Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

 

LITERATURA PORTUGUESA
Textos literários em meio eletrônico

 Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende


Edição de base:

GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.

Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

VOLUME III

Tavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . .

De Luis da Silveira sobre o Eclesiastes.        fo. CXXVIII

Cantigas e trovas suas, desta folha atee às folhas        fo. CXXX

De Dom Luis de Meneses, cantigas e trovas suas.        fo. CXXX

‡ De Joam Afonso d’ Aveiro a Vasco Arnalho.        fo. CXXX

‡ Trovas suas a Lançarote de Melo e ajuda de Nuno Pereira.      fo. CXXXI

Outras suas e ũa cantiga.        fo. CXXXI

‡ De Bras da Costa, trovas e cantigas suas.      fo. CXXXII

De Duarte da Gama ao secretario.        fo. CXXXII

‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas        fo. CXXXV

De Tristam da Silva, trovas suas.        fo. CXXXV

De Pero de Baiam e Diogo Lopez.        fo. CXXXVI

De Gonçalo Mendez Çacoto, trovas e cantigas suas.        fo. CXXXVI

‡ De Fernam Cardoso, trovas e cantigas suas.       fo. CXXXVII

De Gregorio Afonso, os Arrenegos e duas grosas suas.        fo. CXXXVIII

De Joam Rodriguez, cantiga sua com grosa.        fo. CXXXIX

Duas epistolas tiradas per ele do latim, desta folha atee        fo. CXLII

De Louvor.

‡ De Fernam da Silveira em louvor de sua dama.        fo. CXLII

‡ De Nuno Pereira em louvor de sua dama.        fo. CXLIII

‡ Do Conde de Borba a Dona Lianor.        fo. CXLIII

‡ Da senhora Dona Felipa.        fo. CXLIIII

‡ Do Conde do Vimioso a tres damas.     fo. CXLIIII

‡ Do Conde a ũa senhora.        fo. CXLV

‡ Do Craveiro a Dona Felipa.        fo. CXLV

‡ De Dom Diogo a Dona Briatiz.        fo. CXLVII

‡ De Dom Joam Manuel.        fo. CXLVIII

‡ De Pero de Sousa a Dona Maria.        fo. CXLIX

‡ De Pedr’ Homem, estribeiro-mor.        fo. CXLIX

‡ De Jorge da Silveira.      fo. CXLIX

‡ D’ Aires Telez a Dona Joana.       fo. CL

‡ De Joam da Silveira a Dona Margarida Freire.        fo. CL

‡ De Jorge de Aguiar.        fo. CLI

‡ De Simão de Sousa a Dona Briatiz.       fo. CLII

‡ De Simão de Miranda a Dona Briatiz.        fo. CLIII

‡ De Simão de Sousa a Dona Guiomar.    fo. CLIII

‡ De Garcia de Resende.      fo. CLIIII

Cousas De Folgar.

‡ De Dom Joam a ũa dama que beijava Dona Guiomar.        fo. CLIIII

‡ Da barguilha de Dom Goterre.        fo. CLIIII

‡ Das pancadas dos cantores.        fo. CLV

‡ Da dama guarnecida.        fo. CLVI

‡ De Dom Goterre aos jibões.        fo. CLVII

‡ Do mongi com capelo.        fo. CLVIII

‡ Da mula de Lourenço de Faria.        fo. CLVIII

‡ Das alcaladas de Joam Gomez.        fo. CLVIII

‡ Da barba de Dom Rodrigo.        fo. CLVIII

‡ Das carapuças de solia.        fo. CLVIII

‡ Da gangorra de Lopo de Sousa.        fo. CLIX

‡ Das ceroilas de Manuel de Noronha.        fo. CLXI

‡ Das de per Alteza.         fo. CLXIII

‡ A Dom Joam Pereira.        fo. CLXIIII

‡ D’ Anrique d’ Almeida.        fo. CLXV

‡ De Pero de Sousa Ribeiro.        fo. CLXV

‡ Ao Baram d’ Alvito.       fo. CLXVI

‡ Do Baram a Lionel de Melo.       fo. CLXVI

‡ Da lingua que tanto monta.      fo. CLXVI

‡ De Lop’ Alvarez de Moura.        fo. CLXVI

‡ Do troteiro do Conde Prior.        fo. CLXVI

‡ Do macho de Luis Freire.        fo. CLXVII

‡ Do Coudel-mor, com repostas.       fo. CLXVII

‡ Dos servidores de Dona Lianor.          fo. CLXVIII

‡ Do Prior de Santa Cruz.       fo. CLXVIII

‡ Do cavalo de Joam Gomez.        fo. CLXIX

‡ Do jaez de Francisco d’ Anhaia.        fo. CLXXI

‡ De Pero de Sousa e reposta.        fo. CLXXII

‡ Das letras e cimeiras.        fo. CLXXIII

‡ Dos Porques que se acharam.        fo. CLXXIIII

‡ Do que saio no braseiro.        fo. CLXXV

‡ Das esporas de Simam de Sousa.        fo. CLXXVI

‡ De Francisco de Biveiro e reposta.        fo. CLXXVII

Do pelote de Simão da Silveira.        fo. CLXXIX

‡ De Jorge d’ Oliveira.        fo. CLXXIX

‡ De Dom Anrique.        fo. CLXXX

‡ Da camisa de Dom Francisco.        fo. CLXXXI

‡ Das martas de Dom Jeronimo.        fo. CLXXXI

Do Conde a Luis da Silveira. De Luis da Silveira ao Conde.        fo. CLXXXII

‡ De Lopo Furtado, castelhano.        fo. CLXXXII

494

DE LUIS DA SILVEIRA A ŨU

PREPOSITO SEU, EM QUE

SEGUE SALAMAM NO

ECLESIASTES.

Vaidaade das vaidades

e tudo é vaidaade,

assi paassam as vontades

com’ aas cousas da vontade.

Tudo se jaa desejou

e tudo s’ avorreceo

e tudo se jaa ganhou

e tudo se jaa perdeo.

E o homem que mais tem

do trabalho a que se daa?

A geraçam vai e vem,

a terra sempr’ assi estaa.

As cousas naquesta vida

todas s’ entreegam per conto,

que se caa dê mor medida,

tudo lá tem seu desconto.

Nam pode ninguem dizer

que haa i ja cousa noova,

o que foi iss’ haa-de ser,

disto temos certa prova.

Quem carece do passado,

julga pelo acidente,

mas coitaados e coitaado

da quem é tudo presente.

Que nam lembrem os primeiros,

senam quasi por estoorea,

tam pouco teram memorea

de nós os mais derradeiros.

O tempo vai per compaasso

dias, horas e momentos,

liberal d’ esquecimentos,

de memoreas mui escasso.

Eu fui rei em Jerusalem,

precedi os dante mim,

tive beens, quis grande bem,

e em fim tudo houve fim.

Fiz os meus olhos contentes

e vi o tempo senhor,

vi lagrimas d’ inocentes

e nam vi consolador.

Tive mil deleitações

riquezas e beens mundanos,

em tudo achei enganos,

dores e tribulações.

Com trabaalho os ajuntais,

com cuidaado os possuis,

quando os tendes, nam dormis,

ou vos deixam ou os deixais.

Cuidei no meu coraçam

onde tudo ia ter.

Entam disse ao prazer:

— Porque t’ enganas em vam?

Por erro julguei o riso

dentro da minha vontade,

assi vi passaar o siso

com’ aa grande vaidade.

O sesudo e o sandeu

tudo vi que tinha fim,

e disse entam antre mim:

— Que me preesta o saber meu?

Inorantes e prudentes

todos têm ũa medida,

na morte nem nesta vida

nam nos vejo diferentes.

Assi que neste presente

boons nem maos nam se conhecem

e a todos igualmente

beens e males acontecem.

Daqui naacem confusõoes,

naacem descontentamentos,

perdensas, openiõoes,

abaixam-s’ os pensamentos.

O justo, o sabedor

e o mais cheo de fee

nenhũ nam saabe se ee

dino d’ odio se d’ amor.

Quantos isto faz perder,

porqu’ a quem a fee nam dura

encomenda-s’ aa ventura

e deixa de merecer.

As cousas seu tempo tem

e per seus espaaços vam,

tempo de mal e de bem,

tempo de si e de nam.

Tempo haa de semear

e tempo haa de colher

e tempo d’ obedecer

e tempo pera mandaar.

Nem vi fortes vencedores

nem vi justos beadantes,

nem ricos os sabedores

nem prooves os inorantes.

Nam haa i merecimentos

nem menos bõa rezam,

tempos, acontecimentos

haa nas cousas e mais nam.

Vi os roins soterrados

e o que deles deziam

e vi-os, quando veviam,

por santos ser adoraados.

E vi levar aa mentira

os galardões da verdaade

e o que se daqui tira

é que tudo é vaidaade.

Vi trabaalhos sem dar fruito,

vi que ninguem nam repousa,

vi fazer pouco por muito

e muito por pouca cousa.

Ouciosos acupaados

vi perder dias e anos,

vi enganos d’ enganaados,

que doem mais que desenganos.

Vi os prooves sem amigos,

vi os ricos sem contrairos,

vi em tudo mil perigos,

mil mudanças, mil desvairos.

Vi os cuidaados sobejos

falecer-lhe seu cuidaado

e vi oos grandes desejos

falecer-lh’ o desejaado.

Vi os muito cobiçoosos

ter mui largos despenseiros

e vi nesceos ouciosos

ficarem por seus herdeiros.

Dá a Fortuna estes meos

oos menos merecedores

e dos trabaalhos alheos

os faaz o tempo senhores.

Vi o mundo ser sogeito

de senhores mui sogeitos

e vi estaar o dereito

em moodos e em respeitos.

Vi tudo sem liberdaade

metido em sogeiçam,

vi os livres sem vontade

feitos doutra condiçam.

Cabo.

E nam vi nenhũ estaado

que nam fosse descontente:

ũs choram polo passado

e outros polo presente;

ũs por terem seus cuidados,

outros porque os perderam,

assi qu’ os que nam naceram

sam os bem-aventurados.

495

CANTIGAS DE LUIS
DA SILVEIRA.

Senhora, pois que folgais

com meu mal, nam me mateis,

porque quanto alongais

minha vida, tanto mais

vossa vontaade fareis.

E olhai, se m’ acabardes,

que nunca me mais tereis,

inda que me desejeis,

pera m’ outra vez mataardes.

Mas ja sei o que cuidais

e de mim o conheceis:

confiais

que se de morto mandais

que torne, que m’ achareis.

496

CANTIGA.

Tudo se pode perder,

naada nam pode duraar

e quem nisto bem cuidar

nem folgaraa com prazer

nem sentirá o pesar.

Se Fortuna alguem contenta

com bem ou mal que lh’ ordena

faz-lho, porque despois senta

na mudança maior pena.

Faz o mal polo fazer,

faz o bem pera o tiraar

e consente no ganhaar

polo perder.

497

CANTIGA SUA.

A tais novidaades vim

qu’ eu mesmo me nam conheço,

porque ja vi mal sem fim,

mas nunc’ o vi sem começo.

E pois este que me veo

começo nem fim nam tem,

mal esperarei tambem

que tenha meo.

Este mal só veo a mim,

eu tambem só o mereço,

os outros buscam-lhe fim

e eu busco-lhe começo.

498

CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.

Senhora, de me ganhar

ou de me verdes perder,

algum gosto haveis de ter.

Quanto folgo com meu mal

nam vo-lo dirá ninguem,

porqu’ entam far-m’ -ieis al

que nam fosse mal nem bem.

Pois me nam quereis ganhar,

tanto hei-de merecer

que folgueis de m’ eu perder.

499

CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA
SOBRE ŨS MOTOS DE CONTEN‑
TAMENTOS QUE POSERAM
E ELE ASSINOU-SE NO
CABO DELES SEM
MAIS MOTO.

Mil contentamentos tristes

viram lá de cada um,

mas bem sei qu’ o meu nam vistes,

porque nam tenho nenhum.

Isto vos direi sem medo,

isto ousarei de dizer,

qu’ ee tam tarde pera o ter

como cedo.

Saiba certo que sentistes

se me quereis ver algũ

verdes-me, quando me vistes,

sem nenhum.

500

CANTIGA SUA A ŨA DAMA,
QUE LHE TIROU COM
ŨA PEDRA.

Cũa pedra me tiraastes,

mas queira Deos qu’ algũ hoora

as lanceis por mim, senhora.

Bem vos vi querer tiraar,

sempr’ adevinho meu maal,

mas quem podeera cuidaar

que nam m’ havieis d’ erraar

naquisto coma no al?

Vós bem certo me tiraastes

e de vós mesmo, senhora,

me vingue Deos algũ hoora.

501

CANTIGA QUE FEZ LUIS DA
SILVEIRA, ESTANDO SUA
DAMA PERA CASAR.

Enquanto m’ a vida dura,

tempo vos peeço, nam al,

em que me minha ventura

ensine a sofrer meu maal.

De quantas cousas perdi

a mais pequena vos peço,

vede se vo-la mereço

e senam peerca-s’ assi.

Porque a gram desaventura

ou o muito grande maal,

se o custume o nam cura,

nam no pode curaar al.

502

CANTIGA SUA.

Mil vezes tenho provaado,

mas em vão o espremento,

de furtar oo pensamento

algũ tempo sem cuidaado.

Por espias vam enganos

cheos de prometimentos,

nam me vaalem fingimentos,

mais quer’ o mal de mil anos

que novos contentamentos.

Ó pensamento enganaado,

enganaado pensamento,

quero-te fazer isento

e tu dás-m’ inda maa grado!

503

CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.

Se vos nam haa-de contentar

senam quem vos merecer,

nam queria mais saber.

Nisto descansari’ eu,

mas o maal que daqui sento

qu’ o voosso contentamento

tardaria mais qu’ oo meu.

Pois se quereis esperaar

polo que nam pode ser,

nam queria mais saber.

504

CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.

Pera qu’ ee naada em fim     

ja nam posso querer al,

porque ja o novo mal

nam acha lugar em mim.

Fiz-me livre, fiz-me isento

sabendo minha verdaade,

fiz mil castelos de vento,

levava contentamento

coma quem tinha vontade.

Mas agoora des que vim

acabar de querer aal,

nunca pod’ o novo mal

dar nenhũ lugar em mym.

505

CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA,
PORQUE LHE DISSERAM QUE
ERA CASAADA SUA DAMA.

Sempr’ achei pera viver

todalas vidas perdidas,

mas, quando queero morrer,

nunca me felecem vidas.

Todalas fins esperaava,

desta só desesperei,

todalas outras buscaava,

e esta, que nam cataava,

esta achei.

Tornei agoora a viver,

acho que tenho mil vidas,

porque nunca as quis perder

que as achasse perdidas.

506

CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.

Mais erra quem vos quer bem,

se vo-lo quer descobrir,

do que vos poode servir.

É tam novo merecer

o voosso a quem o conhece,

que o qu’ aas outras merece

ante voos lança a perder.

Desejaado maal e bem,

onde o maior servir

é negar e encobrir.

507

CANTIGA QUE LUIS DA SILVEI‑
RA MANDOU A ŨA DAMA
PER DIA DE JANEIRO.

Pois se hoje dam boons annos,

senhora, a toda pessoa,

dai-m’ a mim ũ hoora boa.

E inda que me digais

qu’ os outros cantam os seus,

pois vedes que choro os meus,

devo de merecer mais.

Nam faalo, senhora, em anos,

mas sei que nam ha pessoa

que nam tenha ũ hoora boa.

508

CANTIGA QUE FEZ LUIS DA SIL‑
VEIRA E MANDOU-A A DOM
JOAM DE MENESES.

Olhai bem que grande mingua,

nam sei quem tem culpa nela,

vivem homens pola lingua

que devem morrer por ela.

Por contaar maales alheos,

de que traazem conta feita,

toda poosta por itens,

vivem sem ter outros meos

e outros nam lh’ aproveita

saberem seus mesmos beens.

A rezam perde-s’ aa mingua,

olham muito mal por ela,

todo o feito é na lingua,

a obra nam curam dela.

509

TROVA QUE MANDOU LUIS DA
SILVEIRA, D’ ŨA ARMADA EM
QUE FOI, A ALGŨS SEUS
AMIGOS QUE CÁ FICA‑
RAM E ANDAVAM
NAMORAADOS.

Vivei, bem-aventurados,

qu’ a fortuna aparelhaada

tendes jaa.

Nós outros somos chamaados

d’ ũs faados em outros faados,

sem saber o que seraa.

Tendes mui certa folgança,

nenhũ maar de navegaar,

nem cousas de desejaar

que dam tam long’ eesperança,

que cans’ o homem d’ esperaar.

510

OUTRA ESPARÇA SUA.

Ó mal de novo presente

de tanto tempo passaado,

ó bem bem-aventuraado,

qu’ acabou sendo contente!

Ó vida que ja nam sente

novidaades de ventura,

acorda, qu’ estaas dormente,

nam cuides que te segura!

511

CANTIGA QUE FEZ LUIS DA SIL‑
VEIRA À SENHORA DONA
JOANA DE MENDOÇA.

Sentido de quem nam sente

queira Deos qu’ inda se senta

descontente de contente

do que m’ a mim nam contenta.

Noovos descontentamentos

lhe causem noovos desejos,

tantos arrependimentos

tenha de seus pensamentos

qu’ a mi pareçam sobejos.

Qu’ inda de mim se contente,

tam descontente se senta

e senta quanto nam sente

do que s’ agoora contenta.

512

OUTRA DE LUIS DA SILVEIRA.

Por cousas que jaa passaram

e que despois nam lembraaram

julgo as qu’ estam por vir.

Nem quero naada sentir

porqu’ estas m’ escramentaaram.

O tempo daa novidades,

daa mil cuidaados sobejos,

daa e tira mil desejos,

faz e desfaz mil vontades;

as mais firmes nam duraram

antes loogo se mudaram.

E pois tudo haa-de vir

enfim a nam se sentir,

paassem com’ aas que passaram.

513

DE LUIS DA SILVEIRA A DOM
NUNO MANUEL, ESTANDO
COM EL-REI EM SIN‑
TRA E ELE EM
LIXBOA.

Vi-m’ em tamanha contenda

com que de cá serveria,

que aa mingua da fazenda

me tornei aa fantesia.

Compro convosco e vendo

coma com senhor e amigo,

mas se dissesse o qu’ entendo

mais diria do que digo.

Esperança de proveito

faz fingir mil amizades,

mui cheas de seu respeito,

mui vazias de verdades.

O odio nam aparece,

o amor anda de fora,

est’ ee o mundo d’ agora,

guai de quem o nam conhece!

Os rostos andam afeitos

a mil dessimulaçõoes,

tudo sam moodos e geytos,

soo Deos sabe os coraçõoes.

Nam ha i lingua que diga

a tençam de seu senhor

da vontade mais immiga

amostr’ eela mais amor.

Aas palavras dam-lhe cores

naturaes com falsa tinta,

mas oos boons conhecedores

logo tudo se despinta.

Vivem de manhas e d’ artes,

trazem pesos e balança

com que pesam eesperança,

que lhe pode vir das partes.

Nam buscam amigos sãaos

nem menos esprituaes,

mas querem-nos temporaes,

temporaes e temporãaos,

que venham logo com fruito,

acabados de prantar:

estes prezam eles muito,

estes poem no seu pomar.

Fim.

Trazem per grandes baixezas,

a agua ao seu moinho,

sem olhar per que caminho,

que nam curam de limpezas.

Buscam rodeos, enganos,

perdem a vida e o sono

para a trazer per seus canos,

que os nam sinta seu dono.

Ajuda de Garcia de Resende
a estas trovas.

Tudo se vai pola via

que dizeis em vossas trovas,

que nam sam para mim novas,

pois o tam certo sabia.

Desejava de dizer,

nam ousava começar,

poilo vós fostes fazer

nam me quero mais calar.

Nam dura mais a rezam

que enquanto a obra dura,

inda que seja feitura

feita soo por vossa mãao.

Como nam tem esperança

do que de vós ham-d’ haver,

logo perdem a lembrança

que sempre deviam ter.

Todos tiram aa barreira

d’ haver fazenda e dinheiro,

ser honrado e cavaleiro

nam ha ninguem que o queira.

Que tenhais manhas, saber,

que sejais quam boom quiserdes,

crede que, se nam teverdes,

que vos nam quer ninguem ver.

Quam poucos falam verdade

e a quam poucos se crê,

a quam poucos homens vê

usar rezam nem bondade.

Quam poucos têm amizade

verdadeira com ninguem,

se a mostram é a alguem

de que têm necessidade.

Servem pouco, pedem muito,

vê-los-eis sempr’ agravar,

nam ter homens, trazer luito,

por poupar e nam gastar.

S’ alguem como deve gasta,

querem-no logo comer,

dizendo que quer fazer

mais do qu’ a renda lh’ abasta.

Dizem a vós de vós bem,

logo a outros de vós mal

compitem com quem mais tem,

desprezam quem menos val.

O que vos ouvem dizer

vam contar doutra maneira,

todo seu feito é fazer

como s’ a gente mal queira.

Fazer oferecimento

a quem quer qu’ oficio tem,

querer mal e falar bem

disto nam digo o que sento.

Em qualquer bem desfazer

e no mal acrecentar,

amigos proves perder,

polos ricos trabalhar.

Fim.

Presunçam sem ter saber,    

de dentro tantas baixezas,

tantos moodos de vilezas,

tantos contrairos nũ ser.

Com qualquer pequeno mando

mudam tanto a condiçam,

sem olhar como nem quando

as vidas s’ acabaram.

514

DE DOM LUIS DE MENESES A ŨA
DAMA QUE SERVIA E VESTIO-SE
ŨU DIA COM ŨAS QUARTAPI‑
SAS DE JOGO D’ ENXA‑
DREZ E COM ESTAS
SE DESAVEO.

No jogo do tavoleiro

tem na dama jurdiçam,

tem todo poder inteiro

des no rei at’ oo piam.

Mas s’ os lanços nam vam certos

ou se cega o entender,

pode-o muito bem perder

por trebelhos encubertos.

Enquanto esteve queda

nunca o jogo se guanhou,

mas como s’ ela mudou

foi logo mate na seda.

Porque como é tocada

e d’ algũ mao jugador,

perde todo seu primor,

perde o ser muito prezada.

Em quem tem disto paixam,

remedio nam poode ter

nenhũ melhor que fazer

outra dama d’ ũ piam.

E quem tiver a rezam,

senhora, que vós sabeis,

tomaraa, em que lhe pês,

esta mesma salvaçam.

Fim.

Neste jogo de sentido

nam se torna o guanhado,

o perdido é perdido,

o devido mal pagado.

Pois quem se quiser guardar

d’ hoje avante de perder,

faça o que me vir fazer,

que nom hei mais de jugar.

515

DE DOM LUIS A ŨA DAMA
QUE LHE NAM RESPONDEO
A ŨU MOTO.

Senhora, reposta maa

se daa a qualquer pessoa,

e a mim nem maa nem boa.

Vosso mal é tam oufano,

é tam mao de contentar,

que nam me quer enganar

nem me quer dar desengano,

porqu’ es dar.

Eu nam sei onde me vaa,

nem m’ hei-d’ ir para Lixboa,

sem reposta maa ou boa.

516

DE DOM LUIS DE MENESES,
ESTANDO DOENTE EM LIXBOA,
A DOM PEDRO D’ ALMEIDA,
QUE VEO D’ ALMERIM.

Eu nam vos fui visitar,

porqu’ hei mester visitado,

mas do folgar

de serdes, senhor, chegado

perdei vós bem o cuidado.

Que nunca tanto folguei

com nada, ha muitos dias,

nem desejei

mais a vinda do Mexias

de que foi a vossa lei.

Reposta de Dom Pedro
polos consoantes.

Outr’ hora quando enforcar,  

pois vindes tam assomado,

nom queixar,

qu’ eu venho muito picado

e muito desenganado.

Mil cousas vos contarei,

delas quentes, delas frias,

que passei,

que nom sam de longas vias,

mas sam das vias d’ El-Rei.

517

DE DOM LUIS A DOM PEDRO,

PORQUE NAM ESTAVA AIN­-

DA APOUSENTADO.

Que vós nam tenhais pousada,

aqui tenho eu a minha,

mais varrida, mais aguada,

mais despejada

qu’ a donzela da Rainha,

rebicada.

Se vos nam veo a cama,

eu durmo nũa tam boa,

que mao grado a vossa dama,

a da fama,

muito dina de coroa.

Reposta de Dom Pedro
polos consoantes.

Com’ is dando a cajadada

tam dereito como linha

em quem deve de ser dada,

e coitada

da que cuidava que vinha

acompanhada.

A que cuidais que me ama,

j’ agora me nam magoa,

nem na busco nem me chama,

antres crama

por vós outros de Lixboa.

De Dom Luis a Garcia de Resende
com estas trovas que lhe
ele mandou pedir.

Nam ha cousa que nam faça

senhor, soo por vos servir,

pois que vou dizer de praça

o que devo d’ encobrir.

Pois eu nam vejo o que dou,

vede vós o que pedis,

que Dom Luis

per via rrou

fez o que lh’ ele mandou.

Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.

Cousas que têm tanta graça,

tam doces para ouvir,

ter-m’ -ia por de maa raça

se as nam deesse empremir.

Eu vejo bem como vou

e vós, senhor, como is,

e, pois eu quis,

contente estou

como quem bem acertou.

518

DE JOAM AFONSO D’ AAVEIRO A
VASCO ARNALHO, TOPANDO
COM ELE NŨ CAMINHO
VINDO DE BEEJA.

— Donde vindes, Vasco Arnalho?

— Meu senhor, venho de Beeja,

donde leixo tanta enveja

com que muitos têm trabalho.

Namorado tam perdido

qu’ ee o deemo

de seus perentes temido,

dos amores tam vencido

que dizer nada me temo.

— Dizei, pois vindes de laa,

como vos ia d’ amores,

ou se vos dava favores

a que tal pena vos daa.

— Dai-m’ oo deemo que me leve,

nom m’ a lembreis,

que se cedo ou em breve

m’ a senhora nam escreve,

lançar pedras me vereis.

Eu andava tam louçãao

e tam doce como mel,

mas muitos bebiam fel,

se me viam no serãao.

Meu capuz pardo, frisado,

alvaçãao,

de veludo bem bordado,

e meu beiço derribado

que me dava polo chãao.

Meus brozeguis de recramo,

ũ fino barrete pardo,

sem nunca m’ achar covardo

com as cousas que mais amo.

Meu cabelo penteado,

que matava,

de cote mui anafado,

ũ punhal tam bem dourado

que o deemo s’ espantava!

Meu gibam de seda rasa

de mui fino cremesim,

todos deziam por mim:

— Tu, Vasco, mata la brasa!

Pelotes roxos, bandados,

muito finos,

per mil partes golpeados,

com cores tam bem betados

que se tangiam os sinos!

— Vasco, maa raiva te mate,

qu’ assi andas namorado,

tu es penhor escusado,

que se vende d’ arremate.

— Pois cuidai, ó meu senhor,

assi Deos m’ ajude,

que u tenho meu penhor,

por mais queixume d’ amor

receber posso saude.

Fim.

Quant’ eu nunca me viera,

se me laa fora tam bem,

i poderá raivar quem

co meu bem lhe desprouvera.

Nam se pode mais fazer,

senhor meu,

ca mui mal contrafazer        

se pode, sem se saber,

quem quer bem como sandeu.

519

DE JOAM AFONSO D’ AVEIRO A
LANÇAROTE DE MELO, POR PARTE
DE DONA MECIA, POR ŨA MULA
QUE LHE PROMETEO GUARNE‑
CIDA PARA Ũ CAMINHO
E NAM LHA MANDOU.

— Em que vos posso pagar

a mula que me mandastes,

pois que sei que vos gabastes

em m’ a bem atabiar?

Que segundo a chaparia,

que vejo no guarnimento,

mui muito vos custaria

a que fez Joam de Faria,

quando foi oo saimento.

É de todas mui louvado

o sombreiro com tabardo,

por ser preto e nam pardo,

das minhas cores bordado.

Tambem a funda da seela

de borcado preto, roxo,

porque hei-d’ haver mazeela

do homem que vejo coxo.

Oh quanto m’ a mim descansa

estar ela oo cavalgar

assi dizem ao selar:

— Nunca vi cousa tam mansa!

O estribo foi dourado

o melhor que nunca vi:

de filagrana lavrado,

nam nos fazem tais aqui!

Nunca vi melhor feiçam

de mula parda tam parda,

como quer que muito tarda

todos vos isto diram.

Tem estranha andadura

toda feita per compasso,

nam lhe mingua ferradura,    

nem a vós faraa tristura,

pois que vos mostrais escasso.

Fim.

Nunca vi tam bom cabelo

nem mula tam anafada,

se traz a brida dourada

nam é para mim dizê-lo.

Pois do al que lhe diremos?

Que nam seja mui perfeita,

al dizendo mentiremos,

pois jamais nunca veremos

outra tal nem tam bem feita!

De Nuno Pereira a Lançarote
de Melo, confortando-o, porque
nam mandou a mula.

Cunhado, quanto me pesa

com estas donzelas tais,

que nam olham a despesa,

ham por palhas os reaes.

Muito quedas no estrado,

entam se vêm as partidas,

que tenha outrem cuidado

de mandar mulas guarnidas.

Nam nas leixeis aforar

d’ andarem em mula vossa,

prometer por paacejar,

o aal passe por u possa.

Querem doce guarnimento,

mula, tabardo, sombreiro,

e cuidam que cento e cento

caga ali homem o dinheiro!

As donzelas busquem bestas,

companhai Nosso Senhor,

nam cureis destas requestas,

envençõoes de gastador.

Nam façais delas estima,

que tudo nelas perdeis,

se nam for irmãao ou prima

nunca, nunca mula deis!

Muito sabem de dar toques

por um dai cá quela palha,

usam muito de remoques

como homem bem nam bailha.

Sedas, chapas e borcado,

estribo e almofada

e cuidam, senhor cunhado,

que nam custa isto nada!

Deos nam pode jaa co elas

tam maas sam de contentar,

milhor é nam conhecê-las

por tais gastos escusar.

Servir moça de tanor,

cunhado, é meu conselho,

Costança ou Lianor,

que contentam com espelho.

Damas querem mil arreos,

antretalhos e borcados,

estribos, copos e freos,

esmaltados e dourados.

Querem novas bordaduras

d’ envençõoes entretalhadas,

e outras cem mil duçuras

de mulas guarnementadas.

Hei isto por vaidade

que se faz em Portugal,

seria mais caridade

em esmolas ou em al.

As despesas que se fazem

com estas damas mijoas,

que se mulas lhe nam trazem

escarnecem das pessoas!

E trá-las homem na palma

e elas ham mais que dizer,

que gasteis o corpo e alma

nam no querem conhecer.

E essa Dona Mecia,

que de vós mula esperava,

per ventura mal sabia

vossa bolsa como estava.

Que s’ aqueixe, nam s’ aqueixe,

vosso siso tornai a vós,

quer vos tome quer vos deixe,

nam comeis do seu pãao vós.

Deixai-as vós gracejar,        

rir de vós e dizer mal,

e vós i-vos a casar

como fez Fernam Cabral.

Viva El-Rei com que viveis,

vivamos pai e parentes

e das damas nam cureis,

que jaamais nam sam contentes.

Cos vossos despendei antes

e s’ elas mulas quiserem,

os que fingem de galantes

dem-lhas, se lhas dar quiserem.

Cabo.

E sabeis que eu diria

a aquesta tal vossa dama?

Que buscasse outro Faria

ou que ponha os pees aa lama.

Ou dizei: — Ouvi, senhora,

sabeis vós como vos vai?

Alugai mula maa hora

ou pedi-a a vosso pai.

520

DE JOAM AFONSO D’ AAVEIRO,
EM QUE PEEDE AJUDA
PARA CASAR.

Senhores, quero casar

agora, se Deos quiser,

e quem com’ eu bem folgar

faraa bem de m’ ajudar

cada ũ co que tever:

porque a dama nam tem

alma, corpo nem fazenda,

é filha de nam sei quem,

nam ha nela mal nem bem,

se se por vós nam emmenda.

De dama, nam de parenta,

me dê cada ũ sa peeça,

o que dela mais contenta,

porque com vossa ementa

me façais que mais nam peeça.

Isto seja entendido

no corpo e nam no al,

porque a corpo bem fornido

jaa lhe sabeis o marido,

Deos daraa o enxoval.

De Jorge d’ Aguiar.

Descriçam, siso, saber

vejo ficar agravados,

graça, gentil parecer,

outras que nam sei dizer

por meus pecados.

Mas pois quer minha ventura

que de vós meu bem reparta,

ficando com gram tristura,

dou daquessa fermosura

o vosso aar que me mata.

De Francisco da Silveira.

Minha vida, que darei

com que nam fique culpado?

Ou que maneira terei,

pois que tudo quanto sei

tendes em vós acabado?

Mas pois é forçado dar,

por melhor a guarnecerdes

e por mais a contentar,

dou-lhe, que possa tomar

de vós os meus olhos verdes.

521

CANTIGA DE JOAM AFONSO
D’ AAVEIRO.

Pois partis e me leixais

tam triste sem gualardam,

tornai-me meu coraçam,

senhora, que me levais.

Coraçam, que fostes meu,

se fosseis meu algũ dia,

nunca mais vos tornaria

a quem tal pesar vos deu.

Mas pois vós vos contentais

d’ haver mal por gualardam,

maatem-vos, meu coraçam,

pois vós mesmo vos matais.

522

DE BRAS DA COSTA A GRACIA
DE RESENDE, QUANDO VEO A
NOVA DA MORTE DO VISO‑
-REI E DO MARICHAL
NA INDEA.

Nesta viajem e ida,

o que nela navegar

bem se deve contentar

co a vida.

Nós tomemos bom castigo

co mal que vemos alheo

e tenhamos gram receo

a mar de tanto perigo.

Nom façamos tal partida,

antes cavar e roçar,

de conselho contentar

co a vida.

Por passar tanta tormenta,

tempo e vida tam forte

e tam perto ser da morte,

antes nom quero pimenta.

Caa farei minha guarida

em escrever e notar

e me quero contentar

co a vida.

Reposta de Gracia de Resende
polos consoantes.

Tenho tam avorrecida

tod’ arte de marear

que nam hei nela d’ entrar

nesta vida.

Daqui tee morte m’ obrigo,

que quarto, vintena, meo,

nem escreturas no seo

nam possam nada comigo.

A esperança perdida

tenho de nunca tratar

e muito mais d’ embarcar

em tal ida.

Tenho vida tam isenta

que por mal que dig’ aa sorte,

nam hei-de saber o noorte

nem m’ ham-d’ achar em ementa.

Esta tenho escolhida,

desta me fui contentar,

a qual nam hei, sem medrar,

por perdida.

523

GROSA DE BRAS DA COSTA A
ESTA TROVA, QUE DOM RODRI‑
GO DE MENESES MANDOU
A SEU IRMÃO DOM JOAM,
CONFORTAND’ -O EM
SEUS AMORES.

Oo irmãao, quanto desejo

de poder-vos confortar,

hei gram doo de vós sobejo,

porque vejo

que vos nam presta chorar!

E pois nisso nam guanhais,

nam choreis,

nam choreis que vos matais

ou dizei porque chorais,

dir-vos-ei quam mal fazeis.

Grosa de Bras da Costa
polos consoantes.

Meu capuz, quando vos vejo

de todo ponto çafar,

hei gram doo de mim sobejo,

porque vejo

que nom poss’ outro comprar.

E pois vos assi çafais

e rompeis,

muita tristeza me dais,

em buscar tres mil reais

vede quanto mal fazeis!

524

DE BRAS DA COSTA A RUI DE FRANÇA,
QUE FEZ ŨU MOINHO DE VENTO EM EVO‑
RA COM VELAS DE PAAO E DEPOIS DE
PANO E NAM LHE VEO A LUME, E
FOI NO TEMPO QUE EL-REI ES‑
TAVA PERA IR À GUARDA.

Cuido que em grande grao    

sereis rico neste ano,

ora com velas de paao

ora com velas de pano.

Assi salve Deos minh’ alma

e a livre de afronta,

eu vos hei medo à tormenta

e assi aa grande calma.

Nom andeis maginativo,

pois vosso saber alarda,

nem cureis de ir aa Guarda,

pois que sois tam enventivo.

O deemo seja cativo,

pois tendes tanto saber

que morto e em vivo

vos teram bem que dizer.

525

DE BRAS DA COSTA A ŨA SUA PRI‑
MA QUE CASOU E MANDOU-A ELE
VESITAR E LHE RESPONDEO QUE
AQUELA NOITE ENTRARA
EM BATALHA.

Senhora, dessa batalha

pregunto como vos vai,

se dissestes ui ou ai

ou se nam foi nemigalha.

Porque no jogo da pela,

a primeira vai de graça;

assi cuido eu, donzela,

que ficastes amarela

sem vos dizerem: — Prol faça!

526

DE BRAS DA COSTA A BRAS
GODINHO, SOBRE ŨAS
JUSTAS DE CORTIÇA
QUE FEZ EM
ABRANTES.

Rezam é que na justiça

vós sejais ũ principal

e vos dêm oficio tal

no Sardoal,

pois com justas de cortiça

honrastes a Portugal.

Assi vos Deos faça bem,

amem,

e outra tal vos aconteça,

se foi de vossa cabeça,

se vo-l’ ordenou alguem.

527

GROSA A ESTE MOTO:

Se por muerte

se quitasse mi dolor.

Pues que me cayo em sorte

haver mal por vuestro amor,

plazerm’ ia se por muerte

se quitasse mi dolor.

Y com la mi triste vida,

que amor me ha causado,

de morir seraa forçado,

quando vir vuestra partida.

Y pues tanto fui de cote

de mis males lhamador,

plazerm’ ia si por muerte

se quitasse mi dolor.

528

CANTIGA DE BRAS DA COSTA
A COSTANA, QUANDO SE
FOI PARA CASTELA.

Senhora, jentil donzela,

por meu mal fostes nacida,

pois vos is para Castela

que seraa de minha vida?

Is-vos vós daquesta terra,

fico eu com muita pena,

saudade me daa guerra

donde morte se m’ ordena.

Dobrada minha querela

fica com vossa partida,

pois vos is para Castela

que seraa de minha vida?

529

DE BRAS DA COSTA SOBRE Ũ PRE‑
SENTE QUE LHE MANDAVA DOM
RODRIGO E FORAM-NO DAR
AO VEADOR QUE O RECO‑
LHEO E MANDOU-LHE
DELE MUITO POU‑
CA COUSA.

Eu estou com muita dor       

e de mim mui descontento

por ũ honrado presente,

que me vinha certamente,

e levou-mo o veador.

Disto devo fazer trovas

a quem mo deu, Dom Rodrigo,

e neste caso eu vos digo

qu’ o senhor partio comigo

Santarem com Torres Novas.

530

DUARTE DA GAMA AO SECRE
TARIO, QUANDO SE FEZ A
ORDENAÇAM EM QUE
DEFENDERAM
O DOO.

Senhor, ũa ordenaçam

vi do doo e ũa lei,

pola qual todos a El-Rei

devemos beijar a mãao.

Porqu’ a todos é tam boa

em jeral,

que des qu’ estaa em Lixboa

nam se fez nenhũa tal.

Mas parece sem razam,

se vosso sogro morrer,

vossa moiher doo trazer

e que vós andeis loução.

E assi por esta via

s’ aquecesse,

ela mesma vos faria,

se vos vosso pai morresse.

Quando Deos Adam formou,

bem sabeis como lhe disse:

que com Eva se unisse

e per si os ajuntou.

Como pode logo ser

apartamento

nos casados, qu’ ham-de ter

ũu prazer, ũu sentimento?

Querem mais algũs dizer

que os sogros que sam pais,

mas eu imigos mortaes

digo que sam a meu ver.

Posto que fosse mais custa,

digo eu

que seria cousa justa

trazerem doo polo seu.

Digo mais naquesta trova

que se deve defender,

quando quer qu’ alguem morrer,

porem tumba sobre cova.

Porque toda a caridade

da esmola

que se faz sem vaidade,

ò defunto mais consola.

Fim.

Enfim co esta defesa

nós ganhamos a meu ver:

alongarmos no viver,

encurtarmos na despesa.

Polo qual com gram fervor

rogar devemos

pola vida do senhor

de que tanto bem havemos.

531

GROSA DE DUARTE DA GAMA
À TROVA DE DOM JOAM DE
MENESES, EM CONTRAIRO
DE SUA GROSA.

Co estes ventos d’ agora

em que tanta parte temos,

tendo mais que merecemos,

cada hora,

cada momento dizemos:

Perigoso é navegar,

mandando sobela jente,

que se mostra descontente

em negar

a mercê que tem presente.

Que se mudam cada hora

de tenças pera comendas,

crecendo-lhe suas rendas,

sem demora,

com que compram as fazendas.

E quem vai de foz em fora,

nam vai por sua nobreza,

mas por ir contra proveza

e ancora

com amarras na riqueza.

Nunca mais pode tornar

a ser o mundo desfeito,

nem perder homem o geito

de penar,

por ser em pecado feito.

O navio pende aa banda

qu’ ò patrão bem lhe parece,

os mareantes guarnece

sem demanda

cada ũu do que merece.

A razam nom é ouvida

daqueles que a nam tem,

porque dizem mal do bem

sem medida,

o qual neles se contem.

A vontade tudo manda

quanto deve de mandar,

sem nunca se desmandar

se desmanda,

para tudo emmendar.

Fim.

E quem ha-d’ andar desanda

e, com sobeja presunçam,

a força d’ ingratidam

doutra banda

lhe desfaz sua razam.

Quem tem alma nom tem vida,

se a tem mui abastada,

que a vida descansada

é perdida,

segundo regra provada.

532

DUARTE DA GAMA SOBELA
PARTIDA D’ EL-REI
PERA EVORA.

Aquesta real partida

de tantos contrariada

nam foi certo enlegida

d’ El-Rei, mas executada,

por ser de Deos ornada,

que se quer nela vingar

agora dos cortesãaos,

dos que vei edeficar,

pera lhe querer tomar

de cá o ceo co as mãos.

Mais alto do que sobio

Menbrot queriam sobir,

e portanto permetio

fazê-los daqui partir

sem as linguas dividir.

Nam cessam de se queixar,

recebem mui grandes dores.

Que farão estes senhores

quando houverem de leixar

vida, fazenda, favores?

Os que têm tudo dobrado

têm a pena tresdobrada,

os que têm ũu soo cuidado

têm a vida descansada,

que sam os que nam têm nada.

Estes nam sentem mudança

por nam terem que mudar,

os outros tanta abastança

têm que nam podem levar

nem ousam de a deixar.

A gram importunidade

de requerer moradias

ajuntou nesta cidade

os velhos de muitos dias

com os de pouca idade.

D’ alem de Riba de Coa

vêm aqui a jubileu,

nam creio que de Lixboa

outra tanta jente boa

fosse ò do Zebedeu!

Fim.

Se comigo nom m’ engano,

com ũ par destas partidas,

vós vereis antes d’ ũ anno

poucos ir ter as feridas,

muitos buscar as guaridas.

E mais digo que agora

co esta começarãao

de partirem pera fora,

co a outra acabarãao

e a corte alijarãao.

533

DUARTE DA GAMA A ŨA SENHORA.

Nam sei se diga meu mal

vendo quanto me fazeis,

pois sofrê-lo me nom val,

pera que nam me mateis.

D’ ũu cabo tenho desejo

mui grande de o dizer,

doutro tenho outro pejo,

que me faz nam no fazer.

Doutro tenho outro mal

que vendo que me fazeis,

a que remedeo nom val

pera que nam me mateis.

534

ESPARÇA DE DUARTE DA GAMA.

As cousas daquesta vida

todas vim a ũa conta,

pois vemos que tanto monta

ser curta como comprida.

Quem dela parte mais cedo

é livre de mil cuidados,

quem vive tem-nos dobrados,

afora sempre ter medo.

535

SANCHO DE PEDROSA A DUARTE
DA GAMA.

A fama que de vós soa

é tam prima, qu’ eu a faço

preceder toda Lixboa,

pois nam tratão cousa boa

se nom vossa neste paço.

O ceo trabalha tomar

co as mãaos de cá de fundo,

quem emprende de louvar

ũu homem que pode dar

ensinança a todo mundo?

Mas a culpa que cometo

vossa primeza ma tira,

minha simpreza remeto

a vós, que, dando no preto,

concertais tudo sem ira.

Pois pregunto com receo,

respondei-me com favor

qual das vidas é pior.

Esse moto de tristeza,

se o vir por vós grosado,

será menos meu cuidado,

mas hei medo que crueza

nam queira ver o trelado.

Socorrei, senhor, por vida

de vosso propio louvor

e verês mais encendida

vossa fama convertida

em maior.

Moto.

La vida que siempre muere

que se pierda ¿que se pierde?

Reposta sua.

Como quem naveg’ aa toa

contra vento vai d’ espaço,

assi vai minha pessoa

na vossa pondo a proa,

temendo dar no adarço.

E querendo começar

de louvar-vos sam segundo

e quem cuida de provar

que com Deos podem estar

os que jazem no prefundo?

Se soubera qu’ era reto,

vossas trovas nunca vira,

antes, senhor, vos prometo

que buscara tal carreto

com que logo me partira.

Das maas vidas sempre creio

ser pior a do amor

que se encobre com temor.

Vosso moto traz firmeza       

de quem vive desamado,

faz-me ser desesperado

do que vossa gentileza

sempre foi mui abastado.

Faz minha’ alma ser sentida,

faz sentir mais minha dor,

minha pena faz crecida,

crecida sem ser sabida,

meu senhor!

Grosa do moto.

Ha sido tal mi ventura

com la de quien no me quiere,

que solo por mi tristura

tengo por mucho segura

la vida que siempre muere.

Quanto más som mis sentidos

cercados de pensamientos,

tanto mayores tormentos

sobre mi som posseidos.

Y la gloria prometida

quiere que siempre m’ acuerde

delha, siendo fenecida,

pues viendo tam triste vida

que se pierda ¿que se pierde?

536

GROSA DE DUARTE DA GAMA A Ũ
MOTO DE ŨA SENHORA QUE DIZ:
DURARÁ ENQUANTO VIVA.

Nam vos ver nem vós me verdes

cada vez mais me cativa,

o temor de me nam crerdes,

a pena por nam quererdes

durará enquanto viva.

Vós me dais cuidar por gloria,

sospirar por galardam,

vós me dais por grã vitoria

que vos traga na memorea,

porque tenha mor paixam.

Ja nom pode mor crueza

ser que serdes tam esquiva,

polo qual minha tresteza,

minha fee, minha firmeza,     

durará enquanto viva.

537

GROSA DE DUARTE DA GAMA A
ESTE MOTO, QUE ELE FEZ, DAS
LETRAS DO NOME D’ ŨA
SENHORA, E DIZ:

Na vida maal e temor.

Quanto mais vossa lembrança

acrecenta minha dor,

tanto sem fazer mudança

trazerei por esperança

na vida mal e temor.

Porque nisto estaa o bem,

senhora, que mais desejo,

e naquisto se contem

o nome todo de quem

faz meu dano ser sobejo.

Mas pois de vós nom s’ alcança

vitorea, menos amor,

sem haver mais segurança

trazerei por esperança

na vida mal e temor.

538

DUARTE DA GAMA A
ESTE MOTO D’ ŨA
SENHORA, QUE
DIZ:

Deseo no desear.

Si con solo em vos pensar

vida tam triste poseo,

aquelho que maas deseo,

deseo no desear.

Mi deseo sin vitoria,

mi bevir sin libertad,

me hazen de voluntad

recebir pena por gloria.

Y hazen por más doblar

los males em que me veyo

que tanto quanto deseo

deseo no desear.

