LITERATURA PORTUGUESA
Textos literários em
meio eletrônico
Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende
Edição de base:
GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.
VOLUME III
Tavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . ‡ .
De Luis da Silveira sobre o Eclesiastes. fo. CXXVIII
Cantigas e trovas suas, desta folha atee às folhas fo. CXXX
De Dom Luis de Meneses, cantigas e trovas suas. fo. CXXX
‡ De Joam Afonso d’ Aveiro a
Vasco Arnalho. fo. CXXX
‡ Trovas suas a Lançarote de Melo e ajuda de Nuno Pereira. fo. CXXXI
Outras suas e ũa cantiga. fo. CXXXI
‡ De Bras da Costa, trovas e cantigas suas. fo. CXXXII
De Duarte da Gama ao secretario. fo. CXXXII
‡ Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. CXXXV
De Tristam da Silva, trovas suas. fo. CXXXV
De Pero de Baiam e Diogo Lopez. fo. CXXXVI
De Gonçalo Mendez Çacoto, trovas e cantigas suas. fo. CXXXVI
‡ De Fernam Cardoso, trovas e cantigas suas. fo. CXXXVII
De Gregorio Afonso, os Arrenegos e duas grosas suas. fo. CXXXVIII
De Joam Rodriguez, cantiga
sua com grosa. fo. CXXXIX
Duas epistolas tiradas per ele do latim, desta folha atee fo. CXLII
‡ De Fernam da Silveira em louvor de sua dama. fo. CXLII
‡ De Nuno Pereira em louvor de sua dama. fo. CXLIII
‡ Do Conde de Borba a Dona Lianor. fo. CXLIII
‡ Da senhora Dona Felipa. fo. CXLIIII
‡ Do Conde do Vimioso a tres damas. fo. CXLIIII
‡ Do Conde a ũa senhora. fo. CXLV
‡ Do Craveiro a Dona Felipa. fo. CXLV
‡ De Dom Diogo a Dona Briatiz. fo. CXLVII
‡ De Dom Joam Manuel. fo. CXLVIII
‡ De Pero de Sousa a Dona Maria. fo. CXLIX
‡ De Pedr’ Homem, estribeiro-mor. fo. CXLIX
‡ De Jorge da Silveira. fo. CXLIX
‡ D’ Aires Telez a Dona Joana. fo. CL
‡ De Joam da Silveira a Dona Margarida Freire. fo. CL
‡ De Simão de Sousa a Dona Briatiz. fo. CLII
‡ De Simão de Miranda a Dona Briatiz. fo. CLIII
‡ De Simão de Sousa a Dona Guiomar. fo. CLIII
‡ De Garcia de Resende. fo. CLIIII
‡ De Dom Joam a ũa dama que beijava Dona Guiomar. fo. CLIIII
‡ Da barguilha de Dom Goterre. fo. CLIIII
‡ Das pancadas dos cantores. fo. CLV
‡ Da dama guarnecida. fo. CLVI
‡ De Dom Goterre aos jibões. fo. CLVII
‡ Do mongi com capelo. fo. CLVIII
‡ Da mula de Lourenço de Faria. fo. CLVIII
‡ Das alcaladas de Joam Gomez. fo. CLVIII
‡ Da barba de Dom Rodrigo. fo. CLVIII
‡ Das carapuças de solia. fo. CLVIII
‡ Da gangorra de Lopo de Sousa. fo. CLIX
‡ Das ceroilas de Manuel de Noronha. fo. CLXI
‡ Das de per Alteza. fo. CLXIII
‡ A Dom Joam Pereira. fo. CLXIIII
‡ D’ Anrique d’ Almeida. fo. CLXV
‡ De Pero de Sousa Ribeiro. fo. CLXV
‡ Ao Baram d’ Alvito. fo. CLXVI
‡ Do Baram a Lionel de Melo. fo. CLXVI
‡ Da lingua que tanto monta. fo. CLXVI
‡ De Lop’ Alvarez de Moura. fo. CLXVI
‡ Do troteiro do Conde Prior. fo. CLXVI
‡ Do macho de Luis Freire. fo. CLXVII
‡ Do Coudel-mor, com repostas. fo. CLXVII
‡ Dos servidores de Dona Lianor. fo. CLXVIII
‡ Do Prior de Santa Cruz. fo. CLXVIII
‡ Do cavalo de Joam Gomez. fo. CLXIX
‡ Do jaez de Francisco d’ Anhaia. fo. CLXXI
‡ De Pero de Sousa e reposta. fo. CLXXII
‡ Das letras e cimeiras. fo. CLXXIII
‡ Dos Porques que se acharam. fo. CLXXIIII
‡ Do que saio no braseiro. fo. CLXXV
‡ Das esporas de Simam de Sousa. fo. CLXXVI
‡ De Francisco de Biveiro e reposta. fo. CLXXVII
Do pelote de Simão da Silveira. fo. CLXXIX
‡ De Jorge d’ Oliveira. fo. CLXXIX
‡ Da camisa de Dom Francisco. fo. CLXXXI
‡ Das martas de Dom Jeronimo. fo. CLXXXI
Do Conde a Luis da Silveira. De Luis da Silveira ao Conde. fo. CLXXXII
‡ De Lopo Furtado, castelhano. fo. CLXXXII
494
PREPOSITO SEU, EM QUE
SEGUE SALAMAM NO
ECLESIASTES.
Vaidaade das vaidades
e tudo é vaidaade,
assi paassam as vontades
com’ aas cousas da vontade.
Tudo se jaa desejou
e tudo s’ avorreceo
e tudo se jaa ganhou
e tudo se jaa perdeo.
E o homem que mais tem
do trabalho a que se daa?
A geraçam vai e vem,
a terra sempr’ assi estaa.
As cousas naquesta vida
todas s’ entreegam per conto,
que se caa dê mor medida,
tudo lá tem seu desconto.
Nam pode ninguem dizer
que haa i ja cousa noova,
o que foi iss’ haa-de ser,
disto temos certa prova.
Quem carece do passado,
julga pelo acidente,
mas coitaados e coitaado
da quem é tudo presente.
Que nam lembrem os primeiros,
senam quasi por estoorea,
tam pouco teram memorea
de nós os mais derradeiros.
O tempo vai per compaasso
dias, horas e momentos,
liberal d’ esquecimentos,
de memoreas mui escasso.
Eu fui rei em Jerusalem,
precedi os dante mim,
tive beens, quis grande bem,
e em fim tudo houve fim.
Fiz os meus olhos contentes
e vi o tempo senhor,
vi lagrimas d’ inocentes
e nam vi consolador.
Tive mil deleitações
riquezas e beens mundanos,
em tudo achei enganos,
dores e tribulações.
Com trabaalho os ajuntais,
com cuidaado os possuis,
quando os tendes, nam dormis,
ou vos deixam ou os deixais.
Cuidei no meu coraçam
onde tudo ia ter.
Entam disse ao prazer:
— Porque t’ enganas em vam?
Por erro julguei o riso
dentro da minha vontade,
assi vi passaar o siso
com’ aa grande vaidade.
O sesudo e o sandeu
tudo vi que tinha fim,
e disse entam antre mim:
— Que me preesta o saber meu?
Inorantes e prudentes
todos têm ũa medida,
na morte nem nesta vida
nam nos vejo diferentes.
Assi que neste presente
boons nem maos nam se conhecem
e a todos igualmente
beens e males acontecem.
Daqui naacem confusõoes,
naacem descontentamentos,
perdensas, openiõoes,
abaixam-s’ os pensamentos.
O justo, o sabedor
e o mais cheo de fee
nenhũ nam saabe se ee
dino d’ odio se d’ amor.
Quantos isto faz perder,
porqu’ a quem a fee nam dura
encomenda-s’ aa ventura
e deixa de merecer.
As cousas seu tempo tem
e per seus espaaços vam,
tempo de mal e de bem,
tempo de si e de nam.
Tempo haa de semear
e tempo haa de colher
e tempo d’ obedecer
e tempo pera mandaar.
Nem vi fortes vencedores
nem vi justos beadantes,
nem ricos os sabedores
nem prooves os inorantes.
Nam haa i merecimentos
nem menos bõa rezam,
tempos, acontecimentos
haa nas cousas e mais nam.
Vi os roins soterrados
e o que deles deziam
e vi-os, quando veviam,
por santos ser adoraados.
E vi levar aa mentira
os galardões da verdaade
e o que se daqui tira
é que tudo é vaidaade.
Vi trabaalhos sem dar fruito,
vi que ninguem nam repousa,
vi fazer pouco por muito
e muito por pouca cousa.
Ouciosos acupaados
vi perder dias e anos,
vi enganos d’ enganaados,
que doem mais que desenganos.
Vi os prooves sem amigos,
vi os ricos sem contrairos,
vi em tudo mil perigos,
mil mudanças, mil desvairos.
Vi os cuidaados sobejos
falecer-lhe seu cuidaado
e vi oos grandes desejos
falecer-lh’ o desejaado.
Vi os muito cobiçoosos
ter mui largos despenseiros
e vi nesceos ouciosos
ficarem por seus herdeiros.
Dá a Fortuna estes meos
oos menos merecedores
e dos trabaalhos alheos
os faaz o tempo senhores.
Vi o mundo ser sogeito
de senhores mui sogeitos
e vi estaar o dereito
em moodos e em respeitos.
Vi tudo sem liberdaade
metido em sogeiçam,
vi os livres sem vontade
feitos doutra condiçam.
Cabo.
E nam vi nenhũ estaado
que nam fosse descontente:
ũs choram polo passado
e outros polo presente;
ũs por terem seus cuidados,
outros porque os perderam,
assi qu’ os que nam naceram
sam os bem-aventurados.
495
CANTIGAS
DE LUIS
DA SILVEIRA.
Senhora, pois que folgais
com meu mal, nam me mateis,
porque quanto alongais
minha vida, tanto mais
vossa vontaade fareis.
E olhai, se m’ acabardes,
que nunca me mais tereis,
inda que me desejeis,
pera m’ outra vez mataardes.
Mas ja sei o que cuidais
e de mim o conheceis:
confiais
que se de morto mandais
que torne, que m’ achareis.
496
CANTIGA.
Tudo se pode perder,
naada nam pode duraar
e quem nisto bem cuidar
nem folgaraa com prazer
nem sentirá o pesar.
Se Fortuna alguem contenta
com bem ou mal que lh’ ordena
faz-lho, porque despois senta
na mudança maior pena.
Faz o mal polo fazer,
faz o bem pera o tiraar
e consente no ganhaar
polo perder.
497
CANTIGA SUA.
A tais novidaades vim
qu’ eu mesmo me nam conheço,
porque ja vi mal sem fim,
mas nunc’ o vi sem começo.
E pois este que me veo
começo nem fim nam tem,
mal esperarei tambem
que tenha meo.
Este mal só veo a mim,
eu tambem só o mereço,
os outros buscam-lhe fim
e eu busco-lhe começo.
498
CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.
Senhora, de me ganhar
ou de me verdes perder,
algum gosto haveis de ter.
Quanto folgo com meu mal
nam vo-lo dirá ninguem,
porqu’ entam far-m’ -ieis al
que nam fosse mal nem bem.
Pois me nam quereis ganhar,
tanto hei-de merecer
que folgueis de m’ eu perder.
499
CANTIGA
DE LUIS DA SILVEIRA
SOBRE ŨS MOTOS DE CONTEN‑
TAMENTOS QUE POSERAM
E ELE ASSINOU-SE NO
CABO DELES SEM
MAIS MOTO.
Mil contentamentos tristes
viram lá de cada um,
mas bem sei qu’ o meu nam vistes,
porque nam tenho nenhum.
Isto vos direi sem medo,
isto ousarei de dizer,
qu’ ee tam tarde pera o ter
como cedo.
Saiba certo que sentistes
se me quereis ver algũ
verdes-me, quando me vistes,
sem nenhum.
500
CANTIGA
SUA A ŨA DAMA,
QUE LHE TIROU COM
ŨA PEDRA.
Cũa pedra me tiraastes,
mas queira Deos qu’ algũ hoora
as lanceis por mim, senhora.
Bem vos vi querer tiraar,
sempr’ adevinho meu maal,
mas quem podeera cuidaar
que nam m’ havieis d’ erraar
naquisto coma no al?
Vós bem certo me tiraastes
e de vós mesmo, senhora,
me vingue Deos algũ hoora.
501
CANTIGA QUE FEZ LUIS DA
SILVEIRA, ESTANDO SUA
DAMA PERA CASAR.
Enquanto m’ a vida dura,
tempo vos peeço, nam al,
em que me minha ventura
ensine a sofrer meu maal.
De quantas cousas perdi
a mais pequena vos peço,
vede se vo-la mereço
e senam peerca-s’ assi.
Porque a gram desaventura
ou o muito grande maal,
se o custume o nam cura,
nam no pode curaar al.
502
CANTIGA SUA.
Mil vezes tenho provaado,
mas em vão o espremento,
de furtar oo pensamento
algũ tempo sem cuidaado.
Por espias vam enganos
cheos de prometimentos,
nam me vaalem fingimentos,
mais quer’ o mal de mil anos
que novos contentamentos.
Ó pensamento enganaado,
enganaado pensamento,
quero-te fazer isento
e tu dás-m’ inda maa grado!
503
CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.
Se vos nam haa-de contentar
senam quem vos merecer,
nam queria mais saber.
Nisto descansari’ eu,
mas o maal que daqui sento
qu’ o voosso contentamento
tardaria mais qu’ oo meu.
Pois se quereis esperaar
polo que nam pode ser,
nam queria mais saber.
504
CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.
Pera qu’ ee naada em fim
ja nam posso querer al,
porque ja o novo mal
nam acha lugar em mim.
Fiz-me livre, fiz-me isento
sabendo minha verdaade,
fiz mil castelos de vento,
levava contentamento
coma quem tinha vontade.
Mas agoora des que vim
acabar de querer aal,
nunca pod’ o novo mal
dar nenhũ lugar em mym.
505
CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA,
PORQUE LHE DISSERAM QUE
ERA CASAADA SUA DAMA.
Sempr’ achei pera viver
todalas vidas perdidas,
mas, quando queero morrer,
nunca me felecem vidas.
Todalas fins esperaava,
desta só desesperei,
todalas outras buscaava,
e esta, que nam cataava,
esta achei.
Tornei agoora a viver,
acho que tenho mil vidas,
porque nunca as quis perder
que as achasse perdidas.
506
CANTIGA DE LUIS DA SILVEIRA.
Mais erra quem vos quer bem,
se vo-lo quer descobrir,
do que vos poode servir.
É tam novo merecer
o voosso a quem o conhece,
que o qu’ aas outras merece
ante voos lança a perder.
Desejaado maal e bem,
onde o maior servir
é negar e encobrir.
507
CANTIGA QUE LUIS DA SILVEI‑
RA MANDOU A ŨA DAMA
PER DIA DE JANEIRO.
Pois se hoje dam boons annos,
senhora, a toda pessoa,
dai-m’ a mim ũ hoora boa.
E inda que me digais
qu’ os outros cantam os seus,
pois vedes que choro os meus,
devo de merecer mais.
Nam faalo, senhora, em anos,
mas sei que nam ha pessoa
que nam tenha ũ hoora boa.
508
CANTIGA QUE FEZ LUIS DA SIL‑
VEIRA E MANDOU-A A DOM
JOAM DE MENESES.
Olhai bem que grande mingua,
nam sei quem tem culpa nela,
vivem homens pola lingua
que devem morrer por ela.
Por contaar maales alheos,
de que traazem conta feita,
toda poosta por itens,
vivem sem ter outros meos
e outros nam lh’ aproveita
saberem seus mesmos beens.
A rezam perde-s’ aa mingua,
olham muito mal por ela,
todo o feito é na lingua,
a obra nam curam dela.
509
TROVA QUE MANDOU LUIS DA
SILVEIRA, D’ ŨA ARMADA EM
QUE FOI, A ALGŨS SEUS
AMIGOS QUE CÁ FICA‑
RAM E ANDAVAM
NAMORAADOS.
Vivei, bem-aventurados,
qu’ a fortuna aparelhaada
tendes jaa.
Nós outros somos chamaados
d’ ũs faados em outros faados,
sem saber o que seraa.
Tendes mui certa folgança,
nenhũ maar de navegaar,
nem cousas de desejaar
que dam tam long’ eesperança,
que cans’ o homem d’ esperaar.
510
OUTRA ESPARÇA SUA.
Ó mal de novo presente
de tanto tempo passaado,
ó bem bem-aventuraado,
qu’ acabou sendo contente!
Ó vida que ja nam sente
novidaades de ventura,
acorda, qu’ estaas dormente,
nam cuides que te segura!
511
CANTIGA QUE FEZ LUIS DA SIL‑
VEIRA À SENHORA DONA
JOANA DE MENDOÇA.
Sentido de quem nam sente
queira Deos qu’ inda se senta
descontente de contente
do que m’ a mim nam contenta.
Noovos descontentamentos
lhe causem noovos desejos,
tantos arrependimentos
tenha de seus pensamentos
qu’ a mi pareçam sobejos.
Qu’ inda de mim se contente,
tam descontente se senta
e senta quanto nam sente
do que s’ agoora contenta.
512
OUTRA DE LUIS DA SILVEIRA.
Por cousas que jaa passaram
e que despois nam lembraaram
julgo as qu’ estam por vir.
Nem quero naada sentir
porqu’ estas m’ escramentaaram.
O tempo daa novidades,
daa mil cuidaados sobejos,
daa e tira mil desejos,
faz e desfaz mil vontades;
as mais firmes nam duraram
antes loogo se mudaram.
E pois tudo haa-de vir
enfim a nam se sentir,
paassem com’ aas que passaram.
513
DE
LUIS DA SILVEIRA A DOM
NUNO MANUEL, ESTANDO
COM EL-REI EM SIN‑
TRA E ELE EM
LIXBOA.
Vi-m’ em tamanha contenda
com que de cá serveria,
que aa mingua da fazenda
me tornei aa fantesia.
Compro convosco e vendo
coma com senhor e amigo,
mas se dissesse o qu’ entendo
mais diria do que digo.
Esperança de proveito
faz fingir mil amizades,
mui cheas de seu respeito,
mui vazias de verdades.
O odio nam aparece,
o amor anda de fora,
est’ ee o mundo d’ agora,
guai de quem o nam conhece!
Os rostos andam afeitos
a mil dessimulaçõoes,
tudo sam moodos e geytos,
soo Deos sabe os coraçõoes.
Nam ha i lingua que diga
a tençam de seu senhor
da vontade mais immiga
amostr’ eela mais amor.
Aas palavras dam-lhe cores
naturaes com falsa tinta,
mas oos boons conhecedores
logo tudo se despinta.
Vivem de manhas e d’ artes,
trazem pesos e balança
com que pesam eesperança,
que lhe pode vir das partes.
Nam buscam amigos sãaos
nem menos esprituaes,
mas querem-nos temporaes,
temporaes e temporãaos,
que venham logo com fruito,
acabados de prantar:
estes prezam eles muito,
estes poem no seu pomar.
Fim.
Trazem per grandes baixezas,
a agua ao seu moinho,
sem olhar per que caminho,
que nam curam de limpezas.
Buscam rodeos, enganos,
perdem a vida e o sono
para a trazer per seus canos,
que os nam sinta seu dono.
Ajuda de Garcia de
Resende
a estas trovas.
Tudo se vai pola via
que dizeis em vossas trovas,
que nam sam para mim novas,
pois o tam certo sabia.
Desejava de dizer,
nam ousava começar,
poilo vós fostes fazer
nam me quero mais calar.
Nam dura mais a rezam
que enquanto a obra dura,
inda que seja feitura
feita soo por vossa mãao.
Como nam tem esperança
do que de vós ham-d’ haver,
logo perdem a lembrança
que sempre deviam ter.
Todos tiram aa barreira
d’ haver fazenda e dinheiro,
ser honrado e cavaleiro
nam ha ninguem que o queira.
Que tenhais manhas, saber,
que sejais quam boom quiserdes,
crede que, se nam teverdes,
que vos nam quer ninguem ver.
Quam poucos falam verdade
e a quam poucos se crê,
a quam poucos homens vê
usar rezam nem bondade.
Quam poucos têm amizade
verdadeira com ninguem,
se a mostram é a alguem
de que têm necessidade.
Servem pouco, pedem muito,
vê-los-eis sempr’ agravar,
nam ter homens, trazer luito,
por poupar e nam gastar.
S’ alguem como deve gasta,
querem-no logo comer,
dizendo que quer fazer
mais do qu’ a renda lh’ abasta.
Dizem a vós de vós bem,
logo a outros de vós mal
compitem com quem mais tem,
desprezam quem menos val.
O que vos ouvem dizer
vam contar doutra maneira,
todo seu feito é fazer
como s’ a gente mal queira.
Fazer oferecimento
a quem quer qu’ oficio tem,
querer mal e falar bem
disto nam digo o que sento.
Em qualquer bem desfazer
e no mal acrecentar,
amigos proves perder,
polos ricos trabalhar.
