de mim.
Mas isto tem que lhe gabe
meu tormento tam estranho,
que nam ha i mal tamanho
que nam s' acabe ou m' acabe.
302
DE DOM DIOGO A ŨA GUEDE‑
LHA DE CABELOS,
QUE VIO À
SENHORA DONA BRIATIS
DE VILHENA.
Cabelos de fremosura,
que me tanto namoraram,
ditosa minha ventura,
que sereis a sepultura
dos olhos que vos olharam.
Oh lembrança assi presente
em minha triste memoria,
achada por acidente,
mal de que sam tam contente
que me fica por vitoria!
E pois com isto se cura
os danos que me causaram
vossa nova fremosura,
alta foi sua ventura
dos olhos que vos olharam.
DE FRANCISCO DA SILVEIRA,
COUDEL-MOOR, A ALVARO DA
CUNHA QUE SAHIO DO PA‑
ÇO EM ROCIM MAGRO
E COM GRANDE
ALFORJADA.
Vimos-vos d' ũa janela
hoje do paço sahir
em rocim que fez bem rir
ũa donzela.
Ieis jentil caminhante
e temeroso,
mais meirinho que galante,
mais desairado qu' airoso.
No alforge gram panela
enxergámos de cá ir,
que foi azo de mais rir
esta donzela.
304
TROVAS SUAS A ŨA DAMA
SEM SE NOMEAR.
Dama, que o fostes jaa
e que nam soes ò presente,
velha que mil anos haa,
saam que parece doente.
Mantendes mal a menajem,
hetega de mil maneiras
garganta, mãos e trincheiras
dos que sô a terra jazem.
Ossos de qu' hei piadade
qu' a todo paço avorreçe,
tam imiga de verdade
como de quem bem parece.
Sobre todas envejosa,
conhecê-vos eeramaa,
qu' inda que fosseis fermosa
vosso tempo passou jaa.
Deixe o paço e as damas
quem for da vossa maneira,
inda que para mudanças
sereis a moor dançadeira.
É tambem d' aconselhar,
por muito que tendes visto,
podereis aproveitar
e servir o paço nisto.
Mas vosso conselho vãao,
que sae desse cascavel,
nam no ouvir era mais sãao,
porqu' ee azedo como fel.
Soes neste paço peçonha
e antr' as damas danosa
e soes a moor mentirosa
que vi e mais sem vergonha.
E nam digo eu soo isto,
mas a muitos o parece,
e no que vos acontece
o podeis jaa ter bem visto,
porque de quantos quereis,
vossa mercê quem na queira
nam acha nem por terceira
de ventura o achareis.
Tomai ora este conselho
em que seja d' homem moço:
lançai-vos ante nũ poço
que curardes mais d' espelho.
Mas isto, senhora, ouvi:
casai-vos co Salvador,
e servi Nosso Senhor
que nam soes jaa para aqui.
Fim.
Quem por si isto tomar
dessemule, nam se queixe,
porque quem mal quer falar
cumpre qu' em si falar leixe.
Nam cure d' arrapiar,
pois em salvo nam repica,
porque me faraa tornar
a dizer o qu' inda fica.
305
GROSA DE FRANCISCO
DA SILVEIRA A
ESTE MOTO:
Em pago del mal sofrido.
Choro-te, meu coraçam,
hei-te por mais que perdido,
pois te dam por galardam
tristezas, dor e paixam
em pago del mal sofrido!
Tuas firmezas passadas,
teu amor, tam de verdade,
agora te sam pagadas
em dores novas, dobradas,
sem nenhũa piadade.
Que novas, meu coraçam,
pera ser bem recebido,
que te dam por gualardam
tristezas, dor e paixam
em pago del mal sofrido!
306
CANTIGA DE FRANCISCO
DA SILVEIRA.
Que dor, que pena tam forte,
nam sei quem possa co ela,
vejo vir a olho a morte,
nam posso guardar-me dela.
Se pode ser moor paixam,
se pode ser moor tristeza,
ver perder meu coraçam,
ver-m' eu ir a perdiçam
sem valer fé nem firmeza.
Mas pois tal quis, tal soporte,
se dor tenho, moira nela,
pois vejo vir minha morte
e nam sei guardar-me dela.
307
OUTRA SUA.
Quem meu coraçam me pena,
quem de meu siso m' embroca,
quem todo meu mal m' ordena,
na cinta traz ũa roca.
Oh que ar, que parecer
dá a tudo quanto traz,
mas o que co ela faz
deve de mim de fazer!
Remedio seraa da pena
que jamais de mim se troca
pola dor que se m' ordena
deste nam fiar sem roca.
308
DE FRANCISCO DA SILVEIRA.
Que fera cousa de ver,
quam maa é de soportar,
que gram dor pera sofrer
haver eu triste de ter
olhos pera tal olhar!
Haver-vos de ver partir
e a mim ver-me ficar
nam no posso consentir,
nem que al deva fengir
nam vo-lo posso mostrar.
Ó olhos, porque quebrados
nam fostes, se tal sabieis,
por d' hoj' avante dobrados
nam verdes vossos cuidados
tam contrairos dos que tinheis!
Oh quem de tal se lembrara,
quanto bem a si fizera,
quanto mal remedeara!
Oh quanta dor escusara
s' os olhos foora tivera!
Oh quem podesse dizer
quanto mal consigo tem,
quem no podess' escrever
pera quem quisesse ver
quanta paixam d' amor vem!
Mas o nisso trabalhar
é trabalho por de mais,
é lançar agua no mar,
tam impossivel contar
sam minhas penas mortais.
Mas quem meu mal nam recea
fui ver e ver-me nam quer,
vim com muita maa estrea,
ca foi ũu ter de candea
que tem marido a molher.
Tal ir laa fora escusado,
por nam vir com más paixam,
mas pois tudo vai errado,
vença meu triste cuidado,
vá tudo contra rezam.
Quantos males, quantos danos,
quantos nojos e tristezas,
abastaram desenganos,
abastaram-m' os oit' anos
que me leva sa crueza.
Abastara-me sentir
minha gram pena e paixam,
mas pola assi ver partir
sô poder d' ũu dragam ir
nam me fica coraçam.
Que cousa tam piadosa
nam s' haja por sem pecado
quem deu dama tam fermosa,
tam galante, tam airosa,
a homem tam infernado!
Que lhe viera por sortes
por ũu gram reino salvar
qu' escusara a mil as mortes,
por suas condições fortes
nam se lhe divera dar.
Tam moça dama, tam linda,
por mão de Deos soo foi feita,
em bondades é enfinda,
a este mundo foi vinda
por ser dele a mais perfeita.
Quem n' assi encaminhou
que conta dará a Deos dela?
Como nam moiro ond' estou
por nam ver quem ma levou
nem tal fim a mim e ela?
Mas pois tudo foi errado
por ela ja no começo,
quem me manda ter cuidado
de quem me tem tant' errado
e feito tanto despreço?
Mas que presta esta razam
nem outras cem mil que calo,
que nam quer meu coraçam
nem menos minha naçam
seu amor nunca leixá-lo?
Ó gram desaventurado,
sem nenhũu remedeo ja,
quanto mal tenho, coitado,
ó triste desesperado,
que farei e que faraa?
Que farei, pois tal senhora,
por minha triste ventura,
perdi hoje nesta hora?
Ond' irei aqui nem fora
ond' ache tal fermosura?
Onde me posso ja ir,
ond' iraa quem de vós parte,
que outrem possa servir
nem soo poder enfengir
em outra nenhũa parte?
Quem pod' achar em que ache
o dizemo do qu' ha em vós?
Que virei de quem m' empache,
ja nam ha de quem m' agache
nem a fez Deos antre nós.
Que gosto posso levar,
quem falar soomente m' ousa,
quem poderei ja olhar,
de que posso ja gostar,
pois perdi a milhor cousa?
Que vida pode ser vida
nem Portugal, Portugal,
se dele vós ja soes ida?
Vej' eu quem foi destroida,
começo, fim, deste mal.
Em Santarem começou
esta morte, se me credes,
neste tredor s' ordenou,
agora nele acabou
com' eu sinto e todos vedes.
Ele foi começo e meo,
fim de tod' esta crueza,
dele e da vida descreo,
pois nele por ela creio
nunca sair de tristeza.
O que milhor ja seria
era acabar esta vida,
por ver se descansaria,
por morte s' acabaria
dor tam alta e tam sobida.
E s' ela remedio tem
pera mim, ela m' acabe,
pois morte que em ninguem
dos qu' estam nem vam nem vem
remedio a mim se nam sabe.
Mas tam mofino sam eu
qu' agora que me vem bem,
quem este cabo me deu
por nam ser descanso meu
morte nam quer que me dem.
Agora é o meu viver,
ha-me d' achar Antecristo,
seguro sam de morrer,
por mais inda padecer
té vinda de Jasu Cristo.
Oh que dor me dam lembranças,
que gram pena daa cuidar,
tristes, tristes esperanças,
porque taes desesperanças
me quisestes juntas dar!
Vejo-vos ir e leixar-me,
de mim nam hei-de doer-me,
quem ha-de remedear-me,
se vós quisestes matar-me
e folgastes de perder-me?
Nam s' entenda este perder
que é por m' outrem ganhar,
ca isto assi pode ser
como se poderaa ver
ja no mundo vosso par?
Per aqui vereis quam certo,
minha vida, vosso sam,
em que da morte tam perto
me tendes com' ee incerto
em mim vosso gualardam.
Em hora triste naci,
triste foi minha ventura,
trist' o dia que vos vi,
pois d' entam prazer perdi
e d' entam meu mal me dura.
Mas porque, meu bem, vos via,
todo meu mal bem passava,
vossa dor nam me doia,
porqu' o mal que me fazia
vossa vista mo curava.
Por isso nenhũ mal vosso
pera mim nam era mal,
que com todo o vosso posso,
mas este é d' ambos, é nosso
e por isso me fez tal.
Ca s' ele fora soo meu,
sem vós terdes parte nele,
tudo bem soportar' eu,
mas vossa morte me deu
a mim morte que nam ele.
Assi que por isso ja
desespero de folgar,
porque sem vós cá nam ha
pera mim nem s' achará
quem prazer me possa dar.
Nem menos quem mal me faça
nem de quem seu dano sinta
encuberto, nem de praça,
nem em jogo, nem por graça
meu coraçam quer que minta.
A morte que viverei,
enquanto me nam levar,
é esta qu' aqui direi,
inda que triste nam sei
tam triste vo-la pintar:
viverei sempre chorando,
viverei mal me dizendo,
por vós, meu bem, sospirando,
por vosso mal brasfemando
e mais qu' oo meu me doendo.
Farei vida contemprando
falarei comigo soo,
sempr' em vós triste cuidando,
nunca d' outrem me lembrando
e aqui darei o noo.
Cada vez que cá vir festas
pera mim ham-de ser dores,
por sestas lembraram sestas
e honesta por honestas
e por amores, amores.
Ũu tempo outro lembrará,
ver damas lembrança faz,
ver paixam paixam faraa,
ver prazer a dobrará
em quem mim dobrada jaz.
Serãos lembram os que ja vi,
noite faz noite lembrar,
esperança a que perdi,
dia lembra dia aqui,
per lũar lembra lũar.
Ver casas em que vos vi,
ver com quem em vós falava,
lembrando-m' o que perdi,
oh triste, que nam morri
pois morte m' ist' escusava!
Que nam moira, que seraa
moor morte que se morresse?
Qual é o que poderaa
sofrer a dor qu' isto daa
qu' ante morte nam quisesse?
Ora ja tud' ist' acabe,
escusa de mais lembrança,
ca pera quem ela cabe
a verdade milhor sabe
quem me tirou esperança.
C' a lembrança nem sem ela
nunca muda fé inteira,
foi e serei sempre dela,
meu coraçam esquecê-la
nam quer nem pode que queira.
Fim.
Acabad' ee minha vida
e meus tristes fundamentos,
ja fez fim, ja é perdida,
ja cabou, j' é destroida,
mas nam ja meus pensamentos.
Estes seram sempre vivos,
estes tereis sempre laa,
eu com cuidados esquivos
cuidando no que j' ovi-vos
farei fim mui cedo caa.
309
CANTIGA SUA.
Senhora, soes perigosa,
a vós ninguem se registe,
nam soes nada piadosa,
soes sobre todas fermosa
e eu sobre todos triste.
Fostes do reino lançada
por nele fazerdes mal
nam coma dama infernada,
mas coma cousa danada
destroieis Portugal.
Tal ida foi mais danosa,
coraçam, tu o sentiste,
ó crua, nam piadosa,
soes sobre todas fermosa
e eu sobre todos triste!
310
GLOSA SUA A ESTA
CANTIGA.
Con qualquer pena que yo siento,
ver meu dano tam sobido,
ver meu triste perdimento,
se nam fora apartamento,
tudo bem fora sofrido.
Mas pois é, nam quero vida,
ante morte buscar venho,
por ser toda a dor que tenho
por vuestra causa venida.
Yo vivo mucho contento
vendo-me por vós perder,
hei por bem o mal que sento
por vosso merecimento,
por vosso gram parecer.
Ver minha vida perdida,
ver meu mal sempre presente,
com tudo fora contente,
mas no com vuessa partida.
Mas a todo mi penar,
se ver-vos sempre pudera,
pesar nam fora pesar,
meu mal nam fora cansar,
ante descanso me dera.
Mas pois nam presta que fale
meus nojos desesperados,
ja a meus tristes cuidados
ũu solo remedio cale.
El qual es siempre pensar
em vossa gram fremosura,
pera meu mal esforçar
e milhor poder passar
minha grã desaventura.
Mas que co ela me cale,
pois que nela hei-d' acabar,
meu descanso é cuidar
en la causa quanto vale.
311
CANTIGA SUA.
Vossa grande crueldade,
minha grã desaventura,
vossa pouca piadade
com minha gram lealdade
de mestura
fizeram minha trestura.
A qual ja dentro em mim jaz,
tanto nos bofes metida
que m' entristece e me faz
que me pese co a vida.
Cesse vossa crueldade,
mude-se minha ventura,
que pois tendes fermosura,
tende tambem piadade
de mestura,
nam me mate esta tristura.
312
OUTRA SUA.
Meus olhos, podeis quebrar,
que mingua me nam fareis,
pois vos nam hei-de mostrar
em que ja prazer me deis.
Nam me podeis fazer bem
nem vos hei nunca mester,
pois, meus olhos, nam vos quer
quem em seu poder vos tem.
Podeis-vos ambos quebrar,
que mingua me nam fareis,
pois vos nam posso mostrar
em que jaa prazer me deis.
313
OUTRA SUA.
Triste vida será a nossa,
triste é meu coraçam,
trist' ee minha pola vossa,
mas a vossa por mim nam.
Tristes dias viveremos,
tristes seram nossas vidas,
o passado choraremos,
que nam temos,
tendo ja as vidas perdidas.
E por isso a vida nossa
de ser triste tem rezam,
trist' ee minha pola vossa,
mas a vossa por mim nam.
314
OUTRA SUA.
Nam tem ninguem mais cuidado,
nem vive com mais tristura,
nem é pior esquençado,
nem tem mais desaventura.
De prazer todos mais tem,
de folgar mais s' acharaa,
mas ser mais triste ninguem
bem impossivel seraa.
Eu sam o desesperado,
sam o triste sem ventura,
nunca me leixa cuidado,
sempre me crece tristura.
315
OUTRA SUA.
Com quanto de vós s' aqueixa,
senhora, meu coraçam,
soidade nam o leixa
de vossa conversaçam.
Despois de vossa partida,
todolos dias me mata,
nam tem conto nem medida
as mil dores que me cata.
Consigo morre e se queixa,
quando vê tanta rezam,
mas soidade nam leixa
de vossa conversaçam.
DE
JOAM FOGAÇA A
DOM
GONÇALO COUTINHO.
Nam s' engana,
senhor, quem quiser dizer
que a senhora Dona Joana
de Vilhana
tem no melhor parecer
que se vio nem ha-de ver.
Se nisto digo verdade
seja-me Deos testemunha,
tambem Alvaro da Cunha,
qu' ee homem de tal idade
que nam diraa falsidade.
Nem s' engana
quem verdade quer dizer
que a senhora Dona Joana
de Vilhana
tem no melhor parecer
que se vio nem ha-de ver.
Para quem a ler.
Esta seja provicada
onde vos bem parecer
e, quem na ler,
guarde-se de a dizer
abiarozada.
317
DE JOAM FOGAÇA A JOAM COR‑
REA, COMENDADOR D'ALJAZUR,
POR SE DIZER QUE SE PER‑
DIAM OS MOVEIS DOS
COMENDADORES.
Quem tever gentil comenda,
se meu conselho tomar,
nam gastaraa sua renda
em nenhũu pano d' armar.
Ca segundo se cá diz,
e eu avento,
de ter cousa sem raiz
nam se faça fundamento.
E desse gado vacum
que a casa alumea
digo, senhor Joam Correa,
que nam tenhais sooment' um,
ca se vos vem peitogueira
ou ũa dor de costado,
dareis o boi a cruzado
sem achardes quem no queira.
Reposta de Joam Correa.
Sem dinheiro ou boa prenda
a risco corro jantar
e por isso é bom provenda
para s' homem segurar;
sede vós, senhor, juiz,
qu' eu o consento,
ca certo por bem o fiz
lançar-me cá ò convento.
E pois and' este zunzum,
que minh' alma ja arrecea,
convem, senhor, que vos crea
em nam ter moval nenhum.
E antes que a calveira
me assentem, é forçado
que o meu coopo picado
vaa por ũa panasqueira.
318
DE JOAM FOGAÇA A ŨA MULA
NOVA DO COMENDADOR‑
-MOOR, QUE ACHOU
AO BARCO DE
SACAVEM.
Rifam.
Ò barco de Sacavem
achei a vossa mulata,
que me pareceo tam bem
que me mata.
Se vos veio de Castela
ou se anda d' andadura,
nam no jurarei por ela,
mas a mim se m' afegura
que naceo em Paradeela.
Tudo mui perfeito tem,
senhor, a vossa mulata
e pareceo-me tam bem
que me mata.
E que soes dela contente
apostei dous portugueses,
e fui-lhe buscar o dente,
achei que no mes presente
çarra certo trinta meses.
Ó barco de Sacavem,
que passas a gram mulata,
a qual nam veraa ninguem
que nam diga que o mata.
319
DE JOAM FOGAÇA A ŨU FRADE
D' OSERVANCIA, QUE IA POR GUAR‑
DIAM A TANJERE E PEDIO-LHE
QUE PEDISSE AO CONDE
PRIOR QUE ESCREVESSE
AO CAPITAM, SEU FI‑
LHO, QUE O FAVO‑
RECESSE LAA. E
DEU-LHE ESTA
TROVA PERA
O CONDE.
Para Tanjere, senhor,
eleito por guardiam
vai ũu frade pregador,
porem deseja favor
laa do senhor capitam:
nam quer esmola nem renda,
mas por laa nam correr risco,
pede carta d' encomenda,
posto que se nam entenda
na regra de Sam Francisco.
320
OUTRA DE JOAM FOGAÇA AO
CONDE PRIOR POR ŨA MO‑
LHER D'Ũ MARINHEIRO
QUE FOI COM ELE À
TORQUIA E REQUE‑
RIA O SOLDO
DO MARIDO.
Essa molher é casada,
seu marido é marinheiro,
foi servir-vos nessa armada
e quer seu soldo em dinheiro.
Nam é desarrazoada,
senhor, em pedir o seu
e digo eu
que seja bem despachada
polo meu.
321
DE JOAM FOGAÇA A DOM
LUIS DE MENESES SOBRE
O COMENDADOR-MOOR
DE SANTIAGO, QUE LHE
FOGIO Ũ MOURO E A
QUANTOS ACHAVA
PERGUNTAVA
POR ELE.
Homem de potro cinzento,
que comprou a peso d' ouro,
anda em busca d' ũ mouro
que lhe fogio e nam mento.
Por sinal que and' aa brida
sem dele fazer burrela,
pesca ifantes com sedela
mui comprida,
com anzolo de cabrela.
Cabo.
Anda mais bravo qu' ũ touro
e a quem fala
pregunta de chiche cala:
— Senhores, vistes-m' ũ mouro?
Sabeis que m' aconteceo?
Sem haver nada co ele
logo desapareceo,
sem jamais ver fumo dele.
322
DE JOAM FOGAÇA
A DOM
PEDRO DE CASTEL BRANCO,
PORQUE JUNTO COM ELE
POUSAVA CA
MOÇA
QUE LHE PARE‑
CIA BEM.
Tenho cofre, tenho cinta,
tenho pano de Ruam,
o qual darei d' antemão,
mas hei medo que me minta,
porque ha i tanta trisca,
naqueste mundo cuitado,
que muitas ripam a isca
e fic' homem enganado.
323
OUTRA SUA.
Dou fraldilhas, dou camisas,
dou cootas e dou mantilhas,
dou alfaias de mil guisas,
dou firmaes e dou manilhas.
Dou dinheiro em dinheiro
e dou casas d' aluguer,
dou chapis de çapateiro
a quem quer
ser muito boa molher.
324
DE JOÃ FOGAÇA,
QUANDO VEO
O EMBAXADOR D' ALEMANHA, SO‑
BRE O COMENDADOR-MOOR, DO
QUE LHE HAVIA DE PREGUN‑
TAR E MANDOU-AS A
DOM
LUIS DE MENESES, ES‑
TANDO DOENTE E EM
SUA CASA DOM
GAR‑
CIA E JOAM LOPES
DE SEQUEIRA.
Embaixador d' Alemanha
é entrado,
para o qual seraa chamado
o gram Gijono de Canha
pera ir oo sestro laado.
Perguntaraa por novela,
responderaa si e nam,
e dos grandes de Castela
que faram
e em Navarra e Aragam.
E tambem
lhe diraa por espedida
o Senhor de Rabastem
a qual das partes convem
e Madama Margarida.
Se viraa ou nam viraa
o Princep' este Veram
ou que faraa,
que cousas preguntaraa,
que cousas responderaa
se lhe nam forem à mam.
De Joam Fogaça a dom Luis
com estas trovas.
Senhor, tende tal maneira,
sem brados e sem perfia,
que Joam Lopez de Sequeira
e o senhor Dom Garcia
vejam esta derradeira.
E quem quiser ajudar
haja a vista
e pode-s' alevantar
daqui tamanha conquista
como foi a d' ultramar.
Fim.
E tambem se soes doente
nam hajaes, senhor, vergonha
dizer que é de peçonha,
pois que soes da mesma gente.
325
CANTIGA SUA A DOM
RO‑
DRIGO DE CASTRO.
— Senhor, vistes nunca tal?
Indo-me par' à pousada,
foi topar o de Lousada,
sabeis qual,
o da capa entretalhada.
Disse-lhe polo deter:
— Que é isso que levais?
Aguardai-me, qu' hei-de ver
quam mal o vosso gastais.
Amostrou-me tudo o al,
descobrio ũa esmaltada
na cinta mal recachada,
veedes qual
o da capa entretalhada.
326
TROVA SUA A GARCIA DE RESEN‑
DE, EM
REPOSTA DOUTRA
EM QUE
LHE MANDAVA
PEDIR TROVAS
SUAS.
Senhor, nam tenho lembrança
de cousa que ja fezesse
mais do que se faz em França,
porque, se o eu soubesse,
di-lo-ia sem tardança.
Oo gram Comendador-moor
me lembra ũa que fiz,
a qual diz:
Trova sua ao Comendador-moor
de Santiago, porque vindo El‑
-Rei e a Rainha nũ batel, foi
tomar ũ Ifante no colo
e o tirou fora, indo
muito mal vesti‑
do e de más
sedas.
Com duas sedas, nô mais,
e sem iscar o anzolo,
pescou Ifante no cais
que logo ripou no colo.
Sem veludo cremesim,
nem çatim avelutado,
mas çatim muito roim
e demasquim
azul e alionado.
327
CANTIGA SUA QUE FEZ POR
DUARTE DE LEMOS A ŨA
MO-
LHER QUE PREGUNTAVA
COMO PODERIA DORMIR
COM SUA MOLHER,
SENDO TAM
GRANDE.
Se em pee, se, quando jaço,
quereis, senhora, saber
como posso ou como faço,
eu vo-lo quero dizer.
S' ela jaaz de pap' arriba,
ambos ficamos iguaes,
nem cuideis, se o cuidaes,
que, se m' ela nam derriba,
que sejamos desiguaes.
Se em pee, faço-m' anãao
e d' ilharga atravessado,
tam junto, tam conchegado
que nam ponho pee em chãao.
E tambem sam tam humano
e levo tamanho gosto
que por lhe ver bem o rosto
faço de mim pelicano.
Ela tambem de seu cabo
faz muitas galantarias
e fala mil aravias
que vos eu aqui nam gabo,,
e assi acabo.
328
SUA A JOAM DE SALDANHA POR
ŨA TOUCA QUE TROUXE AO
PAÇO MUITO MAL POSTA,
PARTINDO EL-REI.
Ouça quem quiser ouvir
ũa bem grande façanha
da touca de Joam de Saldanha
qu' hoje sacou oo partir.
Ela era mal lavada,
toda posta no toutiço,
de diante mal quebrada,
na pousada foteada
e no paço gram chouriço.
TROVAS SUAS
AO COMENDADOR‑
-MOOR
DE SANTIAGO, PORQUE PE‑
DIO A EL-REI NOSSO SENHOR
Ũ QUARTEL DE
MORADIA, QUE
HAVIA DEZANOVE ANOS QUE
PERDERA E
DIZIA QUE
O
QUERIA PROVAR POR
TESTEMUNHAS.
O mui gram Comendador
pedio hoje neste dia,
oo vestir,
a El-Rei nosso Senhor
ũ quartel de moradia,
que lhe ficou por servir
haveraa dezanov' anos.
E diz que o quer provar
por tinta e papel.
Oh engano dos enganos,
cuidar que ha-de ripar
ũ tam antigo quartel!
Do Comendador-moor a quem
lhe quer comprar o
quartel
que tem ja desem‑
bargado.
Quem quer comprar ũ quartel,
que tenho desembargado
e apontado,
dê-me cá tinte e papel
e dar-lh'-ei ũ assinado
dele e tomarei panos
no tesoureiro,
porqu' ee de dezanov' anos,
ante que fosse escudeiro,
e vê-lo-ês em dinheiro.
Reposta de Pero de Madril,
cambador.
Diz caa Pero de Madril
que nam dará os seus panos
nem menos ũ soo ceitil
por quartel de tantos anos.
Mas por nam ficar em vãao,
lhe praz
de vos dar mui boom ruãao,
dando-lhe Gonçalo Vaz
penhores limpos na mãao.
Outro mercador.
E diz outro mercador,
porque vos ja sabe a manha,
se lhe derdes fiador
ou a comenda de Canha
de renda ou seu valor,
que vos serviraa, senhor,
sem carta nem estormento,
dando-lhe mui bom penhor
por este quartel de vento
vos faraa boom pagamento.
Outro mercador.
Por este quartel de vento
de tantos anos perdido,
vos darei ũ guarnimento
todo d' ouropel tecido,
bem gentil e bem polido.
Mas haveis-me de ficar
que mo deis desembargado,
despachado e assinado,
e quem mo ha-de pagar
venha logo nomeado.
330
DE JOAM FOGAÇA A DOM GON‑
ÇALO COUTINHO, PORQUE VIO
DOM GARCIA DE
MENESES
RAPADO À NAVALHA.
Vindo, senhor, este dia
do paço bem enfadado,
vi rapado Dom Garcia,
vi Dom Garcia rapado.
Vi-o tam abocetado
e tam porrim,
que disse logo antre mim:
Est' hoomem vem enganado.
331
SUA A DOM GOTERRE.
Senhor Dom Goterre, mano,
Vale, Viveiro, Nogueira,
m' avorrecem de maneira
que folgo com Arelhano
e com Lopo Soarez.
332
TROVA QUE FEZ JOAM FOGAÇA.
Senhores, sede devotos
dos anjos e dos arcanjos,
qu' estes deemos dos Briolanjos
fazem grandes terramotos.
Fazem lampados, torvõoes,
lançam pedras de corisco
e fogem d' ũ porco pisco
e sobr' isso sam ladrõoes.
DE DIOGO BRANDAM À MORTE
D'EL-REI DOM JOAM O SEGUNDO,
QUE É EM SANTA GRORIA.
Todos atentos na morte cuidemos
na qual duvidamos por mais nosso mal,
que dela sabendo ser cousa geral
mais nos espantamos do que nos provemos.
Os beens temporaes por alheos deixemos,
pois mais nos provocam a mal que nam bem,
os quaes, cuidando nos outros que temos,
eles com fortes cadeas nos tem.
Os bens que sam d' alma, aqueles sigamos
pois neles consiste o vero proveito,
os de fora busquemos, havendo respeito
a quam brevemente por eles passamos.
Riquezas, favores qu' aqui percalçamos
assi como passam se perde a memoria,
se bem neste mundo fazemos, obramos,
vive pera sempre no outro per groria.
Nesta fim logo sejamos prudentes,
pois toda grorea naquela se canta
e com boas obras e vida mui santa
devemos na morte mui bem parar mentes.
E se polas cousas que vemos presentes,
nom bem conhecemos o gram poder dela,
lembrança tenhamos de quam eixcelentes
princepes, reis passaram por ela.
Dizer dos antigos que sam consumidos
nam queero em gregos falar nem romãaos,
mas nos que nos caem aqui dantr' as mãaos,
vistos de nós e de nós conhecidos.
Despertemos de todo os nossos sintidos,
pois este mundo é tam inconstante,
creamos dos mortos que nam sam perdidos,
mas que sam idos ũ pouco adiante:
Nam pode ser pouco, pois é muito certo
que hoje se pode fazer esta via
e se este nom é o derradeiro dia,
sabei qu' ele estaa de nós muito perto.
Todos nacemos com este concerto
que quem tiver vida tem certo perdê-la,
e pois o viver nos é tam incerto,
vivendo na morte, cuidemos bem nela.
E pois tam aberta estaa esta via
per ordem d' Aquele que a todos nos fez,
nam nos espantemos de vir ũa vez
aquilo que nos pode vir cada dia.
Assi cada ũ ordenar-se devia,
como se fosse aa morte chegado,
e desta maneira nos nam enganaria
se tivessemos dela na vida cuidado.
E de tal maneira devemos tratá-la,
que pois assi é sem mais duvidar
que ela nos espera em todo lugar,
devemos nós outros tambem d' esperá-la.
Devemos às vezes per nós desejá-la,
conformes com Deos em nossa desculpa,
porque a longa vida sem mais a prová-la
pola maior parte tem sempre mais culpa.
Que sendo compostos daqueste metal,
que sempre desejamos o qu' ee sem midida,
nunca tanto bem fazemos na vida
que mais nam façamos naquela de mal.
Crece naquesta cobiça mortal,
raiz e começo de todolos vicios,
abre-se mais o caminho infernal,
quando se çarram os boons eixercicios.
Tornando pois logo aquesta certeza
que todos ũa vez morrer nos convem,
esforçar-nos devemos fazê-lo tam bem
que a morte sintamos com menos tristeza.
Esta tomemos com toda firmeza,
pois ha-de vir de necessidade,
menos sintiremos a sua crueza,
quando a recebermos com boa vontade.
Antigos enxempros a parte deixados,
sem os alheos querer memorar,
os mortos em Canas deixemos estar,
com outros mil contos, que sam ja passados,
deixem de ser aqui relatados.
Abaste falar nos possuidores
desta nossa terra, que dela abaixados
foram assi coma pobres pastores.
Que se fez daquele que Ceita tomou
por força aos mouros com tanta vitorea,
o intitulado da Boa Memorea,
que a si e aos seus tam bem governou?
As cousas tam grandes que vivend' acabou,
afora nas batalhas mostrar-se tam forte,
com outras façanhas em que s' esmerou,
nunca poderam livrá-lo da morte.
Seu filho primeiro, bom rei D. Duarte,
que foi tam perfeito e tam acabado,
reinando mui pouco, da morte levado
foe, como quis Quem tudo reparte.
Seus irmãos os Ifantes que tanta de parte
na vertude teveram polo bem que obraram,
tendo nas vidas trabalhos que farte,
com tristes socessos algũs acabaram.
O sobrinho destes, Ifante de grorea,
progenitor de quem nos governa,
que foi de vertudes tam crara lucerna,
tambem houve dele a morte vitorea.
Contodo nom pode tirar-lh' a memorea
de ser esforçado e forte na fee,
tomou este Princepe, dino d' estorea,
per força òs mouros o grand' Anafee.
O quinto Afonso nom quero calar
que, assi como teve vitorea crecida,
tantos trabalhos sosteve na vida
que lhe causaram mais ced' acabar.
Tambem acabou o filho de dar
fim eesta vida de tanta miserea,
no qual determino ũu pouco falar,
posto qu' emprenda mui alta materia.
Este foi aquele bom rei Dom Joham,
o mais eicelente que houve no mundo,
rei destes reinos, deste nome o segundo,
humano, catolico, sojeito aa razam.
Do qual mui bem creo, sem contradiçam,
julgando sas obras e como morreo,
que deve bem certo de ter salvaçam,
pois tam justamente sempre viveo.
Foe em vertudes tam escrarecido
que é mui deficil poderem-s' achar
louvores que possam cos seus igualar,
tam grandes assi como tem merecido.
Mas posto que fosse de todo comprido
de grandes bondades em que froreceo,
algũ louvor seu direi, nom fingido,
que seraa mais baixo do que mereceo.
Teve nas cousas de Deos eicelencia,
aquelas amava, honrava, temia,
em fabricas santas mui bem despendia
assaz largamente com manificencia.
Com justa medida e gram providencia,
suas esmolas mui bem repartia,
quem se prezava de santa ciencia
muito por certo ant' ele valia.
Nom sei com que lingua dizer se podia
como era grande e em todo manifico,
desejava ter mais o seu povo rico
que ele de o ser prezar-se quiria.
Por estas taes obras que sempre fazia,
a sua nobreza bem crara se vê,
havia por perda passar-s' algũu dia
sem que naquele fezesse mercê.
Jamais nos antigos, modernos, que leo,
s' achou outro tal em liberalidade,
partia com todos com tanta vontade
que nunca em nobreza oo mundo tal veo.
Segue-se logo daqui, como creo,
que havendo-se nisto assi grandemente,
que mal poderia tomar o alheo,
pois o seu dava de tam boamente.
Era ũ mesmo no prazer e na sanha,
das cousas virtuosas havia cobiça,
a todos igualmente fazia justiça
sem se lembrarem as teas d' aranha.
Era timido e amado em Espanha
e tal que nam sendo pera rei nacido,
segundo a sua vertude tamanha
devera pera isso de ser escolhido.
Que desta maneira estaa confirmado
que o rei e o princepe que ha-de mandar,
pera os outros saber emmendar,
deve primeiro de ser emmendado.
Este na vida foe tam acabado
que ele soo era a propia lei,
pera cada ũ viver castigado
sem mais outra regra nenhũa de rei.
Os princepes boons por seu boom viver
enxempro tomavam do bem que faziam,
os maaos isso mesmo por ele sabiam
as cousas que bem deviam fazer.
Deste devemos por certo de crer
que, ainda que cá muitos anos vivera,
na força do corpo podia envelhecer,
mas nunca d' alma velhice tevera.
Os reis que vierem para bem rejer
tomar devem deste enxempro geral,
pois é muito certo que aqueste foe tal
qual prometiam os outros de ser.
Os seus suditos por seu merecer
a Deos por ele somente rogavam,
sendo mui certos qu' em no assi fezer
por si, por seus filhos, por todos oravam.
Era em sas obras bem temperado
que o que per palavra ũa vez pormetia
de tal maneira com fee o compria,
como se fora por ele jurado.