539

ESPARÇA DE DUARTE DA GAMA
A ŨA SENHORA, QUE PÔS EM
ŨU LIVRO SEU Ũ MOTO
QUE DIZ:

Gram miedo tengo de mi.    

Temo yo lo que temia

y más lo que vos temeis,

temo más lo que solia

temer quando me partia

donde vos os partireis.

Y con este tal sentido

tantos temores me di,

que sin ser de vos partido

com temor de vuestro olvido

gram miedo tengo de mi.

540

DUARTE DA GAMA, ESTANDO JA
APOUSENTADO EM SUA CASA, A
DIOGO BRANDAM SOBRE ŨA
CARTA QUE LHE MANDOU
DE NOVAS DA CORTE, NA
QUAL LHE PEDIO QUE
LHE MANDASSE AL‑
GŨAS TROVAS.

Na carta, senhor, das novas

que da corte m’ escreveis,

me mandais e me dizeis

que vos mande algũas trovas.

Digo que sejam da vida

em que vivo,

pois a isso me convida

meu motivo.

E digo logo primeiro

que vivo naquesta terra,

onde nunca tenho guerra

com Diogo nem porteiro.

Nem vejo menos agora

estar no centro

quem sabeis qu’ estava fora

e nós dentro.

Vivo fora de dizer:

— Senhor, dizei laa de mim...

Nem a Fogaça Chacim

ir pousadas requerer.

Nem vivo em tanta mingua

que requeira

a quem ja nom tem a lingua

mui inteira.

Tenho mais o que nom tem

quem estaa lá ond’ estais:

nunca ver oficiais

a que fale mal nem bem.

Nem vejo corregedores

carregados,

nem muito menos doutores

perfilados.

Durmo sono mui inteiro

e mais como quando quero,

dos meus moços nam espero

que me peçam ja dinheiro.

Manjadoiras tenho feitas

bem pregadas,

para nunca ser desfeitas

nem mudadas.

Nunca peço emprestado

sobr’ escrito nem penhor,

polo qual vivo, senhor,

a meu ver mui descansado.

Tambem tenho ja perdido

a lembrança

de quem tem mais de medrança

ca servido.

Nam me lembra Portalegre,

Vila Real com Valença,

Tentugal com Olivença,

que estoutros faz vir febre.

Nom me lembra Monsaraz

co a Idanha,

porque Deos, quando lh’ apraz,

tudo apanha.

Alvito com Portimãao,

Afonseca com Cascaes,

Carneiros, Corte Reaes,

da memoria se me vãao.

Lá vai a Feira tambem,

porque levou

o qu’ ele nunca cuidou

nem ninguem!

De Cezimbra que direi?

E d’ Arruda? E de Nisa?

Senam que por ũa guisa

de todos m’ esquecerei.

Do gram Castelo Real

nam sei que diga,

pois dizê-lo me nam val

a ter fadiga.

Barretos, Costas e Melos,

Botelho por esta via

Marquionio, Atouguia

com mil contos d’ amarelos,

ante mim tam esquecidos

todos sam,

como se foram nacidos

e eu nam.

Mas co este esquecimento

nam me leixa de lembrar

que vi Tanjere tirar

a quem tem merecimento.

Arzila desta maneira

fez mudança,

polo qual tenho lembrança

verdadeira.

Lembra-me Penamacor

como foi ja prosperado

e depois foi desterrado

do reino com tanta dor.

Lembra-me que s’ espedio

de Portugal

o Prior do Esprital,

como se vio.

Por nam m’ haverdes por peco

lembra-me Martim de Beça

e nam quero que m’ esqueça

tambem Alvaro Pacheco.

Lembra-me que Per’ Estaço

nam tem renda

e que val mais a fazenda

que o paço.

Lembra-me dos que dissestes

qu’ a Çofala querem ir.

Se o fizestes por rir

mercê muita me fizestes.

Se o dizeis de verdade,

é razam

que diga minha tençam

e vontade.

Gil Matoso, Bras Teixeira,

é muita razam que vãao,

para ver se perderãao

o que houveram da primeira.

Se de quam pouco tiveram

se lembraram,

co que da Mina trouxeram

repousarão.

De Soares, de Reinel,

sobre todos mais m’ espanto

sem querer haver por tanto

ir Fernandez Manuel.

Estes fazem que riqueza

nom desejo

e mais ter por bem sobejo

a proveza.

Dizem cá qu’ estais eleito

para ir ond’ estes vãao,

do qu’ estaa meu coraçam

assaz cheio de despeito.

Se tendes determinado

tal fazer,

o conselho escusado

deve ser.

Fim.

Polo qual quero dar fim

ò processo começado,

sem vos dar outro cuidado

senam soo que lá por mim

ò senhor Conde beijeis,

senhor, as mãos

e que vos aconselheis

co homeens sãaos.

541

DUARTE DA GAMA A ŨA SENHORA
QUE LHE DISSE QUE LHE ERA O
TEMPO TAM CONTRAIRO QUE
A NAM LEIXAVA SER
POR ELE.

O tempo nam me tem culpa

no mal que por vós s’ ordena,

mas antes vossa desculpa

me mata, pois vos condena.

Se por mim nam quereis ser,

ja, meu bem, sões contra mim,

ordenando minha fim

sem ma dar pola querer.

Minha door por vossa culpa

em tal estremo s’ ordena,

que vossa mesma desculpa

me mata, pois vos condena.

542

TROVAS QUE FEZ DUARTE DA GAMA
AAS DESORDEENS QUE AGORA SE
COSTUMAM EM PORTUGAL.

Nam sei quem possa viver

neste reino ja contente,

pois a desordem na jente

nam quer leixar de crecer.

A qual vai tam sem medida

que se nam pode sofrer,

nem ha i quem possa ter

boa vida.

Ũus vejo casas fazer

e falar por antresoilos

que creio que têm mais doilos

do qu’ eu tenho de comer.

Outros guarda-roupa, quartos

tambem vejo nomear

que ja deviam d’ estar

d’ isso fartos.

Outros vejo ter cadeiras

de justo e de cruzado

e chamarem-lhe d’ estado,

nam entendo taes maneiras!

Outros vendem a herdade

por comprar tapeçaria,

dos quaes eu ser nam queria,

na verdade.

Outros sei que vão chamar

suas mãis minha senhora,

que muito milhor lhe fora

tal cousa nunca falar.

Outros se vão, por trazer

cabeleiras, trosquiar,

podendo-se desviar

de o fazer.

Outros nom têm moradia

mais de seiscentos reaes,

os quaes querem ser iguaes

cos fidalgos de valia.

Outros por s’ afidalgar

andam aa brida continos

em sindeiros que sam dinos

de coutar.

Outros vão trazer atados

ũs lencinhos no pescoço,

que com gram pedra nũ poço

deviam de ser lançados.

Outros sem ser mancipados

sendo menores d’ idade,

andam ja com vaidade

agravados.

Outros sem lhe pertencer

às molheres poem o dom,

havendo que é mui boom,

sem d’ aquisso se correr.

Outros paje vão chamar

a ũu moço dos que tem,

que às vezes lhe convem

almofaçar.

Outros ham por cousa boa

nam ter homens nem cavalos,

e despreçam os vassalos

por se virem a Lixboa.

Os quaes, se fossem lembrados

das pendenças e das guerras,

folgariam de ter terras

e criados.

Ja ninguem nam quer usar

da nobreza dos passados,

senam vinte mil cruzados

ver se podem ajuntar.

S’ algũu quer ser caçador

nom é senam de dinheiro,

nem ha ja nenhũ monteiro

gram senhor.

Frei Paio com sua renda,

monteiros e caçadores,

escudeiros, servidores

lh’ acharam e nam fazenda.

Tinha lei de cavaleiro

na maneira do viver

e quis antes isto ter

ca dinheiro.

O almirante passado

Frei Paio ja precedeo,

pois na guerra despendeo

mais do que tinha ganhado.

E leixou endividado

seu filho, como sabeis,

mas em fim achá-lo-eis

mui honrado.

Cos mortos quis alegar,

por pena nam padecerem

os que disto carecerem,

sem os vivos lhe louvar.

Os quaes, se louvar quisesse,

por ventura cessaria,

com temor que nam teria

que dissesse.

Outros querem ir andar

na corte sendo casados

e se fazem desterrados

donde deviam d’ estar.

Outros se querem vender

qu’ andam com damas d’ amores,

que nam sam merecedores

de as ver.

Outros nam querem verdade

falar com ribaldaria,

falando por senhoria

a homeens sem dinidade.

Ó usura conhecida,

tratada por tanta jente,

porqu’ es no mundo presente

tam crecida?

Na cobiça dos prelados

nom é ja pera falar,

qu’ em vender mais que rezar

e em comprar sam acupados!

Ũu soo nam meto aqui,

que se nam nomearaa,

e cada ũu tomaraa

que é por si.

As donas, por competir

em terem cousas de Frandes,

as fazendas muito grandes

querem fazer destroir.

As donzelas em lavores

a isso tambem lh’ ajudam.

Nam sei porque nam se mudam

taes errores!

Os desvairados vestidos,

que se mudam cada dia,

nom vejo nenhũa via

para serem comedidos.

Que se ũu galante traz

ũu vestido qu’ ele corte,

qualquer homem doutra sorte

outro faz.

Porque como fez foãao

ũu capuz muito comprido,

polo reino foi sabido,

todos dam ja pelo chãao.

Quem o portugues pintou

em Roma, como se diz,

foi nisso mui boom juiz

e acertou.

A maneira d’ escrever

que costumam nos ditados

é chamarem ja preçados

a mil homeens sem o ser.

E quando na baixa jente

o costume for jeral,

ha-de vir a principal,

a excelente.

Em qualquer aldeazinha

achareis tal corruçam

qu’ a molher do escrivam

cuida que é ũa rainha.

E tambem os lavradores

com suas maas novidades

querem ter as vaidades

dos senhores.

Na Chamusca vi ũu dia

ũa filha d’ ũu vilãao

lavrando d’ almarafãao,

o qual pera si fazia.

Daqui virão os chapins

e tambem os verdugados

e após eles os trançados

e coxins.

O cavalo desbocado

nunca se pode parar

sem primeiro se cansar,

entam logo é parado.

Assi creio que faremos

nos gastos demasiados,

e depois de bem cansados

pararemos.

É prudencia conhecida

por esta comparaçam

nam nos ir El-Rei à mão

estes dez anos de vida.

A qual lh’ acrecentaraa

quem lha deu por muitos anos,

com que todos estes danos

tiraraa.

Bem assi como tirou

outros muitos que sabemos,

com que tal descanso temos,

que jamais nam se cuidou.

Se nos meterem em ordem

com força d’ ordenaçõees,

tirar-s’ -á dos coraçõees

a desordem.

A cidade de Cartago,

depois de ser destroida,

fez em Roma moor estrago

que antes de ser perdida:

os romãos des que venceram

foram dos vicios vencidos

e seus louvores crecidos

pereceram.

Assi por nam perecerem

os tam antigos louvores

dos nossos predecessores,

convem de nos reprenderem

dos vicios e da torpeza

em que queremos viver,

antes de se converter

em natureza.

Pois se eu em tais desordens

soo quiser ser ordenado,

hei-de ser apedrejado

sem me valerem as ordeens.

Molhar-m’ -ei, em que me pês,

polo tempo e sazam,

pois é natural razam

a do Marquês.

Se Martim Vaz de Siqueira

neste tempo s’ acertara,

que doces cousas tocara

e por quam gentil maneira!

Nom ha i mais antremeses

no mundo oniversal

do que ha em Portugal

nos portugueses!

Em Roma, segundo lemos,

ordenaram dous censores,

os quaes eram reprensores

dos vicios e dos estremos:

lembravam oos principaes

e òs pequenos o que tinham

e a todos donde vinham

e seus pais.

Fim.

Assi no tempo presente,

nam seria muito mal

haver i oficial

de desenganar a jente.

O qual em mi acharia

o que quero reprender

e quiçaes arrepender

me faria.

543

DE TRISTAM DA SILVA
A ŨA MOLHER QUE
NAM PODIA VER.

Eu vi a quem os primores

obedecem todos juntos

quantos sam,

a quem todolos louvores

se crê que neles tresuntos

acharam.

Ó fremosura sem par,

ó graça nam conhecida,

ó dama tam sengular,

quem vos tem tam escondida

me pode remedear.

544

TRISTAM DA SILVA A ŨA MOLHER
QUE LHE MANDOU PEDIR
TROVAS.

Mandastes que vos servisse

com trovas como Mancias

porque, quando se sentisse

enfadada, que as visse

vossa mercê algũs dias.

Se por haverdes paixam

d’ algũa passada pena,

a minha com mais razam

deve vosso coraçam

sentir, pois que ma ordena.

545

DE TRISTAM DA SILVA A
SANCHO DE PEDROSA.

Sabido gram sabedor,

antr’ os honrados honrado,

de gram bem merecedor,

ousado ordenador

de grandissimo cuidado.

Louvado dos mais louvados

de muito dina memoria,

estimado d’ estimados

e dos muito esforçados

senhor de grande vitoria.

Pregunta.

Senhor meu, decraraçam

me mandai por me salvar,

querei-me remedear,  

nam me leixeis condenar,

pois estaa em vossa mam.

Porque nam sei bem nem mal,

estou muito enleado,

querei-me vós decrarar

s’ a Senhora singular

pecou no oreginal

ou s’ ee fora de pecado.

Sancho de Pedrosa polos
consoantes.

Valido comprendedor,

na iminencia louvado,

dino de grande senhor,

nos trabalhos valedor,

na fama sobrelouvado.

Nesta vida antr’ os prezados

possuis a maior groria,

os famosos eixalçados

sam por vós tam abaixados

que nam têm cousa notoria.

Reposta.

O temor vence rezam,

sojeito vou a trovar

nam por remedio vos dar,

mas vós me quereis mandar

servir vossa condiçam.

Para cousa tam real,

pois estaa jaa bem provado,

que posso mais alegar

em vos querer reprovar,

pois nenhũ em autual

n’ Ela nunca foi achado.

Pergunta de Sancho de
Pedrosa a Tristam
da Silva.

Por nos nam ficar remisso

o bem da Madre tresunta,

consirai o compremisso

que diz isso

que respondo à pregunta.

Mas quem A serve leal

responda por gentileza,

quanto comprende de mal    

o pecado oreginal

nesta lei de natureza.

Quem tal materia tocou

com tam descreta eloquencia,

más sabe do que falou

e eu lhe dou

sobre todos preminencia.

Mas tomando por dotrina

o motivo mais profundo,

demando como s’ encrina

a prima causa devina

entender naqueste mundo.

546

DE PERO DE BAIAM, QUE FOI
CAMAREIRO DO PRINCEPE
DOM AFONSO.

Como poderaa sofrir

el triste que tal sostiene

sim esperança bevir,

y calhar y encobrir

ser el remedio que tiene.

Amor se fuerça y quiere

querer para provicalhe,

razon manda y requiere

que sufra y que se calhe.

Pues como podereis sofrer,

coraçon, quien tal sostiene,

sin esperança bevir

y calhar y encobrir

ser el remedio que tiene.

547

OUTRA SUA.

Tristeza, dolor, cuidado

no parten de mi sentido,

sabeis porque.

Es mi servicio passado

y el presente perdido

a falsa fee.

A falsa fee com enganho,

sim piadad, sim mesura,

sim dolerse de mi danho

lhe plaze com mi tristura.

Pues tan mal gualardonado

me veyo com gram gemido,

yo diree

ser mi servicio passado

y el presente perdido

a falsa fee.

548

OUTRA DE PERO DE BAIAM,
PARTINDO-SE.

Venid, venid, pues parti,

cuidados y pensamiento,

que cierto ya despedi

todo plazer que senti,

quando más me vi contento.

Com vos seraa mi bevir

sin esperar alegria,

sospiros, lhoros, gemir,

deseando noche y dia.

Porque quando me parti

do queda mi pensamiento,

naquel punto despedi

todo plazer que senti,

quando más me vi contento.

549

DE DIOGO LOPES D’ AZEVEDO.

Que quer mais quem pode ver-vos

que sofrer pena crecida,

pois o bem de conhecer-vos

nom poode satisfazer-vos

que perca por vós a vida.

É tam alto o merecer,

tam sobida a perfeiçam

com que Deos vos quis fazer,

qu’ ee vitoria padecer

sem querer mais gualardam.

Quem ha ventura de ver-vos

sofra, pene sem medida,

pois o bem de conhecer-vos

nom pode satisfazer-vos

que perca por vós a vida.

550

DE GONÇALO MENDIZ ÇACOTO

A ŨA DAMA QUE IA PARA O

PAÇO E PEDIO-LHE ALGŨA
ESTRUÇAM DO CUS‑

TUME DELE.

Pois em vossa mercê cabe

ũu louvor que nam sei dar,

é melhor que eu me cale,

pois por muito que vos gabe

a moor parte haa-de ficar.

Se vos quero comparar

com outra cousa fermosa,

certo estaa que terei grosa,

salvo se for alegar

em o mais alto lugar

da outra nossa Senhora.

É, senhora, gram rezam

que digais que desatino,

se a vossa perfeiçam

eu tevesse presunçam

de louvar nem dar ensino.

E se mal faço, queria,

senhora, que perdoeis,

que mais pedras lançaria,

s’ eu viss’ o bem que fazia

como vós mais que fazeis.

Estas cousas ha-de ter

no paço a jentil dama:

dormir jaa muito na cama,

porque a possam menos ver.

Vir aa missa muito tarde,

muito tarde oo serãao,

porque faz mais saudade

e nom parece livindade

ante quantos ali estam.

Primeiramente devota

com temor, com caridade,

na vontade dos paais posta,

suas falas ou reposta

sejam sempre com verdade.

Para muito mais louvada,

estimada por tal via,

quer livre quer namorada,

seja muito mesurada,

sofrida com cortesia.

Bom escrever, bom falar,

motejar e saber rir,

bom dançar e bom bailar,

as cousas que sam d’ olhar

sabê-las mui bem sentir.

Sentilos que sam sentidos,

conhecêlos fingidores,

guanhálos que sam perdidos,

gabálos que sam vencidos,

polo serem por amores.

O mal sabê-lo calar

e do bem ser pregoeira,

e matar sem se matar,

nunca outrem desdenhar

nem per si nem per terceira.

Aconselhar bem as damas

e louválos servidores

qu’ assi s’ encendem as famas:

qual assopra nestas chamas,

tal se queima em suas dores.

Haa-de ser dissimulada,

temperada no seu riso,

naquilo que sabe nada

s’ amostre mui avisada,

que jaz nela todo aviso.

Nas cousas que bem souber

s’ amostre mais inocente,

e, se mal fez ou fizer,

emmendaraa o que quiser

em que pês a toda jente.

Para gentil dama ser

haa-de ser mui escoimada,

haa-de querer e nam querer

que possam dela dizer

que tiveram nunca nada.

Haa-de querer ser querida

e ter mãao nos mais senhores,

e da honra tam provida

que se saiba qu’ ee servida

aa custa dos servidores.

Quando tiver nos serãaos

algũ parente ou amigo,

inda que sejam mui sãaos,

tenham fora quatro mãaos,

porque tres é gram perigo.

Qu’ haa de fora ũs contadores,

que da cabeça fazem pees,

e, s’ assomam nos favores,

faz-s’ um jogo dos amores

que se joga de revees.

Haa-de ser mui repousada

e sem gritos a donzela

e que seja namorada

antes fale quasi nada

que mil vezes de janela.

Ca se entra em ser devassa

e em tais primores sobeja,

tudo per graça se passa

e nunca jamais se casa,

por fermosa qu’ ela seja.

Avorrece aa Rainha,

quer-lhe pouco bem El-Rei,

sua mãi nam é madrinha

e seu pai casa nem vinha

nunca diz: — Eu lhe darei!

É de todos desprezada,

dos proves como dos ricos,

d’ ũus e doutros enjeitada,

nunca pode medrar nada,

nunca sai de mexericos.

Fim.

Fermosura e fidalguia,

herdeira de mil riquezas,

sem nos meos de tal via,

se converte em vilania

com outras muitas provezas.

Quando a dama nam embica

e se conserva sem grosa,

est’ ee a graça que lhe fica:

aa mais prove faz mais rica,

aa mais fea mais fermosa.

551

DE GONÇALO MENDEZ A ŨA
MOLHER QUE SE CHAMAVA
DA GUERRA, A QUAL NUN‑
CA VIRA SENAM AQUELA
HORA NEM FORA
NAQUELA TERRA.

Vim alegre eesta terra,

parto triste, porque faz

minha paz ficar em guerra,

pois m’ a Guerra satisfaz.

Quem na guerra faz por ela

nom terá nenhũ socorro,

jamais nunca seraa forro

se se vir cativo dela.

Para sempre nesta terra

tal cativo j’ eele jaz

em ter sempre crua guerra

e nunca segura paz.

552

VILANCETE SEU.

Quem de mim s’ aconselhar

e leedo quiser viver

perderaa todo prazer.

Saiba certo quem quiser,

pois prazer tam pouco dura,

que nom tem ninguem ventura

que lhe dure quanto quer.

O remedio qu’ eu lhe der

de meu conselho morrer

se leedo quiser viver.

553

CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
QUE LHE MANDOU DIZER
QUE ERA CASADA.

Senhora, pues que casastes

plega a Dios

qu’ aquel mismo que tomastes

como vos a mi dexastes

dex’ a vos.

Assi burlada, desquerida,

amadora

y d’ amor desconocida,

assi juzgada y vencida

como yo de vos, senhora,

seais vos

daquel mismo que tomastes,

pues por el vos me dexastes,

pleg’ a Dios.

554

CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
QUE LHE MANDOU DIZER QUE
MUNDO ERA ESTE QUE ASSI
O TRAZIA DESCONTENTE.

Nam pode descontentar-me

o mundo, pois foi por nós

em nacerdes nele vós

e querer em si criar-me

com saber por vós matar-me.

Vós sois soo em especial

sobre todas eicelente,

vossa fermosura é tal

que nam me pode dar mal

de que fique descontente.

Pois quem poderaa negar-me

mor louvor que meus avoos,

pois se moiro é por vós

e por vós quero matar-me

sem querer desesperar-me.

555

OUTRA SUA.

Com fortuna desigual

naci qual nom tem ninguem,

se me bem fizer alguem

compre-lhe que seja mal,

porque o mal é jaa meu bem.

Pois do bem naci privado

e mal tenho por amigo,

quando m’ eu vir em perigo,

como posso ser livrado

com o bem de meu imigo?

Com esta mezinha tal

nam me cure a mim ninguem,

antes deste mal me dem

tanto que me faça mal,        

poilo mal é jaa meu bem.

556

DE FERNAM CARDOSO, CHEGANDO
DE ÇAFI, A DOM ALVARO D’ ABRAN‑
CHES, DANDO-LHE NOVAS
DE LAA E DE DOM JOR‑
GE ANRIQUEZ.

Se me tendes a vontade

que me tinheis em Çafim,

eu cheguei eesta cidade,

qu’ é para haver piadade,

sem camisa e sem cotrim.

Tirai-me daquesta afronta

com d’ algũas que fizestes,

porque a que me laa destes

nam faço ja dela conta.

Feito oo trajo da terra

irei beijar essas mãaos,

como quem nunca vos erra

vos darei novas da guerra

que laa fazem os cristãos:

toda a jente laa s’ arrisca,

no çoco dizem quem foje

e voss’ amigo Dom Jorje

anda sempre aa mourisca.

Anda laa mui assomado,

sem fazer nenhũa soma,

aa brida no seu rodado,

o rabo lhe traz atado

por te más honrar Mafoma.

Polas ruas arremete

num muito magro rocim,

dizendo: — Aah que ginete!

Este é para Almerim!

Traz bedem antre arçam

e lança pola cidade

este perro, este cam,

tam cheo de vaidade

de genro do capitam.

Tem aa paz grande fastio,

gram fragueiro com gazelas

e quando imos no fio

manda mais que Jam d’ Ornelas.

Fim.

Outras cousas qu’ aqui calo

direi, quando vos for ver,

que laa vam acontecer,

palhas é o qu’ aqui falo

par’ o qu’ haveis de saber.

Socorrei-me neste dia,

pois estas vindas sabeis

e guardai-vos, nam lanceis

este feito a zombaria.

557

CANTIGA DE FERNAM CARDOSO.

Des que conhecer me sei

com’ eu fui para poder

quaesquer cuidados sofrer,

nunca sem eles m’ achei.

Eles que s’ anticiparam

a tomar meu coraçam

tam sem tempo e sem rezam,

crede certo que m’ acharam

do seu geito e condiçam.

Começaram, comecei

mil males de padecer,

com’ eu fui par’ os sofrer

nunca sem eles m’ achei.

Outra sua.

E pois levam de viram

nam m’ afroxarem ũ dia,

mas de mal em pior vam,

atee morte me faram

esta triste companhia.

E se per ventura eles

cuidam que me dam a fim,

eu sam o que cuido deles

o qu’ eles cuidam de mim.

Outra e fim.

Vam obrando, vam fazendo

mil pesares emnovados,

assi com’ eu vou vivendo

vou achando, vou sofrendo

outros mais desesperados.

Ja deles desesperei   

de me deixarem saber

que cous’ ee algũ prazer,

pois que cousa é nom sei.

558

CANTIGA SUA.

Se a mim o mal sobeja

e quem tem o que deseja

nam poode ledo viver,

qu’ esperança posso ter

que para descanso seja?

Que meu mal nunca abrandara,

antes fora em crecimento,

por tempo sempre esperara

cousa com que descansara

ou cansara meu tormento.

Mas quando isto vou saber

que quem tem o que deseja

nam pode leedo viver,

desespero jaa de ver

cousa que descanso seja.

Outra sua.

E pois que tam certo vejo

que nam m’ haa-de descansar

ter aquilo que desejo,

mas antes s’ haa-de dobrar

o mal que tenho sobejo,

buscarei vida segura.

E seraa sempre tristura,

que por mais grande que seja,

quem tever o que deseja,

teraa mor desaventura.

559

CANTIGA SUA.

Nojos, desastres, cuidados,

que por minha fim fazeis,

que seraa de vós coitados,

eu morto, desesperados,

que fareis?

Quem com tanta lealdade

vos amou e vos servio,

quem jamais vos nam saio

ũu hora soo da vontade?

Nojos mal aconselhados,

que fazês, quem achareis

qu’ assi vos sofra os cuidados,

males tam desesperados,

que fazeis?

560

DE FERNAM CARDOSO INDO
POLAS SERRAS D’ ANSIAM.

Quem quiser passar seguro

polas serras d’ Ansiam,

deixe fora o coraçam.

Sam tam esperas em cuidar

que quem foi desesperado

e nelas houver d’ entrar,

ali lh’ ha-de renovar

todo seu tempo passado.

Quem se temer do cuidado

e houver d’ ir Ansiam,

deixe fora o coraçam.

Fim.

Quer solteiro quer casado,

para maior abastança

s’ ele jaa teve esperança,

ali ha-de ser roubado,

despojado da lembrança.

Quem deseja esquivança,

vá-s’ às serras d’ Ansiam,

fartaraa o coraçam.

561

ARRENEGOS QUE FEZ GREGORIO
AFONSO, CRIADO DO
BISPO D’ EVORA.

Arrenego de ti, Mafoma,

e de quantos creem em ti,

arrenego de quem toma

o alheo pera si.

Renego de quantos vi

de quem foram esquecidos,

arrenego dos perdidos

por cousas nom mui honestas.

Renego tambem das festas

que trazem pouco proveito,

arrenego do dereito   

que se vende por dinheiro.

Arrenego do palreiro

e de quem em ele crê,

arrenego da mercê

mais pedida de ũa vez.

Arrenego de quem fez

o roim do boom senhor,

renego do julgador

que julga per afeiçam.

Renego da sem rezam

e de quem per ela usa,

renego de quem refusa

fazer bem a quem merece.

Renego do que padece

sem querer ser confessado,

arrenego do casado

mandado pela molher.

Arrenego de quem der

a roins e chocarreiros,

arrenego dos dinheiros

e tesouros soterrados.

Renego dos leterados

que nam usam do que leem,

arrenego dos que creem

nas riquezas deste mundo.

Arrenego do segundo

que viveo com outro homem,

arrenego dos que comem

o alheo sem pagar.

Arrenego do palrar

e falar muito sobejo,

arrenego de quem vejo

usar sempre do que quer.

Renego de quem disser

que ha i algũ amigo,

renego de quem consigo

nam despende do que tem.

Renego tambem de quem

favorece o roim,

renego tambem de mim

se creo em vaidades.

Renego das poridades

descubertas mais que a ũu,

arrenego do gejum

que se faz por nam ter pam.

Arrenego da paixam

sem nenhũa esperança,

arrenego do que dança

sem ouvir tanger nem soom.

Renego tambem do boom

que usa de roins manhas,

arrenego das façanhas

feitas por quem pouco val.

Arrenego do casal

que nunca estaa em paz,

arrenego do rapaz

que sempre serve chorando.

Vou tambem arrenegando

de mil cousas que nam falo,

arrenego porque calo

cousas mais sustanciosas.

Arrenego das fermosas

cujas obras sam mui feas,

arrenego das candeas

que nam dam mui craro lume.

Renego de quem presume

e mostra mais do que é,

renego tambem da fe

dos que nam sam bautizados.

Renego dos namorados

que tendo tempo nam pegam,

arrenego dos que negam

parentes e natureza.

Arrenego da riqueza

avara e mal usada,

arrenego da casada

que deseja ser solteira.

Arrenego da bandeira

a quem segue pouca gente,

renego de quem consente

posturas em sua casa.

Arrenego de quem casa

com molher muito garrida,

renego tambem da vida

envolta em muitos vicios.

Renego dos beneficios

havidos com simonia,

renego da zombaria

que logo daa na verdade.

Arrenego da cidade

regida pelos tiranos,

renego dos mui mundanos

despois que ja sam dos trinta.

Arrenego da infinta

nam vivendo d’ ouro trapo,

arrenego do maao papo

de roins meixeriqueiros.

Renego dos lejungeiros

e tambem dos mentirosos,

renego dos cobiçosos

e dos ricos avarentos.

Arrenego de quinhentos

ou de todos os judeus,

arrenego dos sandeus

que leevão as dos sesudos.

Arrenego dos cornudos,

dos que sabem que o sam,

renego do capitam

que sabe pouco da guerra.

Arrenego de quem erra

e jamais nam se emmenda,

renego tambem da renda

que é menos que o gasto.

Renego tambem do pasto

em que nam entra boom vinho

arrenego do vezinho

envejoso e sandeu.

Renego tambem do meu

amigo por interesse,

arrenego se quisesse

entender nem ver mil cousas.

Renego de quantas lousas

quantas arma o diabo,

renego do grande rabo

sem outros algũs honores.

Arrenego dos favores

com que se pagam serviços,

arrenego dos chouriços

e comer feito sem sal.

Renego do oficial

que muito folga com peita,

renego da que s’ enfeita,

teendo o marido cego.

Arrenego tambem do prego

que é mais brando que o paao,

renego tambem do vaao

como chega aa orelha.

Arrenego da conselha

de moços e pouco lidos,

renego dos arroidos

e do homem revoltoso.

Renego do perfioso

que nam sabe o que diz,

arrenego da perdiz

despois que passa dos dez.

Renego tambem de Fez

com toda sua mourisma,

arrenego desta cisma

e revolta da Igreja.

Renego de quem peleja

e vai contra o Padre Santo,

renego de trajo tanto

quanto vejo desonesto.

Renego de tanto gesto

quanto s’ ora contrafaz,

renego de quem nam traz

o siso em seu lugar.

Arrenego do falar

soberbo e descortes,

renego de quem em tres

pagas paga o que deve.

Renego de quem ja teve

e despois vem a pedir,

renego do muito rir

e de quem chora de cote.

Renego do sacerdote

que vive como o leigo,

renego tambem do meigo

e do homem mui fagueiro.

Renego do cavaleiro

que nam tem bem de comer,

arrenego do fazer

a lenha em roim mato.

Arrenego do barato

que despois se torna caro,

arrenego do avaro

que jamais nunca se farta.

Renego do que s’ aparta

de comprir a lei devina,

arrenego da doutrina

de quem é mal doutrinado.

Arrenego do julgado

que se dá a quem o pede,

arrenego do que mede

maos e boons d’ ũa maneira.

Renego da alcouviteira

e de quem sem causa mente,

renego de quem nam sente

o bem e mal que lhe fazem.

Renego dos que lh’ aprazem

os roins mais que os boons

renego tambem dos toons

d’ algũs doudos ou sam muitos.

Renego tambem dos fruitos

que se colhem da doudice

renego da bebedice

e dos que sam de mil leis.

Renego tambem dos reis

pelos tiranos mandados,

renego tambem dos dados

e jugar tanto corruto.

Renego tambem do puto

que em molher nunca entende,

arrenego de quem vende

a roim cousa por boa.

Arrenego da pessoa

que se nam lembra da morte,

renego tambem do forte

que, quando compre, é fraco.

Arrenego do velhaco

e do peco cortesãao,

renego do homem vãao

e dos mui presuntuosos.

Renego dos preciosos

e dos cheos de perfumes,

renego de mil costumes

e de mim se me contentam.

Renego dos que s’ assentam

onde nam devem estar,

renego do passear

de contino pela praça.

Arrenego da maa graça

e de quem nam tem vergonha,

arrenego de quem sonha

sempre em cousas mundanas.

Arrenego das oufanas

e das que sam mui golosas,

renego das ouciosas

criadas em muitos viços.

Renego de seus feitiços

e das que têm roim fama,

renego da gentil dama

que quer bem a homem vil.

Arrenego da sotil

e aguda em maldades,

renego das roindades

quantas sabem ordenar.

Renego de quem gastar

sua vida após elas,

renego tambem daquelas

que tomam muitos amores.

Arrenego dos pastores

que nam olham por seu gado,

arrenego do gram estado

e a renda quasi nada.

Arrenego da pousada

em que ha mui pouca roupa,

renego tambem da pouca

devaçam que vejo aqui.

Renego se nunca li

boas copras portuguesas,

arrenego das defesas

que provadas nam assolvem.

Renego dos que revolvem

criados com seus senhores,

renego dos servidores

que nam sam muito fiees.

Renego dos ministrees

que nam sam bem concertados,

arrenego dos privados

que conselham mal seu rei.

Renego tambem da lei

nam usada comumente,

arrenego do presente

que çuja ambas as mãaos.

Arrenego dos irmãaos

que nunca sam bem avindos,

arrenego dos mui lindos

e dos homens molherigos.

Arrenego dos imigos

que jamais nunca ameaçam,

renego dos que apraçam

e conversam com roins.

Arrenego dos malsins

nem se ha i ja verdade,

arrenego da bondade

que traz dano pera si.

Arrenego se ha i

nenhũa regra nem ordem,

renego da gram desordem,

que ha nos ecresiasticos.

Arrenego dos fantasticos

e dos fracos regedores,

renego dos pregadores

que mui rijo nam reprendem.

Renego dos que defendem

que se nam faça justiça,

arrenego da preguiça

e da grande agudeza.

Renego da gentileza

onde ha vil condiçam,

renego se acharam

oficial que nam roube.

Renego se sei nem soube

julgador sem duas tachas,

arrenego das borrachas

que bebem mais do que fiam.

Renego dos que perfiam

em cousas que nam entendem,

renego se os que prendem

nam deviam de ser presos.

Renego dos mui acesos

nestes amorinhos vãaos,

arrenego dos vilãaos

postos em algũa honra.

Arrenego da desonra

que vingada nam descansa,

renego da muito mansa

e tambem da muito brava.

Arrenego da que lava

e enxuga quando chove,

renego se ha i prove

nem boom homem estimado.

Renego do mui inchado

e do cheo de vãa groria,

arrenego da memoria

nam do boom mas roim feito.

Renego de quem traz preito

com puta ou poderoso,

renego do mui iroso

e do homem muito manso.

Renego se ha descanso

neste mundo de miseria,

arrenego da materia

dos que servem ao demo.

Renego se nam me temo

de dizerem que praguejo,

pelo que, com este pejo,

de muitos outros desisto

creendo bem na fe de Cristo.

Fim.

562

GROSA DE GRIGORIO AFONSO
A ESTE MOTO:

Quantos más males posseo  

tanto más vuestro me veo.

Olvidarme yo de vos

no puede ser ni lo creo,

porque siempre ya por Dios

quantos más males posseo

tanto más vuestro me veo.

Para m’ acordar de mi

tengo nenguno sentido,

ni sé triste si naci

y com mil males ansi

de vos nunca me olvido.

Pues sabed que de los dos

que aman com buen deseo,

soy yo uno que por Dios

quantos males más posseo

tanto más vuestro me veo.

563

DE GREGORIO AFONSO
E ESTE MOTO:

Ado la fama namora,

la vista deve matar.

Dubdo s’ es mejor aora

miraros o no mirar,

porque cierto, mi senhora,

ado la fama namora,

la vista deve matar.

El deseo y voluntad

queriam que os amasse,

el temor y la verdad

no queriam em vos pensar,

que el veros me matasse.

Y ansi nenguna hora

no me dexa el cuidar,

porque cierto, mi senhora,

ado la fama namora,

la vista deve matar.

564

DE JOAM RODRIGUES DE LUCENA
AA SENHORA DONA JOANA DE
MENDOÇA, PORQUE LHE
MANDOU A RAINHA
QUE NAM SAISSE
ŨS DIAS DA
POUSADA.

Senhora, vivei contente,      

nam vos dê nada paixão,

porque nam é sem razão

que quem prende tanta jente

saiba que cous’ ee prisão.

Porque sabendo a certeza

do mal qu’ a tantos fazeis,

nam creo que querereis

usar de tanta crueza

cos cativos que prendeis.

Mas cuido que diferente

sois desta minha tenção

e que sendo solta então

prendereis muita mais jente

e em mais esquiva prisão.

Grosa sua a esta sua cantiga.

Em graças tam acabada

coma discreta e prudente,

em tudo tam eicelente,

pois sois de todos amada,

senhora, vivei contente.

E ainda que vejais

cousas feitas sem razão,

alargai o coração;

e que sejão muitas mais

nam vos dê nada paixão.

Sede leda se podeis,

pois tendes em vossa mão

as vidas de quantos são

e não vos maravilheis

porque nam é sem razão.

Que bem sabida a verdade

de vosso dano presente,

quem vos tem tam descontente

usa de mais piedade

que quem prende tanta jente.

Por isso, senhora, tende

muito grande coração

ou mudai a condição,

que razão é que quem prende

saiba que cous’ ee prisão.

Nam cureis de vos queixar,   

nem deis lugar aa tristeza,

folgai, dama, de folgar,

nam cureis de vos matar,

porque sabendo a certeza

da grande pena crecida,

que dais aos que prendeis,

sei que toda vossa vida

vivireis arrependida

do mal qu’ a tantos fazeis.

Nem creo que pode ser

que tam crua vos mostreis

e vend’ os vossos morrer,

de seu mal tomar prazer

nam creo que querereis.

Nem se pode sospeitar

de tamanha gentileza

que possa querer matar

nem com quem na muito amar

usar de tanta crueza.

Que nam vos fez Deos fermosa

pera matar nem mateis,

mas quanto mais poderosa

deveis ser mais piadosa

cos cativos que prendeis.

Mas hei medo que sejais

do que digo descontente,

que creo que nam estais

bem nem mal cos que matais,

mas cuido que diferente.

Que por vos verdes vingada

por vossa consolação,

por dardes pena dobrada,

por fazer mal, apartada

sois desta minha tenção.

Que como vos vi prender,

logo tive sospeição

que havieis de querer

a muitos mais mal fazer

e que sendo solta então,

Entam compre de guardar,

que se vossa mercê sente

qu’ alguem ousa d’ assomar,

entam pera vos vingar

prendereis muita mais jente.

Mas não sei s’ havera quem, 

porque dos que vivos são,

ũus morrem por querer bem,

outros vivos se mantem

em mais esquiva prisão.

À senhora Dona Joana.

A cantiga assi grosada

mande vossa mercê ler,

e se for d’ alguem tachada,

sendo de vós emparada,

logo pode parecer.

E s’ ela per si nam for

tal que vos pareça bem,

pois é em vosso louvor,

valer-lh’ -á vosso favor

o que nam faz a ninguem.

565

REPOSTA D’ ULISSES A PENELOPE
TIRADA DO SABINO, DE LATIM
EM LINGUAJEM, POR JOAM
RODRIGUEZ DE LUCENA.

Ulisses a Penelope.

Tua carta bem notada,

com piedosas palavras,

a teu Ulisses foi dada

assi como desejavas.

E nela bem conheci

tua mão e entendi

teu mui fiel coração

e foi-me consolação

dos longos males que vi.

Reprendes-me que tardei,

eu antes queria estar

contando-t’ o que passei

que havê-lo de passar.

A Grecia nam me lançou

neste lugar ond’ estou

como o fingido furor

que fingi, quando o amor

em tua terra m’ achou.

Porqu’ entam o não querer

partir-me de ti tam triste

era causa de deter

minhas velas como viste.

Que nam cure d’ escrever,

m’ escreves, mas de fazer

por mais asinha chegar,

e os ventos por m’ estrovar

fazem todo seu poder.

Ja na Troia avorrecida

de vós outras, nam estou,

porque ja é destroida

e em cinza se tornou.

Deifebo, Asio e Heitor,

que te punham em temor,

ja é tudo sepultado,

e eu ando desterrado

sofrendo tam grande dor.

De Reso, por mim estroido,

Rei de Tracia, escapei

e trouxe dele vencido

os cavalos que tomei.

E tambem na torre entrei

de Palas, donde roubei

o fatal Paladião,

por ond’ a destruição

de tod’ a Troia causei.

Nem menos eu fora estava

do cavalo de madeira,

quando Cassandra bradava:

— Queime-s’ em tod’ a maneira,

porque dentro nele estão

muitos gregos, que darão

morte a todolos troiãos

e com suas crueis mãos

cruel guerra lhe farão!

Arquiles, que sepultado

nam era como devia,

em meos ombros foi tornado

a Tetis como compria.

Os gregos nunca me derão

o louvor qu’ eles diverão

a mim, que tanto acabei,

porem as armas levei

d’ Arquiles qu’ ali perderão.

Mas a mim que m’ aproveita,

que no mar são sovertidas, 

a frota toda desfeita,

minhas companhas perdidas.

Tudo me fica no mar,

mas o amor grande, sem par,

que te tenho, me siguio,

em quanto passei se vio

sem um hora me deixar.

Nunca a Nereia virgem

com seus caĩs mui cobiçosos,

nunca Caribdis tambem

com seus mares fortunosos

o puderão quebrantar;

nem Antifates mudar,

nem Partenope enganosa,

inda que mui desejosa

foi de me fazer ficar.

Nem aquela que tentou

por magica me deter,

nem a deosa que cuidou

ricas camas me vencer.

Ainda que me prometião

ambas elas que farião

que nam pudesse morrer,

se eu quisesse fazer

o que m’ elas cometião.

E porem eu desprezando

tal mercê, vou pera ti,

tanta fortuna passando

quanta por chegar sofri.

E tu porventura medrosa,

doutra molher receosa

e nam mui segura, les

aquesta carta, que ves

escrita tam saudosa.

Tambem por ventura cres

que a causa de me deter

seja Calipso ou Circes

e isto te faz temer.

Qu’ a mim me dá tal paixão

quando Antinoo e Medão,

Polibo leo tambem,

qu’ o sangue todo se vem

do corpo ao coração.

Triste de mim que crerei

qu’ estás tu entr’ essa jente

em convites — eu que sei? —

se te has tu castamente...

Mas tua presença airosa,

se a sempre vem chorosa,

como se namorão dela?

E com tam justa querela,

nam deixas de ser fermosa.

E hei gram temor tambem

qu’ estás ja pera casar,

s’ a tea, que te detem,

antes qu’ eu vá, s’ acabar.

Inda qu’ à noite desteces

ess’ arte t’ haa-de fazer

acabares de tecer

a tea, se t’ adormeces.

E se isto s’ acertar,

nam me fora a mim mais

são Polifemo me matar

na cova com sua mão?

Nam for’ eu milhor vencido

e morto e sepelido

do cavaleiro mui forte

de Tracia, quando por sorte

era em Ismaro detido?

Nam fora milhor ficar

no inferno onde m’ achei,

pera Ditis contentar,

qu’ escapar com’ escapei?

Onde eu embalde vi

a mãi que, quando parti,

deixei viva, a qual finada

me disse, sem faltar nada,

quant’ em tua carta li.

E disse-m’ os embaraços

de minha casa e fogio,

e tendo-a entre meus braços

tres vezes se m’ espidio.

Protisilao vi estar,

que quis antes começar

a guerra que nam temer

sobre Troia ali morrer,

podendo-o bem escusar.

Estava bem-aventurado

ali com sua molher,

que nam quis, ele finado,

mais nesta vida viver.

E posto que sua vida

nam era toda comprida,

quis morrer com seu marido,

que morreo de mui ardido

e ela de mal sofrida.

Vi Agamenom, o forte,

que me fez muito chorar,

disforme com nova morte,

cousa bem pera espantar!

E posto que nam ficou

na gram guerra em que s’ achou,

junto cos muros de Troia,

nem nos mares de Euboia

que a seu salvo passou,

Foi porem assi morrer

de muito cruas feridas,

despois de oferecer

as ofertas prometidas.

A qual morte Cliptenestra

tam cruamente lh’ adestra

estranhos varoons siguindo,

nova capa lhe vestindo

feita com sua mão destra.

Mas que m’ aproveita ver

a molher d’ Heitor e irmãas

ajuntadas ali ser

entr’ as cativas troiãas?

Pois entr’ elas escolhi

a Hecuba, porque vi

que era ja velha feita,

por perderes a sospeita

d’ outra molher e de mim.

A qual Hecuba agoirou

minhas naus e as fez tremer

e em cadela se tornou,

qu’ a todos ia morder.

E a triste assi ladrando,

suas desditas queixando,

acabou sua querela

feita raviosa cadela,

nos desertos habitando.

E Tetis por tal sinal

o manso mar me negou,

Eolo por me fazer mal

todos seus ventos soltou.

E assi ando desterrado,

por todo o mundo lançado,

por onde me quer levar

o vento e o bravo mar,

que me trazem destroçado.

Mas se Tiresias fora

da morte tal agoireiro,

como o eu acho agora

em meus males verdadeiro,

que tudo o que me fingia,

que eu de passar havia

pola terra e polo mar,

ja o acho sem faltar

nada do que me dizia.

Palas se me ajuntou,

ja nam sei em que ribeira,

e dali sempre me guiou

coma bõa companheira.

Esta vez foi a primeira

que a vi coma estrangeira,

despois de Troia estruida,

a ira demenuida,

tornada ja prazenteira.

Porque no que cometeo

Diomedes, eu pequei,

e sua ira s’ estendeo

a todolos gregos qu’ eu sei;

nem a ti nam perdoou

Diomedes, mas causou

que tu andasses errando,

ainda que pelejando

contra Troia t’ ajudou.

Nem Teucro que Talamão     

houve na troiãa roubada

nem o forte Agamenão,

capitão da grande armada.

Ó tu bem-aventurado

Menelao, que foste achado

com tua molher no mar,

sem te poder estrovar

nenhũa sorte nem fado.

Porqu’ entam inda qu’ os ventos

e os mares vos detinhão,

vossos amores isentos

nenhum dano recebião,

qu’ os ventos nam estrovavão

vossos beijos, nem cessavão

vossos braços d’ abraçar,

inda que no bravo mar

os fortes ventos sopravão.

E se eu assi estivera

sempre contigo no mar,

tua presença fizera

tudo sem pena passar.

Mas ja meus males estão

leves em meu coraçam,

porque sei qu’ eu sendo absente

é Telemaco presente

contigo, pois eu nam são.