Fim.
Presunçam sem ter saber,
de dentro tantas baixezas,
tantos moodos de vilezas,
tantos contrairos nũ ser.
Com qualquer pequeno mando
mudam tanto a condiçam,
sem olhar como nem quando
as vidas s’ acabaram.
514
DE
DOM LUIS DE MENESES A ŨA
DAMA QUE SERVIA E VESTIO-SE
ŨU DIA COM ŨAS QUARTAPI‑
SAS DE JOGO D’ ENXA‑
DREZ E COM ESTAS
SE DESAVEO.
No jogo do tavoleiro
tem na dama jurdiçam,
tem todo poder inteiro
des no rei at’ oo piam.
Mas s’ os lanços nam vam certos
ou se cega o entender,
pode-o muito bem perder
por trebelhos encubertos.
Enquanto esteve queda
nunca o jogo se guanhou,
mas como s’ ela mudou
foi logo mate na seda.
Porque como é tocada
e d’ algũ mao jugador,
perde todo seu primor,
perde o ser muito prezada.
Em quem tem disto paixam,
remedio nam poode ter
nenhũ melhor que fazer
outra dama d’ ũ piam.
E quem tiver a rezam,
senhora, que vós sabeis,
tomaraa, em que lhe pês,
esta mesma salvaçam.
Fim.
Neste jogo de sentido
nam se torna o guanhado,
o perdido é perdido,
o devido mal pagado.
Pois quem se quiser guardar
d’ hoje avante de perder,
faça o que me vir fazer,
que nom hei mais de jugar.
515
DE DOM LUIS A ŨA DAMA
QUE LHE NAM RESPONDEO
A ŨU MOTO.
Senhora, reposta maa
se daa a qualquer pessoa,
e a mim nem maa nem boa.
Vosso mal é tam oufano,
é tam mao de contentar,
que nam me quer enganar
nem me quer dar desengano,
porqu’ es dar.
Eu nam sei onde me vaa,
nem m’ hei-d’ ir para Lixboa,
sem reposta maa ou boa.
516
DE DOM LUIS DE MENESES,
ESTANDO DOENTE EM LIXBOA,
A DOM PEDRO D’ ALMEIDA,
QUE VEO D’ ALMERIM.
Eu nam vos fui visitar,
porqu’ hei mester visitado,
mas do folgar
de serdes, senhor, chegado
perdei vós bem o cuidado.
Que nunca tanto folguei
com nada, ha muitos dias,
nem desejei
mais a vinda do Mexias
de que foi a vossa lei.
Reposta de Dom Pedro
polos consoantes.
Outr’ hora quando enforcar,
pois vindes tam assomado,
nom queixar,
qu’ eu venho muito picado
e muito desenganado.
Mil cousas vos contarei,
delas quentes, delas frias,
que passei,
que nom sam de longas vias,
mas sam das vias d’ El-Rei.
517
DE DOM LUIS A DOM PEDRO,
PORQUE NAM ESTAVA AIN-
DA APOUSENTADO.
Que vós nam tenhais pousada,
aqui tenho eu a minha,
mais varrida, mais aguada,
mais despejada
qu’ a donzela da Rainha,
rebicada.
Se vos nam veo a cama,
eu durmo nũa tam boa,
que mao grado a vossa dama,
a da fama,
muito dina de coroa.
Reposta de Dom Pedro
polos consoantes.
Com’ is dando a cajadada
tam dereito como linha
em quem deve de ser dada,
e coitada
da que cuidava que vinha
acompanhada.
A que cuidais que me ama,
j’ agora me nam magoa,
nem na busco nem me chama,
antres crama
por vós outros de Lixboa.
De Dom Luis a Garcia
de Resende
com estas trovas que lhe
ele mandou pedir.
Nam ha cousa que nam faça
senhor, soo por vos servir,
pois que vou dizer de praça
o que devo d’ encobrir.
Pois eu nam vejo o que dou,
vede vós o que pedis,
que Dom Luis
per via rrou
fez o que lh’ ele mandou.
Reposta de Garcia de
Resende
polos consoantes.
Cousas que têm tanta graça,
tam doces para ouvir,
ter-m’ -ia por de maa raça
se as nam deesse empremir.
Eu vejo bem como vou
e vós, senhor, como is,
e, pois eu quis,
contente estou
como quem bem acertou.
518
DE
JOAM AFONSO D’ AAVEIRO A
VASCO ARNALHO, TOPANDO
COM ELE NŨ CAMINHO
VINDO DE BEEJA.
— Donde vindes, Vasco Arnalho?
— Meu senhor, venho de Beeja,
donde leixo tanta enveja
com que muitos têm trabalho.
Namorado tam perdido
qu’ ee o deemo
de seus perentes temido,
dos amores tam vencido
que dizer nada me temo.
— Dizei, pois vindes de laa,
como vos ia d’ amores,
ou se vos dava favores
a que tal pena vos daa.
— Dai-m’ oo deemo que me leve,
nom m’ a lembreis,
que se cedo ou em breve
m’ a senhora nam escreve,
lançar pedras me vereis.
Eu andava tam louçãao
e tam doce como mel,
mas muitos bebiam fel,
se me viam no serãao.
Meu capuz pardo, frisado,
alvaçãao,
de veludo bem bordado,
e meu beiço derribado
que me dava polo chãao.
Meus brozeguis de recramo,
ũ fino barrete pardo,
sem nunca m’ achar covardo
com as cousas que mais amo.
Meu cabelo penteado,
que matava,
de cote mui anafado,
ũ punhal tam bem dourado
que o deemo s’ espantava!
Meu gibam de seda rasa
de mui fino cremesim,
todos deziam por mim:
— Tu, Vasco, mata la brasa!
Pelotes roxos, bandados,
muito finos,
per mil partes golpeados,
com cores tam bem betados
que se tangiam os sinos!
— Vasco, maa raiva te mate,
qu’ assi andas namorado,
tu es penhor escusado,
que se vende d’ arremate.
— Pois cuidai, ó meu senhor,
assi Deos m’ ajude,
que u tenho meu penhor,
por mais queixume d’ amor
receber posso saude.
Fim.
Quant’ eu nunca me viera,
se me laa fora tam bem,
i poderá raivar quem
co meu bem lhe desprouvera.
Nam se pode mais fazer,
senhor meu,
ca mui mal contrafazer
se pode, sem se saber,
quem quer bem como sandeu.
519
DE
JOAM AFONSO D’ AVEIRO A
LANÇAROTE DE
MELO, POR PARTE
DE DONA MECIA, POR ŨA MULA
QUE LHE PROMETEO GUARNE‑
CIDA PARA Ũ CAMINHO
E NAM LHA MANDOU.
— Em que vos posso pagar
a mula que me mandastes,
pois que sei que vos gabastes
em m’ a bem atabiar?
Que segundo a chaparia,
que vejo no guarnimento,
mui muito vos custaria
a que fez Joam de Faria,
quando foi oo saimento.
É de todas mui louvado
o sombreiro com tabardo,
por ser preto e nam pardo,
das minhas cores bordado.
Tambem a funda da seela
de borcado preto, roxo,
porque hei-d’ haver mazeela
do homem que vejo coxo.
Oh quanto m’ a mim descansa
estar ela oo cavalgar
assi dizem ao selar:
— Nunca vi cousa tam mansa!
O estribo foi dourado
o melhor que nunca vi:
de filagrana lavrado,
nam nos fazem tais aqui!
Nunca vi melhor feiçam
de mula parda tam parda,
como quer que muito tarda
todos vos isto diram.
Tem estranha andadura
toda feita per compasso,
nam lhe mingua ferradura,
nem a vós faraa tristura,
pois que vos mostrais escasso.
Fim.
Nunca vi tam bom cabelo
nem mula tam anafada,
se traz a brida dourada
nam é para mim dizê-lo.
Pois do al que lhe diremos?
Que nam seja mui perfeita,
al dizendo mentiremos,
pois jamais nunca veremos
outra tal nem tam bem feita!
De Nuno Pereira a
Lançarote
de Melo, confortando-o, porque
nam mandou a mula.
Cunhado, quanto me pesa
com estas donzelas tais,
que nam olham a despesa,
ham por palhas os reaes.
Muito quedas no estrado,
entam se vêm as partidas,
que tenha outrem cuidado
de mandar mulas guarnidas.
Nam nas leixeis aforar
d’ andarem em mula vossa,
prometer por paacejar,
o aal passe por u possa.
Querem doce guarnimento,
mula, tabardo, sombreiro,
e cuidam que cento e cento
caga ali homem o dinheiro!
As donzelas busquem bestas,
companhai Nosso Senhor,
nam cureis destas requestas,
envençõoes de gastador.
Nam façais delas estima,
que tudo nelas perdeis,
se nam for irmãao ou prima
nunca, nunca mula deis!
Muito sabem de dar toques
por um dai cá quela palha,
usam muito de remoques
como homem bem nam bailha.
Sedas, chapas e borcado,
estribo e almofada
e cuidam, senhor cunhado,
que nam custa isto nada!
Deos nam pode jaa co elas
tam maas sam de contentar,
milhor é nam conhecê-las
por tais gastos escusar.
Servir moça de tanor,
cunhado, é meu conselho,
Costança ou Lianor,
que contentam com espelho.
Damas querem mil arreos,
antretalhos e borcados,
estribos, copos e freos,
esmaltados e dourados.
Querem novas bordaduras
d’ envençõoes entretalhadas,
e outras cem mil duçuras
de mulas guarnementadas.
Hei isto por vaidade
que se faz em Portugal,
seria mais caridade
em esmolas ou em al.
As despesas que se fazem
com estas damas mijoas,
que se mulas lhe nam trazem
escarnecem das pessoas!
E trá-las homem na palma
e elas ham mais que dizer,
que gasteis o corpo e alma
nam no querem conhecer.
E essa Dona Mecia,
que de vós mula esperava,
per ventura mal sabia
vossa bolsa como estava.
Que s’ aqueixe, nam s’ aqueixe,
vosso siso tornai a vós,
quer vos tome quer vos deixe,
nam comeis do seu pãao vós.
Deixai-as vós gracejar,
rir de vós e dizer mal,
e vós i-vos a casar
como fez Fernam Cabral.
Viva El-Rei com que viveis,
vivamos pai e parentes
e das damas nam cureis,
que jaamais nam sam contentes.
Cos vossos despendei antes
e s’ elas mulas quiserem,
os que fingem de galantes
dem-lhas, se lhas dar quiserem.
Cabo.
E sabeis que eu diria
a aquesta tal vossa dama?
Que buscasse outro Faria
ou que ponha os pees aa lama.
Ou dizei: — Ouvi, senhora,
sabeis vós como vos vai?
Alugai mula maa hora
ou pedi-a a vosso pai.
520
DE
JOAM AFONSO D’ AAVEIRO,
EM QUE PEEDE AJUDA
PARA CASAR.
Senhores, quero casar
agora, se Deos quiser,
e quem com’ eu bem folgar
faraa bem de m’ ajudar
cada ũ co que tever:
porque a dama nam tem
alma, corpo nem fazenda,
é filha de nam sei quem,
nam ha nela mal nem bem,
se se por vós nam emmenda.
De dama, nam de parenta,
me dê cada ũ sa peeça,
o que dela mais contenta,
porque com vossa ementa
me façais que mais nam peeça.
Isto seja entendido
no corpo e nam no al,
porque a corpo bem fornido
jaa lhe sabeis o marido,
Deos daraa o enxoval.
De Jorge d’ Aguiar.
Descriçam, siso, saber
vejo ficar agravados,
graça, gentil parecer,
outras que nam sei dizer
por meus pecados.
Mas pois quer minha ventura
que de vós meu bem reparta,
ficando com gram tristura,
dou daquessa fermosura
o vosso aar que me mata.
De Francisco da Silveira.
Minha vida, que darei
com que nam fique culpado?
Ou que maneira terei,
pois que tudo quanto sei
tendes em vós acabado?
Mas pois é forçado dar,
por melhor a guarnecerdes
e por mais a contentar,
dou-lhe, que possa tomar
de vós os meus olhos verdes.
521
CANTIGA DE JOAM AFONSO
D’ AAVEIRO.
Pois partis e me leixais
tam triste sem gualardam,
tornai-me meu coraçam,
senhora, que me levais.
Coraçam, que fostes meu,
se fosseis meu algũ dia,
nunca mais vos tornaria
a quem tal pesar vos deu.
Mas pois vós vos contentais
d’ haver mal por gualardam,
maatem-vos, meu coraçam,
pois vós mesmo vos matais.
522
DE
BRAS DA COSTA A GRACIA
DE RESENDE, QUANDO VEO A
NOVA DA MORTE DO VISO‑
-REI E DO MARICHAL
NA INDEA.
Nesta viajem e ida,
o que nela navegar
bem se deve contentar
co a vida.
Nós tomemos bom castigo
co mal que vemos alheo
e tenhamos gram receo
a mar de tanto perigo.
Nom façamos tal partida,
antes cavar e roçar,
de conselho contentar
co a vida.
Por passar tanta tormenta,
tempo e vida tam forte
e tam perto ser da morte,
antes nom quero pimenta.
Caa farei minha guarida
em escrever e notar
e me quero contentar
co a vida.
Reposta de Gracia de
Resende
polos consoantes.
Tenho tam avorrecida
tod’ arte de marear
que nam hei nela d’ entrar
nesta vida.
Daqui tee morte m’ obrigo,
que quarto, vintena, meo,
nem escreturas no seo
nam possam nada comigo.
A esperança perdida
tenho de nunca tratar
e muito mais d’ embarcar
em tal ida.
Tenho vida tam isenta
que por mal que dig’ aa sorte,
nam hei-de saber o noorte
nem m’ ham-d’ achar em ementa.
Esta tenho escolhida,
desta me fui contentar,
a qual nam hei, sem medrar,
por perdida.
523
GROSA DE BRAS DA COSTA A
ESTA TROVA, QUE DOM RODRI‑
GO DE MENESES MANDOU
A SEU IRMÃO DOM JOAM,
CONFORTAND’ -O EM
SEUS AMORES.
Oo irmãao, quanto desejo
de poder-vos confortar,
hei gram doo de vós sobejo,
porque vejo
que vos nam presta chorar!
E pois nisso nam guanhais,
nam choreis,
nam choreis que vos matais
ou dizei porque chorais,
dir-vos-ei quam mal fazeis.
Grosa de Bras da
Costa
polos consoantes.
Meu capuz, quando vos vejo
de todo ponto çafar,
hei gram doo de mim sobejo,
porque vejo
que nom poss’ outro comprar.
E pois vos assi çafais
e rompeis,
muita tristeza me dais,
em buscar tres mil reais
vede quanto mal fazeis!
524
DE BRAS DA COSTA A RUI DE FRANÇA,
QUE FEZ ŨU MOINHO DE VENTO EM EVO‑
RA COM VELAS DE PAAO E DEPOIS DE
PANO E NAM LHE VEO A LUME, E
FOI NO TEMPO QUE EL-REI ES‑
TAVA PERA IR À GUARDA.
Cuido que em grande grao
sereis rico neste ano,
ora com velas de paao
ora com velas de pano.
Assi salve Deos minh’ alma
e a livre de afronta,
eu vos hei medo à tormenta
e assi aa grande calma.
Nom andeis maginativo,
pois vosso saber alarda,
nem cureis de ir aa Guarda,
pois que sois tam enventivo.
O deemo seja cativo,
pois tendes tanto saber
que morto e em vivo
vos teram bem que dizer.
525
DE BRAS DA COSTA A ŨA SUA PRI‑
MA QUE CASOU E MANDOU-A ELE
VESITAR E LHE RESPONDEO QUE
AQUELA NOITE ENTRARA
EM BATALHA.
Senhora, dessa batalha
pregunto como vos vai,
se dissestes ui ou ai
ou se nam foi nemigalha.
Porque no jogo da pela,
a primeira vai de graça;
assi cuido eu, donzela,
que ficastes amarela
sem vos dizerem: — Prol faça!
526
DE BRAS DA COSTA A BRAS
GODINHO, SOBRE ŨAS
JUSTAS DE CORTIÇA
QUE FEZ EM
ABRANTES.
Rezam é que na justiça
vós sejais ũ principal
e vos dêm oficio tal
no Sardoal,
pois com justas de cortiça
honrastes a Portugal.
Assi vos Deos faça bem,
amem,
e outra tal vos aconteça,
se foi de vossa cabeça,
se vo-l’ ordenou alguem.
527
GROSA A ESTE MOTO:
Se por muerte
se quitasse mi dolor.
Pues que me cayo em sorte
haver mal por vuestro amor,
plazerm’ ia se por muerte
se quitasse mi dolor.
Y com la mi triste vida,
que amor me ha causado,
de morir seraa forçado,
quando vir vuestra partida.
Y pues tanto fui de cote
de mis males lhamador,
plazerm’ ia si por muerte
se quitasse mi dolor.
528
CANTIGA DE BRAS DA COSTA
A COSTANA, QUANDO SE
FOI PARA CASTELA.
Senhora, jentil donzela,
por meu mal fostes nacida,
pois vos is para Castela
que seraa de minha vida?
Is-vos vós daquesta terra,
fico eu com muita pena,
saudade me daa guerra
donde morte se m’ ordena.
Dobrada minha querela
fica com vossa partida,
pois vos is para Castela
que seraa de minha vida?
529
DE BRAS DA COSTA SOBRE Ũ PRE‑
SENTE QUE LHE MANDAVA DOM
RODRIGO E FORAM-NO DAR
AO VEADOR QUE O RECO‑
LHEO E MANDOU-LHE
DELE MUITO POU‑
CA COUSA.
Eu estou com muita dor
e de mim mui descontento
por ũ honrado presente,
que me vinha certamente,
e levou-mo o veador.
Disto devo fazer trovas
a quem mo deu, Dom Rodrigo,
e neste caso eu vos digo
qu’ o senhor partio comigo
Santarem com Torres Novas.
530
DUARTE
DA GAMA AO SECRE‑
TARIO, QUANDO SE FEZ A
ORDENAÇAM EM
QUE
DEFENDERAM
O DOO.
Senhor, ũa ordenaçam
vi do doo e ũa lei,
pola qual todos a El-Rei
devemos beijar a mãao.
Porqu’ a todos é tam boa
em jeral,
que des qu’ estaa em Lixboa
nam se fez nenhũa tal.
Mas parece sem razam,
se vosso sogro morrer,
vossa moiher doo trazer
e que vós andeis loução.
E assi por esta via
s’ aquecesse,
ela mesma vos faria,
se vos vosso pai morresse.
Quando Deos Adam formou,
bem sabeis como lhe disse:
que com Eva se unisse
e per si os ajuntou.
Como pode logo ser
apartamento
nos casados, qu’ ham-de ter
ũu prazer, ũu sentimento?
Querem mais algũs dizer
que os sogros que sam pais,
mas eu imigos mortaes
digo que sam a meu ver.
Posto que fosse mais custa,
digo eu
que seria cousa justa
trazerem doo polo seu.
Digo mais naquesta trova
que se deve defender,
quando quer qu’ alguem morrer,
porem tumba sobre cova.
Porque toda a caridade
da esmola
que se faz sem vaidade,
ò defunto mais consola.
Fim.
Enfim co esta defesa
nós ganhamos a meu ver:
alongarmos no viver,
encurtarmos na despesa.
Polo qual com gram fervor
rogar devemos
pola vida do senhor
de que tanto bem havemos.
531
GROSA DE DUARTE DA GAMA
À TROVA DE DOM JOAM DE
MENESES, EM
CONTRAIRO
DE SUA GROSA.
Co estes ventos d’ agora
em que tanta parte temos,
tendo mais que merecemos,
cada hora,
cada momento dizemos:
Perigoso é navegar,
mandando sobela jente,
que se mostra descontente
em negar
a mercê que tem presente.
Que se mudam cada hora
de tenças pera comendas,
crecendo-lhe suas rendas,
sem demora,
com que compram as fazendas.
E quem vai de foz em fora,
nam vai por sua nobreza,
mas por ir contra proveza
e ancora
com amarras na riqueza.
Nunca mais pode tornar
a ser o mundo desfeito,
nem perder homem o geito
de penar,
por ser em pecado feito.
O navio pende aa banda
qu’ ò patrão bem lhe parece,
os mareantes guarnece
sem demanda
cada ũu do que merece.
A razam nom é ouvida
daqueles que a nam tem,
porque dizem mal do bem
sem medida,
o qual neles se contem.
A vontade tudo manda
quanto deve de mandar,
sem nunca se desmandar
se desmanda,
para tudo emmendar.
Fim.
E quem ha-d’ andar desanda
e, com sobeja presunçam,
a força d’ ingratidam
doutra banda
lhe desfaz sua razam.
Quem tem alma nom tem vida,
se a tem mui abastada,
que a vida descansada
é perdida,
segundo regra provada.
532
DUARTE DA GAMA SOBELA
PARTIDA D’ EL-REI
PERA EVORA.