Nam se groriava de ter alcançado
por favor de Fortuna nenhũ bem temporal,
toda sua grorea era tê-lo guanhado
por algũa vertude e bem divinal.
Com lijonjeiros mui pouco folgava,
eram os seus conselhos mui sãaos,
mostrava-se humano òs qu' eram meãaos,
os grandiosos e vãaos despreçava.
A vertude per obra mais exercitava
que nom por palavras nem outras maneiras,
as cousas do mundo assi as amava
que nam s' esquecia das mui verdadeiras.
Tinha prudencia, tambem fortaleza,
amava justiça com gram temperança,
fee, caridade, tambem esperança,
nele moravam com toda firmeza.
Ornaram-no estas de grande riqueza
e nunca jamais o deixaram na vida,
na morte lhe deram tamanha franqueza
que grorea por sempre recebe comprida.
Estas que digo vertudes jeraees
assi assomadas ũ pouco deixemos,
porque é justa cousa tambem que falemos
nas particulares e mais especiaes;
as quaes conhecidas por muito reaes,
sendo a todos assi manifestas
ainda fez outras mui grandes e mais,
que eram maiores por serem secretas.
Daqui se consire na ordem que dava
em pagar divedas que seu pai devia,
pois como as suas ja mal pagaria
quem tam grandemente as alheas pagava?
Jamais dele orfãao nenhũ se queixava,
a todos por inteiro mui bem se pagou,
com pagas dobradas vi eu que pagava
a prata das igrejas qu' entam se tomou.
Pois em Castela, ahi nessa guerra,
se foe esforçado, mui bem se mostrou,
depois da batalha no campo ficou,
os mortos naquela metendo sô terra.
Tambem nessas pazes, s' a pena nam erra,
foi mui prudente e mui sabedor,
os meos tomando dos vales e serra,
que nestes consiste vertude maior.
Nam menos no reino por este teor,
no tempo que foe aquela discordia,
usou mais com eles de misericordia
do que nisso fez com justo rigor.
Era temido dos seus com amor
e a Deos temia com todo querer,
que, quando o rei de Deos tem temor,
entam o soemos mui mais de temer.
Com animo grande d' esperas reaes,
abrio o caminho de todo Guinee,
mais por crecer a catolica fee
que nam por cobiça dos bens temporaes.
Com ela fez rico os seus naturaes,
os infies trouxe haver salvaçam,
pois obras tam justas e tam devinaes
seram sempre vivas segundo razam.
S' em todo o ponente se sente gram grorea
por serem as Indias a nós descubertas,
ele foe causa de serem tam certas
e tam manifestas por nossa vitorea.
Pois é sua fama a todos notoria,
culpem-me muitas e mais d' ũa vez,
se dele nam faço aquela memorea
que justa merecem os feitos que fez.
A fim ja chegada de sua partida,
sendo de todas a cousa mais forte,
ja muito cerca da hora da morte
nam s' esqueeceo das obras da vida.
Tendo a candea ja quasi pedida,
a pena na mãao tremendo tomava,
e com moderada justiça de vida
tenças, mercês, padrões assinava.
Seus males e culpas gemendo com dor,
partio desta vida na fee esforçado,
polo qual creo que outro reinado
possui lá com Deos muito milhor.
Fez fim no Algarve, na vila d' Alvor,
no decimo mês aa fim ja propinco,
sendo da era de Nosso Senhor
quatorze centenas noventa mais cinco.
Com grande cirimonia a Silves levado,
dali foi dos seus que o muito sentiam,
quem antes ũ pouco as jentes seguiam
ali ficou soo de todos deixado.
Ó Morte, que matas quem é prosperado,
sem de fermoso curar nem de forte,
e deixas viver o mal aventurado
porque vivendo receba mais morte!
Dali a tres anos, nom bem precedentes,
foi com gram festa daqui trespassado
e posto no lugar qu' está deputado
em ser manseolo dos nossos regentes.
Quer Deos dali dar a muitos doentes
comprida saude, tocand' onde jaz,
em serem os Anjos com ele contentes,
nos é manifesto nas obras que faz.
Fez isto por ele o mui poderoso
Rei eicelente Manuel o primeiro,
quem ele deixou socessor verdadeiro
como rei justo e mui vertuoso.
Soube este Princepe mui animoso,
que hoje governa com tanta medida,
pagar-lhe na morte coma piadoso
o bem recebido daquele na vida.
Se honras, riquezas, vertudes, poder
poderam alguem da morte livrar,
este justo Rei, sem mais altracar,
nunca jamais poderá morrer.
Mas pois qu' assi é que os boons ham-de ser
tambem sepultados, a vida deixando,
quanto mais devem os maaos de temer
que sempre jamais viveram pecando.
A grorea de Deos de tanta eicelencea
nam busca ninguem, sendo tam preciosa,
mas a do mundo, que é tam enganosa,
buscam nos homens com gram diligencea.
Oh como é de gram priminencia
quem põe em soo Deos seu amor e querer!
Quem o mundo nom ama com toda crencia
nam tem nele cousa que possa temer.
Seja nossa culpa de nós conhecida,
enquanto vivemos, façamos pendença,
que sem na fazermos, segundo sentença,
havermos na morte perdam se duvida.
Por santos doutores é mui repitida
aquesta doutrina que ver nos convem,
que quem sempre mal viveo nesta vida
é muito deficil poder morrer bem.
O eterno Deos com justa balança
permite com grande rigor e mui forte
que s' esqueça de si na hora da morte,
quem d' Ele na vida nam teve lembrança.
No bem que fazemos, tenhamos fiança,
que per suma justiça estaa ordenado
que sempre careça de toda folgança
quem nunca jamais careceo de pecado.
Fim.
Pois desprezemos o breve prazer,
que logo se converte em grave tristeza,
que mui facilmente o mundo despreza
aquele que cuida que ha-de morrer.
Quem firmemente aquesto tever
nas cousas de Deos será mui costante,
por bem aventurado se deve d' haver
aquele que a morte tem sempre diante.
334
DE DIOGO BRANDAM, ESTANDO
AUSENTE DE SUA DAMA,
ENDERENÇADAS A AN‑
RIQUE DE SAA.
Depois, senhor, que forçado
me trouxeram caa cativo,
ando tam desesperado
que nam vivo.
E sabês bem que conforto
se m' ordena?
Que por ser mor minha pena
nam sam morto!
Se o fosse, acabariam
minhas dores mais que fortes,
e meus olhos nam veriam
tantas mortes.
Mas, pois deste bem careço
sem ventura,
verês nesta a trestura
que padeço.
Mas naqueste triste canto
tende vós certo por fee
que nam posso dizer tanto
como é.
E pois terço do que sento
nam diria,
julgue vossa fantesia
meu tormento.
Que nenhũ nam foe tamanho
de passado nem presente,
é ũ grande mal estranho
ser ausente!
Que com este qu' em mim jaz
me comporia,
se eu visse cada dia
quem mo faz.
E com este apartamento
sem s' apartar minha vida,
é o meu padecimento
sem medida.
E aquesta dor presente,
que m' aqueixa,
jamais viver nam me deixa
antre jente.
E vou-me por esses montes
desastrado sospirando,
os meus olhos coma fontes
vam chorando.
Das lagrimas desmedidas,
verdadeiras,
vam as aguas das ribeiras
mui crecidas.
Depois me dexo nos vales
com tençam que me descansem,
mas antes crecem meus males
que s' amansem.
Os doces cantos das aves,
mui suidosos,
assi me sam amargosos
como graves.
Os frescos prados e rios
que mil vidas a mi ventam,
muito mais meus desvarios
acrecentam.
Que minhas desaventuras
lastimeiras
nam se curam com frescuras
das ribeiras.
Nem as tristezas oos pares,
que meu viver desajudam,
por mudar muitos lugares
nam se mudam.
Porqu' amor, qu' assi me trata,
vai comigo,
que m' ee tam cruel imigo
que me mata.
Bosques que se vam oo ceo
em grandeza e crecimento
me causam beber ũ veo
por tormento.
Pois as fontes que manavam
dos roquedos
minhas sospeitas e medos
mais dobravam.
Arvoredas, qu' eixcediam
grandes alturas e costas,
de donde os deoses soiam
dar repostas,
sendo muito graciosas
e prazentes,
em ar ver vejo serpentes
espantosas.
Par' òs desertos fugia
bradando com meus cuidados
e eu soo me respondia
a meus brados.
Oh quem das leteas aguas
se fartara,
porque mais se nam lembrara
destas magoas!
Dos olhos e coraçam
gram demanda nom se parte,
ambos bem culpados sam
que lhes farte.
Quem foi disto ocasiam
bem se vio,
pene, pues que consentio,
com razam.
Mil desatinos nam digo
que neste tempo fazia,
s' alguem topava comigo
m' avorrecia.
Simulava em nos vendo
meu morrer
e fingia ter prazer
nam no tendo.
Mas era bem conhecida
minha dor, que nam tem cura,
que nunca cousa fengida
muito dura.
E nos sinaes que fazia
de mortal,
viam bem o grande mal
que padecia.
Grande compaixam e doo
haviam de mi aqueles,
mas eu folgava mais soo
que co eles.
Em seus conselhos prudentes
e nam vãaos
vi que bem conselham sãaos
os doentes.
E querem que coma bem
com confortos que me dam,
mas mui mal come ninguem
com paixam;
e pior dorme sintindo
tantos danos.
Parecem-m' as noites anos
nam dormindo.
Trabalho nestes casais
por dormir de quebraantado
e isto tenho de mais:
velar cansado.
Desvelado de tal sorte
ando assi
que s' espantam mais de mi
que da morte.
Esta nam me satisfaz,
por ser tam desordenada,
que toda cousa que faz
vai errada:
que mata com mal sobejo
quem a nom quer
e a mim deixa viver
que a desejo.
Por aqui podês julgar
a vida que tenho agora,
bem ma podia mudar
minha senhora!
Ajudai-me polo amor
qu' em vós fica,
pois sabês bem como pica
esta dor.
E pois a tenho crecida,
algũ remedeo se cate,
esta seja dar-m' a vida
ou me mate.
E se mais com morte dar
se contenta,
outra vida m' acrecenta
em me matar.
Fim.
E desta sorte, de caa
me parto sem meus sentidos,
que todos me ficam laa
bem perdidos.
Hajam de vós gasalhado,
pois sam vosso
mais do que dizer nam posso
de penado.
335
CANTIGA SUA.
Que saiba bem na verdade
receber de vós tormento,
quero dar consentimento
ò que quer minha vontade.
Quero descobrir por mim,
pois mais nam posso sofrer,
o que s' houvera de ver
mui cedo com minha fim.
E pois que vós, na verdade,
soes causa do mal que sento,
quero dar consentimento
ò que quer minha vontade.
336
OUTRA SUA.
Que viva neste cuidado
e me veja padecer
triste vida por querer,
muito mais vivo penado,
quando nam sam namorado.
Destas ambas se m' ordena
dobrado mal e fadiga,
pois cada ũa m' obriga
a sempre viver em pena.
Que seja desesperado
e padeça por querer
vida pior que morrer,
muito mais vivo penado,
quando sam desnamorado.
337
OUTRA SUA.
Sempre m' a Fortuna deu
tristezas com que nam posso,
des que deixei de ser meu
polo ser de todo vosso.
Que depois que vos servi
com tal firmeza, senhora,
nunca de vós ategora
nenhũu bem ja recebi.
Des entam padeci eu
mil males com que nam posso,
porque deixei de ser meu
polo ser de todo vosso.
338
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Nam falando, mas morrendo,
confessaram.
Os que logo decrararam
suas dores em querendo,
muitas vezes s' estimaram,
mas muito mais obrigaram
aqueles que padecendo
nam falando, mas morrendo,
confessaram.
Bem podem dizer fingidos
seus amores os primeiros,
mas aquestes ja vencidos,
pola morte conhecidos
sam seus males verdadeiros.
Ja se muitos confortaram
em suas penas dizendo
e disso se contentaram,
por tanto mais obrigaram
aqueles que padecendo,
nom falando, mas morrendo,
confessaram.
339
CANTIGA EM QUE ESTÁ O NOME
POR QUEM SE FEZ, POLAS PRI‑
MEIRAS LETRAS DELA.
Do grande mal que causaram
Os olhos, quando vos viram,
Nestes dias o pagaram
Afora quando partiram.
Vida qu' assi atormenta
Ja melhor se perderia,
O penar, que s' acrecenta,
Ledo morrer me faria.
As lagrimas que se dobraram
No coraçam se sintiram,
Todas meus olhos choraram
Em vendo que nam vos viram.
340
GROSA DE DIOGO BRANDAM A
ŨA CANTIGA QUE DIZ: DE MI
VENTURA QUEXOSO.
Pues esperança perdida
tengo ya d' haver reposo
com muerte tam conocida
biviré toda mi vida
de mi ventura quexoso.
Y no teniendo segura
la vida por lo que siento,
yo triste sim ventura
me halho com mi tristura
de quien m' agravia contento.
Mi fe me manda que crea
no ser siempre desdichoso,
mas el mal que me possea
me haze que sempre sea
de mi remedio dudoso.
Assi bivo em desconcierto
com mui grave sentimiento,
de dolores no desierto,
por ser de mi bien incierto
y no de mi perdimiento.
Amor su fuerça mostroo,
porque libre no biviesse,
y porque más penasse yo
quiso logo e ordenoo
mi ventura que os viesse.
Y vista la perfeicion,
que más non pode falharse,
com voluntad y razon
el vencido coraçon
consentió que os amasse.
Assi que vuessa beldad,
porque más pena me diesse,
ordenó mi voluntad
querervos com lealtad,
y que vuessa bondad fuesse
tod' el mal de mi porfia
y que delha se causasse
ser triste la vida mia,
y em fim qu' elha seria
la muerte que me matasse.
Com dolor desesperando,
de mis bienes deseoso,
com mis males peleando,
em mi desdicha pensando,
assi bivo temeroso.
Que no puedem muchos anhos
tirar mis penas sin coento,
mas con todos estos danhos
me veo com mis enganhos
amigo del mal que siento.
Y por serdes vos el mal
com que bivo tam lhoroso,
no me da por causa tal
ser com pena desigual
de mi remedeo dudoso.
Puse sempre em vos amar
todo mi entendimento,
y vos, por más me matar,
havés de mi bien pesar
y no de mi perdimiento.
341
CANTIGA.
Pois tanto gosto levaes
com minha morte sabida,
pera me matardes mais
me devês dar esta vida.
Que desta sorte vivendo,
mil mortes receberei
e d' estoutra viverei
em ũ só dia morrendo.
E pois que tanto folgaes
com morte tam conhecida,
pera me matardes mais
me devês dar esta vida.
342
OUTRA SUA.
Vejo tanta pressa dar
a meu mal, que tal me tem,
que nam pode ja meu bem
a nenhũu tempo chegar,
que me possa aproveitar.
Porque sendo mui crecido,
sem a dor ser conhecida,
o seu remedeo comprido
é ja com perda da vida.
Pois se pode mal curar
o mal que tal força tem,
como pode ja meu bem
a nenhũu tempo chegar,
que me possa aproveitar?
343
OUTRA SUA.
Nam seria tam mortal
minha dor sem esperança,
se juntamente meu mal
de mim tomasse vingança.
Mas por mais m' atormentar
nesta vida de tristura,
me mata tam devagar
por maior desaventura.
Será sempre desigual
minha dor sem esperança,
pois juntamente meu mal
de mim nam toma vingança.
344
A ŨA SENHORA QUE LHE
DEU ŨU NOME DE JESU,
QUE SE TOMAVA
POR ELA.
O nome da perfeiçam,
que tomei com devaçam,
no meu livro s' apousenta,
mas o qu' ele representa,
que é o bem que m' atormenta,
tenho eu no coraçam.
345
TROVAS QUE FEZ DIOGO BRAN-
DAM E Ũ SEU AMIGO, PAR-
TINDO AMBOS DONDE ESTA‑
VAM SUAS DAMAS, QUE
ERAM TAMBEM AMIGAS
E MORAVAM AMBAS
EM ŨA CASA.
Foram as nossa jornadas,
depois de sermos partidos,
muito passo caminhadas
e mui rijo sospiradas
com gemidos.
Fomos o primeiro dia
sem nos podermos falar,
nosso gram mal o fazia
e tambem no-lo tolhia
o chorar.
Recobrámo los sentidos
sendo ja noite fechada,
assi chegámos perdidos,
com nossos nojos crecidos,
à pousada.
A cear nos assentámos
tam tristes como partimos,
do comer pouco gostámos,
nũa cama nos lançámos,
sem dormirmos.
Outro dia levantados,
com nossos males contentes,
com lembrança dos passados
nos doiam mais dobrados
os presentes.
Tamanhas dores causavam
que é impossivel dizê-las,
os remedios que nos davam
muito mais nos renovavam
as querelas.
Mais nos matava lembrança
que o tempo que fazia;
nossa pouca confiança
nam nos dava esperança
d' alegria.
Feriam como cuitelos
nossos males mui inteiros,
os sospiros nom singelos
dobravam como martelos
de ferreiros.
Toda cousa de prazer
era pera nós tristeza,
e com este tal viver
crecia nosso querer
com firmeza.
Ja queixar-nos nam queremos
de nossa costolaçam,
pois pela causa devemos
de sofrer estes estremos
com razam.
Os receos mais creciam,
as sospeitas nom minguavam,
e todos quantos nos viam
muito de nós se doiam
e magoavam,
porque craro conheciam,
polos de fora sinaes,
as que de dentro jaziam,
dores que nos perseguiam
desiguaes.
Fogiamos de povorados,
da vida mui pouco certos,
folgámos desesperados
com caminhos nom usados
e desertos.
Nosso triste pensamento
ali nunca repousava,
nam sei como tal tormento
e tamanho sintimento
nam matava!
Mas pois desta pena tal
nam morremos aa partida,
é muito certo sinal
guardar-se pera mais mal
nossa vida.
Mas nam sei que pode vir
ja pior do qu' ee passado.
Oh que cousa de sentir
haver homem de partir
namorado!
Fim
E foram daquesta sorte
as jornadas fenecendo,
fora cousa menos forte
acabá-las ja com morte
que vivendo.
Senti ja o que sintimos
por tamanho bem querermos,
piedade vos pidimos,
pois que tantas penas vimos,
por vos vermos.
346
CANTIGA SUA.
Vejo tanto desengano
que nom tenho confiança,
mas eu com fals' esperança
infindas vezes m' engano.
Comigo na fantesia
mil vezes tenho cuidado,
cuidando se poderia
ter ũu dia descansado.
Por ver tanto mal e dano
tenho pouca segurança,
mas eu com fals' esperança
infindas vezes m' engano.
347
VILANCETE SEU.
Se descanso receberam
meus olhos, quando vos viram,
dobrada pena sintiram.
O falso contentamento,
que logo nisso tomaram,
mui de verdad' o pagaram
com pena do pensamento.
Assi que s' eles fezeram
algũ bem, quando vos viram,
dobrada pena sintiram.
348
PREGUNTA DE DUARTE DA
GAMA A ELE.
Pois que todolos nacidos
somos sojeitos nacendo,
de nós e d' outrem vencidos,
sem querer nada querendo,
pregunto qual sojeiçam
é maior das sojeições
e qual dá maior paixam
e se podem ser ou nam
nũ corpo tres corações.
Reposta sua.
Sojeiçam dos sometidos
às estrelas, em vivendo,
é maior qu' a dos perdidos
que d' amores vam gemendo.
A natural condiçam,
custumada em afrições,
causa menos afriçam
e ja vi d' emprenhidam
parir dous filhos barões.
349
DE RUI GONÇALVEZ DE CAS‑
TEL BRANCO A ELE.
Sem vossa galantaria
esta corte estava soo,
qu' era para haverem doo
de tanta sensaboria.
Da noite se torna dia
pola vós alumiardes,
qu' abasta para a salvardes
soo vossa sabedoria.
E pois vossa perfeiçam
é perfeita e acabada,
a esta pregunta errada
dai, senhor, a concrusam:
Porque com rei justo e santo
medram os que taes nam sam
e os dessa condiçam
muito menos e nam tanto?
Reposta.
Vai assi d' altenaria
tam sobido vosso voo
que nam sei quem sendo Joo
em saber responderia.
Sem falar lijunjaria,
como vós em me louvardes,
nacestes soo pera dardes
os remedeos desta via.
Mas pois temos a rezam
de doutores aprovada,
que tem Deos sem arrar nada
o coraçam do rei na mãao.
Desta concrudo qu' em quanto
é de Deos a permissam,
o rei nam faz sem razam
com quanto nos faz espanto.
350
CANTIGA SUA.
Em esta vida mortal
nom ha i prazer que dure,
nem menos tamanho mal
que por tempo nam se cure.
Assi bem aventurados
casos, bem acontecidos,
coma outros desastrados,
tam cedo como passados,
sam de todo esquecidos.
É ũa regra geral
nam haver i bem que dure
nem menos tamanho mal
que por tempo se nam cure.
351
OUTRA SUA.
Tantas novidades tem
esta vida, cada dia,
que nam descansa ninguem
nem repousa a fantesia
com quantos males lhe vem.
Quando mais libres se sentem
os corações de cuidados,
entam nacem mais dobrados,
de lugares nom pensados,
porque mais nos atormentem.
Se per dita temos bem,
tanto mal no-lo desvia
que nam descansa ninguem
nem repousa a fantesia
com quantos males lhe vem.
352
VILANCETE SEU A
NOSSA SENHORA.
Rainha celestrial,
repairo de nossas dores,
grandes sam os teus louvores!
Senhora, como naceste,
tua vertude foi tanta
qu' aquela embaxada santa
com grande fe mereceste.
Tam continente viveste
que nom bastam oradores
recontar os teus louvores.
A mercê que percalçaste
nossa vida repairou,
pois com teus peitos criaste
Aquele que Te criou.
Foste causa que mudou
o gram Senhor dos senhores,
em prazer as nossas dores.
Por em Ti ser encarnado
e por seres sua madre,
o nosso primeiro padre
foi dos tormentos livrado.
Somos livres de pecado,
quando queres dar favores
òs que sam teus servidores.
Ó fonte de piadade,
madre de misericordia,
quem de Ti nam faz memoria
vai mui longe da verdade.
Es chea de caridade
e de tamanhos primores,
que sam grandes teus louvores!
Mitiga nossos tormentos
que com tantos males crecem,
pois nossos merecimentos
sem os teus nada merecem.
Socorro dos que padecem,
que sejamos pecadores,
faze-nos merecedores.
Fim.
E assi por teu respeito
dina Virgem e decora,
faze que hajam efeito
as nossas preces, Senhora;
que se nos deixas ũa hora
a nossos persiguidores,
nam teremos valedores.
353
ESPARÇA SUA.
Nam vos enganês, senhora,
nos desenganos que daes,
porque com eles causaes
que vos queira muito mais
o triste que vos adora.
Devês buscar outro modo
para vos mais descansar,
este nam podês achar
sem me matardes de todo.
354
CANTIGA SUA.
Passo secreta tormenta
que soo comigo se sente,
mas o que mais m' atormenta
é mostrar-me descontente
de quem muito me contenta.
Dessimulo que nam vejo
quem folgo muito de ver,
é ũ mal muito sobejo
mostrar contrairo desejo
do que desejo fazer.
Assi que passo tormenta
de nunca viver contente,
mas o que mais m' atormenta
é mostrar-me descontente
de quem muito me contenta.
355
OUTRA SUA.
Pois que tem comigo guerra
vontade, razam e siso,
asinha serei sô terra,
porqu' o reino em si deviso
mui prestamente s' aterra.
Todos sam desacordados
pera descanso me darem
e muito bem acordados
pera nunca me deixarem
meus males e meus cuidados.
Se se nam muda tal guerra,
fazendo paz emproviso,
asinha serei sô terra,
que o reino em si diviso
mui prestamente s' aterra.
356
CANTIGA SUA.
Senhora, nam vos temaes
que nam tenha o bem qu' espero,
que nam quero o que vos quero
pera que me vós queiraes.
Somente por vos pagar
camanho bem foi olhar-vos,
porque soo em contemprar-vos
m' acabo de contentar.
Por isso nam vos temaes
nem vos dê do bem qu' espero,
que nam quero o que vos quero,
pera que mo vós queiraes.
357
CANTIGA SUA.
De tal maneira me sento,
co a dor que me conquista,
que me daes com vossa vista
prazer e tambem tormento.
Donde, por este respeito,
m' afirmo que pouco sabem
os que dizem que nam cabem
dous contrairos nũ sojeito.
Tenho gram contentamento
deste mal que me conquista
e tambem sento tormento,
senhora, com vossa vista.
358
DE JOAM RODRIGUEZ DA SAA A
DIOGO BRANDAM, MAN‑
DANDO-LHE ŨU
MANDIL.
Quando o jenro d' ũ tetrarca
nam desdanha de peitar,
que se deve d' esperar
d' ũ contador de comarca,
eleito pera medrar?
E por isso esse mandil,
que vem da regiam china,
nam é mandil, mas doutrina,
para vós, que soes sotil.
Reposta de Diogo
Brandam
polos consoantes.
O presente foi de marca
para tropo s' estimar,
no mais nam ha que falar,
que quem quer encher sua arca
parte dela ha-de vazar.
Siguirei, se nam for vil,
senhor que tam bem ensina
que, sendo tam juvenil,
nos feitos de cousa dina
é Nestor e lá ora mil.
359
DIOGO BRANDAM EM
ŨA PARTIDA
Meus dias tam tristes por esta partida
seram pera sempre com pena tam forte,
que acabará milhor minha vida,
porqu' atalhará meus males a morte.
Mas pois o ordena assi minha sorte
e quer que tal vida padeça vivendo,
ouvi minha dor, de mi vos doendo,
porque parte dela com isso conforte.
Sendo levado da parte d' alem,
postos os olhos nas vossas moradas,
chorei tantas lagrimas qu' em Jerusalem
tantas nom foram nem tam derramadas.
Minhas tristezas ali memoradas,
que mais crecentavam a minha paixam,
dos tristes sospiros de meu coraçam
estavam as jentes todas pasmadas.
Juntavam-se muitos, faziam gram moo,
quando me viam naquele cuidado,
estando com todos estava tam soo
como se fora nũ ermo lançado.
Era de muitos ali lamentado,
ja meus imigos de mim se doiam,
outros com magoa grande diziam:
—Olhai quem podesse ja ser namorado!
Por meu enxempro tomavam castigo,
juravam que nunca mais damas servissem,
mas eu dizia, falando comigo,
qu' aquilo seria se nunca vos vissem!
E lhes afirmava que tanto sintissem,
vendo a vossa mui grã perfeiçam,
que de cuidados, com muita paixam,
todas sas vidas jamais se partissem.
Dali me parti dond' eles estavam
ou me levavam aqueles com qu' ia,
se nesse caminho algũs me falavam,
bem sem preposito lhes respondia.
Muitos daquestes estremos fazia,
em soo sospirar descanso tomava,
nam era tamanha a dor que mostrava
como a grande que dentro sintia.
Meus olhos mais agua que fontes lançavam
mui grandes gemidos a voltas saiam,
meus tristes sentidos jamais repousavam,
mas antes seus males dobrados sintiam.
Prazer e descanso de mi se partiam,
a contra daquestes comigo ficava,
se minha firmeza esperança me dava
vossos desfavores matar-me queriam.
A pena crecida maior se fazia
por ver tam incerta minha esperança,
menos mil vezes a morte temia
que nom a graveza de sua tardança.
A razam me dá mui gram confiança
de minhas tristezas haverem ja fim,
mas a Ventura que é contra mim
jamais nam me deixa haver segurança.
Resestir meu cuidado com pena quiria,
buscando maneiras d' amor apartar-me,
estonces mais preso tomado me via,
quando buscava razões de livrar-me.
S' achava confortos algũs de salvar-me,
achava mil males que me condenavam,
assi qu' em lugar de fugir me levavam
meus grandes desejos a mais cativar-me.
Comparaçam.
Assi como quando se sentem tomar
as aves nos laços e redes armadas,
quando trabalham por mais se soltar,
acham-s' entam mui mais enlaçadas.
Desta maneira sento tomadas
todalas forças com todo poder,
que, se me nam vale quem me pode valer,
seram minhas dores per morte acabadas.
Este desejo sem mais dilatar,
porque se acabem meus tristes cuidados,
nam quer minha dita em tal outorgar,
porque os tenha vivendo dobrados.
Seram meus sentidos por sempre penados,
pois contra mim o mal se concerta,
a morte queria, pois é muito certa
folgança daqueles que sam tribulados.
Impossivel seriam as dores contadas
passei nestes dias de grandes tormentos,
foram mal dormidas e bem sospiradas
as noites daquestes com mil pensamentos.
Com a morte e vida naquestes tormentos
guerra rompida, cruel padecia:
com a morte, senhora, que nam me queria,
e eu menos a vida com taes sintimentos.
Ganhando mais males, perdend' alegria,
fizeram fim as tristes jornadas,
mas nam as tristezas e grand' agonia
que sempre me foram per vós ordenadas.
Nem podem por tempo ser remedeadas
como mil outras doenças que vem,
porque o soo remedeo que tem
é pola causa que foram causadas.
Fim.
E pois o poder é em vós de salvar-me,
querei haver ja de mim compaixam,
nam levês gosto assi de matar-me,
pois moiro por vós com tal devaçam.
Havei piadade de tal perdiçam,
querei dar remedeo a tam triste vida,
porque vos nam hajam por desconhecida
e eu que nam moira tam sem galardam.
360
ESPARÇA SUA.
A
ũa senhora, que se cha‑
mava da Costa.
Quem bem sabe navegar,
pola vida segurar,
a esperança tem posta
dentro no pego do mar.
Mas aqui por se salvar
deve certo vir à costa,
porque, posto que naquela
de vivo se veja morto,
ganha-se tanto por vê-la,
qu' ee milhor perder-se nela
que salvar-se noutro porto.
361
FINGIMENTO D' AMORES FEITO
PER DIOGO BRANDAM.
Eram da sombra da terra
as nossas terras cubertas,
quando parecem desertas
as habitações sem guerra;
ao tempo que repousam
os corações descansados
e os malfeitores ousam
cometer mores pecados.
Os nove meses do ano
eram ja quasi passados,
quando eram meus cuidados
crecidos por mais meu dano.
E assi com mal tam forte,
mais crecendo minha fee,
vi passar alem do pee
as Guardas do nosso Norte.
Se dormia, nam sei certo,
se velava, muito menos:
com meus males nam pequenos
nem durmo nem sam desperto.
Nam m' estrevo de torvado
dizê-lo, nom sei se cale,
dali me senti levado
e posto nũ fundo vale.
Ó divina sapiencia,
de todos tam desejada
e de mim pouco gostada
por nom ter suficiencia,
faze-me tam sabedor
que possa dizer aqui,
com favor de teu favor,
as grandes cousas que vi!
Por este vale corria
ũa tam funda ribeira
que estando junto da beira
escassamente se via.
Tanta tormenta soava
naqueste lugar eterno,
que se me representava
quanto dizem do inferno.
De mui escura neblina
era o ar todo cuberto,
devia ser dali perto
o lugar de Proserpina.
O fogo sem s' apagar,
o mal sem comparaçam,
podiam bem demostrar
o dominio de Plutam.
Nom vi camaras pintadas
com ricos patins de fundo,
dos ricos daqueles mundo
por demasia buscadas.
Nem vi suaves cantores
com vozes mui acordadas,
mas mui discordes clamores
das almas atormentadas.
Nom vi aves mui suidosas
que cantassem docemente,
mas bradavam fortemente
serpentes mui espantosas.
Ali prazer nom senti,
antes descontentamento,
toda cousa qu' ali vi
era para dar tormento.
Dali quisera salvar-me
do que via temeroso,
e das armas do medroso
juntamente proveitar-me.
Mas achar nam pude via
pera me poder salvar,
entam mostrei valentia
para mais me condenar.
E sem fazer a vontade
nem esperar por saude,
quis ali fazer vertude
da minha necessidade.
E tambem por ser sem falha
esta verdade que digo:
qu' os que fojem na batalha
passam sempre mor perigo.
E como faz quem peleja,
vendo-se desesperado.
por honra tomar forçado
a morte que ja deseja,
assi me fui juntamente
donde o fogo mais ardia,
por viver honradamente
ou morrer como devia.
Assi de todo mudado
ali junto me cheguei
e neste modo falei
assaz bem temorizado:
— Ó jentes atribuladas,
porque razam de vós dê,
dizei a causa porquê
sões assi atormentadas.
Logo de todo cessaram
daqueles grandes tomultos
e com mui disformes vultos
para mi todos olharam.
E logo s' alevantou
dantre todas ũa delas
e sem culpar as estrelas
desta maneira falou:
— Este pranto, tam durido,
de tantas tribulações,
sam os justos galardões
dos sequazes de Cupido.
Que por lhe sermos leaes
tantas mortes nos perseguem
que nossas dores mortaes
som mui mais das que se seguem.
Penamos polas folganças
que vivendo procurámos,
qu' ee impossivel que hajamos
duas bem aventuranças:
que seria grand' estorea
e juizo mui profundo
levar lá prazer no mundo
e nestoutro tambem grorea.
Somos passados de frio
em grandissima quentura,
a vida nam tem segura
quem bebe daqueste rio.
Que neste fogo penados
sejamos sem esperança,
mata-nos mais a lembrança
dos prazeres ja passados.
Polo qual, se tu quiseres
ser livre de nosso mal,
trabalha quanto poderes
por fugir caminho tal.
Sempre te guie razam,
governe como cabeça,
a vontade lh' obedeça
sem outra contradiçam.
E se quereis saber mais,
porque des conta de mi,
sam ũu dos que decendi,
nos abismos infernaes.
E fui lá com tal ventura
que quanto quis acabei,
mas depois me condanei
por nom guardar apustura.
E por mais certos signaes
d' Euridice foi marido,
por ela mesma perdido
nestas penas immortaes.
Eu fui aquele qu' ouvistes
que na museca soube tanto
que fiz com meu doce canto
nom penar as almas tristes.
Aquessas outras companhas,
que penam nessas cavernas,
antigas, tambem modernas,
som de mil terras estranhas,
que jamais se passa dia
qu' aqui nam sejam trazidos.
É mui espaçosa via
a que seguem nos perdidos!
Inda bem nom acabou
de dizer estas razões,
quando com lamentações
longe de mim s' apartou.
Quisera ser enformado
daquela gente que vira,
mas dali fui rebatado
e posto donde partira.
A manhãa escrarecia,
quando com cantos suaves
nossas domesticas aves
dam sinaes de craro dia.
Polas cousas qu' ali vi
de que nada fui contente
o meu cuidado presente
de deixá-lo pormeti.
Comparaçam.
Mas fui tal dali passando
como homem que prometera
mui grandes mastos de cera
em fortuna navegando,
que, vendo-se daquela fora,
tornado jaa em bonança,
do que passou naquel' hora
nom lhe fica mais lembrança.
E como faz o doente,
a morte vendo diante,
que promete di avante
viver muito continente;
mas o medo ja passado,
é do que vio esquecido,
assi me vejo perdido
mais agora e namorado.
E bem como tem o norte
firmeza sem se mover,
espero firme de ser
na vida, tambem na morte.
Assi como cai direito
o dado quando se lança,
assi minha mal andança
nam me muda doutro jeito.
E bem com' agua do mar
nam muda jamais a cor
nem perde nunca sabor
por quantas nele vam dar,
assi eu, triste, nam posso
com mil males destes taes
deixar nunca de ser vosso,
em que sejam muitos mais.
Fim.
E pois com tanta verdade
vos sirvo com fe, senhora,
havei por Deos algũ hora
de meus males piadade.
Que se deste mal profundo
eu nam sam remedeado,
sam perdido neste mundo
e, no que vi, condenado.