Do qual me queixo, porque

foi a Pilo e a Esparta

por mares, que certo é

como vi por tua carta.

Nam consento em piedade

que com tanta crueldade

de perigos se sostem,

porque certo nam foi bem

fiá-lo da tempestade.

Ainda m’ eu hei-de achar,

porqu’ um profeta mo disse,

entre seus braços estar,

mas isto quem no ja visse!

E entam quando eu chegar,

tu só me has-de abraçar

e soo m’ has-de conhecer,

aquele grande prazer

sabe-o dissimular.

Porqu’ a mim não me convem

guerrear tais cavaleiros,

ele mo disse tambem

qu’ assi dizem seus loureiros.

Mas porventura em comendo

ou em estando bebendo,

de supito chegarei,

e chegando vingarei

o qu’ eles andam fazendo.

Fim.

E serão muito espantados

da não esperada ida

d’ Ulisses, e rogo aos fados

que venha cedo este dia.

O qual fará renovar

o amor grande sem par

da antiga cama amada

e entam tu ja casada

começar-m’ -as a lograr.

566

CARTA DE OENONE A PARES,
TRALADADA DO OUVIDIO EM
COPRAS PER JOAM RODRI‑
GUEZ DE LUCENA.

Argumento.

Sendo Pares ja crecido,

andando na mata Ida,

por prove pastor havido,

Enone foi sem sentido

por ele d’ amor perdida.

E polo pomo dourado,

qu’ aa deosa Venus julgou,

dela lhe foi outorgado

qu’ havia de ser casado

com Helena que robou.

E pera haver de cobrar

o que lh’ era prometido,

começou-s’ aparelhar

pera em Grecia navegar,

despois de ser conhecido.

E foi mui bem hospedado

d’ El-Rei Melelao, qu’ ordena,

por lhe fazer gasalhado,

de lhe mostrar seu estado

e a fermosa Rainha Helena.

E logo s’ enamorou

de tam fermosa rainha

e com ela concertou

como dali a levou

pera Troia, onde a tinha.

Mas Enone mui sentida,

de ver-s’ assi desprezada,

lh’ escreve por despedida

esta carta tam dorida,

quasi ja desesperada.

Oenone a Pares.

Se acabas tu de ler

esta carta que te mando

ou se a nova molher

to não consente fazer

ja de mim s’ arreceando,

e porem sem afeição

a lei, que nela verás,

que não tem nem letra não

escrita com grega mão

com que tu não folgarás.

Oenone, ninfa honrada,

nas troiãas matas e serras,

se queixa de ti agravada,

porqu’ era a triste casada

contigo, se tu quiseras.

E qual deos contrariou

a nosso voto e querer,

ou que pecado pecou

Enone, porque cessou

de ser ja tua molher?

Porque boom é de sofrer

mal que merecido vem,

mas pena sem merecer

é muito pera doer

a quem na sem causa tem.

Inda tu não eras nada

nem somentes conhecido,

quando eu ninfa jerada

do gram rio era pagada

de ter-t’ a ti por marido.

E tu que agora es tido

por filho d’ El-Rei Priamo,

por servo eras havido

e servo eras marido

de mim ninfa, porque t’ amo.

Bem sabes tu que folgámos

muitas vezes entr’ o gado,

cubertos com verdes ramos

e que juntos nos deitámos

por aquele verde prado.

E quantas vezes jazendo

em alta cama de feno,

em baixa casa vivendo,

nos cobrio neve e, sendo

daquisto lembrada, peno.

Dizi-me: — Quem te mostrava

os boscos pera caçar?

E em que lugar criava

seus filhos a besta brava,

que tu logo ias matar?

Quantas vezes me ja achei

por matos contigo armando,

e quantas vezes andei

com os cãis, que eu criei,

junta contigo caçando!

Nos freixos ind’ estaraa

meu nome escrito e notado,

inda se neles leraa

Enone, nome qu’ estaa

com tua fouce cortado.

D’ um alemo sou acordada

qu’ está a par d’ ũa ribeira,

em o qual está notada

ũa letra bem lembrada

de mim ja na derradeira.

E assi como vão crecendo

seus troncos grandes, erguidos,

bem assi o vão fazendo

meus nomes i-vos erguendo

em meus titolos crecidos.

— Alemo, que assentado

estás naquela ribeira,

vive, pois que teins notado

em teu tronco enverrugado

um verso desta maneira:

Quando Pares ja viver

sem Enone, que recebeo,

entam veremos correr

o rio Xanto e volver

pera a fonte onde naceo.

— Xanto, volta, volta jaa,

corree aguas por detras,

Pares vive e viveraa

sem Enone que choraraa

como tu, rio, verás.

Aquele dia coitada

me trouxe bem mao fadairo,

naquele fui eu trocada,

naquele me foi mudada

minha sorte ao contrairo!

Quando as tres deosas vierão,

Juno, Venus e Minerva,

e por juiz t’ escolherão,

grandes doĩs te prometerão

todas tres nuas na erva.

E entam tu espantado

todo te trasfiguraste,

de temor todo cercado,

tremendo mui demudado,

lembra-te que mo contaste.

Eu nam menos espantada

logo me aconselhei

e é cousa mui provada

que me foi reposta dada

com que mui pouco folguei.

Porque com faias cortadas

guarneceste gross’ armada

e as naos ja acabadas

foram depressa lançadas

na brava onda trigada.

Eu te vi certo chorar

quanto te de mim partiste

— pera qu’ ee isto negar? —

que mais te deve pesar

do amor que tu lá viste.

Choraste e viste chorando

meus olhos tristes, sentidos,

e ambos lagremejando

fomos assi sospirando

pera sempre despedidos.

Em teos braços fui tomada

e meu pescoço apertado,

qu’ a vide que está atada

e nos ulmeiros empada

nam está mais a recado.

Quantas vezes te queixavas

que os ventos te detinham

com contrairas ondas bravas,

mas os teus nam enganavas,

porqu’ o contrairo sabiam.

E tantas vezes tornaste

a me beijar naquel’ hora,

qu’ escassamente escuitaste

o que beijando estrovaste,

que foi: — Oh, i-vos embora!

E logo fost’ embarcado

e as velas todas alçadas

e com vento arrebatado

e com o remo apressado

as aguas brancas tornadas.

Os meus olhos te siguiam,

enquanto te pude ver,

as lagrimas que corriam,

a terra toda cobriam,

cousa pera se nam crer.

Com as quais triste, coitada,

aas verdes deosas do mar

rogava pola tornada,

pera vir em tu’ armada

quem me faz desesperar.

Polos rogos qu’ eu roguei

tornaste, e nam pera mim,

triste de mim que farei,

que o rogo em que andei

foi pola comboça em fim.

E estand’ ũ dia assentada

em um monte qu’ está par

donde bat’ a onda quebrada,

nũa serra bem alçada

donde se vê tod’ o mar,

Daqui eu primeiro vi

tuas velas, que chegavão,

e primeiro as conheci;

quisera-m’ ir pera ti

mas as ondas m’ estrovavão.

E estando-t’ assi aguardando,

na proa de ta nao vi,

que luze, de quando em quando,

purpura qu’ em na olhando

logo me dela temi.

Que tu nam acustumavas

aqueles trajos trazer

e quanto mais te chegavas,

tanto mais craro mostravas

que ali vinha molher.

Nam abastou isto ser,

mas aguardei um pedaço,

que nam cri até nam ver

a adultera jazer

encostada em teu regaço.

Entam chorando rompi

todas minhas vestiduras,

em meus peitos me feri,

todo meu rosto carpi

com tamanhas amarguras!

E cos gritos qu’ ali dei

toda a mata fiz tremer,

as lagrimas, que chorei,

a minha casa as levei

pera com elas viver.

Assi veja eu Helena

ja de ti desemparada,

queixar-se com tanta pena,

que a que me ela ordena

em ela a veja dobrada!

E agora dizem que vem

por mar tam bravo e crecido

a que diz que te quer bem,

e deixa lá o que tem

por legitimo marido.

E quando nam tinhas nada

e eras prove pastor,

Enone era casada

contigo e de ti amada

assi prove lavrador.

Nam que m’ espantem agora

tuas riquezas, mas amo,

nem por ser grande senhora,

nem por ser chamada nora,

ũa das d’ El-Rei Priamo,

Qu’ ele deve de folgar,

cũa tal nora com’ eu

deve-s’ Hecuba d’ honrar

de me poder nomear

por molher d’ um filho seu!

Digna são de ser molher

d’ um poderoso varão,

e desejo de o ser,

e tambem saberei ter

um ceptro na minha mão!

Nem porque me eu deitava

contigo por esse prado,

nam me desprezes, qu’ amava,

que eu mais digna m’ achava

pera um leito dourado.

E enfim o meu amor

mais seguro ha-de ser,

porque nenhum vengador

te pusera no temor

que te põe essa molher.

Que pera s’ Helena cobrar,

arma-se mui gross’ armada:

isto foste lá buscar,

este dote t’ ham-de dar

co essa nova casada.

A Heitor, qu’ ee teu irmão,

deves tu de preguntar,

ou a Deifebo, que são

os que t’ aconselharão,

se lha deves de tornar.

E Priamo e Antenor

olha o que te dirão,

que por idade maior

é seu conselho milhor

qu’ oo que t’ estoutros darão.

Qu’ ee cousa mui perigosa

tua terra aventurar,

tua causa é vergonhosa,

seu marido tem fermosa

razão pera batalhar.

E tu cuidas qu’ haas-de ter

fiel amiga em Helena,

qu’ assi sem te conhecer

se deixou logo vencer

de ti cuja mort’ ordena.

E deixou a seu marido,

o menor filho d’ Atreu,

que se queixa mui sentido,

da molher despossoido,

porque pousada te deu.

Mas, se no mundo ha verdade,

assi t’ has tu de queixar,

porque como a castidade

se quebra, logo a bondade

nam se pode mais cobrar.

Qu’ o bem que t’ agora quer

ja o quis a Menelao

e agora o faz jazer

soo na cama, porque crer

em Helena lhe foi mao.

Ó tu bem-aventurada

Andromaca, que te tem

teu marido bem casada,

porem eu triste, coitada,

diver’ oo de ser tambem.

Mas tu mais mudavel és

qu’ as folhas secas qu’ o vento

alça rijo d’ antr’ os pés

e logo noutro revés

as abaixa num momento.

És muito menos pesado

ca ũa mui seca aresta

que co sol ameudado

se seca sobr’ ũu telhado

na meetade d’ ũa sesta.

Lembra-me que tua irmãa

noutro tempo me bradava

na grande mata troiãa

e que com palavra vãa

assi me profetizava:

— Que fazes, Enone, quê?

Porque semeas na area?

Porque lavras e teis fe

em campo que certo é

que nem colherás avea?

Porqu’ ũa bezerra vem

grega que nos perderaa,

que a si e a quem na tem

e a nossa terra tambem

tudo nos destruiraa.

Ó deoses, com vossa mão

alagai aquela nao,

fazei que não venha não,

oh quanto sangue troião

que traz nela aquele mao!

Isto dito com furor,

suas damas a tomarão,

foi tam grande minha dor

qu’ os cabelos co temor

todos se m’ arrepiarão.

Ó profeta, nesta serra

quam verdadeira t’ achei,

vede la grega bezerra,

em meus pacigos e terra

dentro neles a topei.

Qu’ ee adultera provada,

inda que fermosa seja,

de seu hospede roubada

sacrifica e põi obrada

aos deoses que deseja.

Ja outra vez a roubou

de sua terra Teseu,

certo Teseu a levou,

s’ o nome nam m’ enganou,

co geito que lh’ ela deu.

D’ um tal mancebo crerei

qu’ assi virgem a tornou?

Par deos, nam no jurarei,

se preguntas como o sei,

amar-te mo revelou.

Se com nome de forçada

a tu queres desculpar,

é desculpa mal cuidada:

tantas vezes foi roubada,

ela se deixa roubar.

E Enone sem sentido

ficará viuva enfim

do enganoso marido.

Ó Pares, qu’ escarnecido

bem puderas ser de mim!

Porque um dia eu estava

nestas matas escondida

e gram companha passava

de satiros, que me buscava,

por toda a montanha d’ Ida.

E Fauno, que vinha armado

cum mui agudo pinheiro,

na cabeça coroado

com grandes cornos, alçado

entr’ os outros o primeiro.

Eu lhe respondi porem:

— O gram cercador de Troia

fielmente me quis bem

e dias ha ja que tem

de mim a mais rica joia.

E luitando o arrepelei,

porque m’ assi perseguia,

suas faces arranhei,

porem nunca o apartei

do desejo que trazia.

Nem por preço do pecado

nam pedi pedras nem ouro,

porque mal-aventurado

é o corpo qu’ ee mercado

nem vendido por tesouro.

Mas ele por me pagar

o qu’ assi de mim tomou,

prouve-lhe de me mostrar

as artes pera curar,

qu’ ele primeiro enventou.

E todalas ervas sabidas,

as que podem aproveitar,

em todo mundo nacidas,

ness’ hora me são trazidas

sem nenhũa me prestar.

Ai mezquinha, qu’ o amor

com as ervas nam se cura,

porqu’ a mim, qu’ era a maior

naquest’ arte, a esta dor

que farei, qu’ ainda me dura?

E Apolo, qu’ est’ arte achou,

nam dizem que foi queimado

do mesmo fogo qu’ eu sou,

e que as vacas guardou

d’ El-Rei Admetes no prado?

Bem sei que deos nem a terra

com quantas ervas criar

nam podem matála guerra,

que minha vida desterra,

e tu pode-la matar!

Fim.

Tu podes e eu mereço

que hajas de mim paixão,

porque eu nam te empeço

com gregas armas, nem peço

do que te dei gualardam.

Mas, pois por tua me dou

e contigo até qui

minha vida se gastou,

te peço qu’ enquanto sou

viva te lembres de mi!

567

DE FERNAM DA SILVEIRA QUE DAA
BORCADO PERA ŨU JIBAM A QUEM
FEZER MILHOR TROVA DE LOU‑
VOR À SENHORA DONA FELIPA
DE VILHANA E HA-DE SER
JULGADO PER ELA.

Fernam da Silveira.

Trove quem souber trovar,

diga quem souber dizer,

louve quem souber louvar,

a dama mais singular

que nunca se vio nacer.

A qual bem sabeis, senhores,

s’ a feiçam vos nam engana

esta é a de Vilhana

Dona Felipa, que dana

minha vida por amores.

Outra sua.

E a quem na per milhor cobra

louvar, dou pera jubam

borcado pera tal obra,

quem tanto serviço dobra

mereça mor gualardam.

Mas soo em sinal de grado

o borcado vestiraa,

com que bem pareceraa

ou mal, se for desairado.

Diogo de Miranda.

Quem convosco se presume

igualar, erra, segundo

estaa craro que sois cume

e o lume

de todalas deste mundo.

Nem vos pode ninguem ver

que lhe lembre mais senhora

que ja foi nem pode ser,

nem destas que sam agora

a fora!

Joham Fogaça.

Quem haa-d’ ousar de gabar

fermosura tam sobida,

pois nam ha naquesta vida

vosso par?

Tirando ũa que sigo

e porque m’ hei-de perder,

ainda que o nam digo

nem espero de dizer.

Pero de Sousa Ribeiro.

Nam quero tirar ninguem,

quero-vos tudo leixar,

que bem sei que podeis dar

e ficar

com mais do que todas tem.

Ũa mercê me fareis,

se me virdes namorado,

senhora: que m’ empareis,

pois falo desenganado

sem querer nenhum borcado!

Anrique de Figueiredo.

Nam estou tam de vagar      

que me possa parecer

que cousa possa falar,

per que meas e colar

bem podesse merecer.

Os louvores desta dama

a Nosso Senhor se dem,

que, segundo sua fama,

pera lhe louvar a rama

eu nam sei no mundo quem.

Dom Diogo d’ Almeida.

Sei que fareis mui gram dano,

sereis muito de temer,

se verdade é que nest’ ano,

que vos eu leixei de ver,

crecestes em parecer.

Eu agora nam vos vejo,

mas vós ereis tal entam,

que palhas é quantas sam,

polo qual ver-vos desejo.

Joham Gomez da Ilha.

Tal é vosso parecer,

vossa fermosura tanta,

siso, bondade, saber,

que se nam pode dizer

quanto nem quanta.

Assi perfeita vos fez

Quem por nós morreo na cruz,

que de todas fareis pez

e trevas e de vós luz.

Dom Diogo Lobo.

Sois tam fermosa, tam linda,

que vos nam ouso dar gabo,

porque na cousa infinda

nam pod’ homem ir oo cabo.

Mas porque nam com rezam

meu irmão culpa me dê,

nam lhe digo al senam

que darei outro jubam

a quem vos achar um sê.

Dom Alvaro d’ Ataide.

Se houverdes piadade

de quem vos servir e amar,

d’ outras manhas e beldade

em vós nam ha que pintar.

Fez-vos Deos tam graciosa

e airosa,

tendes tam gentil muela,

qu’ a par dela,

nenhũa outra donzela

se pode chamar fermosa.

Dom Pedro da Silva.

Todas vos vejo passar

quantas sam, senhora prima,

e quero que o saibais

afora Dona Guiomar

com que coterar nam rima

fremosuras terreais.

E esta posta à de parte

que me dá muita tristura,

tendes vós tal fermosura

qu’ às outras podeis dar parte

e ficar a vós que farte!

Jorge d’ Aguiar.

Começar de vos louvar

é cousa que nam tem cabo,

querer-vos tambem gabar

é mais que pedras lançar,

pois gabar-vos é desgabo.

Mas pois ninguem se engana,

calem, calem, servidores,

bradem: — Anriquez Vilhana!

pois com tal nome se guana

vencidos ser vencedores.

Dom Rodrigo de Crasto.

Que posso por vós dizer

que ninguem haja por gabo?

Pois tendes tal parecer

que sois o cabo

das que sam e ham-de ser.

Polo qual quem vos olhar

dirá que logo emproviso,

deça Deos do Paraiso

e vos dê o Seu lugar.

Dom Rodrigo de Monsanto.

Pera tal grado levar

nam cuido que é saber

de saber ninguem louvar

ũa dama tam sem par

como vos Deos quis fazer.

Ca inda que fermosura,

manhas i galantaria

nam s’ achasse,

deveis estar bem segura

que o mundo se refaria

da que de vós sobejasse.

Dom Martinho de Castel Branco.

Nam é cousa dovidosa,

mas de todos conhecida,

esta ser a mais fermosa,

mais gentil, mais graciosa,

desta vida.

Muito manhosa sem par

nam se sabe tal molher,

salvo Dona Guiomar,

qu’ esta me pode matar

e dar vida, se quiser.

Dom Goterre.

Eu, que diga quanto sei,

nam chegarei aa metade

e mais diz-m’ a minha lei

que se tocar na Trindade

pecarei.

Mas bem sabe todo mundo

qu’ antre as de mais estima,

senhora, sois vós a prima

que deveis estar acima

e as outras todas de fundo.

Dom Joam de Meneses.

Pois é cousa tam sabida

parecer e descriçam

saber ter em vós guarida

ante doo de cuja vida

s’ ofreça por voss’ afã.

Nam vos pese, se me fundo

em ter e crer que sois vós

dos dous deoses o segundo,

sois o cabo das do mundo,

sobre ser maa pera nós.

Fim de Fernam da Silveira.

Como engeitam os senhores

saios que lhe vêm mal feitos,

assi estes trovadores

engeitai-lhe seus louvores

que vos nam fazem destreitos.

Leixem Quem teve poder

de vos dar tal perfeiçam

louvar vosso merecer,

qu’ Ele o poode fazer,

mas outrem nam.

568

DE NUNO PEREIRA A ŨA
DAMA QUE SERVIA.

Nam quisera ser nacido

se vos eu nam conhecera

pola parte que perdera

em nam ser por vós perdido.

Nam vos ter eu conhecida,

pera vos ver nem servir,

mui mais fora de sentir

que por vós perder a vida.

Perder-me e ver-me perdido,

e meu mal todo sofrera,

mas se vos nam conhecera

nam quisera ser nacido.

Francisco da Silveira.

Descanso é por vós cansar

e sofrer penas, prazer,

nem hei dor de recear,

pois vos hei-de soportar

quanto quiserdes fazer.

Nam quisera ser nacido

se por vós nam padecera,

porque nisto mais perdera

qu’ em me ver por vós perdido.

Jorge da Silveira.

Sem servir-vos nam é vida,

nem viver sem conhecer-vos,

nem pode ser mais perdida

a vida que ser sem ver-vos.

Se nam fora conhecido

de vós nem vos conhecera,

nunca viva, se quisera,

sem ser vosso ser nacido.

Dom Diogo d’ Almeida.

Diga mal sua ventura

quem neste mundo naceo,

se naceo e se morreo

sem ver vossa fremosura.

Eu ponho por mais sobido

meu mal, se s’ acontecera

que vos eu nam conhecera

ca ter o mundo perdido.

Dom Martinho.

Oh que gram pena sentira

nam nacerdes antre nós

e ouvir novas de vós

a outr’ homem que vos vira!

Houvera-me por perdido,

se se tal acontecera,

ca se nam vos conhecera

pera qu’ era ser nacido?

Dom Duarte de Meneses.

Que groria é padecer

e morrer por vós, senhora,

e que gram mofina fora

nam vos ver nem conhecer!

Nam quisera ser nacido,

nem nenhũ bem nam quisera,

se vos eu nam conhecera

para ser por vós perdido.

Pedr’ Homem.

Ja me quiseram comer,

porqu’ esta perfia tive:

se pode dizer que vive

o que nam vos pode ver.

E pois isto era sabido,

que mao jogo Deos fizera

a quem nacera e morrera,

nam sendo por vós perdido.

Dom Joam Manuel.

Dama de tal parecer,

quem cuida viver sem vê-la

por isso deve morrer,

e eu quero antes ter

a morte que merecê-la.

Polo qual se sam perdido,

conforto-me que devera

morrer, se viver quisera,

sem vos ver e ter servido.

Pero d’ Alcaçova.

Quant’ eu goosto de vos ver,

a face vo-lo diraa

e no talho se veraa

o que engordo com prazer.

Nem assado, nem cozido,

nem manjar que me fizera

ser mais ancho que comprido,

se vos eu nam conhecera.

Dom Joam Pereira.

Os vivos, que vos conhecem,

é bem que disso se gabem,

os mortos, se de vós sabem,

seraa pena que padecem.

E que se chame perdido

quem de ver-vos desespera,

e s’ eu tanto bem perdera

nam quisera ser nacido.

Joham Moniz.

Se de mim nam sões servida,

eu nam quisera ser vivo,

ca por vós me praz a vida,

por viver vosso cativo.

Se quisera ser nacido

sem vos conhecer, devera

matar-me, se nam morrera

por nunca vos ter servido.

Garcia Afonso de Melo.

Aquesta dama fremosa,

causa de meu padecer,

oh quem podesse fazer

que me fosse piadosa

e sentisse meu sentido

da gram pena que sofrera,

se m’ eu por seu conhecera

sem dela ser conhecido!

Lopo Soarez.

Ver-vos me é ja poder

com tantas infindas dores,

qu’ era possivel sofrer

de morrer por vós d’ amores.

Que seja por vós perdido,

por mais perdido m’ houvera,

se nunca vos conhecera

nem tevera conhecido.

Joam de Saldanha e fim.

Nam se pode chamar vida

a de quem nunca vos vio,

pois nunca vio nem sentio

fermosura tam sobida.

Perdido mais que perdido

fora quem vos conhecera,

se vivera e morrera

sem nunca vos ter servido.

569

DO CONDE DE BORBA À
SENHORA DONA LIA-

NOR ANRIQUEZ.

Eu cuidei em vos louvar

e achei-me tam perdido

que perdi todo sentido

em querer nisso falar.

Qu’ em gabar desgabaria      

vosso grande parecer,

pois dizendo ficaria,

amor, parte por dizer.

Nam pode ninguem tomar

ũu cuidado tam crecido

que nom saia do sentido,

se nisso quiser cuidar.

Ajuda de Jorge d’ Aguiar.

Pois triste, quando queria

a mim mesmo afegurar-vos,

me falece a fantesia,

digo que milhor seria

nam gabar-vos mas mostrar-vos.

E veraa quem duvidar

que sam com rezam perdido,

pois vos nam pode gabar

sem mostrar nenhũ nacido.

Joam Fogaça.

Creo e tenho por fee

que por tam gram parecer,

quanto se pode dizer

e escrever,

é nada pera o que é.

Quem em vós quiser falar

haa-d’ estar aprecebido

qu’ ha-de ser por vós perdido

sem ousar,

senhora, de vos gabar.

Duarte da Gama.

Nam ha siso nem saber,

descriçam nem ousadia,

que me possa dar poder

de poder por vós dizer

quanto se dizer devia.

Mas digo sem duvidar,

como quem no tem sabido,

que quem for por vós perdido

ante Deos s’ haa-de salvar.

Manuel de Gooios.

Nam consente natureza

que possaes louvada ser,

porque, pera se fazer,

compria tanto saber

como tendes gentileza.

O que fica por falar

do que nos tem parecido

co que temos padecido

vo-lo podemos pagar.

Dom Joham de Meneses.

Se neste louvor entrasse

seria pera tachar

a quem tanto s’ enganasse,

que cuidasse

que vos podia louvar.

Pera servir e adorar

fui eu nacido,

e vós soo para passar

o que nam pod’ alcançar

nenhũ humano sentido.

Diogo Brandam.

Pois tendes na vida nossa

mais poder que ninguem teve,

o que louvar-vos s’ atreve,

que diga mais do que possa,

diraa menos do que deve.

E pois vos hei-d’ anojar

pesa-me de ser nacido,

mas folgo por m’ acertar

em tempo que meu sentido

vos podesse contemprar.

Duarte de Leemos.

Nam s’ engane jaa ninguem,

nem devem tempo gastar,

dexem louvar-vos a Quem

mostrou bem

que vos fez por se louvar.

Mas o que tenho sabido,

isto sem mais duvidar,

é que nam pod’ escapar

de perdido,

senhora, quem vos oulhar.

Anrique Correa.

Sam tam altas d’ entender

as duçuras qu’ em vós jazem,

que se nom podem dizer

em quantas trovas se fazem.

Erro seria gabar

parecer qu’ ee tam sabido,

que se nam pode alcançar

co sentido.

O Conde do Vimioso.

Como se pode fazer

louvar primor tam sobido,

pois que vosso merecer

nam é nacido saber

de que seja entendido.

Eu digo, sem vos louvar,

de que tenho conhecido

qu’ o mundo por se salvar

deve ser por vós perdido.

Dom Manuel de Meneses.

Mostrou Deos este poder

por nos dar dobrada fee,

e em vos assi fazer

nos deu bem a entender

seu poder camanho ee.

E pois se quis esmerar

em vós com todo sentido,

nam deve nenhũ nacido

presumir de vos louvar.

Pero de Sousa Ribeiro.

Senhora, acho-vos louvada,

em chegando de caminho,

e por serdes avisada

vossa mercê é a talhada

d’ ũu servidor qu’ adevinho.

O que s’ houver por provido,

guarde-se de vos louvar,

ca louvor nam s’ haa-de dar

em lugar tam merecido

e sabido.

Dom Afonso de Noronha.

Nam sei como ninguem ousa

cometer tam grande errada,

que cuida dizer-vos cousa

de que vós fiqueis gabada.

Mas diga quem vos oulhar

pera que quis ser nacido,

se s’ espera de salvar

de nam ser por vós perdido.

Garcia de Resende.

Se vir eestes trovadores

algũ bom louvor vos dar,

logo poderá tomar

fantesia de contar

algũ de vossos primores.

Mas vi tam mal acertar

o que era mais sabido,

que nam quis nunca cuidar

em louvar-vos, mas louvar

quem por vós se vê perdido.

Fim.

Do Conde de Borba.

Nos louvores que vos deram

eu me dou por bem culpado,

pois em tudo o que disseram

nam poderam

dar-vos louvor começado,

quanto mais ser acabado.

Acabei sem acabar

de ser perdido,

mas nam jaa de vos louvar,

antes soo em começar

perdi todo meu sentido.

570

DA SENHORA DONA FELIPA
D’ ALMADA

O que recobrar nom posso

mundo d’ oordem desigual,

faz que nam desejo vosso

bem nem quero vosso mal.

Mais me praz que assi viva

no limbo destes favores

que vossos tristes amores

me darem vida cativa.

Pesa-me que o mal vosso

ja cuidei de nam ser mal,

praz-me porque sei e posso

crer agora de vós al.

Ajuda do Coudel-moor.

Visto quanto aventuro

polo pouco bem qu’ espero,

vosso mal sentir nom quero

nem de vosso bem nom curo.

Leixo-vos enquanto posso,

pois vos conheço por tal,

que nam é bem o bem vosso,

nem é mal o vosso mal.

Rui de Sousa.

Nom hei por cousa segura

nenhũu vosso bem que veja

e sei bem que nunca dura

vosso mal que muito seja.

Conhecer est’ erro vosso

é ser cousa mui geeral:

nam ser bem nenhũ bem vosso

nem ser mal o vosso mal.

Rui Gonçalvez Reixa.

Desamo vossos favores,

nom quero vossas lianças,

pois usais de tais mudanças

vós e vossos fazedores.

Amigo fazer nam posso

de vós bom nem cumunal,

pois desespero de vosso bem,

nam quero vosso mal.

Fernam Peixoto.

Conhecendo bem agora

de vós mais que conhecia,

do mal vosso, que sentia,

me lanço de todo fora.

E do bem que fica vosso,

por ser cousa em jeral,

eu o leixo, se bem posso,

pois que tudo pouco val.

Rui Gonçalvez e fim.

Por sentir vosso sobir

e ver vosso grande censo,

teme o bem o mal inmenso

que de vós se foi seguir.

E do bem e favor vosso,

pois vejo que pouco val,

eu m’ arredo quanto posso,

pois vos conheço por tal.

571

DO CONDE DO VIMIOSO A
TRES DAMAS QUE SE FORAM
ŨA NOITE DO SERAM.

Rifam do Conde.

É rezam que vos lembreis,

pois ver-vos nam nos deixais,

senhoras, que perdereis

as vidas que nos tirais.

Sua.

E nam que possa ja ser

que d’ outrem sejam vencidas

mas porque por vos nam ver

as havemos por perdidas.

Seraa bem que vos lembreis

do que nisso aventurais,

que nós nam perdemos mais

que quanto nisso perdeis.

Outra sua.

Que posso dizer de mi

que chegue ao que sento,

pois por ver-vos me perdi

e depois que vos nam vi,

vi dobrado perdimento?

Que com isso vós folgueis,   

pois sois a que o causais,

lembre-vos que perdereis

a vida que me tirais.

De Jorge Barreto.

As vidas seram perdidas,

nós seremos os guanhados,

pois que sendo vós servidas

nos livramos dos cuidados.

E se como pareceis,

pareceis e vos mostrais,

ainda nos tornareis

as vidas que nos tirais.

Do Craveiro.

Eu mais que outrem ninguem,

porque nam desesperasse,

queria que vos lembrasse

que sem ver-vos nam ha bem.

É rezam que vos lembreis

e tambem que conheceis

qu’ as vidas nos tirareis,

s’ este caminho levais.

De Manuel de Goios, fim.

Esta vida sendo nossa

nam perdemos em perdê-la,

mas perdemos tudo nela

por perdermos cousa vossa.

Oo, nam nos desempareis,

oo senhoras, nam percais

todo bem que nos fazeis

pois que vendo nos matais!

572

DO CONDE DO VIMIOSO A
ŨA SENHORA QUE EM Ũ
SERAM PÔS OS OLHOS
NŨ HOMEM.

Olhe bem no seu olhar

quem quiser seguir rezam,

qu’ ee sinal do coraçam.

Nas cousas que daa vontade

ela soo tem o poder,

o engano é verdade,

a rezam é o querer.

Tudo vem a parecer

honesto co a paixam

senam o que é razam.

Sua.

Todo ver dos olhos vem,

o olhar é com respeito,

mil cousas parecem bem

por querer, mas nam por jeito.

E em concrusam do feito

lá vam olhos e rezam

onde vai o coraçam.

Sua.

Olhos haa pera culpar

de cousas que nam tem cura,

outros que com fermosura

naceram pera matar.

Guai, de quem haa-de passar

ambas estas no serão,

se nũs soos olhos estão!

Sua.

Se alguem for agravado

dos seus olhos como sam,

assi seja descansado

qu’ acuda a este rifam.

Aires Telez.

Nam tenho outro moor contrairo

nem outro maior amigo,

cos olhos ando em desvairo

e eles nunca comigo.

Que se me vem desejar

de ver alguem no serão

servem logo aa tenção.

Sua.

Mas ũa cousa que folgo       

e me compre de calar

nam posso dessimular

qu’ os olhos m’ acusam logo.

E entam vam-s’ ajuntar

com muito grand’ afeição

e sogigam na rezão.

Sua.

Mas façam no que quiserem,

de tudo lhe dou perdam

por enganos que me dam,

quando ja mos dar nom querem.

Pois quem haa-de desejar,

nam tem d’ outra salvaçam

senam olhos d’ afeiçam.

Luis da Silveira.

Nos olhos ha mil mofinas

por onde rezam nom val,

ja s’ o mal é das mininas

nam tomam nem dam sinal.

Mas s’ algũa embicar

em olhar mal no serão

eu l’ ofereço ũ bordam.

Simão da Silveira.

A gentil dama benquista

pera tudo bem fazer

haa-se de perder de vista

e porem guanhar no ver.

E a qu’ isto nam souber

e seguir openião

traga-a alguem pola mão.

Simão de Sousa.

A rezam é ja perdida,

se s’ o falar nam perdesse,

ind’ eu sei quem s’ atrevesse

achar mais males na vida.

Mas o milhor é calar

e provála concrusam

co fruto qu’ os olhos dam.

Vasco de Foes.

Quem for da minha idade

mal vos pode responder,

que pera saber e poder

ja nam tem senam vontade.

Quando al quero cuidar

ou me parece rezam

nam me deixa mais paixam.

Dom Alvaro d’ Abranches.

Que meus olhos dêm cuidado,

tenho-lh’ o medo perdido,

porqu’ o mais fort’ ee passado

e sofrido.

Mas eu daqui me despedi,

pera nunca com rezam

afirmar minha tençam.

Garcia de Resende.

O primeiro movimento

é dos olhos, quando vem,

e se daa consentimento

o coraçam é jaa bem.

Isto é por mal de quem

ha-de sofrer a paixam

com rezam ou sem rezam.

Sua.

Tenho rezam sem na ter,

tenho vida sem ter vida,

tenho a paga recebida

de meu mal soo polo ver.

Ooh que ditoso perder,

que grande satisfaçam

é perda com tal rezam!

Sua.

Quem bem vir a deferença

verá que digo bem nisto:

que devo fazer pendença

do que dantes tinha visto.

Pois vós fostes causa disto,

meus olhos, meu coraçam,

sofrei, que tendes rezam.

Dom Gonçalo.

Se taqui olhei alguem,

nam cuide ninguem qu’ olhava

senam soo quem me matava.

Quem haa muito que me tem,

quem é meu mal e meu bem,

meus olhos, meu coraçam,

cedo o descobriram.

Manuel de Goios.

Nos seus olhos, nos alheos,

olhe cada ũ por si,

neles vejo eu em mi

o de qu’ eles andam cheos.

E pois meus olhos sam meos

do fim de meu coraçam,

os outros tambem no sam.

Joam Rodriguez de Saa.

Ainda que s’ isto faça

pera m’ a mim soo matar,

quem nam ha-de perdoar

olhos de garça?

Estes nam s’ acham na praça,

mas vê-los-ês no serão,

nunca postos em foam.

Alvaro Fernandez d’ Almeida.

A rezam é menos parte

para s’ homem ajudar dela,

cada ũu pola su’ arte,

todos se perdem por ela.

E pois o qu’ eu tiro dela

sam males sem concrusam,

tire-me Deos a tençam.

Diogo de Melo.

Toda dor que traz cuidado,

quem na bem sabe sentir

mal a pode encobrir,

se dela é jaa tomado.

Nam deve de ser culpado

nenhũ mal do coraçam,

se lho fazem sem rezam.

Sua.

Este soo descanso tem

minha vida sem ter al,

sente tanto o qu’ outrem tem

quanto eu sinto o meu mal.

Nesta vida hei-d’ acabar,

pois tomei a condiçam

de quem faz a sem rezam.

O Estribeiro-moor.

Meus olhos me dam tal vida,

quando meu mal faz mudança,

qu’ a razam nam daa saida

onde falece esperança.

Mas ja queria acabar

e padecer a rezam

a pena do coraçam.

Sua.

Vivi na fee do engano,

o coraçam consentio,

dos olhos me veio o dano,

a rezam me descobrio.

Nam quero meu mal cuidar,

porque sinto tal paixam

qu’ hei gram med’ oo coraçam.

Joam d’ Abreu.

Qu’ eu nam seja pera ver,

tenho olhos com que vejo

que nam pode ver prazer

quem quer grande bem sobejo.

Isto soube conhecer

cos olhos do coraçam

senhora, qu’ est’ ee foão.

Dom Joam de Meneses.

Ũs olhos andam aqui,

que, olhando oo desdem,

nunca passam por ninguem

que nam levem após si.

E alguem cuida que ri,

que traz ja no coraçam

o nome de cujos sam.

Sua.

Sem fazer bem nem mercê,

olha sempre com tal jeito,

que a torto ou a direito

tudo leva quanto vê.

Nam ha nela nenhũ sê

e por maior perfeiçam

ri-se muito da rezam.

Gonçalo da Silva.

Fim.

Meus olhos sam agravados

da vida que têm tomada

e nam podem ser curados

senam com agua rosada,

que nam lh’ aproveita nada,

porque sam de tal feiçam

que me dá muita paixam.

 

573

DO CRAVEIRO DOM DIOGO DE
MENESES AA SENHORA DONA
FELIPA D’ ABREU.

Rifam.

Saiba-se que digo eu

cada dia e cada hora

que nam sam meu,

mas sam todo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Que s’ eu tivera poder

em mim e em minha vida,

nam na tivera perdida

nem me podera perder.

Mas pois triste nam sam meu

nem no serei nenhũ hora,

saiba-se que digo eu

que sam todo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

O Conde de Tarouca.

Sam por ela tam perdido

e por seu gram merecer,

que, a meu ver,

da chaga que sam ferido

jaa nom posso guarecer.

E por isso digo eu

duas mil vezes cad’ hora

que sam sandeu

d’ amores pola senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Jorge da Silveira.

Em todos tendes poder,

todos matais, gentil dama,

os de lonje com a fama,

os daqui co parecer.

Pois isto que Deos vos deu

nos podeis tirar nũ hora,

é sandeu

quem vos nam serve, senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Sancho de Tovar.

Dama de tam grand’ estima

e de tal merecimento

nam na sento

senam soo aquela prima,

que me daa grande tormento.

E porem confesso eu

pera sempre, desd’ agora,

que nam sam seu,

mas da prima da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Dom Francisco d’ Almeida.

Eu vivo tam enleado

com tam mortais desfavores,

que ando maravilhado,

e pasmado,

porque me mato d’ amores.

E pois que ja nam sam meu,

e isto nam é d’ agora,

saiba-se que nam sam seu,

porque sam doutra senhora

que se nam chama d’ Abreu.

Do Craveiro.

Dino de mui grande culpa

deve ser e reprendido

quem se nam vei destroido

e por vós nam é perdido;

eu lhe vejo maa desculpa.

Bem culpado seri’ eu

cada dia e cada hora,

se nam fosse tam sandeu

como sam por vós, senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Joam Anriquez.

Sam ja de todo vencido,

forçado de seu poder

e parecer,

vejo-me, sendo perdido,

ganhado por bem querer.

Vejo-me cativo seu,

acupado toda hora

a dizer que nam sam meu,

senam todo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Dom Felipe.

Pois que al fazer nam posso,

vendo vossa fermosura,

é forçado

apregoar-me por vosso,

pois me deu minha ventura

tal cuidado.

Cuidado nam trazi’ eu

em me namorar agora,

mas mal viv’ eu

se me nam dou aa senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Alvaro Piriz de Tavora.

Quem se decrarou por vosso,

acho eu que se tirou

de muitos danos,

porque eu triste nam posso

chamando-me de cujo sou

haa mil anos.

E assi que nam sam meu,

nem o quero ser ũ hora,

e isto confesso eu

à minha prima e senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Simão de Sousa.

É de tantas perfeiçõoes

que todos os que a vemos

lhe devemos

de dar nossos coraçõoes.

Será primeiro o meu,

que ja nunca tem ũ hora

de descanso polo seu

daquesta nossa senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

De Pero Correa ao Craveiro.

Soes galante singular

e dino de muita fama,

pois em tam fermosa dama

vos soubestes empregar.

Oxala vós fosse eu,

nam digais que vo-lo disse,

que tambem seria seu

se mo ela consentisse.

Outra sua.

Tomastes gentil querela,

se de vós for bem seguida,

milhor é morrer por ela

que por outra dobrar vida.

E dizei, que digo eu,

que naceo muito em bo’ hora

quem perdeo o siso seu

com amores da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Vasco Gomez d’ Abreu.

Fermosura tam sobeja

lhe deu Deos qu’ antre nós

que nam sei quem na bem veja

que nam diga como vós.

Certo é que será seu

servidor desta senhora

quem nam for da que sam eu,

e esta tirando-a fora

todas leva à d’ Abreu.

Pero de Mendoça.

Ũa prima qu’ ela tem

me tirai fora a ũ cabo,

entonces nom dirês gabo

que lhe nam venha mui bem.

E por isso digo eu

que a vio muito em fort’ hora

ũ irmão, que tenho eu,

o parecer da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Francisco de Mendoça.

Do que dizeis nom m’ espanto,

mas como fica ninguem

que nam diga outro tanto

que lhe nam queira mor bem?

E por mim o julgo eu,

que nam fica nenhũ hora

de ser perdido polo seu,

pois brademos desd’ agora

todos juntos por Abreu.

Garcia de Resende.

Quem nam for muito vencido

de seu gentil parecer,

por perdido

se conte e nam por nacido,

pois o al nam é viver.

Que por este m’ houver’ eu

se, como a vi mais ũ hora,

fora meu

e nam logo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Diogo da Silveira.

É de muitas estremada

e de muita perfeiçam

a senhora nomeada

no rifam.

Mas eu triste nam sam seu,

porque sam doutra senhora,

por quem meu coraçam chora

cada hora,

que se nam chama d’ Abreu.

Dom Garcia de Noronha.

Se nam fora conhecer

a senhora sua prima,

pusera a senhora acima

das damas que podem ser

nacidas e por nacer.

Pois a vi e polo seu

me perdi junto nũ hora,

nam me tenhais por sandeu

em nam ser desta senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Francisco de Sousa ao Craveiro.

Que vos mate seu cuidado,

porque viva vossa fama,

antes dela desamado,

pois soes tam bem empregado

caa vindo com outra dama.

Este conselho é o meu,

nam digo mais por agora,

que sam seu

polo vosso da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Outra sua.

Antes me quero calar,

contento-me d’ entender

que sem devino poder

nam se poderaa dizer

quanto fica por falar.

E por isso fico eu

bradando cada me’ hora,

sem ser meu,

e isto saiba a senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Dom Rodrigo de Sousa.

Quem bem tiver na memoria

toda sua gentileza,

é cousa muito notoria

haver por grande vitoria

sofrer por ela tristeza.

Polo qual m’ afirmo eu

que qualquer que se namora

é sandeu,

se nam serve a senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

O Barão.

Se ja nam fora tomado

d’ amor mortal que me tem,

segundo pareceis bem,

cos vossos fora contado.

Mas é tamanho o mal meu,

ũ ano e meio ha agora,

que sam sandeu

por ũa minha senhora,

que nunca me quis por seu.

Diogo Brandam.

Esta tem mais perfeiçam

de quantas no mundo sento,

polo qual, que de paixam

é sofrida com rezam

por seu gram merecimento.

E por isso nam sam eu

pera sempre desd’ agora

nada meu,

por ser todo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Outra sua.

Nesta vida dama tal

creio que nam vio ninguem,

polo qual,

ainda que faça mal,

lhe devem de querer bem.

Pois d’ aqui m’ afirmo eu

que tenha mal cada hora

nam ser meu,

por ser todo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

De Francisco d’ Almada.

Quem quiser levar caminho

de a louvar na verdade,

é saudade,

pois é certo qu’ Agostinho

s’ embaraçou na Trindade.

E pois nisto fui sandeu,

lanço o tal cuidado fora

e confesso que sam seu,

da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Francisco da Silveira.

Acolhamo-nos oo siso,

sejamos cujos devemos,

nam erremos,

pois o al é todo riso,

nam se leixe o paraiso,

d’ hoje avante acertemos.

Nom quero mais ser sandeu

e leixo ja desd’ agora

de ser meu,

por ser todo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

De Joam Fogaça.

Por ela m’ hei-de perder,

porque é todo meu bem,

e hei-de morrer,

por ela hei-de fazer

o que nam fará ninguem.

E por ela digo eu,

pera sempre e desd’ agora,

que nam sam meu,

mas sam certo da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Joam da Silveira.

Ũa lei se fez e disse

de que todos têm querela,

que quem esta dama visse,

em tam gram pena caisse

que se perdesse par eela.

Pola ver me vejo eu

perdido cada me’ hora

sem ser meu,

atee mercê da senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

Fim do Craveiro.

Esta lei foi assinada,

senhoras, com condiçam

qu’ esta seja apregoada,

pois é ja sentenciada

por dama mais envejada

de quantas no mundo sam.

O pregoeiro sam eu

que nam quer leixar ũ hora,

sendo seu,

de me matar a senhora

Dona Felipa d’ Abreu.

574

DE DOM DIOGO, FILHO DO
MARQUÊS, AA SENHORA DONA
BRIATIZ DE VILHANA, A
QUE ELE CHAMAVA
A PERIGOSA.

Rifam.

Nam s’ espera outro remedio

de quem vir a Perigosa

senam vida dovidosa.

Aquisto milhor me vem,

que mal que nam faz mudança

nam ter nenhũa esperança,

este soo descanso tem.

Nam espere outro bem

quem ja vio a Perigosa

senam vida dovidosa.

Outra sua.

Nam quero que possa ser

pera mim vida segura,

tomo por milhor ventura

quanto nesta se perder.

E pois al nam sei querer,

nam é cousa dovidosa

querê-la mais perigosa.

Da senhora Dona Joana de Mendoça.

Por acudir ao rifam

nam sei cousa que nam faça,

até confessar na praça

tudo o que nele vos dam.

E parece-me rezam

que, pois sois tam perigosa,

nam sejais despiadosa.

De Jorge Barreto.

O perigo bem olhado

co vosso folgara bem,

mas achei-me ja tomado

d’ um cuidado

que ja tenho, que me tem.

Deste, senhora, me vem

nam ter vida dovidosa,

mas antes mui perigosa.

De Dom Antonio.

Digo-vos minha tençam

como quem al nam deseja,

porqu’ hei muito grande enveja

aa pena de meu irmão.

E pois tem tanta rezam,

a vida mais trabalhosa

ser-lh’ -aa menos perigosa.

Do Conde d’ Alcoutim.

Pois o vosso mal tomamos

por descanso per’ anos,

remedio dai-no-lo vós,

que o bem nós vo-lo damos.

Senti-o, pois o leixamos

em vida despiadosa,

tam crua e tam dovidosa.

Do Conde de Portalegre.

Este remedio tomado,

se fosse posto em balança,

sobre mui fraca esperança

segura grande cuidado.

Mas é bem-aventurado

quem com vida trabalhosa

escolhe a mais perigosa.

Do Conde de Vila Nova.