Aquesta real partida
de tantos contrariada
nam foi certo enlegida
d’ El-Rei, mas executada,
por ser de Deos ornada,
que se quer nela vingar
agora dos cortesãaos,
dos que vei edeficar,
pera lhe querer tomar
de cá o ceo co as mãos.
Mais alto do que sobio
Menbrot queriam sobir,
e portanto permetio
fazê-los daqui partir
sem as linguas dividir.
Nam cessam de se queixar,
recebem mui grandes dores.
Que farão estes senhores
quando houverem de leixar
vida, fazenda, favores?
Os que têm tudo dobrado
têm a pena tresdobrada,
os que têm ũu soo cuidado
têm a vida descansada,
que sam os que nam têm nada.
Estes nam sentem mudança
por nam terem que mudar,
os outros tanta abastança
têm que nam podem levar
nem ousam de a deixar.
A gram importunidade
de requerer moradias
ajuntou nesta cidade
os velhos de muitos dias
com os de pouca idade.
D’ alem de Riba de Coa
vêm aqui a jubileu,
nam creio que de Lixboa
outra tanta jente boa
fosse ò do Zebedeu!
Fim.
Se comigo nom m’ engano,
com ũ par destas partidas,
vós vereis antes d’ ũ anno
poucos ir ter as feridas,
muitos buscar as guaridas.
E mais digo que agora
co esta começarãao
de partirem pera fora,
co a outra acabarãao
e a corte alijarãao.
533
DUARTE DA GAMA A ŨA SENHORA.
Nam sei se diga meu mal
vendo quanto me fazeis,
pois sofrê-lo me nom val,
pera que nam me mateis.
D’ ũu cabo tenho desejo
mui grande de o dizer,
doutro tenho outro pejo,
que me faz nam no fazer.
Doutro tenho outro mal
que vendo que me fazeis,
a que remedeo nom val
pera que nam me mateis.
534
ESPARÇA DE DUARTE DA GAMA.
As cousas daquesta vida
todas vim a ũa conta,
pois vemos que tanto monta
ser curta como comprida.
Quem dela parte mais cedo
é livre de mil cuidados,
quem vive tem-nos dobrados,
afora sempre ter medo.
535
SANCHO DE PEDROSA A DUARTE
DA GAMA.
A fama que de vós soa
é tam prima, qu’ eu a faço
preceder toda Lixboa,
pois nam tratão cousa boa
se nom vossa neste paço.
O ceo trabalha tomar
co as mãaos de cá de fundo,
quem emprende de louvar
ũu homem que pode dar
ensinança a todo mundo?
Mas a culpa que cometo
vossa primeza ma tira,
minha simpreza remeto
a vós, que, dando no preto,
concertais tudo sem ira.
Pois pregunto com receo,
respondei-me com favor
qual das vidas é pior.
Esse moto de tristeza,
se o vir por vós grosado,
será menos meu cuidado,
mas hei medo que crueza
nam queira ver o trelado.
Socorrei, senhor, por vida
de vosso propio louvor
e verês mais encendida
vossa fama convertida
em maior.
Moto.
La vida que siempre muere
que se pierda ¿que se pierde?
Reposta sua.
Como quem naveg’ aa toa
contra vento vai d’ espaço,
assi vai minha pessoa
na vossa pondo a proa,
temendo dar no adarço.
E querendo começar
de louvar-vos sam segundo
e quem cuida de provar
que com Deos podem estar
os que jazem no prefundo?
Se soubera qu’ era reto,
vossas trovas nunca vira,
antes, senhor, vos prometo
que buscara tal carreto
com que logo me partira.
Das maas vidas sempre creio
ser pior a do amor
que se encobre com temor.
Vosso moto traz firmeza
de quem vive desamado,
faz-me ser desesperado
do que vossa gentileza
sempre foi mui abastado.
Faz minha’ alma ser sentida,
faz sentir mais minha dor,
minha pena faz crecida,
crecida sem ser sabida,
meu senhor!
Grosa do moto.
Ha sido tal mi ventura
com la de quien no me quiere,
que solo por mi tristura
tengo por mucho segura
la vida que siempre muere.
Quanto más som mis sentidos
cercados de pensamientos,
tanto mayores tormentos
sobre mi som posseidos.
Y la gloria prometida
quiere que siempre m’ acuerde
delha, siendo fenecida,
pues viendo tam triste vida
que se pierda ¿que se pierde?
536
GROSA DE DUARTE DA GAMA A Ũ
MOTO DE ŨA SENHORA QUE DIZ:
DURARÁ ENQUANTO VIVA.
Nam vos ver nem vós me verdes
cada vez mais me cativa,
o temor de me nam crerdes,
a pena por nam quererdes
durará enquanto viva.
Vós me dais cuidar por gloria,
sospirar por galardam,
vós me dais por grã vitoria
que vos traga na memorea,
porque tenha mor paixam.
Ja nom pode mor crueza
ser que serdes tam esquiva,
polo qual minha tresteza,
minha fee, minha firmeza,
durará enquanto viva.
537
GROSA DE DUARTE DA GAMA A
ESTE MOTO, QUE ELE FEZ, DAS
LETRAS DO NOME D’ ŨA
SENHORA, E DIZ:
Na vida maal e temor.
Quanto mais vossa lembrança
acrecenta minha dor,
tanto sem fazer mudança
trazerei por esperança
na vida mal e temor.
Porque nisto estaa o bem,
senhora, que mais desejo,
e naquisto se contem
o nome todo de quem
faz meu dano ser sobejo.
Mas pois de vós nom s’ alcança
vitorea, menos amor,
sem haver mais segurança
trazerei por esperança
na vida mal e temor.
538
DUARTE DA GAMA A
ESTE MOTO D’ ŨA
SENHORA, QUE
DIZ:
Deseo no desear.
Si con solo em vos pensar
vida tam triste poseo,
aquelho que maas deseo,
deseo no desear.
Mi deseo sin vitoria,
mi bevir sin libertad,
me hazen de voluntad
recebir pena por gloria.
Y hazen por más doblar
los males em que me veyo
que tanto quanto deseo
deseo no desear.
539
ESPARÇA DE DUARTE DA GAMA
A ŨA SENHORA, QUE PÔS EM
ŨU LIVRO SEU Ũ MOTO
QUE DIZ:
Gram miedo tengo de mi.
Temo yo lo que temia
y más lo que vos temeis,
temo más lo que solia
temer quando me partia
donde vos os partireis.
Y con este tal sentido
tantos temores me di,
que sin ser de vos partido
com temor de vuestro olvido
gram miedo tengo de mi.
540
DUARTE DA GAMA, ESTANDO JA
APOUSENTADO EM SUA CASA,
A
DIOGO BRANDAM SOBRE ŨA
CARTA QUE LHE MANDOU
DE NOVAS DA CORTE, NA
QUAL LHE PEDIO QUE
LHE MANDASSE AL‑
GŨAS TROVAS.
Na carta, senhor, das novas
que da corte m’ escreveis,
me mandais e me dizeis
que vos mande algũas trovas.
Digo que sejam da vida
em que vivo,
pois a isso me convida
meu motivo.
E digo logo primeiro
que vivo naquesta terra,
onde nunca tenho guerra
com Diogo nem porteiro.
Nem vejo menos agora
estar no centro
quem sabeis qu’ estava fora
e nós dentro.
Vivo fora de dizer:
— Senhor, dizei laa de mim...
Nem a Fogaça Chacim
ir pousadas requerer.
Nem vivo em tanta mingua
que requeira
a quem ja nom tem a lingua
mui inteira.
Tenho mais o que nom tem
quem estaa lá ond’ estais:
nunca ver oficiais
a que fale mal nem bem.
Nem vejo corregedores
carregados,
nem muito menos doutores
perfilados.
Durmo sono mui inteiro
e mais como quando quero,
dos meus moços nam espero
que me peçam ja dinheiro.
Manjadoiras tenho feitas
bem pregadas,
para nunca ser desfeitas
nem mudadas.
Nunca peço emprestado
sobr’ escrito nem penhor,
polo qual vivo, senhor,
a meu ver mui descansado.
Tambem tenho ja perdido
a lembrança
de quem tem mais de medrança
ca servido.
Nam me lembra Portalegre,
Vila Real com Valença,
Tentugal com Olivença,
que estoutros faz vir febre.
Nom me lembra Monsaraz
co a Idanha,
porque Deos, quando lh’ apraz,
tudo apanha.
Alvito com Portimãao,
Afonseca com Cascaes,
Carneiros, Corte Reaes,
da memoria se me vãao.
Lá vai a Feira tambem,
porque levou
o qu’ ele nunca cuidou
nem ninguem!
De Cezimbra que direi?
E d’ Arruda? E de Nisa?
Senam que por ũa guisa
de todos m’ esquecerei.
Do gram Castelo Real
nam sei que diga,
pois dizê-lo me nam val
a ter fadiga.
Barretos, Costas e Melos,
Botelho por esta via
Marquionio, Atouguia
com mil contos d’ amarelos,
ante mim tam esquecidos
todos sam,
como se foram nacidos
e eu nam.
Mas co este esquecimento
nam me leixa de lembrar
que vi Tanjere tirar
a quem tem merecimento.
Arzila desta maneira
fez mudança,
polo qual tenho lembrança
verdadeira.
Lembra-me Penamacor
como foi ja prosperado
e depois foi desterrado
do reino com tanta dor.
Lembra-me que s’ espedio
de Portugal
o Prior do Esprital,
como se vio.
Por nam m’ haverdes por peco
lembra-me Martim de Beça
e nam quero que m’ esqueça
tambem Alvaro Pacheco.
Lembra-me que Per’ Estaço
nam tem renda
e que val mais a fazenda
que o paço.
Lembra-me dos que dissestes
qu’ a Çofala querem ir.
Se o fizestes por rir
mercê muita me fizestes.
Se o dizeis de verdade,
é razam
que diga minha tençam
e vontade.
Gil Matoso, Bras Teixeira,
é muita razam que vãao,
para ver se perderãao
o que houveram da primeira.
Se de quam pouco tiveram
se lembraram,
co que da Mina trouxeram
repousarão.
De Soares, de Reinel,
sobre todos mais m’ espanto
sem querer haver por tanto
ir Fernandez Manuel.
Estes fazem que riqueza
nom desejo
e mais ter por bem sobejo
a proveza.
Dizem cá qu’ estais eleito
para ir ond’ estes vãao,
do qu’ estaa meu coraçam
assaz cheio de despeito.
Se tendes determinado
tal fazer,
o conselho escusado
deve ser.
Fim.
Polo qual quero dar fim
ò processo começado,
sem vos dar outro cuidado
senam soo que lá por mim
ò senhor Conde beijeis,
senhor, as mãos
e que vos aconselheis
co homeens sãaos.
541
DUARTE DA GAMA A ŨA SENHORA
QUE LHE DISSE QUE LHE ERA O
TEMPO TAM CONTRAIRO QUE
A NAM LEIXAVA SER
POR ELE.
O tempo nam me tem culpa
no mal que por vós s’ ordena,
mas antes vossa desculpa
me mata, pois vos condena.
Se por mim nam quereis ser,
ja, meu bem, sões contra mim,
ordenando minha fim
sem ma dar pola querer.
Minha door por vossa culpa
em tal estremo s’ ordena,
que vossa mesma desculpa
me mata, pois vos condena.
542
TROVAS QUE FEZ DUARTE DA GAMA
AAS DESORDEENS QUE AGORA SE
COSTUMAM EM PORTUGAL.
Nam sei quem possa viver
neste reino ja contente,
pois a desordem na jente
nam quer leixar de crecer.
A qual vai tam sem medida
que se nam pode sofrer,
nem ha i quem possa ter
boa vida.
Ũus vejo casas fazer
e falar por antresoilos
que creio que têm mais doilos
do qu’ eu tenho de comer.
Outros guarda-roupa, quartos
tambem vejo nomear
que ja deviam d’ estar
d’ isso fartos.
Outros vejo ter cadeiras
de justo e de cruzado
e chamarem-lhe d’ estado,
nam entendo taes maneiras!
Outros vendem a herdade
por comprar tapeçaria,
dos quaes eu ser nam queria,
na verdade.
Outros sei que vão chamar
suas mãis minha senhora,
que muito milhor lhe fora
tal cousa nunca falar.
Outros se vão, por trazer
cabeleiras, trosquiar,
podendo-se desviar
de o fazer.
Outros nom têm moradia
mais de seiscentos reaes,
os quaes querem ser iguaes
cos fidalgos de valia.
Outros por s’ afidalgar
andam aa brida continos
em sindeiros que sam dinos
de coutar.
Outros vão trazer atados
ũs lencinhos no pescoço,
que com gram pedra nũ poço
deviam de ser lançados.
Outros sem ser mancipados
sendo menores d’ idade,
andam ja com vaidade
agravados.
Outros sem lhe pertencer
às molheres poem o dom,
havendo que é mui boom,
sem d’ aquisso se correr.
Outros paje vão chamar
a ũu moço dos que tem,
que às vezes lhe convem
almofaçar.
Outros ham por cousa boa
nam ter homens nem cavalos,
e despreçam os vassalos
por se virem a Lixboa.
Os quaes, se fossem lembrados
das pendenças e das guerras,
folgariam de ter terras
e criados.
Ja ninguem nam quer usar
da nobreza dos passados,
senam vinte mil cruzados
ver se podem ajuntar.
S’ algũu quer ser caçador
nom é senam de dinheiro,
nem ha ja nenhũ monteiro
gram senhor.
Frei Paio com sua renda,
monteiros e caçadores,
escudeiros, servidores
lh’ acharam e nam fazenda.
Tinha lei de cavaleiro
na maneira do viver
e quis antes isto ter
ca dinheiro.
O almirante passado
Frei Paio ja precedeo,
pois na guerra despendeo
mais do que tinha ganhado.
E leixou endividado
seu filho, como sabeis,
mas em fim achá-lo-eis
mui honrado.
Cos mortos quis alegar,
por pena nam padecerem
os que disto carecerem,
sem os vivos lhe louvar.
Os quaes, se louvar quisesse,
por ventura cessaria,
com temor que nam teria
que dissesse.
Outros querem ir andar
na corte sendo casados
e se fazem desterrados
donde deviam d’ estar.
Outros se querem vender
qu’ andam com damas d’ amores,
que nam sam merecedores
de as ver.
Outros nam querem verdade
falar com ribaldaria,
falando por senhoria
a homeens sem dinidade.
Ó usura conhecida,
tratada por tanta jente,
porqu’ es no mundo presente
tam crecida?
Na cobiça dos prelados
nom é ja pera falar,
qu’ em vender mais que rezar
e em comprar sam acupados!
Ũu soo nam meto aqui,
que se nam nomearaa,
e cada ũu tomaraa
que é por si.
As donas, por competir
em terem cousas de Frandes,
as fazendas muito grandes
querem fazer destroir.
As donzelas em lavores
a isso tambem lh’ ajudam.
Nam sei porque nam se mudam
taes errores!
Os desvairados vestidos,
que se mudam cada dia,
nom vejo nenhũa via
para serem comedidos.
Que se ũu galante traz
ũu vestido qu’ ele corte,
qualquer homem doutra sorte
outro faz.
Porque como fez foãao
ũu capuz muito comprido,
polo reino foi sabido,
todos dam ja pelo chãao.
Quem o portugues pintou
em Roma, como se diz,
foi nisso mui boom juiz
e acertou.
A maneira d’ escrever
que costumam nos ditados
é chamarem ja preçados
a mil homeens sem o ser.
E quando na baixa jente
o costume for jeral,
ha-de vir a principal,
a excelente.
Em qualquer aldeazinha
achareis tal corruçam
qu’ a molher do escrivam
cuida que é ũa rainha.
E tambem os lavradores
com suas maas novidades
querem ter as vaidades
dos senhores.
Na Chamusca vi ũu dia
ũa filha d’ ũu vilãao
lavrando d’ almarafãao,
o qual pera si fazia.
Daqui virão os chapins
e tambem os verdugados
e após eles os trançados
e coxins.
O cavalo desbocado
nunca se pode parar
sem primeiro se cansar,
entam logo é parado.
Assi creio que faremos
nos gastos demasiados,
e depois de bem cansados
pararemos.
É prudencia conhecida
por esta comparaçam
nam nos ir El-Rei à mão
estes dez anos de vida.
A qual lh’ acrecentaraa
quem lha deu por muitos anos,
com que todos estes danos
tiraraa.
Bem assi como tirou
outros muitos que sabemos,
com que tal descanso temos,
que jamais nam se cuidou.
Se nos meterem em ordem
com força d’ ordenaçõees,
tirar-s’ -á dos coraçõees
a desordem.
A cidade de Cartago,
depois de ser destroida,
fez em Roma moor estrago
que antes de ser perdida:
os romãos des que venceram
foram dos vicios vencidos
e seus louvores crecidos
pereceram.
Assi por nam perecerem
os tam antigos louvores
dos nossos predecessores,
convem de nos reprenderem
dos vicios e da torpeza
em que queremos viver,
antes de se converter
em natureza.
Pois se eu em tais desordens
soo quiser ser ordenado,
hei-de ser apedrejado
sem me valerem as ordeens.
Molhar-m’ -ei, em que me pês,
polo tempo e sazam,
pois é natural razam
a do Marquês.
Se Martim Vaz de Siqueira
neste tempo s’ acertara,
que doces cousas tocara
e por quam gentil maneira!
Nom ha i mais antremeses
no mundo oniversal
do que ha em Portugal
nos portugueses!
Em Roma, segundo lemos,
ordenaram dous censores,
os quaes eram reprensores
dos vicios e dos estremos:
lembravam oos principaes
e òs pequenos o que tinham
e a todos donde vinham
e seus pais.
Fim.
Assi no tempo presente,
nam seria muito mal
haver i oficial
de desenganar a jente.
O qual em mi acharia
o que quero reprender
e quiçaes arrepender
me faria.
543
DE
TRISTAM DA SILVA
A ŨA MOLHER
QUE
NAM PODIA VER.
Eu vi a quem os primores
obedecem todos juntos
quantos sam,
a quem todolos louvores
se crê que neles tresuntos
acharam.
Ó fremosura sem par,
ó graça nam conhecida,
ó dama tam sengular,
quem vos tem tam escondida
me pode remedear.
544
TRISTAM DA SILVA A ŨA MOLHER
QUE LHE MANDOU PEDIR
TROVAS.
Mandastes que vos servisse
com trovas como Mancias
porque, quando se sentisse
enfadada, que as visse
vossa mercê algũs dias.
Se por haverdes paixam
d’ algũa passada pena,
a minha com mais razam
deve vosso coraçam
sentir, pois que ma ordena.
545
DE TRISTAM DA SILVA A
SANCHO DE PEDROSA.
Sabido gram sabedor,
antr’ os honrados honrado,
de gram bem merecedor,
ousado ordenador
de grandissimo cuidado.
Louvado dos mais louvados
de muito dina memoria,
estimado d’ estimados
e dos muito esforçados
senhor de grande vitoria.
Pregunta.
Senhor meu, decraraçam
me mandai por me salvar,
querei-me remedear,
nam me leixeis condenar,
pois estaa em vossa mam.
Porque nam sei bem nem mal,
estou muito enleado,
querei-me vós decrarar
s’ a Senhora singular
pecou no oreginal
ou s’ ee fora de pecado.
Sancho de Pedrosa
polos
consoantes.
Valido comprendedor,
na iminencia louvado,
dino de grande senhor,
nos trabalhos valedor,
na fama sobrelouvado.
Nesta vida antr’ os prezados
possuis a maior groria,
os famosos eixalçados
sam por vós tam abaixados
que nam têm cousa notoria.
Reposta.
O temor vence rezam,
sojeito vou a trovar
nam por remedio vos dar,
mas vós me quereis mandar
servir vossa condiçam.
Para cousa tam real,
pois estaa jaa bem provado,
que posso mais alegar
em vos querer reprovar,
pois nenhũ em autual
n’ Ela nunca foi achado.
Pergunta de Sancho
de
Pedrosa a Tristam
da Silva.
Por nos nam ficar remisso
o bem da Madre tresunta,
consirai o compremisso
que diz isso
que respondo à pregunta.
Mas quem A serve leal
responda por gentileza,
quanto comprende de mal
o pecado oreginal
nesta lei de natureza.
Quem tal materia tocou
com tam descreta eloquencia,
más sabe do que falou
e eu lhe dou
sobre todos preminencia.
Mas tomando por dotrina
o motivo mais profundo,
demando como s’ encrina
a prima causa devina
entender naqueste mundo.
546
DE
PERO DE BAIAM, QUE FOI
CAMAREIRO DO PRINCEPE
DOM AFONSO.
Como poderaa sofrir
el triste que tal sostiene
sim esperança bevir,
y calhar y encobrir
ser el remedio que tiene.
Amor se fuerça y quiere
querer para provicalhe,
razon manda y requiere
que sufra y que se calhe.