DE
DIOGO BRANDAM A ANRI‑
QUE DE SAA, SOBRE QUE CHE‑
GANDO A ŨU MOESTEIRO LHE
VEO ŨA FREIRA BEIJAR A
CAPA, SEM LHE DIZER
OUTRA COUSA.
Sem vida fazer em lapa,
as vossas amigas tanto
me têm por homem tam santo
que me vêm beijar a capa.
Mas por mais minha saude,
desejo saber em cabo
se ma beijam por diabo,
se por homem de vertude.
Reposta d'Anrique de Saa.
De diabo vos seguro,
antes por homem de bem
estas senhoras vos tem,
pois nunca trepastes muro.
E por isso, ao que sento,
a beijam por ter saude,
que ham que tendes vertude
para dor d' esquentamento.
363
D' ANRIQUE DE SÁ
A DIOGO
BRANDAM, SOBRE Ũ HOS‑
PEDE QUE TINHA.
Hospede que m' avorrece
sem se temer e sem briga,
pois eu nam sei que lhe diga,
dizei-me que vos parece.
Olhando, vejo maao rosto,
se fala, sensaboria,
faz-me de noite e de dia
estar mais seco qu' Agosto.
Dizei, senhor, que merece
e tambem o qu' eu mereço,
pois que tal vida padeço
com cousa que m' avorrece.
364
DE DUARTE DE
LEEMOS A DIOGO
BRANDAM, SOBRE ŨA CADEA
D'OURO QUE TINHA SUA, QUE
LHE NAM QUIS MANDAR,
MANDANDO-LHA
ELE PEDIR.
Senhor, vossa mercê crea
que despachei mal o moço,
por nam tirar a cadea
do pescoço.
Por isso deixai andar,
de a vender sões seguro,
nam queiraes mais razam dar
per' arrancar,
porque som das presas duro.
Nem gastemos mais candea
nem venha cá mais o moço,
qu' eu afirmo qu' a cadea
eu a trarei ò pescoço.
Reposta de Diogo Brandam.
Senhor, dais-me tam má vida
que nam faço dela conta
pola cadea que monta
tanto com' a ser vendida.
O ouro que jaz em poço
a ninguem nam presta nada,
cadea dependurada,
se nam é no meu pescoço,
é pior que rematada.
S' esperança ja perdida
eu tevesse desta conta,
nam sintiria a que monta
tanto como ser vendida.
DE
LUIS ANRIQUEZ AA MORTE
DO PRINCEPE DOM AFONSO,
QUE DEOS TEM.
¡Oh pueblo de Portugal,
lhorad la triste caida
em que perdistes
vuestro senhor natural,
vuestro emparo e vida
de vos tristes!
¡Y lhorad vuestro morir
pues tenés muchas razones
y no una,
lhorad su triste partir,
bien ansi sus perfeciones
y su fortuna!
¡Oh dia tam perdidoso
de martes, que más valiera
no ser dia!
¡oh dia triste, lhoroso,
do perdimos la bandera
y nostra guia!
Em dia lheno d' aguero,
em dia tam receloso,
de partir,
partiosse nuestro luzero,
partiendo tam deseoso
de bevir.
¡Oh maldita y triste hora,
lugar, sazon y momento
desastrado,
de nuestro mal causadora
em quien nuestro bien sin cuento
fue apartado!
Cavalho, triste carrera,
pareja cruel mortal
del padeciente,
que recebió morte fera
sin poder valer al mal
la su jente.
Princepe más eicelente,
Princepe más jeneroso
no lo havia,
más fidalgo y perflugente,
más humano y vertuoso
se dezia.
Los passados ni presentes,
ni los que estam por venir
fueron iguales,
a quien las estranhas jentes
deseavan de servir
por naturales.
Animoso, muy humano
Princepe, más dadivoso
y más amado,
portugues y castelhano,
de la gram Princesa esposo
y namorado.
A quien eicelentes bodas,
fiestas, justas tam gozosas
y crecidas,
a las quales ivan todas
las jentes tam desseosas
de sus vidas.
¡Ricas ropas y colhares,
brocados, grandes baxilhas
y pedraria,
quanto gozo em los lugares,
em las cidades y vilhas
se hazia!
Ora por nuestros pecados
y males tam merecidos
falharés
grande luto em los poblados
y los lhantos muy crecidos
oyrés.
En el dia afortunado
em que mortes reecebierom
nuestras vidas,
dió caida el desseado
daquelhas que lo perdierom
doloridas.
Perdiolo su triste madre
de su vida desseosa
y de su gozo,
perdiolo el triste padre
y perdió la congoxosa
su esposo.
Más lo perdieron los suyos
criados, qu' el tanto amoo
y queria.
¿Cuyos se lhamarán, cuyos,
pues la morte les roboo
su senhoria?
¿A quien pidirés mercedes,
a quien los fijos darés,
tristes de vós?
que la perda que hoy perdedes,
cobrar no la poderés,
pues quiso Dios.
Admiracion del autor.
¡Oh desventurada, triste
noeva, cruel, espantosa,
desmaiada,
no siento quien te resiste
sin morir, morte raviosa,
haver contada!
¡Oh tu Reina, tu Princesa,
como voestros sintimientos
no sintiam
la tristura sin defesa,
las angustias y tormentos
que os veniam!
Las nuevas que lhevaran a la
Reina y Princesa.
― Esposa y madre de quien
cayo la mortal caida
del cavalho,
andad a ver vuestro bien,
antes que se vos despida
id buscalho.
Yo le dexo amortecido,
a su padre no responde
nadea, noo.
Id a ver vuestro marido,
ivos, madre, ai fijo donde
se cayo.
La partida delhas.
Solas las dos se partieron,
sin más esperar companhas,
desmaiadas,
corriendo quanto podierom,
las que levam sus entranhas
lastimadas.
Lhegando com gram dolor,
começam desta manera
gritos dando:
— Vida mia y mi senhor,
no me hablaes, fijo, siquiera ,
¿desde quando?
El triste rato del dia
y noche tam amargosa
estovieram
en el lugar do jazia
el que nunca dixo cosa
ni le oyeram.
Y despues a el segundo
dia triste em que morieram,
sin morir,
partiosse daqueste mundo
el por quien lhantos fizieron
d' escrevir.
El planto d'El Rey.
¡Fijo mio y mi amor,
vida de la vida mia,
desseada,
fijo, mi defendedor,
mi prazer, mi alegria
ya passada!
Mi dolor tam lastimero,
mi lembrança, mi passiom
sin deporte,
muerte mia com que muero,
fijo mio, mi prision
es tu morte!
¡ Muerte, que mal escogiste
em lhevar a quien lhevaste,
dexando a mim,
lhevaras al padre triste
y no a el que assi mataste
y diste fim!
¡ Oh morte triste, cruel,
carecida de piedad
sim manera,
no lhevaras triste a el,
mas a mi em crueldad
lastimera!
Fim del planto con este
dicho de David:
Circundederunt me doloris
mortis et pericula.
Cercaramme los dolores
y la muerte triste en medeo
me tomó;
cercaramme los temores
de males tam sim remedeo,
triste yo.
Los peligros del inferno
me falharam mereciente
del tormento,
pero querrás Tu, eterno,
meter aquel inocente
em tu cuento.
El planto de la Reina.
Fijo, amor de mis entranhas,
la vida de mis plazeres
y conorte,
buelvense penas estranhas,
fijo, pues la causa eres
de mi muerte!
¡ Fijo da desconsolada
madre triste que vos parió
y amava tanto,
a morte cruda, malvada,
dezaseis anhos lhevó
por mi quebranto!
¡ Fijo, amor tan desdichado,
yo la madre más coitada
que nació,
vuestra pena ha findado
y la mia trabajada
començoo!
Biviré sofrendo el trago
de la muerte, deseando,
fijo, veros;
biveré sempre nun lago
de tresturas, contemplando
el perderos.
Fim del planto con este otro
dicho del Profeta:
Laboravi in gemitu meo.
Dias, noches, biviree
trabajante em gemido
y angustura,
el mi lecho regaree
com lagrimas y sentido
de tristura.
Regaree el mi estrado
com las fuentes de mis ojos,
no cessables,
pues que triste m' han entrado
los tormentos a manojos,
lastimables.
El planto de la Princesa.
¡ Oh amor de mi querer,
querido del coraçon
más que mi vida,
començo de mi plazer,
començo de mi passion
desmedida!
¡Oh fim de todo mi bien,
venero de mi tristura
sim compas,
sola yo, diram de quien
se partió boena ventura
por jamas!
¡ Yo soy la triste veuda,
cuberta de mil tresturas,
sim abrigo,
de todo mi bien desnuda
y muy lhena d' amarguras,
sim amigo!
¡ Oo amor de muchos anhos
faltónos la piedad
ambos de dos,
mas no los terribles danhos
ni la triste soledad
que he de vos!
¡ Oh vida tam enemiga!
¡oh morte tam deseada,
que no vienes
dar manera como siga,
por quien vivo trabajada,
pues lo tienes!
¡ Doelete de mi congoxa,
doelete de mi tormento
a que no fuyo,
pues no mengua ni se afloxa,
sea mi enterramiento
con el suyo!
Prosigue el planto con este
dicho de David:
Defecerunt in dolore vita mea.
Desfalhece em dolor
mi vida con el tormento,
qu' atormenta
la congoxada de amor,
la triste, que no tem cuento
su afroenta.
Los mis anhos em gemidos
acabaram su bevir
in mal inmenso,
¡ y los mis males sobidos
no se poderám dezir
por extenso!
Fim com este dicho de Job:
Dies mei velocios transierunt.
Tan a priessa y tam trigosos
mis dias se trespassaram
mal logrados,
y com casos tam lhorosos
mis pensamientos quedaran
dessipados,
atormentantes de mim,
coraçom lheno de doelo
y d' espanto,
¿ oh porque no fago fim,
porque vivo neste suelo
de quebranto?
Fim y oraciom.
Virgem, cuya humildad
mereció ser tanto dina
que la Persona devina
quis tomar humanidad
y ser de tu ventre nacido,
por lo Qual mi alma implora
que al Padre rogadora
seas por el falecido.
366
LAMENTAÇAM AA MORTE D'EL-REI
DOM JOHAM, QUE SANTA GRORIA
HAJA, FEITA PER LUIS
ANRIQUEZ.
Chorai, Portugueses, o tam vertuoso
Rei Dom Joham, o segundo, que vistes,
tornai-vos de ledos a ser muito tristes,
pois de vós outros partio desejoso.
Nô menos vos lembre o mui animoso
Princepe, filho daqueste, defunto,
sas mortes e perdas chorai tudo junto
nô menos sa madre do triste repouso.
Ó Morte cruel, sem tempo chegada,
a ti, Lusitania, de lastima dina,
ó triste Fortuna, qu' assi nos assina
vestidos de xerga vida lastimada!
Ó patria triste, de males fadada,
chorem nos tristes de ti naturaes,
pois de tristezas têm tantas e taes
que delas qualquer grand' era chamada!
Chorai pola morte do vosso bom Rei,
chorai a partida de suas vertudes,
chorai todos esses, que nom fordes rudes,
o gram pelicano da lei e da grei!
Ó vós, seus criados, chorai como sei
o que vos havia por filhos a todos,
chorai vós aquele qu' acima dos godos
era tam certo com' ee nossa lei.
Ó Morte, que matas sem tempo e sazam,
sem ordem nem lei te governas e fazes
sem grandes caudilhos ficar muitas azes
e deixas a muitos qu' obriga razam!
É tua inorme desassulaçam
assi adversaria à humana jente,
assi o que peca com' o inocente
a todos trestornas segum qu' ouviram.
O mauno Alexandre, do mundo senhor,
levaste no tempo que mais frorecia
e quando em vertudes mais permanecia
o mui esforçado troiano Heitor,
o forte Troilos com seu matador,
Pares e Febos e El-Rei Menom,
nô menos a Pirros e Agamenom,
que dos greceanos foi emperador.
E assi t' aprouve a todos pesando
levar-nos a perla do Princepe Afonso,
leixou-nos gram dor o triste responso
que em suas honras ouvimos cantando.
O que s' esperava que fosse imperando,
tam moço de dias, tam velho em saber,
fizeste-nos orfãaos, assi de prazer,
que nossa tristeza mais crece lembrando.
E nom acabados seriam cinc' anos,
quando tu, triste, cruel e tragoa,
levaste seu padre, qu' a fam' apregoa
passar em vertudes os bravos romanos,
e guerras ferozes com os africanos fazer,
e soster em paz seu reinado,
leixou-nos sa morte gram dor e cuidado,
vestindo-nos todos de mui tristes panos.
Mas como e quando aquele Deos inmensso
premite que vá de bem em milhor
reinos e casos daqueste teor,
assi nos deixou outro que ha censo
de muitas vertudes, as quaes por istenso
se nom poderiam aqui expressar,
que haja o reino d' herdar e reinar
per muitos anos sem nenhũ dicenso.
Est' ee o mui alto e mui perflugente,
mui serenissimo Rei e Senhor
Dom Manuel, de tanto louvor,
a quem em vertudes Deos sempre acrecente.
Est' ee o filho do mui eicelente
Infante Fernando da crara memoria,
é o bisneto do Rei, que vitorea
houve per vezes de mui prepotente.
Fim.
Assi, Lusitanos, que vossa graveza
devês confortar com Rei tam humano,
em sua bondade trespassa Trajano
e outro Alexandre em grande franqueza.
Roguemos a Deos por Sua Alteza
e polas almas do filho e padre,
tambem pola vida da molher e madre,
dos que sam causa de nossa tristeza.
367
DE LUIS ANRIQUEZ, QUANDO TROXERAM
A OSSADA D' EL-REI DOM JOAM O
SEGUNDO, QUE É EM
SANTA GRORIA.
As musas, qu' envocam famosos poetas
em suas obras e doce poesia,
a estas nam chamo nem quero por guia,
caso que sejam mui justas e netas.
Ajuda demando de Quem os planetas
e ceos obedecem, desde ab inicio,
a Ele invoco, que neste eixercicio
dê parte da graça que deu òs profetas.
E pera que seja de mim alcançada
a graça superna, que eu desmereço,
Madre sagrada, a Ti ofereço
este traslado de grand' embaixada,
a qual pelo Anjo Te foi presentada
da parte d' Aquele de Quem Tu es madre,
ó filha do Filho, esposa do Padre,
per Ti medeante me seja outorgada!
Ave Maria, do Verbo morada,
gracea plena do Esprito Santo,
Dominus tecum sei Tu a nós tanto,
benedicta Tu que foste gerada,
benedictus fruitus por Quem es chamada
madre e virge por mais eicelencia;
no auto presente influi ciencia,
porque nom seja a mi comparada.
Prossigue.
Pois foi vossa vida a todos notorea,
Rei mui potente per todo universo,
vejamos da morte, em este meu verso,
per quantas maneiras soes dino de grorea.
É bem que se saiba e fique memorea
de cousa tam justa de ser memorada,
notar caronistas, poer em estorea
cousa tam nova a mi demostrada.
Morrestes na fé atam esforçado,
tam contemprativo nas cousas devinas,
tam bem empregando vossas cinco quinas,
em quem tem o reino tam assossegado.
Foi tam aceito o per vós ordenado
diante daquele juiz ab eterno,
que vos fez herdeiro no reino eterno
donde por sempre será mui louvado.
Rei santo, Rei justo, Rei dino de ser
canonizado na igreja por santo,
pois vimos milagre tam dino d' espanto
que ũu soo no mundo e este é de ler:
O rosto Trajano sem terra comer
qu' o Papa Gregorio salvou de perdido,
jentilico sendo, per Deos premetido,
soo per verdade e justiça fazer.
Pois que diremos de vós, Rei Joham,
cristianissimo, justo com obras,
jazente quatr' anos com bichos e cobras
em terra tragante, sem farta ser nam.
O caso tam dino de admiraçam,
ũu corpo humano sô terra mitido
per tanto tempo sem ser corrompido
per cheiro nem outra pior curruçam!
Sem ser diferente, vós fostes achado
da propea forma de quanto no mundo,
per mando d' Aquele eterno, perfundo
composto do cheiro do ceo enviado,
pera que fosse a nós revelado
a fé e esperança, que n' Ele tevestes,
e a gram paciencia, com que recebestes
a morte, qu' a todos nos dobra cuidado.
Pera que fosse mais craro a nós
o merecimento que tendes com Cristo,
o grande misterio, qu' em vós temos visto,
faça-nos crer que soo fostes vós,
depois de Francisco, santissimo empós
ele, segundo tal bem alcançastes,
fazendo milagres no que demostrastes
ser mui aceita voss' alma com Deos.
Fostes trazido com tanta eicelencea
per mandado do Rei, primeiro no nome,
cujas vertudes nom haa quem assome
com toda moderna, antiga ciencia.
Este foi filho na obediencia,
este nas obras nam pode mais ser,
este com lagrimas quis preceder,
no modo e forma que tem priminencia.
Foi logo segundo, após Sua Alteza,
o vosso mui caro filho e amado,
chorando na forma qu' a filho é dado,
mostrando em sa cara dobrada tristeza.
Depois nos senhores, fidalgos, largueza
de muita tristura mostraram em ponto,
muito me culpo que nam sei nem conto
o meo das cousas, segundo se reza.
Fim.
Ali vos trouxeram, u sam congregados
todolos corpos de vosso abolorio,
durante o mundo será mui notoreo
a grande memoria dos i sepultados.
O Rei Manuel, a quem os passados,
presentes, foturos nom sam d' igualar,
em grande maneira vos prouve honrar
o corpo, praceiro dos canonizados.
368
DE LUIS ANRIQUEZ EM LOUVOR DE
NOSSA SENHORA, SOBRE AVE MA‑
RI'STELA, NA ERA DE QUINHEN‑
TOS E SEIS, ESTANDO O
REINO MUI ENFER‑
MO DE PESTE E
DE FAMES.
Mari' stela, Deos Te salve,
madre de Deos tanto santa,
que sempre virgem Te canta
a igreja mui suave!
Ó tambem aventurada,
porta do ceo, mater pia,
ante secula criada,
em teus louvores me guia!
Tu, tomante aquele avé
concebeste Emanuel
por mesajem tanto grave.
Funda-nos em paz, Senhora,
pois mudaste o nome d' Eva,
todo pecador s' atreva
pedir graça qu' em Ti mora.
Tir' as presões òs culpados,
òs cegos dás craridade,
destrui nossos pecados
por tua gram piadade.
Nossos males de nós lança
dá-nos beens esprituaes,
roga polos temporaes,
segundo tua ordenança.
Amostra-Te seres madre,
recebe os rogos per Ti
Quem carne tomou de Ti
e see à destra do Padre.
E pois que por nós nacido
teu Filho lhe prouve ser,
salvar-nos de padecer
Lhe seja per Ti pidido.
Virgo singularis, mansa
mais que todalas nacidas,
a ira do Padre amansa,
nam pereçam tantas vidas!
E sendo nós desatados
de culpas e de maldade,
em mansidões e castidade
nos tem, Madre, conservados.
Dá-nos vida limpa e puro
caminho per onde vamos,
aparelha-nos seguro
este ser que desejamos,
por tal que vendo a Jesu
com Ele nos alegremos,
o qual bem nam merecemos
se o nam alcanças Tu!
Ò Padre por eicelencia
louvor, a Cristo vitoria,
ò Esprito Santo grorea,
tres em ũu Deos por essencia.
Graças a Nossa Senhora
que tanto bem mereceo
e o Padre A escolheeo
pera nossa intercessora.
Fim.
Por tua grande cremencea,
ó Rainha anjelical,
pid' ao Rei celestrial
qu' alevante a pestelencea
e fames de Portugal!
369
DE LUIS ANRIQUEZ, ÀQUELE PASSO
DE QUANDO NOSSO SENHOR
OROU NO HORTO, ENVIADAS
A ŨA SENHORA, EM
VALENCIA.
Invocacion al Sprito Santo.
Tu que alumbras, Tu que guias
a los errados y ciegos,
Tu que em lenguas de fuegos
la tu gracia nos embias.
Las defeculdades mias
dale tu gracia, Senhor,
pera que conte el dolor
de tus grandes agonias,
quando Tu morte sintias.
Prosigue contemplando.
Pues ya la cena passada,
los cristianos contemplemos
aquelha carne sagrada
de qual ya nos acordemos,
acordandonos lhoremos
la passion com que camina
al horto, donde s' enclina
por el mal que cometemos.
Exclamacion.
¡ Oh males endurecidos,
oh pecadores mundanos,
solo el nombre de cristianos
tenemos desconocidos!
Sentid, sentid los gemidos
del Senhor qu' en tal pelea
es posto, porque nos vea
librados de ser perdidos.
Prosigue.
El Maestro conociendo
lo qu' era profetizado,
tres decipolos escogiendo,
camina tam fatigado.
Antes del horto lhegado
les dize: — Quedad aqui,
hasta qu' al Padre por mi,
amigos, haya rogado.
― Triste es anima mea
usque ad morte — les disse
antes que se despidisse.
La carne que lo recea,
com temor de la su muerte,
temblava tam sim abligo,
dizendo: — ¡ Velad comigo
naqueste passo tam fuerte!
El Senhor que ya sintia
la su passion venidera,
sintiendo qu' acerca era,
al Padre merced pidia.
Y lhorando Le dizia,
arrodilhado nel suelo:
— ¡ Padre mio y mi consuelo,
oye la piticion mia!
Pater, si possibele es
qu' este calez nom pasasse,
si tanta merced halhasse,
ya sabes Tu qual me ves.
Pero no como yo pido,
sino como Tu lo queres,
tu mando sea complido,
si por mejor lo tuvieres.
El Senhor, em acabando
su primera oracion,
con el temor batalhando
sin tener consolacion,
fue hazer visitacion
a sus santos tres criados,
que dormian descuidados
de la su morte y passion.
Despues d' assi los falhar
dixo no como enemigo:
—¿ Nunca podistes comigo
una hora vegilar?
Vigilad, fijos, y orar,
em tentacion non entrés
y aqui m' esperarés,
que no sea de tardar.
Bien sabia el por venir
el Senhor que esto dizia
y com dolor que sintia
al Padre volve pidir,
de rodilhas se fincando,
com muy amargo dolor,
las manos al cielo alçando,
publicando su temor.
Oracion al Padre.
― ¡ Padre mio, yo tu fijo
Te demando piedad,
mira mi necessidad
del temor com que letijo!
Si no se puede escusar
este calez tam amargo,
obedezco sin embargo
de la morte recelar.
El autor.
Las angustias y temores
del Senhor y su recelo
le causam tales sudores
que regava todo el suelo.
Su corpo tam delicado
tanta fatiga sintió
que com força d' afrontado
gotas de sangue sudoo.
Contemplacion.
¡ Mira con ojos d' amor
pecador y pecadora,
contemplando nel Senhor
que olvidas cada hora!
¡ Contempla qual estaria,
tantos males esperando,
contempla que los sintia
como nel auto estando!
Contemplemos y lhoremos
la passion daquel momento
y assi no olvidemos
su muerte y padecimento.
Lhoremos con sentimiento
la consolacion del Padre
y las noevas que a su Madre
dieram dolores sin coento.
Desd' aquel impirio cielo
fue oido su pidir,
mas contempla que consuelo
del Padre pudo sintir.
¡ Oh Senhor, y quien sofrir
pudo consuelo tan forte,
que em lugar d' escusar morte
Te la mandam recebir!
Com una cruz en la mano
ũ Anjel Le apareció
da parte del Soberano,
aquelha Le ofereció,
diziendo: — Sabe, Senhor,
que tu morir sea prueva,
porque seas remidor
del danho que hizo Eva.
El Padre tuyo consente
que mueras morte muy cruda,
que su querer no se muda,
porque se salve la jente.
Y que seas obediente
d' homilde, manso cordero,
y mueras neste madero,
pero seas inocente.
Desque huvo entendido
del Anjel su embaxada,
com ũu amor encendido
forçó la temor passada.
Com voluntad muy ornada
de paciencia y d' amor,
caminó el Buen Pastor
donde estava su manada.
Lhegando donde dexó
los tres que dormiam ya,
dixo: — Dormid y folgad,
porque ya se concluyó.
El tempo es ya venido
em que el Fijo del hombre
sabed que será traido
por bien, por vuestro renombre.
Excramacion.
¡ Oh sangue de tanto precio!
¡oh precio tan mal mirado,
mal mirado y olvidado,
tenido en tanto desprecio!
¡ El Senhor tan humilhado,
sofriendo morte por nos!
¡ Oh mundo tam infernado,
no seguimos su mandado
ni sabemos se ha y Dios!
Oracion en nombre de
la senhora.
Senhor, por aquel dolor
com que al Padre oraste,
Senhor, por aquel fervor
del muy entranhable amor
com que la morte tomaste.
Por las lhagas, por la cruz,
açotes, clavos, corona,
por Ti mismo, que eras luz,
mis pecados me perdona.
Oracion a la cruz.
¡Oh consagrado madero,
que tanto bien mereciste,
que nuestro Dios verdadero
Lo toviste em peso intero
donde gran don recebiste!
Pues que has sido balança
de peso tam singular,
plegate de me guardar
mis fijos de mal andança.
370
PATER NOSTER GROSADO PER
LUIS ANRIQUEZ.
Cri' eleison, Crist' eleison,
Tu, Senhor, que nos fizeste,
dá-nos, pois que padeceste
por nós outros, salvaçam!
Dos filhos de maldiçam
a Ti praza que nos veles,
dá-nos, Senhor, contriçam,
Pater noster qui es in celes,
Santificetur nomem tuum,
mui temido e adorado,
de toda gente comũu
de sempre tee fim louvado.
Pois que com a devindade
es eterno Deos e ũ,
pois tomaste humanidade,
adveniat reinum tuum.
Fiat voluntas tua,
Senhor, que nos has livrado
da eternal pena crua,
por teu ser crucificado.
E pois que da cruel guerra
nos livraste, Redentor,
damos-Te graças, Senhor,
sicut in celo et in terra.
Panem nostrum quotidiano,
em o qual per fe Te vemos,
praza-Te, pois que Te cremos,
que nos livres do gram dano.
Dá-nos o bem qu' esperamos
depois da morte per fee,
com a qual Te confessamos
Tu da nobis hodie.
Demita nobis debita nostra,
pois é mais ta piedade
que toda nossa maldade,
o bom caminho nos mostra.
Ó tres em ũa pessoa,
donde nos todo bem vem,
perdoa, Senhor, perdoa,
sicut et nos demitimos, amen.
Et ne nos inducas in temptationem,
dá-nos firme fee sem cabo
per u livres do diabo
per tuam remissionem.
E se nos maginações
de Satam ou seu vassalo
vierem ou tentações,
sed libera nos a malo.
Oraçam do autor.
Tu, que as portas abriste
do lago do desconforto,
Tu, que o mundo remiste
per ta morte sem ser morto,
dá-me, Senhor, contriçam,
no ultemo desta vida,
firme fee e salvaçam
e guarda por ta paixam
minh' alma de ser perdida!
371
LUIS ANRIQUEZ A ŨAS MOLHE‑
RES QUE LHE DIZIAM
MAL
DE SUA DAMA, QUE
FAVORECIA OUTRO
SERVIDOR.
Leixai-me ser enganado,
contente com meu engano,
porque sou tam namorado
que lembra meu cuidado
mais que vosso desengano.
Desta vida me contento,
pois que sei que se contenta
quem tem tal merecimento,
que quanto mais m' atormenta
menos sinto meu tormento.
E pois minha condiçam
é a que nestas presento,
nam me dê ninguem paixam,
pois minh' alma e coraçam
consente no que consento.
E os que bem me quiserem
queiram o que nisto quero
e se por mal o teverem,
todos de mim desesperem,
pois eu tambem desespero.
372
DE LUIS ANRIQUEZ.
Leteas, quem vos bebera,
porque nunca me lembrara
da grorea, se a passara,
da perda, se a perdera!
Fora bem pera meu mal,
se se podera fazer,
mas pois nam pode ser al
mude-s' a pesar prazer.
Oh se nunca conhecera
tanta grorea nem gostara,
porque nunca m' acordara
de quam cedo a perdera!
373
OUTRA SUA.
Toda cousa dá paixam
a quem dela se recea
e caso que se nam crea
lá o sente o coraçam.
Sente dor da presunçam
muito mais do que se vê
e qualquer maginaçam
é razam que pena dê.
E qu' isto traga paixam
a quem dela se recea,
ainda que se nom crea,
dá tristeza o coraçam.
374
LUIS ANRIQUEZ AO CONDE DE
PORTALEGRE, QUE LHE MAN‑
DOU FAZER ŨAS TROVAS
SEM LHE DIZER
SOBRE QUÊ.
Senhor, quem Deos acrecente
a vida, pois que no al
vos fez tanto eicelente
que ficastes precedente
dos que vindes principal.
Porque graça e parecer,
franqueza, manhas, custumes
acharam em vós tal ser
de que se podem encher
de grandezas mil velumes.
Pois d' esforço diferente
nam serês vós dos Meneses,
de que vindes decendente,
no tempo conveniente
de tratardes os arneses.
Em o qual tempo s' espera,
pois vos Deos começou bem,
que vosso louvor s' esmere
e fama tanto prospere
que vos nam chegue ninguem.
Dê-vos Deos tanta vitorea
com que vossa senhoria
seja dino de memorea
e receba sempre grorea
vossa gram jenelosia.
E a mim deixe fazer
quantos serviços desejo,
porque possa merecer
de vós conhecida ser
esta vontade e despejo.
Fim.
Se tanto nom sei louvar,
quanto se deve e queria,
crea vossa senhoria
que no saber foi minguar
quanto a vontade crecia.
375
CANTIGA
SUA A ŨA MOLHER
QUE LHE PREGUNTOU
COMO LHE IA.
Pois sabêes que me vai mal,
pera que mo preguntaes,
sendo vós quem mo dobraes?
Pois que me nom fazês bem,
nam m' acrecentês cuidado,
tenha seu mal quem no tem,
nam lho dês vós mais dobrado.
Pois sabês quam agravado
me tendes cada vez mais,
pera que mo preguntaes?
376
OUTRA SUA.
Que remedeo pode ter
quem vive com tal tristura,
senam desejar perder
a vida, pois a ventura
foi contraira do prazer?
Pois que se perdeo a grorea,
a vida que quero dela?
Será descanso perdê-la,
porque nam fique memorea
do mal qu' ee viver sem ela.
Oh se fora em meu poder
a morte com' a tristura,
podera descanso ter
a vida, pois a ventura
foi contraira do prazer!
377
ESPARÇA SUA.
Siendo grave de sentir
mi dolor dulce, secreto,
deseo sempre bivir;
tanto soy al mal sojeito
que descanso em lo sufrir.
Tengo mi pena por grorea,
por descanso mi tormento,
¡ oh mim dulce pensamento,
noo s' olvide la memorea
deste mal que soy contento!
378
OUTRA SUA.
Neste mal que me fazeis
sabês vós quanto ganhaes?
Eu me salvo e vós perdeis
mais do que vós nom cuidaes.
Se com morte soes servida,
meus males haveram fim
e fim de tam triste vida
será grorea pera mim.
Em perder-me perdereis,
qu' outro tal nunca cobrais,
nem servidor ja tereis
de culpada, que matais.
379
OUTRA SUA.
Quando vi meu bem comprido
e meu prazer acabado,
vi-me com maior cuidado
e mais perdido.
Vi crecer contentamento,
vi minguar minha tristura,
ditosa minha ventura,
alegre meu pensamento.
Vi meu desejo crecido,
vi meu descanso cansado,
por me ver com mor cuidado
despedido.
380
OUTRA SUA.
Se se podesse dizer
o que nam ouso falar,
nam queria mor prazer
pera tamanho pesar.
Pera meu mal outro bem
nam ha i senam dizer-se
e pera poder fazer-se
nenhũ remedeo se tem.
Pera quem soube entender
outro bem nam desejar,
devera-se d' ordenar
que se podera fazer.
381
OUTRA SUA.
Nam vos ouso de falar
e desejo, que podesse,
e temo, se o fizesse,
senhora, de m' acabar.
Conheço vossa crueza,
conheço meu bem querer,
e sei que minha firmeza
me lançou sempre a perder.
Eu nam vos posso negar
se meu bem mal nom fizesse,
que me nam visseis tornar
a sofrer o que viesse.
382
OUTRA SUA.
Pois conheço que folgais
com quanto mal me fazeis,
nunca me queixar vereis
por maior que mo façais.
Pois que me determinei
por vosso determinado,
quero viver nesta lei
satisfeito co cuidado.
No que vós determinaes,
nisso me satisfazeis,
mas queixar nom me vereis
por mor mal que me façaes.
383
DE LUIS ANRIQUEZ A Ũ HOMEM QUE
NAM CRIA QUE ELE FIZERA ŨAS
TROVAS D'ARTE MAIOR,
PORQUE LEVAVAM
MUITA POESIA.
Pues vos, mi senhor, tan mucho dudaes
em ũa mi obra de arte mayor,
si vos me tenés por desse teor,
no quero dezirvos em quanto erraes.
Mas a bueltas desto tambem no creaes
que pudo quem pudo y no lo que noo,
porque nunca hombre naqueste dudó
como por cierto vos lo porfiaes.
Assi dudarés no nacer Titom,
passada la sombra que ciega la gente,
ni menos crerés que nel oriente
el Febo s' esconde de nostra visiom.
Ni Polus y Castor que muy fixos som,
ni menos que muestra tres caras Diana,
ni ser nestas partes echado Fetom,
muerto por ravia de groria mundana.
Ni menos que a Cloto, Outropus, Laquises
obram las vidas y fim de la gente,
ni menos qu' el duque, el fijo d' Anquises,
foy al Erebo, segum el prudente
Virgilio recuenta, por el conseguiente
que al su passaje tremió la paluda
ni que la Penea passó morte cruda
por el piadoso qual ela lo siente.
Ni que el grand' Hercoles partió con Teseo
al baxo caos furtar Proserpina,
prendendo el Cerbero muy presto y aina
aquel que dormió, tanhendo Orfeeo.
Ni menos que jaze sepulto Tifeo
do som las fornazas del forte Vulcano,
ni que las fijas al padre Peleo
mataram por verle no tam anciano.
Ni que las Gorganas ũ ojo tenian
y con aquel todas usavan del ver,
ni que los mirantes nun punto morian
quan presto le vian, sin más detener.
Ni que Perseo por arte y saber
pudo cegalhe y matar Medusea,
ni que com ravia d' amores Medea
sus fijos matara, por vengada ser.
Fim.
Lo del Minotauro ni su laberinto,
que Dodalo fizo, tambien dudarés
y del velhocino, con el entremes
que Jupiter fizo, dirés que vos minto,
d' Europa robada, mijor que lo pinto,
por quiem los hermanos foran desterrados
y a la su patria jamas retornados,
havendo otros reinos com forças estinto.
384
LUIS
ANRIQUEZ EM QUE FINGE QUE
ESTANDO NA MINA, ANDANDO SOO, FOI
ACHAR EM Ũ VALE A TRISTEZA
E CONGOXA E ESPERANÇA EM
FORMA DE DONAS, E COMO
LHE PERGUNTA QUEM
ERAM E A REPOS‑
TA DELAS.
Doenhas muy dinas de gran cortesia,
com gram reverencia suplico e demando
perdon, se pregunto lo que nom devia
y algo anojaré, senhoras, fablando.
El triste desseio me traye buscando
las selvas, los valhes por más solitarios,
los quales ham sido a mim tan contrarios
que vostras mercedes falhé, non pensando,
Em terras desertas de tales linages,
em terra de gente atam bestiales
que delhas a brutas y feras salvages
no som diferentes em seren iguales.
Em terras sim bienes tam lhenas de males,
tam desviadas de donde nacistes,
donde no viven sino los tam tristes
que como yo siguen los terminos tales.