De seus remedios nam sei,

sei muito de seu perigo,

que caa se veo comigo

onde me dele apartei.

E quando mais m’ alonguei,

entam vi mais dovidosa

minha esperança enganosa.

Do Baram.

Vosso mal é tam sem cura

que nam deveis d’ esperar

de terdes vida segura.

A que vos der a ventura

essa deveis de tomar.

Devês-vos de contentar

de dama tam perigosa

ter a vida dovidosa.

De Dom Joam de Larcam.

Tornar-se de morte à vida

terá certo quem a vir,

e quanto mais a servir

terá pena mais crecida.

Esta condiçam sabida

tem quem vir a Perigosa,

vida e morte dovidosa.

De Dom Afonso d’ Ataide.

Se fosse em nossa eleiçam

do mal tomar menos mal,

quem quereria fazer al,

vendo tam crara rezam?

Mas olhos e coraçam

nesta vida dovidosa

escolhem a mais perigosa.

Do Contador-mor.

Estes perigos vos dam

terdes tam justa querela,

que quem vos julgar por ela

confessará vossa rezam.

E com esta condiçam,

tende vida trabalhosa

pois que vem da Perigosa.

De Dom Pedro d’ Almeida.

Pera aqui poder viver,

onde se vida nam daa,

o mor perigo que haa

fica ja em ser prazer.

Pera aqui haver de ter

vida menos dovidosa,

seria mais perigosa.

Outra sua.

Nenhũ remedio nam vejo,

que nesta vida, que sigo,

quanto mais certo perigo

mereçe mais o desejo.

Qu’ esperança e mal sobejo

afora ser dovidosa

é muito mais perigosa.

De Dom Luis de Meneses.

Oo que vida tem quem vive

neste mundo sem na ver

nem ouvir nem entender,

mas pois eu esta nam tive

desespero de a ter.

Nem pode ninguem querer

de dama tam perigosa

senam vida dovidosa.

De Luis da Silveira.

Mui maao remedio vos vejo

e vós pior o buscais,

qu’ esperança nam tenhais,

quem tem tam alto desejo

nam deve de querer mais.

Nem creo eu que ninguem

queira da gram Perigosa

mais que vida dovidosa.

De Dom Rodrigo Lobo.

De tam grande e tal cuidado

est’ ee o bem que s’ alcança:

perder homem esperança

e ficar ele dobrado.

Vivei vós desenganado

com vida tam perigosa,

que val mais que dovidosa.

Outra sua.

Estaa mui aventurado

quem tam alto fantesia,

pois se mete num cuidado

que quanto mais aprefia

se vei mais desesperado.

Engano desenganado

é a vida dovidosa

em poder da Perigosa.

De Simão de Sousa.

Tormento que atormenta assi

por amor de quem se sente,

remedeo do mal presente

se pode chamar aqui.

Se se vio, eu nunca vi,

servida despiadosa

tam doce, tam perigosa!

Outra sua.

O que se na vida mais preza,

que se na vontade mais traz,

esta é a que mais mal faz

e a de menos firmeza.

A vida por gentileza

seja a da tam perigosa

por ahi nam haver grosa.

De Simão de Miranda.

O remedio dos vencidos       

é a causa de seu mal,

sendo com’ esta qu’ ee tal

qual nunca viram nacidos.

Guanham-se de bem perdidos

os que com vida penosa

se chamam da Perigosa.

De Joam Fogaça.

Quem louvar e quem disser,

mui grande verdade diz

e nam se engana,

que nam ha i igual molher

à senhora Dona Briatiz

de Vilhana.

Polo qual nam ha remedio

a cousa tam perigosa,

nem ha molher tam fermosa.

De Sancho de Sousa.

Senhora, quem eu servira

contente d’ atormentado,

dando vida por cuidado,

se a lei o permetira,

vosso mal por bem sentira,

que de vida perigosa

é a minha desejosa.

De Dom Jeronimo.

Meu mal remedio nam tem,

a dor disto é desigual,

mas em mim nam ha mais bem

que esperança de seu mal.

Se m’ esta tençam nam val

em cousa tam perigosa,

Deos a faça piadosa.

De Joam Rodriguez de Saa.

A quem se meteo em bando

antre perigo e rezam

mais val viver desejando

duvidas, que vam volando,

que ter certezas na mão.

Qu’ em tamanha oupiniam

a vida mais dovidosa

é a menos perigosa.

Outra sua.

Que remedio tomaria

quem me a mim preguntasse,

isto lhe conselharia:

que perigo por melhoria

de dous estremos tomasse.

E se a vida aventurasse

a ser triste e trabalhosa,

fosse pola Perigosa.

De Joam da Silveira.

Tomai a minha vontade

esta vida por avença,

porque na gram deferença

quem arrecea a verdade

nam quer esperar sentença.

Bem compre qualquer detença,

qualquer cousa dovidosa

em vida tam perigosa.

De Nuno da Cunha.

As duvidas que nos dais,

cada hora em nossas vidas,

eu as tinha bem sabidas,

senhora, em vossos sinaes.

Em vossos sinaes mortaes

em que nam vi dovidosa

minha vida perigosa.

De Pero do Sem.

Nam m’ atrevo a gabar

tal primor e prefeiçam,

cuidar, ver e contemprar,

porque dar vida e matar

pode-o com a tençam.

Pois quem dará aqui remedeo

d’ escapar aa Perigosa,

senam ela tam fermosa?

Outra sua.

A ela nos socorramos

a ela nos entregamos

e a ela soo peçamos

que nos guarde de seus danos,

pois mal lhe nam merecemos.

E, s’ o contrairo queremos,

nam nos seraa piadosa

mas antes mui perigosa.

D’ Antonio da Cunha.

Gram perigo é nam na ver,

mas o que de a ver s’ alcança

é viver sem esperança

de jamais poder viver.

E se vida poder ter

o que vir a Perigosa,

será triste e dovidosa.

D’ Alvaro Fernandez d’ Almeida.

O remedeo é incerto

e a perdiçam segura,

mas quem dela está mais perto

este tem milhor ventura.

Porque a dor desta fegura,

que seja mui perigosa,

tambem é muito fermosa.

De Dom Francisco de Sousa.

Esta duvida era jaa

haa muitos dias sabida,

mas a que tem minha vida

esta nunca se diraa.

Porem isto saberaa

que é pera mim piadosa

quem na fizer dovidosa.

De Dom Francisco de Viveiro.

Est’ ee o cabo dos louvores

que a dama se podem dar:

minha senhora a louvar,

sendo a maior das maiores.

Oo que primor de primores    

ũa dama tam fermosa

louvar a gram Perigosa!

Outra sua.

Novos modos de dizer

se deviam de buscar,

pois que Deos pera a fazer

trabalhou polos achar.

Devem-se de contentar,

os que têm vida penosa,

ser a causa a Perigosa.

De Garcia de Resende.

Quem na vir nam perde ver

senam de si maao pesar,

pois tem certo o padecer

e a paga do perder

soo com vê-la se pagar.

Mas guai de quem s’ afastar

de ver cousa tam fremosa,

que seja tam perigosa!

Outra sua.

Por nam cair em certeza,

nam falo na fermosura,

em manhas nem gentileza,

pois daqui atee Veneza

nam naceo tal criatura!

Minh’ alma tem ja segura

minha vida perigosa,

minha fee nam dovidosa.

De Dom Alvaro d’ Abranches.

Isto se me deve crer

polo que tenho sabido,

depois de tanto sofrido,

que me faz tam triste ser

quanto ledo ser perdido.

Polo qual é mor remedio

morrer pola Perigosa

que ter vida dovidosa.

De Dom Alonso Pacheco.

Pera vos louvar milhor

nenhũ louvor vos nam sento,

que vos nam venha pior

que novo merecimento.

Ha mester novo louvor,

nem queirais outro maior,

que de serdes tam fremosa

vos acham tam perigosa.

Da senhora Dona Maria de Bobadilha.

Isto nam mo agardeçaaes,

porqu’ isto vos ham-d’ achar:

que o que mais vos louvar

vos fica devendo mais.

Nem queirais outros sinais

de serdes tam perigosa

senam serdes tam fremosa.

Fim de Dom Diogo.

Este remedio que temos

bem vejo quam caro custa

e, que a vida aventuremos,

por ser por cousa tam justa,

é gram rezam que a demos.

Porque mui pouco perdemos

em vida tam dovidosa,

pois é pola Perigosa.

575

DE DOM JOAM MANUEL,
CAMAREIRO-MOOR.

Desejo muito saber

de quem foi leedo algum dia

que cous’ ee esta alegria,

porque nunca a pude ver.

Andei ja dias e anos

pol’ achar, vou-m’ a perder,

sofrendo coitas e danos,

acho sempre desenganos

que me nam leixam viver.

Desespero de prazer,

sam tam fora d’ alegria,

qu’ em que ma amostrem de dia

nam na hei-de conhecer.

Pedr’ Homem.

Ũs dizem qu’ estava caa,

outros que vem de Castela,

em poder d’ ũa donzela

de que nunca s’ haveraa.

A outros ouvi dizer

qu’ esta senhora sabia,

com muito pouca alegria,

muita tristeza fazer.

Anrique Correa.

Certefico-vos, senhor,

isto nam saia daqui,

que nestas festas a vi

a ũ meu competidor.

Será rezam de a ter,

eu nam vo-lo juraria,

mas juro que nam vi dia

que visse menos prazer.

Dom Nuno.

Vejo-vos, senhor irmão,

eu nam sei se tendes dama,

vir chorando do serão

e dar cem voltas na cama.

Nas damas nam ha prazer,

eu por isso todo o dia

se s’ ela no campo cria,

cuidai que a hei-de ver.

Francisco da Silveira.

Todos meus dias perdi

em buscá-la,

Castela, França corri,

outras mil terras que vi,

sem achá-la.

Mas per lá ouvi dizer

que neste reino dond’ ia

ficava toda em poder

de quem nam na merecia.

576

DE PERO DE SOUSA RIBEIRO
AA SENHORA DONA MARIA
DE MENESES, ESTANDO
PARA CASAR.

Em tudo nova maneira

tomou meu bem d’ acabar,

em levantando a bandeira,

comprio logo de baixar.

Que perder a liberdade

que tinha quem a mim tem

nam sei como nem por quem

a tantos faz crueldade.

E guerra grande, inteira,

qu’ a mim haa-de guerrear,

pois fui levantar bandeira,

que comprio logo abaixar.

Sua.

Sei o mal do casamento, 

porqu’ ũa vez ja casei,

tenho dor, tenho tormento,

porque nam no encantoei.

A cousa vai de maneira

que se nam pod’ escusar,

e eu levantei bandeira

que rezam manda abaixar.

O Camareiro-moor.

Nam parti com boas aves

e com pee ezquerdo entrei,

pois achei males mais graves

de quantos fantasiei.

Estou na mais derradeira

maa ventura, que cuidar

se pode, pois a bandeira

ja nam hei-d’ alevantar.

O Prior do Crato, Dom
Diogo d’ Almeida
.

O mundo é destruido,

ja nam ha i mal nem bem,

tudo se perde por quem

a mim leixa tam perdido.

Fremosura tam guerreira

como nos podeis leixar?

Ou que seraa da bandeira

que me mandais abaixar?

Outra sua e fim.

Se nam confirmasse El-Rei

a tença que lh’ ee pedida,

porque ficasse empedida

esta lei tam contra lei,

seria grande maneira

pera se tudo enlear

e quem abaixou bandeira

torná-la-ia a levantar.

577

DE PEDR’ HOMEM,
ESTRIBEIRO-MOOR
D’ EL-REI.

D’ hoje avante quem quiser

que lhe queira mal alguem,

diga-lhe que lhe quer bem.

E por i nam haver grosa,

nam entendam todos isto,

senam em dama fermosa,

descreta e graciosa,

porque desta sam malquisto.

Porque a que nam tiver

estas tres como ela tem,

quiça que quererá bem.

De Dom Fernando de Meneses.

Porque disto me temia,

m’ encobri o mais que pude,

mas nunca me Deos ajude

se o certo nam sabia.

E por isto quem quiser

que lhe vaa mal com alguem

sirva a quem eu quero bem.

De Jorge d’ Aguiar.

Porque tal m’ aconteceo

com foam,

que servi des que naceo,

mas des que me conheceo

nunca mais me foi mui sam.

E por isso quem quiser

que lhe vaa mal com alguem

diga-lhe que lhe quer bem.

De Arelhano.

Se quereis em Portugal

que vos vaya bien d’ amores,

servi a quem quiserdes mal

e vereis venir favores.

E por esso el que quisiere

favores sacar d’ alguem

fingindo le quiera bien.

Dom Garcia d’ Alboquerque.

Mostrai, se quereis tirar

da dama algum bem querer,

que a nom quereis oulhar

nem ond’ ela está estar.

Vê-la-eis por vos perder

e, se nom quereis fazer

e lhe quiserdes gram bem,

nam vo-lo quererá ninguem.

Outra sua.

Disto som escarmentado

pois triste por mim passou

com verdade namorado,

sem ũ hora ser mudado

de quem morte me causou,

e folgou

de me ver assi morrer

por lhe querer grande bem,

moor que nunca quis ninguem.

De Francisco da Silveira.

Fim.

Nisto nom haja debate,

ante todos seja crido

que quem quiser d’ arremate

grande bem sem ser fengido,

este tal será perdido.

E por isso quem quiser

d’ amores querer alguem,

fengido lhe queira bem.

578

DE JORGE DA SILVEIRA
A ŨU PROPOSITO.

Minha vida nam é vida,

coraçam nom me repousa

com desvairos d’ ũa cousa.

Meus olhos desejam ver

o que minh’ alma queria,

mil mortes na fantesia,

qu’ isto desvia de ser.

Assi que nam tenho vida,

coraçam nom me repousa

com desvairos desta cousa.

Simão da Silveira.

O que quero, o que desejo,

nam no ouso de saber,

porqu’ hei medo do que vejo

e arreceo o qu’ ha-de ser.

Porem queria-a dizer:

tem tanto medo esta cousa,

que sair de mim nam ousa.

O Craveiro.

De dous males desiguaes

me vejo tam combatido,

que perco todo sentido

sem saber nem ter sabido

que mal destes me doi mais.

Com ambos me nam leixais,

coraçam nom me repousa

com desejar ũa cousa.

Luis da Silveira.

Eu cuidei qu’ era passado

ja meu mal e meu tormento,

e é vento,

que sinto novo cuidado

de mui velho pensamento.

Oo novidades de vida,

eu nam sei quem viver ousa,

desejando grande cousa!

Dom Alvaro de Noronha.

Descanso nam no espero,

de tudo desesperei

como me determinei,

nem faço a vida que quero

nem me quer a que tomei.

A ventura seguirei,

qu’ ee mui perigosa cousa

fazer homem o que nam ousa.

Simão de Sousa.

O qu’ ee bom pera viver

é mao pera quem nam vive,

de quantas más vidas tive

esta soo mo fez saber.

Que maa vida de soster

é a de Simão de Sousa,

com desvairos d’ ũa cousa.

De Vasco de Foees.

A vida que tenho agora,

essa hei sempre de ter,

nem viraa dia nem hora

em que tenha mais prazer.

Desejo de a dizer,

mas meu coraçam nam ousa,

que descubro grande cousa.

Dom Francisco de Biveiro.

Ai que nam posso viver

segundo caminho vejo,

porqu’ o que quer meu desejo

minha ventura nam quer!

E porqu’ isto assi ha-de ser

ja minha vida nom ousa

desejar nenhũa cousa.

Outra sua

Vossa grande perfeiçam

m’ haa forçado que vos ame

e vossas obras tais sam

que mandam que vos desame.

Em tal ponto minha vida

posta é, que nom repousa

com desvairos d’ ũa cousa.

Dom Garcia de Noronha.

Em meu mal estaa meu bem,

perdi-o em Almeirim,

ja nam tenho mais em mim

cos desastres que me vem.

Oo quam triste vida tem

pessoa que nam repousa,

com desvairos d’ ũa cousa!

Aires Teles.

Vivo triste, despedido

do bem que daa esperança,

desejo fazer mudança

doutra parte confiança

quer que viva como vivo.

Som de todo ja vencido,

coraçam nom me repousa,

com desejo d’ ũa cousa.

Outra sua.

Liberdade fui perder

por guanhar novo cuidado,

mas, s’ eu queria viver

soo um hora sem no ter,

nunca viva descansado.

Porqu’ ee ja tam enganado

meu coraçam nesta cousa,

que nas outras nam repousa.

Duarte da Gama.

O temor demasiado

do mal que por mim s’ espera

me faz que ja o quisera

ter passado.

E faz-me que minha vida

nom descansa nem repousa,

com desvairos d’ ũa cousa.

Garcia de Resende.

Minha vida soo o nome

tem de vida e de viver,

e quem vida quiser ter

o contrairo dela tome,

pola cedo nam perder.

Isto me faz nam dizer

e encobrir ũa cousa,

que na minh’ alma repousa.

Joam Rodriguez de Saa.

Nam ouso de desejar

nem desejo ser ousado,

porqu’ hei medo de tomar,

tomar tam grande cuidado

que me nam queira matar.

Folgaria d’ acabar,

mas meu coraçam nam ousa

começar tamanha cousa.

579

D’ AIRES TELEZ AA SENHORA
DONA JOANA DE MENDOÇA.

A grorea de se perder

que teraa quem vos servir,

qui-la Deos soo descobrir

a quem quis dar mais prazer.

Porqu’ a vida qu’ algũ tem

nam se sente nem padece,

senam segundo merece

a causa dond’ ela vem.

E quem esta puder ter,

senhora, por vos servir,

nam pode pena sentir

que nam sinta mais prazer.

O Barão.

Se com vosso parecer

condições, manhas conseguem,

as outras damas de crer

devem qu’ haveis de fazer

qu’ os servidores as neguem.

E por isso quem tiver

siso deve de fogir

donde nam deixam sentir

a pena que dá prazer.

Francisco da Silva.

O que menos vos conhece

este hei por mais perdido,

porque quem por vós padece,

na groria tem mais havido

do que na pena merece.

E quem por vós se perder,

ser-lh’ -á milhor nam sentir

o gosto de vos servir

pera mais vos merecer.

O Conde do Vimioso.

Se prazer é ser perdido,

grande dita foi a minha,

pois com tanto mal sofrido

me fui perder tam asinha.

Ditoso em me perder,

mas nam pera vos servir,

qu’ outrem tem esse poder

e eu naci par’ oo sentir.

Outra sua.

Eu determino d’ haver

ũa vida emprestada

pera por vós a perder,

porqu’ a minha nam é nada.

Que nam tem tanto valer

pera que possa sentir

a groria, que deve ter,

senhora, quem vos servir.

Alvaro Fernandez d’ Almeida.

Por este contentamento

que decrara este rifam,

quando tiver mais tormento

terei mais satisfaçam.

Que se pode acontecer        

nem que posso ja sentir,

pois que quando me perder

haa-de ser por vos servir.

Manuel de Vilhena.

Esta groria, quem na tem,

posto que folgue co ela,

nam lhe tirará ninguem

o receo de perdê-la.

Em cousa que s’ ha-de ter,

pera mor pena sentir,

nam se pode achar prazer

senam soo em vos servir.

Garcia de Resende.

Quem menos vos tem servido,

tem mais que vos alegar,

pois val mais o mais perdido,

milhor me vem o partido

do perder que do guanhar.

E se me nam quis perder,

senhora, por vos servir,

deveis crer e consentir

que foi por mais merecer.

Francisco de Sousa.

Tres anos ha que sam fora

quatro mil leguas daqui,

donde afirmo que nam vi

nem menos des que naci

tam gentil dama ategora.

E por isto sei dizer

que quem quer que vos servir,

que quanta pena sentir,

se paga só com vos ver.

Diogo de Melo.

Pois nos Deos quis amostrar

em vós todo seu poder

ter sojeito,

devemo-Lo bem de louvar,

se se nam arrepender

de vos ter feito.

Grande mercê quis fazer

só a quem quis descobrir

a groria que é perder

a vida por vos servir.

Joam Rodriguez de Saa.

Mas porem nam na quis dar

tam barato qu’ escusasse

de passar, quem na buscasse,

grandes tormentos d’ amar

antes qu’ a porto chegasse.

Para se poder soster

a groria de vos servir,

deu mal para resestir

a tam sobejo prazer.

Dom Francisco de Viveiro.

Cuidar em dar-vos louvores

é lançar agua no mar,

sem jamais nunca chegar

a vossos grandes primores.

Mas sei que quem bem sentir

fará o qu’ hei-de fazer,

qu’ ee morrer por vos servir

e sem isso nam viver.

Francisco Homem.

Tam grande merecimento,

que rezam leve por guia,

nam vos pinta a fantesia

que lhe dais contentamento.

Mas a groria de vos ver

obriga a vos servir,

sem se poder encobrir

de ninguem mais seu prazer.

Pero Moniz.

Tal rosto e tal fegura

vos foi Deos, senhora, dar

que quem quer que vos olhar

nam tem na vida segura.

Ditoso se a perder,

pois s’ ha-de restituir

a pena qu’ ha-de sentir

co a groria qu’ ha-de ter.

Cabo d’ Aires Telez.

Se eu podesse ganhar

doutra parte cem mil vidas,

seria por vo-las dar

pera as ver tambem perdidas.

Porqu’ ee tam pouco perder

ũa soo por vos servir,

que, por mais grorea sentir,

queria mais vidas ter.

580

DE JOAM DA SILVEIRA
AA SENHORA DONA
MARGARIDA
FREIRE.

Desejo de vos louvar,

mas, quando quero fazer,

tam pouco posso dizer

como se deve calar.

E mais em que possa ser

outro medo mo defende:

que quem isto emprender

dará logo a entender

que cuida que vos entende.

O que nam s’ ha-de cuidar

menos se deve dizer

e por isso eu quero ter

a culpa de me calar.

De Dom Lourenço d’ Almeida.

A quem sobeja rezam

nam pode dessimular

qu’ esta é minha tençam:

quem nam tem comparaçam

nam se pode comparar.

E, se cuido em vos gabar,

vejo que nam pode ser

e quem mais ha-de dizer

haa-se de saber calar.

Do Conde d’ Alcoutim.

Eu quisera-me calar

e nam me pude sofrer

e tambem nam sei dizer

quanto se deve falar.

Assi qu’ aquesta rezão

m’ escusa deste perigo,

mas o qu’ eu aqui nam digo

caa o diz minha tenção.

De Fernam Telez.

Eu bem sei que me seria

de meus males gram conforto,

se visse na fantesia

quem na vida me tem morto.

Mas pois triste contemprar

tam infindo parecer

nam poode ser,

louve-vos quem vos louvar,

qu’ eu nam sei mais ca adorar

e padecer.

Do Conde do Vimioso.

Como quem fala de fora

ousara de vos gabar,

se nam fora

ver-vos eu, minha senhora,

meu cunhado assi matar.

Mas ficou-me de vos ver

tal medo que mais falar

nam ouso nem sei dizer,

que bom calar

é milhor par’ escapar.

Do Conde de Farão.

Quanto temos mais rezam

de louvar o que parece,

tanto menos nos merece

de louvar a condiçam.

Porque soo de a olhar,

s’ esperança s’ ha-de ter,

é de muito mal sofrer

e pouco bem esperar.

De Dom Francisco d’ Almeida.

As mãos vossas têm ja feito

em mim sempre tal louvor,

que em todo seu favor

som sojeito.

Mas porem poss’ afirmar

qu’ este vosso parecer

nom se vio nem s’ ha-de ver

tal cousa pera gabar.

Dom Francisco de Viveiro.

Quem algũ siso tiver

diraa que nam vos gabemos,

pois que saiba o que quiser,

que diga mais que souber,

é nada par’ o que vemos.

E por isso assi cuidar

me calo com soo saber

qu’ o que se deve dizer

era acima de louvar.

De Dom Joam Lobo.

O campo craro se via

ficar por vós ateegora,

se nam fora

a senhora Dona Maria

Anriquez, minha senhora.

Esta soo quero leixar,

pois é soo no merecer,

entam a meu parecer

podeis vós todos levar.

De Diogo de Melo.

Nam posso gabar que queira

as cousas per si gabadas,

mas terei esta maneira:

ir-m’ -ei com Joam da Silveira,

se nam fala nas casadas.

Co ele m’ hei-d’ assinar

sempre neste parecer,

pois que nom posso dizer

o que nam posso calar.

Do Barão.

Todo mal eu adevinho,

porque como vos fui ver

vi o qu’ havia de ser

do triste de meu sobrinho.

Querer-vos homem gabar

é lançar tempo a perder,

qu’ inda que tenho lugar,

nam pode têlo querer.

De Dom Pedro de Noronha.

Nas cousas que grandes são

compre ter mui grande tento,

qu’ onde sobeja rezão

falece o entendimento.

Por isso quem começar

de falar ou de dizer,

haa primeiro bem de ver

quam mal se pod’ acabar.

De Jorge da Silveira.

Naquestas damas que vemos,

vemos grande sobressalto,

porque só no qu’ entendemos

pondelo risco mais alto

ca todas quantas sabemos.

Pois quem podesse chegar

oo qu’ estaa por entender,

aind’ est’ encarecer

era pequeno louvar.

Do Marquês.

Vi tam gram merecimento,

vi tam grande fermosura,

que perdi atrevimento

e ganhei desaventura.

Mas s’ ousasse de falar,

o qu’ eu diria

seria qu’ era heresia

cuidar ninguem de louvar

quem nam pode comparar.

Outra sua.

É pecar no Spirito Santo,

é presunção mui sobeja,

por alto saber que seja,

de o soo cuidar m’ espanto.

Eu nom creio nem creria

que ninguem tal presumisse,

antes cri o que seria

ousadia

d’ heresia, como disse.

De Jorge de Melo.

Quando Deos da gentileza

quis que fosseis vós o cabo,

ordenou qu’ era simpreza

dar-vos gabo.

Tem certo quem vos olhar,

se vos souber entender,

qu’ haa-de ter

pera sempre em que cuidar.

Outra sua.

Vive com dobrada dor

quem ser vosso nom alcança,

e, depois que vosso for,

teraa muito boom senhor

e de si maa esperança.

Quem servir-vos começar

seja certo qu’ ha-de ver,

se nam morrer,

de si cedo mao pesar.

De Manuel de Goios.

Eu nam sei como pagais

nem vos paga quem vos vir,

nem se serve em vos servir,

se fica devendo mais.

Que se quero descontar

da pena ou do prazer,

nam no sei detreminar

qu’ ambas crecem com vos ver.

De Gracia de Resende.

Nam sei quem se quer meter

em cousa tanto sobida,

que antes que a saida

lhe dê nem nada disser,

o faraa ensandecer.

Quem tal cuidado tomar,

se nam tiver tal saber,

como tendes parecer

e merecer,

faraa bem de se calar.

De Vasco Gomez d’ Abreu.

O que vir milhor de nós

e mais vos quiser gabar,

dir-vos-ha que vós soes vós,

e entam pode cuidar

que nam ha mais que falar.

E se maneira buscar

outra mais ou quiser ter,

haa mester que seu saber

como vós nam tenha par.

De Joam Fogaça.

A muito s’ atreveria

quem cuidasse,

por muito que vos louvasse,

que diria

a vossa galantaria.

Porque quem em vós falar

pode muito bem dizer,

sem errar,

que soo Deos tem o poder,

senhora, de vos louvar.

De Dom Fernando d’ Ataide.

Pois triste tam soo fiquei

de minha passada dor,

vós soes a que louvarei,

vós soes a que tirarei

em qualquer outro louvor.

Mas ha nisto de pagar

o vosso boom parecer

na vida qu’ hei-de viver,

qu’ ele soo m’ ha-de tirar.

De Luis da Silveira.

S’ esta senhora vos veio

mostrar seu parecer,

foi porque houve Deos receo

de O ela preceder

e a lá quisesse ter.

E pera lá nam leixar

lembrou-lhe qu’ ouvio dizer

dous santos: — Mal parecer

pera oulhar,

quanto mais pera adorar

e pera crer.

De Tristam Fogaça.

Sem tirar ninguem afora,

senhora, nisto me fundo:

que quantos haa neste mundo

vos devem ter por senhora.

E quem tam cego andar

qu’ isto bem nam entender,

o que mais vir nam é ver,

que ver se possa chamar.

De Vasco de Foios.

De quem se tanto gabar

que disser

que nam é em seu poder

louvar-vos nem vos louvar,

bem no podem reprender.

Que saber que sabe nada

conhecer-se sem poder

i isto tanto saber

ca ind’ estaa por nacer

pessoa tam acabada.

Por isso quem vos oulhar

a vosso gram parecer

nam compre rezam buscar,

que por fee se deve crer.

581

DE JORGE D’ AGUIAR, APAR‑
TANDO-SE DOS AMORES.

Amores, desd’ hoje mais

nam me conteis

por vosso nem me queirais.

Nam quero nojos que dais

nem quero vossas mercês.

Deixo vossas esperanças

vãas e sem nenhũ repouso,

deixo-vos, porque nom ouso

sofrer mais vossas mudanças.

Nam m’ hajais por vosso mais

nem mo chameis.

Amores, pois que sois tais,

nam quero nojos que dais

nem quero vossas mercês.

Ajuda de Francisco da Silveira.

Lembra-me que vos servi

muito e mui de verdade

e com quanta lealdade,

e por isso me perdi.

E pois que tanto matais,

nam me culpeis

de nam ser ja vosso mais,

e pois tantos nojos dais,

nom quero vossas mercês.

De Dom Joam de Meneses.

Se vos servi algũ hora

da sogeiçam em qu’ estava,

nam quero mais que ser fora,

porqu’ agora

sei quam mal o empregava.

E por isso nunca mais

m’ acolhereis

de ser vosso, pois matais

com tantos nojos que dais

qu’ ante nom queira mercês.

Do Coudel-moor.

Quem podeer tanto consigo

precure sa liberdade,

mas eu nam posso comigo

nem posso mudar vontade.

Com todo mal que façaes

nem me fazeis,

amores, sempre jamais

nam quero nojos que dais,

pois me podeis dar mercês.

D’ Anrique d’ Almeida.

Por me tirar desta briga

de quem mal ouço dizer,

quero servir ũa amiga

qual milhor me parecer.

Senhora, laa ond’ estais

perdoareis,

se disser que quero mais

à saudade que me dais

ca d’ outrem cem mil mercês.

582

DE SIMÃAO DE SOUSA À SENHORA
DONA BRIATIZ DE SAA.

Quem quiser saarar o mal

que doutra molher tiver,

oolhe a que lh’ eu disser.

Por que s’ haa-d’ oulhar rezam,

por ela s’ ha-de perder

e s’ haa-de ter sojeiçam

onde pode milhor ser.

Ó perdiçam de prazer

pera quem olhos tiver,

ó molheres, que molher!

O Barão.

Como saarará meu mal

quem folgou de mo fazer

e folga de me perder,

cuidando que pode ser,

devendo de cuidar al?

E por mais certo sinal,

enquanto vida tiver,

nom verei outra molher.

Jorge da Silveira.

Bem vejo o risco que corro

naqueste meu cativeiro,

mas sam seu tam verdadeiro,

qu’ inda que me dêm dinheiro

nam quero dele ser forro.

Venha-me mal sobre mal,     

venha-m’ o que me vier,

venha por esta molher.

Do Conde do Vimioso.

A vista qu’ ha-de salvar

tudo se perde por ela,

por isso nam sei cuidar

s’ ee mor perigo oulhar,

se moor dita conhecê-la.

Mas sinto qu’ estaa em vê-la,

com quanto mal me fizer,

minha vida sem na ter.

Dom Rodrigo de Crasto.

A tristeza que se tem

co as condições da minha,

bem pode matar asinha,

mas nunca leixar ninguem.

Assi que quem se quer bem

e algũu prazer quiser

fuja daquessa molher.

Gonçalo da Silva.

Se fora no mal passado,

vosso conselho tomara

e podera ser qu’ achara

este remedio provado.

Mas quem estaa apartado

de mal e o nom quiser,

nom veja essa molher.

Aires Telez.

De meu mal ja desespero,

porqu’ ha nele gram desvairo,

faz-me bem o que nam quero

e quero o que m’ ee contrairo.

E sei qu’ o mor adversairo

que minha vida tiver

será ver ũa molher.

Dom Pedro d’ Almeida.

O remedio do cuidado,

que m’ a mim pode sarar,

nam estaa em bem oulhar,

porque vem de mal olhado.

E quem disto for tocado,

guarde-se do qu’ eu fizer

e olhe quem lh’ eu disser.

O Capitão da Ilha.

A hora hei por perdida

que passo sem na oulhar,

vendo-a me custa a vida

que m’ outra nom pode dar

nem tomar.

Porque se nom pod’ achar

quem tanto poder tiver,

senam em quem eu disser.

Joam da Silveira.

Nam tem remedio meu mal,

comprir-s’ -á sua ventura,

porque par’ ela ter cura

haa-se d’ achar outra tal.

E por mais certo sinal,

quem outra cousa disser

mostrar-lh’ -ei ũa molher.

Simão da Silveira.

Mil mortes d’ ũa figura

sem lembrança da que tinha,

por m’ acabar mais asinha

m’ ordenou minha ventura.

É mui impidosa cura,

cada ũ dig’ oo que quiser

e deixe-m’ ũa molher.

Garcia de Resende.

Os olhos que se puserem

firmes em seu parecer

livrar-s’ -am de quem quiserem

mas dos seus nam pode ser.

Meus olhos, pois fostes ver

quem vos nam vê nem vos quer,

sofrei quanto vos fizer.

Outra sua.

Quem na vir nam veraa mais

outra pessoa nacida,

quem nam na tem conhecida

dou-lhe dela estes sinais:

que daa sempre triste vida,

nom presta tê-la servida,

porqu’ a quem mor bem lhe quer

deixa mais cedo perder.

Dom Joam Lobo.

Se fosseis ja conhecida,

pois curais mal em mudança,

qu’ em ter esta confiança,

Ataide, minha vida,

nam posso ter esperança.

Est’ ee a que me faz mal,

se remedio me nam der,

nam mo dê outra molher.

Dom Joam de Meneses.

As aves que mudam mal

o bom caçador ordena

como mudem sua pena

e se cubram doutra tal.

Mas corre risco mortal

da nova que lhe vier

e guai de quem na tiver!

Outra sua.

E quem pode com ajudas

mudar-se coma falcam,

perde a pena de Simão

e fica Simão e Judas.

Vêm-lhe penas tam agudas

que sobe quam alto quer,

mas guarda de Lucifer.

Dom Alonso Pacheco.

Pues do yo perdi la vida

alguno piensa bevir,

em ser más de mi servida

no la quiero deservir.

Elha causa mi partir,

otra me fará bolver

a morir en su poder.

Dom Alvaro de Noronha.

Nos males em que ha cura

todo beneficio val,

mas o mal qu’ ee immortal

quem lhe remedio procura

perde todo o cabedal.

Quem quiser ver o sinal

do que digo assi ser,

olhe o que lh’ eu disser.

Dom Alvaro d’ Abranches.

Isto nunca vio ninguem,

por isso nam sei dizer

nem estaa no conhecer

saber certo donde vem.

O moor descanso que tem

quem este meu mal tiver

é nam saber entender.

Joam Rodriguez de Saa.

O mal que tenho sofrido

de sofrer e encubrir

nom se cura com sentido,

porque naceo de sentir.

Disto soo lhe pode vir

o remedeo e, quem mo der,

é muito mais que molher.

Dom Luis de Meneses.

Porque sei qu’ hei-de guanhar,

folgaria d’ apostar

ũa muito grande cousa:

qu’ o que diz Simão de Sousa

nam tem Deos mais qu’ arranhar.

E quem disto dovidar,

deixe quem ele quiser

e olhe quem me nam quer.

Francisco de Brito.

Cuido eu em quem seraa

a que tanto poderaa.

Acho qu’ ee a que me tem,

sem me fazer nenhũ bem

que me ja nunca faraa.

Nisto se conheceraa,

mas, quem descanso quiser,

fuja de a conhecer.

Dom Gonçalo de Castel Branco.

S’ ousara de nomear,

ja tevera dito quem

me pode dar com olhar

saude, que de ninguem

atequi quis aceitar.

Por todo meu mal guardar

a saarar, quando disser

o nome desta molher.

Francisco de Sousa.

Ũa me parece bem,

nam sei se dizeis por ela,

que se bem quiserdes vê-la,

nam vos lembraraa ninguem.

Tanta jentileza tem,

tam fermosa é, quando quer,

qu’ ee muito mais que molher.

Vasco de Foes.

Meu senhor Simão de Sousa,

deixar-m’ -ia antes finar

sem fazer nenhũa cousa

que convosco me curar.

S’ algũu tempo tanto mal

m’ ham meus olhos de fazer,

nam nos quero, s’ haa-de ser.

Outra sua.

Se fosseis com’ eu ferido,

da vida desesperado,

vós terieis o cuidado

que tenho de mi perdido.

Por isso curar meu mal

nam é bem nem pode ser

nem tenho olhos par’ o ver.

Do Estribeiro-mor.

Ó quem podera tomar

o conselho do rifam,

mas é mui mal desejar.

O mal de meu coraçam

foi ter sogeita a rezam

da vontade, que me quer

com seus enganos perder.

De Badajoz.

Non tengo por buen concerto

el remedio que me dais,

que com lo que vos sanais

con esso bivo yo muerto.

Mas sé vos dezir de cierto

que yo fuelgo de lo ser,

por ver su gram merecer.

De Simão de Sousa.

Nam ha i tempo passado,

senam presente e por vir,

pera sentir

meu mal qu’ estava guardado,

que tanto tardou em vir.

Quem no qu’ os meus olhos vir,

qu’ ele estei no que quiser,

faraa o que eu fizer.

Outra sua e cabo.

Falei soo do poder seu,

sem falar no mais que tem,

tambem do nam poder meu

oulhar jaa outrem ninguem.

E se i houver alguem

que dovide no que digo,

eu lho provarei mui bem

comigo.

583

DE SIMÃO DE MIRANDA AA
SENHORA DONA BRIATIZ DE
VILHANA, ACONSELHANDO‑
-LHE QUE SE GUARDE DE
SOBERBA E DESPRE‑
ZAR NINGUEM.

Fortuna, sortes, maao fado,

sempre vêm pola soberba

ou por quem muito despreza

qualquer mal-aventurado.

Da soberba vem cahir

do mais alto no mais fundo,

guarde-se quem neste mundo

folga mal de bem ouvir.

Quem cahir neste pecado,

nom se fie em gentileza,

porque quem muitos despreza

seu valer é desprezado.

Do Conde do Vimioso.

Qual vos eu quisesse mais

nam no sei determinar,

com a soberba matais,

mas tambem, se dela usais,

é começo de pecar.

Pois cahirdes em pecado,

remiraa nossa tristeza,

da soberba e crueza

nam se queixe o desprezado.

Dom Alonso Pacheco.

Nam me salva a rezam

sendo perdido por ela,

mas meu mal e perdiçam

tudo bem s’ emprega nela.

Eu dou por bem empregado

em mim toda a tristeza,

porque na minha firmeza

se descansa meu cuidado.

De Simão de Sousa.

Ahi nam ha salvaçam

sem ũa pouca d’ homildade,

quem tivesse piadade,

teria mais perfeiçam.

Mas vejo bem mal julgado

que daa por males firmeza

e esforçar-se a crueza

sobre quem tudo tem dado.

De Garcia de Resende.

Artigo de nossa fee

é nam desprezar ninguem

e fazer a todos bem,

segundo cada ũ ee.

Emparar desemparado,

oo triste nom dar tristeza,

aos firmes ter firmeza,

esperar desesperado.

De Joam Rodriguez de Saa.

Que disso sintais paixam

nom vos deveis d’ espantar,

que dos anjos é pecar

em soberba e presunçam.

Nem cuideis de ser vingado

do que faz sua crueza,

que perder a gentileza

nom se segue de pecado.

De Simão de Miranda, por‑
que vio a cantiga na cabeça
da Senhora Dona Joana
de Mendoça.

Seja a cantiga adorada,

senhores, que o nam mereça,

nam ela, mas a cabeça

onde ontem foi mostrada.

Esta nam teraa pecado

d’ enveja nem de soberba,

pois nam pode a natureza

dar-lhe mais do que lh’ ee dado.

584

DE SIMÃO DE SOUSA AA SENHORA
DONA GUIOMAR DE MENESES.

Vossa graça e parecer

vai, senhora, de maneira

que deve, quem quer viver,

de fazer por vos nam ver,

ahinda qu’ ele nam queira.

E deve-se d’ entender

em quem vos nam tenha visto,

porque depois de vos ver

nam se pode fazer isto.

Que quem vos bem conhecer

e vos vir, que Deos nam queira,

nam pode leixar de ser

vosso enquanto viver

nem viver doutra maneira.

Do Comendador-mor d’ Avis.

Vosso nome e fermosura

sam duas cousas iguaes,

porque melhor m’ entendaes

ũa delas daa tristura,

a outra penas mortaes.

Assi qu’ a meu parecer,

o vosso é de maneira

que quem leedo quiser ser

nam deve nunca querer

ver-vos, ahinda que queira.

Do Barãao.

Nam sei em que siso cabe

perder tempo em vos gabar,

pois no que tam bem se sabe

se nam deve de gastar.

Porem quem me quiser crer

deve de buscar maneira

que nam moira sem vos ver,

que sem isso nam morrer

é morte mais verdadeira.

Do Conde do Vimioso.

Louvar vossa perfeiçam,

gabar-vos ofensa é

se nam fosse a tençam

porque, se mingua rezam,

senhora, sobeja fee.

Para a pena por vos ver

desejo de ter maneira,

porque sem isto viver,

se vida pudeesse ter,

nam sei para que se queira.

De Dom Joam de Castel Branco.

Se vos eu vira, senhora,

antes de ter o mal meu,

ja desd’ entam ategora

minha vida se me fora

ou m’ eu fora pelo seu.

Mas por quem me vejo ser

perdido, sem ter maneira

de me poder repender,

me faz ousar de vos ver

e fará em que nam queira.

Luis da Silveira.

Tomaria desta dor,

pois o remedio é tal,

sofrê-la por menos mal

que curar co qu’ ee pior.

Este é o meu parecer

e é ja em que nam queira,

e quem bem quiser saber

quam mal se pode sofrer

pregunt’ a Luis da Silveira.

Simão da Silveira.

Onde sobeja rezam,

o louvor é escusado

e falo sem afeiçam

sendo bem afeiçoado.

Porqu’ o vosso parecer

nos obriga de maneira

que quem vos houver de ver

o haa sempre de fazer,

ainda qu’ ele nam queira.

O Craveiro.

Infindas cousas diria,

senhora, a este rifam,

se nam fosse, porque sam,

da senhora Dona Maria.

E contudo a meu ver,

vós pareceis de maneira

que quem vivo quiser ser

arrede-se de vos ver,

ahinda que Deos nam queira.

Manuel de Goios.

Nam espero de tomar

o conselho do rifam

e o que m’ haa-de custar,

quero por satisfaçam.

Porque soo pera vos ver

me compre buscar maneira,

tudo o al s’ haa-d’ esquecer

e que al podesse ser

nam entendo quem no queira.

Garcia de Resende.

Tem mui certo quem vos vir

nam querer ver mais ninguem

nem desejar outro bem,

senam pera vos servir.

Por isso quem quer viver,

trabalhe por ter maneira

de vos ver,

que morto polo fazer

é a vida verdadeira.

Tristam Fogaça.

Quem teraa saber que gabe

tam alto merecimento

nem siso pera qu’ acabe

dizer o que disso sabe,

que nam perca mais o tento?

Porqu’ a graça, parecer

é, senhora, de maneira,

que deve, quem quer viver

contente de si, fazer

por vos ver, em que nam queira.

Outra sua.

Se vossa mercê servida

de mim fizesse memoria,

nam sei cousa que na vida

houvesse por mor vitoria.

Porqu’ a graça, parecer

é, senhora, de maneira,

que deve sempre viver

bem triste, sem vosso ser

servidor tee derradeira.

Dom Alvaro d’ Abranches.    

Eu devo de ser sospeito

pola vida que tomei,

contudo nam leixarei

dizer o que disso sei

por esse mesmo respeito:

que vos nam poderaa ver

ninguem que tenha maneira

de poder leixar de ser,

por tal graça e parecer,

sandeu, inda que nam queira.

Cabo de Simão de Sousa.

Senhora, qu’ aqui vejais

a tençam de cada ũu,

nam fica de nós nenhũu

que se nam cale co mais.

Eu sam logo o primeiro

qu’ o mais leixei de dizer,

mas nam ja o derradeiro

que vos soubess’ entender.

585

DE GARCIA DE RESENDE A ŨU
PROPOSITO EM QUE FEZ ESTE
VILANCETE A QUE TAMBEM
FEZ O SOM.

Coraçam, coraçam triste,

triste coraçam, coitado,

quem vos deu tanto cuidado?

Vede bem o que fizestes,

ond’ andastes, que ouvistes,

quem vos tem, a quem vos destes,

que calais, que descobristes.

Que foi isso que sentistes,

que vistes, triste, coitado,

que vos deu tanto cuidado?

De Dom Alvaro d’ Abranches.

Quem mo daa nam me consente

que lhe possa chamar seu,

e pois doutrem se nam sente,

este mal todo é meu.

Eu nam culpo quem mo deu,

senam se m’ haa por culpado

de viver neste cuidado.

Dom Joam de Meneses.

Oo cego, que quem vos cega

nam vos quer nem vós a mim,

donde vem que nossa fim

bem e mal tudo s’ emprega.

Negais-me por quem vos nega,

fico eu bem aviado,

engeitado d’ engeitado.

Outra sua.

Vem meu mal de tanto bem

que se paga com se dar,

quando mais me descansar,

se veraa donde me vem.

Este soo descanso tem,

qu’ a poucos é outorgado,

que moiram deste cuidado.

Joam da Silveira.

Quem em meu mal dovidar

ou tanto nam poder crer,

compre-lhe par’ o saber

nam preguntar, mas olhar.

E logo pode julgar,

se nam for afeiçoado,

quem daraa tanto cuidado.

Simão de Sousa.

Dos olhos oo coraçam

vem o mal qu’ o meu padece,

o cuidado dá rezam,

que se nam vê nem conhece.

Onde tudo desfalece,

coraçam desenganado

nam vive mui descansado.

Dom Pedro d’ Almeida.         

A pena qu’ ee sem rezam,

por mais dor de quem a sente,

de matar nam é contente,

mas consente

na vida pera a paixam.

Esta é sua tençam:

dar a vida a ũ coitado,

s’ ee vida de moor cuidado.

Joam Rodriguez de Saa.

Quem meu cuidado tomou,

quem nem cuidar me nam deu,

inda mais acrecentou

ao mal que me causou

negar-lh’ o nome de seu.

Consinto que seja meu

soo por nam ser devulgado

o segredo do cuidado.

Alvaro Fernandez d’ Almeida.

O coraçam, quando tem

cuidado sem outro mal,

parece rezam igual

perguntar donde lhe vem.

Mas o meu, qu’ ee sempre triste

e tam mal afortunado,

tem por descanso cuidado.

Aires Telez.

Nam sei nenhũa rezam

nem na ha em quem vos destes,

para os males que quisestes,

para a vida que vos dam.

De toda satisfaçam,

coraçam desenganado,

quem vos deu tanto cuidado?

Tristam da Silva.

Quem vos deu tanto tormento,

coraçam, em nam sentir

e nam poder descobrir,

segundo o mal que vos sento.

Que nam sei qual sofrimento 

possa ser tam esforçado

qu’ encubra tanto cuidado.

Manuel de Goios.

Se vos nam quer quem quereis

e vos isto doobra as dores,

sabei-o, se nam sabeis,

qu’ est’ ee manha dos amores:

oos desleaes dar favores

e oos perdidos cuidado,

sem lembrar o mal passado.