Pues como podereis sofrer,
coraçon, quien tal sostiene,
sin esperança bevir
y calhar y encobrir
ser el remedio que tiene.
547
OUTRA SUA.
Tristeza, dolor, cuidado
no parten de mi sentido,
sabeis porque.
Es mi servicio passado
y el presente perdido
a falsa fee.
A falsa fee com enganho,
sim piadad, sim mesura,
sim dolerse de mi danho
lhe plaze com mi tristura.
Pues tan mal gualardonado
me veyo com gram gemido,
yo diree
ser mi servicio passado
y el presente perdido
a falsa fee.
548
OUTRA DE PERO DE BAIAM,
PARTINDO-SE.
Venid, venid, pues parti,
cuidados y pensamiento,
que cierto ya despedi
todo plazer que senti,
quando más me vi contento.
Com vos seraa mi bevir
sin esperar alegria,
sospiros, lhoros, gemir,
deseando noche y dia.
Porque quando me parti
do queda mi pensamiento,
naquel punto despedi
todo plazer que senti,
quando más me vi contento.
549
DE DIOGO LOPES D’ AZEVEDO.
Que quer mais quem pode ver-vos
que sofrer pena crecida,
pois o bem de conhecer-vos
nom poode satisfazer-vos
que perca por vós a vida.
É tam alto o merecer,
tam sobida a perfeiçam
com que Deos vos quis fazer,
qu’ ee vitoria padecer
sem querer mais gualardam.
Quem ha ventura de ver-vos
sofra, pene sem medida,
pois o bem de conhecer-vos
nom pode satisfazer-vos
que perca por vós a vida.
550
A ŨA DAMA QUE IA PARA O
PAÇO E PEDIO-LHE ALGŨA
ESTRUÇAM DO CUS‑
TUME DELE.
Pois em vossa mercê cabe
ũu louvor que nam sei dar,
é melhor que eu me cale,
pois por muito que vos gabe
a moor parte haa-de ficar.
Se vos quero comparar
com outra cousa fermosa,
certo estaa que terei grosa,
salvo se for alegar
em o mais alto lugar
da outra nossa Senhora.
É, senhora, gram rezam
que digais que desatino,
se a vossa perfeiçam
eu tevesse presunçam
de louvar nem dar ensino.
E se mal faço, queria,
senhora, que perdoeis,
que mais pedras lançaria,
s’ eu viss’ o bem que fazia
como vós mais que fazeis.
Estas cousas ha-de ter
no paço a jentil dama:
dormir jaa muito na cama,
porque a possam menos ver.
Vir aa missa muito tarde,
muito tarde oo serãao,
porque faz mais saudade
e nom parece livindade
ante quantos ali estam.
Primeiramente devota
com temor, com caridade,
na vontade dos paais posta,
suas falas ou reposta
sejam sempre com verdade.
Para muito mais louvada,
estimada por tal via,
quer livre quer namorada,
seja muito mesurada,
sofrida com cortesia.
Bom escrever, bom falar,
motejar e saber rir,
bom dançar e bom bailar,
as cousas que sam d’ olhar
sabê-las mui bem sentir.
Sentilos que sam sentidos,
conhecêlos fingidores,
guanhálos que sam perdidos,
gabálos que sam vencidos,
polo serem por amores.
O mal sabê-lo calar
e do bem ser pregoeira,
e matar sem se matar,
nunca outrem desdenhar
nem per si nem per terceira.
Aconselhar bem as damas
e louválos servidores
qu’ assi s’ encendem as famas:
qual assopra nestas chamas,
tal se queima em suas dores.
Haa-de ser dissimulada,
temperada no seu riso,
naquilo que sabe nada
s’ amostre mui avisada,
que jaz nela todo aviso.
Nas cousas que bem souber
s’ amostre mais inocente,
e, se mal fez ou fizer,
emmendaraa o que quiser
em que pês a toda jente.
Para gentil dama ser
haa-de ser mui escoimada,
haa-de querer e nam querer
que possam dela dizer
que tiveram nunca nada.
Haa-de querer ser querida
e ter mãao nos mais senhores,
e da honra tam provida
que se saiba qu’ ee servida
aa custa dos servidores.
Quando tiver nos serãaos
algũ parente ou amigo,
inda que sejam mui sãaos,
tenham fora quatro mãaos,
porque tres é gram perigo.
Qu’ haa de fora ũs contadores,
que da cabeça fazem pees,
e, s’ assomam nos favores,
faz-s’ um jogo dos amores
que se joga de revees.
Haa-de ser mui repousada
e sem gritos a donzela
e que seja namorada
antes fale quasi nada
que mil vezes de janela.
Ca se entra em ser devassa
e em tais primores sobeja,
tudo per graça se passa
e nunca jamais se casa,
por fermosa qu’ ela seja.
Avorrece aa Rainha,
quer-lhe pouco bem El-Rei,
sua mãi nam é madrinha
e seu pai casa nem vinha
nunca diz: — Eu lhe darei!
É de todos desprezada,
dos proves como dos ricos,
d’ ũus e doutros enjeitada,
nunca pode medrar nada,
nunca sai de mexericos.
Fim.
Fermosura e fidalguia,
herdeira de mil riquezas,
sem nos meos de tal via,
se converte em vilania
com outras muitas provezas.
Quando a dama nam embica
e se conserva sem grosa,
est’ ee a graça que lhe fica:
aa mais prove faz mais rica,
aa mais fea mais fermosa.
551
DE GONÇALO MENDEZ A ŨA
MOLHER QUE SE CHAMAVA
DA GUERRA, A QUAL NUN‑
CA VIRA SENAM AQUELA
HORA NEM FORA
NAQUELA TERRA.
Vim alegre eesta terra,
parto triste, porque faz
minha paz ficar em guerra,
pois m’ a Guerra satisfaz.
Quem na guerra faz por ela
nom terá nenhũ socorro,
jamais nunca seraa forro
se se vir cativo dela.
Para sempre nesta terra
tal cativo j’ eele jaz
em ter sempre crua guerra
e nunca segura paz.
552
VILANCETE SEU.
Quem de mim s’ aconselhar
e leedo quiser viver
perderaa todo prazer.
Saiba certo quem quiser,
pois prazer tam pouco dura,
que nom tem ninguem ventura
que lhe dure quanto quer.
O remedio qu’ eu lhe der
de meu conselho morrer
se leedo quiser viver.
553
CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
QUE LHE MANDOU DIZER
QUE ERA CASADA.
Senhora, pues que casastes
plega a Dios
qu’ aquel mismo que tomastes
como vos a mi dexastes
dex’ a vos.
Assi burlada, desquerida,
amadora
y d’ amor desconocida,
assi juzgada y vencida
como yo de vos, senhora,
seais vos
daquel mismo que tomastes,
pues por el vos me dexastes,
pleg’ a Dios.
554
CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
QUE LHE MANDOU DIZER QUE
MUNDO ERA ESTE QUE ASSI
O TRAZIA DESCONTENTE.
Nam pode descontentar-me
o mundo, pois foi por nós
em nacerdes nele vós
e querer em si criar-me
com saber por vós matar-me.
Vós sois soo em especial
sobre todas eicelente,
vossa fermosura é tal
que nam me pode dar mal
de que fique descontente.
Pois quem poderaa negar-me
mor louvor que meus avoos,
pois se moiro é por vós
e por vós quero matar-me
sem querer desesperar-me.
555
OUTRA SUA.
Com fortuna desigual
naci qual nom tem ninguem,
se me bem fizer alguem
compre-lhe que seja mal,
porque o mal é jaa meu bem.
Pois do bem naci privado
e mal tenho por amigo,
quando m’ eu vir em perigo,
como posso ser livrado
com o bem de meu imigo?
Com esta mezinha tal
nam me cure a mim ninguem,
antes deste mal me dem
tanto que me faça mal,
poilo mal é jaa meu bem.
556
DE
FERNAM CARDOSO, CHEGANDO
DE ÇAFI, A DOM
ALVARO D’ ABRAN‑
CHES, DANDO-LHE NOVAS
DE LAA E DE DOM JOR‑
GE ANRIQUEZ.
Se me tendes a vontade
que me tinheis em Çafim,
eu cheguei eesta cidade,
qu’ é para haver piadade,
sem camisa e sem cotrim.
Tirai-me daquesta afronta
com d’ algũas que fizestes,
porque a que me laa destes
nam faço ja dela conta.
Feito oo trajo da terra
irei beijar essas mãaos,
como quem nunca vos erra
vos darei novas da guerra
que laa fazem os cristãos:
toda a jente laa s’ arrisca,
no çoco dizem quem foje
e voss’ amigo Dom Jorje
anda sempre aa mourisca.
Anda laa mui assomado,
sem fazer nenhũa soma,
aa brida no seu rodado,
o rabo lhe traz atado
por te más honrar Mafoma.
Polas ruas arremete
num muito magro rocim,
dizendo: — Aah que ginete!
Este é para Almerim!
Traz bedem antre arçam
e lança pola cidade
este perro, este cam,
tam cheo de vaidade
de genro do capitam.
Tem aa paz grande fastio,
gram fragueiro com gazelas
e quando imos no fio
manda mais que Jam d’ Ornelas.
Fim.
Outras cousas qu’ aqui calo
direi, quando vos for ver,
que laa vam acontecer,
palhas é o qu’ aqui falo
par’ o qu’ haveis de saber.
Socorrei-me neste dia,
pois estas vindas sabeis
e guardai-vos, nam lanceis
este feito a zombaria.
557
CANTIGA DE FERNAM CARDOSO.
Des que conhecer me sei
com’ eu fui para poder
quaesquer cuidados sofrer,
nunca sem eles m’ achei.
Eles que s’ anticiparam
a tomar meu coraçam
tam sem tempo e sem rezam,
crede certo que m’ acharam
do seu geito e condiçam.
Começaram, comecei
mil males de padecer,
com’ eu fui par’ os sofrer
nunca sem eles m’ achei.
Outra sua.
E pois levam de viram
nam m’ afroxarem ũ dia,
mas de mal em pior vam,
atee morte me faram
esta triste companhia.
E se per ventura eles
cuidam que me dam a fim,
eu sam o que cuido deles
o qu’ eles cuidam de mim.
Outra e fim.
Vam obrando, vam fazendo
mil pesares emnovados,
assi com’ eu vou vivendo
vou achando, vou sofrendo
outros mais desesperados.
Ja deles desesperei
de me deixarem saber
que cous’ ee algũ prazer,
pois que cousa é nom sei.
558
CANTIGA SUA.
Se a mim o mal sobeja
e quem tem o que deseja
nam poode ledo viver,
qu’ esperança posso ter
que para descanso seja?
Que meu mal nunca abrandara,
antes fora em crecimento,
por tempo sempre esperara
cousa com que descansara
ou cansara meu tormento.
Mas quando isto vou saber
que quem tem o que deseja
nam pode leedo viver,
desespero jaa de ver
cousa que descanso seja.
Outra sua.
E pois que tam certo vejo
que nam m’ haa-de descansar
ter aquilo que desejo,
mas antes s’ haa-de dobrar
o mal que tenho sobejo,
buscarei vida segura.
E seraa sempre tristura,
que por mais grande que seja,
quem tever o que deseja,
teraa mor desaventura.
559
CANTIGA SUA.
Nojos, desastres, cuidados,
que por minha fim fazeis,
que seraa de vós coitados,
eu morto, desesperados,
que fareis?
Quem com tanta lealdade
vos amou e vos servio,
quem jamais vos nam saio
ũu hora soo da vontade?
Nojos mal aconselhados,
que fazês, quem achareis
qu’ assi vos sofra os cuidados,
males tam desesperados,
que fazeis?
560
DE FERNAM CARDOSO INDO
POLAS SERRAS D’ ANSIAM.
Quem quiser passar seguro
polas serras d’ Ansiam,
deixe fora o coraçam.
Sam tam esperas em cuidar
que quem foi desesperado
e nelas houver d’ entrar,
ali lh’ ha-de renovar
todo seu tempo passado.
Quem se temer do cuidado
e houver d’ ir Ansiam,
deixe fora o coraçam.
Fim.
Quer solteiro quer casado,
para maior abastança
s’ ele jaa teve esperança,
ali ha-de ser roubado,
despojado da lembrança.
Quem deseja esquivança,
vá-s’ às serras d’ Ansiam,
fartaraa o coraçam.
561
ARRENEGOS
QUE FEZ GREGORIO
AFONSO, CRIADO DO
BISPO D’ EVORA.
Arrenego de ti, Mafoma,
e de quantos creem em ti,
arrenego de quem toma
o alheo pera si.
Renego de quantos vi
de quem foram esquecidos,
arrenego dos perdidos
por cousas nom mui honestas.
Renego tambem das festas
que trazem pouco proveito,
arrenego do dereito
que se vende por dinheiro.
Arrenego do palreiro
e de quem em ele crê,
arrenego da mercê
mais pedida de ũa vez.
Arrenego de quem fez
o roim do boom senhor,
renego do julgador
que julga per afeiçam.
Renego da sem rezam
e de quem per ela usa,
renego de quem refusa
fazer bem a quem merece.
Renego do que padece
sem querer ser confessado,
arrenego do casado
mandado pela molher.
Arrenego de quem der
a roins e chocarreiros,
arrenego dos dinheiros
e tesouros soterrados.
Renego dos leterados
que nam usam do que leem,
arrenego dos que creem
nas riquezas deste mundo.
Arrenego do segundo
que viveo com outro homem,
arrenego dos que comem
o alheo sem pagar.
Arrenego do palrar
e falar muito sobejo,
arrenego de quem vejo
usar sempre do que quer.
Renego de quem disser
que ha i algũ amigo,
renego de quem consigo
nam despende do que tem.
Renego tambem de quem
favorece o roim,
renego tambem de mim
se creo em vaidades.
Renego das poridades
descubertas mais que a ũu,
arrenego do gejum
que se faz por nam ter pam.
Arrenego da paixam
sem nenhũa esperança,
arrenego do que dança
sem ouvir tanger nem soom.
Renego tambem do boom
que usa de roins manhas,
arrenego das façanhas
feitas por quem pouco val.
Arrenego do casal
que nunca estaa em paz,
arrenego do rapaz
que sempre serve chorando.
Vou tambem arrenegando
de mil cousas que nam falo,
arrenego porque calo
cousas mais sustanciosas.
Arrenego das fermosas
cujas obras sam mui feas,
arrenego das candeas
que nam dam mui craro lume.
Renego de quem presume
e mostra mais do que é,
renego tambem da fe
dos que nam sam bautizados.
Renego dos namorados
que tendo tempo nam pegam,
arrenego dos que negam
parentes e natureza.
Arrenego da riqueza
avara e mal usada,
arrenego da casada
que deseja ser solteira.
Arrenego da bandeira
a quem segue pouca gente,
renego de quem consente
posturas em sua casa.
Arrenego de quem casa
com molher muito garrida,
renego tambem da vida
envolta em muitos vicios.
Renego dos beneficios
havidos com simonia,
renego da zombaria
que logo daa na verdade.
Arrenego da cidade
regida pelos tiranos,
renego dos mui mundanos
despois que ja sam dos trinta.
Arrenego da infinta
nam vivendo d’ ouro trapo,
arrenego do maao papo
de roins meixeriqueiros.
Renego dos lejungeiros
e tambem dos mentirosos,
renego dos cobiçosos
e dos ricos avarentos.
Arrenego de quinhentos
ou de todos os judeus,
arrenego dos sandeus
que leevão as dos sesudos.
Arrenego dos cornudos,
dos que sabem que o sam,
renego do capitam
que sabe pouco da guerra.
Arrenego de quem erra
e jamais nam se emmenda,
renego tambem da renda
que é menos que o gasto.
Renego tambem do pasto
em que nam entra boom vinho
arrenego do vezinho
envejoso e sandeu.
Renego tambem do meu
amigo por interesse,
arrenego se quisesse
entender nem ver mil cousas.
Renego de quantas lousas
quantas arma o diabo,
renego do grande rabo
sem outros algũs honores.
Arrenego dos favores
com que se pagam serviços,
arrenego dos chouriços
e comer feito sem sal.
Renego do oficial
que muito folga com peita,
renego da que s’ enfeita,
teendo o marido cego.
Arrenego tambem do prego
que é mais brando que o paao,
renego tambem do vaao
como chega aa orelha.
Arrenego da conselha
de moços e pouco lidos,
renego dos arroidos
e do homem revoltoso.
Renego do perfioso
que nam sabe o que diz,
arrenego da perdiz
despois que passa dos dez.
Renego tambem de Fez
com toda sua mourisma,
arrenego desta cisma
e revolta da Igreja.
Renego de quem peleja
e vai contra o Padre Santo,
renego de trajo tanto
quanto vejo desonesto.
Renego de tanto gesto
quanto s’ ora contrafaz,
renego de quem nam traz
o siso em seu lugar.
Arrenego do falar
soberbo e descortes,
renego de quem em tres
pagas paga o que deve.
Renego de quem ja teve
e despois vem a pedir,
renego do muito rir
e de quem chora de cote.
Renego do sacerdote
que vive como o leigo,
renego tambem do meigo
e do homem mui fagueiro.
Renego do cavaleiro
que nam tem bem de comer,
arrenego do fazer
a lenha em roim mato.
Arrenego do barato
que despois se torna caro,
arrenego do avaro
que jamais nunca se farta.
Renego do que s’ aparta
de comprir a lei devina,
arrenego da doutrina
de quem é mal doutrinado.
Arrenego do julgado
que se dá a quem o pede,
arrenego do que mede
maos e boons d’ ũa maneira.
Renego da alcouviteira
e de quem sem causa mente,
renego de quem nam sente
o bem e mal que lhe fazem.
Renego dos que lh’ aprazem
os roins mais que os boons
renego tambem dos toons
d’ algũs doudos ou sam muitos.
Renego tambem dos fruitos
que se colhem da doudice
renego da bebedice
e dos que sam de mil leis.
Renego tambem dos reis
pelos tiranos mandados,
renego tambem dos dados
e jugar tanto corruto.
Renego tambem do puto
que em molher nunca entende,
arrenego de quem vende
a roim cousa por boa.
Arrenego da pessoa
que se nam lembra da morte,
renego tambem do forte
que, quando compre, é fraco.
Arrenego do velhaco
e do peco cortesãao,
renego do homem vãao
e dos mui presuntuosos.
Renego dos preciosos
e dos cheos de perfumes,
renego de mil costumes
e de mim se me contentam.
Renego dos que s’ assentam
onde nam devem estar,
renego do passear
de contino pela praça.
Arrenego da maa graça
e de quem nam tem vergonha,
arrenego de quem sonha
sempre em cousas mundanas.
Arrenego das oufanas
e das que sam mui golosas,
renego das ouciosas
criadas em muitos viços.
Renego de seus feitiços
e das que têm roim fama,
renego da gentil dama
que quer bem a homem vil.
Arrenego da sotil
e aguda em maldades,
renego das roindades
quantas sabem ordenar.
Renego de quem gastar
sua vida após elas,
renego tambem daquelas
que tomam muitos amores.
Arrenego dos pastores
que nam olham por seu gado,
arrenego do gram estado
e a renda quasi nada.
Arrenego da pousada
em que ha mui pouca roupa,
renego tambem da pouca
devaçam que vejo aqui.
Renego se nunca li
boas copras portuguesas,
arrenego das defesas
que provadas nam assolvem.
Renego dos que revolvem
criados com seus senhores,
renego dos servidores
que nam sam muito fiees.
Renego dos ministrees
que nam sam bem concertados,
arrenego dos privados
que conselham mal seu rei.
Renego tambem da lei
nam usada comumente,
arrenego do presente
que çuja ambas as mãaos.
Arrenego dos irmãaos
que nunca sam bem avindos,
arrenego dos mui lindos
e dos homens molherigos.
Arrenego dos imigos
que jamais nunca ameaçam,
renego dos que apraçam
e conversam com roins.
Arrenego dos malsins
nem se ha i ja verdade,
arrenego da bondade
que traz dano pera si.
Arrenego se ha i
nenhũa regra nem ordem,
renego da gram desordem,
que ha nos ecresiasticos.
Arrenego dos fantasticos
e dos fracos regedores,
renego dos pregadores
que mui rijo nam reprendem.
Renego dos que defendem
que se nam faça justiça,
arrenego da preguiça
e da grande agudeza.
Renego da gentileza
onde ha vil condiçam,
renego se acharam
oficial que nam roube.
Renego se sei nem soube
julgador sem duas tachas,
arrenego das borrachas
que bebem mais do que fiam.
Renego dos que perfiam
em cousas que nam entendem,
renego se os que prendem
nam deviam de ser presos.
Renego dos mui acesos
nestes amorinhos vãaos,
arrenego dos vilãaos
postos em algũa honra.
Arrenego da desonra
que vingada nam descansa,
renego da muito mansa
e tambem da muito brava.
Arrenego da que lava
e enxuga quando chove,
renego se ha i prove
nem boom homem estimado.
Renego do mui inchado
e do cheo de vãa groria,
arrenego da memoria
nam do boom mas roim feito.