Dezidme la causa de vuestra venida,
dezidme la sorte de vosso bivir,
dezidme si en algo vos puedo servir,
que nesto ternia descanso mi vida.
Dezidme la patria de donde nacida,
los nombres, ventura que aqui me truxo,
y no me hayades por tanto proluxo.
em demandarvos la merced pidida.
La una daquelhas responde diziendo:
— Em tu demanda bien es conocido
que tam tresportado está tu sentido
que todas nosotras vas desconociendo.
Contigo partimos, contigo viviendo,
nunca partidas de ti nos falhamos,
conoce aora, pues te declaramos,
las causas que assi nos estás preponiendo.
Foy mi repoesta: — Descreta senhora,
por cierto lo dicho yo no lo entiendo,
quanto más penso, voy menos sabiendo,
los casos motos muy más san aora.
Mi alma, mi vida, senhora, implora
que quieras lo cierto assi enformarme,
que no t' emportune ni pueda quedarme
doblada la pena que nunca mejora.
Reposta delha.
— Quero dolerme de vossa passion,
quero los nombres dezirvos daquelhas
que tienem com vos a tal afecion
que sempre vos siguen y vos seguis elhas.
Oid, escuchad, las vuestras querelhas,
tomad el entento daquelho que digo:
si tanto no fuessedes vuestro enemigo,
por cierto sus trajes diran quen son elhas.
Somos Tristeza, Congoxa, Esperança,
poca que tienes pera tu remedeo,
las quales em torno te toman el medeo
e cada qual usa daquelho qu' alcança.
Nacidas, criadas somos sin dudança
naquelha gram casa que dizen d' amor,
la ũa t' esforça, las dos dam dolor,
tomando de ti muy larga vengança.
Admiracion del autor.
Exclama.
¡ Oh mis companheras tan comunicables!
com los sintidos tam tristes, penados,
dezidme aora: — ¿ Serés perdurables
por siempre comigo con tales cuidados?
Respondem: — Por certo nom som revelados
estes secretos a nos, ni sabemos,
y baste lo dicho, que más no podemos
dezirte daquelho que siguen los fados.
Fim.
Despues de ser delhas assi enformado,
assi se somieram delante mis ojos,
que no vide más sino los despojos
que de mis fuentes haviam manado.
Seria al tiempo qu' el Febo boltado
de jus de la terra de nostro hemisperio,
falhém' acostado con el refrigerio
que quedam los tristes con tanto cuidado.
Cantiga por fim desta obra.
¡ Oh sentidos desterrados
de la gloria que perdistes,
pues que logo no moristes,
fue por serdes más penados,
lhorando los dias tristes!
¡ Oh lastimada partida!
¡oh mi penado bevir,
como puede ya sofrir
tantas mortes una vida!
Fueran mis bienes tornados
em lhantos, sospiros tristes
y se logo no moristes
fue por sermos ordenados
a los males que quisistes.
¡ Oh vos ravias infernales,
sacad, sacadme daqui,
pues que mis bienes perdi
por troque de tantos males!
Sentidos desventurados
que tanta grorea perdistes,
com lamentaciones tristes
acabem nuestros cuidados,
con la fee que consentistes.
385
OUTRA SUA.
Sam mais vosso namorado
do que nunca foi ninguem,
pois nam desejo mais bem
qu' acabar neste cuidado.
Trago disto presunçam,
ando tam cheo d' oufano
que nam m' engana engano,
antes me salva tençam.
Se m' havês por enganado,
bem no pode ser alguem,
mas eu nom quero mor bem
qu' acabar neste cuidado.
386
LUIS ANRIQUEZ
EM LOUVOR
DE ŨA SENHORA, QUE SER‑
VIA EM VALENÇA
D' ARAGAM.
Fue muy grande desvario
cometer pera loarvos
porqu' el poco saber mio
de cierto que yo no confio
que es más que per' adorarvos.
Y que tambem no rezone
esta rude pluma mia,
tome vuestra senhoria
mi sentencia y perdone.
Perdone el atrevimiento
que de loarvos tomee,
yo perdono al pensamiento
que causó mi perdimiento
desque triste vos miree.
Porque vossa gram beldad
me sojuzgó de manera
que ternés fasta que muera
mi vida, mi libertad.
Porque havés sido nacida
entre nos com tal primor
que assi lhevaes de vencida
las damas em esta vida
que se muerem de dolor.
Moerense, jentil donzelha,
por quan linda vos mostraes,
los hombres tenem querelha,
porqu' a todos los mataes.
Que vuestra gran fermosura
y gracia tam singular,
vuestra beldad y mesura
em tanto grado se apura
que no se puede contar.
Y pues que vos fizo Dios
entre todas escogida,
sabed qu' el morir por vos
es causa muy conocida.
Fim.
Y pues la causa es clara,
la pena crelda de cierto
porqu' el mal que se os declara,
uun poco más se tardara,
sabed que ya fuera muerto.
Y pues que todo tenés,
no olvidés piedad
com que sanar poderés
lo que mata esquividad.
387
OUTRAS SUAS A ESTA SENHORA,
PORQUE LHE DISSE QUE A
DEIXASSE DE SERVIR, POR‑
QUE ERA MALCRIADA
E QUE O TRATA‑
RIA MAL.
Quanto más m' aconsejaes
que dexe de vos servir,
si en elho bien mirares
quanto más lo perfiaes
menos me puedo partir.
Y que mi vida se acorte
es gram bien que se sofriesse,
ca pues tengo ver la muerte,
más vale daquesta suerte
ca sim vos la recebiesse.
Bien muestra vuestra crueza
qu' era razon d' apartarme,
mas la mi mucha firmeza
por más que me des tristeza
no consiente de mudarme.
Que vuestra dulce prision
do tenés la vida mia
esme tal consolacion
sim la qual mi coraçon
no podrá bivir un dia.
Aunque me dexe turbado
algo vuestro desenganho,
em la fim determinado
es que viva enganhado
por la causa de mi danho.
Ca pues ya está sabido
qu' el penar por vos es glorea,
quanto más hovier sofrido
terné certo merecido
de mis males más vitorea.
Fim.
Y pues veys mi fantesia
y tenciom tam sojuzgada,
dexaos dessa porfia,
porque pueda algun dia
sintir grorea deseada.
No cureis mostrar poder
contra quem poder no tiene
sino de más vos querer
y sofrir y padecer
los males qu' en si sostiene.
388
CANTIGA SUA.
Mal olhado
é de vós meu gram querer
i de mi, pois que biver
consento neste cuidado.
Ha muitos dias e anos
que vos dei mui de verdade
minha fee, minha vontade,
vós a mi tudo enganos!
Lastimado
sam por tam certo saber
sermos ambos nũ querer,
pera matar-me forçado.
389
OUTRA SUA.
Tristeza, dor e cuidado,
leixai-me! Que me quereis?
Por ventura nam sabeis
que sou ja desesperado?
Sabei vós que vivo morto,
sem esperança de vivo,
nem espero ja conforto
do amor cruel, esquivo.
E pois sam ja condenado,
vossas forças nom mostreis,
ca sabei, se nom sabeis,
que sam ja desesperado.
390
DE LUIS ANRIQUEZ AO DUQUE DE BRA‑
GANÇA, QUANDO TOMOU AZA‑
MOR, EM QUE
CONTA
COMO FOI.
A quinze d' Agosto de treze e quinhentos
da era de Cristo, nosso Redentor,
do que se passou estai mui atentos
no dia da Madre do mesmo Senhor:
O Duque eicelente, nosso guiador,
Dom James da casa d' antiga Bragança,
de jente levando mui grande pujança,
geral capitam partio vencedor.
Nom peeço favor que possa contar
o que se passou na santa viajem,
nem menos ajuda me praz d' invocar
aas antigas musas nem sua linhajem,
mas soo à Senhora qu' haa feito menajem
de virgem humilde por onde foi madre,
que Ela m' alcançe a graça do Padre,
pois que foi dina da suma messajem.
Partio com a graça d' O que triunfando
n' arbor da cruz alcançou vitoria,
per mando do rei que vai imperando
per gram vencimento de eterna memoria.
Os reis perseanos mui dinos de gloria,
da India, Arabia, tambem d' Etiopia,
e outros que fazem em soma gram copia
lhe sam trebutareos per fama notoria.
Crece seu mando, seus reinos alarga
per seus capitães na jente infiel,
o gram poderio dos mouros embarga
em gram quantidade per guerra cruel.
Oo mui serenissimo Rei Manuel,
a espera que trazes será triunfante,
se com tuas gentes passares avante,
ganhando a casa que foi d' Israel!
Volvamos a fala ò gram Gudrufé,
daqueste gram Carlos direi sas façanhas,
nom menos d' esforço do gram Jesué
em sua vitoria, grandezas tamanhas.
Nunca de Roma se vio nem Espanhas
tam gram capitam nem mais esforçado,
de reis infinitos parente chegado,
dotado de grandes vertudes e manhas.
No dia da festa da santa Assunçam,
partio de Lixboa com toda sa frota,
mui apontada em tal prefeiçam
qual outra nom vimos nem livros se nota.
Assi todos juntos seguiram sa frota,
juntando-s' em Faram a nobre companha
de condes, fidalgos, mais nobres d' Espanha,
onde surgiram tod' alma devota.
Levando consigo a bandeira real,
que nunca vencida se pode dizer,
pois é invencivel aquele sinal,
tomado das chagas que quis padecer
o Sumo Bem nosso com muitos marteiros,
porque salvasse o mundo perdido,
tambem senefica os trinta dinheiros
per cujo preço foi Cristo vendido.
Depois de chegados e todos surgidos,
quando vio tempo mais conveniente,
senhores, fidalgos foram requeridos
qu' a ele se fossem todos juntamente.
Des que congregados com ele presente
lhes fez ũa fala de tanto primor,
como aquele que tem gram favor,
ajuda, sossidio, de mais eloquente.
Onde per ele lhes foi decrarado
toda a tençam d' El-Rei seu senhor,
que foi enviá-lo sobre Azamor,
pola maldade do erro passado.
Qu' a todos pidia que d' amor e grado
quisessem, sem outra vontade nem zelo,
em sua tomada tambem cometê-lo,
pera que sempre lhes foss' obrigado.
Porque depois de ter esperança
em Nosso Senhor de lhe dar vitorea,
em eles levava tanta confiança,
pera todo feito mais dino de grorea.
Que lhes pedia qu' houvessem memorea
das cousas de Roma, quando prosperava,
em quanta maneira a lei se guardava,
segundo se nota na sua estorea.
Com Romus e Romulo tambem alegando,
de quando s' aquela cidade fundou,
a pena que houve, porque quebrantou
a lei que foi posta em se começando.
Que lhes pidia que nunca desmando
a guerra durante em eles houvesse,
mas que obedecessem ò qu' ele quisesse
e que ele sempre seria a seu mando.
Com doces palavras forradas d' amor,
com mui animoso desejo e vontade,
com mil cortesias, com grande favor,
com ũas entranhas de pura verdade,
assi os pervoca com tal mansidade
que todos respondem, dizendo: — Senhor,
nosso desejo é muito maior
do que nos pediis em gram quantidade.
Ouvindo palavras tam bem razoadas,
ficou de contente atam satisfeito
dessa senhoria atam estimadas,
que o por fazer estimou por feito,
dizendo que sempre seria sogeito,
fazendo por todos, como bem veriam,
que d' i em diante eles conheceriam
as suas palavras ficar em efeito.
Prossigue.
Eram quatrocentas as velas d' armada
sobre cinquenta sem ũa faltar,
foi ũa das cousas mais pera notar
que vimos nem vio a jente passada!
Tam posta em ponto, tam aparelhada
de todolas cousas que se requeriam
e d' artelharia tam bem compassada
que nada faltava, segundo deziam.
Partimos em ponto sem mais esperar,
depois desta fala assi acabada,
e em poucos dias podemos chegar
aa boca do rio da cidad' honrada.
E porque a barra estava çarrada
e era ũ pouco perigoso d' entrar,
houve conselho com detreminar
que em Mazagam foss' a terra tomada.
Achámos o porto quieto, seguro,
a frota mui junta se pôs bem em terra,
mui bem concertada no auto da guerra
com grande recado, conselho maduro.
No dia siguinte depois do escuro
ser ja passado e sol ja saido,
saio toda gente, mais forte que muro,
d' esforço guarnida sem nada fingido.
Com muita prudencia, esforço, cuidado,
o Duque ordena sentar arraial,
mais trabalhando do que Anibal,
quand' houve os Alpes de todo passado.
Pôs suas estancias com tanto recado
e seus capitães em tanto concerto
que nunca antr' eles houve desconcerto
nem cousa que fosse escontra seu grado.
Onde tres dias lh' aprouve d' estar,
ainda qu' a toda mourama pesasse,
porque de todos de cresse e notasse
que nom era gente de mais estimar,
que com seu esforço podia domar
mais que perdeo El-Rei Dom Rodrigo
e mais que levava tal gente consigo
com que podia gram terra ganhar.
Veio de Tite a lh' obedecer
o principal mouro que nele havia,
pidindo que paz lh' aprouvesse fazer
com toda a jente que nele vivia.
Foi a reposta de sa senhoria
que a ele soo sua casa segura;
o mouro, em vendo reposta tam dura,
ficou tam cortado que mais nom podia.
Pelo qual logo sem mais dar vagar
o jentil do Tite foi despovoado,
de medo cortado leixaram logar
tee serem per pazes a ele tornado;
ca viram seu feito ir tam mal parado
que desesperaram de bem esperar,
seria Mafoma bem pouco louvado,
pois nele socorro se nam pod' achar.
Foi antr' os mouros tamanho encanto,
por ver o que nunca cuidaram de ver,
que nenhũus cristãos podiam fazer
antr' eles demora de tanto quebranto!
Foram cortados com tanto espanto,
segundo per obra foi noteficado,
sas forças, esforço de todo quebrado,
que de seu desmaio nom sei dezer tanto!
Em o quarto dia o Duque mandou
sessenta navios com artelharia,
qu' entrassem no rio lhes encomendou,
porqu' ele partia em o mesmo dia.
Os quaes Deos aprouve levarem tal via
que todos entraram sem contradiçam,
queimando aparelhos que Moleiziam
com mil caniçadas por fogo queria.
Em o dia mesmo que era primeiro
deste Setembro da era presente,
partio o gram Cesar com toda sa jente
levando concerto de jentil guerreiro.
Ordena batalhas, andando fragueiro,
correndo-as todas mil vezes nũ ponto,
mostrando-s' a todos ser mais companheiro
que princepe grande com' ee e vos conto.
Chegámos ja tarde àquela cidade,
porque nam pôde ser doutra maneira,
a qual achámos, falando verdade,
de muros e torres mui forte guerreira.
Sairam ũus mouros à porta primeira
cũus poucos dos nossos escaramuçar,
de volta com eles lhes foram matar
algũus cavaleiros de sua bandeira.
Isto acabado, a noite na mãao,
sentou-s' arraial ò longo do rio,
estanceas postas ja bem de serãao,
escuitas lançadas sem outro desvio.
O Duque provendo em seu senhorio,
como quem tanto no caso lhe ia,
a todas partes mui rijo provia
como quem corre de noite seu fio.
Aquela noite ninguem a dormio,
com grande trabalho, sem mais repousar,
o sono, preguiça de todos fugio;
artelharia se pôs no lugar,
donde combate s' havia de dar
no tempo e hora que foss' ordenado,
seria do dia o meo passado
e alem ũ hora depois doze dar.
D' i a pedaço nam muito tardou
que logo ao Duque recado nam veio:
que estava o campo de mouros tam cheo
que dos de cavalo dez mil s' apodou.
Naquele momento que s' isto contou,
ordena o Duque sem outro debate
que ũus começassem de dálo combate
e ele cos mais oos mouros passou.
Começou-s' a cidade tambem combater
com muito esforço, com tal pressa dar,
que em pouca d' hora se pôde bem crer
dos mouros de dentro seu grande pesar.
Artelharia começa a jugar,
as mantas e bancos nam muito tardavam,
as jentes das portas, qu' os muros picavam,
que ũus aos outros nam davam vagar.
Deu-s' o combate mui duro, mui forte,
gastando-s' o muro per tiros mui grossos,
tanto que os mouros se tinham nos mossos
julgando que tinham d' ali pior sorte.
Cid Almançor ali prendeo morte
antr' eles prezado e senhor de lanças,
viram nos mouros perder esperanças,
sem haver antr' eles tal que os conforte.
Per morte daquele a todos quebraram
seus corações, sua fortaleza,
e logo em ponto se detreminaram
laixála cidade de muita fraqueza.
O Duque esforçado com grand' ardideza
começa sa jente mui bem d' ordenar,
como aquele que espera de dar
fim a seu feito com muita proeza.
Foram batalhas mui bem concertadas,
assi de cavalo coma as d' ordenança;
ja tarde partiram, sas forças quebradas,
os mouros que viram aquela mostrança.
Fezeram na volta com muita trigança,
os quaes grande medo levarem se crea,
ficámos no campo tee noite ser mea,
sem os do combate fazerem mudança.
Os mouros de dentro que viram crecer
seu mal e seu dano, sem bem esperar,
com grande temor de vidas perder,
leixaram cidade por vidas salvar.
Fugindo sem tento, com tal pressa dar,
qu' ò sair da porta muitos se matavam,
os pais polos filhos se nom esperavam,
molher por marido podia aguardar.
Após mea noite tres horas seriam,
quando a cidade foi toda vazia
e ũu dos judeus, que nela vivia,
per corda do muro abaxo decia.
Ao senhor Duque a nova trazia
per' os de sa lei seguro pidindo.
Foi-lh' otorgado, as novas ouvindo,
com outro albitre que preço valia.
Sabado seguinte, oit' horas do dia,
na grande cidade o Duque entrou
com grande vitorea que mais nom podia,
Deos seja louvado, qu' assi o guiou!
Per toda a terra sa fama soou
e pôs tal espanto com grande terror,
por ond' Almedina com muito temor
de toda sa jente se despovoou.
Fim.
Foi celebrado o oficio devino
com gram eficacia e gram devaçam,
dando-Lhe graças com tal contriçam
qual merecia o Verbo devino.
Oo Sumo Bem, oo ũu Deos e trino,
Tu que per morte salvar nos quiseste,
concede vitorea a quem esta deste
de imigos humanos, espirito malino!
391
DE LUIS ANRIQUEZ A SIMAM DE
SOUSA, SOBRE LHE MANDAR
PIDIR QUE LHE CONFIR‑
MASSE ŨU ALVARA DE
CAVALEIRO E MAN‑
DOU-LHO PIDIR.
Senhor, eu vos escrivi
e pidi,
por mercê, que me quisesseis
confirmar o que servi.
Mas pois o nam mereci,
é bem que o nam fezesseis,
porqu' é tempo mal despeso
trabalhar no escusado,
que nom é cousa de peso
nem eu estou tam acesso
polo qu' estaa ordenado.
Temos cá, senhor, por lei
do gram Rei,
a qual sendo bem olhada,
peço perdam se errei,
porqu' afirmo e direi
que deve ser derrogada.
Na qual se diz e contem
que a todo cavaleiro,
que cavalo seu nam tem,
das liberdades nem bem
nam goze com' estrangeiro.
Foi muit' eramaa nacer
pera viver,
a quem Deos nam deu fazenda,
porque tee nisto empecer
lhe foi fazendo perder
a honra, qu' ee mor contenda.
E a muitos que a deu,
que cavalos podem ter,
alcança no jubileu
e os que o nam têm, com' eu,
vão-se de todo a perder.
Que nom pode ser mor mal,
desigual,
aos homens bem criados
que o vilãao bestial,
porque tem mor cabedal,
leve os boons nam abastados,
cujos paes, avoos, parentes
foram criados dos reis,
algũs capitães de jentes,
isto nam por acidentes,
mas consintem-nos as leis.
Aos homens de linhajem
a vantagem
deverãao dar nesse caso
e nam mostrar-lhes ultrajem
nem perderem sa menajem
e deixá-los taees no raso.
Porque quem nam tem cavalo,
polo nam poder manter,
sabe mui bem trabalhá-lo
e havê-lo e buscá-lo
ao tempo do mester.
Fim.
Sabem muito bem servir,
sem s' espedir,
quando lhes é requerido,
e os que tal sabem seguir
é de crer e presumir
serem dinos do pedido.
Mas pois isto j' assi vai,
nam quero confirmaçam,
meu alvara me mandai
e de mim, senhor, tomai
servir per obrigaçam.
DE LUIS ANRIQUEZ A ŨA MOÇA COM
QUE ANDAVA D' AMORES, ANTE DE
SE OS JUDEUS TORNAREM CRIS
TÃAOS, E Ũ JUDEU CASADO
E ALFAIATE, A QUE ELA
QUERIA BIEN, O FEZ
TORNAR CRISTÃO
E CASOU COM
ELE.
Vós que nacestes má hora,
vós que nela vivereis,
nom menos acabareis,
pois sois de Jamila nora.
Vós qu' achastes dentro ou fora
esse mazal que tomastes
de que, guai, vos contentastes,
em fort' hora
vos dei nome de senhora!
Qu' achastes ò ahanim
que vos assi namorou?
Rezar bem o Tafalim,
ou com que vos çabacou?
Em jurar por minha lei,
ou polos dez mandamentos,
ou dizer: — Viva El-Rei!
como sei,
em seus estrevançamentos?
Em rezar o baraha,
ou de que fostes contente?
ou em ser mui deligente
quando vãao a minaha?
Em guardar bem o sabá,
ou cheirar-vos à defina?
Como fostes tam mofina,
Katerina,
sobre serdes muito maa?
Pareceo-vos bem cadoz
ouvindo-lho algũu dia,
ou porventura seria
por quebrar co outro avoz?
Ou vos namorou sa voz
em cantando na sinoga?
Quem vos visse nũa soga
a cea voga
açoutar daqui tee coz!
Muito bem vos pareceo
o seu meto-m' en elduy,
e tambem dizer yhuy,
nada vos avorreceo.
Ai, Adonai vos meteo,
Çabao nam vos tirou,
o que vos muito agradou
e contentou,
a budum vos nam fedeo.
Ora ja nam mo negueis,
bem sei eu que vos venceo,
com convites mereceo
este bem que lhe quereis.
Pipino grand', amarelo
e melão muito maduro,
com metade de marmelo,
verd' escuro,
dos que lança no munturo.
Com boa perna de galo,
com garavanço cozido
e de vós bem aceitá-lo
fez muito em seu partido.
Boas unhas de tenreira,
na fragua do cunhado,
vos fezerom tam maneira
que companheira
serdes sua foi forçado.
Ora volvamos-lh' a folha:
achá-lo-ês bem galante,
ele tem nariz de rolha
sobre ter ruim sembrante.
É ũu pouco ajudengado
no falar e no trazer,
é tambem cercuuncidado
quer fanado,
como folgastes saber.
Tem ũ jentil forgicar
pel' arte de seus parentes,
tem lá outro embolar
e jogueta de bulrar
sem lhe cairem nos dentes.
É crespo, refoucinhado
que lhe descobre a orelha,
é ũ pouco acogombrado,
desmazalado,
e depois é ũa ovelha.
Pois vos o deemo tomou
a seguirdes tal errada,
co conselho que vos dou
ò menos i avisada.
E pois que ja sois casada,
sabei seguir esta via:
que os que vêm da lei cansada,
par Deos, nam lhes pesa nada,
jurá-lo-ia,
com cousas da judaria.
Por carne sempre mandai
de logar pera porgar
e com nome d' Adonai
lhe fazei cea, jantar.
Se for magra, do azeite
lhe lançai na cozedura,
seguro que a engeite,
mas que peite
a metade da custura.
Aprendei fazer hambria,
qu' ee vianda de seu gosto,
eu vos fico que mao rosto
lhe faça nem vos faria.
Mas é certo que daria
do seu muito por achar
albondegas ò jantar
e cear
este manjar cada dia.
Maraxeval é manjar
que se faz de boas favas,
tomar sempre tres oitavas
e em na Pascoa do asofar
fartalejos nam negar.
No tal dia será tudo,
e de cerizas fartar
e calar,
todo mundo seja mudo.
Nam esqueeça pam cencenho,
sabei seguir o que digo,
a palavra vos apenho
que seja mais vosso amigo.
Se tomais este castigo,
dous d' ũu tiro matareis,
a ele contentareis
e fareis
que façaes o que nam digo.
Quando com vossa camisa
andardes, terês aviso,
nam façaes daquesto riso,
gradecei quem vos avisa:
com ele vos nam jareis
mes passados sete dias,
o tavilaa vós fareis
e dormireis
co parente das judias.
Quando vieer ò comer,
que for ò partir do pam,
dir-vos-á ũ oraçam,
sabê-lhe vós responder:
— Baru ata Adonai Eloeno
sam as palavras que diz.
—Amoci leha minariz,
lhe responderês, e peno,
pois meu bem foi tam pequeno.
Depois do conselho dado
e nova vos quero dar
com que moiras de pesar,
de grande dor e cuidado:
vosso bem nam tem bezis,
que sam companhões, em habraico,
jurou-mo nũus Tafelis
ũ laa do povo judaico.
DE JOAM
RODRIGUEZ DE CASTEL
BRANCO, CONTADOR DA GUARDA,
A
ANTONIO PACHECO, VEADOR
DA
MOEDA DE
LIXBOA, EM
REPOSTA D'ŨA
CARTA
QUE
LHE MANDOU,
EM QUE
MORTE‑
JAVA
DELE.
Mafoma, primo, senhor,
dentones, xeque dentam,
das nogueiras capitam,
da moeda veador.
Em Valverde morador,
d' aluguer que nam de graça,
dos encontros xuquetor,
de Lisboa a milhor taça.
Vossa carta recebi,
que me deu muito prazer
por me, senhor, parecer
qu' inda vos nam esqueci,
nem tam pouco vós a mim
nunca m' havês d' esquecer,
senam se for por beber
deste vinho qu' ee roim.
Saberês que sam tornado
des que vivo nesta Beira,
hetego, magro, coitado
e rebusto em grã maneira.
Tam disforme, tam beiram
que com quanto me querês,
ja vos nam contentarês
ser meu primo com irmão.
Estou cá perto da serra
onde habitam os pastores:
ja nam busco apontadores,
nem porteiros me dam guerra.
E sam ũu dos boons da terra,
Deos seja muito louvado,
e acho-me tam honrado
com' a bugia na serra.
De vinhas e d' olivaes
e de lançar mergulhões
sei ja tantas envenções
como vós lá dos metaes.
Porque disso espero mais
certo me dar de comer,
que servir e envelhecer
laa por esses espritaes.
Ja nam recebo pousada
de vosso apousentador,
panela nem telhador,
espeto, mesa quebrada,
cadeira desengonçada
e lençoes de mes em mes,
ò longo nem oo través,
me nam cobrem a bragada.
Quantas vezes pelejei
convosco sobola manta,
onde era a pulga tanta
quanta sabeis que matei.
Quantas vezes jejumei
sem ter muita devaçam,
Deos o sabe e vosso irmão
com que ja tambem pousei.
Quantas vezes sem candea
nos lançámos às escuras,
fartos de desaventuras
mais que de mui boa cea.
Isto que s' aqui nomea
nam hajaes disso vergonha,
porqu' em vossa carantonha
cabe toda cousa fea.
Eu nam sei quem vos engana
a sofrer fomes e frios,
qu' os milhores atabios
é um castiçal de cana;
ũa soo vez na somana
comer carne sem cozer,
que faz o ventre ferver
más qu' amores de Joana.
Porem como quer que seja,
quem algũa dita tem
é rezam qu' haja por bem
qu' estas cousas todas veja.
Mas quem é bem enfreado
e tem vergonha no rosto
vê o tempo mal desposto
para ser muito medrado.
Sam fora de requerer
veadores da fazenda,
oficio nem comenda
ja nam espero d' haver.
Ja me nam dá de comer
senam minha fazendinha,
Rei nem Roque nem Rainha
nam queria nunca ver.
O pagar das moradias
é o que me mais contenta,
o despachar da ementa,
as madrugadas tam frias,
trabalhar noites e dias
por ser na corte cabidos,
e, os tempos despendidos,
ficar com as mãos vazias.
Armadas idas d' alem
ja sabeis como se fazem,
quantos cativos lá jazem,
quantos lá vam que nam vem!
E quantos esse mar tem
somidos, que nam parecem,
e quam cedo caa esquecem,
sem lembrarem a ninguem!
E algũs que sam tornados
livres dessas borriscadas,
se os is ver aas pousadas
achai-los esfarrapados,
pobres e necessitados
por mui diversas maneiras,
por casas das regateiras
os vestidos apenhados.
Por isto, senhor Mafoma,
tresmontei cá nesta Beira,
por tomar a derradeira
vida que todo homem toma.
Porque ha lá tanta soma
de males e de paixam
que, por nam ser cortesão,
fogirei daqui tee Roma.
Fim.
Agora julgai vós laa
se fiz mal nisto que faço:
em me tirar desse paço
e mudar-me pera caa.
Pois é certo que se daa
algum pouco galardam,
lança mais em perdiçam
do que nunca ganharaa.
TROVAS QUE
MANDOU JOHAM
RO‑
DRIGUEZ
DE CASTEL BRANCO A
ANTAM DA FONSECA, COMEN‑
DADOR
DE ROSMANINHAL,
A ALCACER-SEGUER,
EM REPOSTA
DOUTRAS.
Porque sempre em vos servir
desejo ser acupado,
quis tomar este cuidado
para vos dar em que rir,
porque nam posso fogir
do que quer meu coraçam,
que vos tem tal afeiçam
que nam vos pode mentir.
As trovas que me mandastes
vos tenho muito em mercê,
porque vos dou minha fe
que bem as metreficastes.
Dos mouros que laa matastes
vos tenho muita enveja
e levo groria sobeja
da grand' honra que guanhastes.
E pois que, senhor, de laa
me fazeis mercê de novas,
quero nestas minhas trovas
dar-vos algũas de caa.
E a primeira seraa
contar-vos de nossa vida
e assi de quam perdida
a terra sem vós estaa.
Vós laa quebrantais as raias
e as tranqueiras dos mouros
e nós cá corremos touros
e fazemos grandes maias.
Nam curamos d' azagaias
nem d' armas muito lozidas,
mas gastamos nossa vidas
em capas, gibões e saias.
Entrastes em Tetuam
como gentis cavaleiros,
esforçados e guerreiros,
mais fortes que Cepiam.
Nós cá temos o Veram,
em logeas frias, sem calma,
sem buscar sombra de palma
nem favor do capitam.
Andamos muito seguros
pola vila e fora dela,
nam vemos rolda nem vela,
nem baluartes nem muros.
Somos mais moles que duros
pola froxeza da terra,
com ninguem nam temos guerra
senam soo com vinhos puros.
Item mais jugamos canas
dous por dous e tres por tres,
de duas em tres somanas,
às vezes de mes em mes.
Outras horas, que nos pês,
pola terra estar mui soo,
falamos cos que por doo
pooem a saia ao reves.
Nam temos cá montaria
de porcos nem de liam,
mas caça de gaviam
e às vezes pescaria.
Toda nossa fantesia
estaa posta em folgar
e às vezes em ganhar
em qualquer mercadoria.
Andamos algũas vezes
aos touros a cavalo,
somos de vós o pam ralo
de vossas doçuras feezes.
Nam temos ricos jaezes
nem arreos esmaltados,
mas temos algũs dourados,
outros negros como pezes.
Começamos de criar
gaviães par' o Inverno,
paraiso nem inferno
nunca nos pode lembrar.
Boiz de perdizes ũ par
vos estaa aparelhado,
o Cipreste tem jurado
que vo-las ha-d' espantar.
E o de que me mais pesa
dessa vossa frontaria
que vossa carniçaria
nom farta nenhũa mesa.
Nam sei se vos é defesa
polos imigos da fee,
se se defende, porque
tendes guerra tam acesa.
Porem, se se bem olhar,
nom vos deve dar paixam,
que, como teverdes pam,
o al se pod' escusar.
Porque a ordem melitar
nam requere gram fartura,
qu' às vezes tolhe soltura
ò tempo de pelejar.
Das perras em que falais
dai-as ò demo por suas,
quanto mais seguis as ruas
menos gualardam levais.
Bem sei ja que me tomais
nisto que quero dizer:
com quem sam de correger
se mostram esquecer mais.
Se com elas nos topamos,
levam tam fortes bocados
que, quando mais pelejamos,
somos mais desbaratados.
Nam por serem apertados
nem mui rijos de romper,
mas aturam o correr
que nos vencem de cansados.
E assi que nos tornamos
os mais de nós ipotentes,
porqu' eles sam tam valentes
que por vencidos nos damos.
E tal que, quando escapamos
da sua boca danada,
vento é mouros de Grada
par' oo medo que levamos.
Destas novas nam dou mais,
porque seraa demasia
querer falar aravia
com vós, que a ensinais.
Porem, quando cá estais,
quantas vezes derribado
fostes e desbaratado
destes immigos mortais.
Eu tenho ja feito paz
com eles por ano e dia,
inda que por mais queria,
mas a eles nam lh' apraz
e quem mal cae mal jaz.
Eu ando mui avisado,
s' achar algũu desmandado,
bem sabeis como se faz.
Fim.
Aqui faço conclusam,
beijando com muita fe
as mãos de vossa mercê
e do senhor vosso irmão.
E nam vos esqueceram
Rui Lobo, Jorge de Sousa,
que nam podem mandar cousa
que negue meu coraçam.
395
VILANCETE.
¿Adonde tienes las mientes,
pastorzico descuidado,
que se te pierde el ganado?
No te pasmes, Joan Colado,
de la descuidança mia
qu' amorio m' ha robado
tod' el seso que tenia.
No reposo noche e dia,
em todo lo despoblado
no puedo caber coitado.
Grosa
de Joam Rodriguez de
Castel Branco a este
vilancete.
¿ Adonde tienes las mentes
di, nigrigente pastor,
adond' estam tan ausentes
qu' a las ovejas presentes
mostras tanto desamor?
Que vemos unas mesarse,
otras de fambre morirse,
todas juntas apocarse,
tu hazienda mezcabarse
todo el tuyo destroirse.
Pastorzico descuidado,
solias bien pastorar,
solias ser alabado
d' hombre de mejor recado
que se podesse falhar.
Aora veyo tu vida
de todo desordenada,
tu persona entristecida,
tu majada mal regida,
tu memoria olvidada.
Que se te perd' el ganado,
mira bien qu' andas perdido,
mira qual eres tornado,
que eres de demudado,
de muchos nam conocido.
Mira qu' anda tu color
desvelada e denegrida,
vaste de mal a pior,
tal que seria mejor
tener la vida perdida.
No te pasmes, Joan Colhado,
ni s' espante tu persona
de me ver qual soy tornado,
que quien nesto m' ha causado
a nenguno no perdona.
Antes haze tanta guerra
a qualquier que sobreviene,
que de la qu' en min s' encerra
pasmo yo qual es la terra
que sobre si me sostiene.
De la descuidança mia,
de la perdicion de mi,
de no ser el que solia
fue la causa, fue la via
la libertad que perdi.
Que del dia que miree
aquelha por quien tal ando,
del ganado descuidee,
de mi mismo m' olvidee,
nunca delha m' olvidando.
Amorio m' haa robado
mi fuerça com su poder,
hame descanso quitado,
hame todo apartado
de lo que causa plazer.
Hame dado tanta pena
su fuerça y esquevidad
qu' a la muerte me condena
otra voluntad agena
que sierve mi voluntad.
Tod' el seso que tenia
es tornado en aficion,
em pesar elh' alegria,
rebuelta la fantesia,
mudada la condicion.
Ageno nel pensamento
de mi propio el penar,
todo mio el sentimento,
livre del contentamiento,
sojeito del desear.