Dom Gonçalo.

Quem vos fez tudo leixar,

por quem vos pondes em fim,

quem vos fez nam vos lembrar

de vós mesmo nem de mim?

Quem vos fez ò galarim

sofrer todo mal dobrado,

quem vos deu tanto cuidado?

Francisco de Sousa.

Nam me pena, coraçam,

a pena de que penais,

porque vós vos contentais

tê-la por satisfaçam.

Mas ser ela de feiçam

que é mal-aventurado

quem descobre tal cuidado.

Garcia de Resende e cabo.

Que farei, qu’ hei-de sofrer

o vosso mal e o meu?

Polos olhos irem ver

padecemos vós e eu.

Mas que quem tal vida deu

nam tenha dela cuidado,

tudo é bem empregado.

586

DE DOM JOAM DE MENESES A
ŨA DAMA QUE REFIAVA
E BEIJAVA DONA
GUIOMAR DE
CRASTO.

Senhora, eu vos nam acho   

rezam para rafiar

e beijar tam sem empacho

Dona Guiomar,

salvante se vós sois macho.

Se o sois e nam sois dama,

é mui bem que o digais

e tambem deve sua ama

nam querer que vós jaçais

soo com ela em ũa cama.

Confessai-nos que sois macho

ou que folgais de beijar,

que doutra guisa nam acho

rezam de antrepernar

tal dama tam sem empacho.

Ajuda de Fernam da Silveira.

Dous gostos podeis levar,

senhora, desta maneira,

pois sabeis de tudo usar:

ser macho pera Guiomar

e femea pera Nogueira.

E por isso nam vos tacho,

antes vos quero louvar,

nos trajos em que vos acho

podereis vós emprenhar

outra molher como macho.

Dom Rodrigo de Castro.

Lancem-vos fora do paço,

ou vos levem a Lixboa

ou vos dêm outra machoa

com que percais o raivaço.

Lancem-vos ũ barbicacho

ou vos mandemos capar,

porqu’ outra forma nom acho

pera poder escapar

Dona Guiomar,

pois s’ afirma que sois macho.

Dom Pedro da Silva.

Pera parecer donzela

cousas tendes bem que farte,

mas chamardes vós muela

a beiços de dama bela

nam vos vem de boa parte.

D’ hoje avante nom me agacho

nem mais hei assi d’ andar,

mas com mui gentil despacho

vos hei-d’ ir arregaçar

e oulhar,

se sois femea ou macho.

Fernam da Silveira, o Regedor.

Com estes tratos d’ amor,

com estes beijos maa hora

vos nom ham ja por senhora,

mas por ũu fino senhor.

Tambem trazês ũu recacho

e ũ som de galear,

que beijais tam sem empacho

Dona Guiomar,

que vos ham todos por macho.

Outra sua e cabo.

Ũa mui estranha cousa

se ruge caa antre nós,

porque laa convosco pousa

Dona Joana de Sousa,

dizem qu’ ee prenhe de vós!

Tambem diz cũ mochacho

vos foi nam sei quem topar!

Havei eramaa empacho,

mandai ũ deles cortar

ou tapar,

e ficai femea ou macho.

587

D’ ANRIQUE D’ ALMEIDA PAS‑
SARO AA BARGUILHA DE DOM
GOTERRE, QUE FEZ DE
BORCADO,ENDEREN‑
ÇADAS AAS DAMAS.

Nom hajais por maravilha

o preguntar donde vos vem

quererdes saber que tem

Dom Goterre na barguilha.

Quant’ eu devinhar nam posso

como deemo isto dizeis,

se vos ele deixa o vosso,

vós oo seu que lhe quereis?

Par Deos, é gram maravilha

que tem de fazer ninguem

co que tem ou que nam tem

Dom Goterre na barguilha!

O Coudel-moor.

Barguilha de falso peito,

reboloa,

quando vem a ser no feito

nunca boa.

Faz amostra e grã parada,

porque toda a casa peje,

se acha quem lhe rabeje

sai-vos tam envergonhada

e encurtada,

entam buscai quem peleje.

E fica toda d’ um jeito

a pessoa,

porque s’ enganou no feito

d’ arralhoa.

Dom Alvaro d’ Ataide a esta cantiga.

Sobrinho, de meu conselho,

pois debaixo nam jaz nada

senam um triste folhelho,

nom te faças dominguelho

por bragada.

Ca se jouver no teu leito

putarroa,

achar-t’ -aa tam encolheito

e do nembro tam tolheito,

qu’ iraa maa e viraa boa.

Ferram da Silveira a esta cantiga.

Segundo a tençam minha,

quem barguilha assi guarnece

quer soprir com louçainha

o que por obra falece.

E o que nisto sospeito

e caa soa

é que nam é pera feito

tam mixilhoa.

Cantiga sua a esta barguilha.

Cavalheiros de Castilha,

vós qu’ estais em Freixinal,

vinde ver ũa barguilha

a Portugal,

do filho do Marichal.

É de bom borcado raso

qu’ eschameja como brasa,

e é gram caso

sair um homem de casa

com barguilha toda rasa.

Mandai lançar em Sevilha

um pregam que seja tal:

Dom Goterre fez barguilha

cordeal,

vinde-a ver a Portugal!

O Coudel-moor a esta cantiga.

O fidalgo de linhajem,

filho de pai mui honrado,

é de ũa tal carnajem

que sem mais fazer menajem

vos vem jaa desnaturado.

Com recheos de pontilha,

raspa, lãa e isto tal,

faz ũ cume de barguilha

tam mortal

que mao grado a Sandoval.

Joam Correa a esta cantiga.

Todalas cousas provistas,

sem mais grosa,

polos quatro Avangelistas

nestas vistas

nom vem cousa tam pomposa.

Mas nam é grã maravilha,

em caso que venha tal,

ser um sonho da barguilha

ainda mal,

porque tudo é papassal.

Dom Rodrigo de Castro a esta cantiga.

Irei eu daqui a Roma

por ver isto que se diz,

meteras-lh’ o teu nariz

e siquer fizera soma,

ora toma!

Porque s’ aqueste barguilha

nesta festa do Natal

que jaa vai a Bobadilha

de Freixinal

nova dela e que tal.

Dom Pedro da Silva.

Quem te vir o teu borcado

e te for buscar o centro,

achará grande toucado

e chico recado dentro.

Em nenhũ reino nem ilha

nunca se vio trajo tal

com’ esta tua barguilha,

por teu mal,

mui vazia do ilhal.

Dom Alvaro d’ Ataide.

Barguilha de gram valia,

chea de lãa ou de pena,

por nom andares vazia

enche-te de carne ajena

ou t’ encherei de la mia.

Fizeste d’ ũ mao retalho

de borcado, feito em tiras,

pera pequeno tassalho

grande outeiro de mintiras.

Pelo qual logo ordena,

como nom ande vazia,

enche-a de carne ajena

ou t’ encherei de la mia.

Letreiro d’ Anrique d’ Almeida aa barguilha.

Aqui jaz o encurtado

que o mundo mal logrou,

aqui jaz quem nom pecou

contra Deos ũ soo pecado.

Aqui jaz quem nunca sono

fez perder a seu senhor,

aqui jaz quem a seu dono

nunca fez vender penhor.

Ponhamos-lhe por ditado,

pois tam maa vida passou:

Aqui jaz quem nom gostou

deste mundo ũ soo bocado!

O Coudel-moor ao letreiro.

Aqui jaz quem sempre jaz

dormente, mas nunca dorme,

leixem o viver em paz,

pois que jaz e nunca faz

de si forma em que enforme.

Aqui jaz quem sem comer

jaz em som mais que de farto,

aqui jaz sem se mover,

que jaz fora de poder

de matar ninguem de parto!

Dom Goterre por si às damas.

Assi me veja eu em Beja

muito aa minha vontade,

com’ isto vai com enveja,

mas nam jaa por ser verdade.

Senhoras, por meu repairo,

a quem nisto dovidar

eu lhe espero de mostrar

o contrairo.

588

DOM JOAM MANUEL A ŨAS PAN‑
CADAS QUE DEU Ũ TIPRE A Ũ
TENOR E ABADE, EM PAGA
DOUTRAS QUE LHE JA
DERA, ENDERENÇA‑
DAS AO DUQUE
DOM DIOGO.

Ũa musica, senhor,    

ouvi de que m’ espantei:

o tipre contr’ o tenor

cantarem: Aque d’ El-Rei!

Mas o tipre nam cantava

nem aguardava compasso,

o tenor mais que de passo

suas vozes altas dava.

O rifam: Aque d’ El-Rei!

A copra: Por Deos, senhor!

A torna: Moiro de dor!

O vilancete nam sei.

Manuel Godinho.

Porque jaa o abadam

co tipre nam acordava

fa, ut, tipre co bordam,

o tenor por cantochão

um descanto que soava.

O vilancete, senhor,

depois do Aque d’ El-Rei,

diz que dizia o tenor:

Qu’ eramaa vo-las eu dei.

Jorge Moniz.

O nosso tipre medrou

e tornou-se atabaqueiro,

o tenor mui mais vozeiro

do que soia cantou.

A cantiga escutei

e nam dizia o tenor

donzelha por cuyo amor,

mas sin vergonça con temor

Aque de Deos e d’ El-Rei!

Fernam Godinho.

Ooh que alto contraponto

e que baixa tam rastreira,

que encontro de tincheira,

que assentar de pesponto!

O solfar ficou menor,

segundo que certo sei,

oh quem vio pena maior,

tam grande como passei?

Tristam da Cunha.

O tipre nom aguardou

que fossem buscar estante,

como vio o tenor diante,

di avante

a musica começou.

Amor yo nunca pensé

descantava o tenor,

que tu levasses o milhor

fasta aora que lo sé.

Pedr’ Homem.

O tenor desacordava,

mas o tipre, por ser boom,

algũas vezes errava,

porque se nas costas dava

nam soava

e ficava em somitoom.

Peroo cantou o tenor,

depois do Aque d’ El-Rei,

nunca foi pena maior

que saber mão de cantor,

pois a mão do quanto sei.

O contador Luis Fernandez.

Sobre tres altas em supra

vi meter ũa terceira

assaz baixa na trincheira,

per modo de voz quadupra.

Caio com elas o tenor,

de maneira que cuidei

que os brados do cantor

deziam: Aque d’ El-Rei!

Joam de Montemoor.

Nunca tal cantor s’ achou,

segundo caa vai soando,

o que quem sobrepojou,

pois que quadupra cantou

quatro por ũa levando.

Meteo porlação maior

seis que terceira seis que sei

que lhe deram grande dor,

com as quaes cantou, senhor,

tres vezes Aque d’ El-Rei!

Rodrigo Alvarez.

Quando ouvi tal mistura

de vozes cuidei que era

pois com sobra de tristura

mi vida se desespera.

Quando a eles cheguei,

dizia o tipre: — Senhor,

se fogires, matar-t’ -ei!

E respondia o tenor:

— Aque de Deos e d’ El-Rei!

Bertolameu da Costa.

Nunca tipre assi cantou

de tal modo cantochão,

nunca jamais o errou

enquanto o tenor achou

cuidai que nom deu no chão.

Desacordava o tenor,

o tipre vos jurarei

que lhas pegou do teor

que vos em cima contei.

Rui Lopez.

De vós e de mim queixoso

o tenor ouvi cantar,

de vós, porque sois forçoso,

de mim, que sam tam gotoso

que nunca pude apildar.

A copra polo rumor

fee dela vos nam darei,

o vilancete, senhor,

certo foi Aque d’ El-Rei!

O Craveiro.

Setent’ anos ha que vivo,

mas eu nunca vi tal canto,

nam vi tipre tam esquivo,

nem vi dar tam gram quebranto

qual deu o tipre oo tenor

naquela rua d’ El-Rei,

que sem duvida foi maior

qu’ oo qu’ em Tangere levei!

Afonso Rodriguez.

Mangones, deeste pancadas

e Lopo bem te zopou

que se bõoas as levou,

aosadas,

que nam menos tas pegou.

E pois levaste sabor

em lhe dar as que eu sei,

comporta-te com a dor

do negro Aque d’ El-Rei!

Outra sua.

Creo que nunca s’ achou

cantiga de tal maneira

qual este tipre acertou:

todo um pão escodeou

ao tenor na caaveira.

Tive por morto o tenor,

na vontade o soterrei,

senam quando o vi, senhor,

que bradava Aque d’ El-Rei!

Duarte d’ Almeida.

O tipre vi que cantava

altas vozes: Mata, mata!

No tenor assi soava

a oitava como a quarta.

Era o cantar, senhor,

mais forte do que cuidei,

dava-s’ oo deemo o tenor,

dizendo com grande dor:

— Nom me val Deos nem El-Rei!

Rodrigo de Magalhães.

Quant’ eu nunca vi tal canto

nem tal rogido de vozes

e o de que mais m’ espanto

é ver que soava tanto

o compasso como as vozes!

E quando mais me cheguei,

ouvi cantar o tenor:

Cata que bom pagador

é, senhor, das que lhe dei.

Fernam de Crasto.

Quando vi ter oo tenor

um pontinho na meetade

da coroa d’ outra cor,

assentei caa na vontade

qu’ era porlação maior.

Cuidei qu’ era o Anos Dei

que cantava este tenor

da missa do L’ om’ armey,

senam quando ouvi, senhor,

dar brados Aque d’ El-Rei!

Gonçalo Gomez da Silva.

Quand’ oos brados acudi,

dizendo-vos a verdade,

o tenor cantar ouvi:

Et in terra paos a mi

deram de boa vontade.

Cheguei-me entam oo tenor:

— Como estais? — lhe preguntei.

E respondeo-me: — Senhor,

nesta terra nam ha i rei!

Lionel Rodriguez.

Nunca vi tal acertar

de tipre des qu’ aqui ando,

nem tenor tam mal cantar,

porque logo em começando

começou desacordar.

O que dezia escuitei

e vi cantar o tenor:

Com mortal sanha m’ irei

mostrar oo corregedor.

Afonso Valente e cabo.

Ũa sincopa ouvi

repartida por tal modo

e o que nela senti

no tenor a conheci

por ser a parte de todo.

A proporçãao mesurei

por diapasam que sei,

contando bem seu valor,

e do tipre ao tenor

doze compassos achei.

589

DE NUNO PEREIRA A ŨA DAMA,
DA MANEIRA QUE LHE HAVIA DE
GUARNECER ŨA MULA EM QUE
FOSSE, PARTINDO-SE EL-REI
PAR’ À BATALHA A FAZER
O SAIMENTO D’ EL-REI
SEU PAI, ETC.

Meus olhos e minha vida,

d’ hoje mais m’ havei por vosso,

vós sereis de mim servida

nesta ida,

senam s’ eu nada nam posso,

de mula e guarnimento

e sombreiro de guedelha,

que vós laa no saimento,

antre cento,

nom vejais vossa semelha.

Ũ macho vos tenho havido,

que traz Pero de Queiroos,

se o rabo for comprido,

desmedido,

dar-lh’ -emos ũ par de noos.

Qu’ ele nom seja perfeito

e as pernas tenha mancas,

ee besta de mui bom jeito,

e seu feito

é saltar em cima d’ ancas.

Todos sam azurradores

estes muus que assi sam,

se forem os servidores

maos andadores

a vooz dele seguiram.

Gabam-no de boom choutar

e praz-me por vós bem irdes,

mas se muito revelar,

ex apupar,

afora quando cahirdes.

Os guarnimentos d’ Irlanda

feitos de manto de Frisa,

do de Vasco de Miranda

tal qual anda

por nos mais matar de risa.

E será a funda da seela

de bancal com arvoredo,

e des i ex a burreela

com a donzela,

tal que ja agora hei medo.

A sela seraa mourisca

a deste mouro das pazes,

e eu vejo quem se chisca

da gram trisca

e da grita dos rapazes.

Mas vós ireis embuçada

d’ alfareme de cendal,

de tres moços aguardada,

mui olhada,

pois nom vai nenhũa tal.

Os moços iram vestidos

de pelotes gironados

mui largos e mui compridos,

guarnecidos

de tarramaques bordados.

Cada ũ sa carapuça

de gualteira com penacho,

cada um com sua chuça

e vós murça,

refoufinhando no macho.

Emnovar bem me queria

antr’ estoutros cortesãos

com cirios de confraria,

e mataria

encanados e nam sãaos.

E pois is bem arraiada

com tam gram prosperidade,

é bem que vades cantada

e levada

com levade ora levade.

Hei-de fazer o partel,

castelhanos dizem prato,

muitos coscorões com mel,

atee fartel

nam de galinhas nem pato.

E por fruita das castanhas

das colharinhas da Beira,

porque causam boas manhas

mui estranhas,

pera convidar praceira.

Cabo.

Por mercê querei, senhores,

com ajudas m’ acudir,

pois sabeis que sam amores

e servidores

que querem damas servir.

Ajuda dos galantes de algũas
peças que lhe ainda falecem
pera a partida e começa
logo Dom Goterre
.

Seete varas de bragal

senhora, vos dou por touca,

porque em todo Portugal

nem em Arouca,

nam acharês outra tal.

Mantilha color de telha

como costumão na Beira,

e, por vos dar a conteira

más inteira,

levai peloina vermelha.

Senhora, minha irmãa

vos manda per’ eesta ida

um par de luvas de lãa

de Covilhãa,

por serdes dela servida.

E pois s’ esta cousa atiça,

nam seria cousa feea

tres voltas de linguiça,

ou souriça

oo pescoço por cadea.

O Conde de Tarouca.

Senhora, pois que tecido

esqueceo nesta receita,

eu vos mando ũ d’ empreita,

que de Ceita

me trouverão guarnecido.

E pois is per’ aa Batalha       

a seer neste saimento,

ũs alforges com bitalha

que nemigalha

levai por avisamento.

Outra sua.

Nam seria muito mal,

se nam levasseis burel,

ũ chouriço por firmal,

qu’ em Portugal

nam ha tam doce joel.

Levareis por gargantilha

ũa gentil reste d’ alhos,

que seraa gram maravilha

em Sevilha

achar taes pendericalhos.

Jorge d’ Aguiar.

Joeira velha, quebrada,

levarês por açafate

de redor encanelada,

remendada

d’ um çambarco tal que mate.

E seraa bem guarnecida

do que pertenc’ oo caminho,

porque vades bem servida

e percebida

e me nam chameis mezquinho.

Outra sua.

Dou-vos mais ũa salsinha

pera ajuda da jueira,

d’ ũa coor garcesazinha

ou chichorrinha,

mas nam ha-de ser inteira.

E ũ pentem enredado

com seu vinagre e azeite,

per mil partes desdentado,

escadeado,

tal que lendem nam engeite.

Outra sua.

Ũ estojo com tanaz

e tisoiras e navalha,

porque se guedelha traz

e mester faz

que nam fique nemigalha.

E por verdes s’ is gentil,

com’ eu creio qu’ is oo cabo,

dou-vos espelho fendil,

que antre mil

vos julguem por qual vos gabo.

Do Conde de Vila Nova.

Pois tantas cousas levais,

eu dou-vos ũa guirlanda

e dar-vos-ei alvarais

com que hajais

ũa egua ruça panda.

Que o macho na jornada

vos ha logo de cansar,

porque nam come cevada

quasi nada,

e podeis a pee ficar.

Outra sua.

Se vos egua falecer,

buscareis o vintaneiro,

que logo faça trazer

e correger

um mui valente sendeiro.

Pera isto mostrareis

meu alvara, que levais,

e, se o nam der, tomareis

e trar-m’ -eis

estormento do qu’ achais.

Dom Joam de Meneses.

Levareis por almofada

ũ mui grande camareiro,

em que vades assentada,

perfumada,

pera vós de lindo cheiro.

Levarês de paao espora

soo ũ gram chapim d’ honesta,

os dedos dos pees de fora,

por agora

vos vades milhor da feesta.

Outra sua.

Dou-vos mais por servidores

dous diabos principaes,

e beijá-los por amores

dos favores

sej’ oo moor que lhe façais.

Por vos nam ver em trabalho

co eles nem alvoroço,

levarês dous dentes d’ alho

num chocalho,

por reliquias oo pescoço.

Outra sua.

Por fazer cousa ennovada,

irês oo reves na sela,

oo rabo mui bem pegada,

escanchada,

faça quem quiser burrela.

Tambem vos quero avisar

que leveis rebuço posto

polos nam desnamorar,

e guardar

que vos nam vejam no rosto.

Dom Rodrigo de Meneses.

Ũ cabresto enrodilhado

levai oo redor que mate,

almoface nele atado

com noo dado

tal que nunca se desate.

E daqui tee à Batalha,

vós e o macho comereis

dos farelos com da palha

ou nemigalha

e de noite ambos jareis.

Outra sua.

Levareis mais sobraçada

borracha chea de vinho,

a que deis gram topetada,

mui bem dada,

se cansardes no caminho.

Çarrar-vos-eis co que digo

e fazei por ser vermelho,

e havê-me por voss’ amigo,

Dom Rodrigo,

pois vos dou tam bom conselho.

Joam Rodriguez Pereira.

Vosso arreio vai inteiro,

bem ireis a Deos prazendo,

e eu dou-vos ũ pandeiro

alcancareiro,

que leveis na mão tangendo.

E dou-vos ũa crespina

de chaparia de latam,

porque sois dama mui fina

e bem dina

pera mais do que vos dam.

Afonso de Carvalho.

Por escusar zombaria

de galantes e donzelas,

o que milhor vos seria

é freiria

d’ Aaveiro, mas nam das Chelas.

Leixai vestidos e mula

e tod’ este mao repairo;

eu vos dou ũa cogula

per’ eescapula

deste vosso maao fadairo.

Diogo Moniz.

Ja vos nam falece al,

voss’ arreo vai machucho,

e eu dou-vos ũ atafal

dadival,

com estribo de capucho.

E se retrancas farpadas

quiserdes levar de caa,

de vossas cores bordadas,

debrumadas,

levai-as, tanto me daa,

e arralhaa.

Dom Fernando.

Dou-vos tavoas concertadas

e dou-vo-las de cortiça,

quebradas e remendadas,

mal atadas,

com atilhos de tamiça.

Porque quando vós sobirdes

nelas pera cavalgar,

vos vejamos, se cairdes

e descobrirdes,

o desonesto lugar.

Francisco da Silveira.

Segund’ is aparelhada

de tudo o que me parece,

pera vos nam minguar nada,

d’ abastada,

aquisto soo vos falece:

oo pescoço campainha,

por servidor Marramaque,

falar muito ant’ a Rainha

com bespinha

e sacudir ũ grão traque.

Outra sua. Fim.

O cheirar a raposinhos

seria cousa galante,

rimaria cos fucinhos

nestes caminhos

qu’ havês d’ andar d’ hoj’ avante.

Ireis toda d’ ũu jaez,

aas outras fareis enveja,

falaram de vós em Fez,

e mais de dez

fareis rir de vós em Beja.

590

DE DOM GOTERRE AOS GIBÕOES
DE FERNAM DA SILVEIRA E DOM
PEDRO DA SILVA, QUE FEZE‑
RAM DE BORCADO COM
MEAS MANGAS E CO‑
LAR DE GRAAM.

Sempre vivam suas famas,

destes jibões que fizestes,

com que tanto prazer destes

eestas damas.

Polo qual me dam cruzados,

mil presentes de lacõoes,

por lhe dar bem apodados

o vosso par de gibõoes,

do teor destes colhõoes

abrasiados.

Dom Rodrigo de Castro.

Eu disse qu’ eram corais

deles coma de centolas

ou bicos de tarambolas

ou d’ algũas aves tais,

ou pernas, pees de perdizes,

qual quiserdes destas tres,

ou os vermelhos narizes

de Jam Garcês.

Outra sua.

Senhores, se me tomais

as d’ onça de Pero Feo,

elas foram mais d’ arreo,

mas nam jaa tam cordiais.

Temos grandes presunções,

andamos mui abalados

de ter tam bem apodados

o vosso par de gibõoes

aguiarados.

O Coudel-moor.

Mais que francelha

andam os gibõoes maneiros

e decem, nam referteiros,

a ezcarlata que semelha

coor de telha.

Ũ pouco mais efaimados

do outro que se desdoura,

os gibõoes aguiarados

filharam polos costados

ũa toura

daquestes perros fanados.

Mas pardelha

assaz andam de roleiros,

pois decem a custureiros

d’ ezcarlata mal vermelha,

cor de telha.

591

DE DOM RODRIGO DE MON‑
SANTO AO MONGI COM
CAPELO DE DOM MAR‑
TINHO DE TAVORA.

Que nam venha bem a pelo,

eu venho bem espantado

de ver ũ mongi forrado

com capelo!

Era de pardo forrado,

vestido mui cortesão,

feito bem de sobremão

com mangas todo çarrado.

Cheguei-me por conhecê-lo

com mui bom dessimular

e nisto fui-lh’ enxergar

um capelo!

Por vos descobrir a cousa

e vos nam irdes em vão,

este era o filho meão

de Rui de Sousa.

Vi-lhe mui crespo cabelo,

vi-lhe vestido forrado

e fiquei maravilhado

do capelo!

Foi-lhe por mim preguntado,

por nam ir assi barrãao:

— Que nome lhe tendes dado

eeste vosso gabinardo

d’ ũa tam nova feiçam?

Respondeo-me com maa zelo:

— Senhor, é mongi forrado!

— Pois eu veijo-lhe pegado

um capelo!

Pero de Sousa Ribeiro.

Eu fiquei bem espantado,

se vistes bem amarelo,

d’ achar Tavora culpado

em capelo.

Eu estou tam mal sentido

que vos nom posso dizer

quanto me deu de prazer

ver um tam rico vestido.

Quem mo desse ainda vê-lo,

para ver

como se pode meter

o capelo.

Sua.

Que graça foi saber eu

que o pedio emprestado

e mui fino penhor deu,

ficando porem guardado.

D’ hoje mais lhe ponho o selo

de meu parente nom ser,

pois partio a socorrer

com capelo.

592

DE DOM RODRIGO DE MONSAN‑
TO A LOURENÇO DE FARIA, DA
MANEIRA QUE MANDAVA A
Ũ SEU ESCRAVO QUE
CURASSE ŨA SUA
MULA.

Lourenço comprar

pastel de pam alvo,

dizend’ oo escravo:

— Querer jaa chofrar.

Escravo com medo:

— Senhor, chofrarei.

Lourenço azedo:

— Asinha, Dom Perro,

azpera molei!

De Joam Fogaça.

— Senhor, mi alçar

cuberta de rabo

vós estar diabo         

com tanto mandar!

— Cam arrenegado,

eu te matarei!

— Sem rabo lavado

e cono chofrado,

m’ hei-d’ ir para El-Rei!

593

DE DOM RODRIGO DE CRASTO E
FERNAM DA SILVEIRA E JOAM FO‑
GAÇA A JOAM GOMEZ DA ILHA,
PORQUE VIRAM Ũ CAVALO
COM ŨAS ALCALADAS E
SOUBERAM QUE ERA
SEU E QUE ERA
VINDO ELE
DA ILHA.

Polas vossas alcaladas

soubemos qu’ ereis chegado,

as quaes nam sejam mostradas,

mas caladas,

por nam ser de voos falado.

Ca desta terra o zombar

é tam bravo e tam forte

que quem dele escapar

ha-de passar pola morte.

Ora sem nenhum receo,

por noss’ amor e respeito,

nos dizei do voss’ arreo

se foi na Ilha confeito

coma feito.

Ca vos juramos pardez

que vos nam veio d’ aalem,

que tal feiçam de jaez

nam se traz em Tremecem.

Reposta de Joam Gomez polos consoantes.

Pois vos parecem erradas

as tenções de meu cuidado

e per trovas mui delgadas,

bem trovadas,

sam per vós desenganado,

em vós me quero louvar

peroo que pena soporte,

posto que de motejar 

eu haja onze por sorte.

Por um parecer alheo,

mais que quantos vi perfeito,

meu jaez fermoso ou feo

foi na Ilha contrafeito,

de seu jeito,

aa guisa de Miquinez,

a for de mouro focem,

das onças passa de dez,

todas mociças d’ argem.

594

DE FERNAM DA SILVEIRA A DOM

RODRIGO DE CASTRO, PORQUE

TRAZENDO MUITO GRANDE

BARBA POR SEU IRMÃAO

DOM FERNANDO A FOI

RAPAR AA NAVALHA.

Houve ledice sobeja

da nova que me foi dada:

qu’ a vossa barb’ ee rapada

e rasada

que muit’ embora vos seja!

E quero saber primeiro

s’ estava i Joam Fogaça

e se vos disse o barbeiro

em acabando: — Prol faça!

Que assi eu prazer veja,

deveerá ser festejada

a tua barba rapada

e rasada

que muit’ eeramaa te seja!

De Dom Alvaro d’ Ataide.

Para namorar Don’ Ana,

que nam é peca,

compre barba d’ Afonseca

ou dos de Santa Susana.

Polo qual de ti moteja

e estaa mui abalada,

da tua barba rapada

e rasada

que muit’ emboora te seja!

De Dom Goterre.

Nam cureis de tomar vozes,

cuidai se a nam vendeis,

que compriraa qu’ espereis

o tempo dos biaroozes,

que laa vem outra vendeja.

Tende-a bem encrespada,

porque barba penteada

e anafada

no Carmo muito s’ enteja.

O Coudel-mor.

Mandai-a guardar mui bem

e fiai-vos vós em mim,

porqu’ o Corpo de Deos vem

e comprar-vo-l’ -aa Jooquim,

que é velho e parvoeja

e traz ũa jaa çafada

e a vossa penteada,

anafada,

é tal qual ele deseja.

De Dom Pedro d’ Ataide.

Quando me dizem rapada,

eu embuço,

que cuidei qu’ andava atada

no toutuço.

Porem como quer que seja,

quer postiça quer criada,

eu hei por graça sobeja

aa navalha ser pinchada,

arrasada,

que muit’ eeramaa te seja!

Dom Rodrigo de Monsanto.

Eu logo daqui o digo

que s’ alguem for co barbeiro,

qu’ hei-de ser com Dom Rodrigo

atee ficar no terreiro

derradeiro.

Qu’ a navalha foi sobeja,

destemperada,

que rapou toda a papada,

bigodes, mea queixada

e gizou laa pelooreja, 

que muit’ eeramaa te seja!

De Fernam da Silveira e fim.

Que sejamos norte e sul

dizei por vida daleme

se saistes muito azul

dos punhos do alfageme.

Que nam poode ser que seja

senam que cor anovada

vos ficasse da rapada

tam escamada,

que muit’ eeramaa vos seja!

595

DE DOM JOAM DE MENESES, EM
NOME DAS DAMAS, AO CONDE
DE VILA NOVA E A ANRIQUE
CORREA, QUE FIZERAM
CARAPUÇAS DE
SOLIA.

Nam sei mal que nam mereça

quem vos fez tal zombaria,

que vos meteo na cabeça

carapuça de solia.

Se vos enganou Agosto,

somos-lh’ em obrigaçam,

por fazerdes envençam

de que temos tanto gosto

e de vós nam.

E mais diz Dona Maria

qu’ ee rezam que lh’ avorreça

a quem metem em cabeça

carapuça de solia.

De Pedr’ Homem a Anrique Correa.

Se a fizestes por leve,

é pesada,

se por doce, é salgada,

se por fria, é de neeve.

Que a vós nam vos pareça,

nam foi pequena ousadia

quererdes trazer de dia

carapuça na cabeça.

O Conde de Tarouca.

Desse pano e desse forro

eu fizer’ antes pelotes

ou caçotes,

porque por vós eu me corro

de lhe ver dar tantos motes.

Qu’ ee ja tanta a zombaria

e touraria,

qu’ ahinda que mais nam creça

dá-lh’ o vaao pola cabeça

de solia.

Dom Joam a ambos.

Falai com este truãao

qu’ aqui cura de mao aar,

se vo-las pode tirar

assi como levaçam,

e se nam

El-Rei vos manda apartar

antes que mais dano creça,

porque s’ acha em solorgia

que s’ apega esta solia

como bubas na cabeça.

O Camareiro-moor.

Par Deos bem vos soub’ armar

quem em tam pouca solia

vos fez ambos embicar

e cair juntos nũ dia.

Foi tam grande zombaria,

que nunca creo qu’ esqueça,

enquanto i houver solia

ou cabeça.

Sua por Briatiz d’ Azevedo.

Juraria por minh’ alma

que nunca se vio tal jogo,

pois por fogirdes à calma

destes convosco no fogo.

Ainda m’ afirmaria

que nam sei o que pareça

ũu habito de solia

na cabeça.

Jorge de Vasco Goncelos.

Eu nam lhe dou muita culpa,

qu’ alvoroço lha fez fazer,

mas o nam se conhecer,

aquisto nam tem desculpa.

Conheça eramaa conheça

que fez maa galantaria

e quem lhas fez merecia

muitos couces na cabeça.

Manuel de Goios a ambos.

Quem vo-las fez, a verdade,

nam é a ninguem culpado,

pois a vós fez a vontade

e a nós perdei o cuidado.

Este mal vem da cabeça

e meu conselho seria,

porqu’ ao corpo nam deça

que cureis a fantesia.

Sua a Anrique Correa.

Dona Joana me disse

que vos podia dizer

que, se vo-la ela visse,

que se veria morrer.

Diz qu’ haa medo qu’ esmoreça

e jurou-me que queria

antes ver-vos sem cabeça

que com ela com solia.

Jorge Furtado.

Senhores, sem culpa sam

por ser de menor idade,

pera conselhar irmão

tam feito à sa vontade.

Se mal fez, que o padeça,

pois em si tanto se fia,

que meteo sua cabeça

em poder de maa solia.

Antonio de Mendoça.

Irmão que ha-d’ ensinar

os mais moços por mais velho

e que haa-de dar conselho,

para lho homem tomar,

nam haa tam rijo d’ errar.

E bem que nam lh’ obedeça

nem lhe fale mais ũ dia,

pois fiou sua cabeça

d’ ũu covodo de solia.

Outra sua e fim.

E sabeis que lhe custou,

trazendo-a muito pouco,

co ela nada ganhou

e ficou

para sempre dali mouco.

E rezam que o padeça,

pois lhe veio a fantesia

querer trazer na cabeça

carapuça de solia.

596

DE DOM JOAM MANUEL A LOPO
DE SOUSA, AIO DO DUQUE, VINDO
DE CASTELA NO VERAM COM ŨA
GRANDE CARAPUÇA DE VELU‑
DO, QUE OS CASTELHANOS
CHAMAM GANGORRA.

Rifam.

Dessa gangorra faria

ũu gibãao

ou a traria na mão.

É cousa chãa coma palma

que quem vo-la vir trazer

e vós, qu’ haveis de morrer

ũu de riso, outro de calma.

Na cabeça a nam traria

e na mão

traria antes ũu jibam.

Outra sua.

S’ outra tal soma de pano

entrar por Riba de Coa,

receberãao muito dano

os rindeiros daquest’ ano

d’ alfandega de Lixboa.

Mas muito mais perderia

ũ cortesão

em trazer tal envençam.

Do Baram.

Em tempo d’ El-Rei Duarte,

dizem que foram usadas

mui grandes caperutadas,

mas nunca foram dest’ arte.

Polo qual desta reria,

com razam,

que fosse de meu irmão.

Outra sua.

Mas pois qu’ esta feita é,

compre qu’ outra se nam faça

e desta se faça graça

ao porteiro da See,

para trazer co a maça.

E contudo lhe diria

qu’ em Verão

sempre a traga na mão.

Pedr’ Homem.

Saiba todo portugues,

porque tal trajo o nam vença,

qu’ estas vêm d’ ũa doença

que se chama mal frances:

pegou-se da frontaria

a Perpinhão,

morreo logo o capitão.

Outra sua.

Ó gorra de grão valia,

quem t’ a ti bem contemprasse,

inda qu’ em terra t’ achasse,

nunca se levantaria:

à ũa nam poderia,

a outra rezão

preguntem ò de Guzmão.

Rui de Sousa.

Sobrinho, nam vos pareça

qu’ estais em Valhadoli,

caa nam trazem na cabeça   

tres varas d’ azeitoni.

Eu a vós perdoaria,

mas foãao

nam digo quem nem quem nam.

Dom Joam de Meneses.

Quem teus males bem soubesse

e te visse como vi,

dovido que te trouxesse,

ainda que se lhe desse

ũu reino todo por ti.

Que nam te levantaria

Dom Johãao,

em que t’ achasse no chão.

Outra sua.

Quem vio nunca purtugues

que gastasse tanto pano

em ũ tam mao entremes?

Que mais fizera ũ frances

ou castelhano?

Foi mui grande grosaria

e gorra nam

fazer-se tal envençam.

O Conde de Tarouca.

É mui alta e poderosa

por detras e por diante,

seca d’ aar e mui calmosa,

das ilhargas perigosa

pera rirem d’ ũu galante.

Da face dela faria

barquilãao

ou do forro ũu balandrãao.

Outra sua.

Esta gorra me semelha

que devia ser geerada

nũa gram caperotada,

cavalgada

d’ ũu sombreiro de guedelha.

Polo qual a nam trairia

no Verão,

senam se fosse na mão.

Jorge da Silveira.

Nam é trajo de galante

para meter em terreiro,

inda qu’ escuse sombreiro

por soãao nem por levante.

Mas antes dela faria

ũu gabãao,

pois errou de ser jubãao.

Do Conde de Vila Nova.

Ũus perguntam que teraa

de cera, linhas e pano,

mas se me eu nam engano

quatro quintais pesaraa.

Por isso antes traria

ũ piastrãao

na cabeça ou na mão.

Jorge de Vasconcelos.

Porque caa nam se pegasse,

seria muita rezão

quem de Castela chegasse

que na corte nam entrasse,

sem trazer recadaçam.

E disto logo faria

ordenação

de fidalgo atee piãao.

Vasco de Foes.

Nam deve ninguem zombar,

pois faz Deos por milhor tudo,

mas deve-se d’ espantar

qual foi o que foi achar

fazer pasteis de veludo.

Os quaes eu nam provaria

no Veraão,

com medo d’ algum cajão.

O senhor Dom Afonso.

Com’ estara rependido

quem naqui portou primeiro,

fora-lhe melhor vendido

o sobejo a bom dinheiro.

É propia galantaria

de castelãao,

que nunca foi cortesãao.

O Coudel-moor.

Que nam seja de trazer

este trajo com qu’ entrastes

porque é d’ escarnecer.

Tod’ esta corte obrigastes

sobre aposta a nam traria,

nem na mão

té nom passar o Verão.

Sua.

Nam digo ser ardideza

meter em corte real

peça que nam tem igual

em sabor e em grandeza.

D’ ũu quarto dela faria

ũu gibão

e o mais fiqu’ em trufão.

Outra sua.

Renego de louçainha

que consigo traz aviso,

que faz logo volvorinha

com que mata mil de riso.

Em arcaaz a fecharia

com chavão,

tee fazer dela gibão.

Afonso Furtado.

Bem era de recear

tal trajo, se s’ apegasse,

e homem que o louvasse

mais dino de castigar.

Log’ hoje dela faria

ũu gibão,

mas nam ja pera Verão.

Anrique Correa.

Antes que mais dano creça

daquesta negra gangorra,

dêm co xastre na mazmorra.

E a quem na traz na cabeça

outra pena nam daria

senão

que a trouxesse ũ Verãao.

Antonio de Mendoça.

Qu’ em Castela se custume,

em Portugal eu concrudo

que, segundo seu pesume,

fará muito mor velume

de trovas que de veludo.

E por isso a leixaria

a Dom Joam,

que nam mostrasse o rifam.

Dom Martinho da Silveira.

Se riso, prazer nos dais,

a carapuça o padeça

e guardai de a pôr mais,

que perdereis a cabeça.

Venda-se na judaria

e acharão

por ela mais d’ ũu milhão.

Sua em nome dos rindeiros d’ alfandega.

Senhor, mande Voss’ Alteza

tornar-se Lopo de Sousa,

que por causa desta cousa

nam vêm galés de Veneza.

A fama lá chegaria,

e é rezão,

deste grão carapução.

Sancho de Pedrosa.

Esta negra cubertura

menos mal que dizem faz,

pois aquele que a traz

nestes dias tanto dura.

Oo que gram graça seria

castelão

com gangorra no serão!

Anrique Anriquez.

Eu vi ja cem mil maneiras

de trajos bem cortesãaos

e tambem vi cidadãos

vestidos d’ alvas cordeiras.

Mas nam vi nem ver queria

envenção

tam fornida no Verão.

Francisco de Sampaio.

Carapucinhas d’ olão

e barretinhos singelos

seram estes caramelos

que de frio os matarão.

Nam se faça zombaria

e sacaram

outra forma d’ envençam.

Simão de Miranda.

Quem na traz por carapuça

de siso a Portugal,

trouxer’ antes ũa murça

ou mitra pontifical.

Mais honesto lhe seria

ser ladrão,

que ver-lha trazer na mão.

Nuno Fernandez d’ Ataide.

Eu nam sei pera que seja

ũa tam gram diadema,

senam pera na igreja

pendurar antro vos dema.

Que é certo que faria devação

ver ũu tal carapução.

Jorge Barreto.

Nam se poderá fazer

envençam mais a meu grado,

para milhor poder ser,

quem na trouxer, apodado.

Digo que a nam traria

nũu serão,

por me darem ũ milão.

Dom Manuel.

Se trouxerdes no Verão

tres varas de terçopelo,

nam vos ficará cabelo

que vos nam leve na mão.

E crede que nem tanquia

com sabam

mais prestes vos peleram.

Dom Gonçalo Coutinho.

Quando per escaramuças

nam poderam fazer danos

franceses a castelhanos,

lançaram-lhe carapuças.

E com esta sajaria

ficaram

com elas por maldiçam.

Joam Falcam.

A tesoira do judeu,

que cercea mil pelotes,

por dar mais lugar òs motes

ainda nela nam deu.

Da volta soo se faria

ũu faixam

que cercasse o calação.

Dom Joam de Moura.

Gorra de parminias,

segundo as novas qu’ ouço,

eu te farei ũu gamouço

primeiro que tu te vas.

Quem al tem na fantesia

é cibrão

assi com’ eu sam cristão.

Pero Moniz.

Antes me trosquiaria

como anda Vasco Palha,

porque tal galantaria

parece ser zombaria

feita per mão de missalha.

Assi que m’ afirmaria

sem afeição

qu’ a gangorra é de Milão.

Rui de Sousa, o Cide.

Qu’ aqui nam seja defeso,

a ninguem nam aconteça

fiar de sua cabeça

cousa de tamanho peso.

Antes m’ aconselharia,

porque nam

desse com tudo no chão.

Manuel de Goios.

Se Martim Telez vivera,

em Castela nam s’ achara

quem tal cousa cá trouxera,

que o logo nam pagara.

Se a visse, matar-s’ -ia

com sua mão

o bisconde Dom Joam.

Dom Lopo d’ Almeida.

Eu nam sei a quem pareça

que tam poderoso é

que possa ter na cabeça

o corucheo desta see.

Nam creo que poderia

Sansão

trazê-la todo ũ Verão!

Dom Garcia de Castro.

Esta gorra é precedente

a todo trajo galante,

se nam fosse repunante

par’ a saude da jente.

Ja diz Antam de Faria

qu’ em Mourão

morreo delas ũu vilão.

Antam de Faria.

Se nam fosse por pendença,

eu certo nam na traria,

peso com que Dom Garcia

nunca fará reverença.

Porque mais leve seria

o morrião

com qu’ ele foi ter ò chão.

O Marquês.

Eu houv’ outra tal tiara,

quando fui feito marquês,

mas, se tam caro custara,

marquesado nam tomara,

se nam fora em que me pês.

Ant’ outra vez tomaria

Tutuão

que tomar esta na mão.

Desculpa de Lopo de Sousa.

Eu me tenho por sesudo,

pois por nam pagar direito

de seis peças de veludo,

meti em vestido feito.

Ca sem isto o meu metia

em condição,

por mingua de descrição.

Reposta do Conde de Portalegre.

Nam sei tal caso com’ esse

a quem nam pareça mal,

que soo por vosso intaresse

danes todo Portugal.

Cal lá em Andaluzia,

daqui nam,

vós irês sem poniçam.

Pero Farzam Buscante.

Senhores, leixá-las vir,

nam corra ninguem de rosto,

leixá-las chegar a Agosto,

fartar-nos-emos de rir.

Soltem-lhe da vozaria

o rifam,

as trovas o correram.

Antam Diaz, monteiro.

Fazer todos gram calada,

eu a erguerei por trela,

e depois d’ alevantada

leixá-la passar a armada,

que se nam torn’ a Castela.

Que grande dano faria,

num Veram,

escapar tal envençam.

Dom Alvaro d’ Ataide.

— Gangorra, porque vieste

de Castela a Portugal?

Pois é certo que fizeste

a quem te traz muito mal.

Por te trazer merecia

ũ coscorram

aa corte de Roselham.

Outra sua.

Gangorra, senhora mana,

que ousadia foi esta,

que vós nam soes para festa

nem menos para somana?

Que fosseis vós de tauxia

nem motam,

nam vos traria na mam.

Outra sua.

Afirma o gram monarca

filosofo sabedor,

que se chama Luis d’ Arca,

das Pias comendador,

que por feesta antes leria

porluçam

que trazer carapuçam.

Pergunta de Jorge de Vas‑
concelos a Lopo de
Sousa e fim.

Dizei-me como trouxestes

tam longe de Portugal

ũu peso tam desigual,

pois que por maar nam viestes.

Eu nam sei como se meta

na cabeça co a mam,

senhores, tal envençam,

qu’ haa mester ũa carreta

para a trazer nũ seram!

E pois por maar nam viestes

tam longe de Portugal,

como tam descomunal

gangorra trazer podestes?!

597

DE DOM ANTONEO DE VALHASCO,
ESTANDO EL-REI NOSSO SENHOR
EM ÇARAGOÇA, A ŨAS CEROI‑
LAS DE CHAMALOTE QUE
FEZ MANUEL DE NORO‑
NHA, FILHO DO CAPI‑
TAM DA ILHA DA
MADEIRA.

Rifam.

Que se pierda la memorea,

no es razon,

senhor, de tal invencion.

Si son ceruelas deveras,

Manuel fue contra la ley

en no las lhevar a El Rey,

pues que fueron las primeras

y tambien seran postreras

de razon

o si no es por maldicion.

Otra suyo.

Sepa todo cortesano,

porque par’ otras s’ acuerde,

que calças de raso verde

causaram muerte a Lezcano.

Pues miraa quanto es más sano

el veludo en Aragon

que los chamilotes som.

Otra suya.

En este mundo mezquino

ved las cosas como vam:

ya se calça el cordovam

sobre chamilote fino.

Es assi que ahun ayer vino

a ser garçon

y sacó tal invencion.

Otra de Dom Antonio.

Porque quereis que se hable,

senhores, en estas trobas

de que haremos las lobas

si lo sab’ el Condestable.

Chamilote razonable

valdria más para ũu jibon

que de borcado ũu ropon.

Otra suya.

Ya vi calças de demasco,

de que huve gram manzilha,

y oí dizer em Castilha

de Dom Sancho de Valasco.

Mas no tuvo fantasia

ni presuncion

qu’ hoviesse tal invencion.

De Dom Alonso Pimentel.

Las vuestras calças, senhor,

elhas andam em lugar

que merecem bien andar,

pues no puede ser pior.

A tal ceo tal favor,

es razon

que se haga al envencion.

Otra suya.

De ver cerca el chamilote,

el jubon toma desmaio

y tambien recela el sayo

que le quepa algun’ açote.

Que quien lhieva tanto mote

de invencion,

el temelhe es gram razon.

Otra suya.

El que s’ atrevió passar

hondura de tanto mote,

por aguas de chamilote

pasaraa las de la mar.