Renego de quem traz preito
com puta ou poderoso,
renego do mui iroso
e do homem muito manso.
Renego se ha descanso
neste mundo de miseria,
arrenego da materia
dos que servem ao demo.
Renego se nam me temo
de dizerem que praguejo,
pelo que, com este pejo,
de muitos outros desisto
creendo bem na fe de Cristo.
Fim.
562
GROSA DE GRIGORIO AFONSO
A ESTE MOTO:
Quantos más males posseo
tanto más vuestro me veo.
Olvidarme yo de vos
no puede ser ni lo creo,
porque siempre ya por Dios
quantos más males posseo
tanto más vuestro me veo.
Para m’ acordar de mi
tengo nenguno sentido,
ni sé triste si naci
y com mil males ansi
de vos nunca me olvido.
Pues sabed que de los dos
que aman com buen deseo,
soy yo uno que por Dios
quantos males más posseo
tanto más vuestro me veo.
563
DE GREGORIO AFONSO
E ESTE MOTO:
Ado la fama namora,
la vista deve matar.
Dubdo s’ es mejor aora
miraros o no mirar,
porque cierto, mi senhora,
ado la fama namora,
la vista deve matar.
El deseo y voluntad
queriam que os amasse,
el temor y la verdad
no queriam em vos pensar,
que el veros me matasse.
Y ansi nenguna hora
no me dexa el cuidar,
porque cierto, mi senhora,
ado la fama namora,
la vista deve matar.
564
DE
JOAM RODRIGUES DE LUCENA
AA SENHORA DONA JOANA DE
MENDOÇA, PORQUE LHE
MANDOU A RAINHA
QUE NAM SAISSE
ŨS DIAS DA
POUSADA.
Senhora, vivei contente,
nam vos dê nada paixão,
porque nam é sem razão
que quem prende tanta jente
saiba que cous’ ee prisão.
Porque sabendo a certeza
do mal qu’ a tantos fazeis,
nam creo que querereis
usar de tanta crueza
cos cativos que prendeis.
Mas cuido que diferente
sois desta minha tenção
e que sendo solta então
prendereis muita mais jente
e em mais esquiva prisão.
Grosa sua a esta sua cantiga.
Em graças tam acabada
coma discreta e prudente,
em tudo tam eicelente,
pois sois de todos amada,
senhora, vivei contente.
E ainda que vejais
cousas feitas sem razão,
alargai o coração;
e que sejão muitas mais
nam vos dê nada paixão.
Sede leda se podeis,
pois tendes em vossa mão
as vidas de quantos são
e não vos maravilheis
porque nam é sem razão.
Que bem sabida a verdade
de vosso dano presente,
quem vos tem tam descontente
usa de mais piedade
que quem prende tanta jente.
Por isso, senhora, tende
muito grande coração
ou mudai a condição,
que razão é que quem prende
saiba que cous’ ee prisão.
Nam cureis de vos queixar,
nem deis lugar aa tristeza,
folgai, dama, de folgar,
nam cureis de vos matar,
porque sabendo a certeza
da grande pena crecida,
que dais aos que prendeis,
sei que toda vossa vida
vivireis arrependida
do mal qu’ a tantos fazeis.
Nem creo que pode ser
que tam crua vos mostreis
e vend’ os vossos morrer,
de seu mal tomar prazer
nam creo que querereis.
Nem se pode sospeitar
de tamanha gentileza
que possa querer matar
nem com quem na muito amar
usar de tanta crueza.
Que nam vos fez Deos fermosa
pera matar nem mateis,
mas quanto mais poderosa
deveis ser mais piadosa
cos cativos que prendeis.
Mas hei medo que sejais
do que digo descontente,
que creo que nam estais
bem nem mal cos que matais,
mas cuido que diferente.
Que por vos verdes vingada
por vossa consolação,
por dardes pena dobrada,
por fazer mal, apartada
sois desta minha tenção.
Que como vos vi prender,
logo tive sospeição
que havieis de querer
a muitos mais mal fazer
e que sendo solta então,
Entam compre de guardar,
que se vossa mercê sente
qu’ alguem ousa d’ assomar,
entam pera vos vingar
prendereis muita mais jente.
Mas não sei s’ havera quem,
porque dos que vivos são,
ũus morrem por querer bem,
outros vivos se mantem
em mais esquiva prisão.
À senhora Dona Joana.
A cantiga assi grosada
mande vossa mercê ler,
e se for d’ alguem tachada,
sendo de vós emparada,
logo pode parecer.
E s’ ela per si nam for
tal que vos pareça bem,
pois é em vosso louvor,
valer-lh’ -á vosso favor
o que nam faz a ninguem.
565
REPOSTA D’ ULISSES A PENELOPE
TIRADA DO SABINO, DE LATIM
EM LINGUAJEM, POR JOAM
RODRIGUEZ DE LUCENA.
Ulisses a Penelope.
Tua carta bem notada,
com piedosas palavras,
a teu Ulisses foi dada
assi como desejavas.
E nela bem conheci
tua mão e entendi
teu mui fiel coração
e foi-me consolação
dos longos males que vi.
Reprendes-me que tardei,
eu antes queria estar
contando-t’ o que passei
que havê-lo de passar.
A Grecia nam me lançou
neste lugar ond’ estou
como o fingido furor
que fingi, quando o amor
em tua terra m’ achou.
Porqu’ entam o não querer
partir-me de ti tam triste
era causa de deter
minhas velas como viste.
Que nam cure d’ escrever,
m’ escreves, mas de fazer
por mais asinha chegar,
e os ventos por m’ estrovar
fazem todo seu poder.
Ja na Troia avorrecida
de vós outras, nam estou,
porque ja é destroida
e em cinza se tornou.
Deifebo, Asio e Heitor,
que te punham em temor,
ja é tudo sepultado,
e eu ando desterrado
sofrendo tam grande dor.
De Reso, por mim estroido,
Rei de Tracia, escapei
e trouxe dele vencido
os cavalos que tomei.
E tambem na torre entrei
de Palas, donde roubei
o fatal Paladião,
por ond’ a destruição
de tod’ a Troia causei.
Nem menos eu fora estava
do cavalo de madeira,
quando Cassandra bradava:
— Queime-s’ em tod’ a maneira,
porque dentro nele estão
muitos gregos, que darão
morte a todolos troiãos
e com suas crueis mãos
cruel guerra lhe farão!
Arquiles, que sepultado
nam era como devia,
em meos ombros foi tornado
a Tetis como compria.
Os gregos nunca me derão
o louvor qu’ eles diverão
a mim, que tanto acabei,
porem as armas levei
d’ Arquiles qu’ ali perderão.
Mas a mim que m’ aproveita,
que no mar são sovertidas,
a frota toda desfeita,
minhas companhas perdidas.
Tudo me fica no mar,
mas o amor grande, sem par,
que te tenho, me siguio,
em quanto passei se vio
sem um hora me deixar.
Nunca a Nereia virgem
com seus caĩs mui cobiçosos,
nunca Caribdis tambem
com seus mares fortunosos
o puderão quebrantar;
nem Antifates mudar,
nem Partenope enganosa,
inda que mui desejosa
foi de me fazer ficar.
Nem aquela que tentou
por magica me deter,
nem a deosa que cuidou
ricas camas me vencer.
Ainda que me prometião
ambas elas que farião
que nam pudesse morrer,
se eu quisesse fazer
o que m’ elas cometião.
E porem eu desprezando
tal mercê, vou pera ti,
tanta fortuna passando
quanta por chegar sofri.
E tu porventura medrosa,
doutra molher receosa
e nam mui segura, les
aquesta carta, que ves
escrita tam saudosa.
Tambem por ventura cres
que a causa de me deter
seja Calipso ou Circes
e isto te faz temer.
Qu’ a mim me dá tal paixão
quando Antinoo e Medão,
Polibo leo tambem,
qu’ o sangue todo se vem
do corpo ao coração.
Triste de mim que crerei
qu’ estás tu entr’ essa jente
em convites — eu que sei? —
se te has tu castamente...
Mas tua presença airosa,
se a sempre vem chorosa,
como se namorão dela?
E com tam justa querela,
nam deixas de ser fermosa.
E hei gram temor tambem
qu’ estás ja pera casar,
s’ a tea, que te detem,
antes qu’ eu vá, s’ acabar.
Inda qu’ à noite desteces
ess’ arte t’ haa-de fazer
acabares de tecer
a tea, se t’ adormeces.
E se isto s’ acertar,
nam me fora a mim mais
são Polifemo me matar
na cova com sua mão?
Nam for’ eu milhor vencido
e morto e sepelido
do cavaleiro mui forte
de Tracia, quando por sorte
era em Ismaro detido?
Nam fora milhor ficar
no inferno onde m’ achei,
pera Ditis contentar,
qu’ escapar com’ escapei?
Onde eu embalde vi
a mãi que, quando parti,
deixei viva, a qual finada
me disse, sem faltar nada,
quant’ em tua carta li.
E disse-m’ os embaraços
de minha casa e fogio,
e tendo-a entre meus braços
tres vezes se m’ espidio.
Protisilao vi estar,
que quis antes começar
a guerra que nam temer
sobre Troia ali morrer,
podendo-o bem escusar.
Estava bem-aventurado
ali com sua molher,
que nam quis, ele finado,
mais nesta vida viver.
E posto que sua vida
nam era toda comprida,
quis morrer com seu marido,
que morreo de mui ardido
e ela de mal sofrida.
Vi Agamenom, o forte,
que me fez muito chorar,
disforme com nova morte,
cousa bem pera espantar!
E posto que nam ficou
na gram guerra em que s’ achou,
junto cos muros de Troia,
nem nos mares de Euboia
que a seu salvo passou,
Foi porem assi morrer
de muito cruas feridas,
despois de oferecer
as ofertas prometidas.
A qual morte Cliptenestra
tam cruamente lh’ adestra
estranhos varoons siguindo,
nova capa lhe vestindo
feita com sua mão destra.
Mas que m’ aproveita ver
a molher d’ Heitor e irmãas
ajuntadas ali ser
entr’ as cativas troiãas?
Pois entr’ elas escolhi
a Hecuba, porque vi
que era ja velha feita,
por perderes a sospeita
d’ outra molher e de mim.
A qual Hecuba agoirou
minhas naus e as fez tremer
e em cadela se tornou,
qu’ a todos ia morder.
E a triste assi ladrando,
suas desditas queixando,
acabou sua querela
feita raviosa cadela,
nos desertos habitando.
E Tetis por tal sinal
o manso mar me negou,
Eolo por me fazer mal
todos seus ventos soltou.
E assi ando desterrado,
por todo o mundo lançado,
por onde me quer levar
o vento e o bravo mar,
que me trazem destroçado.
Mas se Tiresias fora
da morte tal agoireiro,
como o eu acho agora
em meus males verdadeiro,
que tudo o que me fingia,
que eu de passar havia
pola terra e polo mar,
ja o acho sem faltar
nada do que me dizia.
Palas se me ajuntou,
ja nam sei em que ribeira,
e dali sempre me guiou
coma bõa companheira.
Esta vez foi a primeira
que a vi coma estrangeira,
despois de Troia estruida,
a ira demenuida,
tornada ja prazenteira.
Porque no que cometeo
Diomedes, eu pequei,
e sua ira s’ estendeo
a todolos gregos qu’ eu sei;
nem a ti nam perdoou
Diomedes, mas causou
que tu andasses errando,
ainda que pelejando
contra Troia t’ ajudou.
Nem Teucro que Talamão
houve na troiãa roubada
nem o forte Agamenão,
capitão da grande armada.
Ó tu bem-aventurado
Menelao, que foste achado
com tua molher no mar,
sem te poder estrovar
nenhũa sorte nem fado.
Porqu’ entam inda qu’ os ventos
e os mares vos detinhão,
vossos amores isentos
nenhum dano recebião,
qu’ os ventos nam estrovavão
vossos beijos, nem cessavão
vossos braços d’ abraçar,
inda que no bravo mar
os fortes ventos sopravão.
E se eu assi estivera
sempre contigo no mar,
tua presença fizera
tudo sem pena passar.
Mas ja meus males estão
leves em meu coraçam,
porque sei qu’ eu sendo absente
é Telemaco presente
contigo, pois eu nam são.
Do qual me queixo, porque
foi a Pilo e a Esparta
por mares, que certo é
como vi por tua carta.
Nam consento em piedade
que com tanta crueldade
de perigos se sostem,
porque certo nam foi bem
fiá-lo da tempestade.
Ainda m’ eu hei-de achar,
porqu’ um profeta mo disse,
entre seus braços estar,
mas isto quem no ja visse!
E entam quando eu chegar,
tu só me has-de abraçar
e soo m’ has-de conhecer,
aquele grande prazer
sabe-o dissimular.
Porqu’ a mim não me convem
guerrear tais cavaleiros,
ele mo disse tambem
qu’ assi dizem seus loureiros.
Mas porventura em comendo
ou em estando bebendo,
de supito chegarei,
e chegando vingarei
o qu’ eles andam fazendo.
Fim.
E serão muito espantados
da não esperada ida
d’ Ulisses, e rogo aos fados
que venha cedo este dia.
O qual fará renovar
o amor grande sem par
da antiga cama amada
e entam tu ja casada
começar-m’ -as a lograr.
566
CARTA
DE OENONE A PARES,
TRALADADA DO OUVIDIO EM
COPRAS PER JOAM RODRI‑
GUEZ DE LUCENA.
Argumento.
Sendo Pares ja crecido,
andando na mata Ida,
por prove pastor havido,
Enone foi sem sentido
por ele d’ amor perdida.
E polo pomo dourado,
qu’ aa deosa Venus julgou,
dela lhe foi outorgado
qu’ havia de ser casado
com Helena que robou.
E pera haver de cobrar
o que lh’ era prometido,
começou-s’ aparelhar
pera em Grecia navegar,
despois de ser conhecido.
E foi mui bem hospedado
d’ El-Rei Melelao, qu’ ordena,
por lhe fazer gasalhado,
de lhe mostrar seu estado
e a fermosa Rainha Helena.
E logo s’ enamorou
de tam fermosa rainha
e com ela concertou
como dali a levou
pera Troia, onde a tinha.
Mas Enone mui sentida,
de ver-s’ assi desprezada,
lh’ escreve por despedida
esta carta tam dorida,
quasi ja desesperada.
Oenone a Pares.
Se acabas tu de ler
esta carta que te mando
ou se a nova molher
to não consente fazer
ja de mim s’ arreceando,
e porem sem afeição
a lei, que nela verás,
que não tem nem letra não
escrita com grega mão
com que tu não folgarás.
Oenone, ninfa honrada,
nas troiãas matas e serras,
se queixa de ti agravada,
porqu’ era a triste casada
contigo, se tu quiseras.
E qual deos contrariou
a nosso voto e querer,
ou que pecado pecou
Enone, porque cessou
de ser ja tua molher?
Porque boom é de sofrer
mal que merecido vem,
mas pena sem merecer
é muito pera doer
a quem na sem causa tem.
Inda tu não eras nada
nem somentes conhecido,
quando eu ninfa jerada
do gram rio era pagada
de ter-t’ a ti por marido.
E tu que agora es tido
por filho d’ El-Rei Priamo,
por servo eras havido
e servo eras marido
de mim ninfa, porque t’ amo.
Bem sabes tu que folgámos
muitas vezes entr’ o gado,
cubertos com verdes ramos
e que juntos nos deitámos
por aquele verde prado.
E quantas vezes jazendo
em alta cama de feno,
em baixa casa vivendo,
nos cobrio neve e, sendo
daquisto lembrada, peno.
Dizi-me: — Quem te mostrava
os boscos pera caçar?
E em que lugar criava
seus filhos a besta brava,
que tu logo ias matar?
Quantas vezes me ja achei
por matos contigo armando,
e quantas vezes andei
com os cãis, que eu criei,
junta contigo caçando!
Nos freixos ind’ estaraa
meu nome escrito e notado,
inda se neles leraa
Enone, nome qu’ estaa
com tua fouce cortado.
D’ um alemo sou acordada
qu’ está a par d’ ũa ribeira,
em o qual está notada
ũa letra bem lembrada
de mim ja na derradeira.
E assi como vão crecendo
seus troncos grandes, erguidos,
bem assi o vão fazendo
meus nomes i-vos erguendo
em meus titolos crecidos.
— Alemo, que assentado
estás naquela ribeira,
vive, pois que teins notado
em teu tronco enverrugado
um verso desta maneira:
Quando Pares ja viver
sem Enone, que recebeo,
entam veremos correr
o rio Xanto e volver
pera a fonte onde naceo.
— Xanto, volta, volta jaa,
corree aguas por detras,
Pares vive e viveraa
sem Enone que choraraa
como tu, rio, verás.
Aquele dia coitada
me trouxe bem mao fadairo,
naquele fui eu trocada,
naquele me foi mudada
minha sorte ao contrairo!
Quando as tres deosas vierão,
Juno, Venus e Minerva,
e por juiz t’ escolherão,
grandes doĩs te prometerão
todas tres nuas na erva.
E entam tu espantado
todo te trasfiguraste,
de temor todo cercado,
tremendo mui demudado,
lembra-te que mo contaste.
Eu nam menos espantada
logo me aconselhei
e é cousa mui provada
que me foi reposta dada
com que mui pouco folguei.
Porque com faias cortadas
guarneceste gross’ armada
e as naos ja acabadas
foram depressa lançadas
na brava onda trigada.
Eu te vi certo chorar
quanto te de mim partiste
— pera qu’ ee isto negar? —
que mais te deve pesar
do amor que tu lá viste.
Choraste e viste chorando
meus olhos tristes, sentidos,
e ambos lagremejando
fomos assi sospirando
pera sempre despedidos.
Em teos braços fui tomada
e meu pescoço apertado,
qu’ a vide que está atada
e nos ulmeiros empada
nam está mais a recado.
Quantas vezes te queixavas
que os ventos te detinham
com contrairas ondas bravas,
mas os teus nam enganavas,
porqu’ o contrairo sabiam.
E tantas vezes tornaste
a me beijar naquel’ hora,
qu’ escassamente escuitaste
o que beijando estrovaste,
que foi: — Oh, i-vos embora!
E logo fost’ embarcado
e as velas todas alçadas
e com vento arrebatado
e com o remo apressado
as aguas brancas tornadas.
Os meus olhos te siguiam,
enquanto te pude ver,
as lagrimas que corriam,
a terra toda cobriam,
cousa pera se nam crer.
Com as quais triste, coitada,
aas verdes deosas do mar
rogava pola tornada,
pera vir em tu’ armada
quem me faz desesperar.
Polos rogos qu’ eu roguei
tornaste, e nam pera mim,
triste de mim que farei,
que o rogo em que andei
foi pola comboça em fim.
E estand’ ũ dia assentada
em um monte qu’ está par
donde bat’ a onda quebrada,
nũa serra bem alçada
donde se vê tod’ o mar,
Daqui eu primeiro vi
tuas velas, que chegavão,
e primeiro as conheci;
quisera-m’ ir pera ti
mas as ondas m’ estrovavão.
E estando-t’ assi aguardando,
na proa de ta nao vi,
que luze, de quando em quando,
purpura qu’ em na olhando
logo me dela temi.
Que tu nam acustumavas
aqueles trajos trazer
e quanto mais te chegavas,
tanto mais craro mostravas
que ali vinha molher.
Nam abastou isto ser,
mas aguardei um pedaço,
que nam cri até nam ver
a adultera jazer
encostada em teu regaço.
Entam chorando rompi
todas minhas vestiduras,
em meus peitos me feri,
todo meu rosto carpi
com tamanhas amarguras!
E cos gritos qu’ ali dei
toda a mata fiz tremer,
as lagrimas, que chorei,
a minha casa as levei
pera com elas viver.
Assi veja eu Helena
ja de ti desemparada,
queixar-se com tanta pena,
que a que me ela ordena
em ela a veja dobrada!
E agora dizem que vem
por mar tam bravo e crecido
a que diz que te quer bem,
e deixa lá o que tem
por legitimo marido.
E quando nam tinhas nada
e eras prove pastor,
Enone era casada
contigo e de ti amada
assi prove lavrador.
Nam que m’ espantem agora
tuas riquezas, mas amo,
nem por ser grande senhora,
nem por ser chamada nora,
ũa das d’ El-Rei Priamo,
Qu’ ele deve de folgar,
cũa tal nora com’ eu
deve-s’ Hecuba d’ honrar
de me poder nomear
por molher d’ um filho seu!
Digna são de ser molher
d’ um poderoso varão,
e desejo de o ser,
e tambem saberei ter
um ceptro na minha mão!
Nem porque me eu deitava
contigo por esse prado,
nam me desprezes, qu’ amava,
que eu mais digna m’ achava
pera um leito dourado.
E enfim o meu amor
mais seguro ha-de ser,
porque nenhum vengador
te pusera no temor
que te põe essa molher.
Que pera s’ Helena cobrar,
arma-se mui gross’ armada:
isto foste lá buscar,
este dote t’ ham-de dar
co essa nova casada.