No reposo noche y dia,
momento, punto ni hora,
ni bivo como queria,
porque la ventura mia
sempre mi mal empiora.
Tal qu' en aquesta montanha
du ando con mi ganado,
es la lembrança tamanha,
la memoria tam estranha
qu' es de mi tud' olvidado.
Em todo lo despoblado
nunca pastor habitoo,
que vivendo tam penado
podesse continuado
sofrir lo que sofro yo.
Porqu' es de tal condicion
el mal que dió Fortuna
que viendo mi perdicion,
no puede mi coraçon
hazer mudança ninguna.
No puedo caber coitado
en todas estas montanhas,
todo ando afortunado,
muy ardido y debrasado
del fuego de mis entranhas.
Aceso nel coraçon,
nacido de mi deseo,
conservado en afecion
de la mucha perfecion
daquel mi dios en que creo.
396
CANTIGA SUA, PARTINDO-SE.
Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguem.
Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d' esperar bem
que nunca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguem.
DE RUI GONÇALVEZ DE
CASTEL BRANCO.
O gosto que me falece
para desejar a vida
por quem sabe que m' esquece
tem a groria escondida,
em lugar que nam parece.
Quem a de mim escondeo
val tanto com fremosura
que nam me pod' a Ventura
tornar o qu' ela perdeo.
Tudo ja tenho perdido,
tudo tenho ja deixado,
tudo faço sem sentido,
sendo certo qu' esquecido
som de quem sam tam lembrado.
Pois vivo desesperado,
que será de minha vida?
Que farei? Nam sei que pida
que me nam sej' escusado.
A morte nam satisfaz
quanto mal tenho sofrido,
a vida morto me traz,
nenhũa cousa me praz,
de toda cousa dovido.
Nenhũu assessego tem
minha triste fantesia,
cada hora, cada dia,
com mil acordos me vem.
Vivo tam embaraçado,
som ja tam fora de mim
que de mui desconcertado
muito tenho começado
e a nada nam dou fim.
Que tudo veja perder,
qu' em tudo seja culpado,
nam no posso conhecer
nem está em meu cuidado.
Porque sei donde me vem
quem tantos males me cata,
nam m' entendo com ninguem,
fujo de quem me quer bem,
quero bem a quem me mata.
Aperfio contra mi,
o mais contrairo escolho,
o que vejo com meu olho
nam posso crer que o vi.
Toda cousa m' atormenta,
cad' hora menos contente,
todo remedeo s' ausenta,
qu' a vida qu' ee descontente
de tudo se descontenta.
Falar é cous' escusada
a quem quer que seja mudo,
ja som no cabo de tudo
sem ter acabado nada.
Cabo.
A culpa que muitos tem
de si a querem tirar,
mas a que d' outrem me vem
me parece que tambem
que nam me pode culpar.
Nem me quero agravar,
que meu triste coraçam
a tudo m' acha rezam,
nam se me pod' emmendar.
CANTIGA SUA.
Os encubertos cuidados
por descuberta rezam
desculpam meu coraçam,
meus olhos tristes, culpados.
Quaes olhos vos podem ver
que irem-vos desejar,
que nam seja mais errar
ver-vos sem vos conhecer.
E co esta assolviçam,
com meus crecidos cuidados,
com descuberta rezam
tem meus olhos desculpados.
399
OUTRA DE RUI GONÇALVEZ.
Que de meus olhos partais,
em qualquer parte qu' esteis,
em meu coraçam ficais
e nele vos converteis.
Est' ee o vosso lugar
em que mais certa vos vejo,
porque nam quer meu desejo
que vos di possais mudar.
E por isso que partais,
em qualquer parte qu' esteis,
em meu coraçam ficais,
pois nele vos converteis.
400
OUTRA SUA.
Quem tantos males consente,
s' algũ remedio esperasse,
era bem que soportasse.
Mas é cousa conhecida
quem esperança nam tem que
nam pode nenhũu bem
ser moor que perder a vida.
S' o passado e presente
o porvir remediasse,
era bem que soportasse.
401
DE
RUI GONÇALVEZ A
MORTE DA DUQUESA.
Ó descanso, ond' estás
que nunca te vê ninguém?
Quem cuidamos que te tem
nam sabe por onde vás.
Nam se pode conhecer
quem te nam sabe buscar,
pois te buscam com poder
e tu teens outro lugar.
Tam pouca parte nos dás,
é tam escuro teu bem,
que nunca te vê ninguem
nem sabe por onde vás.
402
OUTRA SUA EM ŨA PARTIDA.
Lembra-me qu' hei-de partir,
nam no posso afirmar,
com' hei-de poder sofrir
o que nam ouso cuidar?
Estaa em tal deferença
comigo meu coraçam
que me defenda a rezam
contr' ela me dá licença.
Desespero de partir
com vida deste lugar,
porque soo de o cuidar
começa alma de sair.
403
GROSA
DE RUI GONÇALVEZ
A ESTE MOTO:
Que faz apartar as vidas!
Venturas mal repartidas,
serviços mal estimados
dam tam crecidos cuidados
que faz apartar as vidas.
Por isto se desesperam
os que têm milhor servido,
porque fica seu partido
a ventura que perderam.
Quem vos visse estroidas,
lembranças de meus cuidados,
pois sam tam desestimados
que faz apartar as vidas!
404
CANTIGA SUA.
Estaa muito por passar,
eu nam posso co passado,
com que me hei-d' ajudar,
do porvir desesperado?
E estas tristes lembranças,
com que encurto minha vida,
nam nas mudaram mudanças
nem esperança perdida.
O passado é passado,
o porvir é por passar,
hei por ele d' esperar
sobre tam desesperado.
405
OUTRA SUA.
Aperfia meu desejo
no que nam pode cobrar,
nam se quer desesperar,
desesperado me vejo.
Força-me com seu poder
a sofrer grave paixam,
espera por gualardam
donde nam pode nacer.
Tal poder tem meu desejo
que nam se pode mudar
nem se quer desesperar,
desesperado me vejo.
406
OUTRA SUA.
Ũa esperança que tinha,
em que cabia prazer,
Ventura m' a fez perder,
porque soube que era minha.
Nunca cousa desejei
que m' ela nam estorvasse,
nunca nada receei
que muito tempo tardasse.
A maa ventura é minha,
que boa nam pode ser,
pois s' acabou de perder
ũa pequena que tinha.
407
OUTRA DE RUI GONZALVEZ.
Maas novas me dam de mim,
olhai por vós, coraçam,
nam creais qu' ha i rezam
nem sonheis com boa fim.
Querem-vos aconselhar
ante de vos conhecer,
bem deveis adevinhar
o que quer isto dizer.
Bom conselho d' antemão
é sinal de dar maa fim,
olhai por vós, coraçam,
pois eu nam olhei por mim.
408
OUTRA SUA.
A grande desaventura,
que se comigo criou,
todalas cousas mudou
pera mais minha tristura.
Deve-se desenganar
que nam pode mais fazer,
ja nam tem que me levar,
pois nam fica que perder.
Que ja me desenganou
o prazer e a trestura,
nam no tendes vós, Ventura,
que bem sei quem o levou.
409
OUTRA SUA.
A vida ja s' acabou,
o desejo é o que vive,
porque, como o de vós tive,
logo m' a vida tirou.
Porque manda que vos sirva,
achou em mim tanta parte,
este quero que me mate,
pois vós quereis qu' ele viva.
O desejo me ficou,
porque vida nunca tive,
que quem em desejo vive
nunca vida desejou.
410
OUTRA SUA.
Esperança, pois tardastes
ja vos nam aguardarei,
tanto me desesperastes
taa que me desesperei.
Vossos enganos cubertos,
fingidores da verdade,
m' encheram de vaidade
taa que foram descubertos.
Pois que sempre m' enganastes,
nunca mais m' enganarei,
castigado me leixastes,
desenganado fiquei.
411
VILANCETE DE RUI GONÇALVEZ.
Mil corações haa mester
quem vos houver de servir
ou nenhũ pera sentir.
Que vossas cousas nam sam
pera vos ninguem sofrer
nem eu nam sei coraçam,
em qu' elas possam caber.
Ha mester de o nam ter
quem vos houver de servir
ou mil pera se sofrir.
412
ESPARÇA SUA.
Quanto pude aperfiei
e nunca pude acabar,
quero agora começar
o com que m' acabarei,
que será desesperar.
Que dentro neste perigo
nam hei mester quem m' ajude,
aqui acabo comigo,
pois que com outrem nam pude.
Trova sua que mandou a
Garcia de Resende com
estas trovas.
Porque nam haja memoria
de tam mal aventurado,
pond' isto entitulado
em quem disso levar groria.
Que bem mal pareceria,
em cancioneiro posto,
homem sem vida nem gosto
vir-lhe tal à fantesia.
CANTIGA DE
DOM JORGE
MANRIQUE.
No sé porque me fatigo,
pues com razon me venci,
no siendo nadie comigo
y vos y yo contra mi.
Yo por haveros querido
y vos a mi desamado,
con vuestra fuerça y mi grado
havemos a mi vencido.
Y pues fui mi enemigo
em me dar como me di,
¿quien quererá ser amigo
del enemigo de si?
Do
Doutor Francisco
de Saa,
grosando esta
cantiga
de Dom Jorge
Manrique.
Viendome tam lastimado,
muchas vezes me maldigo
com' hombre desventurado,
mas despues de bien mirado
no sé porque me fatigo.
Qu' aunque siento gram pesar
desd' el dia em que vos vi.
quando os buelvo a mirar
no sé de que me quexar,
pues com razon me venci.
Y si vos me cativastes,
vos misma sed el testigo
de lo poco que acabastes,
quanto más que me tomastes
no siendo nadie comigo.
Y aun esto no abasto,
mas quando elh' alma vos di,
qu' a vuestras manos morió,
no era comigo yo
y vos y yo contra my.
Qu' es lo que ya no faree
por vos, pues por vos perdido
em gram prueva de mi fee
a mi mismo desamee
yo por haveros querido.
Aqueste comienço tal
ham mis amores lhevado,
mas que fim tam desigual,
que he yo querido mi mal
y vos a mi desamado.
Vuestra vista me robó,
¡ay de my desventurado!
lo que mi querer os dió
y quedé robado yo
con vuestra fuerça y mi grado.
Ved que milagro tamanho
si, stando desprecebido,
triste de mi, de mi danho,
comigo y con vuestro enganho
havemos a mi vencido.
¿ Do falharee piedad?
¿em quiem emparo y abrigo?
pues que de mi voluntad
me fize tal crueldad.
Y pues fui mi enemigo,
mi triste vida e querelha
quiem puedem falhar por si,
pues fui por cruel estrelha
contra mi y contra elha
em me dar como me di.
Fim.
Pues solo por mi pecado
y por ageno castigo,
lhoraré yo mi cuidado,
ca d' hombre tam mal mirado
¿ quiem quererá ser amigo?
¿ Qual será la voluntad,
aunque ja tarde lo vi,
do reine tal ceguedad
que no fuya elh' amistad
del enemigo de si?
414
CANTIGA DE FERREIRA.
Congoxas, tristes cuidados,
pensamientos desiguales,
lhorando presentes males
m' acuerdan bienes passados.
Mudanças que no pensé,
ni tu pensar las devrias,
me hazen ver que veré
muy cedo el fim de mis dias.
Ansi que los olvidados
mis servicios desiguales,
lhorando presentes males,
m' acuerdan bienes passados.
Grosa do Doutor Francisco de
Saa a esta cantiga.
Pues veo de mi fuir
los bienes tan bien guanados,
mientra no puedo morrir,
forçado m' es de sufrir
congoxas, tristes cuidados.
Ca grave angustia es venida
y grande extremo de males
y com dolor sin medida
fatigam mi triste vida
pensamientos desiguales.
Porqu' a la passada gloria
de bienes tam principales
esle dado tal vitoria
que lastimen mi memoria,
lhorando presentes males.
¿ Que fueron mis alegrias,
senhora, sino cuidados?
Pues las noches y los dias,
lhorando las penas mias,
m' acuerdan bienes passados.
Y caso que cierto creo
que sabés bien el porqué:
vida y muerte del deseo
es la causa por que veo
mudanças que no pensé.
Ca pues que mi pensamiento,
senhora, tu lo regias
sim nunca hazer movimiento,
por justo comedimiento
ni tu pensar lo devrias.
Y porque mijor me creas,
bien querer, celos y fe
entre tam crudas peleas
la muerte que me deseas
me hazen ver que veré.
Ca serem passadas ja
mis glorias y alegrias,
tam triste vida me da
que cierto sé que verná
muy cedo el fim de mis dias.
Ansi qu' esta mi tristura,
ansi que los mis pecados,
ansi que mi desventura,
ansi que tu desmesura,
ansi que los olvidados
tus prometimientos vanos
y falsos y desleales
ma haran morir a tus manos,
pues juzgas por tan livianos
mis servicios desiguales.
Fim.
Y pues al triste de mi
das mil penas, de las quales
ninguna te mereci,
suspiro el bien que perdi
lhorando presentes males.
Y aunque yo quiera, no puedo
tenelhos disimulado,
porqu' a mi, que ja fui ledo,
los tormientos em que ruedo
m' acuerdan bienes passados.
415
CANTIGA.
Comigo me desavim,
vejo-m' em grande perigo,
nam posso viver comigo
nem posso fogir de mim.
Antes qu' este mal tevesse,
da outra gente fugia,
agora ja fugiria
de mim, se de mim podesse.
Que cabo espero ou que fim
deste cuidado que sigo,
pois trago a mim comigo
tamanho imigo de mim?
416
OUTRA SUA.
Que remedio tomarei?
Pois tam certa a morte estaa
qu' a dor, que tal dor me daa,
se me segue, matar-m'-aa,
se me deixa, matar-m'-ei.
Nam é em poder humano
escusar-ma jaa ninguem,
pois ela tomado tem
meu remedio e meu dano.
Senhora, onde me irei?
Pois onde quer que me vaa
tam certa esta morte estaa
que convosco matar-m'-aa
e sem vós nam vivirei.
417
OUTRA SUA.
¡ Ay que vida tam esquiva,
do por enemiga suerte,
por lhoro y dolor se arriva
do se bive em pena biva
y se sale por la muerte!
Por do yo desventurado,
que juzgo mi desventura,
com deseo he deseado
que hoviera sido lhevado
del vientre a la sepultura.
Ca la mui alma cativa
do quiera que se convierte,
cercada de pena esquiva,
no ve por donde reciba
menos mal que por la muerte.
418
ESPARÇA.
Porque podera abafar,
senhora, o mudo, s' ouvira,
a natureza lhe tira
o ouvir e o falar.
Pois s' havia de nacer
d' ouvir tal desejo em mi,
coitado, pera que ouvi,
pois que vos nam posso ver?
419
CANTIGA.
Antre temor e desejo,
vam esperança e vã dor,
antre amor e desamor,
meu triste coraçam vejo.
Nestes estremos cativo
ando sem fazer mudança,
e jaa vivi d' esperança
e agora de choro vivo.
Contra mi mesmo pelejo,
vem d' ũa dor outra dor
e d' ũ desejo maior
nace outro moor desejo.
420
OUTRA SUA.
Coitado, quem me daraa
novas de mim ond' estou?
Pois dizeis que nam som laa
e caa comigo nam vou.
Tod' este tempo, senhora,
sempre por vós preguntei,
mas que farei que ja agora
de vós nem de mim nam sei?
Olhe vossa merce laa
se me tem, se me matou,
porqu' eu vos juro que caa
morto nem vivo nam vou.
OUTRA SUA.
Oid y juzgad mi suerte,
senhora, que sois tan cruda,
que por vos pedir ajuda
antes la pido a la muerte.
A vos a quien he servido,
harto de más razon fuera,
que yo triste me socorriera
que no a quien me he socorrido.
Mas sois tan sorda y tan cruda,
o es tam cruda mi suerte,
que m' hazeis pidir ajuda
contra la muerte a la muerte.
422
ESPARÇA.
Cerra a serpente os ouvidos
aa voz do encantador,
eu nam, e agora com dor
quero perder meus sentidos.
Os que mais sabem do mar
fojem d' ouvir as sereas,
eu nam me soube guardar,
fui-vos ouvir nomear,
fiz minh' alma e vida alheas.
423
CANTIGA.
Triste de mi desdichado
que aquelhos con quien nasci,
por vos o por mi pecado,
los unos me ham dexado,
los outros som contra mi.
Dexóme mi libertad
y elh' amor qu' a mi tenia,
dexoume mi alegria,
dexoume mi voluntad.
Mi coraçom lastimado,
los ojos com que vos vi,
vida, memoria y cuidado,
estos nunca me han dexado
por serem más contra mi.
424
OUTRA SUA.
Ledo em minha tristura,
em meus descansos cansado,
querendo e sendo forçado,
ora cuidar m' assigura,
ora me mata cuidado.
Assi me tem repartido
estremos que nam entendo,
de todas partes corrido,
de todas desacorrido,
de nenhũa me defendo.
A vida nam estaa segura,
eu tenh' outro mor cuidado,
o mal tam bem estimado
que em tanta desaventura
me faz bem aventurado.
425
ESPARÇA.
Craro estaa meu perdimento,
nam sinto nenhũ tormento
a meu tormento igual,
mas veo cedo este mal
e tarde o conhecimento.
Perdido e desesperado
de toda parte cercado
d' agravos e desfavores,
tendes-me posto em estado
que posso doer aas dores
e dar cuidado oo cuidado.
D'ANRIQUE DE SAA A DIOGO
BRANDAM, MANDANDO‑
-LHE
ŨAS TRUTAS
DE FREIRA.
Estas trutas são daquela
a quem vós dizeis: — a ponto!
levam ovos e canela,
nem co elas nem par' ela
nunca se vos põem em ponto.
Isto soube per ũ conto
qu' uma doona me contou,
em que pouco vos gabou.
427
REPOSTA D' ANRIQUE DE SAA ÀS
TROVAS DE DIOGO BRANDAM
QUE COMEÇÃO: DEPOIS, SE‑
NHOR, QUE FORÇADO
ME TROUXERAM
CÁ CATIVO.
Estando bem namorado
d' ũa senhora, que pena
minha vida e desordena
meu cuidado,
vossas trovas me chegarão
tão doridas
que, se tivera mil vidas,
m' as tiraram.
Mas eu nom tenho senão
ũa soo, mais que perdida,
porque sempre a minha vida
daa paixão,
sem querer nunca mudar
por outra via
senão sempre a fantesia
em me matar.
Por esta tenho crecida
tristeza que nom tem par,
por esta nom posso dar
a minha vida
consolação nem prazer
como soia,
antes crece cada dia
em padecer.
Por esta são mais que morto,
pois vivo vida penando,
sem saber como nem quando
terei conforto.
Querendo-lhe grande bem
desordenado,
são dela mais desamado
que ninguem.
Por esta noites e dias
me vejo sempre penado,
desta são mais namorado
que Mancias.
Desta soo me cativei
tee minha fim,
que ja doutra nem de mim
nunca serei.
Esta faz que vos nom possa
ajudar como desejo,
porqu' a dor em que me vejo
desapossa
de maneira e de tal sorte
meu poder
qu' estou jaa, por nom na ver,
perto da morte.
Mas pois que de mi quereis
ajudar vossa requesta
nesta trova e depós esta
atentareis.
Nom terês em pouca estima
o que vos digo,
dê-me Deos tal par consigo
a vossa prima.
Dizei-me, senhor, quem possa
conselhar-me como viva
que me nom mat' est' esquiva
mais qu' a vossa.
Porqu' a vossa nunca perde
neste mundo
quem nom leixa ir ao fundo
quem na serve.
E co esta confiança
deveis de ledo viver,
se vos der algũ prazer
ter esperança.
Porqu' eu nunca d' esperar
pude ver
como nom visse crecer
meu pesar!
Que quanto mais esperava,
sem d' esperança ver fim,
tanto mais ver-me sem mim
se me dobrava.
E pois isto ha sempre dor
d' acrecentar,
ver-me bem desesperar
hei por milhor.
Ò menos nom sintirei
quanta dor sinto esperando,
sem saber em certo quando
acabarei
este tão triste fadairo
em que me vejo,
pois sabês que o que desejo
m' ee contrairo.
Fim.
Senhor, estas trovas vossas
e esta reposta delas
parecem Cento Novelas
de finas mentiras grossas.
Se o juizo nom perdi,
ponde-vos mui bem ò posto
onde falaes em Agosto
e verês logo qu' ee assi.
428
CANTIGA SUA.
De mi vida desespero,
pues non quiere mi ventura
que vuestra grão fermosura
me quieira como le quiero.
Non quiere mi triste suerte
vir momento consolarme,
ni sé para remedearme
remedeo sino la muerte.
La qual venga, pues la quiero,
pues nunca quiso Ventura
que vuestra grão fermosura
me queira como le quiero.
429
OUTRA SUA.
Nom queiraes por Deos matar-me,
querei jaa de mim doer-vos,
possa mais o bem querer-vos
que vosso grão desamar-me.
Queira vos fermosura,
pois que soo tem o poder,
tirar-me desta tristura,
qu' esta vida sem ventura
nom se pode mais sofrer.
Nom queiraes desconsolar-me,
pois que nom vivo sem ver-vos,
possa mais o bem querer-vos
que vosso grão desamar-me.
430
D'
ANRIQUE DE SAA A NOSSA SENHO‑
RA, ESTANDO
COM DOEN‑
TES DE PESTE EM
SUA CASA.
Oo fonte de perfeição,
oo piadosa Senhora,
Senhora da Conceição,
lembra-Te de nós agora
em nossa trebulação.
Manda-nos consolação,
qu' estamos desconsolados,
tãobem nos pide perdão
a teu Filho dos pecados,
Senhora, que tantos são,
que sem sua intercessão
nom podem ser perdoados.
431
CANTIGA SUA.
Meus olhos, vós m' ordenastes
ver-me de todo perder,
pois que fostes conhecer
de quem me desesperastes.
Ordenastes minha pena,
destroistes meu sentido,
ordenastes que s' ordena
ver-me de todo perdido.
Este mal que me causastes
terei enquanto viver,
pois que fostes conhecer
de quem me desesperastes.
432
D' ANRIQUE DE SAA.
Non oso mim mal dezir
temiendo mi danho creça,
ni se miete en cabeça
como lo pueda encobrir.
Ni halho manera como
no vea mi perdicion
ni tengo consolacion;
y nel remedio que tomo
el calhar quiero sofrir
em que mi vida padeça,
que temo que se recreça
más danho del descobrir.
433
OUTRA SUA.
Muito mais mal me sentira
da dor qu' os olhos ordena,
se os tivera sem pena!
Mas assi como lobrigo,
vi dama tão sengular
que tem taes cousas consigo
com que a todos pode dar.
O mal que tenho comigo
de mim me fez ser imigo,
pois busquei como s' ordena
morrer por ela de pena!
434
DE
DIOGO BRANDAM AO BISPO
DO
PORTO, SOBRE QUATRO MIL
REAIS
QUE TINHA PROMETIDOS A
Ũ ESCRAVO DE
MARTI‑
NHO DA MOTA, PERA
AJUDA DE SUA
ALFORRIA.
O cativo meo forro,
fusco dantre lobecão,
nom se diz em maa tenção,
vos pede, senhor, socorro
pera sua redenção.
Livrai-o de cativeiro
per inteiro,
sem minguar nenhũa jota,
porque Martinho da Mota
jaa nom quita mais dinheiro.
435
D'ANRIQUE
DE SAA, ESTANDO
AUSENTE DONDE PODIA
VER SUA DAMA.
Nunca mais me partirei
pera fogir aa tristura,
pois que caa onde m' achei
ma daa vossa fermosura
tal que cedo acabarei.
Porque cuidava, senhora,
descansar
e acho que mais penar
vai caa fora.
Que se laa pena sofria,
soo em ver quem ma causava,
em que mil penas passava
algũ descanso sentia
desta dor que me matava.
Mas estando caa tão fora
de vos ver,
que farei senão morrer,
minha senhora?
Qual milhor me seraa
que viver vida de sorte
que ninguem nom vivirá,
senão eu a quem na daa
o vosso coração forte,
muito mais duro qu' aceiro,
pera quem
vos quer ũ tamanho bem,
tão verdadeiro.
Ando caa desesperado,
ando mil sospiros dando
e ando tão namorado
que, s' em vós estou cuidando,
meu rosto logu' ee regado
destas lágrimas tam tristes
como são,
as quaes vós, meu coração,
mil vezes vistes.
Fim de mi triste seraa
a vossa pouca lembrança
da maa vida que me daa,
porem minha confiança
nunca jaamais deixará
de ser vosso e vos querer
tee minha fim,
pois alheo nem de mim
nom posso ser.
436
CANTIGA D' ANRIQUE DE SAA
EM LOUVOR DE
SUA
SENHORA.
Toda fermosa nacida
ha-de morrer de tristeza,
pois toda arte de lindeza
soo de vós é possoida.
A vós soo quis Deos fazer
desigual em fermosura,
por nos dar a nós tristura
e a nossos olhos prazer.
Morreraa toda nacida
d' ũu mal que chamam tristeza,
pois toda arte de lindeza
soo de vós é possoida.
De Fernão Brandão.
Nom se pode comprender
por rezão, saber, nem siso,
vosso gentil parecer,
pois quem fez o paraiso
nom fez pouco em vos fazer.
E pois estaa conhecida
vossa grande gentileza,
a damas darês tristeza,
a galantes triste vida.
De Diogo Brandão.
Parecer tão excelente
nam se fez d' humanas artes,
devês de viver contente,
pois que tendes juntamente
quanto todas têm por partes.
Senhora, tão escolhida
vos fez Deos em gentileza,
que por vós serdes nacida
dizem mal à sua vida
as que vem vossa lindeza.
437
D'
ANRIQUE DE SAA A FERNÃO
BRANDAM, CHEGANDO A ŨA
SUA QUINTÃA, EM QUE
NOM FOI BEM AGA‑
SALHADO D'UM
SEU CASEIRO.
Chegando muito cansado,
achei ũ vosso criado
na vossa quintãa d' Osela,
que me fez tal gasalhado
qu' outr' hora será forçado
passar bem de longo dela.
Falava em vossa amizade
mais vezes do que devia,
porem o que nos compria
fechava bem de verdade.
Mas, porem, por nom mentir
e fazer em vosso caso,
querendo-me jaa partir
os deu ũ alqueire raso
muito mao de repartir:
porqu' as bestas sete eram,
nom contando a minha mula,
e ũu alquer trouxeram.
Ora que querês qu' engula
cada ũa do que derão?
Dizei-me, por nom errar,
a quem devo de culpar
naqueste mao gasalhado:
s' este vosso paniguado,
se a vós por lho mandar.
Porque diz Deos verdadeiro,
O que aas fomes socorre,
que devês saber primeiro
se vem pelo despenseiro
se pelo senhor da torre.
Reposta de Fernão Brandão
de desculpa, mandando-lhe
Anrique de Saa com estas
trovas dous
cobros de
cachaça magros e
de delgados.
O mordomo que laa vistes,
que cevada tão mal deu,
inda, senhor, nom é meu
pelo qual vivemos tristes
por nom comermos do seu.
Mas a cachaça d' Abreu,
que vimos emberrigada,
em Osela foi cevada
ou em cas d' algũ judeu.
438
D'
ANRIQUE DE SAA A DIOGO
BRANDAM, MANDANDO‑
-LHE Ũ PRESENTE
DE VINHO.
Senhor, protesto,
qu' inda que vos saiba bem,
que a vós nem a ninguem
nam convide mais qu' o resto.
Porque vejais como presto
melhor do que mo fazeis,
vos mand' esse que proveis,
do que fica nam cureis
porqu' a ele me menfesto.
Reposta de Diogo Brandam
polos consoantes.
Eu contesto
polo qu' a vasilha tem,
mas eu queria, porem,
o vendedor manifesto,
para ser na compra lesto.
Que d' este sempre gosteis
e tenhais muito que deis,
isto soo me decrareis
e vereis como m' atesto.
439
TROVAS QUE FEZ ANRIQUE DE SAA
A ŨA SENHORA, QUE TOPOU EM
ŨA RUA E LHE PARECEO
BEM,
ENDERENÇADAS A FER‑
NÃO BRANDÃO.
Estando bem longe de ser namorado
e disso os sentidos lançados bem fora,
topei com senhoras. Mas ũa senhora
me fez logo seu de muito meu grado.
Ando caa morto com este cuidado,
sem poder dela tirar o sentido
e pois são tão vosso e são tão perdido,
mandai-me conforto desapassionado.
Porqu' esta senhora por quem m' assi vejo,
ũ pouco vos toca em progenitura,
tem tal gentileza e tal fremosura
que faz cem mil homens morrer de desejo.
A mim faz da vida, senhor, ter entejo,
por sua vertude negar esperança
e pois outro bem daqui nom s' alcança
pera lhas lerdes, senhor, vos enlejo.
Pera que saiba de minha paixão
e pena mortal, que por ela sento,
e saiba que tenho de juro tormento
e qu' ela com graça tem meu coração.
E saiba que deve de ter presunção
de todalas graças que dona ha-de ter
e saiba que sabe em todo saber
senam que nom sabe em dar gualardão.
E saiba que vivo por ela penado
todalas horas da noite e do dia,
e que naquel hora perdi alegria,
quando a todos a vi ir matando.
Oo triste de mim, que nom sei jaa quando
veja o dia que a hei-de ver,
e s' inda nom sabe de meu padecer,
fazei-lho saber, por geitos falando.
Que vossa pessoa com minha paixão
e vossas palavras de grão gentileza
minguarão muito de sua crueza,
farão piedade em seu coração,
pera que nom queira minha perdição,
e vós pelo meu o devês de querer,
que nom haa molher tão dura de crer
que nom tenha geito d' haver compaixão.
Reposta de Fernão Brandão pelos con-
soantes. Tem esta
primera
que é introdição.
Posto que tenha o gosto perdido
de cousas pequenas, que tem vossa vida,
e outras maiores que são sem medida,
por menos descanso de vosso sentido
nestas, se posso, serês respondido.
Sem nada saber d' agora nem dantes
de partes, de silabas e boons consoantes,
respondo por eles por ser milhor rido.
Reposta.
Estaveis, senhor, jaa tão enfadado
de cousas passadas e destas d' agora,
que jaa nom m' espanto da que vos namora,
mas como tornastes a ser enganado!
Se o fezestes por serdes tornado
antes do dia, qu' estava sabido,
foram amores de mui boom marido,
que nom se quer dar por tão derribado.
E a que vos tem com seu boom despejo,
des que partistes com vossa tristura,
foi hora minguada e de pouca dura
pera quem tem amor tão sobejo.
Mas pois me mandais que nem ponha pejo,
daqui vos prometo sem outra mudança
que ponha meu sangue em tanta balança
que todos s' espantem de como pelejo.
E vosso saber com grão descrição
e outros primores direi com tal tento
que saiba bem certo que nom sois isento,
mas antes cativo com forte prisão.
Se nesta primeira vir sua tenção
como quem vio e a pode bem ver,
direi o que disto se pode entender,
porqu' ela jaa sabe que tendes rezão.
E pois que mereço ser de tal bando,
por dar-vos descanso a vida daria
e crede, senhor, que nom sentiria
perigo nenhũ naqueste tratando.
Mas vejo meus dias ir jaa decrinando
e os vossos maiores tão bem perecer,
pois qu' esperança podemos jaa ter
de donaa que cria os seus embalando?
E digo, senhor, por final concrusão
que, se vos lembrardes de vossa nobreza,
livre serês daquesta tristeza,
pois dela nos nace maior gualardão.
E nesta m' afirmo e logo na mão
sem outras doçuras nem lindo dizer
e isto assi feito se pode bem ver
a vossa sentença sem contradição.
Pregunta de Diogo Brandam.
Sam sepultados em corpos de mortos,
quando se fundam matar aos vivos,
e nunca cativam, sem serem cativos,
nem usam dereito senam sendo tortos.
Dos cinco sentidos humanos, os portos
dos quatro se çarram em sua conquista,
a qual, ja nom sendo, entam é bem vista,
quand' os sepultados se tornam abortos.
Reposta.
Dos quatro elementos nũ deles sam mortos
os que nos tres nam sam sensetivos
em outro daqueles depois d' alertivos
se pooem os tomados com fios retortos.
O homem recebe açaz de reportes,
quando picando vitoria. s' aquista,
tambem é doutrina qu' a boca resista,
pois eles por ela da vida sam cortos.
D' ANRIQUE DE SAA A DIOGO BRANDAM
SOBRE Ũ HOMEM QUE DISSE QUE SE PER
FIDALGUIA FOSSE, QUE JESU D' ABREU
LHE DEVIAM DE CHAMAR, O QUAL
NOME LHE FICOU E, QUANDO
MORREO O CONDE DE POR‑
TALEGRE, ENÇARROU-SE
POR ELE, NAM TENDO
COM ELE NENHŨU
PARENTESCO.
Mandai-me, senhor, dizer
s' ee jaa desençarrado
o vosso deos anojado.
Qu' eu tambem, senhor, estou
de loba, mas nam na friso,
e porem morto de riso,
porque se deos ençarrou.
Fazei-me logo saber
se é ja desençarrado
o nosso crucificado.
Reposta de Diogo
Brandam.
Antontem sahio à tarde
guedelha mais que ninguem,
e Nosso Senhor me guarde
deste filho que cá tem.
Nunca ja ouvi dizer,
antes de Ramos passado,
ser Cristo ressuscitado.
441
D'ANRIQUE DE SAA.
No sé porque Dios me dió
los ojos com que os vi,
pues con elhos me perdi.
Vi em veros mi dolor
y halhé mi sepultura
y vi triste mi tristura
venir de mal em peor.
Pues mi pena es la mayor
que se vio desque os vi,
no sé para que naci.
Fernam Brandam.
Y los otros mi sentidos,
que libres de vos nacieron,
em os viendo se perdieron
y por vos son bien perdidos.
Mis cuidados som crecidos
desd' el dia que os vi,
pues en veros me perdi.
Outra sua.
Non tienen culpa los ojos
mas merecem em la verdad,
pues de sus tristes enojos
fue causa tanta beldad.
Com todo la ceguedad
fuera mejor para mi,
pues con elhos me perdi.
Gaspar de Figueiroo.
Naquesta pena y cuidado
que triste padesco yo,
pues por vida me lo dió
Dios deve ser el culpado
aunque de bien empleado
no culpo a El ni a mi,
pues en veros me perdi.
Culpa bienaventurada,
senhora, devo lhamar
a la que em os mirar
tiene mi vista turbada,
que vitoria es acabada
vencido quedar assi
contento, porque naci.
Afonso Pirez.
No vio bienes el nacido
que no vio vuestra figura,
si no vio tal hermosura,
tod' el guanar es perdido.
Los ojos que no ham vido
lo que com ver me perdi
no vieron lo que yo vi.
DE FERNAM BRANDAM A Ũ HOMEM
QUE LHE PREGUNTOU QUEM
ERA SUA DAMA.
De tam alto merecer
ha nacido mi passion
qu' em lugar del gualardon
he por bien el padecer.
Remedeo de lo que sento
no lo espero ni lo pido,
porqu' em verme assi vencido
descansa mi pensamento.
Y pues me muestra razom
el pago de mi querer,
contentese el coraçon
donde el bien es padecer.
443
COPRA
SUA A ANRIQUE DE SAA
QUE LHE MANDOU PREGUN‑
TAR QUE CUIDADO TRAZIA.
Nam se parte meu sentido
d' ũa casada que vejo,
nem o seu de seu marido,
por onde tenho sabido
o que nom pode ser comprido
meu desejo.
Apartar-me é cousa forte
por camanho bem lhe quero,
em segui-la desespero,
este mal é de tal sorte
que nam sei quem me conforte!
444
OUTRA SUA DE LOUVOR.