¡Ooh que malo es navegar

sim guion,

senhor, por tal invencion!

Otra suya.

Vos traes calças de risa,

porque son de chamilotes,

tambien son calças de motes

que son pior que de frisa.

Si se saca la pesquisa

delh’ envencion,

que mueraes es gran razon.

Joam Fogaça.

Muitos trajos se fizeram

dinos de riso e de mote,

mas calças de chamalote

nunca jamais se trouxeram.

Sempre ficará memoria,

com rezam,

senhor, de tal envençam.

O Camareiro-moor.

Soes, senhor, tam enganado

com ceroilas deste pano,

que ũu mes desencalmado

vos causou ser apodado

todo anno.

Antes quero nam ser sano,

em Aragam,

que fazer tal envençam.

Inhigo Lopez.

Seguilde que va herido,

no tengais temor de nada,

que la yerva es muy provada,

por ahi estará caido.

Ha gran rato que es corrido

con razon

a causa del envencion.

Dom Rodrigo de Mocoso.

Se fue traje por mais frio,

fue desordem de codicia,

y se fue por desvario

quiça que tuvo justiça.

Que muriesse sin malicia

es razon,

de tan pesada invencion.

Otra suya.

E muy justo Emanuel

en chamilote calçado,

porque fuesse reparado

el burlar burlando del.

Fue más dulce que la miel

esta invencion,

para nuestra redencion.

Curelha.

Sedme testigos, senhores,

como Manuel de Noronha

muere de pura ponçonha

y no d’ amores.

Pequenhas son las calores

d’ Aragon

pera tam fresca invencion!

Pero Fernandez de Cordova.

Posistes en albolote

este reino y en debate,

en fazer al chamilote

en tierra de guardalate

pusiesse forca y açote.

Pues vos pagais el escote,

senhor, desta alteracion,

nos calceis por aficion.

Dom Joam de Meneses.

Tam secretas las traya

como si fuessen de malha,

que quien tal invencion halha

halharaa quien delha ria.

Yo antes las sacaria  

em ũ jubon

otra vez por invencion.

Otra suya.

— Senhor mio ¿como estais?

— Muito mal,

pois que vim de Portugal

a vos dar de que riais.

— Vos burlais,

pues cumpleos que tengais

buen coraçon,

que teneis mala invencion.

Outra sua.

Nas aguas de chamalote

pareceo seu mal sem cura

e corre risco de morte

soo de frio sem quentura.

Oh que grão desaventura

de garçam

morrer de tal envençam!

Gonçalo Mendez Çacoto.

Boons galantes escolhidos,

d’ envenções inventadores,

conheci grandes senhores,

mas nam ja tam atrevidos.

Nem nos vi ser tam providos

que das Ilhas na memorea

esta envençam

trouxessem té Aragam!

Outra sua.

Ó calças, tu nam me mentes,

eu entendo estas chamas,

se te bem virem as damas,

todas bateram nos dentes

de frio, que nam de quentes,

com razam,

pois de dentro mais o sam.

Dom Rodrigo de Sande.

Depois de bem apodadas,

cheas de pena e de mel,

seram logo empicotadas

ou enforcadas

pois nos gastaram papel.

Fora milhor d’ ouropel,

meu coraçam,

esta vossa envençam.

Outra sua.

E dai tres figas aa morte,

se vós nam andardes quente,

que nam sabe esta jente

que calças de chamalote

sam mais frias que o norte.

E é cousa tanto forte

em Aragam

mais que de Peropinhão.

Anrique Correa.

Esta cousa é muito dina

para no tombo jazer,

haa mester qu’ a Rui de Pina

se faça logo saber.

Por ficar dela memorea

é rezam

que s’ escrev’ esta envençam.

Outra sua.

Os feitos tam assinados

levam-nos todos a Frandes,

pera virem fegurados

como cousas muito grandes.

E pois esta é de groria,

é razam

que vá lá esta envençam.

Outra sua.

Porque dizem qu’ o mal voa,

era bem que se tirasse

ũu estormento

e que se leve a Lixboa,

ante que nela entrasse

esta nova de tormento.

E por honra de vitoria,

é rezam

que riam da envençam.

Dom Duarte de Meneses.

Foi cousa muito mais fea

fazerdes de chamalote

envençam de tanto mote

que beijar mãos aa candea.

Nem sei dama que as crea,

nem vos queira com rezão,

se vos vir tal envençam.

Antonio de Mendoça.

Se sois, senhor, enganado

com ser frias, fazeis mal,

qu’ andareis mais afrontado

de zombado

que se fossem de saial.

Se levais a Portugal

tal envençam,

aas Ilhas vos mandarão.

Simão de Miranda.

Amei mais o chamalote

que lila nem guardalate,

que fiz calças d’ ũ pelote

de que jaço de remate.

Nam fizera Marramate

esta envençam

nem o grão Pero de Lobam!

Outra do Camareiro-mor.

Quando de zarzagania

se fizerão outras tais,

eu vi ũa profecia,

que dizia

que quem vivesse veria

outras mais especiais.

E porqu’ estas o sam mais,

com rezam

riremos de cujas sam.

Nuno Fernandez d’ Ataide.

Fizestes tais entremeses

nestas calças que trazeis,

que juram aragoneses

qu’ as cortes durem tres meses,

se vós nam vos corregês.

Assi que vós nos fareis,

com rezam,

invernar em Aragam.

Outra de Joam Fogaça.

Digo, padre, que pequei

e sam perdido

da envençam que saquei,

de que sam arrependido.

Nam tenho dela vãa groria

mas contriçam,

que pequei por envençam.

Outra de Simão de Miranda.

Minha culpa digo mais

que pequei de confiado,

sendo bem aconselhado

fiz ceroilas cordiaes.

Disto, padre, nam riais,

mas dai rezam

pera minha salvaçam.

Outra de Gonçalo Mendez Çacoto.

Nam é bem que ò padre peça

remissam de tantos danos,

pois vivendo dez mil anos

nam é cousa que esqueça,

qu’ ũa graça des qu’ empeça

em rifam

cada ũu a traz na mão.

De Manuel de Noronha a Dom
Antoneo de Valasco, sobre
o rifam que lhe fez.

Rifam.

Antes que de chamalote,     

fizera desse rifam

ceroilas par’ o Veram.

E mais das copras farei

outra loba de que ria,

que seja quasi tam fria

com’ a curta de solia,

que vos eu ja perdoei.

E assi escaparei,

nas copras e no rifam,

das calmas deste Veram.

Outra à loba curta de solia,
que fez Dom Antonio.

Eu vi loba de solia,

que me pareceo razam

nam lembrar pera rifam.

Da vossa barba rapada

quanto é o qu’ eu diria,

eu a hei por quasi nada

pera a loba de solia.

Dai ò demo a fantesia

e toda vossa descriçam,

pois a loba é tam fria

que nam lembra o rifam.

Outra sua.

Eu vi viuva anojada

com outra tal envençam,

mas com barba tam rapada

nunca vi ja cortesão.

De morrer desejaria,

e seria gram razam,

pois que fez loba tam fria,

tendo ja feito o rifam.

Outra sua.

D’ algũs destes trovadores

nam quero ser ajudado,

antes soo com minhas dores

que tam mal acompanhado.

Em que m’ hajam por culpado,

a isto m’ atreveria,

pois que é tam condenado

o da loba de solia.

Do coudel-moor Francisco da
Silveira, estando em Portugal,
a estas ceroilas de Manuel
de Noronha, as quaes
mandou a Castela.

Rifam.

Grande corte de Castilha,

nam hajaes por maravilha

Manuel calçar-se mal,

que nam é de Portugal,

mas é da Ilha.

Enganou-se por Verão

e foi lá em forte ponto,

cuidando qu’ em Aragam

nam havia cortesão

que de rir viesse a conto.

Mas de laa ou de Sevilha,

parece por maravilha,

acertou algũ ser tal

que quis rir de Portugal

e rio da Ilha.

Com’ ele da Ilha veo,

se soube cá por seu sino

que de chamalote fino

faria calças d’ arreo.

Mas haa-se por maravilha

serem feitas em Sevilha

e culpar-se em Portugal:

pague laa, pois fez o mal

em Castilha.

Cuidaram nos castelhanos

que nos tinham ja na rede.

Ora crede

que somos cá tam oufanos

que nam calçamos tais panos.

Em caçotes, em fraldilha,

em jubões, em tabardilha,

em outros deste metal

se gastam, e nam tam mal

como em Castilha.

A quem taes ceroilas fez

se devera perdoar

por esta primeira vez.

E dando-lh’ este lugar

em outra o foreis tomar.

Dig’ oo Conde de Tendilha

e a senhora Bobadilha

se da Ilha do Funchal

foi homem tam por seu mal

a Castilha.

Estava fora do rol

e destes motes isento,

e meteo requerimento

com que nam fez sua prol,

mas ante seu corrimento.

Compoer, senhor da Ilha,

pois por força na quadrilha

vos fostes de Portugal

a envencionar mal

a Castilha.

Compre que vos desculpeis,

tomando a culpa por vossa,

sem s’ haver nada por nossa,

pois que soo a mereceis.

E compre que Calçadilha

no sermão diga em Castilha,

em voz alta, especial,

que nam soes de Portugal

mas soes da Ilha!

Fostes lá muito aramaa

para vos fazer tal cousa,

que a vós dano traraa

e que nam vos valeraa

Pereira, Silva nem Sousa.

Milhor vos fora em camilha

jazer curando ũa asilha

ou vos tornar oo Funchal,

que com trajo tam sem sal

ir a Castilha.

Ajuda de Jorge d’ Aguiar.

Cuidei que como passasse

d’ ũa poesia vana

ou de trovas de mangana,

nam s’ achasse em Triana

quem de ceroilas trovasse.

Mas pois o paço se filha

per Valasco e Bobadilha

a causa d’ ũ trajo tal,

nam se deva ver por mal

Marramaque ir a Castilha.

Os trajos naquesta terra

sam sempre tam escoimados,

que quem na feiçam os erra,

inda que sejam borcados,

ness’ hora sam apodados:

como ouvistes da barguilha,

nas entradas de Castilha,

do filho do Marichal,

que as calçou por seu mal

com’ as ceroilas da Ilha.

Mas somos tam piadosos

e de tam boa naçam,

que vêm cá mil esquinosos

com trajos mui mais melosos

do qu’ estas ceroilas sam;

mas por ter deles manzilha

e de todo o de Castilha,

quebramos o rir em al,

e vós laa is tratar mal

ũ inocente da Ilha!

Duarte da Gama.

Porque quer ninguem dizer

mal daquesta vossa cousa,

pois a vid’ ha ja de ser

tam certo como o morrer

em Castela Rui de Sousa.

Quisereis mais afeiçam

do irmão

do craveiro de Padilha

que fazer tal envençam

em Castilha.

D’ hoj’ avante antre nós,

quem for mal envencionado,

será mui bem apodado

e por força degradado

pera vós.

Porque dentro em Aragam

e em Castilha,

saibam qu’ esta envenção

fez de vós rir vosso irmão

lá na Ilha.

— ¿De qué las lobas haremos?

Dom Antonio preguntou,

como quem nam se lembrou

qu’ o Condestable sacou

ũa roupa que sabemos,

a qual foi de gram frisada.

Mas por ser laa de Castilha

nam foi nunca apodada,

merecendo ser trovada

mais qu’ as ceroilhas da Ilha.

Jorge da Silveira.

Nam sintais o rir de caa

nem mote que a vós vaa,

que milhor é qu’ em vós falem

que dizerem que nam sabem

se fostes laa.

Como dizem em Sevilha

e assi por toda Castilha

que de todo Portugal

nenhum homem nam foi tal

como o da Ilha.

Diogo Brandam.

Muito mal se conformou,

com cousas de sua terra,

quem tais calças enventou

por nossa guerra.

Porque como se criara

em cousas doces comer,

desta Ilha,

delas mesmas se calçara

e escusara

o zombar e escarnecer

de Castilha.

Neste trajo s’ afirmou

qu’ os da Ilha faram tudo,

que ja lá outro s’ achou

que frisou

duas peças de veludo.

Desta vez que foi aa Ilha,

desembarcou em Sevilha

sem tocar em Portugal,

e por isso o fez tam mal

em Castilha.

Joam Gomez d’ Abreu

ao rifam de Castela.

Quem havia lá, senhor,

d’ enventar essa frieza,

senam quem de natureza

era frio e sem sabor.

Antes eu sofrera dor

de quentura em Aragam

que sacar tal envençam.

Nam trarei jamais de cote

seda preta nem de cor,

pois quem quer no salvanor

mete ja bom chamalote.

Nam deseja ser maçote

em Aragam

quem sacou tal envençam.

Fim.

A El-Rei seraa castigo

este trajo de Noronha,

que nam leve mais consigo

quem no meta em vergonha.

Dêm-lhe, dêm-lhe lá peçonha,

que, se escapa este Verão,

sacará outra envençam.

598

DESTES TROVADORES ABAIXO NO‑
MEADOS A NUNO PEREIRA, POR ŨA
CARTA QUE ESCREVEO AO PRIN‑
CEPE E PÔS-LHE NO SOBRE‑
ESCRITO: PER’ ALTEZA
DO PRINCEPE NOS‑
SO SENHOR.

Do Coudel-moor.

Nós outros, a civel gente,

quando nos tomam de salto,

escrevemos: Oo mui alto,

poderoso e eicelente.

Mas pois o paço despreza

velhices de notador,

d’ hoje mais vaa: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Fernam da Silveira.

Bem cuidou de dar no fito

ou oo menos na calveira,

quem notou tal sobrescrito

como pôs Nuno Pereira.

Tentai bem na sotileza

que buscou este reitor,

quando escreveo: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Jorge d’ Aguiar.

Estando na frontaria,

nessas partes de Castela,

em hora de meio-dia,

me chegou esta novela.

Mandei logo com destreza

tomar portos de sabor,

nam passasse tal cimpreza

a qual ia Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Diogo Zeimoto.

Eu andei jaa Picardia

e a terra do Dalfim,

França e a Lombardia,

e tam gram sensaboria

nam s’ acharaa como em mim!

Com toda minha frieza

nom sam eu tam sensabor

qu’ escrevesse: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

D’ Anrique d’ Almeida Passaro.

Como fostes dar no fundo

de tam gram sensaboria,

pois que sabieis qu’ havia

Anriqu’ Almeida no mundo!

Nam fizera mor frieza

ũ muito mao orador

que escrever: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

Do Doutor Mestre Rodrigo.

Eu fui jaa em Pecarronia

e tambem em Parvolide

e falei cos de Gumide

e cos doutores d’ Uxonia.

Mas nam achei tal frieza

nem nenhũ tam sensabor

qu’ escrevesse: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Joam d’ Arraiolos Mourisco.

Mi conocer bem Alarves

e muitas terras andar

e correr jaa os Algarves

d’ aquem-mar e d’ alem-mar.

Nunca ver tal parvoeza,

dita por tal sabedor,

como escrever: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor!

De Dom Anrique Anriquez.

Nunca al vi senam sesudos

fazer mui grandes erradas

e dos sotis e agudos

sahir grandes badaladas.

Vós com vossa sotileza

quisestes ser orador

em escrever: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Dom Afonso Anriquez.

O diabo nam achara

tal maneira d’ escrever,

nem por muito qu’ estudara

nam no podera saber.

E vós por mais jentileza,

por mais perro e sabedor,

escrevestes: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Joam Fogaça.

Quem muitos anos viver,

muitas cousas ouviraa,

muitas folgaraa de ver,

doutras muitas se riraa.

Daquesta vossa agudeza

tam fria, tam sensabor,

se rim todos ante Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Gomez Soarez.

Quem deixa caminho chãao

e caminha por atalho,

estaa jaa certo na mãao

qu’ haa-de levar mor trabalho.

Vós deixastes a certeza,

cuidando que era primor

escreverdes: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Diogo de Miranda.

Se foreis aragoes

ou sensabor castelhano,

ou doce valenceano

passaara por entremes.

Nam sei se foi ardideza,

se foi serdes sabedor,

acertardes Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

Alvaro Nogueira.

Senhor, é muita rezam

pois tais cousas acertais,

que tenhais gram presunçam

e vos ensoberveçais.

Deu-vos Deos maior sabeza

que nunca deu ò orador,

pois escreveis: Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Diogo Pereira.

Vós soubeestes a verdade,

vós sabeis o qu’ escreveis,

tudo o al é vaidade

senam o que vós fazeis.

Nunca vi tam gram destreza

d’ escrever e notador

qual foi a de Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

De Nuno Pereira a todos estes
trovadores e a outros que aqui
nam vam, por se nam acha‑
rem suas trovas, em
reposta das que lhe
fizeram.

A Jorge d’ Aguiar.

Eu venho da frontaria,

som alcaide de Zagala,

todo o mundo de mim fala

e da minha galania.

Como sam na forteleza

sam ũ deemo velador

com viva, viva Alteza

do Princepe nosso Senhor!

A Dom Anrique Anriquez.

Sam de cote gracioso,

digo mil graças de cote,

a quem quero dou ũ mote

e pico-me de pomposo.

Doutro cabo tal baixeza

e com passo de gram dor,

qu’ em chapins nam chego Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Dom Afonso Anriquez.

Sam galante catelãao,

o moor qu’ ha daqui oo Cairo

e gasto cũ boticairo

cada dia ũ chinfrãao,

porqu’ ee tal minha magreza

que requere confessor,

bem o sabe Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

Ao Coudel-moor.

Par Deos, eu me maravilho,

quem nam morre de pasmar

em ver meu gentil trovar

e ja agora o de meu filho?!

Benza Deos sua agudeza,

a mim guarde o Salvador

para serviço d’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Francisco da Silveira.

Essa trova que laa vai,

ela vai posta por minha,

ora vós sed’ adevinha

se a fiz eu, se meu pai.

Eu pico-me de franqueza,

onde quer que louvor for,

na corte de Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Alvaro Nogueira.

Eu sam todo muito louro

e sam louro muito franco,

eu sam todo, todo branco,

sam ũa madeixa d’ ouro.

Eu sam cheo de frieza

e sam gram refiador

e sam seu de Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Joam Fogaça.

Haver-m’ -ei por tengomengo,

se m’ eu nom gabo per mim,

que sam gentil estrelim

ou heres sobre framengo;

nos olhos ũa frouveza

mais brancos que ũ leitor,

e sam servidor d’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Jorge da Silveira.

Eu em mim tanto confio

qu’ antr’ as damas dou mil rotos

e tenho mais altos cotos

que o lageo meu tio.

Sobr’ isso tal dereiteza

que pareço justador

que quer justar ant’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Gomez Soarez.

Eu de coote acairelado

por filha de minha sogra,

despesa nam se me logra

nem val ser pintirinhado.

Ooh que grande realeza

tem quem é grand’ amador

em cas da tia d’ Alteza

do Princepe nosso Senhor!

A Diogo Zeimoto.

Eu mala por castelhano,

texugo por aaravia

e tanho por geometria,

trouxe vestido de pano.

Tudo isto é ancheza

e feiçam do atambor,

que se tange ante Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Diogo de Miranda.

Sam amigo dos amigos,

ponho a barba cos mais altos,

e sem dar pulos nem saltos

escuso cambo de figos.

Que me tachem de frieza,

as damas no salvanor

me beijem e viva Alteza

do Princepe nosso Senhor!

A Garcia de Melo.

Perguntei a Anu por novas

das Alcaçovas e paz,

respondeo-me: — Se vos praz,

laa vos vi posto nas trovas.

Respondi-lhe: — Que frieza

e que grande sensabor,

quem grosa carta d’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Rui de Sousa Borjes.

Eu m’ achei mui alterado

e houve por gram duçura

de me ver ir na mistura,

nas trovas intitulado.

Ficou-me tal altareza

e do paço tal amor

que jaa m’ honro com Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Aires da Silva, camareiro-moor.

Eu sam caçador de galgos

e tenho feiçam de choupa,

nom folgo na guarda-roupa

nem deixo laa ir fidalgos.

Na beesta tenho certeza

e sam jaa comendador,

mantenha Deos su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Anrique d’ Almeida Passaro.

Que passaro, que menino,

que burro d’ escarnecer!

E quero-m’ indo fazer

em motes trovador fino!

E é mais minha longueza

qu’ a do frade pregador,

que prega ao pai d’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

Ao Doutor Mestre Rodrigo.

Eu comi atabafea,

uro em Deu, e grãaos torrados

e pees de vitela à cea

com bandouva apicaçados.

Nem pimenta de Veneza

me nom deu a tal sabor

como me deu Per’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Diogo Pereira d’ Alter.

Eu tenho fremosa filha,

tal é minha presunçam,

e que seja rechoncham

nom hajais por maravilha.

Nem que tenha redondeza,

mais a tem o atanor

do que beebe Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Fernam Gomez da Mina.

Se m’ a mim nam mente Aixa,

se me Comba nam engana,

sei bailar melhor mangana

que dançar alta nem baixa.

O Rei gaba e despreza

qualquer outro bailador,

isto provarei à Alteza

do Princepe nosso Senhor.

Outra sua.

Ando por ruas a pee,

meus brozeguis com recramos,

criados, compadres, amos,

tudo casta de Guinee.

Todo Portugal me preza,

porque fui descobridor

da Mina de Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Mari’ Anes da Ifante.

Nom som d’ alcovitaria

nem menos curo d’ amores,

ca me poem os trovadores

nesta gram sobrançaria.

Porque com minha baixeza

louvo muito o criador

que me fez e fez Alteza

do Princepe nosso Senhor.

Ao saiam da Ifante.

Quem me mete a mim saiam

andar em trovas lampeiro,

pois andar no reposteiro

é mui mao jogo de cam.

Nom quero tal agudeza

nem buscar corregedor

nem queixar-me a Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Francisco de Miranda.

Som Francisco de Miranda,

som mui louçam e galante,

tam hirto e tam estante

como o mundo de mim anda

espantado da hirteza

que me nam chega cantor

de quantos tem Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

A Fernam da Silveira e fim.

Eu tenho gentil feiçam

com quarent’ anos bem feitos,

e tenho detrás os peitos

maiores ca Dom Joam.

Nem ha em todo Veneza

ũ tam mao cavalgador,

perguntem a Su’ Alteza

do Princepe nosso Senhor.

599

DE NUNO PEREIRA A DOM JOAM
PEREIRA, QUANDO CASOU, POR‑
QUE A PRIMEIRA NOITE FOI
DORMIR AA POUSADA DE
JOAM DE SALDANHA.

Dai ora oo demo tal manha

do noivo que vai casar

e a primeira noite passar

na pousada de Saldanha.

Dom Joam despois que ceou

potajees, pastés de pote,

ũ rabo de porco achou,

que por muito qu’ esfregou

nam pôde fazer virote.

E diz que por nam passar

ũa vergonha tamanha,

que se lançara no mar

se nam achara Saldanha.

De Joam de Saldanha.

A pousada nunca tolho

a ninhũ desacorrido,

nem a noivos nam convido

se nam vêm daar oo ferrolho.

Bem houve por cousa estranha

estar para me lançar

e ouvir noivo braadar:

— Valei-me, senhor Saldanha!

600

DE NUNO PEREIRA A ANRIQUE
D’ ALMEIDA, PORQUE ESTANDO
EM SANTAREM SOUBE COMO
ELE SERVIA DE VEADOR
Ò DUQUE DOM
DIOGO.

Que novas, comendador,

meu senhor,

correm cá por Santarem:

que vos chamam veador

inda bem!

Bento quem tais novas traz

para tornar,

bento Deos que cousas faz

para folgar!

Quem vos mandava tomar

tal oficio com saber

que nam m’ haveis d’ escapar

sem vos bem nam escozer.

E pois qu’ em dai cá aquela palha

vos castigo,

ora esta soo vos valha

e lembre que vo-lo digo.

Outra sua em nome dos
oficiaes de Santarem.

Correm cá as novas correm

da vossa veadoria,

soterramos cada dia

mil que desta graça morrem.

Tal riso e tal prazer

e graça de tanto riso,

quem te fez assi fazer

Deos lhe dê o paraiso.

Ajuda das donzelas da senhora
Dona Felipa.

Dona Maria de Sousa.

S’ a feiçam me nam engana,

sois em cabo gracioso

e agora quam pomposo

andareis com vossa cana,

diante das iguarias,

com guarda, guarda-porteiro,

com o rol das moradias

ja agora neste Janeiro.

Lianor Moniz.

Que mandar fazer de lume,

que mandar armar de panos,

que chamar oos moços manos,

que castigos de queixume!

Quam cortês vos mostrareis

agora d’ oficial,

que carretos que trareis

para nam falar em al!

Dona Maria da Cunha.

Sem vos ver nem laa estar,

vede se sam adevinha:

qu’ is cem vezes aa cozinha

por vos mais negocear.

E sei que jaa vos retrocha

a Infante com vergonha

de mandar acender tocha

primeiro que sol se ponha.

Maria de Sousa.

Ooh que dar de consoada,

peros, castanhas e figos,

e contar aos amigos

ordenanças na pousada!

Culpar muito a Ifante

e os seus oficiaes,

dizendo que d’ hoje avante

pode ver quanto emnovais.

Joana Ferreira.

Assi faz Deos a quem quer

fazer honras e mercês,

deste oficio saltarês

mui cedo ser esmoler.

D’ aturar bem aturai,

qu’ ee conselho d’ amizade,

e ũus ocolos comprai

que requerem a tal idade.

Dona Joana Anriquez.

Aguardai, pois aguardastes

a vida toda do padre,

enfadando sua madre

e vós nam vos enfadastes.

Pois vos ajuda a ventura

sabê-vos vós ajudar,

que quem no paço atura

nunca deixa de medrar.

Dona Isabel da Silva.

Que vós jaa tenhais ũ eele,

que cinquenta se monta,

veador nam façais conta

de fazer preegas na pele.

Servi bem vosso senhor

que sejais o derradeiro,

podeis ficar veador

com’ estriga de cenceiro.

Dos da chancelaria para
saberem como o haviam
de intitolar
.

De Bixorda.

Vós decrarai-vos, senhor,

por vos homem intitular,

como vos ham-de chamar:

s’ em Cristos comendador

ou do Duque veador.

Pois vos eu hei-d’ escrever,

pois vos eu hei-de servir,

compre-me, senhor, saber

a qual haveis d’ acodir.

Quando vos homem chamar,

a vós digo monseor,

se vos ham-de nomear

em praça por veador

se por frei comendador?

De Nuno Pereira por
cabo destas.

Se é certo que é tal,

por minha vida,

é a graça mais sobida

que se vio em Portugal!

Se a vós veador dais,

jurarei,

segundo o que de vós sei,

vós mesmo vos apodais.

Outra graça sabereis,

em que ando

cada dia contemprando,

quantos castelos fareis:

d’ ũas idas a Castela

e d’ esperanças

de manterdes vossas lanças,

sem ferver vossa panela.

Cabo.

É tamanho meu desejo

de vos ver

que me faz entresticer,

porque tal cousa nam vejo.

E por ser desenganado,       

s’ ee verdade,

jur’ oo Corpo de Deos, Dom Frade,

que vos vaa ver rebuçado.

601

DO COUDEL-MOOR FRANCISCO DA
SILVEIRA A PERO DE SOUSA RIBEI‑
RO, SOBRE LOUÇAINHAS QUE
MANDAVA FAZER SECRETAS
E FORAM ACHADAS NA
JUDARIA, PORQUE
ELE NAM SAHIA
DE LAA.

Algũa cousa ha-de ser

nesta somana algũ dia,

segundo vai o mexer

na judaria.

O ruje-muje é tanto

sem conto apuridar:

em ũs enxergais espanto

e outros de canto em canto

de riso a rebentar.

Cordeal cous’ haa-de ser

nesta somana algũ dia,

polos sinaes que fui ver

na judaria.

Eu vi Maçoude embuçado,

vós vede que cous’ eest’ ee,

d’ um olho escalavrado

vir em som dessimulado

dizendo: — Vinha d’ um pee.

Vi outro maralecer

vi gritar ũa judia,

alfaramiz vi prender

naquele dia!

O ceo andava trovado

e a noite fez trovam,

sol sahio ensanguentado,

ver o dia nevoado

me fez gram maginaçam.

Ũa estreela vi correr,

a terra toda tremia,

ora vede o qu’ haa-de ser

naquele dia.

Cabo.

Os sinais sam de perigo,

mostram todos gram temor,

guai daquele qu’ ele for,

mas eu sobre tudo digo

que Deos é o sabedor.

Se seraa o despender,

minha será a alegria

o dia qu’ houver de ser

a galania.

De Nuno Pereira.

Eu vi olheira nũ olho

a um judeu,

vi outro vezinho seu

lançar barbas em remolho.

Vi muitos judeus ferver,

preguntei que se fazia,

responderam: — I-o ver

aa judaria.

De Jorge da Silveira.

Eu achei caminhos cheos

dos judeus qu’ iam fogindo,

ũus com medo e receo,

outros de riso cahindo.

Fui-m’ a eles para ver

que revolta tal seria.

Disseram: — I-o saber

aa judaria.

De Diogo da Silveira.

As damas têm jaa tomadas

par’ esta cousa janelas

e andam tam abaladas,

que sam cheas as estradas

e terreiro para vê-las.

Milhor fora nunca ser

vestido de tal valia,

qu’ andarem todos a ver

o que sae da judaria.

D’ Anrique d’ Almeida.

Dizem quem vem e quem vai,

qu’ ouvem grande arroido,

chamam judeus Adonay,

as judias dizem guai

com cristam tam atrevido!

Valha-nos Deu verdadeiro,

pois justiça i nam haa,

que cosamos em sabaa,

e do pano que nam daa

façamos mongi inteiro.

Outra sua.

S’ a Rainha nam viera

com sua donzelaria,

este cristam nam tevera

tanta pressa nem metera

em doilo a judaria.

Mas compre-nos preguntar

quem é sua namorada,

por lhe mandarmos rogar

que vos dei sequer lugar

atee somana acabada.

Cantiga de Dona Mecia Anri‑
quez a estas louçainhas.

Quem vio nunca louçainha,

que, antes que s’ acabasse,

que as damas da Rainha

de riso todas matasse.

E vede o que seraa

o dia do parecer

ou quem entam poderaa

escapar de nam morrer.

Quant’ eu digo, mana minha,

que seraa bem quem achasse

lugar a par da Rainha

que o riso a nam matasse.

602

DO COUDEL-MOOR FRANCISCO DA
SILVEIRA AO BARAM DOM DIOGO
LOBO SOBRE TRES FERIDAS
QUE LHE DEU ŨA PORCA
NO MONTE, SEM LHE
ELE DAR NENHŨA.

Ja nós vimos em Lixboa

pelejar usso com touro

e aasno com a lioa

e judeu com perro mouro.

Mas nunca lança de Lorca

vimos encontrar de marca,

que fizesse vir a porca

co lobo arca por arca.

De Jorge da Silveira.

Ouvi novas de caidas

que houvestes monteando

e tambem de tres feridas

qu’ houvestes, nenhũa dando.

Pesou-me como s’ eu fora,

como minhas me magoaram,

mas quero saber agora

o que fez vossa senhora,

porque cá mal se soaram.

De Nuno Pereira.

Galante qu’ assi s’ emborca

a encontrar aa bolina,

nam digo topar com porca,

mas qualquer magra cochina

o revolve e desatina.

Feri sempre d’ arremesso

por segurardes a vida,

mas o mal de rocim messo

magra bacora parida

faz o rir vir aa ferida.

Outra sua.

Mas seja bem empregado     

em vós, pois ferir quisestes

a quem por vosso pecado

vos deu o que lhe nam destes.

603

DO BARAM A LIONEL DE MELO,
SOBRE Ũ PELOTE DE VELUDO
QUE TROUXE EM FORRO DOU‑
TRO FRISADO E DEPOIS
O TIROU E O FORROU
DE CORDEIRAS.

Temos-vos em grand’ estima,

cremos que sois deos segundo,

pois o qu’ andava de fundo

foi por vós posto em cima.

Temos que quem isto faz

mil cousas moores faraa

e faraa da guerra paz

e da paz guerra traraa.

Mas quem convosco s’ anima,

estaa seguro no mundo,

pois qu’ inda qu’ ande de fundo

o podeis tornar acima.

Ajuda de Francisco da Silveira.

Nam fizera mais Marina,

a de Mendoça,

Lianor nem Caterina,

nem a outra de Medina

nem em velha nem em moça.

Para estas tudo rima

e para as outras do mundo,

mas saio qu’ andou de fundo

mao lustro daraa de cima.

604

DE FERNAM DA SILVEIRA A DOM
RODRIGO DE CASTRO QUE BEIJOU
ŨA DAMA E ELA METEO-LHE A
LINGUA NA BOCA.

Pois medistes assi crua        

a sua lingua co a vossa,

dizei-nos qual é mais grossa,

se a vossa, se a sua.

Tambem queremos saber

atee onde foi metida

e qual era mais comprida,

mais solta no remexer.

Se veio tal falcatrua

por sua parte ou por vossa,

nos dizei qual é mais grossa

se a vossa, se a sua.

Reposta de Dom Rodrigo.

Mais comprida e mais delgada

achei a sua que a minha,

porque toda a campainha

me leixou escalavrada.

E fez-me tam grandes brigas

nos queixais,

que mos nom fizera tais

ũ grande molho d’ ortigas.

Outra sua.

Eu disse-lhe: — Tate, perra,

nam metais assi de ponta

a lingua que tanto monta

com’ oos da boca em terra!

Fazei conta!

Dizia: — Mano, deixai-me

enquanto tenho lugar!

E eu bradava: — Soltai-me,

deixai-me resfolegar,

que me quereis afogar!

Outra de Fernam da Silveira.

Ouvi de todos mandado

da senhora Dona Guiomar,

que manda desencerar

ũ croque qu’ ee encerado.

E manda que mui asinha

a degradem do seram,

porque toda a campainha     

esfolou a seu irmam.

605

DE FERNAM DA SILVEIRA A DOM
RODRIGO E A OUTROS, SOBRE
ŨA CARTA QUE TINHAM
DE LOP’ ALVAREZ
DE MOURA

Mais prazer que ũa toura

nos daraa ver essa carta

de Lop’ Alvarez de Moura,

pois que mata.

Mandai-no-la, que lhe pês,

senhores, e vê-la-emos,

e todos tres julgaremos

e vos diremos

se vem muito descortês

e quiçaa cantá-la-emos.

606

DE DOM RODRIGO DE MONSANTO E
DOUTROS AO CONDE PRIOR, SENDO
MANCEBO, PORQUE ACHARAM NŨ
CAMINHO Ũ SEU MOÇO D’ ESPO-
RAS COM ŨA TROUXA DE
VESTIDOS AAS COSTAS.

A vinte tres dias do mes de Janeiro,

ũa sesta-feira,

aquem das Cabritas, alem da Landeira,

topámos troteiro.

Toparam troteiro com cousa tam pouca,

tam pouca, tam leve que quem a levava

diz que tam leve co ela s’ achava

que dava tais saltos, tam alto pulava,

mais alto que Çaide, bailando com touca!

Senhor Dom Joam, o vosso troteiro

chegou ò Barreiro e logo embarcou.

A barca com ele tam leve s’ achou,

por onde o barqueiro levar-Ih’ escusou

da trouxa dinheiro!

Sem vela, sem remo, partio derradeira

e chegou primeiro,

porque a trouxa do vosso troteiro

a fez mais veleira!

607

DO MACHO RUÇO DE LUIS

FREIRE, ESTANDO PARA

MORRER.

Pois que vejo que Deos quer

deste mundo me levar,

quero bem encaminhar

a minha alma, se poder.

Enquanto estou em meu siso,

a morte dando-me guerra,

mando alma ao Paraiso

des i o corpo aa terra.

E mando logo primeiro,

enquanto vivo me sento,

que deste meu testamento

seja meu testamenteiro

meu irmão, o de Barrocas,

que eu mais que todos amo,

por sempre fogir a trocas

e servir mui bem seu amo.

O qual me fará levar

com mui grão solenidade

oo Rossio da Trindade,

u me mando enterrar.

Pois me dali governei

gram parte de minha vida,

a carne que levarei

ali deve ser comida.

E vãao cantando diante

a de Braria e d’ Afonso

ũ tam solene responso

que todo mundo se espante!

A este ambos ajude

o macho de Gomez Borges,

o qual leve o ataude,

a bitalha e os alforges.

Rogo aos cortesãaos,

quanto lhe posso rogar,

que todos me vam honrar

com seus cirios nas mãos.

E pois eram espantados

de passar vida tam forte,

devem ser de mim lembrados,

dando-me honra na morte.

Item me levem d’ oferta

dous ou tres cestos de palha,

que pois custa nemigalha,

nam deve d’ haver referta.

Tambem me levem ũ alqueire

de farelos ou cevada,

pois na vida Luis Freire

disto nunca me deu nada.

Infindos perdões pedi

às pousadas u pousei,

d’ alguidares que quebrei

e gamelas que rohi.

E nam me devem culpar

de lhe fazer tantos danos,

pois que de palha fartar

nunca me pude em XX anos.

Item peço às verceiras

muitos enfindos perdões

e tambem aos hortelões

dos danos das salgadeiras,

que, abofee, se me soltava,

fome tal me combatia

que qualquer cousa qu’ achava,

tudo mui bem me solia!

E que meu amo agravos

me desse com amarguras,

deixo-lhe tres ferraduras

que nam têm mais de dous cravos.

E pero dele me queixo

de males que me tem dados,

dous ou tres dentes lhe leixo,

que mande fazer em dados.

Nam lhe posso mais leixar,

qu’ ele nunca mais me deu,

rogo Alvaro d’ Abreu

que o queira acompanhar.

Rogo tanto que se doa

dele tanto meu irmão

que o ponha em Lixboa

arredor de Sam Giam.

Fim.

Sobre minha sepoltura,

depois de ser enterrado,

se ponha este ditado

por se ver minha ventura:

Aqui jaz o mais leal

macho ruço que naceo,

aqui jaz quem nam comeo

a seu dono ũ soo real.

608

DO COUDEL-MOOR FRANCISCO
DA SILVEIRA EM QUE PEDE
QUE LHE RESPONDAM A
ESTA CANTIGA.

Faz-se muito recear

de servir ũa donzela,

ver muita gente queixar

sempre dela.

Receo de me meter

onde depois me nam possa

nenhũa cousa valer,

porque sei qu’ ee mui fermosa

e mui airosa.

É mais per’ arrecear,

senhores, a tal donzela,

ou é mais pera folgar

perder por ela?

Acuda todo galante

cũa copra eeste rifam

e diga sua tençam

pond’ estas ambas diante.

Responde a senhora Dona Felipa.

Fermosa dama servir

receo deve fazer,

mas mais se deve sentir

por ela se nam perder.

Nem se me pode negar,

em Portugal e Castela,

que perder é moor folgar

por tal donzela.

Briatiz d’ Ataide.

Nam pode bem responder

quem destas vive tam fora,

mas pois que meu parecer

quereis tomar e saber

perdê-vos logo ness’ hora.

Nam é nada recear

servir galante donzela

em respeito de folgar

perder por ela.

Dona Caterina Anriquez.

A tais preguntas nam sei,

senhor primo, responder,

mas, pois quereis, eu direi

e vos aconselharei

o que deveis de fazer:

Devê-la de recear,

se tal com’ eu é donzela,

mas mais deveis de folgar

perder por ela.

Dona Orraca.

Com quanto vejo quebrada

toda vossa presunçam

e vossa vida gastada,

que me daa muita paixam,

nam vos hei-d’ aconselhar

senam que por tal donzela

é muito per’ estimar

morrer por ela.

Dona Guiomar.

Quem ousa de me servir

em grão perigo se mete,

haa mil despreços d’ ouvir

e tanto mal de sentir

com que lhe sue o topete!

Mas que devais recear

a perigosa donzela,

mui mais é pera folgar

perder por ela.

Dona Branca.

Por quanto mal vos ja fiz,

vos aconselho agora

que olheis bem o que diz

esta fremosa senhora.

Haa-vos certo de matar

d’ amores, qu’ eu o sei dela,

mas eu escolho o folgar

de ser por ela.

Dona Margarida Anriquez.

Nam m’ ee mais de responder

a isto nem conselhar,

que se vos visse morrer

ante mim sem vos poder

em nada remediar.

Mas pois nam posso escusar,

nam temais esta donzela,

que nam é morte matar,

se é por ela.

Dona Joana de Melo.

Pois vos hei-d’ aconselhar

tudo o que me parecer,

convem-me de vos chorar,

que se nam pode escusar

ver-vos morte padecer.

Nam cureis de recear,

perdei-vos ante por ela,

folgai de vos ver matar

a tal donzela.

Dona Margarida Furtada.

Vendo-vos dessimular

a dor que muitos afoga,

vos quero sem me chamar,

senhor primo, conselhar,

porqu’ o sangue nam se roga.

E digo que se apartar

vos nam podeis de querela,

que é mais pera folgar

perder por ela.

Ines da Rosa.

Donde mil partem chorando,

porqu’ ousais de vos meter?

Andamos todas cuidando

como nada receando

tanto folgais de morrer.

Mas em ser vosso penar

por quem nam tem par a ela

a vantagem tem folgar

ter morte dela.

Dona Isabel Pereira.

Nam quisera responder,

pois vou contra tanta gente

e mais por quam descontente

sei que vos hei-de fazer.

Esta parte hei-de tomar,

que a galante donzela

o mais forte é ousar

de cometê-la.

Maria Jacome.

Se meu conselho tomar

quiserdes, nam curareis

em tal perigo entrar

com’ este em que vos meteis.

Qu’ hei doo de vos ver matar

a esta crua donzela

e, por isso, o afastar

é milhor dela.

Dona Maria de Tavora.

O prazer de ser perdido

por dama destes sinais

nam vos nego ser sobido,

porqu’ em perder-vos ganhais.

Mas mais deveis recear

o ousar de cometê-la,

pois fazê-lo é acabar

de perdê-la.

Nicolao de Sousa.

Eu me vou co recear,

pois o tenho e o escolhe

quem o tomou, por me dar

inda mais em que cuidar,

e meu descanso me tolhe.

Compre-me de me calar

e minha morte sofrê-la,

pois que convem nam ousar

de cometê-la.

Dom Pedro de Sousa.

Dama de tal perfeiçam

quem seraa o que nam quisesse,

por penas qu’ ela lhe desse,

servi-la de coraçam?

E pois certo é sem par,

hei por cego quem nam assela

que se deve desejar

perder por ela.

Jorge da Silveira.

Dama que todos aqueixe

se algũ nam traz contente,

desta quero em que me leixe

ser seu sempre firmemente.

Ca mais é pera folgar

de perder por tal donzela

do que é de recear

serviço dela.

Garcia Afonso de Melo.

A vida, que a perdesse,

nam haveria por perda

por dama que nam quisesse

em seus modos ser esquerda.

Nem é pera comparar

recear servir donzela,

com prazer que é folgar

perder por ela.

Lopo Soarez.

Que me tornasseis a vida

e eu tornass’ a viver,

seria outra vez perdida

como vos tornass’ a ver.

Pois a groria é acabar

nesta grão dor e sofrê-la,

digo qu’ ee pera folgar

perder por ela.

Davi.

Nam me posso repender

do que tequei tenho feito,

e a torto e a direito

o espero defender.

Pois tenho gentil querela

qu’ ee muito milhor morrer

que o deixar de perder

ja por ela.

Dom Rodrigo de Moura.

Quanto em maior ventura

vos meterdes em perigo

por servir gram fremosura,

tanto mais a mor trestura

traz maior prazer consigo.

Assi qu’ ee d’ aventurar

vossa vida a perdê-la,

pois perder será ganhar

em tal querela.

Dom Carlos.

Logo triste fui perdido

como yo fui namorado

y tam presto avorrecido

como deixé mi cuidado.

Pois tam penado

me veo por pelear

con esta forte donzela,

milhor fora arrecear

sempre dela.

Outra sua.

Mi dolor foy tam crecido

por ver vossa fremosura,

que sabendo ser perdido

quise dar a mi ventura

yo tristura.

Que antes quero penar

por tam fremosa donzela

que fogir sem recear

sempre dela.

Francisco Bermudez.

Receos tenho passados

e sinto agora paixam,

que sam meus tristes cuidados

tam penados

que matam meu coraçam!

E o que minha vida assela,

pera menos mal passar

é qu’ ee mais pera folgar

perder por ela.

Pedr’ Homem.

Todo mundo quer servir

a que parece milhor,

mas s’ ela nam consentir

estaa certo oo despedir

a queixar-se o servidor.

E se todos contentar,

eu louvo muito perdê-la

e se nam, é de louvar

perder por ela.

Rui de Sousa.

Se vedes com’ eu começo,

ja vos tenho respondido

que, pois a morte ja peço,

menos mal é ser perdido.

Mas hei por groria penar

e por vida matar-m’ ela,

antes que me ver amar

doutra donzela.

Anrique de Melo.

Luita sempre meu cuidado

se direi, se calarei.

Se me calo, sam penado,

se o digo, morrerei.

Que farei?

Antes me quero queixar

por servir gentil donzela

que fogir nem recear

sempre dela.

Joam Lopez de Sequeira.

Se a dama por alguem

nam quisesse consentir

galantes querer-lhe bem,

escusado é mais ninguem

desejar de a servir.

Mas ante o recear,

louvaria todo dela,

que nam é guanho guanhar

com tal donzela.

Jorge de Melo.

Dama de gram fremosura,

dama de gram gentileza,

viver por ela em tristeza

hei-o por boa ventura.

Que nam é de recear

o perder por tal donzela,

pois d’ i se ganh’ oo folgar

de ser por ela.

Afonso Valente.

A dama que for fermosa,

mui descreta, mui sentida,

muito deve ser servida

e temida

da vida que daa penosa.

Mas assi proceda dela,

nam se deve de leixar

tal querela.

Reposta de Francisco da
Silveira à sua pregunta
.

Gram medo é cometer

quem meus males ha por viço,

mas moor groria é perder

mil vidas em seu serviço.

Tudo é de soportar

a tam fremosa donzela,

se nam der azo a conchar

s’ outrem dela.

609

DESPEDIMENTO DOS SERVI‑
DORES DA SENHORA DONA
LIANOR MAZCARENHAS,
PORQUE DISSE QUE SE
LHE TORNARAM
CORNIZOLOS.

D’ Afonso Valente.

Por em vós serem achadas

mil vontades repartidas,

vossas ameixeas crecidas

e de vós mal conhecidas

cornizolos sam tornadas.

Que quem bem vos conhecer,

fugir-vos-á,

e, se o nam quiser fazer,

morreraa.

Dom Joam de Sousa.

Ja vos tinha bem deixada

e tornva-m’ a perder,

nom querendo conhecer

nem folgando de saber

quam mal sois anaçoada.

D’ hoje mais chamar-me vosso

nam entendo,

mas, se jaa o fui e posso,

m’ arrependo.

Jorge d’ Aguiar.

Vosso gram desconhecer

vossas nam certas medranças,

vossas fracas esperanças

faram fazer mil mudanças

a quem mui firme nacer.

Polo qual com tais maneiras

nom culpar

quem por outrem levantar

suas bandeiras.

Rui Gomez da Grãa.

Com gram dor, com gram cuidado,

com mui sobeja tristeza,

é força fazer mandado

de vossa grande crueza.

A qual sempre mal obrando

contra nós,

nos manda partir de vós

brasfamando.

Afonso de Boim.

Aquestes que vos deixaram

como nestas copras vistes,

que triste vida levaram,

o que vós pouco sentistes,

vos pedem em gualardam

dos dias mal despendidos,

que vós lhe deis quitaçam,

como ja vossos nam sam

e vam de vós espedidos.

Fim.

Assi todos descansados,

como vossa mercê, vê,

livres de vossos cuidados,

que daveis demasiados,

se vam com vossa mercê.