A Heitor, qu’ ee teu irmão,
deves tu de preguntar,
ou a Deifebo, que são
os que t’ aconselharão,
se lha deves de tornar.
E Priamo e Antenor
olha o que te dirão,
que por idade maior
é seu conselho milhor
qu’ oo que t’ estoutros darão.
Qu’ ee cousa mui perigosa
tua terra aventurar,
tua causa é vergonhosa,
seu marido tem fermosa
razão pera batalhar.
E tu cuidas qu’ haas-de ter
fiel amiga em Helena,
qu’ assi sem te conhecer
se deixou logo vencer
de ti cuja mort’ ordena.
E deixou a seu marido,
o menor filho d’ Atreu,
que se queixa mui sentido,
da molher despossoido,
porque pousada te deu.
Mas, se no mundo ha verdade,
assi t’ has tu de queixar,
porque como a castidade
se quebra, logo a bondade
nam se pode mais cobrar.
Qu’ o bem que t’ agora quer
ja o quis a Menelao
e agora o faz jazer
soo na cama, porque crer
em Helena lhe foi mao.
Ó tu bem-aventurada
Andromaca, que te tem
teu marido bem casada,
porem eu triste, coitada,
diver’ oo de ser tambem.
Mas tu mais mudavel és
qu’ as folhas secas qu’ o vento
alça rijo d’ antr’ os pés
e logo noutro revés
as abaixa num momento.
És muito menos pesado
ca ũa mui seca aresta
que co sol ameudado
se seca sobr’ ũu telhado
na meetade d’ ũa sesta.
Lembra-me que tua irmãa
noutro tempo me bradava
na grande mata troiãa
e que com palavra vãa
assi me profetizava:
— Que fazes, Enone, quê?
Porque semeas na area?
Porque lavras e teis fe
em campo que certo é
que nem colherás avea?
Porqu’ ũa bezerra vem
grega que nos perderaa,
que a si e a quem na tem
e a nossa terra tambem
tudo nos destruiraa.
Ó deoses, com vossa mão
alagai aquela nao,
fazei que não venha não,
oh quanto sangue troião
que traz nela aquele mao!
Isto dito com furor,
suas damas a tomarão,
foi tam grande minha dor
qu’ os cabelos co temor
todos se m’ arrepiarão.
Ó profeta, nesta serra
quam verdadeira t’ achei,
vede la grega bezerra,
em meus pacigos e terra
dentro neles a topei.
Qu’ ee adultera provada,
inda que fermosa seja,
de seu hospede roubada
sacrifica e põi obrada
aos deoses que deseja.
Ja outra vez a roubou
de sua terra Teseu,
certo Teseu a levou,
s’ o nome nam m’ enganou,
co geito que lh’ ela deu.
D’ um tal mancebo crerei
qu’ assi virgem a tornou?
Par deos, nam no jurarei,
se preguntas como o sei,
amar-te mo revelou.
Se com nome de forçada
a tu queres desculpar,
é desculpa mal cuidada:
tantas vezes foi roubada,
ela se deixa roubar.
E Enone sem sentido
ficará viuva enfim
do enganoso marido.
Ó Pares, qu’ escarnecido
bem puderas ser de mim!
Porque um dia eu estava
nestas matas escondida
e gram companha passava
de satiros, que me buscava,
por toda a montanha d’ Ida.
E Fauno, que vinha armado
cum mui agudo pinheiro,
na cabeça coroado
com grandes cornos, alçado
entr’ os outros o primeiro.
Eu lhe respondi porem:
— O gram cercador de Troia
fielmente me quis bem
e dias ha ja que tem
de mim a mais rica joia.
E luitando o arrepelei,
porque m’ assi perseguia,
suas faces arranhei,
porem nunca o apartei
do desejo que trazia.
Nem por preço do pecado
nam pedi pedras nem ouro,
porque mal-aventurado
é o corpo qu’ ee mercado
nem vendido por tesouro.
Mas ele por me pagar
o qu’ assi de mim tomou,
prouve-lhe de me mostrar
as artes pera curar,
qu’ ele primeiro enventou.
E todalas ervas sabidas,
as que podem aproveitar,
em todo mundo nacidas,
ness’ hora me são trazidas
sem nenhũa me prestar.
Ai mezquinha, qu’ o amor
com as ervas nam se cura,
porqu’ a mim, qu’ era a maior
naquest’ arte, a esta dor
que farei, qu’ ainda me dura?
E Apolo, qu’ est’ arte achou,
nam dizem que foi queimado
do mesmo fogo qu’ eu sou,
e que as vacas guardou
d’ El-Rei Admetes no prado?
Bem sei que deos nem a terra
com quantas ervas criar
nam podem matála guerra,
que minha vida desterra,
e tu pode-la matar!
Fim.
Tu podes e eu mereço
que hajas de mim paixão,
porque eu nam te empeço
com gregas armas, nem peço
do que te dei gualardam.
Mas, pois por tua me dou
e contigo até qui
minha vida se gastou,
te peço qu’ enquanto sou
viva te lembres de mi!
567
DE
FERNAM DA SILVEIRA QUE DAA
BORCADO PERA ŨU
JIBAM A QUEM
FEZER MILHOR TROVA DE LOU‑
VOR À SENHORA DONA FELIPA
DE VILHANA E HA-DE SER
JULGADO PER ELA.
Fernam da Silveira.
Trove quem souber trovar,
diga quem souber dizer,
louve quem souber louvar,
a dama mais singular
que nunca se vio nacer.
A qual bem sabeis, senhores,
s’ a feiçam vos nam engana
esta é a de Vilhana
Dona Felipa, que dana
minha vida por amores.
Outra sua.
E a quem na per milhor cobra
louvar, dou pera jubam
borcado pera tal obra,
quem tanto serviço dobra
mereça mor gualardam.
Mas soo em sinal de grado
o borcado vestiraa,
com que bem pareceraa
ou mal, se for desairado.
Diogo de Miranda.
Quem convosco se presume
igualar, erra, segundo
estaa craro que sois cume
e o lume
de todalas deste mundo.
Nem vos pode ninguem ver
que lhe lembre mais senhora
que ja foi nem pode ser,
nem destas que sam agora
a fora!
Joham Fogaça.
Quem haa-d’ ousar de gabar
fermosura tam sobida,
pois nam ha naquesta vida
vosso par?
Tirando ũa que sigo
e porque m’ hei-de perder,
ainda que o nam digo
nem espero de dizer.
Pero de Sousa Ribeiro.
Nam quero tirar ninguem,
quero-vos tudo leixar,
que bem sei que podeis dar
e ficar
com mais do que todas tem.
Ũa mercê me fareis,
se me virdes namorado,
senhora: que m’ empareis,
pois falo desenganado
sem querer nenhum borcado!
Anrique de Figueiredo.
Nam estou tam de vagar
que me possa parecer
que cousa possa falar,
per que meas e colar
bem podesse merecer.
Os louvores desta dama
a Nosso Senhor se dem,
que, segundo sua fama,
pera lhe louvar a rama
eu nam sei no mundo quem.
Dom Diogo d’ Almeida.
Sei que fareis mui gram dano,
sereis muito de temer,
se verdade é que nest’ ano,
que vos eu leixei de ver,
crecestes em parecer.
Eu agora nam vos vejo,
mas vós ereis tal entam,
que palhas é quantas sam,
polo qual ver-vos desejo.
Joham Gomez da Ilha.
Tal é vosso parecer,
vossa fermosura tanta,
siso, bondade, saber,
que se nam pode dizer
quanto nem quanta.
Assi perfeita vos fez
Quem por nós morreo na cruz,
que de todas fareis pez
e trevas e de vós luz.
Dom Diogo Lobo.
Sois tam fermosa, tam linda,
que vos nam ouso dar gabo,
porque na cousa infinda
nam pod’ homem ir oo cabo.
Mas porque nam com rezam
meu irmão culpa me dê,
nam lhe digo al senam
que darei outro jubam
a quem vos achar um sê.
Dom Alvaro d’ Ataide.
Se houverdes piadade
de quem vos servir e amar,
d’ outras manhas e beldade
em vós nam ha que pintar.
Fez-vos Deos tam graciosa
e airosa,
tendes tam gentil muela,
qu’ a par dela,
nenhũa outra donzela
se pode chamar fermosa.
Dom Pedro da Silva.
Todas vos vejo passar
quantas sam, senhora prima,
e quero que o saibais
afora Dona Guiomar
com que coterar nam rima
fremosuras terreais.
E esta posta à de parte
que me dá muita tristura,
tendes vós tal fermosura
qu’ às outras podeis dar parte
e ficar a vós que farte!
Jorge d’ Aguiar.
Começar de vos louvar
é cousa que nam tem cabo,
querer-vos tambem gabar
é mais que pedras lançar,
pois gabar-vos é desgabo.
Mas pois ninguem se engana,
calem, calem, servidores,
bradem: — Anriquez Vilhana!
pois com tal nome se guana
vencidos ser vencedores.
Dom Rodrigo de Crasto.
Que posso por vós dizer
que ninguem haja por gabo?
Pois tendes tal parecer
que sois o cabo
das que sam e ham-de ser.
Polo qual quem vos olhar
dirá que logo emproviso,
deça Deos do Paraiso
e vos dê o Seu lugar.
Dom Rodrigo de Monsanto.
Pera tal grado levar
nam cuido que é saber
de saber ninguem louvar
ũa dama tam sem par
como vos Deos quis fazer.
Ca inda que fermosura,
manhas i galantaria
nam s’ achasse,
deveis estar bem segura
que o mundo se refaria
da que de vós sobejasse.
Dom Martinho de Castel Branco.
Nam é cousa dovidosa,
mas de todos conhecida,
esta ser a mais fermosa,
mais gentil, mais graciosa,
desta vida.
Muito manhosa sem par
nam se sabe tal molher,
salvo Dona Guiomar,
qu’ esta me pode matar
e dar vida, se quiser.
Dom Goterre.
Eu, que diga quanto sei,
nam chegarei aa metade
e mais diz-m’ a minha lei
que se tocar na Trindade
pecarei.
Mas bem sabe todo mundo
qu’ antre as de mais estima,
senhora, sois vós a prima
que deveis estar acima
e as outras todas de fundo.
Dom Joam de Meneses.
Pois é cousa tam sabida
parecer e descriçam
saber ter em vós guarida
ante doo de cuja vida
s’ ofreça por voss’ afã.
Nam vos pese, se me fundo
em ter e crer que sois vós
dos dous deoses o segundo,
sois o cabo das do mundo,
sobre ser maa pera nós.
Fim de Fernam da Silveira.
Como engeitam os senhores
saios que lhe vêm mal feitos,
assi estes trovadores
engeitai-lhe seus louvores
que vos nam fazem destreitos.
Leixem Quem teve poder
de vos dar tal perfeiçam
louvar vosso merecer,
qu’ Ele o poode fazer,
mas outrem nam.
568
DE
NUNO PEREIRA A ŨA
DAMA QUE SERVIA.
Nam quisera ser nacido
se vos eu nam conhecera
pola parte que perdera
em nam ser por vós perdido.
Nam vos ter eu conhecida,
pera vos ver nem servir,
mui mais fora de sentir
que por vós perder a vida.
Perder-me e ver-me perdido,
e meu mal todo sofrera,
mas se vos nam conhecera
nam quisera ser nacido.
Francisco da Silveira.
Descanso é por vós cansar
e sofrer penas, prazer,
nem hei dor de recear,
pois vos hei-de soportar
quanto quiserdes fazer.
Nam quisera ser nacido
se por vós nam padecera,
porque nisto mais perdera
qu’ em me ver por vós perdido.
Jorge da Silveira.
Sem servir-vos nam é vida,
nem viver sem conhecer-vos,
nem pode ser mais perdida
a vida que ser sem ver-vos.
Se nam fora conhecido
de vós nem vos conhecera,
nunca viva, se quisera,
sem ser vosso ser nacido.
Dom Diogo d’ Almeida.
Diga mal sua ventura
quem neste mundo naceo,
se naceo e se morreo
sem ver vossa fremosura.
Eu ponho por mais sobido
meu mal, se s’ acontecera
que vos eu nam conhecera
ca ter o mundo perdido.
Dom Martinho.
Oh que gram pena sentira
nam nacerdes antre nós
e ouvir novas de vós
a outr’ homem que vos vira!
Houvera-me por perdido,
se se tal acontecera,
ca se nam vos conhecera
pera qu’ era ser nacido?
Dom Duarte de Meneses.
Que groria é padecer
e morrer por vós, senhora,
e que gram mofina fora
nam vos ver nem conhecer!
Nam quisera ser nacido,
nem nenhũ bem nam quisera,
se vos eu nam conhecera
para ser por vós perdido.
Pedr’ Homem.
Ja me quiseram comer,
porqu’ esta perfia tive:
se pode dizer que vive
o que nam vos pode ver.
E pois isto era sabido,
que mao jogo Deos fizera
a quem nacera e morrera,
nam sendo por vós perdido.
Dom Joam Manuel.
Dama de tal parecer,
quem cuida viver sem vê-la
por isso deve morrer,
e eu quero antes ter
a morte que merecê-la.
Polo qual se sam perdido,
conforto-me que devera
morrer, se viver quisera,
sem vos ver e ter servido.
Pero d’ Alcaçova.
Quant’ eu goosto de vos ver,
a face vo-lo diraa
e no talho se veraa
o que engordo com prazer.
Nem assado, nem cozido,
nem manjar que me fizera
ser mais ancho que comprido,
se vos eu nam conhecera.
Dom Joam Pereira.
Os vivos, que vos conhecem,
é bem que disso se gabem,
os mortos, se de vós sabem,
seraa pena que padecem.
E que se chame perdido
quem de ver-vos desespera,
e s’ eu tanto bem perdera
nam quisera ser nacido.
Joham Moniz.
Se de mim nam sões servida,
eu nam quisera ser vivo,
ca por vós me praz a vida,
por viver vosso cativo.
Se quisera ser nacido
sem vos conhecer, devera
matar-me, se nam morrera
por nunca vos ter servido.
Garcia Afonso de Melo.
Aquesta dama fremosa,
causa de meu padecer,
oh quem podesse fazer
que me fosse piadosa
e sentisse meu sentido
da gram pena que sofrera,
se m’ eu por seu conhecera
sem dela ser conhecido!
Lopo Soarez.
Ver-vos me é ja poder
com tantas infindas dores,
qu’ era possivel sofrer
de morrer por vós d’ amores.
Que seja por vós perdido,
por mais perdido m’ houvera,
se nunca vos conhecera
nem tevera conhecido.
Joam de Saldanha e fim.
Nam se pode chamar vida
a de quem nunca vos vio,
pois nunca vio nem sentio
fermosura tam sobida.
Perdido mais que perdido
fora quem vos conhecera,
se vivera e morrera
sem nunca vos ter servido.
569
DO
CONDE DE BORBA À
SENHORA DONA LIA-
NOR ANRIQUEZ.
Eu cuidei em vos louvar
e achei-me tam perdido
que perdi todo sentido
em querer nisso falar.
Qu’ em gabar desgabaria
vosso grande parecer,
pois dizendo ficaria,
amor, parte por dizer.
Nam pode ninguem tomar
ũu cuidado tam crecido
que nom saia do sentido,
se nisso quiser cuidar.
Ajuda de Jorge d’ Aguiar.
Pois triste, quando queria
a mim mesmo afegurar-vos,
me falece a fantesia,
digo que milhor seria
nam gabar-vos mas mostrar-vos.
E veraa quem duvidar
que sam com rezam perdido,
pois vos nam pode gabar
sem mostrar nenhũ nacido.
Joam Fogaça.
Creo e tenho por fee
que por tam gram parecer,
quanto se pode dizer
e escrever,
é nada pera o que é.
Quem em vós quiser falar
haa-d’ estar aprecebido
qu’ ha-de ser por vós perdido
sem ousar,
senhora, de vos gabar.
Duarte da Gama.
Nam ha siso nem saber,
descriçam nem ousadia,
que me possa dar poder
de poder por vós dizer
quanto se dizer devia.
Mas digo sem duvidar,
como quem no tem sabido,
que quem for por vós perdido
ante Deos s’ haa-de salvar.
Manuel de Gooios.
Nam consente natureza
que possaes louvada ser,
porque, pera se fazer,
compria tanto saber
como tendes gentileza.
O que fica por falar
do que nos tem parecido
co que temos padecido
vo-lo podemos pagar.
Dom Joham de Meneses.
Se neste louvor entrasse
seria pera tachar
a quem tanto s’ enganasse,
que cuidasse
que vos podia louvar.
Pera servir e adorar
fui eu nacido,
e vós soo para passar
o que nam pod’ alcançar
nenhũ humano sentido.
Diogo Brandam.
Pois tendes na vida nossa
mais poder que ninguem teve,
o que louvar-vos s’ atreve,
que diga mais do que possa,
diraa menos do que deve.
E pois vos hei-d’ anojar
pesa-me de ser nacido,
mas folgo por m’ acertar
em tempo que meu sentido
vos podesse contemprar.
Duarte de Leemos.
Nam s’ engane jaa ninguem,
nem devem tempo gastar,
dexem louvar-vos a Quem
mostrou bem
que vos fez por se louvar.
Mas o que tenho sabido,
isto sem mais duvidar,
é que nam pod’ escapar
de perdido,
senhora, quem vos oulhar.
Anrique Correa.
Sam tam altas d’ entender
as duçuras qu’ em vós jazem,
que se nom podem dizer
em quantas trovas se fazem.
Erro seria gabar
parecer qu’ ee tam sabido,
que se nam pode alcançar
co sentido.
O Conde do Vimioso.
Como se pode fazer
louvar primor tam sobido,
pois que vosso merecer
nam é nacido saber
de que seja entendido.
Eu digo, sem vos louvar,
de que tenho conhecido
qu’ o mundo por se salvar
deve ser por vós perdido.
Dom Manuel de Meneses.
Mostrou Deos este poder
por nos dar dobrada fee,
e em vos assi fazer
nos deu bem a entender
seu poder camanho ee.
E pois se quis esmerar
em vós com todo sentido,
nam deve nenhũ nacido
presumir de vos louvar.
Pero de Sousa Ribeiro.
Senhora, acho-vos louvada,
em chegando de caminho,
e por serdes avisada
vossa mercê é a talhada
d’ ũu servidor qu’ adevinho.
O que s’ houver por provido,
guarde-se de vos louvar,
ca louvor nam s’ haa-de dar
em lugar tam merecido
e sabido.
Dom Afonso de Noronha.
Nam sei como ninguem ousa
cometer tam grande errada,
que cuida dizer-vos cousa
de que vós fiqueis gabada.
Mas diga quem vos oulhar
pera que quis ser nacido,
se s’ espera de salvar
de nam ser por vós perdido.
Garcia de Resende.
Se vir eestes trovadores
algũ bom louvor vos dar,
logo poderá tomar
fantesia de contar
algũ de vossos primores.
Mas vi tam mal acertar
o que era mais sabido,
que nam quis nunca cuidar
em louvar-vos, mas louvar
quem por vós se vê perdido.
Fim.
Do Conde de Borba.
Nos louvores que vos deram
eu me dou por bem culpado,
pois em tudo o que disseram
nam poderam
dar-vos louvor começado,
quanto mais ser acabado.
Acabei sem acabar
de ser perdido,
mas nam jaa de vos louvar,
antes soo em começar
perdi todo meu sentido.
570
DA
SENHORA DONA FELIPA
D’ ALMADA
O que recobrar nom posso
mundo d’ oordem desigual,
faz que nam desejo vosso
bem nem quero vosso mal.
Mais me praz que assi viva
no limbo destes favores
que vossos tristes amores
me darem vida cativa.
Pesa-me que o mal vosso
ja cuidei de nam ser mal,
praz-me porque sei e posso
crer agora de vós al.
Ajuda do Coudel-moor.
Visto quanto aventuro
polo pouco bem qu’ espero,
vosso mal sentir nom quero
nem de vosso bem nom curo.
Leixo-vos enquanto posso,
pois vos conheço por tal,
que nam é bem o bem vosso,
nem é mal o vosso mal.
Rui de Sousa.
Nom hei por cousa segura
nenhũu vosso bem que veja
e sei bem que nunca dura
vosso mal que muito seja.
Conhecer est’ erro vosso
é ser cousa mui geeral:
nam ser bem nenhũ bem vosso
nem ser mal o vosso mal.
Rui Gonçalvez Reixa.
Desamo vossos favores,
nom quero vossas lianças,
pois usais de tais mudanças
vós e vossos fazedores.
Amigo fazer nam posso
de vós bom nem cumunal,
pois desespero de vosso bem,
nam quero vosso mal.
Fernam Peixoto.
Conhecendo bem agora
de vós mais que conhecia,
do mal vosso, que sentia,
me lanço de todo fora.
E do bem que fica vosso,
por ser cousa em jeral,
eu o leixo, se bem posso,
pois que tudo pouco val.