Presumir de vos louvar
nam merecem meus sentidos,
pois que tendes dos nacidos
os louvores escolhidos
sem nenhum ficar por dar.
E o que cuida que sabe
nam vos gabe,
creamos-vos simprezmente,
que louvor d' humana gente
nam vos cabe!
445
PERGUNTA SUA A JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA, INDO PERA
ALEM, A PRIMERA
VEZ QUE FOI.
Porque sois o mais louvado
de quantos vimos nacer,
mandai-me, senhor, dizer,
porque fique descansado,
se levais maior cuidado
de morrer,
se de virdes murmurado.
E se fama ou nobreza,
se cristãao, se gentileza,
qual vos toca nesta ida
e tambem se vossa vida
nela padece tristeza.
Reposta pelos consoantes.
Sem tocar no lijonjado,
pera mais me nam deter,
quero logo responder
que vou, senhor, mui armado
da lembrança do passado,
que fez ser
este meu nome estimado.
Tambem temor de vileza
e de danar a lindeza,
por mal assadas de vida,
faz a vontade crecida,
a qual sobretudo preza
catolica forteleza.
446
SUA, DE FERNAM BRANDAM.
Se mi vida s' acabasse,
la muerte no sintiria
com tanto que s' acordasse
algũ dia
la causa que me matasse.
Y que fuesse tam mortal
que jamas sentiesse gloria,
tomaria por vitoria
la lembrança de mi mal.
Y que nunca descansasse
nel inferno alma mia,
se despues vos acordasse,
beveria
auunque muerto me falhasse.
447
CANTIGA SUA, PARTINDO-SE
DONDE ESTAVA SUA
MOLHER PERA
PRETO.
Pois que tal dor me conquista,
sendo tam pouco apartado,
que farei desesperado,
muitos dias alongado,
senhora, de vossa vista?
Mui mal se pode sofrer,
pois a tristeza d' ũu dia
doi muito mais, a meu ver,
do que podem dar prazer
muitos outros d' alegria.
Assi que pois me conquista
este mal tanto dobrado,
que farei desesperado
muitos dias alongado,
senhora, de vossa vista?
448
PREGUNTA SUA A ANRIQUE DE SAA.
Vos que nacistes por dardes cuidado
a grandes poetas y más oradores,
a vos que vos cabem devinos loores
y de los humanos lo más soblimado;
a vos de los hombres ũu solo dechado
donde sacamos lo bueno lavor,
a vos que los grandes vos tem por mayor
y todos los otros vos sirvim de grado,
Pregunto: — ¿Qual es aquelha volante
do nacem escritos sem ter curruçam
y jera los todos em solo un estante
y sem se juntar com su semejante
formam sus vidas em su perficiom?
Delha no tive jamas criaçam,
logo los dexa em serem nacidos,
y haze d' aquestos em partes sus nidos,
sim terem da madre nengun afeciom.
Reposta pelos consoantes.
Aqueste sobirme de grado em grado
em que me possistes com tantos honores,
teniendo vos todos aquestos primores,
quedais em la filha muy más exsalçado.
Querervos loar, no siendo loado
como merece el vuestro primor,
de los poetas so yo el menor
y vos conocido por más acabado.
Es enojosa a todo trinchante
esta vuestra ave com mucha rezom
y tambem los hijos por su consonante
pera mantenelhos no es abastante,
mas criamse em carnes agenas sim pam.
Esta es la materia de su formaçam,
donde de chicos se hazem crecidos,
es esta la mosca, segun mis sentidos,
madre de muchos que moscas no sam.
449
DE
FERNÃO BRANDÃO AO
SENHOR
BISPO DO PORTO, PERA SE
LANÇAR DA CIDADE Ũ
HOMEM PECADOR.
Eu seguro a novidade
e o mais qu' está perdido,
se lançardes da cidade
o que fora foi nacido,
porque Deos seja servido.
E pois sõees nosso pastor,
das ovelhas curador,
esta seja castigada,
por nom ser contaminada
a manada
por vossa culpa, senhor.
450
PREGUNTA SUA
A ANRIQUE DE
SAA, QUANDO HERDOU.
Pois que Deos vos tem curado
da necessarea doença,
pregunto coma privado
pela nova deferença,
se é este mor cuidado,
se o outro ja passado?
E pois digo da trindade
por saber bem a verdade,
sem me disso repender,
assi saiba da vontade,
que soiẽs antes ter,
se a move novidade.
Reposta d' Anrique de Saa
polos consoantes.
Sinto-me mais descuidado
com esta nova sentença,
que Deos tinha dilatado,
sem se lembrar da pendença
que tinha perto e forçado
com quem me tinh' emprestado.
E pois me deu liberdade,
far-lh' -ia gram roindade
de me mais engrandecer,
tambem quer siso e idade
o meu sempre vosso ser,
nam no mover vaidade.
451
VILANCETE
SEU, DE FERNÃO
BRANDAM.
No puedo triste pensar
remedeo para la vida,
que no sea más perdida.
Y con este pensamiento
mil remedeos he buscado
y nenguno he falhado
que descanse mi tormento.
Y por más me lastimar,
pensando cobrar la vida,
antam la veo perdida.
452
CANTIGA SUA.
Nesta vida ũu soo dia
nam se vive sem marteiro
nem ha i prazer inteiro
que descanse a fantesia.
Mas a condiçam é tal,
enquanto nela vivemos,
que nam quer que descansemos
e com lagrimas tomemos
o seu bem e o seu mal.
E portanto nenhũu dia,
até ver o derradeiro,
nam verês prazer inteiro
que descanse a fantesia.
453
PREGUNTA SUA GEERAL.
A todolos trovadores,
jentis homens, namorados,
mancebos, velhos, casados,
poetas e oradores,
por mercê que me respondam
aa pregunta qu' aqui digo,
e, se mal trago comigo,
este bem nom mo escondam.
Desejo muito saber,
dos que sabem sem mais grosa,
as feições que ha-de ter
a dama pera fermosa.
E seja com condiçam
que nam toquem na feiçam
d' ũa soo que foi nacida
e escolhida
antre as filhas de Siom.
Porque n' Esta nunca toca
sentido pera entendê-la,
item mais nenhũa boca
nam merece falar nela.
Mas das outras qu' a meu ver
vemos todas enganosas,
saibamos o qu' ham-de ter
pera fermosas.
454
ŨAS TROVAS A ESTE VILANCETE
CASTELHÃO,SUAS.
Para mi triste nacieram
cuidados, desaventura,
para mi nació tristura.
Y las penas quantas son
nesta vida yo las siento,
porque nace mi passion
de muy alto pensamiento.
Nacieram triste, sem cuento,
cuidados, desaventura,
para mi nació tristura.
Del remedeo desespero
y de toda esperança,
que pues muerte no s' alcança,
no pido nada ni quiero,
sino la fee com que muero
me queda por mi ventura,
para ter mayor tristura.
Ajuda d' Anrique de Saa.
No me pongas en olvido
tu muerte que tantos matas,
si con elhos nã me catas,
catame, pues te lo pido.
Tirarás de mi sentido
la que de mi no tiene cura,
pera mi nació tristura.
De Diogo Brandam.
Naceram, quando naci,
comigo sempre creceram,
yo triste padeci
más que quantos padecieram.
El más mal que me fizeram
es que seram de más dura
mis dias, por más tristura.
De Gaspar de Figueiró.
Toda cousa de paixam,
em que nam ha esperança,
tenho ja como d' herança
sentada no coraçam.
De juro nojos ma dam
cuidados, desaventura,
pera mi naceo tristura.
Afonso Pirez.
Ninguno de los penados,
ni los que ham de penar,
podem sus penas lhegar
a el mal de mis cuidados.
Para mi som concertados
dolores, desaventura,
la vida me daa tristura.
455
DE
FERNÃO BRANDAM A
Ũ HOMEM
QUE DISSE QUE SE PER FIDALGO
FOSSE QUE JESU CRISTO
O CHAMARIAM E ESTE
TOMOU ŨA SISA DA
CARNE, NA MAIA,
TERMO DO
PORTO.
Do gram milagre dest' ano
todo coraçam desmaia
em saber qu' o deos humano,
rendeiro por nosso dano,
quis tomar carne na Maia.
Por mais espanto mostrar
este cristo, Deos eterno
ordenou que do inferno,
por os mais atormentar,
o viessem caa ajudar.
456
DE
FERNAM BRANDAM A
ANRI‑
QUE DE SAA, PERGUNTANDO-LHE
POR SEU FILHO JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA, QUE VEO
D' ALEM, E POR
SUA CASA.
É tanto tempo passado
sem ouvir nenhũas novas,
que me foi, senhor, forçado
dar descanso a meu cuidado
com preguntas nestas trovas.
E por mais satisfazer
a meu desejo primeiro,
pregunto polo herdeiro
verdadeiro
da gram terra de Sever.
Se faz na corte detença
ou se torna a militar,
se despacha algũa tença
ou com dama traz pendença,
tudo compre preguntar.
Se mandou pedir dinheiro,
tambem venha nesta conta,
porque pode andar a monta
com afronta
o seu ruço ou foveiro.
Item mais quero saber
se vem cá ter o Veram,
de seu tio Dom Joham
se requere, se na mão
lhe dá mais que o comer.
Item se foi cometido
pera que tome parceira
ou se traz em seu sentido
a sua dama primeira,
pois que dela foi vencido.
Após estas quero mais
da senhora principal
e da vida que lhe dais
e a vossa qual tomais,
pois nom é a devinai.
Da vossa filha primeira
e da segunda,
da madrasta em que se funda,
venha nova mui inteira,
e de Robres e da freira.
Fim.
Fico sem nenhũ cuidado
de saber nenhũa cousa
do presente nem passado,
nem pregunto por privado,
nem quero saber du pousa.
Vivo sem muita fadiga
nesta fazenda pequena,
da molher nenhũa pena,
porque Deos assi ordena,
senam da sua barriga.
Reposta d' Anrique de Saa.
Som ja tam desavezado
disto tal que me mandais,
qu' ha mester desd' hoje mais
nom me dardes tal cuidado.
Por agora foi forçado,
por fazer vosso mandado,
de fazê-lo,
mas se for em contrapelo
compre de ser descalado.
E as novas que primeiro
querês do qu' anda fanchono,
mil vezes leva dinheiro,
mas nunca do mealheiro
de seu dono.
Que por nom ser encetado
annuerca,
se algũa cousa merca,
é d' emprestado.
Nom quer cá vir no Veram,
que tem obras nũ caderno
pera solfar est' Inverno
com seu tio Dom Joham.
E ja crer de moucaram
embebecado,
se lhe nom metem cruzado
na sua mão.
A freira por bom caram
que farte tem de marteiro
e de muita devaçam,
se lhe falam no moesteiro,
vem-lhe dor de coraçam.
Por trovas e repulhõs
reza matinas
e todas suas endinas
devações.
O nome que nomeais,
que ninguém tê-lo deseja,
faz mil fundamentos tais
quais nunca consigo veja.
Mas aquele que castiga
o mal feito
castigará com direito
quem faz briga.
Robres anda na Ribeira
co as mãos negoceado,
mete freira e tira freira
coma dado.
E s' o monte nom sentir
a poesia,
preguntai-mo outro dia
pera riir.
Das filhas nom tenho novas,
mas, em que muitas tevesse,
nom creais que vo-las desse
por nom m' obrigar a trovas,
em que fazê-las soubesse.
A senhora que me tem
está bem grossa,
mais a serviço da vossa
que ninguem.
DE
JOAM RODRIGUEZ DE SAA,
DECRARANDO ALGŨUS ESCU‑
DOS
D' ARMAS D' ALGŨAS
LINHAJEENS DE POR‑
TUGAL,
QUE SA‑
BIA
DONDE
VINHAM.
Por se levantar a gloria
das linhajes mui honradas,
que per obras mui louvadas
de si leixaram memorea
a quem lhes sigu' as pegadas,
suas armas devisando,
algũas irei lembrando
donde lh' a nobreza vem,
porque faça quem a tem
pola soster bem obrando.
E direi primeiramente
das altas quinas reaes
mandadas per Deos, as quaes
jaa conhece tanta gente
por senhoras naturaes:
que de Ceita atee òs chiins,
no Mar Roxo e abaxiins,
India, Malaca, Armuz,
com a espera e com a cruz
durarão tee fim dos fins.
El-Rei.
As dadas por mãos devinas
a rei mais que terreal
armas são de Portugal:
sobre prata cinco quinas
cos dinheiros por sinal,
cujos reis, que jaa passarão,
com vitorias as pintarão
per Africa em grão tropel
e El-Rei Dom Manuel
onde os romãos nom chegarão.
O Principe.
Estas de tanto primor,
com risco branco, luzente,
do mui alto e excelente
Princepe nosso Senhor
são sem outro deferente.
Em esperança criado
pera como no reinado
em vertudes e poder
El-Rei seu pai soceder,
pera ser rei acabado.
O Duque.
A quem fende ũu labeo
de dous escudos reaes,
sem outros nenhũs sinaes
que nom chegue de voleo
atees quinas devinaes.
Sobrinho de seu senhor
é de muito moor primor
do que meu louvor alcança,
senhor Duque de Bargança,
o que tomou Azamor.
O Mestre.
Ũu labeo atraves fende
por ser sinal este tal,
que por rezão natural
com rezam se lhe defende
o propio escudo real:
oo senhor a quem são dados
ũ ducado e dous mestrados
com outra tanta rezão,
filho d' El-Rei Dom Joham,
por nom dizer mais estados.
O Marquês.
Quinas, castelo e lião
e o dourado paves,
escaques com estas tres,
lobos, barras d' Aragão,
espada traz o Marquês:
Marquês de Vila Real,
de Castela e Portugal,
tresneto dos reis passados,
d' antecessores louvados
e ele por sair tal.
Casa de Bragança.
Sobr' aspa fazem mostrança
as quinas d' outra feiçam,
cruzes co elas estam,
armas sam dos de Bragança,
que vêm d' El-Rei Dom Joam.
Debaixo destas s' entendem
tres titolos, que dependem
de sangue tam poderoso,
Mira, Tentuguel, Vimioso,
que todos juntos comprendem.
Noronhas.
Sem temor e sem vergonha,
onde quer qu' eles estêm,
azuis e de prata têm
escaques os de Noronha,
d' ouro e veirados tambem.
Noronhas são da montanha
e nom doutra terra estranha,
donde a terra tomada,
de mouros é recobrada
e tornada aa fee Espanha.
Coutinhos.
As cinco estrelas sanguinhas,
em campo d' ouro pintado
do sangue antigo e honrado,
são nobres armas coutinhas,
feitas d' ũ ceo estrelado.
E sabe-se desta jente
que ganhou antigamente,
segundo a memorea alcança,
a casa por sua lança,
qu' agora tem no presente.
Castros.
Os que nom sofrem mais lastro
de nobreza, fidalguia,
seis arruelas diria
qu' azuis trazem os de Castro,
em campo d' argentaria.
E quem vir estes sinaes,
saiba que com estes taes,
vindos de Bizcaia ha tanto,
agora têm caa Monsanto
e a vila de Cascaes.
Eças.
Os que nũ cordão com noos
têm labeo d' armas reaes
e os pontos trazem mais
das quinas, têm por avoos
infantes e reis seus pais.
E que andem sem estado,
quejando foi o passado,
rezão nom será qu' esqueça
o real sangue dos d' Eça,
posto qu' o tempo é mudado.
Meneses.
Vem nos dourados paveses,
limpos de toda mistura,
a real proginitura
nos senhores de Meneses
d' Ordonho, rei qu' inda dura.
Cuja linhajem real,
que por muitas rezões val,
mete dentro em sua rede
Vila Real, Cantanhede
o Prior do Sprital.
Cunha.
Cinco cunhas testemunhas
sobre campo, qu' ouro banha,
s' hão-de vir de terra estranha,
o nobre sangue dos Cunhas
asselo mais em Espanha.
O certo nom sabem donde
mais que virem caa co Conde
Dom Anrique, no começo.
Santarem é de seu preço,
testemunha que lh' avonde.
Soasas.
De duas armas reaes
com quinas e com liões,
Sousas fazem quarteirões
por serem filhos carnaes
de dous reis por socessões:
d' ũu que teve tal valor
que foi par d' emperador,
doutro em Portugal seu par,
o primeiro no reinar,
primeiro conquistador.
Pereiras.
A veera cruz verdadeira,
joia de nosso tesouro,
que apereceo oo rei mouro
per milagre na pereira,
da vitoria certo agouro.
Em titolo de valia
florece hoje este dia
antre a montanha e o mar,
em Cambra, Feira e Ovar,
terra de Santa Maria.
Vasconcelos.
As que mil temores fazem
a quem ha-de navegar,
vermelhas ondas do mar
os de Vasconcelos trazem
sobr' azul mui singular.
Vasconcelos de Gasconha,
que nunca passou vergonha
em esforço e valentia,
no tempo que florecia,
nem agora ha quem lha ponha.
Melos.
Nom tem liões nem castelos,
mas seis brancas arruelas
e tres barras amarelas
o nobre sangue dos Melos,
que suas armas traz nelas:
é o que deles se toma
ser estrangeiros em soma
donde nom se sabe assaz,
ainda que o nome faz
presomir virem de Roma.
Silvas.
Do metal mais eicelente
os que trouxerem Lião
em prata Silvas serão,
que hoje s' acha presente
mais antiga jeração.
Foram seus progenitores
Capetos e Numitores,
reis d' Alva, donde vieram
os irmãos, que nom couberão
nũ soo reino dous senhores.
Albuquerque.
As cinco flores de lis
com quinas em quarteirão
os Albuquerques trarão,
os que d' El-Rei Dom Denis
trazem sua geração.
E por tocar tal estado
bem merece ser honrado
sangue que tem tal mistura,
per tão honrada natura
dino de ser nomeado.
Freires.
A banda que atraves fende
sobr' esmeralda luzente,
com cabeças de serpente,
Freire d' Andrade comprende,
de Galiza decendente.
E que laa tenha lugar
pera se mais nomear
e nos reinos de Castela,
os que cá têm Bovadela
nom serão pera calar.
Almeidas.
Nas d' ouro seis arruelas
em seus escudos pintados
do sangue honrados perlados
sempre vimos dentro nelas
e outros leigos d' estados.
D' Almeida que jaa fez cumes
deu e ainda daa lumes
d' estado e de senhorio,
Abrantes, Crato e quem Dio
vio desbaratar os rumes.
Anriquez.
Estaa, mas nom posto em alto,
d' ouro ũ castelo real
em vermelho, a par do qual
fazem dous liões ũ salto
sobre o segundo metal.
Vinda do Conde Guiião,
Anriquez é jeração
que, com taes armas que tem,
dos reis de Castela vem,
mas nom jaa per socessão.
Soares.
A moor joia das devinas
em campo d' argentaria
traz a nobre fidalguia,
com orla das reaes quinas,
Soarez d' Albergaria.
E ũu destes a ganhou
e por grão preço alcançou
qu' em ũa peleja brava
ũ mestre de Calatrava
prendeo e desbaratou.
Azevedo.
Aguea celestrial,
ave que mais alto voa,
sobre eicelente metal
da coroa imperial
tirada, sem a coroa,
trouxerão d' Alt' Alemanha
os d' Azevedo a Espanha,
por testemunha e certeza
de sua grande nobreza
e rezão per que se ganha.
Castel Branco.
Onde se der campo franco
em novo mas dino estado,
rompente Lião dourado
trarão os de Castel Branco,
em campo azul assentado.
E de sua perfeição
e quanto val com rezão
dará muito certa prova
em seu Conde Vila Nova,
aquela de Portimão.
Reesende.
Nũ escudo em campo d' ouro
duas cabras ajuntadas,
de gotas d' ouro malhadas,
da cor qu' ee ũ negro mouro,
desta mesma cor pintadas.
Quem bem em nobreza entende
achará que a de Reesende
foi grande per sua lança,
ha muitos tempos em França,
donde s' acha que descende.
Moniz.
Da banda qu' ee contra o sul,
eesta terra antigamente
veio ũa nobre jente,
com cinco em escudo azul
estrelas d' ouro luzente.
Polo que destes se diz,
pouco digo e pouco fiz
do que seu primor merece,
segundo o que se parece
dos feitos de Egas Moniz.
Febus Moniz e seu filho.
Ambalas armas reaes
de Chipre e Jerusalem
com armas mistura tem
de Moniz, mas estas taes
a ũ soo deles convem,
ũ soo a quem com rezão
chamem-se de Lusinhão,
seu pai lho foi alcançar,
por s' ajuntar e casar
com tão alta geração.
Moura.
Quem sete castelos doura
sobre vermelho acendido
é o sangue conhecido
por tomar oos mouros Moura,
donde trouxe o apelido.
Ũ Dom Rolim estrangeiro
foi destes o padroeiro
de cuja fama inda soa
na tomada de Lixboa,
que nom foi o derradeiro.
Lobos.
Em campo de prata tal
cinco lobos figurados,
de negra tinta pintados,
trazem os deste animal,
de suas armas chamados.
E destes estaa no fito
o dino de ser scrito,
por quem lhe dê seu louvor,
Barão d' Alvito senhor
e Vila Nova d'Alvito.
Saas.
Nos escaques celestriaes
e de prata, está mostrado
o mui nobre e mui honrado
e por batalhas reaes
sangue de Saa derramado,
com que o romão Columnes
se mesturou d' atraves,
cada ũ de grão primor,
forte, leal, sem temor,
em combates e galés.
Lemos.
Antigas e nom modernas,
de sangue nobre e honrado,
em escudo nom dourado,
são d' ouro cinco cadernas,
mas de vermelho pintado.
Lemos é a geração
cujas estas armas são.
De Galiza antigamente
a Portugal esta jente
veio com justa rezão.
Cabral.
De purpura celestrial
sobre prata mui luzente,
a jeração mui valente,
que delas se diz Cabral,
traz sem ouro deferente.
E pera qu' estas aponte,
escrito trazem na fronte
seu esforço e lealdade,
naquela grão liberdade
o do castelo de Belmonte.
Silveiras.
Em ũu campo prateado
bandas de sanguinha cor,
cũa silva derredor
de qu' o escudo é cercado,
são armas de grão valor.
E em pendões e bandeiras
as podem trazer Silveiras.
Silveiras de Silvas vem,
o nome o diz e tambem
to estorias mui verdadeiras.
Falcão.
Os que mostrarem bordões
nũ escudo de romeiros
são mui nobres estrangeiros,
d' apelido de Falcões,
leaes e boons cavaleiros.
Co Duque mui afamado
d' Aalencrasto nomeado,
reinando El-Rei Dom João,
veio Mosem Jaão Falcão,
ũ cavaleiro estremado.
Goios.
Sobre prata d' ouro fino,
com as barras d' Aragão,
arminhos tãobem estão
e mais ũ castelo em pino,
armas de Dom Anião.
De Dom Anião d' Estrada
a quem primeiro foi dada
a vila de Goes d' herdade,
que à sua postridade
deixou dela a nomeada.
Pedrosa.
Ũa aguea temorosa,
de quatro pedras cercada,
no meo doutra assentada,
por armas oos de Pedrosa
antigamente foi dada.
Vierão d' Ingraterra,
com tenção que nunca erra,
despender vida e tesouros,
em ajudar contra mouros
os portugueses na guerra.
Faria.
Oo pee d' ũu castelo erguido,
por se nom ver abaixado,
jaz ũ corpo espedaçado
em muitas partes partido
por nom ser d' ũa apartado.
Fari' ee, que nom faria
per onde a cavalaria
se perdesse erro nem tacha,
que desta maneira s' acha
por guardar a que devia.
Pachecos.
Em campo d' ouro assentadas
caldeiras d' ouro luzente,
com cabeças de serpente
nas aas e faixas veiradas,
sãao armas d' antiga jente:
Pachecos de tal ventura
em soster e ter segura
sua nobreza e crecendo,
qu' em tempo de Cesar sendo,
ainda lh' agora dura.
Coelhos.
Em campo d' ouro ũ lião
de mui brava acatadura,
coelhos por orladura,
dos Coelhos se dirão
armas sem outra mistura.
Coelhos tal perfeição
d' esforço e d' opinião
sostêm,no que começarem,
que coração lhes tirarem
nom lhes tira o coração.
Dom Vasco da Gama.
A quem lh' achou novo mundo,
nova terra e novo clima,
deu El-Rei em grand' estima
sobre as da Gama, em fundo,
as suas armas em cima.
E enquanto dura a fama
que a India de si derrama,
sempre irá o nome diante
do seu primeiro almirante,
est' ee Dom Vasco da Gama.
Valente.
No bravo lião rompente,
per tres lugares faixado,
se mostra bem amostrado
sangue Ocquez e Valente
co nome mui concertado.
Ambos sairão da vide
do bom, que morreo na lide
d' Ourique diante El-Rei,
de louvor, segundo lei,
nom menos dino que o Cide.
Duas cabeças cortadas,
postas em campo dourado,
de mouros e, em cooraado,
duas torres assentadas,
onde o feito foi passado.
Armas que os Botos ganharão
sãao por mouros que matarão
naquelas torres em Ceixta,
quando da danada seita
portugueses a livraram.
Camara.
Nũa torre de menajem
dous lobos querem trepar
em campo cor d' ũ pumar,
que são armas da linhajem
mui dina de nomear.
Camara é seu apelido,
em Portugal mui sabido
e na Ilha da Madeira,
que sua vida primeira
destes a tem recebido.
Pina.
Em campo vermelho estão
dous mui floridos pinheiros
e em banda azul lião
d' ouro rompente, que são
nobres armas d' estrangeiros.
De Peno Pina declina
esta linhajem mui dina
de grão louvor e pregão,
veio cá ter d' Aragão
e dahi vêm os de Pina.
Brandão.
Cinco brandões, nom em cruz,
em campo vermelho jazem
e co resplandor que fazem
dão claridade e dão luz
de nobreza oos que os trazem.
De terras e possissõees
dos cavaleiros Brandões
achei antiga memorea
em mui verdadeira estorea
d' antigas inquirições.
Cotrim.
De qu' os mais fazem tesouro
nũ escudo escaques são,
onde xaques nom darão,
se nom for em prata ou ouro,
dama, roques nem pião.
Co este que lugar tome
a geração e se assome
dos Cotrins rezão seria,
que maior foi na valia
qu' aa moeda de seu nome.
Linhajes de grande preço
outras tão boas e taes
ficão por nom saber mais,
mas quem seguir meu começo,
se as souber, diraa quaes.
D' algũas que nesta idade
em valia e em bondade
são vistas pervalecer,
com rezão se deve crer
que tal foi antiguidade.
Fim.
E nom por defeito seu,
qu' ee sabido que nom tem,
cuide que ficão alguem,
mas antes que polo meu
que as nom sabia bem:
porque nom quis porventura,
dando prova mal segura,
alguem do que seu nom é
tirar a outros a fee
do que vi per scritura.
458
EPISTOLA DE PENELOPE A OLIXES,
TRELADADA DE LATIM EM
LINGUAJEM PER JOAM
RODRIGUEZ
DE SAA.
Argumento.
Depois da guerra acabada
e a Troia feita em brasa,
com fortuna desvairada
foi dilatada a tornada
d' Ulixes a sua casa.
Passando mil tempestades,
de reinos e de cidades,
de molheres, de varões,
conheceo as condições,
custumes e qualidades.
E nom perdendo esperança,
Penelope, dele ausente,
lhe manda a carta presente
acusando-lh' a tardança,
com que tanta pena sente.
Est' ee espelho daquelas
castas donas e donzelas
de que mais Grecia s' arrea,
que se detinha na tea
esperando suas velas.
Hanc tua, etc.
Ulixes, esta t' envia
a tua Penelope,
a ti cuja tardança é
muita mais da que devia.
E nom me respondas nada
se nam for com a tornada
que esperando me sostem,
que, se sem ti carta vem,
minha vida é acabada.
A Troia jaz destroida
e sua destroição
a quem deu muita paixão
das gregas avorrecida.
Rei Priamo escassamente
co a Troia e sua gente
poderiam merecer,
por eles perdidos ser,
a perda que caa se sente.
Prouvera a Deus qu' onda brava,
com gram tormenta de vento,
sovertera nũ momento
Pares, quando navegava.
Pois foi causa su armada
e ser Helena roubada,
por ond' eu soo em meu leito
com muita pena me deito,
que causa tua tardada.
Nom me queixara de ver
fazer-se mais longo o dia,
quando meu mal, que crecia,
co ele via crecer.
Nem querendo ser manhosa
d' enganar noite espaçosa,
ela mesma m' enganara
co a tea que cansara
a mãao viuva e suidosa.
Quando foi que nom temi
perigos mais desestrados,
que sam os acustumados
que muitas vezes ouvi?
Cousa ee certo amor
de solicito temor
e desconfiança chea
que toda cousa arrecea
e sempre teme o pior.
Contra ti fantesiava
os troianos bravos vir,
d' Heitor somente ouvir
amarela me tornava.
Ou se ouvia contar
d' Antiloco, qu' escapar
nom pôde sendo tam forte,
era causa sua morte
do medo se me dobrar.
Ou co as armas alheas,
que Patrocolo vestira,
por Heitor morto caira
ante as troianas ameas.
Chorava por me temer
que podiam teu saber,
tuas artes, teus enganos,
que usavas contra os troianos,
de ventura carecer.
E quando m' eera contada
a morte de Tlepolemo,
a paixam do mal que temo
se me fazia dobrada.
E finalmente quem quer
que caa se ouvia dezer
que de vós outros morria,
muito mais que a neve fria
me fazia arrefecer.
Mas deos bem remediou
meu casto amor com rezão,
que ficando-me tu são
a Troia em cinza tornou.
Jaa os capitães voltaram,
os altares fumegaram
e põem òs deoses da terra,
barbaras presas da guerra,
que laa na Troia tomaram.
As donas agradecidas
polas ajudas passadas
pagam as joias dotadas
oos deoses e prometidas.
E dos maridos contados
sam os negocios passados
e os façanhosos feitos
dos troianos, jaa sogeitos,
destroidos e queimados.
Os velhos s' espantam caa
e as moças temerosas
das cousas mui espantosas
que ouvem dos que vêm de laa.
E enquanto seus maridos
dos casos laa contecidos
contam desvairados contos,
as molheres têm mui prontos
todos seus cinco sentidos.
E o comer acabado,
a mesa ficando posta,
cada ũ por prazer gosta
de pintar o que é passado:
pinta as batalhas campaes
e as pelejas mortaes
co campo delas sanguinho,
com poucas gotas de vinho
per riscos e per sinaes.
Simois indo fazia
por aqui grande rodeo,
o promontorio Sigeo
eesta parte aparecia.
E os paços mui alçados
de Priamo nomeados
aqui eesta parte estavam,
tam erguidos que passavam
pelas nuveens seus telhados.
Per' ali Arquiles ia
sua jente e estendarte
e per aqueloutra parte
Ulixes em companhia.
Aqui o corpo partido
d' Heitor a rasto trazido,
que vivo Troia guardava,
os cavalos espantava
e ainda era temido.
Nestor de mui longos dias,
a quem eu mandei daqui
teu filho saber de ti,
em que lugar t' escondias,
disse estas cousas que sei,
as quaes eu dele tomei,
que despois que te partiste
dentro nesta casa triste
com muito poucos falei.
Contou que Reso e Dolão
forom mortos logo vindo
ambos, ũ deles dormindo
e outro por treição.
E assi eras ousado,
de mim tam pouco lembrado
tua vida aventurar
e cũ soo de noite entrar
em ũ arraial cercado.
E a tantos dares fim
d' ũu soo indo acompanhado,
bem eras tu avisado
e lembrado antes de mim.
E com muito grande medo
nom tinha o coração quedo,
mas cheo de mil abalos
atee seres cos cavalos
tornado em salvo mui cedo.
Mas que proveito me traz
ser a Troia com seus muros,
per vossos braços mui duros,
derribada como jaz?
Se de meu triste sentido,
todo mal entam temido,
toda dor nam fez mudança
e fê-la soo a esperança
de poder ver meu marido.
A Troia caida é jaa,
pera todas destroida,
mas pera dar triste vida
a mim soo ainda estaa,
a qual co medo perdido,
no campo jaa possuido
dos gregos i moradores,
lavradores vencedores
lavram co gado vencido.
Jaa se pode bem segar
a sementeira madura,
donde a Troia em grand' altura
se soia de mostrar.
E faz-se muito viçosa,
grossa, farta e avondosa,
co sangue troiano a terra
dos que morreram na guerra
desestrada e trabalhosa.
E muitas vezes feridos
sam, lavrando cos arados
oossos meos sepultados
sobola terra trazidos.
E as paredes caidas,
com ervas nelas nacidas,
quasi sam todas cubertas,
todalas casas desertas,
queimadas e destroidas.
Tu, vencedor, es ausente,
nem posso triste saber
que causa de te deter
te detem tam longamente,
ou em que parte alongada
do mundo tam desviada,
contra mim tam cruel sendo,
te andas assi escondendo,
que de ti nom sabem nada!
Quem quer que vem ter aqui
nom se vai deste lugar
sem primeiro m' escuitar
muitas perguntas de ti.
E a este com tençam
que em algũa regiam
te pode acertar por dita,
ũa carta dou scrita
que te dee de minha mão.
A cas de Nestor mandei
e os que de laa vieram
mui vãas novas me trouxeram
com que mais triste fiquei.
Mandei a Esparta tambem,
e de quantos vão e vem
nom se sabe nem s' alcança
onde fazes tal tardança
ou que terra te detem!
Agora sei jaa que fora
pera mim maior proveito,
se o muro per Febo feito
estevera ainda agora.
E de meu grande desejo,
que sempre tive sobejo,
jaa me pesa e arrependo,
pois que todas seu fim vendo,
eu triste soo nom no vejo.
Soubera onde pelejavas
e tam somente temera
o que seguir se podera
nas batalhas em que andavas.
E a dor que entam sofria,
quando co esta vivia,
nom era tam desigual,
porque menos é o mal
que se tem com companhia.
E sem saber triste jaa
cousa que possa temer,
como molher sem saber,
tudo temo quanto i ha.
E mostra-se meu cuidado
ũ medo mui desvairado
de mil modos de temores,
que terei, enquanto fores
de mim como es alongado.
Quantos perigos no mar
e na terra s' acharam
todos hei que causaram
vosso sobejo tardar.
E pode ser que estrangeiro
amor vos tem prisioneiro,
segundo vós fazeis todos,
enquant' eu por tantos modos
doudamente me marteiro.
Per ventura lhe contais,
quando convosco estever,
que tendes ũa molher
que fiar sabe e nom mais.
Mas paass' eu antes engano
e ũ mal tam desumano
se desfaça em vento e ar,
que podendo vós tornar
nom no façais por meu dano.
Viuvo leito deixar
meu pai me quer costranger
e de jaa nom o fazer
nom me leixa d' acusar.
Sua força sofrerei,
nunca porem mudarei
meu querer nem minha fee,
mas sempre Penelope,
molher d' Ulixes serei.
Mas ele com grande dor
de mim é vencido logo,
quam castamente lho rogo
consirando o meu amor.
Luxuriosas companhas
daquestas terras estranhas,
Duliquia, Jacinto e Samo,
os quaes eu muito desamo,
de me haver buscam mil manhas.
E sem nenguem lh' acoimar
quanto mal lhe vem fazer,
consentem-lhe a seu prazer
dentro em teus paços reinar.
E minh' alma e coraçam,
que tuas riquezas sam,
é co isto espedaçado,
cada vez meu mal dobrado,
minha dor, minha paixam
É sobejo relatar,
por nom fazer dilação,
e Pisandro e Medãao
e Eurimaco contar.
E as mãaos mui cobiçosas
de Polibo, trabalhosas,
e d' Antino pera mal,
pois que dizer nom me val
suas maldades famosas.