610

DO PRIOR DE SANTA CRUZ
POLO PRINCEPE DOM AFON‑
SO, QUANDO CASOU DONA
BRANCA, COM QUEM
ELE ANDAVA D’ AMORES.

Lhoran mis ojos

y mi coraçon

com mucha razon.

Lhoran mi pena,

mi mal no fengido,

mi dicha no buena,

tan lexos d’ olvido.

Morió mi sentido

de biva passion,

con mucha razon.

Dom Joam, camareiro-mor.

Com tristes cuidados

tal vida faré

que consolaré

los desconsolados.

Seran acabados

mi mal y pasion,

con mucha razon.

Outra sua.

¿ Ado fuyré

del mal que me fiere?

¿ Si no os serviere

como biviré?

Pues triste diré

que la mi pasion

es sin redencion.

De Pedr’ Homem.

Se de mis dolores

descanso s’ alcança,

será em lembrança

de vuestros amores,

que san los mayores

que nel mundo son,

con mucha razon.

Outra sua.

Lagrimas mias.

amores primeros

seran derraderos

en fim de mis dias.

Seran profecias

de mi perdicion

con mucha razon.

Nuno Pereira.  

Lhoran dos vidas

com grande agonia

la vuestra y la mia

por seren partidas.

Seran concluydas

con coita y passion,

com mucha razon.

Outra sua.

Lhoran lembrança

de su triste vida,

lhoran esperança

que tienem perdida.

Mas no se l’ olvida

al mi coraçon

su lhoro i razon.

611

DE DUARTE DA GAMA, EM LIXBOA,
SENDO EL-REI EM ÇARAGOÇA, A JOAM
GOMES D’ ABREU, PORQUE ESTANDO
NA COSTA DOS PAÇOS, ANDANDO
D’ AMORES, LHE CAHIO Ũ CAVA‑
LO POLA COSTA E MORREO
LOGO E A ELE NAM
FEZ NENHŨ NOJO.

A morte deste cavalo

me mataraa de paixam,

se vos faz ir a Lorvam.

Nam teremos cá quem ria,

nem nós outros de quem rir,

nem quem faça poesia,

nem quem ouse cada dia

de cair.

Se quereis, senhor, servir

as damas de perfeiçam

nam vos vades a Lorvam.

Desta morte tam honrada

querem as damas saber

qual haveis por mais culpada

ou qual é mais magoada,

sem no ser.

E pois dela escapastes,

seraa mui grande rezam

que nam vades a Lorvam.

Agora querem saber

em que haveis de cavalgar,

agor’ ee o seu prazer

saberem qu’ haa i d’ haver

de que trovar.

Agora vos querem dar

em qu’ andeis ũu rocinam,

por nam irdes a Lorvam.

D’ hoje mais em musselado 

arraiado de latam,

fareis vossa habitaçam

ou em grande sindeiram

derrabado.

E de como andais honrado,

seraa bem que vosso irmão

leve as novas a Lorvam.

Dom Garcia d’ Albuquerque.

Pera vos desesperar

rinchou aqueste cavalo,

como cantou morto o galo

pera Judas s’ enforcar.

Vós deveis logo d’ andar,

sem tardar,

a buscar assolviçam

ò moesteiro de Lorvam.

Vossa pendença fareis

como fez El-Rei Rodrigo,

mas em moimento vivo

com cobra nam entrareis.

Porque s’ assi o fazeis,

pagareis

pola lingua com rezam

o trovar de maldiçam.

Parece-me grande error

padecer o inocente

ũa morte tam vidente

por culpa do pecador.

Oh que mal, oh que dolor,

que o senhor

cause morte ò rocinam

polo que fez em Lorvam!

Dom Bernaldim d’ Almeida.

Crede vós, senhor, por certo

qu’ o cavalo adivinhou,

em tomar morte tam perto

de quem certo lha causou.

E pois por si se matou,

ele achou

que era vossa salvaçam

o morrer de tal cajam.

Joam Paez.

Nam sejaes tam desatado,

falai com Bertolameu,

que por serdes dos d’ Abreu

vos daraa outro emprestado.

Que sejaes remedeado

com paixam,

maior é ir a Lorvam.

Que com magreza vos choute,

podeis dele aproveitar-vos

e pera nada gastar-vos,

mandai-lho como for noite.

Pois ja tendes em qu’ andar

este Veram,

nam vos vades a Lorvam.

É verdade que sam mancos

e vós tendes mui maao baço,

seraa bem que de dous rancos

vos ponham dentro no paço.

Sereis fora d’ embaraço

e andai chão,

nam cureis d’ ir a Lorvam.

Dom Afonso d’ Albuquerque.

Ateequi tempo perdido

foi todo quanto gastastes,

nam cuidastes

que era tam mal despendido

como despois o achastes,

mal andastes,

pois vos pareceo rezam

do paço fazer Lorvam.

Sua.

Por muito bem empregada

devieis, senhor, d’ haver

esta queeda desestrada,

que vos foi acontecer.

Pois certo s’ haa-de saber,

em Lorvam,

que morreo desse cajam.

Diogo Brandam.

Veo mui bem ao rocim,

pois ha tanto que nam come,

ser aquela sua fim

pola nam fazer com foome.

Nenhũ outro sam s’ assome

em nam fartar rocinam,

por nam morrer de cajam.

Este, que nam sei se deve,

comprou gordo e anafado,

em tres dias que o teve

o matou d’ entressilhado.

Vio-se tam desesperado

que quis mais morrer entam

que viver de sua mão.

Fez-lhe ter tam pouca fee

o tratá-lo de tal sorte,

que polo leixar a pee

quis tomar aquela morte.

Sofriam vida tam forte,

que foi d’ ambos redençam

o morrer de tal cajam.

O demo vos deu contenda

com damas e com amores,

nam é tanta vossa renda

o que por perda da fazenda

nam sintaes algũas dores.

Nam des causa a trovadores

que vos falem na feiçam,

polo nam saber Lorvam.

Pero Fernandes Tinoco.

Pois folgou mais de morrer

qu’ a ser vosso todavia,

é sinal que nam vevia,

quando o tinheis em poder.

Se lhe dereis de comer,

sequer por raçam,

nunca foreis a Lorvam.

Nam tenhaes, senhor, perfia

a quererdes o esfolar,

ca ond’ entra arrebentar

é dos gozos e comedia.

Pois foram em confraria

por ũu irmão,

nam vos presta ir a Lorvam.

Quis-vos Deos, ainda bem,

qu’ escapastes ò arreo,

seela, citara e freo,

que nam quis comprar ninguem,

Que valha tudo ũu vintem,

nam acharam

quem no tenha em Lorvam.

Ficar-vos-á soidade

como eu hei d’ ũa donzeela,

pois nam podês de verdade

dizer ao moço: — Sela!

Que defronte da janela

avoou pera o cham

quem vos fez ficar piam.

Nam vos dê ninguem abalo,

sofrê tudo na pousada,

pois que foi hora minguada

em que vos mingou o cavalo.

E ja agora desamá-lo

seraa coraçam

muito moor qu’ ir a Lorvam.

Mas segundo, senhor, sei

que de todo estais sem pelo,

s’ estivera aqui El-Rei

cavalgareis no camelo

ou trabalhai por havê-lo

d’ Aragam

e espantarês Lorvam.

Diogo Brandam, porque ouvio
dizer que Joam Gomez mandara
esfolar o cavalo e vender a pele
e que ũu moço seu a dera por
quatro vinteens e que ele
nam contente mandara
dizer a quem a comprou
que lhe desse a pele ou
mais dinheiro por ela.

Sabeis a nova que anda

do cavalo que morreo,

que a pele se vendeo

e ha sobr’ isso demanda.

A contia recebida

tem Jam Gomez, qu’ ee autor.

Queixa-se de mal vendida,

defende-se o comprador.

Vai a causa procedida,

sendo ja a pele cortida.

Rifam de Dom Garcia
a esta nova.

Hei gram medo

de vermos alguem calçado

da pele deste coitado.

Antes queria calçar

borzeguis de chamalote,

sendo certo de levar

trovas de riso e mote

ca sofrer dano tam forte

como é ver-me calçado

da pele deste coitado.

Ũ mandado s’ haa-d’ haver

do concelho e da justiça,

que ninguem ouse fazer

calçado pera trazer

desta pele por cobiça

de a vender,

polo pouco qu’ ha custado,

caro seraa o calçado.

Avisad’ os çapateiros

que dela nam façam nada,

ha mester i bainheiros

e tambem os correeiros,

posto que seja comprada.

Ser-lhe-á tornada,

que dela cinto pintado

é tam maao como calçado!

Ainda que é rezam,

e a mim mo parecia,

que morrendo o sindeiram,

partisse logo Joham

co ela à correaria

e seria

menos maao ser esfolado,

pera algũ cofre encoyrado.

Quem na comprou por oitenta,

faraa reedeas e lategos

sobrecarregas cinquenta,

inda que custe noventa.

As demandas e embargos

que amargos

seram ò triste coitado,

qu’ esfolou com tal cuidado.

Se a vossa s’ esfolara

nam sei por quanto se dera,

porque s’ ela nam trovara

eu creo que nam s’ achara

quem na de graça quisera.

E qu’ o trovar

é assaz mal empregado

o que por ela for dado.

Duarte da Gama.

Eu a Deos e à ventura

vendera-a òs açacaes,

para forrar atafais

ou cobrir enxalmadura.

Desta vez se m’ afegura,

s’ a demanda tanto dura,

qu’ o coitado

ha-de ser o condenado.

Assaz tem em que cuidar

quem dela fez tal barato

e tambem no desbarato

de nam ter em que andar.

Destas duas moor pesar

s’ espera qu’ ha-de tomar

este coitado

qu’ ha-de ser ja degradado.

Comas pera cabeleira

lhe mandou tambem cortar

e fez delas ũu bom par,

que vendeo a Jam Caldeira,

e tambem vendeo na feira,

qu’ o coitado

foi de todo despojado.

Dom Afonso d’ Albuquerque.

Juizes, vereadores,

regedores,

logo deveis de mandar,

sem tardar,

a todolos cortidores

que de cores

nam façam nenhũu calçado

da pele deste coitado.

Em cousas d’ outro mester

podeis mandar que se gaste,

e abaste,

nam o lancem a perder.

Haveis, senhor, de crer

que era ja remedeado,

encaminhado,

da pele deste coitado.

Dom Bernaldim d’ Almeida

Se se ha-de desfazer

em arcas pera guardar

quem se nam soube salvar

nem escapar

de tal morte padecer,

nam lhe metais em poder

nenhũ vestido emprestado

nem o vosso esfarrapado.

Sua.

Espanto-me, pois vendestes

a pele de tal maneira,

como a carne nam comestes

ou tasalhos a fizestes,

pera vender na Landeira

ou na Silveira,

que nelas comem salgado

o cavalo por veado.

Joam Paez.

A abadessa mui sentida

estaa disto com rezam,

ser a pele aqui vendida

e tam prestes consomida,

pertencendo a Lorvam.

Nam lhe daram,

quando lá for, gasalhado

por ser na venda culpado.

Diogo Brandam.

Por esta pele buscá-lo

ando ja de rua em rua,

foi seu pecado cegá-lo

em vender a do cavalo,

por lhe falarem na sua.

Sendo crua

lhe foi o rabo cortado

e pentem nele pegado.

Nem sei porque quer havê-la,

tendo o preço por inteiro,

se quer arca fazer dela,

o que ha-de meter nela

queria saber primeiro.

Mais verdadeiro

é aqueste seu cuidado,

que nam de ser namorado.

Oh que manhas de fouveiro,

oh que fim pera louvar,

milhor foi que ser ligeiro,

gastar na vida dinheiro

e i-lo na morte dar!

Foi erro bem de culpar

e condenar

em ser Joam degradado,

nam sendo nada culpado.

A vertude desta pele

é rezam que se celebre,

qu’ ainda que se querele,

nam podem dizer por ele

que vende o gato por lebre.

Que com monjas se requebre,

nam é nelas tam culpado

que mereça desterrado.

Profacio Pascoal.

Sua morte desviou

a que o cavalo morreo,

a vida lhe repairou

porq’ entam reçucitou,

quando lh’ a pele vendeo.

E por tanto mereceo

o esfolado

ser dele sempre adorado.

Pero Fernandez Tinoco.

Por demanda que mais ata

em certo vos provarei

que quem soo por si se mata

o vestido é d’ El-Rei.

Mas eu nam lho pedirei,

pois sam lembrado

que foi vosso o esfolado.

Sua e fim.

Devereis coma guineu

de fazer a carne em postas

ou trazer a pele às costas

como Sam Bertolameu.

Mas vendê-la coma judeu

desmedrado,

fostes mal aconselhado.

De Joam Gomez d’ Aabreu,
antes de ver estas trovas, por‑
que sendo degradado, lhe
disseram que lhas
faziam.

Veo-m’ aas orelhas ter,

cá ond’ ando degradado,

que me têm ja lá trovado.

Em cuidar que sam partido

todos ousam de falar,

mas vós crede qu’ eu envido

para quando laa tornar.

Quem quiser trovas fazer

seja bem certeficado

que seraa rijo cimbrado.

A Tinocos e a Noronhas

ponho culpas poucachinhas,

porque ja em trovas minhas

descobri suas vergonhas.

E contudo lh’ haa-de ser

seu trabalho bem pagado,

em que seja degradado.

Cabo.

Dizem caa nesta comarca

que laa querem ser das damas

Paiz, do Sem, Brandões e Gamas,

outra jente desta marca.

Se lh’ eu isto vir sofrer,

eu me dou por bem vingado

ser por elas degradado.

De Joam Gomez d’ Abreu, depois
que vio as trovas que lhe fizeram,
a estes abaixo nomeados, em que
faz deles bestas e os manda
citar por parentes do cava‑
lo, se o querem acusar
pela morte dele.

Foi citado Dom Garcia

por parente do cavalo,

respondeo que nam queria

acusar nem demandá-lo.

Que se livre é gram rezam,

pois nam foi nada culpado.

— Falai laa com meu irmam

qu’ estaa disso magoado.

A Dom Afonso.

Respondeo com grand’ aquesta:

— O irmão, vós que dizeis?

Por ventura sou eu besta

ou que deemo me quereis?

Inda qu’ eu ande vestido

nesta loba assi çafada,

nam cuideis qu’ ando sentido

desta cousa quasi nada.

A Simão de Sousa do Sem.

O de Sousa e mais do Sem

respondeo com grande sanha:

— Nam me cite a mim ninguem,

que não tenho jaa essa manha.

Antes sei mui bem cantar

estas damas, minhas dores,

hei-as todas de matar

de riso, que nam d’ amores.

Outra sua.

J’ eu ũ hora ouvi na fresta

da senhora Dona Maria

ũa dama que dizia:

— Tende mãao naquessa besta!

Mas quant’ eu nam entendi

tal falar

nem cuidei que o aziar

se pedia para mi.

A Dom Bernaldim.

Oo mui doce Bernaldim

de gangorras farto e cheo,

devereis de ter receo

de fazer trovas a mim.

— Que ereis vós oo meu rocim

ou oo asno da Ifante?

Respondeo: — Sam mor galante

que haa no cham d’ Alquemim.

A Joam Paiz.

A Joam Paiz foi pobricada

esta nossa citaçam.

Respondeo: — Sam escrivam

o que nam jaa besta albardada.

Eu cuidei d’ ir em batel

com fidalgos esta festa

e acho que fico besta

sendo jaa dantes tonel.

A Pero Fernandez Tinoco.

O Tinoco s’ agravava

dizendo com grande dor

das que tinha:

— Pardeos, ee desonra brava

citar ũ comendador

por bestinha!

Inda qu’ eu seja doente

e diga bem d’ ũ perna,

por vingar o meu parente

irei morrer aa taverna!

612

DO CONDE DE BORBA A FRAN‑
CISCO D’ ANAYA, QUE VEO A POR‑
TUGAL COM GRANDE DOO E
TRAZIA Ũ JAEZ DOURADO E
ENVERNIZADO, POSTO
SOBRE PANO DE DOO
E MUITO LARGO,COM
GRANDES ENXAR‑
RAFAS PRETAS.

Rifam

Que cabeçadas, peitoral,

que seu dono

é entrado em Portugal,

que nos faz perder o sono.

Fez por doo este senhor

para si este jaez,

para nós tem mais sabor

e é milhor

ca se fora feito em Fez.

Nam tenhais qu’ ee de metal,

se nam seu dono,

que veo tam cordial

que nos faz perder o sono.

Joam Fogaça.

Certo nam diraa ninguem,

segundo creo,

senhor, que o vosso arreo

foi feito em Tremecem

nem que lhe parece bem.

Nem digo por dizer mal

de seu dono,

mas o vosso peitoral

é tal

que nos faz perder o sono.

Outra sua.

Caparazam, cabeçadas

e tudo o al do cavalo

e velhacas alcaladas,

que ainda calo,

por serem tam desastradas.

E nam digo agora al,

porqu’ hei sono,

se nam toma peitoral

polo mal que fez teu dono.

Outra sua.

Das caixas envernizadas

crede, senhor, que m’ abalo,

porque sam meas douradas,

enxarrafadas,

nas quaes agora nam falo.

Quem fez tam mao peitoral

nam perdeo sono,

o qual veo a Portugal

por muito mal de seu dono.

Diogo Brandam.

Nam m’ espanto ja da sela

nem das citaras de fundo,

que tudo ha em Castela,

mas espanto-me ver nela

outro ja nomem segundo.

Oo jaez especial,

tu fazes perder o sono,

tu fazes presumir mal

de teu dono!

Requerimento a Antonio Carneiro.

Senhor Antonio Carneiro,

porque nisto vai a vida,

vós tomai de nós dinheiro,

alongai esta partida.

Oo menos até Natal

lhe fazei perder o sono

e, se nam quiser seu dono,

fique cá o peitoral.

Sancho de Pedrosa.

Nam ha i saber nem siso

que se triste nam fizesse,

se nos Castela nom desse

tantos bocados de riso.

Grande Inverno lhe nom val  

nem as chuvas dest’ Outono,

tudo passou por seu mal,

pois se vio em Portugal

est’ arreio com seu dono.

Outra sua.

Mazaganis africanos

mui lindos trazem jaezes,

mas tirão outros das fezes

para matar castelhanos.

Em passo tam desigual

dormem seu folgado sono,

cuidando qu’ em Portugal

nam riram disto tal

e de seu dono.

Dom Manuel de Meneses.

Ha i tanto que falar

em jaez desta maneira,

que sendo bem de notar

a cabeleira

fica ja em nam lembrar.

Bem custou o peitoral

a seu dono,

pois o troux’ a Portugal

a fazer perder o sono.

Dom Joam de Meneses.

As cousas muito gabadas

nam podem parecer bem

e porem

peitoral e cabeçadas

nam nas vi taes a ninguem.

S’ o arreio todo é tal,

de seu dono

haverá em Portugal

muito mais riso que sono.

Outra sua.

El-Rei nosso Senhor creo

que gabou o caparazam

e dobrou-lh’ a presunçam,

que ja tinha do arreo.

Diz que faz o peitoral

perder o sono,

mas o caparazam é tal

que fará perder seu dono.

Outra sua.

Nam sei quem vos aconselha,

mas sois mal aconselhado,

pois trazeis vossa guedelha

nas guedelhas d’ um finado.

Fernam Brandam.

Mui grande graça foi esta

daqueste jaez um soo

trazê-lo ele por doo

e cá fazem dele festa.

Para sempr’ em Portugal,

inda que moira seu dono,

ficará o peitoral

immortal,

pois nos faz perder o sono.

De Jorge de Vasconcelos e fim.

No estremo com carneiros

nam cuideis que o passou,

mas diz que nũs simideiros

tomado dos portageiros

por atafal o salvou.

E depois que perdeo o sono

por meter ũ atafal

por jaez em Portugal,

é para rir de seu dono.

613

DE PERO DE SOUSA RIBEIRO A
ESTES CASADOS ABAIXO NOMEA‑
DOS, QUE ANDAVAM D’ AMORES
E PARTIA-SE EL-REI COM A
RAINHA PERA ALMEIRIM.

Ao Marquês.

O primeiro entremes

em que quero começar

seraa o senhor Marquês,

entam dahi altracar.

O qual des que passou Maio

ategora, qu’ ee Setembro,

todo seu braço e nembro

tem mais mangas qu’ oo Sampaio.

Tem atacas, tem madeixas,

tem sedas de muitas cores

e de todos seus favores

a Marquesa nam tem queixas.

E tem, a meu parecer,

mais mangas per’ Almeirim,

mas se tal acontecer,

mal por ele, bem por mim.

Ao Conde de Marialva.

Marialva tem tomado

este caso d’ afeiçam,

qu’ hei medo ser condenado

com aljofar em gibam.

Mas s’ a partida d’ El-Rei

ha-de ser detreminada,

eu fico que o darei

na cinta cũa esmaltada.

Ao Conde de Borba.

O Conde de Borba tem

tanta graça neste feito,

que lh’ havemos ja por bem

ficar ũ pouco desfeito.

Mas no cabo do caminho.

s’ eu nam estou enganado,

Jam da Silva é brasfamado

ou eu nam sou adevinho.

A Dom Diogo.

Em Dom Diogo nam falo,

porqu’ ee mor cousa do mundo,

e pois nela nam ha fundo

sem o mais trovar me calo.

E contudo é mui bem

que nam negue sua fama

dar conta disso que tem

cada dia a sua dama.

Ao Baram.

Guardava per’ oo Baram,      

que tem feitos vestidos,

e começo no gibam,

senhores, é de tecidos.

Ora vede que pelote

lhe pode em cima lançar,

haa-de ser de chamalote

e ha-o de debrũar.

Ao Conde de Vila Nova.

Dom Martim de Castel Branco

tem tanto pera falar,

que creo que haa-de aguar

ou ficar ja sempre manco.

E juro por Deos dos celos

que estaa bem espiado

e visto qu’ ee conselhado

polo de Vascoconcelos.

Outra a ele.

Tem mui grande aparelho

par’ homem nele trovar,

alem de desconfiar

jaz em vestido vermelho.

E tem mais que eu nam calo,

nem era pera calar,

qu’ ham-d’ ir ele e Dom Gonçalo

ũ polo outro falar.

A Anrique Correa.

Anrique Correa tem

qu’ ee da sua mesturada,

ora vede quanto bem

pera a trova ir ornada.

E nam será maravilha

por sêla graça comprida,

conselho tomar da Ilha

acerca desta partida.

A Dom Lopo, Conde d’ Abrantes.

Dom Lopo quero leixar,

porque tem no gasto feito,

tambem tenho bom respeito

a o eu mal nam tratar.

E porem por se guardar

de perigos ou cajões,

compre-lhe de s’ apartar

d’ alamares ou botões.

Cabo.

Outros haveraa casados

que se querem namorar,

mas eu os leixo folgar,

que os nam dou por achados.

E por mais nam s’ alongar

a obra que vai crecendo,

quero-me logo louvar,

que pus nela tal tovar

que me vou todo tremendo.

Destes casados abaixo nomeados
e doutros solteiros a Pero de Sousa
Ribeiro em pago destas trovas,
que fez por seus pecados, e
começa logo Joam Fogaça
em nome do corregedor da
corte, com o pregam que
manda lançar.

Pague tres mil em dinheiro

quem daqui atee Janeiro

em outra cousa falar,

senam em rir e trovar

Pero de Sousa Ribeiro.

A quem souber envençam,

jeitos, trajos e gibam,

di-lo-aa logo sô pena

de pagar aquela pena

que se contem no rifam.

E como passar Janeiro

poderaa qualquer obreiro

di avante trabalhar,

que nam manda mais guardar

Pero de Sousa Ribeiro.

Joam Fogaça.

Fez pelotes, fez capuzes,     

fez giboons e fez barrete,

fez de prata bracelete,

traz na boca vera cruzes

milhor que freo ginete.
Fez arreo do fouveiro,

que val mui pouco dinheiro,

fez cousas para pasmar,

as quaes nam pode negar

Pero de Sousa Ribeiro!

Dom Gonçalo Coutinho.

Amarelo ũ pelote

sacou de ja sus bordado,

com que levou tanto mote,

que depois sempre de cote

foi ategora zombado.

Por amores nũ ceiceiro

dizem que foi o primeiro

qu’ enventou o voltear,

este é sem vos bulrar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Eu lhe vi capuz frisado,

em que ainda nam falastes,

de prata todo franjado,

item mais fez um tabardo

com botõoes d’ ambalas partes.

E pois gasta seu dinheiro

com alfaiates, sirgueiro,

para nos desenfadar,

é homem pera prezar

Pero de Sousa Ribeiro.

Do Conde de Vila Nova.

Faz mil geitos nũ serãao

com que faz a gente rouca

de rir e nam ja em vãao.

Traz ũ cabelo na mão

milhor ca Çaid ũa touca.

Quem quiser todo Janeiro

e quinze de Fevereiro

poderaa sempre zombar,

sem ter de que s’ agravar

Pero de Sousa Ribeiro.

Joam Rodriguez Pereira.

Vejo o paço alvoroçado,

vejo-os todos remexer,

dizei que fostes fazer,

cunhado, ja pousentado.

Dou-m’ oo demo todo inteiro

co trovar ja de fumeiro,

que quisestes renovar,

porque dais em que falar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Fota, capelhar vermelho,

tahili e um terçado,

nũa mula, cum espelho

na mão, diz que foi achado,

em Vagos, cerca d’ Aveiro,

aa sombra d’ ũ castanheiro.

Isto nam vai por palrar,

mas por pena nam pagar

Pero de Sousa Ribeiro.

Anrique Correa.

N’ eestalajem da Guerreira

é certo que foi achado

muitas seestas

e sabeis de que maneira:

cum mui bom capuz chapado,

que lhe deu El-Rei nas festas.

E diz o estalajadeiro

que nam ficou caminheiro

que quisesse mais andar,

por virem todos oulhar

Pero de Sousa Ribeiro.

Jorge de Vascogoncelos.

Vi-lh’ ũa manha fazer

que nam fizera ũ mouro:

do estribo polo ver

tirar o pee e meter

em corro indo com touro.

E nam ficou no terreiro.

portugues nem estrangeiro

que nam fizesse apupar,      

quando viram remirar

Pero de Sousa Ribeiro.

O Conde de Marialva.

Vi-o ja canas jugar,

vi grande prazer em vê-lo,

vi-o mal arremessar

e vi-o logo tornar

e pôla mão no cabelo,

No serãao e no terreiro

lhe vi tanto por inteiro         

destes seus jogos usar,

que se deve bem trovar

Pero de Sousa Ribeiro.

Nuno Pereira.

Grosas nam saem d’ antre nós,

querem cá dizer qu’ ee tacha

olhar-se homem, se se acha,

se sõoes outrem, se sõoes vós.

Pode ser maior marteiro,

se no ombro cae argueiro,

que nam s’ ha-d’ espenicar,

entam vam rir e trovar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Por mercê haja perdam,

que o fiz mais que forçado

com receo do pregam

e de nam ser penhorado.

Nam tenho beens nem dinheiro,

hei medo do pregoeiro

num escravo penhorar

quem vos mandava trovar

Pero de Sousa Ribeiro.

Dom Diogo.

Dou oo demo vossos feitos

que vos trazem tanto dano,

homem feito pelicano

que cos olhos fer’ os peitos.

Nũ amor tam verdadeiro

coma o meu e tam inteiro,

nam devereis de tocar,

pois i havia trovar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

O qu’ a minha senhora falo

é o menos que lhe quero

e o que mais sinto calo,

que dizer-lho nom espero,

se me nam mata primeiro

seu amor, que é tam guerreiro.

Pois vos fostes desamar,

eu vos farei esmaiar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Vós de tantos filhos padre,

vós que ja tres reis lograstes,

s’ enfadastes sua madre

como na filha cuidastes?

Pois já soes o derradeiro

daquele tempo primeiro,

compre-vos mais repousar

que trovar nem namorar,

Pero de Sousa Ribeiro.

Manuel de Noronha.

Se tevessemos memoreas

pera tudo nos lembrar,

ha nele cem mil estoreas

notaveis pera contar:

É de Cristos cavaleiro,

muitas vezes foi zombado

por geitos, trajos, coçado,

Pero de Sousa Ribeiro.

Anrique de Sousa.

Sem falar com afeiçam,

as enxarrafas d’ um cinto,

polas tirar dum gabam,

levou-as limpas na mão,

e nam cuideis que vos minto,

Pero de Sousa Ribeiro,

que é, senhores, tam mosqueiro,

com bolir e rabear,

que nam lhe pode durar

cousa que faça sirgueiro.

Gonçalo da Silva.

Vede qual apodadura

parece sua mercê:

frouva qu’ em agua se vê

ou ave qu’ oo sol se cura.

Viva-nos tal cavaleiro,

que o paço tod’ inteiro

quis agora renovar,

com dar sempre de folgar,

Pero de Sousa Ribeiro.

O Marichal.

Sejam-lhe logo arrincados,

por trazer a boca bem,

os colmilhos, ou ferrados,

pois que dana com bocados

cordões, cruzes, quanto tem.

E mais diz ũ serralheiro

que pague certo dinheiro.

se lh’ a boca bem olhar,

se logo nam enfrear

Pero de Sousa Ribeiro.

Dom Rodrigo de Meneses.

Eu eest’ homem nam lhe vi

fazer cousa de tachar

nem som muito de louvar

algũas que dele ouvi.

Se lá vem ser maao toureiro

nem ficar emborazeiro

nam lhe podem ja tirar

ser mui doce pera olhar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Tambem estou descontente

de nam serdes conselhado,

ante de fazer presente

o que ja tinheis passado.

Como o demo é arteiro

e vós useiro e vezeiro

tomou-vos, fez-vos falar,

que fora milhor calar,

Pero de Sousa Ribeiro.

Dom Afonso de Noronha.

Se Veneza embaixador

outra vez aqui mandar,

eu lho hei-d’ ir amostrar,

por matar

de prazer o monseor.

Ca voto a Deos verdadeiro

qu’ ee erro vir estrangeiro,

que hajam de festejar,

sem lhe logo nam levar

Pero de Sousa Ribeiro.

As donzelas da Infante.

Havemos dele gram doo,

fidalgo velho e honrado,

em triste dia minguado

naceo ele em Figueiroo.

Logo disse ũ feiticeiro

que havia num Janeiro

ũ gram trabalho passar,

que er’ escusado criar

Pero de Sousa Ribeiro.

As damas da Rainha Dona Lianor.

A todas muito nos pesa

por assi ser esta cousa,

triste de Pero de Sousa

que tomou tam maa empresa!

Com seu olho remeleiro

e na mão o seu babeiro,

cá o viamos entrar

antes do demo tomar 

Pero de Sousa Ribeiro.

O Baram.

Mandou El-Rei na fazenda

riscar tenças e padram,

té qu’ em vosso caso entenda

cos da sua Rolaçam.

E mandou ò tesoureiro

que vos nam dê mais dinheiro

atee se determinar

que na corte hajaes d’ andar

Pero de Sousa Ribeiro.

Guerra, queixando-se a El-Rei.

Senhor, as vossas donzelas

eu ja guardá-las nom posso,

que por ver est’ homem vosso

nam m’ aproveita co elas

fechar portas nem janelas.

E pois nam dam por porteiro

antes que venha Janeiro,

me mandai remedear

ou fazei-lhes bem mostrar

Pero de Sousa Ribeiro.

O Conde de Borba.

Nam hajais por maravilha

nam poder tam bem guardar

Jam da Silva sua filha.

Que me leixe de matar

que por ela sam sojeito

e despeso,

porqu’ ee dama de tal peso

que me tem todo desfeito.

Outra sua.

E quem nisto quis trovar

eu lhe tenho perdoado,

pois tambem me fez lembrar

quanto sei que tem passado.

Qu’ eu o vi ja nũ terreiro,

com mil cousas de sirgueiro,

tanto olhar e remirar,

com qu’ espero d’ agastar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Tudo isto nom é taibo,         

antes era mui marfuz,

quero-lhe leixar ũ saibo

com que traga

na sa boca a vera cruz.

Pois nam acho ja seleiro.

boticairo nem tindeiro

que nos queiram trabalhar,

por ir todos contemprar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Tudo isto vai mui brando

e é bem que assi se faça,

por mais ir dessimulando

o começo desta graça.

Eu, porem, tomo ũ parceiro

que me veja por dinheiro

quantas vezes vei olhar

do seu pee at’ ò colar

Pero de Sousa Ribeiro.

Outra sua.

Nam tem Deos mais qu’ arranhar

par’ O eu sempre louvar

que me dar ũ homem feito,

em que haja tanto geito

que me vai desenfadar.

Eu estou apercebido

se o vejo mais trovar

e lh’ ouvir dizer invido,

para logo revidar.

D’ Anrique de Figueiredo e fim.

Por muitas razões me calo

do que se poode dizer,

nam sei quem poode fazer

a mouro morto matá-lo.

Ande solto no terreiro

o mes todo de Janeiro

para nos desenfadar,

e quem no quiser olhar

pague dous reaes primeiro.

614

A VINTE E NOVE DIAS DE

DEZEMBRO DE MIL E QUATROCEN-

­TOS E NOVENTA, FEZ EL-REI DOM

JOAM, EM EVORA, ŨAS JUSTAS

REAES NO CASAMENTO DO PRIN-

CEPE DOM AFONSO, SEU FILHO,

COM A PRINCESA DONA ISABEL DE

CASTELA. E FOI O DIA DA AMOS-

­TRA ŨA QUINTA-FEIRA E AA SESTA

SE COMEÇARAM E DURARAM TEE

Ò DOMINGO SEGUINTE. E EL-REI

COM OITO MANTEDORES MANTEVE

A TEA EM ŨA FORTALEZA DE

MADEIRA SENGULARMENTE FEITA,

ONDE TODOS ESTAVOM DE DIA

E DE NOITE, QUE TAMBEM JUS­TA-

VAM. E AS LETRAS E CIMEI­-

RAS QUE SE TIRAM SAM ESTAS.

Os mantedores.

El-Rei trazia ũus liames de nao
e dezia a letra:

Estes liam de maneira

que jaamais poode quebrar

quem co eles navegar.

O Prior de Sam Joam trazia
Alexandre em cima dos
grifos e dizia:

No es menor mi pensamiento,

mas ha quebrado tristura

las alas de mi ventura.

Dom Diogo d’ Almeida trazia
ũa boca d’ Inferno com
almas e dizia:

Nembraos de mis passiones,

animas, y descansareis

de quantas penas teneis.

Joam de Sousa trazia ũa
besta fera e dezia:

Aquesta guarda sus armas,

mas a mi, qu’ amor enciende,

nunca delhas me defiende.

Aires da Silva trazia um cam
Cerveiro e dezia:

Guardas tu, mas no tan cierto,

como yo siempre guardé

la fee del bien que cobré.

Veopargas, frances, trazia ũa

cabeça de cabra e dezia:

Quien me tocare naquesta,

yo le romperé la testa.

Dom Joam de Meneses trazia
ũ icho com ũ homem metido
tee cinta e dezia:

Es tan dulce mi prision

que deve, pera matarme,

no prenderme, mas soltarme.

Alvaro da Cunha trazia ũa
harpa sem cordas e dizia:

Quanto más oye alegria

quien no alcança ventura,

tanto más siente tristura.

Rui Barreto levava ũ banco
pinchado e dizia:

Más quiero morir tras el,

sus peligros esperando,

que la muerte recelando.

Aventureiros.

O Duque trazia seis justadores

seus e ele e eles traziam

os sete planetas.

O Duque levava o deos
Saturno e dizia:

El consejo qu’ hee tomado

deste mui antigo dios

es dexar a mi por vos.

Dom Joam Manuel levava
o Sol e dizia:

Sobre todos resplandece

mi dolor,

porque es el qu’ es mayor.

Pedr’ Homem trazia Venus
e dizia:

Si esta gracia y hermosura

puede darla,

de vos tiene de tomarla.

Garcia Afonso de Melo
trazia a Lũua e dizia:

Ante la luz de su lumbre

de vuestra gran claridad,

es la desta escuridad.

Lourenço de Brito trazia
Mercurio e dizia:

No hay saber ni descricion

al que os mira,

porqu’ em vendos se le tira.

Joam Lopez de Sequeira
levava Mares, deos das
batalhas, e dizia:

La vitoria que de aqueste

he recebido

es verme de vos vencido.

Antonio de Brito levava

Jupiter e dizia:

Aqueste suele dar vida

al que más servir se halha

y vos al vuestro quitalha.

Os outros aventureiros que
vieram per si.

Dom Fernando, filho do Mar‑
quês, trazia ũu forol e
dizia a letra:

En el mar de mi deseo,

viendo su lumbre segui

a elha y dexé a mi.

Pedr’ Aires, castelhano, trazia
ũa serpe e dizia:

La vida pierde dormiendo

el que muerde est’ animal,

y yo calhando mi mal.

Dom Anrique Anriquez
trazia ũa torre com
ũu sino e dizia:

Este sona mi servicio

ser com vos

tan cierto como con Dios.

O Conde d’ Abrantes trazia
ũa hidra de sete cabeças
e dizia:

Quando sanam d’ um dolor

los que como yo padecen,

siete del se le recriecen.

O Capitam Fernam Martinz
trazia ũa atalaia e dizia:

Ha descubierto mi vida

desde aqui

gran descanso pera mi.

Dom Rodrigo de Meneses

trazia ũas limas e dizia:

Estas sueltan las prisiones

de que muchos ham salido

y a mi ham más prendido.

O Conde de Vila Nova
levava ũa mão com ũs
malmequeres e dizia:

Cem mil destas desfojé,

mas fue mi ventura tal

que siempre quedo nel mal.

Jorge da Silveira levava
ũas fateixas e dezia:

Van buscando mis servicios

el gualardon que cayó

donde nunca pareció.

Dom Diogo Pereira levava
o Anjo Sam Miguel com
balanças e dezia:

Se a mi gram querer y fee

gualardon tiene defesa,

tu lo pesa.

Dom Rodrigo de Castro
levava a torre de Babilonia
e dizia:

Es tan baxa mi ventura

y tan alto elh’ edificio

que no basta mi servicio.

O Barãao Dom Diogo
Lobo trazia um liam
rompente e dizia:

Con sus fuerças y mi fee

todos mis males dobree.

Dom Pedro de Sousa trazia
ũ matador e dizia:

Vuestra vista desbarata       

más do qu’ este roba y mata.

Francisco da Silveira trazia

lũuas cheas e minguadas e dizia:

Las menguadas son mis bienes

y por mi dicha ser tal

las lhenas son de mi mal.

Pero d’ Abreu trazia
ũa aguea e dizia:

Nam t’ espantes do que faça,

sigue-me bem e verás,

eu te matarei a caça

e tu a depenarás.

Diogo da Silveira trazia
ũu madronheiro com ma‑
dronhos e dizia:

Neste remedio de vida

tengo la mia perdida.

Sua.

Ferido busqué aquesto

por remedio de mi mal,

mas no puedo, qu’ es mortal.

Nuno Fernandez d’ Ataide
trazia ũus fetos e dizia:

En el começo daquestos

comencé

y nelhos acabaré.

Garcia de Sousa trazia
ũs compassos e dezia:

No puede ser compassada

la fee que vos tengo dada.

Arelhano trazia ũa celada
e dizia:

Es descanso de mi mal         

ser en aquesta celada

toda mi vida gastada.

Diogo de Mendoça levava
ũas ancoras e dizia:

Que venga toda fortuna,

jamas sueltam vez nenguna.

615

ESTES SAM OS PORQUÊS, QUE
FORAM ACHADOS NO PAÇO
EM SETUVAL, EM TEMPO
D’ EL-REI DOM JOAM,
SEM SABEREM
QUEM OS
FEZ.

Pois que vemos tantos modos

d’ homens, os quaes nam sabemos,

rezam é que preguntemos

o porque o fazem todos.

Porque nam Vila Real

come galinha nem pato?

Porque o Prior do Crato

apanha tanto enxoval?

E porque tam bem guardado

tem Abranches seu dinheiro?

Porque o mor Camareiro

soo trocar é seu cuidado?

Porqu’ ousam d’ ir oo serão

Saldanha e Jorge de Melo?

Porque é Afonso Telo

tam amigo de melão?

E porque tem seu irmão

emparedada a molher?

Porque tam mal Dom Joam

sabe cantar, a meu ver?

Porque traz de cavaleiro

Dom Gonçalo presunção?

Porque Abranches Dom Joam

s’ embrida como gaiteiro?

Porque ha por asselado

Lopo da Cunha o que diz?

Porque fala Joam Moniz

com’ homem qu’ anda pasmado?

E porque tam acupado

é na caça Dom Rodrigo?

Porque ò Lobo alvitonado

nam lhe sabemos amigo?

E porque vida tam vãa

fazem Correa e Pereira?

Porque anda Joam Caldeira

tam calvo pola manhãa?

Porque Tinoco Fernam

d’ Ingraterra tam asinha?

Porque Bucar Dom Joam

tanto olha pola sobrinha?

E porque todo Miranda

pende à banda dos maiores?

Porque Dom Anrique anda

tam redondo nos amores?

Porque daa nenhũa cousa

Marialva a castelhanos?

Porque sobre novent’ anos

é mundanal Rui de Sousa?

Porque seu filho primeiro

no Inverno traz çafões?

Porque com tantos botões

vem Dom Duarte oo terreiro?

Porque Nicolao seu ponto

traz em se vender aa jente?

Porque louvam tam sem conto

Almeidas qualquer parente?

Porque fala tanto à mesa

Lopo Soarez na guerra?

Porque tem tam boa presa

Viseu no odre qu’ aferra?

Porque Diogo da Silveira

requere ser do conselho?

Porque traz Nuno Pereira

cabeleira sobre velho?

E porque tanta hipocresia

ha em Saldanha Diogo?

Porque parece morcego

Dom Luis ao meio-dia?

Porqu’ ee Dom Luis Coutinho

tam leve qu’ anda nelh’ aire?

Porque tantas filhas pare

a molher de Dom Martinho?

Porque Pero de Baiam

diz mal d’ Antam de Faria?

Porque Pedr’ Homem trazia

tanta cilada em gibam?

Porque nam pode a demanda

o Tavares acabar?

Porque Vasco de Miranda

nunca leixou de furtar?

Porque Jam Lopez Sequeira

cuida qu’ ee tam ressabido?

Porqu’ a Francisco Silveira

nunca se rompe o vestido?

Porque se mostra feroz

Mazcarenhas capitão?

Porque Lima Dom Joam

nunca ũ hora com’ arroz?

Porque o Coudel-mor fez

tanta má trova escrever?

Porque Afonso d’ Alboquer

dá pareas a El-Rei de Fez?

Porque Anriquez Dom Anrique

é mais ventoso que Maio?

Porque no campo d’ Orique

nunca naceo papagaio?

Porque nunca da ucharia

Rui Lobo nada dar quer?

Porque traz rebolaria

Alvaro Lopes de saber?

Porque o Barrocas anda

de tantos lares corrido?

Porque Aires de Miranda

cada mes lança ũ pedido?

Porque tanto casamento

Dona Felipa ja vio?

Porque de tanto enguento

Teixeira o rosto cobrio?

Porque Dona Branca mais

presume do qu’ ee fermosa?

Porque se vem a da Rosa

oo serão e outras tais?

Porque Francisca de Sousa

é tam chea d’ autoridade?

Porque sai em tanta cousa

Dona Orraca ao padre?

Porque tanto arrebique

Isabel Cardosa traz?

Porque é tam mao rapaz

Dona Margarida Anrique?

Porque fala todo o dia

por todos Britiz Pereira?

Porque traz Dona Maria

sôs braços tal raposeira?

Porque Dona Guiomareta

nunca tem o rosto quedo?

Porque nam dam com ũa seta

a Jacome e Azevedo?

Cabo.

Cos porquês deveis folgar,

pois que a ninguem empece

e ria quem s’ alegrar

e quem nam va-se beijar

onde lh’ a pele falece.

616

DO CONDE DO VIMIOSO A Ũ FI‑
DALGO QUE NO SERÃO D’ EL-REI
SE METEO EM ŨA CHIMINE E
FEZ SEUS FEITOS NŨ BRA‑
SEIRO E DIZIAM QUE ERA
Ũ DOS CAPITÃES QUE
IAM A TORQUIA
COM O CONDE
DE TAROUCA.

Foi feito tam atrevido

o dest’ homem que devia

nam parar at’ à Torquia.

Sua.

Será lá ũ Anibal,

fará feitos de Pompeo,

pois cá fez façanha tal,

com qu’ esqueçeo o Cabral

e outros que nam nomeo.

Valente e mal sofrido

deve ser quem se vencia

no serão de tal porfia.

Sua.

Correo risco o estrado

por ser lonje a chemine,

vio-se tam afadigado,

o coitado,

que nam pôde mudar pee.

A pee quedo e combatido

usou de tal valentia

que saio como queria.

Dom Gonçalo Coutinho.

Duas onças d’ ũ serãao

tomadas por noite fria

fazem maior purgação

ca cinco d’ escamonia.

E se for homem corrido

num braseiro, em ũ dia

fará o qu’ eu nam diria.

Outra sua.

O diabo lh’ afirmou

que o faria envesivel

e aa cinza o levou

sem o entender o civel.

E depois que acolhido

o vio e vivo fedia,

abalou-se, que morria.

Joam da Silveira.

S’ a Veneza for mandado,

compre-lhe nam ir por mar,

sem levar a bom recado

ũ navio despejado

para s’ ele despejar,

E com quam apercebido

desta maneira eu iria,

inda nam m’ atreveria.

Outra sua.

Para serem como sam

vossas culpas perdoadas,

valeo-vos esta razam:

ser de camara o serão

e bem de camara, ousadas.

Que se em sala cometida

fora tal descortesia,

nunca se perdoaria.

Diogo Brandam.

O mundo vai de maneira

que ja nele tudo achais:

ũu fez aguas na primeira,

outro foi casar à Beira,

este descobrio jamais

qu’ at’ aqui nam foi sabido,

qu’ em braseiro se podia

fazer tal galantaria!

Outra sua.

Se nam fora em chemine,

que foi logo polo vão,

pastilhas, lenho-aloe

nem os cheiros de Guine

nam bastaram no serão.

Porqu’ era tam desmedido

o grão olor que sahia

que por fora recendia!

Alvaro Fernandez d’ Almeida.

Ja nos nam dará fadigas

Branc’ Alvarez com suas mãos,

aas boticas dou mil figas

pois i ha-d’ haver serãos.

Hipocras estaa corrido,

porque quanto ele sabia

soubemos em ũ soo dia.

Outra sua.

Se com damas nam falou

por galante nem terceiro

e com elas se pejou,

enventou

despejar-se no braseiro.

Foi despejo tam crecido

que nam sei como vevia

quem tanta aquela trazia!

Manuel de Goios.

Soes milhor para pedreiro

que pera sofrer paixões,

pois fizestes em braseiro

camara sobre carvões.

O que nos tem parecido

que foi alta gemetria

e baixa galantaria.

Luis d’ Antas.

Quem a som de manistreis

sahe tam demasiado,

que faria com cristeis

em lugar despovoado?

Faria maior sonido

co traseiro nũ soo dia

que dez quartaos em Torquia.

Duarte da Gama.

Levareis, senhor, na mão,

de barro ou de madeira,

ũ privado oo serãao.

como quem leva cadeira

à pregação.

Que indo despercebido

quiça que nam s’ acharia

ũ braseiro cada dia.

Outra sua.

As privadas com razam

dam de vós cem mil querelas,

mui agravadas estam

por fazerdes no seram

o qu’ ouvera de ser nelas.

Que sejais delas vencido

mui justa cousa seria,

pois fizestes demasia.

Diogo de Sepulveda.

Nam queiramos nada nam

de nenhũ grande pedreiro,

pois antre nós ha barão

que fez camara em braseiro,

fundada sobre carvam.