Rui Gonçalvez e fim.
Por sentir vosso sobir
e ver vosso grande censo,
teme o bem o mal inmenso
que de vós se foi seguir.
E do bem e favor vosso,
pois vejo que pouco val,
eu m’ arredo quanto posso,
pois vos conheço por tal.
571
DO CONDE DO VIMIOSO A
TRES DAMAS QUE SE FORAM
ŨA NOITE DO SERAM.
Rifam do Conde.
É rezam que vos lembreis,
pois ver-vos nam nos deixais,
senhoras, que perdereis
as vidas que nos tirais.
Sua.
E nam que possa ja ser
que d’ outrem sejam vencidas
mas porque por vos nam ver
as havemos por perdidas.
Seraa bem que vos lembreis
do que nisso aventurais,
que nós nam perdemos mais
que quanto nisso perdeis.
Outra sua.
Que posso dizer de mi
que chegue ao que sento,
pois por ver-vos me perdi
e depois que vos nam vi,
vi dobrado perdimento?
Que com isso vós folgueis,
pois sois a que o causais,
lembre-vos que perdereis
a vida que me tirais.
De Jorge Barreto.
As vidas seram perdidas,
nós seremos os guanhados,
pois que sendo vós servidas
nos livramos dos cuidados.
E se como pareceis,
pareceis e vos mostrais,
ainda nos tornareis
as vidas que nos tirais.
Do Craveiro.
Eu mais que outrem ninguem,
porque nam desesperasse,
queria que vos lembrasse
que sem ver-vos nam ha bem.
É rezam que vos lembreis
e tambem que conheceis
qu’ as vidas nos tirareis,
s’ este caminho levais.
De Manuel de Goios, fim.
Esta vida sendo nossa
nam perdemos em perdê-la,
mas perdemos tudo nela
por perdermos cousa vossa.
Oo, nam nos desempareis,
oo senhoras, nam percais
todo bem que nos fazeis
pois que vendo nos matais!
572
DO
CONDE DO VIMIOSO A
ŨA SENHORA
QUE EM Ũ
SERAM PÔS OS OLHOS
NŨ HOMEM.
Olhe bem no seu olhar
quem quiser seguir rezam,
qu’ ee sinal do coraçam.
Nas cousas que daa vontade
ela soo tem o poder,
o engano é verdade,
a rezam é o querer.
Tudo vem a parecer
honesto co a paixam
senam o que é razam.
Sua.
Todo ver dos olhos vem,
o olhar é com respeito,
mil cousas parecem bem
por querer, mas nam por jeito.
E em concrusam do feito
lá vam olhos e rezam
onde vai o coraçam.
Sua.
Olhos haa pera culpar
de cousas que nam tem cura,
outros que com fermosura
naceram pera matar.
Guai, de quem haa-de passar
ambas estas no serão,
se nũs soos olhos estão!
Sua.
Se alguem for agravado
dos seus olhos como sam,
assi seja descansado
qu’ acuda a este rifam.
Aires Telez.
Nam tenho outro moor contrairo
nem outro maior amigo,
cos olhos ando em desvairo
e eles nunca comigo.
Que se me vem desejar
de ver alguem no serão
servem logo aa tenção.
Sua.
Mas ũa cousa que folgo
e me compre de calar
nam posso dessimular
qu’ os olhos m’ acusam logo.
E entam vam-s’ ajuntar
com muito grand’ afeição
e sogigam na rezão.
Sua.
Mas façam no que quiserem,
de tudo lhe dou perdam
por enganos que me dam,
quando ja mos dar nom querem.
Pois quem haa-de desejar,
nam tem d’ outra salvaçam
senam olhos d’ afeiçam.
Luis da Silveira.
Nos olhos ha mil mofinas
por onde rezam nom val,
ja s’ o mal é das mininas
nam tomam nem dam sinal.
Mas s’ algũa embicar
em olhar mal no serão
eu l’ ofereço ũ bordam.
Simão da Silveira.
A gentil dama benquista
pera tudo bem fazer
haa-se de perder de vista
e porem guanhar no ver.
E a qu’ isto nam souber
e seguir openião
traga-a alguem pola mão.
Simão de Sousa.
A rezam é ja perdida,
se s’ o falar nam perdesse,
ind’ eu sei quem s’ atrevesse
achar mais males na vida.
Mas o milhor é calar
e provála concrusam
co fruto qu’ os olhos dam.
Vasco de Foes.
Quem for da minha idade
mal vos pode responder,
que pera saber e poder
ja nam tem senam vontade.
Quando al quero cuidar
ou me parece rezam
nam me deixa mais paixam.
Dom Alvaro d’ Abranches.
Que meus olhos dêm cuidado,
tenho-lh’ o medo perdido,
porqu’ o mais fort’ ee passado
e sofrido.
Mas eu daqui me despedi,
pera nunca com rezam
afirmar minha tençam.
Garcia de Resende.
O primeiro movimento
é dos olhos, quando vem,
e se daa consentimento
o coraçam é jaa bem.
Isto é por mal de quem
ha-de sofrer a paixam
com rezam ou sem rezam.
Sua.
Tenho rezam sem na ter,
tenho vida sem ter vida,
tenho a paga recebida
de meu mal soo polo ver.
Ooh que ditoso perder,
que grande satisfaçam
é perda com tal rezam!
Sua.
Quem bem vir a deferença
verá que digo bem nisto:
que devo fazer pendença
do que dantes tinha visto.
Pois vós fostes causa disto,
meus olhos, meu coraçam,
sofrei, que tendes rezam.
Dom Gonçalo.
Se taqui olhei alguem,
nam cuide ninguem qu’ olhava
senam soo quem me matava.
Quem haa muito que me tem,
quem é meu mal e meu bem,
meus olhos, meu coraçam,
cedo o descobriram.
Manuel de Goios.
Nos seus olhos, nos alheos,
olhe cada ũ por si,
neles vejo eu em mi
o de qu’ eles andam cheos.
E pois meus olhos sam meos
do fim de meu coraçam,
os outros tambem no sam.
Joam Rodriguez de Saa.
Ainda que s’ isto faça
pera m’ a mim soo matar,
quem nam ha-de perdoar
olhos de garça?
Estes nam s’ acham na praça,
mas vê-los-ês no serão,
nunca postos em foam.
Alvaro Fernandez d’ Almeida.
A rezam é menos parte
para s’ homem ajudar dela,
cada ũu pola su’ arte,
todos se perdem por ela.
E pois o qu’ eu tiro dela
sam males sem concrusam,
tire-me Deos a tençam.
Diogo de Melo.
Toda dor que traz cuidado,
quem na bem sabe sentir
mal a pode encobrir,
se dela é jaa tomado.
Nam deve de ser culpado
nenhũ mal do coraçam,
se lho fazem sem rezam.
Sua.
Este soo descanso tem
minha vida sem ter al,
sente tanto o qu’ outrem tem
quanto eu sinto o meu mal.
Nesta vida hei-d’ acabar,
pois tomei a condiçam
de quem faz a sem rezam.
O Estribeiro-moor.
Meus olhos me dam tal vida,
quando meu mal faz mudança,
qu’ a razam nam daa saida
onde falece esperança.
Mas ja queria acabar
e padecer a rezam
a pena do coraçam.
Sua.
Vivi na fee do engano,
o coraçam consentio,
dos olhos me veio o dano,
a rezam me descobrio.
Nam quero meu mal cuidar,
porque sinto tal paixam
qu’ hei gram med’ oo coraçam.
Joam d’ Abreu.
Qu’ eu nam seja pera ver,
tenho olhos com que vejo
que nam pode ver prazer
quem quer grande bem sobejo.
Isto soube conhecer
cos olhos do coraçam
senhora, qu’ est’ ee foão.
Dom Joam de Meneses.
Ũs olhos andam aqui,
que, olhando oo desdem,
nunca passam por ninguem
que nam levem após si.
E alguem cuida que ri,
que traz ja no coraçam
o nome de cujos sam.
Sua.
Sem fazer bem nem mercê,
olha sempre com tal jeito,
que a torto ou a direito
tudo leva quanto vê.
Nam ha nela nenhũ sê
e por maior perfeiçam
ri-se muito da rezam.
Gonçalo da Silva.
Fim.
Meus olhos sam agravados
da vida que têm tomada
e nam podem ser curados
senam com agua rosada,
que nam lh’ aproveita nada,
porque sam de tal feiçam
que me dá muita paixam.
573
DO CRAVEIRO DOM DIOGO DE
MENESES AA SENHORA DONA
FELIPA D’ ABREU.
Rifam.
Saiba-se que digo eu
cada dia e cada hora
que nam sam meu,
mas sam todo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Que s’ eu tivera poder
em mim e em minha vida,
nam na tivera perdida
nem me podera perder.
Mas pois triste nam sam meu
nem no serei nenhũ hora,
saiba-se que digo eu
que sam todo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
O Conde de Tarouca.
Sam por ela tam perdido
e por seu gram merecer,
que, a meu ver,
da chaga que sam ferido
jaa nom posso guarecer.
E por isso digo eu
duas mil vezes cad’ hora
que sam sandeu
d’ amores pola senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Jorge da Silveira.
Em todos tendes poder,
todos matais, gentil dama,
os de lonje com a fama,
os daqui co parecer.
Pois isto que Deos vos deu
nos podeis tirar nũ hora,
é sandeu
quem vos nam serve, senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Sancho de Tovar.
Dama de tam grand’ estima
e de tal merecimento
nam na sento
senam soo aquela prima,
que me daa grande tormento.
E porem confesso eu
pera sempre, desd’ agora,
que nam sam seu,
mas da prima da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Dom Francisco d’ Almeida.
Eu vivo tam enleado
com tam mortais desfavores,
que ando maravilhado,
e pasmado,
porque me mato d’ amores.
E pois que ja nam sam meu,
e isto nam é d’ agora,
saiba-se que nam sam seu,
porque sam doutra senhora
que se nam chama d’ Abreu.
Do Craveiro.
Dino de mui grande culpa
deve ser e reprendido
quem se nam vei destroido
e por vós nam é perdido;
eu lhe vejo maa desculpa.
Bem culpado seri’ eu
cada dia e cada hora,
se nam fosse tam sandeu
como sam por vós, senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Joam Anriquez.
Sam ja de todo vencido,
forçado de seu poder
e parecer,
vejo-me, sendo perdido,
ganhado por bem querer.
Vejo-me cativo seu,
acupado toda hora
a dizer que nam sam meu,
senam todo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Dom Felipe.
Pois que al fazer nam posso,
vendo vossa fermosura,
é forçado
apregoar-me por vosso,
pois me deu minha ventura
tal cuidado.
Cuidado nam trazi’ eu
em me namorar agora,
mas mal viv’ eu
se me nam dou aa senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Alvaro Piriz de Tavora.
Quem se decrarou por vosso,
acho eu que se tirou
de muitos danos,
porque eu triste nam posso
chamando-me de cujo sou
haa mil anos.
E assi que nam sam meu,
nem o quero ser ũ hora,
e isto confesso eu
à minha prima e senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Simão de Sousa.
É de tantas perfeiçõoes
que todos os que a vemos
lhe devemos
de dar nossos coraçõoes.
Será primeiro o meu,
que ja nunca tem ũ hora
de descanso polo seu
daquesta nossa senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
De Pero Correa ao Craveiro.
Soes galante singular
e dino de muita fama,
pois em tam fermosa dama
vos soubestes empregar.
Oxala vós fosse eu,
nam digais que vo-lo disse,
que tambem seria seu
se mo ela consentisse.
Outra sua.
Tomastes gentil querela,
se de vós for bem seguida,
milhor é morrer por ela
que por outra dobrar vida.
E dizei, que digo eu,
que naceo muito em bo’ hora
quem perdeo o siso seu
com amores da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Vasco Gomez d’ Abreu.
Fermosura tam sobeja
lhe deu Deos qu’ antre nós
que nam sei quem na bem veja
que nam diga como vós.
Certo é que será seu
servidor desta senhora
quem nam for da que sam eu,
e esta tirando-a fora
todas leva à d’ Abreu.
Pero de Mendoça.
Ũa prima qu’ ela tem
me tirai fora a ũ cabo,
entonces nom dirês gabo
que lhe nam venha mui bem.
E por isso digo eu
que a vio muito em fort’ hora
ũ irmão, que tenho eu,
o parecer da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Francisco de Mendoça.
Do que dizeis nom m’ espanto,
mas como fica ninguem
que nam diga outro tanto
que lhe nam queira mor bem?
E por mim o julgo eu,
que nam fica nenhũ hora
de ser perdido polo seu,
pois brademos desd’ agora
todos juntos por Abreu.
Garcia de Resende.
Quem nam for muito vencido
de seu gentil parecer,
por perdido
se conte e nam por nacido,
pois o al nam é viver.
Que por este m’ houver’ eu
se, como a vi mais ũ hora,
fora meu
e nam logo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Diogo da Silveira.
É de muitas estremada
e de muita perfeiçam
a senhora nomeada
no rifam.
Mas eu triste nam sam seu,
porque sam doutra senhora,
por quem meu coraçam chora
cada hora,
que se nam chama d’ Abreu.
Dom Garcia de Noronha.
Se nam fora conhecer
a senhora sua prima,
pusera a senhora acima
das damas que podem ser
nacidas e por nacer.
Pois a vi e polo seu
me perdi junto nũ hora,
nam me tenhais por sandeu
em nam ser desta senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Francisco de Sousa ao Craveiro.
Que vos mate seu cuidado,
porque viva vossa fama,
antes dela desamado,
pois soes tam bem empregado
caa vindo com outra dama.
Este conselho é o meu,
nam digo mais por agora,
que sam seu
polo vosso da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Outra sua.
Antes me quero calar,
contento-me d’ entender
que sem devino poder
nam se poderaa dizer
quanto fica por falar.
E por isso fico eu
bradando cada me’ hora,
sem ser meu,
e isto saiba a senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Dom Rodrigo de Sousa.
Quem bem tiver na memoria
toda sua gentileza,
é cousa muito notoria
haver por grande vitoria
sofrer por ela tristeza.
Polo qual m’ afirmo eu
que qualquer que se namora
é sandeu,
se nam serve a senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
O Barão.
Se ja nam fora tomado
d’ amor mortal que me tem,
segundo pareceis bem,
cos vossos fora contado.
Mas é tamanho o mal meu,
ũ ano e meio ha agora,
que sam sandeu
por ũa minha senhora,
que nunca me quis por seu.
Diogo Brandam.
Esta tem mais perfeiçam
de quantas no mundo sento,
polo qual, que de paixam
é sofrida com rezam
por seu gram merecimento.
E por isso nam sam eu
pera sempre desd’ agora
nada meu,
por ser todo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Outra sua.
Nesta vida dama tal
creio que nam vio ninguem,
polo qual,
ainda que faça mal,
lhe devem de querer bem.
Pois d’ aqui m’ afirmo eu
que tenha mal cada hora
nam ser meu,
por ser todo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
De Francisco d’ Almada.
Quem quiser levar caminho
de a louvar na verdade,
é saudade,
pois é certo qu’ Agostinho
s’ embaraçou na Trindade.
E pois nisto fui sandeu,
lanço o tal cuidado fora
e confesso que sam seu,
da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Francisco da Silveira.
Acolhamo-nos oo siso,
sejamos cujos devemos,
nam erremos,
pois o al é todo riso,
nam se leixe o paraiso,
d’ hoje avante acertemos.
Nom quero mais ser sandeu
e leixo ja desd’ agora
de ser meu,
por ser todo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
De Joam Fogaça.
Por ela m’ hei-de perder,
porque é todo meu bem,
e hei-de morrer,
por ela hei-de fazer
o que nam fará ninguem.
E por ela digo eu,
pera sempre e desd’ agora,
que nam sam meu,
mas sam certo da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Joam da Silveira.
Ũa lei se fez e disse
de que todos têm querela,
que quem esta dama visse,
em tam gram pena caisse
que se perdesse par eela.
Pola ver me vejo eu
perdido cada me’ hora
sem ser meu,
atee mercê da senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
Fim do Craveiro.
Esta lei foi assinada,
senhoras, com condiçam
qu’ esta seja apregoada,
pois é ja sentenciada
por dama mais envejada
de quantas no mundo sam.
O pregoeiro sam eu
que nam quer leixar ũ hora,
sendo seu,
de me matar a senhora
Dona Felipa d’ Abreu.
574
DE
DOM DIOGO, FILHO DO
MARQUÊS, AA
SENHORA DONA
BRIATIZ DE VILHANA, A
QUE ELE CHAMAVA
A PERIGOSA.
Rifam.
Nam s’ espera outro remedio
de quem vir a Perigosa
senam vida dovidosa.
Aquisto milhor me vem,
que mal que nam faz mudança
nam ter nenhũa esperança,
este soo descanso tem.
Nam espere outro bem
quem ja vio a Perigosa
senam vida dovidosa.
Outra sua.
Nam quero que possa ser
pera mim vida segura,
tomo por milhor ventura
quanto nesta se perder.
E pois al nam sei querer,
nam é cousa dovidosa
querê-la mais perigosa.
Da senhora Dona Joana de Mendoça.
Por acudir ao rifam
nam sei cousa que nam faça,
até confessar na praça
tudo o que nele vos dam.
E parece-me rezam
que, pois sois tam perigosa,
nam sejais despiadosa.
De Jorge Barreto.
O perigo bem olhado
co vosso folgara bem,
mas achei-me ja tomado
d’ um cuidado
que ja tenho, que me tem.
Deste, senhora, me vem
nam ter vida dovidosa,
mas antes mui perigosa.
De Dom Antonio.
Digo-vos minha tençam
como quem al nam deseja,
porqu’ hei muito grande enveja
aa pena de meu irmão.
E pois tem tanta rezam,
a vida mais trabalhosa
ser-lh’ -aa menos perigosa.
Do Conde d’ Alcoutim.
Pois o vosso mal tomamos
por descanso per’ anos,
remedio dai-no-lo vós,
que o bem nós vo-lo damos.
Senti-o, pois o leixamos
em vida despiadosa,
tam crua e tam dovidosa.
Do Conde de Portalegre.
Este remedio tomado,
se fosse posto em balança,
sobre mui fraca esperança
segura grande cuidado.
Mas é bem-aventurado
quem com vida trabalhosa
escolhe a mais perigosa.
Do Conde de Vila Nova.
De seus remedios nam sei,
sei muito de seu perigo,
que caa se veo comigo
onde me dele apartei.
E quando mais m’ alonguei,
entam vi mais dovidosa
minha esperança enganosa.
Do Baram.
Vosso mal é tam sem cura
que nam deveis d’ esperar
de terdes vida segura.
A que vos der a ventura
essa deveis de tomar.
Devês-vos de contentar
de dama tam perigosa
ter a vida dovidosa.
De Dom Joam de Larcam.
Tornar-se de morte à vida
terá certo quem a vir,
e quanto mais a servir
terá pena mais crecida.
Esta condiçam sabida
tem quem vir a Perigosa,
vida e morte dovidosa.
De Dom Afonso d’ Ataide.
Se fosse em nossa eleiçam
do mal tomar menos mal,
quem quereria fazer al,
vendo tam crara rezam?
Mas olhos e coraçam
nesta vida dovidosa
escolhem a mais perigosa.
Do Contador-mor.
Estes perigos vos dam
terdes tam justa querela,
que quem vos julgar por ela
confessará vossa rezam.
E com esta condiçam,
tende vida trabalhosa
pois que vem da Perigosa.
De Dom Pedro d’ Almeida.
Pera aqui poder viver,
onde se vida nam daa,
o mor perigo que haa
fica ja em ser prazer.
Pera aqui haver de ter
vida menos dovidosa,
seria mais perigosa.
Outra sua.
Nenhũ remedio nam vejo,
que nesta vida, que sigo,
quanto mais certo perigo
mereçe mais o desejo.
Qu’ esperança e mal sobejo
afora ser dovidosa
é muito mais perigosa.
De Dom Luis de Meneses.
Oo que vida tem quem vive
neste mundo sem na ver
nem ouvir nem entender,
mas pois eu esta nam tive
desespero de a ter.
Nem pode ninguem querer
de dama tam perigosa
senam vida dovidosa.
De Luis da Silveira.
Mui maao remedio vos vejo
e vós pior o buscais,
qu’ esperança nam tenhais,
quem tem tam alto desejo
nam deve de querer mais.
Nem creo eu que ninguem
queira da gram Perigosa
mais que vida dovidosa.
De Dom Rodrigo Lobo.
De tam grande e tal cuidado
est’ ee o bem que s’ alcança:
perder homem esperança
e ficar ele dobrado.
Vivei vós desenganado
com vida tam perigosa,
que val mais que dovidosa.
Outra sua.
Estaa mui aventurado
quem tam alto fantesia,
pois se mete num cuidado
que quanto mais aprefia
se vei mais desesperado.
Engano desenganado
é a vida dovidosa
em poder da Perigosa.
De Simão de Sousa.