E enquanto torpemente
es ausente do estado
por teu sangue e mão gainhado,
se mantem toda esta gente.
Por despreço derradeiro
Melanto, que é ũ vaqueiro,
Iro, que nada nam tem,
cos outros contra ti vem
acrecentar meu marteiro.
Tres somos soos sem poder:
eu quasi sem liberdade,
Laertes de grande idade,
Telemaco sem a ter,
que houvera estoutro dia
per treiçam, que se fazia,
de me ser quasi tomado
de todos, quando estorvado
a Pilo buscar vos ia.
Òs deoses com devação
peço qu' indo avante os fados
meus olhos sejam fechados
e os teus por sua mãao.
E isto faz o boieiro
e minha ama, e é terceiro,
neste rogo ajudador,
o fiel guarda e pastor
de teu gado curraleiro.
Antre tam grandes inmigos,
Laertes mal defender
teu reino pode e soster,
sogeito a tantos perigos.
A Telemaco viraa,
viva-m' ele e chegar-lh'-á
a idade e valentia,
que j' agora lhe compria
ajudare-lo tu jaa.
Nom tenho forças qu' abastem
pera me remedear
e teus imigos forçar
que de teus paços s' afastem.
Tu faze que venhas cedo
por me tirares do medo
com que tanta pena sento,
serás porto e manso vento
em que meu mal estê quedo.
Ũ filho acharás aqui,
queira Deos que viva muito,
a que jaa faria fruito
ser ensinado per ti.
Tambem em Laerte atenta,
que seu tempo s' apouquenta,
vem-lhe seus olhos çarrar,
que pouco pode tardar
que sua morte nom senta.
Cabo.
Eu que era moça aa partida,
dina de nom me leixares,
por mais cedo que tornares
m' acharás velha perdida.
459
EPISTOLA DE LAODOMIA A PRO‑
TESILAO, TIRADA DO
OUVIDIO,
DE LATIM EM LINGUAJEM
POR JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA.
Argumento da epistola.
Depois dos gregos ja ter
gente prestes e armada,
dos deoses mandam saber
que fim havia de ser
o da guerra começada.
Mandam-lhe mil desenganos,
de como havia dez anos
sua guerra de durar
e eles nela passar
infindas perdas e danos.
Qu' o que fosse arriscado,
primeiro a sair em terra,
estava determinado
que fosse sacreficado,
primeiro morto na guerra.
Pelo qual Laodomia,
que seu marido sabia
ser ousado cavaleiro,
que nam saisse primeiro
nesta carta lhe pedia.
Mitit et optat, etc.
A que muito mais queria
per si mesma o visitar,
mui triste Laodomia,
a Protesilao envia
seu marido saudar.
Vieram novas aqui
que te faz i dilaçam
o vento, qu' ee contra ti,
quando fogiste de mi,
esse vento ond' era entam?
Entam deveram os mares
contrariar a teus remos
e pera nom me leixares,
que te causaram pesares,
usar todos seus estremos.
Entam fora proveitoso
e mui honesto proveito
ser o mar mui furioso,
qu' em te ser a ti brigoso
o a mim fezera direito.
Mais abraços e mandados
a ti, meu marido, dera
e tinha fantesiados
infindos outros recados,
os quaes dizer-te quisera.
Mas foste-me arrebatado,
porqu' era o vento tendido,
dos marinheiros chamado,
deles muito desejado
e de mim avorrecido.
Oos mareantes bom vento,
maao a quem queria bem,
e estando mui sem tento
m' arrebatou nũ momento
de teus braços nom sei quem.
E a lingua sem saber
livremente usar de si
inda nom teve poder
d' escassamente dizer:
― Ó triste, bo' hora vos i!
Acodio rijo e mui forte,
encheo as velas da nao
mui bravo vento do norte,
veo tanto e de tal sorte
que o meu Protesilao
logo muito longe vi.
E enquanto o pude ver
tanto cuidei que vivi
e os teus olhos segui
quanto cos meus pôde ser.
Des que ver-te nom podia,
por ficar mui alongada,
o navio em que ias via,
enquanto aparecia
me teve a vista acupada.
E depois que nem as velas
nem a ti pude alcançar,
indo-m' os olhos tras elas,
vai-se-m' o lume com elas,
perdi a vista no mar.
Des qu' assi fiquei partida,
segundo depois ouvi,
co a triste despedida
como morta esmorecida
me disseram que cahi;
que escassamente poderam
vosso pai, donde jazia,
minha mãi, que ambos i eram,
o esprito que me dera
tornar-mo com agua fria.
Fezeram-me seu dever,
que mui escusado me era,
pesou-me de nom poder
naquele tempo morrer
mesquinha como quisera.
E tornando-m' o sentido,
tambem nas dores tornaram,
que o grande amor devido
e paixam de te ver ido
a meu coraçam causaram.
Nom tenho cuidado jaa
de me mandar pentear
e nenhũ gosto me daa,
des que te foste de caa,
com horcados m' arraiar.
E como molher tocada
d' haste de Baco trazida,
qu' ee de pampilos cercada,
ando mui desatinada,
jaa quasi douda perdida.
Vêm-me aqui ver cada dia
estas donas principaes
e dizem-me com perfia:
― Veste-te, Laodomia,
de vestiduras reaes!
— Como eu trarei vestidas
— lhes digo com grão paixão ―
lãas em cremesim tengidas?
Nas batalhas mui feridas
ele andará de Iliaom!
Eu me pentearei
por curar de fermosuras,
novos vestidos trarei
e dele qu' anda, ouvirei,
cuberto d' armas mui duras?
Nom hei-de fazer assi,
mas hei-me de trabalhar,
qu' em mal me tratar a mi
digam que arremedo a ti,
enquanto a guerra durar.
Pares, dos teus grão perigo,
fermoso em mui grande grao,
quem eu mil vezes maldigo,
assi sejas fraco inmigo
como foste hospede maao!
Infindo prazer me dera
que dela t' avorreçeras,
ou jaa qu' isto assi nom era,
que Helena te nom quisera
por quam mal lhe pareceras.
E tu, que tanto desejas,
Menelao, ser vencedor,
hei medo, triste, que sejas
com perdas muito sobejas
mui chorado vingador.
Deoses, mandai afastar
este agoiro desastrado,
venha meu marido dar
a Jove que o tornar
suas armas jaa tornado!
Mas quantas vezes me vem
a triste guerra alembrar,
ũ grande temor me tem
e meu choro posso bem
com a neve comparar,
com neve qu' ee derretida
de sol que sobre ela some.
Xanto, Tenedos e Ida,
Troia me dam triste vida
e espanto soo co nome!
Que nem tomara ousadia
Pares d' Helena roubar,
senam porque s' atrevia
em seu poder, que sabia
que s' havia de salvar.
Luzia ao longe e ao perto
d' ouro, segundo é a fama,
vinha das riquezas certo,
daquela terra cuberto,
que Frigia de nós se chama.
Trazia grande poder
de frota e cavalaria,
que quem guerra quer fazer
estas ambas haa-de ter,
e muita gente o seguia.
Foste, Helena, derribada
de o tam fermoso ver,
e a toda Grecia ajuntada,
sua gente e sua armada
medo hei-de lh' empecer.
Temo ũ Heitor, nom sei qual,
que Pares diz que dezia
de quem o poder é tal
com mãao de ferro mortal
que crua guerra faria.
Quem quer qu' ee este Heitor,
se algũ bem me quereis,
se me vós tendes amor,
muito vos peço, senhor,
que seu nome arreceeis.
E depois de vos guardar
dele, doutros vos lembrai
tambem de vos arredar,
que nam ha i de minguar
muitos Heitores cuidai.
E cada vez que em peleja
prigosa houveres de ser,
esta lembrança em ti seja:
mandou-me quem me deseja
cuidado dela em mi ter.
E se é determinado
de s' a Troia destroir
co grego sangue espalhado,
sem ser o teu derramado
m' a leixe Deos ver cair.
Contra quem o desonrou
peleje em terras e mares
Menelao, pois o causou
a que Pares lhe robou,
por tornar roubar a Pares.
Por armas haja vitoria
de quem vence por rezam,
bem é que cobre com gloria,
por leixar de si memoria,
a molher que nom lhe dão.
Tua causa é desviada,
por isso has-de trabalhar
ser tua vida guardada,
por tornares de tornada
em meu regaço folgar.
De quantos mil laa sam idos,
troianos, aa vossa praia,
deste tirai os sentidos,
de seus membros laa feridos,
porque meu sangue nom saia.
A nenhũ homem convem
qu' armas e ferro deseje,
mais pode quem guerra tem
qu' o amor: tu queiras bem,
toda outra gente peleje.
Ja agora confessarei
que te quisera estrovar,
mas a lingua refreei
co medo qu' aainda hei
de maao agouro tomar.
Porque quando tu saiste
pola porta despedido,
em seu lumiar feriste
o pee, de que fiquei triste
co agouro conhecido.
E em o vendo gemi
e disse em meu coração:
Sinal de tornar aqui
seej' este sinal que vi
e nom seja de paixão!
E agora que to digo,
é por nom seres ousado
d' entrar a todo perigo,
faze qu' o medo que sigo
em vento seja tornado.
Dizem, que por fado estaa,
nom sei quem este ha-de ser,
que primeiro sairaa
na praia e este seraa
o que primeiro morrer.
Desditosa e desastrada
será quem primeiramente
caa for viuva chamada!
Os deoses façam qu' em nada
te queiras mostrar valente!
A tua nao derradeira
seja de mil que laa vam
e ela como zorreira
faça ondas da ribeira
mais cansadas do que sam.
E tambem te lembrarás,
se de mim nom t' esqueceste,
que oo sair sejas detrás,
porque essa terra a que vás
nom é terra em que naceste.
E ao tornar de laa
por te mais prestes trazer,
os remos e vela daa,
mostra-te tam cedo caa
como t' eu desejo ver.
Quer seja o sol escondido,
quer seja mui claro dia,
sempre dás a meu sentido
ũ pesar mui desmedido
que m' acupa a fantesia.
E porem na noite mais,
porque é tempo mais desposto
em que estas fadigas taes
dam dores mais desiguaes
e o contrairo mais gosto.
Na cama por enganar
trabalho o sono enganoso
e enquanto me minguar
o verdadeiro folgar,
folgarei com mintiroso.
Mas porque se m' oferece
em sonhos tua figura,
porque amarela parece
e no falar se conhece
que é triste tua ventura,
acordo mal acordada
e toda fantasma triste
logo é de mim adorada.
Esta vida atrebulada
tenho des que te partiste!
Nom fica nenhũ altar
em toda esta região,
em que leixe d' adorar
com encenço e misturar
lagrimas de devação.
As quaes em cima espalhadas
assi vejo reluzir
em chamas alevantadas
como as que soem nas obradas
do fogo e vinho sair.
Quando te poderei ver?
Quando te verei tornado?
E em meus braços jazer,
que me veja resolver
com prazer tam acabado?
Quando será juntamente
que eu contigo nũa cama
ouvirei de ti, presente,
teu esforço, que se sente
laa, e caa sabe per fama?
E enquanto t' escuitar
cousas com que folgarei,
com outras de mais folgar,
qu' o tal tempo soi de dar,
mil vezes t' estorvarei.
Com as quaes mui sem afronta,
por quam doces ham-de ser,
se fará muito mais pronta
pera contar o que conta
a lingua com mais prazer.
Mas quando me torna o vento
o mar e Troia à lembrança,
com temor triste que sento,
que me daa grande tormento,
perco toda esperança.
E o que me faz sentir
dobrarem-se minhas magoas,
que nom nas posso encobrir,
é quererdes vós partir
contra vontade das aguas.
Quem quereria tornar
à sua propia terra
contra vento e contra mar?
E vós querê-lo forçar,
indo dela pera a guerra!
Nom desembarga a estrada
Neptuno contra a cidade
que foi dele edeficada.
Ond' is, que nom prestaes nada?
Tornar-vos será verdade!
Ond' is? Escutai os ventos,
atentai sua mudança.
Gregos, olhai mui atentos,
nom sam isto aquecimentos,
mas misterio esta tardança.
De guerra tam trabalhosa
que vitoria buscais?
Ũa molher enganosa,
desleal, desamorosa,
o cume das desleais!
E enquanto bem podês,
tornai-vos com vossa frota,
pois da guerra que fazês
tam baixa groria querês,
mandai que cambem a rota.
Mas que presta revogar?
Vai-t', agoiro, daqui fora!
Praza a Deos que venha ũ aar,
que as ondas faça abrandar
e vos leve muito embora.
Enveja hei disto que digo
aas donas qu' em Troia estam,
de terem perto o imigo
e seus maridos consigo,
que mortos enterraram.
E per si mesmo trará
a novamente casada
a seu marido e dará
as armas e lhe porá
por sua mãao a celada.
Dará as armas oo marido,
oo marido, e em lhas dando,
nom será nisso metido,
tam acupado o sentido,
que lhas nom dee abraçando.
E tal modo de comprir
cada ũ o seu dever,
assi oo ir como ao vir,
mui doce se ha-de sentir
d' ambos com grande prazer.
Qu' o marido, enquanto for
sem se poder apartar,
pedir-lh' -á com grande dor,
mesturada com amor,
que percure de tornar.
Dir-lh' -á: — Tornai-me a trazer
essas armas que levais,
pera as vir oferecer
a deos que vos defender
de mil perigos mortaes.
Ele, levando em cuidado
os mandados que lhe der,
pelejará temperado
e será tambem lembrado
de sua casa e molher.
E ela lhe tirará
o capacete e escudo
e tambem despi-lo-á,
no regaço o lançará,
ter-lhe-' á cuidado de tudo.
Nós, tristes, o que caa temos
muitas incertezas sam,
e quantos males sabemos,
que podem ser tantos, cremos
que laa s' aconteceram.
Enquanto contra o imigo
tu pelejas com perfia,
teu vulto tenho comigo
de cera feito a quem digo
mil branduras cada dia.
Nunca o leixo d' abraçar,
porque tem tamanho grao
em bem te representar
que se lhe dessem falar
seria Protesilao!
Como se caa te tevesse,
d' olhá-lo jamais nom leixo,
e como s' ele podesse
responder, quando quisesse,
em vão com ele m' aqueixo.
Por ti e tua tornada,
que nom tenho outra moor jura,
e pola fee confirmada
per casamento ajuntada
com tua e minha ventura;
pola cabeça que salva
te via tornar ainda,
ainda que venha calva
ou de cãas toda mui alva
tornando velho da vinda.
Fim.
Te juro, senhor, e crê-mo
que companheira te seja
ou s' aconteça o que temo
ou seja contrairo estremo
o que minh' alma deseja.
Neste pequeno mandado
s' acabe esta carta triste,
tem de mim grande cuidado,
de ti muito mais dobrado,
porqu' em ti meu bem consiste.
460
DE
JOHAM RODRIGUEZ DE SAA
AO CONDE DE PORTALEGRE,
MANDANDO-LHE ESTA EPIS‑
TOLA DE DIDO A ENEAS,
QUE TRELADOU A
SEU ROGO.
Muito manifico Conde,
tome vossa senhoria
este serviço meu, onde
a obra lhe nom responde
como a vontade queria.
Tome todos sobre si
os erros que nele achar,
porque se m' eu atrevi
a lhos pobricar aqui
foi por ele mo mandar.
Defenderá juntamente
o seu Eneas comigo,
Eneas de quem a gente
dos da Silva é descendente,
como em outra parte digo.
E assi seguro são
que o vosso nome muro
e a vossa defensão,
escudo de Telamão
pera mi será seguro.
Epistola de Dido aa Eneas,
tre‑
ladada de latim em lingua‑
jem por Joam Rodri‑
guez de Saa.
Argumento.
Daquela noite escapado,
derradeira d' Iliom,
que foi por nom ser tomado
o conselho mui bem dado
do triste de Laocom,
chegou Eneas trazido
com tormenta e com afronta
a Cartago, onde Dido
o tomou por seu marido,
segundo o poeta conta.
E a rainha, ferida
de muito grave cuidado,
caia chaga envelhecida
bem dentro d' alma metida
d' ũ amor demasiado,
vendo como se queria
Eneas dela partir,
esta carta lh' escrivia,
trabalhando, se podia,
sua partida impidir.
Sic ubi fata, etc.
Assi foi jaa, quando sente
o cirne seu fim chegar,
na ribeira mui prazente
de Meandro docemente
ante da morte cantar.
Nem te falo jaa cuidando
com meus rogos te vencer,
porque bem vejo qu' estando
demudado em outro bando,
isto começo a mover.
Mas pois tam mal perdi
a fama bem merecida,
perder palavras assi
por leve perda a senti
após a d' alma e da vida.
De me leixares e t' ir
muito certo ante ti é.
Verei, triste, enquanto vir
o vento que te servir
levar-t' as velas e fee.
Per ũ mesmo apartamnto
tens, Eneas, ordenado
as naos e prometimento,
em te ventando bom vento,
desatar mui apressado
e ir Italia buscar.
Que nunca viste de provo,
sem to poder estorvar,
o reino que te quis dar,
Cartago que fiz de novo.
O que deveras fugir
buscas e foges o feito,
terras has-de descobrir,
da que gainhaste partir
te queres tam sem respeito!
Quem ta leixará entrar,
dou-lhe que aches essa terra,
quem sofrerá devagar
suas herdades lavrar
oos estrangeiros sem guerra!
Fica-te pera buscar
outro amor e outra Dido,
outra fee pera apenhar,
com que possas enganar
de quem nom es conhecido.
Quando t' aconteceraa
que faças ũa cidade
com' eesta, que feita estaa,
e vejas teus povos jaa
em tanta prosperidade?
Mui alevantado estando
d' ũa torre mui erguida,
os vejas multipricando
quaes ves agora leixando
com tam crua despedida.
E que sem te tardar nada
teu desejo em tudo venha,
onde pode ser achada
outra molher enganada
que tamanho amor te tenha?
Triste são, toda queimada
como ũa facha acendida,
de muito enxofre cevada,
que quão asinha é tocada
tam prestes é logo ardida.
Quer seja noite quer dia
nunca passo sem trazer
com muita dor, em perfia,
Eneas na fantesia,
que nunca leixo de ver.
E ele ingrato em demasia
é de quanto houve de mim,
e tal que melhor seria,
se nom fora tam sandia,
estar sem ele atee fim.
Nom lhe quero mal porem,
conhecendo seu cuidado,
queixo-me, porque me tem
bulrada, e quero-lhe bem
muito mais desordenado.
Perdoa, Venus, agora,
nom des mais pena oo sentido
a mim que são tua nora,
nem fiques nisto de fora
tu, seu irmão, deos Cupido.
Abraça teu duro irmão,
por quem triste desespero,
doi-te de minha paixão,
manda-lhe, pois é rezão,
que me queira o que lhe quero!
Ou ele, quem em primeiro
nom me despreço d' amar,
dê, que justiça requeiro,
a meu amor verdadeiro
materea pera durar.
E com qualquer esperança
me dê rezão d' esperar
e algũa segurança
d' acabar sua esquivança,
pera m' eu nom acabar.
Bem vejo que sam bulrada
e qu' ee imagem fengida
a que m' ee representada,
tarde sam triste acordada,
porque é depois de perdida.
Jaa vejo qu' ee todo engano,
bem se vê qu' ee tudo vam,
bem o vejo por meu dano
desviado e ser humano
e da mãi na condiçam.
De montes e pedra dura
mui duro foste criado,
d' arvore de grande altura
nacida em montanha escura
ou fero animal geerado.
Ou es nacido do mar,
como agora and' em tormenta,
onde te vejo ordenar
de quereres navegar
com tam mao vento que venta.
O estorvo, que te dão
as Fortunas, nom atentas,
olh' as aguas co soão
quam revolvidas estão,
aproveitem-me as tormentas.
Leixa-me, que a liberdade
que a ti quisera dever,
que a deva à tempestade,
que mais justa na verdade
que ti se pode dezer.
Nom posso tanto valer
nem sam eu de tanto preço
que determines morrer
por muito longe viver
de mi, que assi t' avorreço.
Por preço grande sem par
exercitas com perfia
odio pera me matar,
se morrer por me leixar
teens em tão pouca valia.
Nom t' apresses que a bonança
e os bons tempos virão
e o mar logo se lança,
assi fezesses mudança
como eles a farão!
E creo que a farás,
que nom pode a natureza
fazer que fiquem detras
todalas arvores maas,
que as venças em dureza.
Às aguas, se nom souberas
quanto mal podem causar,
que menos disto fizeras
das que jaa viste tam feras,
assi te ousas de fiar.
E que agora o mar te diga
que te alevantes daqui,
assaz lhe fica de briga,
de temores, de fadiga,
ainda dentro de si.
E tambem ter mal guardada
a fee que foi prometida
a quem faz no mar entrada
nunca la aproveita nada,
antes é risco da vida.
Que tal lugar de temor
deos por melhor escolheo
a ser da fee vingador
e mais nas cousas d' amor
cuja mãi dele naceo.
E eu dele destroida
nom quero vê-lo perder,
dá-me ũa dor sem medida,
por sua causa perdida
receo de lh' empecer.
E com medo m' afadigo
de tormenta o ceçobrar,
sem causa tal vida sigo
com medo de meu inmigo
beber as aguas do mar.
Pera melhor t' acabar
que doutra nenhũa sorte,
oos deoses quero rogar
que a vida te queiram dar,
porque me causes a morte.
Faze agora fundamento
e seja este agouro vão:
que grandes torvões e vento
no mar achasses sem tento,
que cuidarias então?
Logo te acordarias
das juras que quebrantaste,
nem menos t' esquecerias
que acabar Dido seus dias
com teus enganos causaste.
Da molher triste, enganada,
a muito triste figura
te será entam mostrada,
em sangue toda lavada,
com muita desaventura.
Entam com medo dirás:
— Tudo isto mereci!
Quantos coriscos verás,
todos juntos cuidarás
que os lançam sobre ti.
Daa ũ pouco de vagar
aa crueza que conheço,
que assi te faz apressar,
e seguro navegar
da tardança será preço.
Fá-lo-ás em o fazer
por teu filho e nom por mim
per muito deves de ter
poderem por ti dezer
que foste meu triste fim!
Ele e os deoses que trazes
nom merecem com rezão
os males que lhe tu fazes,
ja livres das gregas azes
e do fogo de Sinão.
Mas nom os trazes contigo,
como jaa te me gabaste,
nem menos teu pai antigo
de nenhũ grande perigo
sobre teus ombros salvaste.
Nada disto foi verdade
nem sam eu a que primeiro
de tua pouca bondade,
per juros e falsidade
tenho sofrido marteiro.
Dize-me onde será achada
a mãi de Iulo fermoso:
morreo mui desemparada,
de seu marido leixada
cruel e despiadoso.
Estas cousas t' escuitei
e pola fe qu' em ti tinha
todas cri e afirmei,
por isso por menos hei
a pena que a culpa minha.
Nenhũa coisa dovido,
que de tuas santidades
ainda sejas perdido;
seete anos ha que detido
te trazem mil tempestades,
per muitas terras e mares,
dos quais per força lançado,
porto pera descansares
e tuas naos concertares
mui seguro te foi dado.
E ainda escassamente
sem teu nome bem saber,
no que fui pouco prudente,
de meu reino e minha gente
te fui dar todo o poder.
Aos deoses aprouvera
que atequi me contentara
nas obras que te fezera,
o mais calado estevera
e nunca se divulgara.
Aquele mui triste dia
foi o que mais m' empeçeo
quando a chuva que chuvia
e tormenta que fazia
nũa cova nos meteo.
Ouvi ũs gritos mortais,
cuidei que as ninfas oivavam,
eram Furias infernais
que davam craros sinais
das fadas que me fadavam.
Vergonha tam maltratada,
tomai a paga com dor
pera Siqueu de mim dada,
que vou dar triste, coitada,
com vergonha e com temor.
Num oratorio meu
de marmore, está sagrado
com muitos ramos Siqueu,
tres vezes donde ouvi eu
chamar-me com som delgado.
Desta maneira dizendo,
que me lembra muito bem,
de que ainda estou tremendo:
— Nom gastes tempo perdendo,
Elisa Dido, mas vem.
Vem, nom te detenhas nada,
que vives contra vontade,
nom des tamanha tardada
à morte bem empregada,
que te ponha em liberdade.
— Eis me venho a teu chamar,
que tua molher me vi
jaa em tempo de te honrar,
venho porem devagar
pola honra que perdi.
Se fores ũ pouco humano,
perdoarás minha culpa,
que quem me fez este engano
tem auto pera meu dano,
foi que per si me desculpa.
O pai velho que trazia,
a deosa mãi confiança,
o filho que o seguia,
ma davam que nom faria
daqui nenhũa mudança.
E jaa que havia de errar,
mui honestas causas tem
meu erro pera alegar,
pera mais me desculpar
a fee me dera tambem.
Pera todo sempre dura,
sempre estando d' ũ teor,
estaa costante e segura
a minha triste ventura
em ser cada vez pior.
Os altares tintos são
do sangue de meu marido
em Tiro, e desta treição
meu irmão Pigmalião
foi autor mui conhecido.
Levaram-me desterrada
e minha terra leixei
e a cinza mal queimada
de Siqueu pior guardada,
que muito mais estimei.
Per caminho são trazida
mui trabalhoso e contrairo,
de meu inmigo seguida
de quem, por salvar a vida,
nom podia haver repairo.
A terra estranha acheguei,
de meu irmão e do mar
jaa em salvo, onde merquei
esta praia que te dei,
que agora queres leixar.
Ordenei ũa cidade
larga, de fermosa vista,
de quem a prosperidade
e a muita quantidade
dos vezinhos foi malquista.
Começa-se a empolar
contra mim mui crua guerra,
sem as portas se acabar
eis m' aparelho d' armar
molher em estranha terra.
A pedir-me s' ajuntaram
mil homens de casamento
e com rezão s' aqueixaram,
porqu' engeitados s' acharam
por nom sei quem, mui sem tento.
Que dovidas de me dar
a Hiarbas em seu poder,
pois eu te fui dar lugar,
que possas executar
em mim todo teu querer.
Meu irmão prestes está
cuja mão despiadosa,
qu' espargeo o sangue jaa
de Siqueu, bem folgaraa
co meu de que é desejosa.
Leixa os deoses inmortais
e reliquias a quem dana
tocá-las tu e nom mais,
mal serve os celestriaes
a mão do cruel qu' engana.
Pois tu havias de ser,
despois deles escapar,
quem os trouxe, has-de fazer
que se ham-d' arrepender
de nom se leixar queimar.
Prenhe me leixas assi,
ó tredoro, por ventura,
e ũa parte de ti
s' esconde dentro de mi
como nũa sepultura.
E o minino coitado
que matarás e nom viste,
primeiro morto que nado,
acrecentar-se-á ao fado
de sua mãi Dido triste.
E o irmão inocente
de Ascanio Iulo leixar,
a vida que inda nom sente
com sua mãi juntamente
e d' ambos ũa fim dar.
Se te deos manda partir,
bem fora que te tolhera
de poderes aqui vir,
nom vir a Africa servir
oos troiãos que recolhera.
Co esse teu deos por guia,
nunca te jamais leixando,
tormentas em gram perfia
te trazem de noite e dia
no mar teu tempo gastando.
Tanta fadiga te dar
escassamente devera
querer aa Troia tornar,
que a poderas achar
quejanda vivo Heitor era.
O Tibre que vás buscar,
que a Simoenta nom vás,
e que possas acabar
eessa terra d' achegar,
hospede nela seraas.
Mas segundo na verdade
a terra fogir te vejo,
jaa serás de grande idade,
quando essa tua vontade
se comprir o teu desejo.
Polo qual ser-t' -aa mais são,
leixando de rodear
e de sofrer mais paixão,
os povos que se te dão
em casamento tomar.
E a mui grande riqueza
de meu irmão escondida
possui-la com certeza,
com muito firme firmeza,
sem nenhũ risco da vida.
A Troia trespassa caa,
muito melhor estreada
do que foi essa de laa,
na cidade que aqui estaa
dos de Tiro edeficada.
E aqui neste lugar,
que comigo t' entreguei,
o ceptro podes tomar
e as cirmonias usar,
que sam devidas a rei.
Se desejas guerrear
e se teu filho deseja
tais vitorias alcançar,
de que possa triunfar,
e mil triunfos seus veja,
porque nada lhe faleça,
inmigo aqui lhe darei
que vença e que lh' obedeça,
porqu' este lugar conheça
qu' em paz e guerra põem lei.
Por teu pai, as sagradas
reliquias d' Iliaom,
polas setas namoradas
de chumbo delas douradas
do deos d' amor, teu irmão,
polos deoses companheiros
de tua triste saida,
assi todos teus parceiros
cumpram seus dias inteiros
com descanso e paz comprida.
Naquela guerra passada
tam dura, tam perigosa,
acabe de ser gastada
toda fortuna guardada
pera te ser trabalhosa.
Nela em que tantos artigos
de morte viste sem conto,
de todolos teus perigos,
do mar, do vento, d' immigos,
s' acabe d' encher o conto.
Assi bem aventurados,
Ascanio cumpra seus anos
e os oossos enterrados
d' Anquises mui repousados
nunca senta nenhũs danos.
Perdoa a casa que a ti
toda se quis entregar,
que pecado achas em mi
senam que me someti
de todo ponto a te amar?
A mim jaa nom me criou
nem Pitia nem Micenas,
nem contra ti s' ajuntou
meu pai, per onde causou
o mal que agora m' ordenas.
Se te corres de saber
que te chamam meu marido,
hospeda podes dizer
que sam, que por tua ser
tudo sofrerá ser Dido.
Eu conheço muito bem
da costa d' Africa o mar,
quantas incertezas tem,
onde nom pode ninguem
sem perigo navegar.
Verás ventar mui bom vento
far-t' -aas aa vela por t' ir,
mas compre d' estar atento,
se te daa consentimento
a maree pera sair.
Manda-me tu atentar
polo tempo, e tua ida
tardará e, a teu pesar,
te farei desamarrar,
se vir tempo de partida.
Tua frota espedaçada,
que o mar ha mester manso
por nom ser bem repairada,
os companheiros d' armada
pedem que lhes des descanso.
Por algũ merecimento
e se ainda em mi mais haa,
pola esperança com tento
que tive de casamento
algũ espaço me daa.
Tempo te peeço e nom al,
enquanto a vida me dura,
em que soportar meu mal,
pera mi tam desigual,
m' ensine minha ventura.
Enquanto o mar abrandar
e co tempo meu amor,
trabalho por m' ensinar
fortemente a soportar
qualquer muito grande dor.
Se nam com muita firmeza
faço conta d' acabar
vida de tanta tristeza,
nom pode tua crueza
contra mim muito durar.
Oo se me podesses ver
quejanda esta carta faço,
ver-ma-ias escrever
e tua espada jazer
lançada no meu regaço.
E per meu rosto sair
lagrimas sem nenhũ medo
na aguda espada cair,
que meu sangue ha-de tengir
em vez delas muito cedo.
Tua dadiva a meu fado
como lhe veo tam justa!
Meu saimento coitado
bem é de ti acabado
com muito pequena custa.
Que ferro ferio meu peito?
Nom é a primeira vez
esta, que por teu respeito,
amor bravo com despeito
jaa outra chaga lhe fez.
Ana, irmã verdadeira,
da culpa de minha fim
sabedor e conselheira,
faze a obra derradeira
aa cinza que sai de mim.
Nem, depois do corpo meu
ser gastado na fugueira,
diga no letreiro seu:
Dido, molher de Siqueu,
mas diga desta maneira:
Fim.
Aqui a cinza guardada
jaz de quem por sua mão
da vida foi apartada,
Eneas lhe deu a espada
para a morte e a rezão.
461
DE
JOAM RODRIGUEZ DE SAA A LUIS
DA SILVEIRA, PORQUE LHE VIO
MAN‑
DAR D' ALMEIRIM A LIXBOA POR
MUITA MANTEIGA E VIRA-LHE
LEVAR MUITA QUANDO SE
FORA, TENDO Ũ
COZI‑
NHEIRO QUE SE
CHAMAVA MES‑
TRE PEDRO.
O que disse a mãai de Veiga,
hei medo que vós digais,
segundo o que caa mandais
que vos levem de manteiga.
E sabeis o que se diz
a quem o quer escuitar:
Que mestre Pedro em gastar
e em fazer amargar
fez de vós emperatriz!
Se nom trazeis muito meiga
a senhora com que andais,
pois nela vos nam forrais,
nom gasteis vossa manteiga.
Reposta de Luis da Silveira
polos consoantes.
Vós vireis cá de taleiga
e d' azagaia e nom mais,
e veremos se trovais
outroora mais pola leiga.
Vós nam podeis ser juiz
em feito d' esperdiçar
e podeis em al falar,
pois gastar e pelear
nam fizestes com' eu fiz.
Vireis d' oossos em taleiga
vossos duzentos reaes,
atravessareis a veiga
com gram banda de zorzais
e ireis ter oos pinhais.
462
TROVAS QUE MANDOU JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA À SENHORA
DONA
JOANA MANUEL E REPOSTA
DES‑
TES MOTOS, QUE LHE MAN‑
DARAM A ELA ŨS
SENHO‑
RES DE CASTELA, QUE
NOS MOTOS VÃO
NOMEADOS.
Ainda qu' outrem tenhaes
que cuideis que mais vos quer,
ao tempo do mester
jaa vedes bem quem achaes.
Servir-vos nom me tolhaes
e por esta liberdade,
eu solto à vossa vontade
as mercês a quem as daes.
E posto qu' haja mil anos
que nom chego a vos olhar,
nom creais que ham-d' acabar
sem a vida meus enganos.
Vim saber que castelhanos
vos ousaram d' escrever
e eu quis-lhes responder,
porque fiquem mais oufanos.
Ha mester que lh' hajais medo,
porque sam d' openiam
que vos tomaram a mãao
sem lhe vós dardes o dedo!
Nem me compre d' estar quedo,
porque mais mal nom aguarde,
que despois s' aqueixa tarde
quem se nom prove de cedo.
Quem tem vossa openiam,
senhora, favorecê,
que muito maior mercê
vos merece esta tençam,
e julgar-me sem paixão,
pois pera mais nom naci,
de quanto vos mereci
tomarei por gualardão.
Moto
do Condestabre
de Castela:
Pues non se halha en Castilha
el remedio de mi mal,
venga ya de Portugal.
Trova à tenção deste moto.
Per ventura com mudança,
como mil vezes se ordena,
prazer se troca por pena
ou outra maior s' alcança.
É porem a esperança,
que muitas vezes lhe val,
por grande que seja o mal.
Reposta ao moto.
Pera os males, que laa
teraa vossa senhoria,
outro remedeo queria
e nom o que quer de caa,
que quem o tem nom o daa
a nenhũ seu natural,
por isso cuidai em al.
O Duque de Sogorbe.
Em la tierra que estaa el mio
ya sé cierto,
que nunca se ha descubierto.
Trova à tenção deste moto.
Porque logo ao sentir
de tal maneira o achei
que por remedio tomei
principal o encobrir.
E s' algũu tempo se ouvir,
saibam certo
que o saber-se é soo de perto.
Reposta a este moto.
A quem nesta terra o tem
é tam conhecido jaa
a causa donde viraa
que nom s' esconde a ninguem.
Nom desejês mal nem bem
de caa, que certo
logo ha-de ser descuberto.
El Conde de Haro:
Ni le pido ni le quero,
porqu' el mal que hay em mi vida
es no tenelha perdida.
Trova a este moto.
A quem a Fortuna trata
cos males com que mais corre,
a morte que nunca morre
é a morte que mais mata;
porque a morte que desata
o mal da vida perdida
pera mim chamo-lh' eu vida.
Reposta ao moto.