Nunca no tempo sabido

se lavrou d’ alvanaria

com tanta descortesia!

Afonso d’ Alboquerque.

Polo cheiro

que na camara se sentio

se foi eele o reposteiro

e diz qu’ achou no braseiro

cousa que nunca se vio!

E ficou esmorecido,

quando vio qu’ homem sahia,

causa qu’ assi recendia.

Outra sua.

Sahio

nam ja fora de seu siso,

mas cousa que, quem a vio

e o que ja descobrio,

nos matou todos de riso,

em contar quam desmedido

era aquilo que jazia

no braseiro, que fedia.

Garcia de Resende.

Neste vosso desbarato

que houvestes do serãao,

se nam foreis tam hinhato

cobrirei-lo coma gato,

co a mão,

com da cinza e do carvam.

Nam fora nunca sabido

e com tal galantaria

saireis ind’ outro dia.

O Doutor Mestre Rodrigo

Nunca i nem acharam

n’ Avicena nem Rasis

que fizesse purgaçam,

mais que aguarico, serão

de damas muito gentis.

O que me tem parecido

é que o tresandaria

o aar da galantaria.

Diogo Fernandez.

Quem os vir querer entrar

diraa que sam namorados

e entam de despejados,

salvanor, vam-s’ assentar

a cagar.

Fui peco e ando corrido,

porque aa porta nam via

qual era o que fedia.

Dom Afonso de Noronha.

Trazei-vos a bom recado

e dai guarda oo pousadeiro,

porque diz que tem votado,

se o acha descuidado,

saltar co ele ò braseiro.

Nam andeis despercebido

nem cuideis qu’ ee zombaria

que vos filharaa ũu dia.

Dom Duarte de Meneses.

Quem em tal lugar cagou

teve maior coração

e a mais s’ aventurou

que Joam Andre que matou

o Grão Duque de Milão.

Devem d’ haver por ardido

quem s’ a tanto atrevia

que em chemine sahia.

Desculpa do que cagou.

Senhores, mestre Joam

diz que foi o que fiz nada,

segundo para serão

tenho a compreissãao danada.

Mas contudo é razam

qu’ eu esteja rependido,

pois podia,

porque fora nam sabia.

617

DE JOAM DA SILVEIRA A SIMAM
DE SOUSA DO SEM, PORQUE VEO
AO TERREIRO D’ ALMEIRIM EM
ŨA MULA, COM ŨAS LARGAS
ESPORAS DA JINETA ES‑
MALTADAS E COM
CHAPINS.

Tu jaa nam t’ has-d’ ir assi,

porque cuidas que namoras,

oor’ olha polas esporas

e por ti.

Vieste tam enganado

por trazeres trajo novo,

qu’ em entrando todo o povo

de riso foi abalado.

Bradam todos: — Acudi,

senhores, log’ essas horas,

a rirdes destas esporas

que vêm aqui.

D’ Aires Telez.

Têm os mouros profecia,

que de nós se dessimula,

que dizia

que, quando a mourisca em mula

se visse, que correria

grão risco a galantaria,

Isto se comprio em ti

aquelas horas

quando trouvest’ as esporas,

que te vi.

Fernam de Pina.

Eu com’ homem teu amigo

quis saber tua praneta

e achei que na gineta

te via ũ grão perigo.

E como te vi aqui

metido nessas esporas,

disso logo eessas horas:

— Ex aqui

o perigo que lhe vi.

De Dom Joam Lobo.

Quero-te dar ũ aviso,

nam no tomes ò revés,

que nam vejas os teus pés,

porque, ves,

morrerás coma Narciso.

Este conselho de mi

toma em milhores horas

do que calçaste as esporas

de Çafi.

Aires Telez.

A mula vinh’ espantada

e muito fora de si

de ver ũu marzagani

aa bastarda.

Dezia: — Mocalami,

nas más horas,

ouvest’ aquestas esporas

pera ti e pera mi.

Martim Afonso de Melo.

Mula mal-aventurada,

se nam naceste em Fez,

por que andas arraiada

de jaez?

Quem t’ enganou? E assi

nas más horas

que sofresses tais esporas

sobre ti.

Vasco Martinz Chichorro.

Contigo ninguem s’ apoda

porque tam fermoso es

que nam teens noda,

mas nam olhes par’ òs pés,

porque desfarás a roda

ò revés.

Olha sempre pera ti,

mas nam ja par’ as esporas,

que calçaste em boas horas

pera mi.

Pero Mazcarenhas.

Em mula tant’ acicate

foi grande contrafazer,

má morte te nunca mate,

pois com pees’ cheos d’ esmalte

nos mataste de prazer.

Haa ja mais de dez mil horas

que todo mundo se ri

das tuas negras esporas,

com as quaes ninguem namoras

nem se namoram de ti.

Joam d’ Abreu.

Quando entrou polo terreiro,

veriês todos correr

e polo Deos verdadeiro

que queriam dar dinheiro

polo ver.

Porque alem de vir porrim

e trazer tam más esporas,

veo às horas,

as milhores d’ Almeirim.

Dom Luis de Meneses.

É tamanho enfadamento

ver trajos mal enventados

que daria dous cruzados

por nam ver os que dobrados

este traz cada momento.

E porem este que vi

das esporas,

polo ver todalas horas

eu daria ũ tomi.

Alexemão.

Esta moeda é de mouros

onde prezam a gineta,

que tu metes em muleta

e tambem andas òs touros.

Em tudo isto te vi

estas esporas,

que calçaste nas más horas

pera ti.

Antonio da Silva.

Galante de taes estremos

dias ha que se nam vio

nem dele tanto se rio

como deste, que sabemos

qu’ este trajo descobrio,

em que nós nada nam cremos.

Descobrio nas más horas

pera si,

oo qu’ esmaltadas esporas

pera mi!

Garcia de Resende.

Na era de Jesu Cristo

de mil e quinhentos e dez,

no terreiro d’ Almeirim,

foi homem em mula visto

com larga espora de Fez,

calçada sobre chapim.

Disse como o conheci

ja nũs touros eestas horas

com adarga essas esporas

vi aqui.

Outra sua.

Em cavalo o grão Lobam

trouxe carrancas de prata,

sendo El-Rei em Çaragoça,

mas por milhor envençam

hei esta, pois que mais mata

de rir os homens por força.

Tambem oo Noronha vi

ceroilas, qu’ em tam más horas

calçou, com’ estas esporas

pera ti.

Simão da Silveira.

Pois que ja Arquiles nam es

nem menos Heitor troiano,

dize, mano,

que engano

te fez morrer polos pés.

Fiquei perdido por ti

log’ essas horas

e monseor das esporas

acudi.

Outra sua.

Julgam cá algũs juizes,

monseor micelo mio,

de qu’ eu rio,

qu’ os teus pés pera fastio

valem mais que de perdizes.

Emboora te eu vi

e tu muito nas más horas

calçast’ aquestas esporas

pera ti.

Luis da Silveira.

Quando andaste co touro

parecias-me frances

e agora vinhas mouro

na cabeça e nam nos pés.

Ora ves,

e tu cuida-lo ò revés

co qu’ eu moiro.

Mas se andas mais assi

todalas horas

se riram todos de ti

muito mais que das esporas.

Outra sua.

Quando vi o messajeiro,

cuidei qu’ eras a ginete,

acudi logo ò terreiro.

Se t’ achara capacete,

armara-te cavaleiro,

que valera bom dinheiro

para ti e para mi,

por quantas horas

havia de rir de ti

e das esporas.

Os Arrafeens de Çafi.

Vem-se tam pouco honrar

e prezar

neste tempo a gineta,

que j’ agora vem andar

em muleta.

Este mal veo aqui

polas esporas,

qu’ este trouxe nas más horas

pera si.

O Meirinho da corte.

Porque ninguem nam cometa

ir outr’ hora contra a lei,

eu m’ irei òs pés d’ El-Rei

e lhe direi

como danão a gineta.

Porqu’ eu vi ontem aqui

nũa mula ũas esporas,

que nunca em outras horas

se virão trazer assi.

618

DESTES TROVADORES ABAIXO NO‑
MEADOS A DOM FRANCISCO DE
BIVEIRO, QUE ANDAVA NEGO‑
CIADO EM DAR ŨA MULA E
TOUCA, TABARDO E SOM‑
BREIRO A ŨA DAMA, QUE
LHO MANDOU PEDIR
PARA ŨU CAMINHO
E ERA RECADO
FALSO.

De Monserio.

Vai cá muito grande fama,

anda ja mui descuberto

qu’ ũa dama

vos tem n’ aljaveira certo.

Folgaria de saber

ist’ ò demo que lhe dais.

pera ver

quam mal o vosso gastais.

De Luis da Silveira.

Eu ja dou-vos ũ conselho,    

o qual é chão coma palma,

que nam lho mandeis vermelho,

porque faz ja mui grã calma.

O Conde de Marialva,

com outro tal que mandou,

ũa dama soterrou

e perdeo o corpo e alma.

Joam Gonçalvez, capitão da Ilha.

Se se sofrer em Verão,

eu vos tenho enculcada

envençam,

que vem cosida e talhada:

loba aberta alaranjada,

qu’ aqui fez ũ bom senhor,

com qu’ irá mui bem betada

e mais vestida de cor.

Dom Geronimo.

Pois s’ aqui conselho mete,

dou-vos este desengano:

sombreiro nam des de pano,

mas ũu mui fino palhete

que vá sobolo barrete.

Este faz afronta pouca,

leva a dama mui airosa,

ja s’ é ũ pouco fremosa

podês escusar a touca.

Martim Afonso de Melo.

Senhor, d’ ilhargas capuz

lhe mandai de tafetaa

e buz buz

que com mais açafraraa.

E faria fundamento

d’ avano mandar levar,

porque se vem a encalmar

e lhe falecer o vento

que lhe nam faleça o ar.

Joam Rodriguez de Saa.

Ũa peça muito seca

darei par’ ò atabio,

porque, se laa fizer frio,

quem levar mui boa beca,

eu me fio

que nam irá muito peca.

Mete mão no cozcorrinho,

peitai Lourenço Godinho,

nam hajais doo do dinheiro,

co ela escusais sombreiro

e olhai-m’ este pontinho.

Simão da Silveira.

Tenho achado ũ ardil

per que nam gastareis tanto,

o qual é qu’ hajais ũ manto

de Diogo de Madril.

Passará tá fim d’ Abril,

porque é de mea frisa,

ja s’ a dama for aa guisa

e fizer bisa

irá muito mais gentil

que d’ outra guisa.

Gonçalo da Silva.

Meu senhor, o de Viveiro,

se pano, seda nam tendes,

aqui anda Pero Mendez,

que o fia sem dinheiro.

E eu serei o terceiro,

porque sei com’ isto pica

e, pois vos às costas fica,

nam hajais doo do dinheiro,

venha tudo ò tavoleiro.

Dom Alvaro de Noronha.

Eu sam tanto voss’ amigo

qu’ hei-de tomar sobre mim

o dado, se for roim,

que a mais me nam obrigo.

Ateegora nam sei quem

tal mercê vos quis fazer,

mas ela, a meu parecer,

nam fez bem.

Simão de Sousa.

Nam sei o que nisto vai,

mas vós perdei o cuidado,

qu’ o Contrai

estaa mal avaliado.

Se vos podeis escusar

seria tudo,

porqu’ assi deve d’ estar

o veludo.

Nuno da Cunha.

Pois que ja haveis de dar

tabardo, touca, sombreiro,

devieis d’ oulhar primeiro

o qu’ isto pode custar.

Mas s’ el’ ee merecedor,

a mim parece rezam

nam oulhar valiaçam

e tirar o caparãao

ao penhor.

A Vasco de Foes.

Senhor, seja por vosso bem

esta dama o que vos quer,

mas nam sei se é molher

que o tenha dito alguem.

E se é desta maneira,

dar-vos-ei a minha touca,

qu’ , ahinda que Deos nam queira,

em a pondo será mouca.

Diogo de Melo de Castel Branco.

Porque se vos nam engrife

e fazer custa mais pouca,

vos enculco outra touca

qu’ aqui trazia o xarife.

Ele tem-na em Lixboa

e mandai levar de cá

provisão d’ El-Rei, que lá

se sirva vossa pessoa.

Garcia de Resende.

Se nam achardes Contrai,

vós sereis de mim servido

com ũ roupão verdegai

do mercador de Cambrai,

qu’ ee ũ bem novo vestido.

S’ alfareme enrodilhado

quiser levar ou lançado

oo pescoço por desdem,

eu vos haverei tambem

o qu’ ele traz emprestado.

Aires Telez.

Porqu’ ee tempo de trestura,

este será o meu dito:

qu’ hajais ũa vistidura,

qu’ aqui anda verd’ escura,

d’ ũa dama do Egito.

Tem ũ geito de bedem

com que pod’ ir à mourisca

e que seja muit’ à trisca,

quem s’ a tudo nam arrisca

nam pode parecer bem.

Dom Joam de Larcam.

Senhor, nam vos destruais,

qu’ eu vos haverei asinha

ũ alvara da Rainha

de morto que nam sirvais

em louçainha.

E s’ isto nam abastar

mais serviço vos farei:

que o farei confirmar

por El-Rei.

Aires Telez.

Se mula houverdes mester,

eu sei quem vo-la dará,

mas havei-la de manter

e soster

tee qu’ a Rainha se vá.

E bem vos há-de pagar

o que co ela gastardes,

pois que soo ha-de levar

e tambem aconselhar

a quem na, senhor, mandardes.

Outra sua.

É pirnalta e embicada

e nam tem ja nenhũ dente,

eu fico nesta jornada

que fiqueis dela contente.

A mula é vagarosa,

peitai Joana do Taço,

qu’ eu vos faço,

s’ a dama é amorosa,

qu’ ela vos fique no laço.

Diogo de Melo da Silva.

Os guarnimentos falecem

pera a mula que vos dam,

se vos estes bem parecem,

lançai mão.

Aqui anda ũ capelão

deste Bispo de Viseu,

que traz ũs de cordovão

e estes enculco eu.

Outra sua.

A mul’ é embicadeira,

a dama pode cahir,

havei moços d’ estribeira

d’ algũ abade da Beira,

que lhe possam acudir.

O abade é balhesteiro,

folgará de lhos prestar,

escusareis de gastar

em alugar

quem na tire d’ atoleiro.

De Dom Francisco de Biveiro,
em reposta destas trovas, a
todos os que lhas fizeram
e esta primeira vai
aas damas.

Pois Deos com todo poder

vos quis fazer,

senhoras, mais eicelentes

qu’ as passadas nem presentes

nem quantas sam por nacer,

estas trovas que aqui vam,

juntas com as que lá estam,

as vejam vossas mercês,

que eu me fio no que sabês

se julgais sem afeiçam.

A todos juntos.

Senhores.

Vossas trovas foram lidas

e entendidas

e muito bem decraradas,

mas sabei que foram ridas

muito milhor que trovadas.

E depois que me fartar

de zombar delas nas ruas,

espero de repricar

e amostrar

que nom levo em colo duas.

A Luis da Silveira e Simão da Silveira.

Começo nos dous irmãos,

cortesãos,

que nom tem mais Deos que dar,

tam alvos e tam louçãos

cujos geitos, pees e mãos

sam mui doces de notar.

Ũ deles sabe latim,

o outro vai a Çafim

nesta viagem d’ agora,

se por eles me nom fora,

nam estivera em Almerim.

O maior se alvoroçou

e mal bordou

pelotes, capas dous pares,

peroo tanto que as tirou

logo ess’ hora nos sacou

do coraçam mil pesares.

Nam quero mais m’ estender,

fique o mais por dizer

agora desta viagem,

porque são d’ ũa linhagem

de quem me tem em poder.

A Monsorio.

Venhamos ao seu praceiro,   

o estrangeiro,

que pousa nas suas pousadas,

que fico por ele aosadas

que nom gaste seu dinheiro

em estas barcarriadas.

É tam doce Monsorio

e tam massio,

por sua desaventura,

que com toda esta quentura

nos mata a todos com frio.

A Martim Afonso de Melo.

Martim Afonso de Melo

eu o asselo,

mas nam ja para galante,

que parece por diante

bizcainho longo e belo.

E posto que me desama

por quem ama,

tem duas peças de valor:

a cor pera cobertor,

as pernas pera ũa dama,

que lhe faltam segum fama.

A Dom Alvaro de Noronha.

O outro nam decrarado,

namorado,

que olha minha senhora,

o vimos vir em fort’ hora

com amarelo e encarnado.

É cousa para nam crer-se,

que soo em ver-se

vestido nestes pelotes

lhe naceram tantos motes,

que nom poderam colher-se.

A Simão de Sousa do Sem.

Outro por me aconselhar

me foi tocar

e meteo-se em peego fundo,

este soo naceo no mundo

para m’ eu desenfadar.

Traz capa nom debrũada,

aberta, curta, mal lançada,

cintas, bainhas de coiro,

dou-m’ ò demo se nam moiro

com cousa tam anovada.

A Nuno da Cunha.

Do vosso bom provimento

me contento,

porqu’ ee conta certa e boa,

sei que valerá em Lixboa

a mais de doze por cento.

Se foreis aconselhado

do vosso ouro tirado

que vos vimos rosto a rosto,

milhor vos fora tirado

da vossa capa que posto.

A Antoneo da Silva.

O da Silva vi eu donde

nenhũa cousa se esconde

no serão, com sua dama,

despachar, segundo fama,

muitas cousas com o Conde.

Fez de ouro, prata e seda

e de moeda

ũ mao vestido de momo,

perdoe-me se me assomo,

pois nam teve a pena queda.

A Joam Rodriguez de Saa

novamente casado.

Do genro de Dom Martinho

eu adevinho

que quem tem tanto vagar,

que a trovas se vai lançar,

cedo cace e ande caminho.

O que desta manha usa,

o al refusa,

sabeis que tem o trovar,

que mui milhor que caçar,

ũa d’ Arronches escusa.

A Joam Gonçalves, filho
do Capitão.

Eu vos vi ja nũ serão,

capitão,

alcatifas bem pingar,

muito milhor que dançar,

isto é certo na mão.

Metestes-vos na pinguela

da burrela

nam quero maior vingança

que ver-vos perder na dança

e nam vos cobrar sem ela.

A Aires Telez.

D’ Aires Telez nada digo,

que eu me obrigo,

que nam no fez por me errar,

mas por rir-se e zombar,

porque certo é meu amigo.

Fez isto assi nam sei como

e eu lhe tomo

agora qualquer desculpa,

mas s’ outra ora me tem culpa

verá bem como me assomo.

A Diogo de Melo de Castel
Branco e ao Estribeiro-mor.

Estes dous nam sam culpados,

que buscaram emprestados

rengrões pera me mandar,

nam nos quero acoimar,

acoimem-nos seus pecados.

Deles vos posso dizer

que qualquer homem que os vir

e os ouvir,

se mui bem os entender,

enfadado poderá ser,

mas nam ja fazê-lo rir.

A Garcia de Saa.

O de Saa nam é culpado,

eu o tenho bem olhado,

se a boca bem guardar

de se rir e de zombar

mestre lhe seraa escusado.

Diz que culpa me nam tem

nem ao pensamento lhe vem

destas cousas ter enveja,    

assi eu viva e prazer veja

qu’ el’ ee mancebo de bem.

A Vasco de Foes.

Se se houvera de ensoar

ou entoar

qualquer graça ou zombaria,

por vós mesmo eu ousaria

antre as outras a gabar.

Mas porque as cousas do paço

ũ pedaço

às vezes and’ ir sem som,

por isto seria bom

tirar-vos dest’ embaraço.

A Fonte, cuja trova nom veio
antre as outras nem a vio.

Quisera ver a de Fonte,

que anteconte

lhe ouvera de responder,

porque haa tanto que dizer

que fora de monte a monte.

Ele cuida que é capaz

e nisto jaz;

mande-ma e responderei,

por ela lhe amostrarei

se é assi ou o contrafaz.

Ao Adiam.

Confessou-me o adaiam,

e isto é chão,

que quem sua trova fez,

nam em França, mas em Fez

aprendeo esta envenção.

Como a vio, me foi dizer

e prometer

que o ha-de escomungar,

se o acolhe mais em trovar

atee mais nam aprender.

A Garcia de Reesende.

O redondo do Reesende,

bem m’ entende,

tanje e canta muito bem,

e debuxaraa alguem,

se com isto nam se ofende.

Antre estas fez ũa trova

e nam se trova

de tam mal nisso tocar,

milhor lhe fora calar

e meter-se nũa cova.

A Lopo de Valdevesso.

Por Lopo de Valdevesso

eu atravesso

mais de quatrocentas dobras,

qu’ ele nam vio tam maas cobras

do direito nem do avesso.

Ped’ o treslado de siso,

com tal aviso,

que lho nam possão negar,

porque espera de as levar

à groria do Paraiso.

A Dom Joam de Larcam.

De morto prevelegiar

nam haa lugar

a quem é morto d’ amores,

porque sam tais suas dores

que matam sem acabar.

Se me ũ podesse haver

para mais cedo morrer,

peitaria eu, Dom Joam,

ũ muito gentil falcam,

o milhor que pode ser.

A Dom Geronimo.

Monseor que andou em Castela

e fora dela

sem ser cá nem lá apodado,

por mao de seu pecado

me enviou ũa trova de lá.

Antre os outros me tocou

e nam errou,

que fui contra as martas suas

e tambem contra outras duas

envenções que ja sacou.

A Gonçalo da Silva.

Meu senhor, que vai à Mina,

nam se fina

em dizer graças no paço,

mas eu o tenho em ũ laço

se me ver nam desatina.

Mas porqu’ ham-d’ ir para El-Rei,

nam sei o que se lá ha-de passar,

por o nam escandalizar

com esta me calarei.

619

DE DOM FRANCISCO DE BIVEI‑
RO A SIMÃAO DA SILVEIRA E
AOS OUTROS AQUI NOMEA‑
DOS, QUE LHE MANDARAM
TROVAS, PORQUE ELE RIO
D’ UM PELOTE QUE FEZ
SIMÃO DA SILVEIRA
DE CHAMALOTE
FRANJADO.

De doença tam mortal

curai-vos, nam venha a morte,

haverdes por bom sinal

parecer-me a mim tam mal

tam má pelote.

Em mulas se virom selas

com mil franjas de retrós,

mas sei que nam vistes vós

a ninhũ pelote tê-las.

Que venham a Portugal

novidades tam de cote,

esta mais que todas val,

franjar-se como frontal

ũ pelote!

A Luis da Silveira.

Nam vos devem enganar

as afeições de parente,

porque o paço nom consente

tais cousas dessimular.

Se vos nam parece mal

este malvado pelote,

gastai vosso tempo em al,

nam cureis d’ andar em corte.

A Dom Pedro d’ Almeida.

Se quiserdes nam gastar,

fazei vós tais envenções

que durem nos corações,

enquanto o mundo durar.

Porque este trajo é tal

e de tal sorte

que fará ser immortal

ũu pelote.

A Simão de Sousa do Sem.

Ja nam posso agardecer

a Deos o que me tem dado,

pois me tam deferençado

fez de vosso parecer.

Vi-vos vir tam cordial

ontem com vosso pelote,

que me fez nam haver por mal

franjas no de chamalote.

Por Diogo Lopez de Sequeira.

Esta tal nova estê queda,

defendam-na beleguins,

que se a sabem os chins

alçarão o preço à seda,

que diram que em Portugal

ham por pouco andar de cote,

em ũ paço tam real,

franjado de retrós tal

ũ pelote.

620

D’ AIRES TELEZ A JORGE D’ OLI‑
VEIRA, RENDEIRO DA CHANCE‑
LARIA, PORQUE LEVOU A
JORGE DE MELO DOZE
MIL REAES POR Ũ PA‑
DRAM QUE DESPA‑
CHOU, SEM LHE
QUERER QUI‑
TAR NADA.

Quem tiver algum padrão,

trabalhe por ter maneira

que se guarde d’ ir à mãao

daqueste novo cristãao,

qu’ aqui anda d’ Oliveira.

Leva tudo por inteiro,

nam tem nenhũa afeição,

folga tanto com dinheiro

qu’ ahinda Deos verdadeiro

venderaa por ũ tostão.

Nam lhe tenho má tenção,

mas falo desta maneira,

porque doze mil na mão

lhe vi dar por ũ padrão

eeste Jorge d’ Oliveira.

Desembargo da Rolação.

Todos soem de guardar

a nós outros cortesia,

este nada quer quitar,

mas antes nos quer levar

de tudo chancelaria.

Pois de quanto aqui nos dam

no-la leva toda inteira.

acordam em Rolação

que proceda este rifão

contra Jorge d’ Oliveira.

Bula do Papa contra Jorge d’ Oliveira.

Vem cá querela tamanha,

que calar-se é grande mal,

d’ ũ cristão novo d’ Espanha,

do reino de Portugal.

Pois que dá tanta apressão,

sem deixar leira nem beira,

nós damos jeral perdão

a quem for neste rifão

contra Jorge d’ Oliveira.

D’ Aires Telez.

Serv’ homem coma soiço,

anda sempre em pendença

por haver dez mil de tença

em pago de seu serviço.

E em fim se haa padrão

inda corre esta tranqueira,

que quasi tudo na mão

fica a este bom cristão

d’ Oliveira.

Diogo de Melo da Silva.

Pois que tu foste tam vil

que rapaste doze mil

sem nada deles quitar,

ainda o has-d’ amargar,

segundo o demo é sotil.

Tu nam teens boa tenção,

crê-me, Jorge d’ Oliveira,

nem te vejo salvação,

pois trataste meu irmão

desta maneira.

De Francisco de Viveiro.

Ouço cramar deste feito,

mas dele nada nam sei,

que me nam tem dado El-Rei

de que lhe pague direito.

Mas segundo a feição

deste gordo d’ Oliveira,

guardar d’ haver doação,

que leva tudo na mão

quanto acha n’ aljaveira.

Joam Rodriguez de Saa.

Nam vos deve d’ espantar

qu’ ant’ os privados comprenda

o seu nam querer quitar,

pois ter por mim a fazenda
me nam pode aproveitar.

E ainda é de maneira

que sem dinheiro na mão

o judeu nem o cristão

nam tira dest’ Oliveira

desembargo nem padrão.

Do Conde do Vimioso.

Nam fiar mais em prendê-lo,

senhores, na cortesia,

que leva coiro e cabelo

e arrendou chancelaria

por asselar judaria.

De mao homem e boom cristão

s’ entregu’ este de maneira

que, se nam dais repelão,

é menos passar padrão

de Santiago que d’ Oliveira.

Conselho seu.

Por tua grei e na tua lei

morrerás,

a cristão nam quitarás,

nem no serás

se to nam mandar El-Rei.

Roubarás,

porás os homens no fio,

com dia te trancarás

de medo d’ algũ desvio

e como achares navio,

partirás.

Dom Nuno.

Nam m’ espanto nada disto

nem de cousa tam mal feita,

pois veens por linha direita

dos que prenderão a Cristo.

Teens inda tal devação

co a tua lei primeira,

que cuidas qu’ ee salvação

fazer sempre sem rezão

os que crêm na verdadeira.

Antoneo da Silva.

Jorge, levas mao caminho

naquisto qu’ andas fazendo,

nam cuides que Dom Martinho

t’ ha-d’ andar sempre valendo.

Trazes tam má presunção

e andas ja de maneira,

qu’ hei medo que cortesão

leve narizes na mão

e s’ acolha a Talaveira.

Pero de Mendoça.

Agravas tanta pessoa

que t’ hei medo

que se traga algũ teu dedo

na ribeira de Lixboa

muito cedo.

Mas se tu vas por Mourão

algum hora pera Feira,

nam hás-de pôr pee em chão,

que metido num seirão

haas-de passála ribeira.

Francisc’ Homen

Se Moises aqui tevera

um padrão,

com que vontade lho dera

este truão!

Como vai pela carreira,

como mostra o coração,

como tem a lei inteira

para esfolar um cristão!

Diabos o cozeram,

que o têm ja n’ aljaveira.

Simão da Silveira.

Oxala me visse eu

co ele ja nessas brigas,

para lhe pagar em figas

todo o seu.

A voltas com cozcorrão

esta é boa maneira,

nova paga d’ envenção,

enlear rabi Abrãao

rabi Mosse d’ Oliveira.

Martim Afonso de Melo.

Pois que s’ isto j’ assi faz,

venhamos logo à verdade:

este é o mais mao rapaz,

velhaco, grand’ alcatraz,

mofatraz,

gram zeloso de maldade.

Nas estrelas bom cristão,

cumpridor da fee inteira,

porem mui roim vilão

e gram cão,

grande Jorge d’ Oliveira.

Vasco Martinz Chichorro.

Quant’ a s’ isto é juguetar,

ela é maa zombaria,

pois que da chancelaria

nam podemos escapar.

Mas compre de ter maneira

co este novo cristão:

que vá ter de mão em mão

à fogueira.

Nuno da Cunha.

Quem quiser ser despachado

deste tam novo cristão

fale-lh’ antes num pizmão

que em Deos crucificado.

E se nam desta maneira

doutra nam m’ afirmaria,

que quite chancelaria

esta potra d’ Oliveira.

Garcia de Resende.

Se vos doer o cabelo

do qu’ alguem poode fazer,

guardar d’ amostrar má zelo,

meter tudo no capelo,

sem no ter.

Dar debaixo do mantão

figa a quem der na trincheira,

guardar de comer cação

nem leitão,

que o denfend’ à primeira.

Joam d’ Abreu.

Eu nam devo de tocar

nada sobr’ este rifam,

porque quem nam vio medrar,

nam pode saber falar

em padrão.

Pelo seu irei à mão

a quem tirar aa barreira,

que lhe nam dei em cabrãao,

pois é cristão

e seja quit’ à primeira.

Dom Pedro d’ Almeida.

Mais vos sofreo Jesu Cristo

oos que fostes n’ O matar,

e o mais quero calar,

porque sei que tudo isto

é zombar.

E por isso, Dom Abrãao,

nem judeu nem bom cristão,

vendedor da lei inteira,

como virdes na carreira

ũ padrão

tomar o fugir na mão.

Joam Gonçalvez, capitão.

A meu ver nam é culpado

em ser cristão, nem errou,

porque bem no refertou

e mal, em que lhe pesou,

lho fizeram ser forçado.

Dali lhe ficou tenção

de ter mui grande cenrreira

a qualquer fiel cristão,

e à derradeira

bem s’ entrega no padrão.

De Joam Lopez, que foi rendeiro.

Teens o teu bojo tamanho

que me nam quero espantar

quereres tudo levar,

para encheres esse tanho.

Mas da parte d’ Abraham,

antes qu’ outrem to requeira,

te peço coma irmão

que mudes a condição

em outra milhor maneira.

Joam Rodriguez Mazcarenhas, do Inferno.

Depois que de lá parti,

dizem cá estes senhores,

segundo vêm os cramores,

qu’ esperam cedo por ti.

Mas pois que ja cá te dam

por tuas obras cadeira,

assenta lá bem a mão

a quem quer que for cristão,

que lh’ amargue a Oliveira.

Da Beata da vila.      

Com zelo nam contrafeito

vos envio aconselhar,

que nam devês de levar

por inteiro este dereito.

Porque estando em oração

a passada sesta-feira,

me veo em revelação

qu’ em Inverno e em Verão

podem queimar Oliveira.

Conselho dos Cristãos novos cortesãos.

Nam vos espante trovar,

amigo, rabi perfeito,

levai a todo rasgar

quanto poderdes cobrar

com direito ou sem direito.

Enchê vós vosso bolsam,

seja de qualquer maneira,

façam eles quantos sam

muitas trovas e rifam,

tud’ ee vento aa derradeira.

Fernam da Silveira.

Se m’ eu co ele acertara,

eu crera qu’ ele rendera,

porque de guisa o tratara,

que tudo bem me quitara

ou as orelhas perdera.

Eu lh’ escaldara a traseira

e com tam nova maneira

o soubera atagantar

que lhe fizera leixar

as bulras eest’ Oliveira.

Vasco de Foes.

Pois Jorge nam quis quitar,

pera gram pena lhe dar

isto se deve fazer:

tirem-lhe o arrendar,

fá-lo-am logo render;

ou soltem-no a repelão,

qu’ esta é boa maneira

d’ emmendar este cristão.

E então

vereis Jorge d’ Oliveira

nam falar mais em padrãao.

Do Corregedor da corte.

Se a outrem tal fizer,

por este meu assinado

dou lugar a quem quiser

que diga quanto souber,

tirando perro fanado.

E nam juguetem de mão,

que podem dar na moleira

e segundo todos sãao,

esbaforeidos darãao

d’ avesso com Oliveira.

Eiscramação de Jorge d’ Oliveira.

E quanto me custas, renda,

pola gram desdicha mia,

eu certo te soltaria,

se nam perdesse a fazenda!

Dás-me tamanha apressão

e é isto de maneira

que por ti me vem rifam

e me chamam bom cristão

d’ Oliveira.

Cabo.

Poor trinta que recebeste,

trinta trovas haverás

e polos trinta que deste,

no Inferno arderás.

Judas, outros que lá estão

t’ aparelham na carreira,

dizem todos a ũa mão:

— Venha, venha este cristão

d’ Oliveira

povoar esta caldeira.

621

D’ ANRIQUE CORREA A DOM

ANRIQUE, FILHO DO MARQUÊS,

PORQUE MANDOU ŨU CRU‑

ZADO AA SENHORA DONA

MARIA DE MENESES,

ANDANDO COM

ELA D’ AMORES

Haa-vos de ser demandado

por onzena conhecida

levardes por ũ ducado

todo o bem daquesta vida.

Vale mais de mil ducados

de juro com jurdiçam

os retornos mal levados

que vos vêm contra rezam.

Tornai-lhos porqu’ ee pecado

levar cousa mal havida,

nam queirais por ũ ducado

dar a mim tam triste vida.

Antoneo de Mendoça.

Foi por menos a metade

vendido do que valia

e pode-o de verdade

demandar Dona Maria.

E pois é tam mal guanhado

e ela arrependida,

nam tireis por ũ ducado

a meu irmão sua vida.

Jorge Furtado.

Nam haveis assi levar

este bem como cuidais,

sem primeiro vos matar,

pois a todos nos matais.

Ha-vos de ser demandado,

para ser restituida,

quem polo vosso ducado

tira a meu irmão a vida.

Da cidade de Lixboa.

Nam vos ham-de consentir

que tenhais nesta cidade

tanto bem sem o partir

com alguem por piadade.

É direito costumado

que a cousa mal vendida

se perca vosso ducado

e fazenda e a vida.

Petiçam dos parentes desta
senhora à Rolação.

Senhor, fazei-nos justiça

deste filho do Marquês,

que por força, com cobiça,

leva o nosso, que nos pês.

Cuida, porqu’ ee enganado,

que é por ele perdida

e ela ri-se do ducado

e também de sua vida.

Da Misericordia.

Por ũ pequeno prazer

que queima mais que a brasa,

nam queirais alma perder,

pois que em breve tempo passa.

Tornai, filho, o mal levado,

porque oo tempo da partida,

nam percais por ũ ducado

todo o bem da outra vida.

Do Cabido da See.

Escomunham, antredito

lançaremos na cidade

polo retorno maldito,

que vos vem contra verdade.

E pois isto é provado

e a verdade sabida,

tomai o vosso ducado

e tornai-lhe sua vida.

Dos Cristãos novos.

Nam se deve consentir

qu’ em reino tam sengular

vá Dom Anrique presumir

de lhe todo o bem levar.

Se o leva, é roubado

e a terra abatida,

se consent’ em ũ ducado

tirar a tantos a vida.

Das Donas de Lixboa.

Queremos vos desenganar,

porque havemos piadade

de vos deixarmos cuidar

que vos ama de verdade.

Joga convosco dobrado,

porque é tam ressabida

que levará o ducado

e tirar-vos-ha a vida.

Dos Criados do Marquês.

Deixai, senhor, este bem

de que todo o mundo crama

e i folgar a Ourem,

porque nam percais a fama.

Nam tenhais dela cuidado,

pois é tam desconhecida

que vos levou o ducado

e vos quer tirar a vida.

Do Povo de Lixboa.

Mercadores e tratantes

dizem que ficam perdidos

e as damas e galantes

para sempre destruidos.

Polo qual será forçado

qu’ ela seja socorrida,

se pedis polo ducado

mais que ũ dia de vida.

Fim.

Acord’ El-Rei nosso Senhor

cos da sua Rolaçam

que Dom Anrique dê penhor

ou faça satisfaçam.

E que lhe seja tomado

qualquer cousa conhecida

que guanhou polo ducado

e faz-lhe mercê da vida.

622

DE SANCHO DE PEDROSA A DOM

FRANCISCO DE CRASTO, POR‑

QUE DEBRŨOU ŨA CAMI‑

SA DE VELUDO.

Um galante se vestio

d’ envençam mui enovada,

com camisa debrumada.

De veludo a bordou

com tençam de soportar

quantos motes possam dar

a quem tal envençam sacou.

Mas em lugar a tirou,

que irá bem apodada

a camisa debrumada.

Nesta era de quinhentos,

veremos muitos sinais

e aquestes seram tais

que nos dêm contentamentos

pera folgarmos e rir

e ser muito apodada

a quem cuida qu’ em vestir

era boa a debrumada.

De Tristam da Silva em
que pede ajuda a Diogo
Brandam.

Senhor, a quem tanto crê

em vosso saber e graça,

esta gram mercê me faça

qu’ ajude vossa mercê.

E depois que vossa mão

for cansada d’ escrever,

o senhor vosso irmão

faça nisto o que quiser.

Diogo Brandam.

Se por contentar algũs

enventou cousas tam novas,

deve de sofrer as trovas,

pois fez tam novos debruns.

E se isto bem nam vio,

quando fez a debrumada,

guarde tudo na pousada.

Galante frances nem mouro

nunca tal fez atequi

mas é ja milhor assi

ca ser lavrada com ouro.

Eu tenho que se vestio,

que lhe nam falece nada,

em fazer a debrumada.

Joam Afonso de Beja.

Vós sabeis a entençam

deste galante, senhores,

se a fez por devaçam,

se por cuidado d’ amores.

A minha tençam seria

que fosse de vós zombada

muito milhor que bordada.

Porque à carne se chegou

tanto esta vestimenta,

diz Gaspar que na emmenta

a El-Rei a nam levou,

mas em lugar a leixou,

que seraa bem resgatada

a motes a debrumada.

Duarte da Gama.

Dino é d’ haver perdam

quem por nam gastar dinheiro

dos debruns do seu sombreiro

debruou um camisam.

Se a certo revestio,

rezam tem de ser chamada

a camisa debrumada.

Nam s’ espantem d’ hoje avante,

se fizer ũ alquemista

de robins um diamante,

pois que fez este galante

cousa que nunca foi vista.

Mas pois Deos ja permetio

fazer-se cousa enovada,

seja sempre memorada.

Rui de Figueiredo.     

Dom Pedrinho a todos faz

mil queixumes do irmão,

por ir fazer envençam

com que a todos muito praz

e a ele nam.

Tambem diz que nam dormio

tod’ esta noite passada

em cuidar na debrumada.

Joam Paiz e fim.

A quantos aquesta virem,

senhores, faço saber

qu’ ee muita rezam de rirem

de quem esta foi fazer,

pola minha esquecer.

Nunca tal cousa se vio

que camisa debrumada

precedesse ũa lavrada.

623

DE LUIS DA SILVEIRA A DOM
JERONIMO D’ EÇA, A ŨAS MAN‑
GAS, QUE FEZ EM ALMEI‑
RIM MUITO ESTREITAS
E FORRADAS DE
MARTAS MUI‑
TO VELHAS.

Pareceram-nos tam mal

as tuas martas,

que s’ afirma que as matas

mui perto do teu casal.

Vimos-t’ em pontefical

com teus amitos,

que trazias por manguitos.

Como vinhas cordial!

Simão da Silveira.

Olhai que boa ventura

foi a destas vossas martas,

que ficam nas damas fartas

de riso e vós de quentura.

Andai vós ũa vez quente,

senhor, aa vossa vontade,

qu’ est’ ee verdade

e deixai vós rir a gente.

De Monsorio.

Vimos outras mui louçãas

em poder d’ um cortesão

e sem ver outra rezam,

no carãao,

julgámos qu’ eram irmãs.

A vós, senhor, nam vos mentão,

qu’ eu vos juro, Monsorio,

que nós somos os qu’ aquentão

e vós o morto de frio.

Simão de Sousa.

Os teus pachecos olhei

e escoldrinhei.

Se disser minha tençam,

aconselhar-t’ -ei

que nam venhas oo serãao.

Mas isto é escusado

e, porem,

se tu quiseres vir, vem,

mas seja atarrafado,

que t’ as nam veja ninguem.

Aires Telez.

Segundo sua criança

e seu craro alamento,

eu faria juramento

que nunca foram em França,

mas que morreram à lança

naqueste Paul da Atela.

Diz tambem ũa donzela

que, depois, d’ andar na dança,

se nam quisera ver nela.

Luis da Silveira.

Queixa-se Luis Teixeira,

tem ja mil concrusões postas,

que lhe tiraram das costas

estas peles de toupeira.

Nam sabe per que maneira

lhe fizeram tal engano,

diz qu’ ou ele foi cigano

ou mui fina feiticeira.

Dom Francisco de Biveiro.

Elas de martas se negam,

nam querem ja mais enganos,

de raposos se contentam

por serviços de vint’ anos.

E nam passem de Janeiro,

antes que sejam mais velhas,

que se chegam a Fevereiro

tirá-las-am por ovelhas.

Simão de Sousa, por a
senhora Dona Maria
Anriquez.

Nam deveis olhar meus erros

mas a minha entençam,

que tirei por descriçam,

neste serãao,

qu’ o forro é de bezerros.

Vossa mercê tudo abarca

e em lugar de forrado

andais, senhor, encoirado

com’ arca.

624

DO CONDE DO VIMIOSO A LUIS
DA SILVEIRA, POR ŨAS MAN‑
GAS QUE FEZ DE CETIM CO
AVESSO PARA FORA.

Senhores, nam seja soo

a ũas mangas que vi

d’ avesso e nam por doo

senam se for do çati.

Altas mangas, doce geito,

gram maneira d’ antremes,

tam cheas de seu respeito

que por nam terem direito

sam trazidas oo revés.

Trazidas mas nam por doo

do coitado do çati,

que de velho, feito em poo,

tantas voltas fez de si.

Reposta de Luis da Silveira
ao Conde sobre outras man‑
gas que trazia de ve‑
ludo, estreitas e
acairelaadas.

Tenho muito boons embargos

contra o qu’ este senhor diz,

que nam poode ser juiz,

de quem anda em trajos largos.

E a mais prova estei queda,

dou aquesta soo rezam:

que a sua jurdiçam

ataa tres covados de seda

se estende e mais nam.

O que lhe fez parecer

que nam jazia nas custas

fazer as suas tam justas      

Ele foi mal justiçado

que nam ha i que dizer?                 

Mas pois a cousa vai crua,

lançai laa sobr’ elas sortes,

que vem a conceber motes

em seneitute sua.

As vossas mangas, senhor,

têm bem de que se queixar,

que sobre tanto suor

fostes-lhe mui mal pagar.

Sois mui desagardecido,

lembra-vos mal o passado,

que vos tem muito servido,

mui grossos caireis sofrido

e doces pontos levado.

Cabo.

Foram-vos muito fiees,

passaram cem mil andaços,

vêm ja da cabeça òs braços

e estavam pera ir òs pees.

Mas pois que por gualardam

as vindes meter em motes,

nam no saibam os pelotes

que vos nam aturaram.

625

DE LUIS SILVEIRA AO CONDE
DO VIMIOSO, PORQUE TRAZIA
NO BARRETE Ũ CORA‑
ÇAM D’ OURO.

O vosso coraçam d’ ouro

provar-vos-ei por rezam

qu’ ee maior que o d’ ũ touro,

mais bravo qu’ oo d’ ũ liam,

mais leal qu’ o mesmo mouro.

Ele foi mal justiçado

nam send’ as obras tam más,

foi pola bolsa tirado,

qu’ ee mor dor que por detras.

Trazeis o coraçam d’ ouro,

trazeis d’ ouro o coraçam,

qu’ ee maior que o d’ ũ touro,

mais bravo qu’ o d’ ũ liam,

mais leal qu’ o mesmo mouro.

Joam Rodriguez de Saa.

Nam haa i quem se conheça,

pois vos vós nam conheceis,

e que vos assi pareça,

sabeis quanto me deveis.

De vo-lo ver na cabeça

me caio o meu oos pees.

Dond’ ee o vosso tesouro

dahi é o coraçam,

o vosso coraçam d’ ouro

mais santo que o d’ ũ mouro.

mais mouro qu’ o d’ ũ cristam.

Reposta do Conde do Vimioso.

Quem diz qu’ o meu coraçam

é de metal,

anda lonje de seu mal.

Se metal quereis que seja,

lavra-se com gram fadiga,

funde-se de dor sobeja,

sam seus males sua liga.

Queira Deos qu’ alguem persiga

este mal,

que o tem d’ outro metal.

Sua.

Por nam ser falseficado

dam-lhe mil toques mortais,

nam me fica dele mais

que o nome e o cuidado.

Se digo que sam roubado     

deste mal,

nam me ouvem nem me val.

Sua e cabo.

Do que meu coraçam sente

nam no culpe senam eu,

pois seu mal todo é meu

e meu bem todo ausente.

Quem disto vive contente

e nam quer al,

porque dizem dele mal?

626

DE SIMAM DA SILVEIRA A LOPO
FURTADO, QUE MANDOU DE
CASTELA, INDO DE CAA, Ũ
VILANCETE AA SENHO‑
RA DONA JOANA
MANUEL.

Rifam de Lopo Furtado.

De la tierra donde vine

vi más bien que pude ser,

alhaa me quiero bolver.

Rifam de Simão da Silveira
polos conoantes.

Porqu’ hei medo que se fine

homem qu’ isto foi fazer,

a Castela o hei-d’ ir ver.

Neste reino haa tais guardas

que nom passa nemigalha,

por muito qu’ ele laa valha

se nom sam cousas furtadas,

mas as suas, aosadas,

qu’ oo sair nem oo meter

nom se poodem cá perder.

Com cousa laa tam defesa

nos tendes caa todos mortos,

metestes riso per portos

co que nos nada nam pesa.

Que fora moor a despesa,    

folgara de o fazer,

meu senhor, por vos ir ver.

De Dom Pedro d’ Almeida.

Porqu’ espero d’ ir primeiro,

vos descubro este segredo:

que tenho jaa feiticeiro,

que, a peso de dinheiro,

m’ haa laa de pôr muito cedo.

E que me custasse ũ dedo,

tudo isto es de hazer

por vos ir mais cedo ver.

De Joam Rodriguez de Saa.

Passaareis grande perigo,

se nom fora esta rezam

para haver de nós perdam,

serdes messageiro amigo,

que nom tendes culpa, nam.

Val-vos isto e a tençam

para vos mais nam fazer

que desejar de vos ver.

Outra sua.

Mostrastes mui grande mingua,

se vos atentaram nela,

em nom levar a Castela

de caa mais que nossa lingua

e levar tam pouco dela.

Nom sinto tam rija trela

com que me podeessem ter,

que vos nam fosse laa ver.

Dom Luis de Meneses.

Esta fee que vós dais dela,

nom na daa ela de vós,

mas sei que vos damos nós

infindas graças por ela.

Muitos remos, muita vela

tudo espero de meter

por mais cedo vos ir ver.

Do Craveiro.

Custuma-s’ em Portugal

a dama muito fermosa

mandar-lhe mula de Loosa,

mas nam cantiga sem sal.

Nem nas damas nem em al

nom deis vosso parecer,

sem vos eu primeiro ver.

FIM DO TERCEIRO VOLUME