Que remedio nom peçais,
senhor, nom desespereis,
o que vós o alcançareis
se meu conselho tomais,
que será: que a quem mandais
o moto, mandês a vida
e vós a verês perdida.
Dom Antonio de Valasco.
Yo que me pierdo por fee
devria ser remedeado,
qu' el que vos vio ya está pago.
Trova a este moto.
Nem a tem em vós inteira
quem pelo que vio vos crê,
porque a fee que se vê
nom é esta a verdadeira.
A minha é de tal maneira
que sam bem aventurado,
se per ela sam julgado.
Reposta ao moto.
Caa temos fee e obramos,
toda sua lei mantemos
e contodo nam podemos
alcançar que nos percamos.
Que remedio nom buscamos
nem ha i tam confiado
que lhe venha tal cuidado.
El Conde d' Onhate.
Si el mio está en algũa tierra,
em laa que me ha de cobrir
se tiene de descobrir.
Trova a este moto.
E quando for despedida
a vida co mal que tinha,
a causa donde me vinha
entam será conhecida:
saber-s' -á, se for sabida,
que a minha dor resestir
nom posso nem descobrir!
Reposta ao moto.
Se vierdes eesta nossa
onde a paixão é mais certa,
logo ha-de ser descuberta
toda dor e pena vossa.
Nom ha i quem tanto possa
que nom possa destroir
quem se nom pode encobrir.
De Dom Luis Ladram.
¿Adonde ire por remedio,
pues quien me lo puede dar
nom tiene cabo ni medio?
Trova a este moto.
A ũ mal que muito dura
pera se lhe dar repairo
ha-se de buscar contrairo
tam grande que lhe dê cura.
À minha desaventura
ũ soo se me pode achar
e este nom mo quis dar.
Reposta a este moto.
Que tenhais dores mui cruas
laa vos sofrê em Castelha,
porque caa d' ũa querela
se vos faram, senhor, duas,
que as mesmas paixões suas
a quem vos mandais queixar
nunca quis remedear.
Aos senhores que mandaram
estes motos.
Fim.
Senhores, minha tençãao
nom era ao começar
de pedir este perdãao,
porque então
antes leixara d' errar.
Agora depois d' achar
em meus erros o que neles
nom podês dissimular,
nisto m' havês de salvar:
em serem propios aqueles
que sam pera perdonar.
463
TROVA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A DOM JOAM DE ME‑
NESES EM AZAMOR, A PRI‑
MEIRA VEZ QUE
LAA
FOI, O DIA QUE PE‑
LEJOU COM OS
MOUROS.
Soube vencer Anibal,
mas nom usar da vitoria,
que de Roma tinha a vida,
e se crera Marhabal
ficara sua memorea
sobre todas estendida.
Por isso vede, senhor,
nom é isto aconselhar,
senom fazer-vos lembrança
que, se querês Azamor,
nom vos compre d' esperar
que se siga outra mudança.
464
OUTRAS
TROVAS SUAS A LUIS
DA SILVEIRA SOBRE O SEU
FAETÃO QUE VIO PASSAR
EM ŨS SEUS REPOSTEI‑
ROS, INDO ELE RECE‑
BER EL-REI QUE VI‑
NHA D'ALMEIRIM.
Debaixo d' ũa genela
em qu' estava oo soelheiro,
vi ũa manta amarela
e nela
vi, senhor, ũ carreteiro.
Vi-lhe o rosto e feição
de mui disforme maneira
e cuidei qu' era visão.
Disseram-me: — É faetão,
o de Luis da Silveira.
— Faetam, moor ousadia
foi esta que cometestes
em passar assi de dia,
do que seria
a da morte que morrestes.
Disse-lh' isto nom fingido,
senam por falar verdade.
Respondeo com gram sentido:
— Deos sabe que vou corrido,
mas nam tenho liberdade.
Mui grande cousa pedi,
immortal sendo eu mortal,
o carro que mal regi,
mas vir aqui
houve por muito moor mal.
— A culpa que nisso haa
tem o senhor que vos traz,
respondi, mas temos caa
quem saber o que traraa
ele soo sabe o que faz.
Passou ele e eu fiquei
e por ele e pola cama,
logo me certefiquei
que a lei,
e nom jaa nenhũa dama,
vos tira de vosso tento,
que vos faz, senhor, mudar,
qu' is per lamas e com vento
mais longe oo recebimento
que o velho de Tomar.
Mas por cousa tam honrada
e de proveito comum,
pola mostrar assinada
tudo é nada,
todo trabalho é nenhũ.
Tudo é bem empregado
por muito mais qu' inda seja,
porem, faetam coitado
merece de ser guardado
onde nunca mais se veja.
465
OUTRA
SUA A LUIS DA SILVEIRA
SOBRE ALGŨAS ENVEN‑
ÇÕES QUE TRAZIA.
Desse vosso atalante
e da clave nom errante,
com sua conta vazia,
se nom fosseis tam galante,
eu nom sei o que diria.
E por nom ser heresia
presumir maa envenção
de tam gentil cortesão,
por sair desta agonia
em mercê receberia
dizerdes vossa tenção.
Reposta sua polos consoantes.
Pensamento mui pojante,
de que nam ha semelhante,
mete em minha fantesia
cem mil cousas por d' avante,
emnovadas cada dia.
Do que faço e que faria
nom tenho outro gualardão
senão ter muita paixão,
a qual certo vos diria,
mas todavia
magna petis faetãao.
466
GROSA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A ESTE MOTO QUE
ŨA DAMA
TRAZIA:
Porque esperou em mi,
o livrarei.
Grosa.
Dos males que dou sem fim,
no gualardão que darei,
sempr' este moto trarei:
Porque esperou em mim
o livrarei.
Senhora, mao gualardão
dais d' esperança e de fee,
pois a paga d' ambas é
liberdade e isençãao.
Ante creça sempre em mim,
e assi o tomarei,
vosso mal de que jaa sei
que liberdade nem fim
nunca vo-la piderei.
467
TROVA QUE MANDOU DOM PEDRO
D' ALMEIDA A
JOAM RODRIGUEZ
DE SAA, VINDO D'
AZAMOR,
PORQUE TROUXE A
BARBA FEITA.
Vós jaa guardai-vos de mim
e crede que vos convem,
que segundo a barba vem,
vós deveis de vir porrim!
Pelo qual temos jaa prestes
contra vós ũ bom juiz
e nom jaa pelo qu' eu fiz,
mas pola que vós fezestes.
Reposta de Joam Rodriguez
de
Saa polos consoantes.
Pois eu sãao e salvo vim,
com fazê-lo bem porem
polo julgar de ninguem
jaa nom darei ũ cotrim.
E se tal tenção tivestes
contra mim, fazê-lhe chiz,
porque dizem a quem diz
ouvirês do que dissestes.
468
OUTRA
QUE LHE MANDOU DOM
PEDRO, PORQUE TRAZIA ŨA
CARAPUÇA DE VELUDO E
TIROU ŨU BARRETE QUE
TRAZIA, POR LHE DIZER
DONA ANA D'EÇA
QUE NOM LHE
ESTAVA BEM.
Pera contentar Dona Ana
ha mester ser tam agudo
que nom cuido que a engana
nem menos Dona Joana
carapuça de veludo.
Quanto mais qu' ela dezia,
e nisto bem s' afirmava,
todavia:
—S' o barrete bem volava,
la egua mijor corria.
Reposta de Joam Rodriguez
de
Saa polos consoantes.
A mim soo acho que dana
ser sandeu e ser sesudo,
sempre m' ee menos humana,
digo pola soberana
pera quem faço isto tudo.
Pera quem nenhũa via
achei que m' aproveitava
nem perfia,
com que s' a caça matava
e se mata cada dia.
469
TROVA QUE DOM PEDRO D'ALMEI‑
DA MANDOU AO CONDE DE VILA
NOVA, PORQUE LHE MANDOU
PEDIR ŨA CANA QUE
LHE EMPRESTOU
NO SERÃAO.
Nom saibam as castelhanas,
que andam em cas da Rainha,
que vos lembrastes de canas
tam asinha,
em tempo de louçainha.
E porem que isto assi vaa,
nom vos fiês na vontade,
mas em Joam Roĩz de Saa
que é homem de verdade.
Reposta de Joam Rodriguez
de
Saa, pelo Conde, polos
consoantes.
Brandas as acha e humanas
quem com elas faz farinha
e com tachas tam livianas,
com' esta minha,
querem cahir da bainha.
E por isso nom me daa
nom ma terdes em puridade,
que por mais me tem jaa laa
em penhor a liberdade.
470
TROVA DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA A
DOM LUIS DE MENESES, QUE
ESTA‑
VA EM ŨA GENELA COM
SUA MOLHER, DON‑
DE VIA SUA
DAMA.
Aa mãao direita a rezão
e de fronte a má vontade
vos porá tal confusão
que nom sinto descrição
que escolha ahi a verdade.
Mas enquanto a concrusão
se não tira da questão,
oulhai bem nom vos acolhão,
que dizem que os olhos olhão
da força do coração.
471
TROVA DE DOM PEDRO A SIMÃO
DA SILVEIRA, PORQUE EL-REI
MANDOU CHAMAR ŨU HO‑
MEM E PRESUMIO-SE QUE
ERA PERA O CASAR
COM ŨA DAMA.
Se me eu nam enganei,
eu tenho sabido bem
qu' as falas todas d' El-Rei
sempre vêm por mal d' alguem.
E pois isto jaa se dana,
pera que fiquemos soos,
viva-me ũa castelhana
que outra virá por vós.
Reposta de Joam
Rodriguez,
por ele, polos
con‑
soantes.
Dond' eu a minha tirei,
quem jaa esperança nom tem,
nom teme a rei nem a lei
nem o falar de ninguem.
Mas quem se nom desengana,
ronca-lhe a todalas moos,
s' aa menos Dona Joana
ou lhe jaz pelas piós.
472
DE
DOM PEDRO A
DOM GONÇALO
DE CASTEL BRANCO, ES‑
TANDO DOENTE.
Folgai bem de ser doente,
pois que tendes tal demanda
que ũa moça que ali anda,
de que vós nom sois contente,
vosso mal mais que vós sente.
E quem é desta seguro,
e ante ela tanto val,
eu nom lh' acho nenhũ furo
pera s' ele sentir mal,
senom for do radical.
Reposta de Joam Rodriguez,
por ele, polos con‑
soantes.
Quem m' isso fizesse vente,
far-m'-ia saltar em banda
o desejo de mais branda
ser a dor que tam assente
em meu mal está presente.
Porem, porque m' aventuro
a ser são do natural,
por me o seu ficar mais puro,
qu' eu tenho por divinal,
folgo de me ver mortal.
473
TROVA DE LUIS DE SILVEIRA, QUE
MANDOU A JOAM RODRIGUEZ ŨA
NOITE ANTE DE NATAL, POR‑
QUE FOI JUGAR COM
ELE E LEVAVA ŨS
ESCUDOS E GA‑
NHOU-LHE.
Eu fiquei tam magoado,
que pera depois de cea
vos hei por desafiado,
eu com a mão muito chea
e vós com punho çarrado.
Trazei antes ũa espada
com que me cortês d' agudo,
que o vosso velho escudo
que se nom passa com nada.
Reposta de Joam Rodriguez
polos consoantes.
Quem estaa desesperado
nenhũa cousa arrecea,
mas vós estai descansado,
qu' eu estou ũa balea
ou muito mais repousado.
E nom farei tal errada,
que nom são sesudo rudo,
pera jogo nom acudo,
mas irei aa consoada.
474
TROVAS QUE MANDOU JOAM RODRI‑
GUEZ A DOM PEDRO D' ALMEIDA,
PORQUE ELE E SIMÃO DA SIL‑
VEIRA LHE QUERIAM FAZER
TROVAS A ŨU CHAPEO
AZUL DE SEDA,
QUE TRAZIA.
Do autor tornar-se reo,
s' acontece cada vez,
e quem zombar do chapeo
cahir na cova que fez
é propia cousa do ceo.
Por isso sede avisado,
enquanto estais em franquia,
nom vos acolha o pecado,
que pecado ha d' ũ soo dia
que nunca é mais perdoado.
Este nom é de heresias
nem em que os anjos cairam,
mas ũ par de trovas frias
nom s' acha que se remiram
nem por vida do Mexias.
E enquanto a maa tenção
nom sai fora da pousada,
ahi val a descriçãao,
porque ũa trova mandada
é pedra que sai da mãao.
Mas se jaa detreminado
estaes, e como taful
nom querês ser conselhado,
guardai de fazê-lo azul,
qu' estaa mui adevinhado.
Guardai-vos tambem do vis,
nom vos sirva em consoante,
dizei cousas tam gentis
como d' homem tam galante
que nom ha tal em Paris.
E eu seguro o correr
e seguro o desafio,
mas quanto é oo responder
sabei que jaa me caa rio,
vendo o que ha-de vós de ser.
E nisto soo que vos digo
nom quisera ser profeta,
mas é ũ conselho antigo
de Platam, que a homem poeta
nom o tomeis por inmigo.
475
PERGUNTA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A DOM MIGUEL
DA SILVA.
Cume em que sa linhagem
dos da Silva mais empina,
a quem nom s' acha paragem
de eloquencia e de doutrina,
em latim, grego e linguagem.
Ante quem, quem a ventagem
dos outros tem com rezão,
perde tanto a presunção,
que se parece salvagem
assi mesmo ou aldeão.
Pois vos quis a natureza
tanto esmerar em saber
e co ele dar nobreza,
pera a ninguem o esconder
nem mostrar nisso graveza
e brandura e que despreza
os despreçeos d' altarada
e fantesia enlevada,
quando de tanta rudeza
como a minha é perguntada.
Pergunto: — Qual foi o mar
contr' oos deoses tam ousado
que nom quis fazer lugar
ao que mais alto estado
tem, vendo todos lhe dar?
Que nunca se vê mudar
com ondas, maree nem vento,
mas immoto e firme estar,
sem tam somente mostrar
nem sinal de movimento?
476
TROVA SUA A ŨA DAMA, QUE LHE
DEU Ũ DIA DE RAMOS ŨA
CRUZ DE PALMA.
Jaa mil tormentos provei
e os mais vós os fezestes,
mas nesta cruz, que me destes,
foi o maior que passei.
Dar tormento oo corpo e alma
inda lhe nom satisfaz,
ũ soo proveito me traz:
mostrar-me que em vossa palma
haa soo vitoria e nom paz.
477
DE
JOAM RODRIGUEZ DA SAA A ŨA
DAMA QUE DISSE QUE SONHARA QUE
ELE E OUTRO HOMEM ACHAVAM
CERTAS DAMAS DE NOITE DES‑
PIDAS E COMENDO PERAS
E QUE ELE QUE
SE PU‑
NHA A COMER PE‑
RAS COM ELAS.
Senhora, nom me tenhais
por goloso de verdade,
se o nom sabeis de mais
que dos sonhos que sonhais,
que sonhos som vaidade.
E se eu peras comia
em tal lugar e tal hora,
isso seria,
porque com minha senhora
jugar peras nom queria.
Nom o posso porem crer,
ainda que mo jureis,
pois perdi jaa o comer
d' ouvir somente dizer
como estaveis todas tres!
Que fora jaa se vos vira,
segundo estaveis pintada,
como me das peras rira
ou fora mentira
e coraçam de pousada
o qu' eu caa de mim sentira!
Sua
a Dom Pedro d' Almeida,
mandando-lhe
mostrar estas
trovas, porque
ele sabia
parte daquela estoria,
mas nom sabia qual
era o homem que
comia as
peras.
Eu era o homem qu' estava
à noite em cas da Rainha,
com tres damas em vasquinha
e de nenhũa apegava.
Antes diz que m' apartava
como bucheiro do porto
ũas peras de conforto
qu' o demo ali deparava.
E porque outr' hora nom vão
sonhar tal sonho comigo,
neste par delas lhe digo
toda minha condição.
Vão a vós co a tenção
que vos devem de buscar
pera se desenganar,
se devem laa d' ir ou não.
478
A
DOM PEDRO D'ALMEIDA,
MAN‑
DANDO-LHE MOSTRAR A
EPIS‑
TOLA DE DIDO
A ENEAS.
Eu fico, senhor, corrido,
porque sei que vós rirês
de quam mal ensinei Dido
a falar o portugues.
Trabalhei mui bem meu giro,
trabalhei porem em vãao,
porque ela era de Tiro
e bem sabeis dond' eu sãao.
Ouvidio nos servia
de turgimão por latim,
o qu' eu menos entendia
do qu' ela entendia a mim.
Disso pouco que souber
vos podereis contentar
e por vós podeis julgar
que nunca vos vi molher
que podesseis amansar.
Reposta de Dom Pedro.
Bem sei eu que o partido
de Dido nunca vereis
tam alto nem tam sobido
como lho, senhor fazeis.
Bem me mato, bem me firo,
por ver se acho rezãao
de vos nom dar gualardão,
mas porem logo me viro
a morrer sô vossa mãao.
Ninguem nom tenha ousadia
de valer ũ só cotrim
ante a vossa fantesia,
qu' ee a que dizem sem fim.
Bem s' engana quem quiser
contra vós bando tomar,
mas haveis de perdoar,
pois is no cabo meter
mentira por gracejar.
479
OUTRA DE JOAM RODRIGUEZ DE
SAA A DOM PEDRO, MANDAN‑
DO-LHE
MOSTRAR ŨAS
TROVAS QUE
FIZERA.
Pois minhas obras erradas
quereis ver, seraa rezam
verde-las com condiçam
que mas mandeis enmendadas
e nam, senhor, como vãao.
E co que laa lhe farão,
venham quentes coma brasa,
a dizer-me qu' em tal casa
taes borraduras lhe dão.
Reposta de Dom Pedro
polos
consoantes.
Ahi haa horas minguadas,
nom o tomeis com paixão,
qu' eu nom vos tenho tenção,
porem nestas, aosadas,
qu' isto tudo está bem chão.
Nom digo quem nem quem não,
porem vós jazeis na vasa,
pois justaeis em sela rasa
comigo sendo quem são.
Reposta de Joam Rodriguez
de Saa
polos consoantes.
Desfechais mil badaladas,
porque vos nom vão à mão
e eu vi outro folãao
que aas primeiras porradas
desejou logo o bastãao.
Abaixai a presunçãao,
que nem vós nom sois carasa,
guardai nom brite pol' asa,
senhor, vossa openiãao.
480
TROVAS QUE DOM PEDRO MANDOU
A JOAM RODRIGUEZ, SABENDO
ALGŨAS COUSAS QUE
TINHA PARA SE
VISTIR.
Por verdes que são olhadas
as vossas cousas de mim,
nom façais taes cavalhadas,
que de sedas bem coradas
des convosco em porrim.
E pois jaa errais capelo,
nom vades ser tam agudo
que danês ruam de selo
nem chamalote amarelo,
pois que jaa daneis veludo.
Vós nom credes o qu' eu digo,
tomais tudo à maa tenção,
se vos virdes em perigo
nom soom logo vosso amigo
e oulhai pelo cotãao.
Que quem tanta cousa erra
laa no porto m' ha-d' achar
e se nam quereis tal guerra,
lembre-vos que sois aa terra,
da terra haveis de tornar.
Quanto faz em vos danar
tud' ee pera mi ũ veo,
se vos quero desculpar
eis vos vão escorregar
gentis envenções do ceo.
Desespero de vós jaa,
bem sei qu' isto sam perfias,
porque bem craro estaa
que quem malas manhas ha
nom as perde em quinze dias.
Isto m' estava guardado,
inda pera meu conforto,
vir a ter de vós cuidado
que nom vades mal betado
a vos perderdes no porto.
Sobre mim vem este cargo,
regê-vos pelo meu tempre,
sem haver i mais embargo,
e se nam eu vos alargo
d' hoje pera todo sempre.
Reposta de Joam Rodriguez de
Saa polos consoantes.
Conversações de pousadas
sempre vêm ter eeste fim
e nestas trovas, aosadas,
podem ser mui bem culpadas
as varandas d' Almeirim.
E por isto nom apelo,
porque bem mereço tudo
que me tragais atropelo,
como s' eu fosse alto, belo,
pois nom quero ser sesudo.
Nom traveis tanto comigo,
nom sejais tam zombeirão,
lembre-vos que o boi antigo
traz mais recado consigo,
põe mais rijo o pee no chão.
Nom vos metais pela serra
se por chão podeis andar,
sabei que quem tudo aferra
às vezes com peso berra,
que o faz agiolhar.
Quero-vos desenganar,
qu' eu são autor e vós reo,
em tudo o qu' eu vou sacar
vós com enveja e pesar
quereis lançar o arpeo.
Mas sempre Deos quererá
que vos mintam as estrias,
porque onde quer qu' eu vaa
nunca o olho vos verá
senam mil galantarias.
Diverês de ser lembrado
que jaa vos eu vi no horto,
de todos mui afulado
e de mim soo bem tratado
por nom matar mouro morto.
Nom creaes que assi avargo,
buscai quem me bem contempre,
dir-vos-á, senhor, que amargo
muito mais que ũ espargo,
nom sei consoante a sempre.
481
TROVAS
DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA, PARTINDO DONDE
FICAVA ŨA
MOLHER.
Gram descanso levaria
meu coraçam se sentisse,
senhora, qu' eu nom deria
que, depois que me partisse,
vos lembrasseis algũ dia
de mim, que mais nom queria
outro bem nem gualardam,
de quanta rezam
com rezam sei que teria
de pedir satisfaçãao.
Satisfação do passado,
tempo tambem despendido,
bem despeso, bem gastado
em trazer quanto cuidado
por vós trago no sentido.
Que por ser milhor servido
nom posso servir em al,
ainda mal,
vosso merecer sobido
pera mim tam desigual.
Desigual, porque nom posso,
sem vós serdes deservida,
dizer que sofro esta vida,
senhora, porque são vosso,
até que seja perdida.
Mas sofrer a sem medida
pena, que sofro em calar,
faz dobrar
e ser muito mais crecida
a dor que me quer matar.
Matar, porque me convem,
nom convem, mas é forçado
partir-me de vós, meu bem,
meu bem sempre desejado,
mas que sois meu mal porem.
Pois sabendo que nom tem
outrem poder de me dar
vida e tirar,
nom ma dais, nem a ninguem
o poder de m' acabar.
Acabar de ver a fim
que me der minha ventura,
a ventura com que vim
onde vossa fermosura
vos deu poder contra mim.
Mas bem sei que será assi
como cada dia brado,
pois apartado
cedo m' hei-de ver daqui
de vossa vista alongado.
Fim.
Alongado de vos ver
e co este apartamento
sei que comprido ha-de ser
meu desejo e meu tormento
s' acabará co viver.
Mas que pestará morrer,
pois na mesma morte sei
que nom leixarei
muitas mais penas sofrer
das que na vida passei.
482
TROVA QUE MANDOU LUIS DA
SILVEIRA A
JOAM RODRIGUEZ,
VINDO COM O
CONDE DE
VILA NOVA DE
SAN‑
TIAGO E EL-REI PAR‑
TIA O OUTRO DIA
PERA EVORA.
Vós co senhor Dom Martinho
diz que vindes per paradas,
pera meter a caminho
damas mal encaminhadas.
Outras novas que caa dão
nom as pode crer ninguem
que coube pelo padrão,
mas porem
sois tam zeloso de bem
que a vossa boa tençãao
levaria a ele aalem.
Reposta de Joam Rodriguez
polos consoantes.
Como moinho e meirinho
sam todas as suas passadas,
pera fazer cozcorrinho,
mas as minhas são baldadas.
As damas embora vão,
que jaa me nom vai nem vem
nelas prazer nem paixão,
que me dem,
ele nom ficou aquem,
porque minha condição
jaa sabeis que primor tem.
483
A
ŨA MOLHER QUE LHE MAN‑
DOU Ũ SINAL QUE TRAZIA
NO ROSTO. CANTIGA DE
JOAM RODRIGUEZ
DE SAA.
Nom no empregastes mal
nem creio que sem rezão
em meu triste coraçam,
senhora, vosso sinal.
E tê-lo nele jaa posto
nom o faça em mim incerto,
onde está mais descuberto
do que era no vosso rosto.
Tem em mim este soo mal:
nom ser jaa o qu' era entam,
porque quando as cousas são
jaa nelas nom ha sinal.
484
PREGUNTA
D' ANTONIO MACHADO
A JAOM RODRIGUEZ
DE SAA.
Pois passa tam sem vagar
o folgar por vossa vida
sem se poder conservar,
pergunto s' haa-de lembrar,
quando for mais sem medida,
o fim que tem de leixar.
Ou se se deve perder
correndo desenfreado
me mandai, senhor, dizer,
porque meu fraco entender
o meio neste cuidado
nunca me soube escolher.
Reposta de Joam Rodriguez
de Saa
pelos
consoantes.
Quem mais quiser esperar
disto com que nos convida
este tam baixo folgar,
ponha todo seu cuidar
em cuidar que outra guarida
tem em que s' haa-de salvar.
E que caa neste viver
por pouco tempo e prestado
é falso todo prazer,
pelo qual compre, a meu ver,
lembrar-se homem do passado,
por lembrar-lhe o que ha-de ser.
485
PERGUNTA
DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A LUIS DA
SILVEIRA.
A mais discreta maneira
que homem pode buscar
pera vos louvar,
senhor Luis da Silveira,
é errar
tam acertada barreira.
E por assi acertar
duas mercês me fareis:
ũa é que me gabeis
e o que hei-de perguntar,
a outra que m' ensineis.
E dizei-me, senhor, qual
corpo sem ser sensitivo,
sem fegura de animal,
nem immortal nem mortal
tem porem nome de bivo;
quando s' apaga, s' acende,
esquenta-se em frieldade,
e por sua qualidade
o que toda cousa ofende
a ele daa claridade.
486
GROSA
DE JOAM RODRIGUEZ DE
SAA A ESTE MOTO DE
ŨA DAMA:
Nunca tam livre me vi
nem m' houve tamanho medo!
Grosa.
Posto que tarde o senti
pera meu mal foi bem cedo,
pois pude dizer por mi:
nunca tam livre me vi
nem m' houve tamanho medo!
E que medo e liberdade
nom possam juntos caber,
pera m' a mi mal fazer
tudo vem a ser verdade
quanto nom podia ser.
Tudo pode ser assi
quer seja tarde quer cedo,
pois pude dizer por mi:
nunca tam livre me vi
nem m' houve tamanho medo!
487
TROVAS DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA
A LUIS DA SILVEIRA, QUE
O FOI
VER A SUA CASA E, PORQUE
LHE DISSERAM QUE JAZIA
AINDA NA CAMA,
NOM QUIS LAA
ENTRAR.
Eu regi-me pela fama
que de vós ouço por fora:
que nom quereis que a senhora
vos ninguem veja na cama,
senom for ama
ou parteira
ou tam fiel covilheira
em que nunca houvess' escama.
Reposta sua polos consoantes.
Se homem oos que mais ama,
senhor, bem se nom afora,
é tal o mundo d' agora
que logo de vós brasfama
e defama,
de maneira
que logo pela primeira
se lh' haa-de tirar a mama.
488
EPITAFIO
DE TIBULO, POETA,
TIRADO POR JOAM RODRI‑
GUEZ EM LINGUAJEM.
A morte mui desigual,
oo Tibulo, te levou
aa vida qu' é eternal,
tu que soo foras igual
ao que Mantua criou.
Porque mais i nom houvesse,
em elegias dissesse
quem amores desiguaes
ou as batalhas campaes
dos reis screver podesse.
489
PERGUNTA DE DIOGO FERNANDEZ,
OURIVEZ, A JOAM RODRI‑
GUEZ DE SAA.
Digo al que duerme despierto,
si vostro saber inora,
que contemple siendo cierto
qu' el dulce fruto del puerto
non es menor que clara amora.
La prudencia, gram senhora,
ante vos, senhor, se homilha
e nelh' alteza do mora
vuestra cumbre la desdora
y abaxa de su silha.
Yo remoto, insuficiente,
sim saber especulaar,
vengo a la muy clara fuente,
que del mar es procediente,
do espero navegar.
Y amando nom enojar,
pido vuestro parecer,
pidolo por deprender
qual se deve más loaar:
el discreto perguntar
o el polido responder.
Reposta de Joam Rodriguez
de Saa pelos con‑
soantes.
Mi ierro muy descubierto
vuestra gracia assi colora,
que del muy seco desierto
de mi saber haze ũ huerto
vuestra pluma sabidora.
Y en esto superiora
de todas puedem dezilha,
que templa em tal punto y hora
mi saber, e assi mejora,
que queda a poder sufrilha.
Pues es causa tam vigente
vuestro ruego a me forçar
a dezir osadamente,
digo que es más de prudente
dar al perfeto su paar,
que nuevamente inventar
un enigma a su plazer,
do no se muestra saber,
mas vese em lo declarar
Josef Egipto mandar,
Edipo nombrado ser.
TROVAS DE LUIS DA SILVEIRA
A
JOAM RODRIGUEZ DE SAA,
SOBRE ŨU SEU
AMIGO, A
QUE ACONTECEO COM
ŨA
MOLHER O
QUE DIZEM
AS
TROVAS.
Este vosso moncosi
em chegando de improviso,
que maa hora o eu vi,
tinha-a eu fora de si
e el fê-la haver siso.
Nunca tal se vio fazer,
leva jaa Mestre Lião,
porque sem lhe pôr a mão,
sem a abrir, sem a coser,
soo de fora com a ver
lhe curou sua paixão.
Foi dele mui curada,
ja agora dela nam cura,
porem aa minha chegada
lhe sobreveio quentura
doutra materia causada.
Se lhe vida dar querês,
mandai-lho vir qu' eu o fio,
que a quentura com seu frio
segure como sabeis.
Reposta de Joam Rodriguez
de Saa
polos consoantes.
A homem que cura assi,
Deos lhe dê o paraiso,
e a vós, senhor, e a mim
tornamo-la ver aqui
e sempre co esse aviso.
Sostenha Deos tal saber,
dobre tal openião,
conserve-lhe a presenção,
que com muito ver e ler
nom na poderá aprender
sem natural descrição.
Que se nom fora avisada
per ventura e sem ventura,
pouco lhe prestara ou nada,
porque foi contra natura
ser tam bem remedeada.
Esta bem a entendês
qu' ee de Verãao, nom d' Estio,
a qual s' eu nom tresvalio
ela a tem por boas tres.
491
DE JOAM
RODRIGUEZ DE SAA
A ŨA DAMA, QUE LHE MAN‑
DOU PERGUNTAR SE TRA‑
ZIA Ũ RECADO PERA
ELA DE Ũ LUGAR
DONDE VINHA.
Nom tenho nenhũ recado
pera vós nem pera mim,
senhora, nem fui nem vim,
nem estou nem são passado.
Nom tenho que vos dizer
cousa que queirais ouvir,
nem posso de vós mais ter
que males pera sentir
e vida pera os sofrer.
492
DE
JOAM RODRIGUEZ DE SAA A
Ũ VILANCETE DE GARCIA DE
RESENDE COM A TROVA
ABAIXO ESCRITA, QUE
LHE MANDOU, POR‑
QUE A MANDARA
TARDE.
O vilancete.
Coração, coração triste,
triste coração, coitado,
quem vos deu tanto cuidado?
Trova a ele.
Quem meu cuidado tomou,
quem nem cuidar me nom deu
inda mais acrecentou
ao mal que me causou
tirar-lhe o nome de seu.
Consento que seja meu
soo porque fique calado
o segredo do cuidado.
A Garcia de Resende.
Aacabado de a ler
de caa vos vejo zombar
e dizer:
— Tardar e arrecadar
nom s' haa nesta d' entender.
Porem qual vos parecer
nom se leixe d' assentar,
que muitos a podem ver,
a que pode contentar.
493
PERGUNTA DE JOAM RODRIGUEZ
DE SAA A AIRES TELEZ, QUANDO
O DUQUE IA A AZAMOR.
Cale-se ũ pouco, nom tanja Tritão,
o deos das batalhas repousa algũ tanto,
metam as armas seu medo e espanto
aa seita maldita, oo falso Alcorãao!
As deoses sagradas no monte Helicão,
isentas de humano e divino medo,
vos mandam, senhor, ũ pouco estar quedo,
ouvi-las e dar-lhes em mim atenção.
Filhas de Tespis, este meu ousar
de pôr-me no conto de quem vós servis,
abaste saber que mo nom consentis,
mas nom mo queirais porem acoimar.
O castigo fique pera outro lugar
e seja em vez dele agora ajudado
de vós todas juntas, até ser louvado
de mim quem nom posso sem vós nomear.
Aquele que jaa mil vezes tocando
a citara doce, com vossa harmonia,
eu vi outras tantas que os montes fazia
estar de seu curso seu som escuitando.
Os satiros, faunos, qu' andavão caçando,
silvanos dos montes e ninfas das aguas,
que tinha paixão perder suas magoas
e quem prazer tinha vi i-lo mudando.
A honra do nobre sangue dos Vilhanas,
dos Silvas, Meneses, o muito famoso,
em todalas cousas perfeito e ditoso
senão em amores lhe ir bem com Joanas.
Das outras vertudes, que são soberanas,
esforço, prudencia, em cabo dotado,
se de mais nom falo seja perdoado
e mais por louvar-vos de graças humanas.
Algũa esperança que receberês,
a minha prove era antre vossos loureiros,
me dão os enxempros de mil cavaleiros
nos quaes nunca a Febo Mars foi descortes.
E que Hercoles trouxe, como vós sabeis,
as Musas consigo per onde quer qu' ia,
os monstros matando e quanto trazia
o lebre de Pluto das cabeças tres.
Chamava Alexandre seu companheiro
aaquele das Musas espelho e arreo
que o filho inmortal faz ser de Peleo
por ser de seus feitos tam gram pregoeiro.
Na paaz e na guerra lhe era praceiro,
nem se despreçava de ser Scipiãao,
Enio em amor, quasi em grao de irmãao,
d' engenho mui grande e n' arte grosseiro.
Pois nom bota a lança, ante a faz aguda,
a disciplina da filosofia,
a doce, descreta, gentil poesia
que os grandes spiritus esforça e ajuda.
Nom o desprece de si nem excluda
este exercício vosso coração,
que Mars jaa foi visto na doce prisão
da deosa mui branda que os fortes muda.
A Deos immortal nem mortal senhor
nunca foi posto a nenguem por tacha,
quando serviços maiores nom acha,
servi-Lo com cousas de pouco valor.
Onde o coraçam é merecedor
nom desmereça em que s' aconteça
a obra ser tal que pouco mereça,
porque na vontade vai todo primor.
Busquei na fazenda com que serveria
e nom pude achar em tod' ela junta
nem em meu saber mais desta pergunta,
que acupará pouco vossa fantesia.
Vai confiada e leva ousadia
em vossa brandura sem ter a mais tento,
ainda, senhor, qu' este atrevimento
m' is logo tirando laa per outra via.
E muito mais longe do que certo o tenho
com outro desvio de vós m' apartais,
e isto, ainda que vós nom querais,
cos raios que lança de si vosso engenho.
No qual contemplando me cego e m' embrenho
e por milhor meo tomo desistir,
mas todavia me faz presumir
a condição vossa de que me sostenho.
Ha-d' ir convosco nesta expedição,
vê-lo-á o Mestre e toda a companha,
pelo mar Atlantico e pelo d' Espanha
causa de perda e de salvação,
aquele coitado que muita aflição
o fez proveitoso aa vida humanal,
cousa a que nossa arte foi mais desigual
que a quantas no mundo produzidas são.
Immigo da terra, que queima e consume,
das ninfas, das aguas, que faz amargosas,
em pago das muitas e mui trabalhosas
fortunas de que tem grande volume.
Oo de saber e doutrina cume,
que eu inda espero de ver outro Furio,
dino de consul mais que de centurio,
aqui neste escuro mostrai vosso lume!
FIM DO SEGUNDO VOLUME