Tormento que atormenta assi
por amor de quem se sente,
remedeo do mal presente
se pode chamar aqui.
Se se vio, eu nunca vi,
servida despiadosa
tam doce, tam perigosa!
Outra sua.
O que se na vida mais preza,
que se na vontade mais traz,
esta é a que mais mal faz
e a de menos firmeza.
A vida por gentileza
seja a da tam perigosa
por ahi nam haver grosa.
De Simão de Miranda.
O remedio dos vencidos
é a causa de seu mal,
sendo com’ esta qu’ ee tal
qual nunca viram nacidos.
Guanham-se de bem perdidos
os que com vida penosa
se chamam da Perigosa.
De Joam Fogaça.
Quem louvar e quem disser,
mui grande verdade diz
e nam se engana,
que nam ha i igual molher
à senhora Dona Briatiz
de Vilhana.
Polo qual nam ha remedio
a cousa tam perigosa,
nem ha molher tam fermosa.
De Sancho de Sousa.
Senhora, quem eu servira
contente d’ atormentado,
dando vida por cuidado,
se a lei o permetira,
vosso mal por bem sentira,
que de vida perigosa
é a minha desejosa.
De Dom Jeronimo.
Meu mal remedio nam tem,
a dor disto é desigual,
mas em mim nam ha mais bem
que esperança de seu mal.
Se m’ esta tençam nam val
em cousa tam perigosa,
Deos a faça piadosa.
De Joam Rodriguez de Saa.
A quem se meteo em bando
antre perigo e rezam
mais val viver desejando
duvidas, que vam volando,
que ter certezas na mão.
Qu’ em tamanha oupiniam
a vida mais dovidosa
é a menos perigosa.
Outra sua.
Que remedio tomaria
quem me a mim preguntasse,
isto lhe conselharia:
que perigo por melhoria
de dous estremos tomasse.
E se a vida aventurasse
a ser triste e trabalhosa,
fosse pola Perigosa.
De Joam da Silveira.
Tomai a minha vontade
esta vida por avença,
porque na gram deferença
quem arrecea a verdade
nam quer esperar sentença.
Bem compre qualquer detença,
qualquer cousa dovidosa
em vida tam perigosa.
De Nuno da Cunha.
As duvidas que nos dais,
cada hora em nossas vidas,
eu as tinha bem sabidas,
senhora, em vossos sinaes.
Em vossos sinaes mortaes
em que nam vi dovidosa
minha vida perigosa.
De Pero do Sem.
Nam m’ atrevo a gabar
tal primor e prefeiçam,
cuidar, ver e contemprar,
porque dar vida e matar
pode-o com a tençam.
Pois quem dará aqui remedeo
d’ escapar aa Perigosa,
senam ela tam fermosa?
Outra sua.
A ela nos socorramos
a ela nos entregamos
e a ela soo peçamos
que nos guarde de seus danos,
pois mal lhe nam merecemos.
E, s’ o contrairo queremos,
nam nos seraa piadosa
mas antes mui perigosa.
D’ Antonio da Cunha.
Gram perigo é nam na ver,
mas o que de a ver s’ alcança
é viver sem esperança
de jamais poder viver.
E se vida poder ter
o que vir a Perigosa,
será triste e dovidosa.
D’ Alvaro Fernandez d’ Almeida.
O remedeo é incerto
e a perdiçam segura,
mas quem dela está mais perto
este tem milhor ventura.
Porque a dor desta fegura,
que seja mui perigosa,
tambem é muito fermosa.
De Dom Francisco de Sousa.
Esta duvida era jaa
haa muitos dias sabida,
mas a que tem minha vida
esta nunca se diraa.
Porem isto saberaa
que é pera mim piadosa
quem na fizer dovidosa.
De Dom Francisco de Viveiro.
Est’ ee o cabo dos louvores
que a dama se podem dar:
minha senhora a louvar,
sendo a maior das maiores.
Oo que primor de primores
ũa dama tam fermosa
louvar a gram Perigosa!
Outra sua.
Novos modos de dizer
se deviam de buscar,
pois que Deos pera a fazer
trabalhou polos achar.
Devem-se de contentar,
os que têm vida penosa,
ser a causa a Perigosa.
De Garcia de Resende.
Quem na vir nam perde ver
senam de si maao pesar,
pois tem certo o padecer
e a paga do perder
soo com vê-la se pagar.
Mas guai de quem s’ afastar
de ver cousa tam fremosa,
que seja tam perigosa!
Outra sua.
Por nam cair em certeza,
nam falo na fermosura,
em manhas nem gentileza,
pois daqui atee Veneza
nam naceo tal criatura!
Minh’ alma tem ja segura
minha vida perigosa,
minha fee nam dovidosa.
De Dom Alvaro d’ Abranches.
Isto se me deve crer
polo que tenho sabido,
depois de tanto sofrido,
que me faz tam triste ser
quanto ledo ser perdido.
Polo qual é mor remedio
morrer pola Perigosa
que ter vida dovidosa.
De Dom Alonso Pacheco.
Pera vos louvar milhor
nenhũ louvor vos nam sento,
que vos nam venha pior
que novo merecimento.
Ha mester novo louvor,
nem queirais outro maior,
que de serdes tam fremosa
vos acham tam perigosa.
Da senhora Dona Maria de Bobadilha.
Isto nam mo agardeçaaes,
porqu’ isto vos ham-d’ achar:
que o que mais vos louvar
vos fica devendo mais.
Nem queirais outros sinais
de serdes tam perigosa
senam serdes tam fremosa.
Fim de Dom Diogo.
Este remedio que temos
bem vejo quam caro custa
e, que a vida aventuremos,
por ser por cousa tam justa,
é gram rezam que a demos.
Porque mui pouco perdemos
em vida tam dovidosa,
pois é pola Perigosa.
575
DE DOM
JOAM MANUEL,
CAMAREIRO-MOOR.
Desejo muito saber
de quem foi leedo algum dia
que cous’ ee esta alegria,
porque nunca a pude ver.
Andei ja dias e anos
pol’ achar, vou-m’ a perder,
sofrendo coitas e danos,
acho sempre desenganos
que me nam leixam viver.
Desespero de prazer,
sam tam fora d’ alegria,
qu’ em que ma amostrem de dia
nam na hei-de conhecer.
Pedr’ Homem.
Ũs dizem qu’ estava caa,
outros que vem de Castela,
em poder d’ ũa donzela
de que nunca s’ haveraa.
A outros ouvi dizer
qu’ esta senhora sabia,
com muito pouca alegria,
muita tristeza fazer.
Anrique Correa.
Certefico-vos, senhor,
isto nam saia daqui,
que nestas festas a vi
a ũ meu competidor.
Será rezam de a ter,
eu nam vo-lo juraria,
mas juro que nam vi dia
que visse menos prazer.
Dom Nuno.
Vejo-vos, senhor irmão,
eu nam sei se tendes dama,
vir chorando do serão
e dar cem voltas na cama.
Nas damas nam ha prazer,
eu por isso todo o dia
se s’ ela no campo cria,
cuidai que a hei-de ver.
Francisco da Silveira.
Todos meus dias perdi
em buscá-la,
Castela, França corri,
outras mil terras que vi,
sem achá-la.
Mas per lá ouvi dizer
que neste reino dond’ ia
ficava toda em poder
de quem nam na merecia.
576
DE
PERO DE SOUSA RIBEIRO
AA SENHORA DONA MARIA
DE MENESES, ESTANDO
PARA CASAR.
Em tudo nova maneira
tomou meu bem d’ acabar,
em levantando a bandeira,
comprio logo de baixar.
Que perder a liberdade
que tinha quem a mim tem
nam sei como nem por quem
a tantos faz crueldade.
E guerra grande, inteira,
qu’ a mim haa-de guerrear,
pois fui levantar bandeira,
que comprio logo abaixar.
Sua.
Sei o mal do casamento,
porqu’ ũa vez ja casei,
tenho dor, tenho tormento,
porque nam no encantoei.
A cousa vai de maneira
que se nam pod’ escusar,
e eu levantei bandeira
que rezam manda abaixar.
O Camareiro-moor.
Nam parti com boas aves
e com pee ezquerdo entrei,
pois achei males mais graves
de quantos fantasiei.
Estou na mais derradeira
maa ventura, que cuidar
se pode, pois a bandeira
ja nam hei-d’ alevantar.
O Prior do Crato,
Dom
Diogo d’ Almeida.
O mundo é destruido,
ja nam ha i mal nem bem,
tudo se perde por quem
a mim leixa tam perdido.
Fremosura tam guerreira
como nos podeis leixar?
Ou que seraa da bandeira
que me mandais abaixar?
Outra sua e fim.
Se nam confirmasse El-Rei
a tença que lh’ ee pedida,
porque ficasse empedida
esta lei tam contra lei,
seria grande maneira
pera se tudo enlear
e quem abaixou bandeira
torná-la-ia a levantar.
577
DE PEDR’ HOMEM,
ESTRIBEIRO-MOOR
D’ EL-REI.
D’ hoje avante quem quiser
que lhe queira mal alguem,
diga-lhe que lhe quer bem.
E por i nam haver grosa,
nam entendam todos isto,
senam em dama fermosa,
descreta e graciosa,
porque desta sam malquisto.
Porque a que nam tiver
estas tres como ela tem,
quiça que quererá bem.
De Dom Fernando de Meneses.
Porque disto me temia,
m’ encobri o mais que pude,
mas nunca me Deos ajude
se o certo nam sabia.
E por isto quem quiser
que lhe vaa mal com alguem
sirva a quem eu quero bem.
De Jorge d’ Aguiar.
Porque tal m’ aconteceo
com foam,
que servi des que naceo,
mas des que me conheceo
nunca mais me foi mui sam.
E por isso quem quiser
que lhe vaa mal com alguem
diga-lhe que lhe quer bem.
De Arelhano.
Se quereis em Portugal
que vos vaya bien d’ amores,
servi a quem quiserdes mal
e vereis venir favores.
E por esso el que quisiere
favores sacar d’ alguem
fingindo le quiera bien.
Dom Garcia d’ Alboquerque.
Mostrai, se quereis tirar
da dama algum bem querer,
que a nom quereis oulhar
nem ond’ ela está estar.
Vê-la-eis por vos perder
e, se nom quereis fazer
e lhe quiserdes gram bem,
nam vo-lo quererá ninguem.
Outra sua.
Disto som escarmentado
pois triste por mim passou
com verdade namorado,
sem ũ hora ser mudado
de quem morte me causou,
e folgou
de me ver assi morrer
por lhe querer grande bem,
moor que nunca quis ninguem.
De Francisco da
Silveira.
Fim.
Nisto nom haja debate,
ante todos seja crido
que quem quiser d’ arremate
grande bem sem ser fengido,
este tal será perdido.
E por isso quem quiser
d’ amores querer alguem,
fengido lhe queira bem.
578
DE
JORGE DA SILVEIRA
A ŨU PROPOSITO.
Minha vida nam é vida,
coraçam nom me repousa
com desvairos d’ ũa cousa.
Meus olhos desejam ver
o que minh’ alma queria,
mil mortes na fantesia,
qu’ isto desvia de ser.
Assi que nam tenho vida,
coraçam nom me repousa
com desvairos desta cousa.
Simão da Silveira.
O que quero, o que desejo,
nam no ouso de saber,
porqu’ hei medo do que vejo
e arreceo o qu’ ha-de ser.
Porem queria-a dizer:
tem tanto medo esta cousa,
que sair de mim nam ousa.
O Craveiro.
De dous males desiguaes
me vejo tam combatido,
que perco todo sentido
sem saber nem ter sabido
que mal destes me doi mais.
Com ambos me nam leixais,
coraçam nom me repousa
com desejar ũa cousa.
Luis da Silveira.
Eu cuidei qu’ era passado
ja meu mal e meu tormento,
e é vento,
que sinto novo cuidado
de mui velho pensamento.
Oo novidades de vida,
eu nam sei quem viver ousa,
desejando grande cousa!
Dom Alvaro de Noronha.
Descanso nam no espero,
de tudo desesperei
como me determinei,
nem faço a vida que quero
nem me quer a que tomei.
A ventura seguirei,
qu’ ee mui perigosa cousa
fazer homem o que nam ousa.
Simão de Sousa.
O qu’ ee bom pera viver
é mao pera quem nam vive,
de quantas más vidas tive
esta soo mo fez saber.
Que maa vida de soster
é a de Simão de Sousa,
com desvairos d’ ũa cousa.
De Vasco de Foees.
A vida que tenho agora,
essa hei sempre de ter,
nem viraa dia nem hora
em que tenha mais prazer.
Desejo de a dizer,
mas meu coraçam nam ousa,
que descubro grande cousa.
Dom Francisco de Biveiro.
Ai que nam posso viver
segundo caminho vejo,
porqu’ o que quer meu desejo
minha ventura nam quer!
E porqu’ isto assi ha-de ser
ja minha vida nom ousa
desejar nenhũa cousa.
Outra sua
Vossa grande perfeiçam
m’ haa forçado que vos ame
e vossas obras tais sam
que mandam que vos desame.
Em tal ponto minha vida
posta é, que nom repousa
com desvairos d’ ũa cousa.
Dom Garcia de Noronha.
Em meu mal estaa meu bem,
perdi-o em Almeirim,
ja nam tenho mais em mim
cos desastres que me vem.
Oo quam triste vida tem
pessoa que nam repousa,
com desvairos d’ ũa cousa!
Aires Teles.
Vivo triste, despedido
do bem que daa esperança,
desejo fazer mudança
doutra parte confiança
quer que viva como vivo.
Som de todo ja vencido,
coraçam nom me repousa,
com desejo d’ ũa cousa.
Outra sua.
Liberdade fui perder
por guanhar novo cuidado,
mas, s’ eu queria viver
soo um hora sem no ter,
nunca viva descansado.
Porqu’ ee ja tam enganado
meu coraçam nesta cousa,
que nas outras nam repousa.
Duarte da Gama.
O temor demasiado
do mal que por mim s’ espera
me faz que ja o quisera
ter passado.
E faz-me que minha vida
nom descansa nem repousa,
com desvairos d’ ũa cousa.
Garcia de Resende.
Minha vida soo o nome
tem de vida e de viver,
e quem vida quiser ter
o contrairo dela tome,
pola cedo nam perder.
Isto me faz nam dizer
e encobrir ũa cousa,
que na minh’ alma repousa.
Joam Rodriguez de Saa.
Nam ouso de desejar
nem desejo ser ousado,
porqu’ hei medo de tomar,
tomar tam grande cuidado
que me nam queira matar.
Folgaria d’ acabar,
mas meu coraçam nam ousa
começar tamanha cousa.
579
D’
AIRES TELEZ AA SENHORA
DONA JOANA DE
MENDOÇA.
A grorea de se perder
que teraa quem vos servir,
qui-la Deos soo descobrir
a quem quis dar mais prazer.
Porqu’ a vida qu’ algũ tem
nam se sente nem padece,
senam segundo merece
a causa dond’ ela vem.
E quem esta puder ter,
senhora, por vos servir,
nam pode pena sentir
que nam sinta mais prazer.
O Barão.
Se com vosso parecer
condições, manhas conseguem,
as outras damas de crer
devem qu’ haveis de fazer
qu’ os servidores as neguem.
E por isso quem tiver
siso deve de fogir
donde nam deixam sentir
a pena que dá prazer.
Francisco da Silva.
O que menos vos conhece
este hei por mais perdido,
porque quem por vós padece,
na groria tem mais havido
do que na pena merece.
E quem por vós se perder,
ser-lh’ -á milhor nam sentir
o gosto de vos servir
pera mais vos merecer.
O Conde do Vimioso.
Se prazer é ser perdido,
grande dita foi a minha,
pois com tanto mal sofrido
me fui perder tam asinha.
Ditoso em me perder,
mas nam pera vos servir,
qu’ outrem tem esse poder
e eu naci par’ oo sentir.
Outra sua.
Eu determino d’ haver
ũa vida emprestada
pera por vós a perder,
porqu’ a minha nam é nada.
Que nam tem tanto valer
pera que possa sentir
a groria, que deve ter,
senhora, quem vos servir.
Alvaro Fernandez d’ Almeida.
Por este contentamento
que decrara este rifam,
quando tiver mais tormento
terei mais satisfaçam.
Que se pode acontecer
nem que posso ja sentir,
pois que quando me perder
haa-de ser por vos servir.
Manuel de Vilhena.
Esta groria, quem na tem,
posto que folgue co ela,
nam lhe tirará ninguem
o receo de perdê-la.
Em cousa que s’ ha-de ter,
pera mor pena sentir,
nam se pode achar prazer
senam soo em vos servir.
Garcia de Resende.
Quem menos vos tem servido,
tem mais que vos alegar,
pois val mais o mais perdido,
milhor me vem o partido
do perder que do guanhar.
E se me nam quis perder,
senhora, por vos servir,
deveis crer e consentir
que foi por mais merecer.
Francisco de Sousa.
Tres anos ha que sam fora
quatro mil leguas daqui,
donde afirmo que nam vi
nem menos des que naci
tam gentil dama ategora.
E por isto sei dizer
que quem quer que vos servir,
que quanta pena sentir,
se paga só com vos ver.
Diogo de Melo.
Pois nos Deos quis amostrar
em vós todo seu poder
ter sojeito,
devemo-Lo bem de louvar,
se se nam arrepender
de vos ter feito.
Grande mercê quis fazer
só a quem quis descobrir
a groria que é perder
a vida por vos servir.
Joam Rodriguez de Saa.
Mas porem nam na quis dar
tam barato qu’ escusasse
de passar, quem na buscasse,
grandes tormentos d’ amar
antes qu’ a porto chegasse.
Para se poder soster
a groria de vos servir,
deu mal para resestir
a tam sobejo prazer.
Dom Francisco de Viveiro.
Cuidar em dar-vos louvores
é lançar agua no mar,
sem jamais nunca chegar
a vossos grandes primores.
Mas sei que quem bem sentir
fará o qu’ hei-de fazer,
qu’ ee morrer por vos servir
e sem isso nam viver.
Francisco Homem.
Tam grande merecimento,
que rezam leve por guia,
nam vos pinta a fantesia
que lhe dais contentamento.
Mas a groria de vos ver
obriga a vos servir,
sem se poder encobrir
de ninguem mais seu prazer.
Pero Moniz.
Tal rosto e tal fegura
vos foi Deos, senhora, dar
que quem quer que vos olhar
nam tem na vida segura.
Ditoso se a perder,
pois s’ ha-de restituir
a pena qu’ ha-de sentir
co a groria qu’ ha-de ter.
Cabo d’ Aires Telez.
Se eu podesse ganhar
doutra parte cem mil vidas,
seria por vo-las dar
pera as ver tambem perdidas.
Porqu’ ee tam pouco perder
ũa soo por vos servir,
que, por mais grorea sentir,
queria mais vidas ter.
580
DE
JOAM DA SILVEIRA
AA SENHORA DONA
MARGARIDA
FREIRE.
Desejo de vos louvar,
mas, quando quero fazer,
tam pouco posso dizer
como se deve calar.
E mais em que possa ser
outro medo mo defende:
que quem isto emprender
dará logo a entender
que cuida que vos entende.
O que nam s’ ha-de cuidar
menos se deve dizer
e por isso eu quero ter
a culpa de me calar.
De Dom Lourenço d’ Almeida.
A quem sobeja rezam
nam pode dessimular
qu’ esta é minha tençam:
quem nam tem comparaçam
nam se pode comparar.
E, se cuido em vos gabar,
vejo que nam pode ser
e quem mais ha-de dizer
haa-se de saber calar.
Do Conde d’ Alcoutim.
Eu quisera-me calar
e nam me pude sofrer
e tambem nam sei dizer
quanto se deve falar.
Assi qu’ aquesta rezão
m’ escusa deste perigo,
mas o qu’ eu aqui nam digo
caa o diz minha tenção.
De Fernam Telez.
Eu bem sei que me seria
de meus males gram conforto,
se visse na fantesia
quem na vida me tem morto.
Mas pois triste contemprar
tam infindo parecer
nam poode ser,
louve-vos quem vos louvar,
qu’ eu nam sei mais ca adorar
e padecer.
Do Conde do Vimioso.
Como quem fala de fora
ousara de vos gabar,
se nam fora
ver-vos eu, minha senhora,
meu cunhado assi matar.
Mas ficou-me de vos ver
tal medo que mais falar
nam ouso nem sei dizer,
que bom calar
é milhor par’ escapar.
Do Conde de Farão.
Quanto temos mais rezam
de louvar o que parece,
tanto menos nos merece
de louvar a condiçam.
Porque soo de a olhar,
s’ esperança s’ ha-de ter,
é de muito mal sofrer
e pouco bem esperar.
De Dom Francisco d’ Almeida.
As mãos vossas têm ja feito
em mim sempre tal louvor,
que em todo seu favor
som sojeito.
Mas porem poss’ afirmar
qu’ este vosso parecer
nom se vio nem s’ ha-de ver
tal cousa pera gabar.
Dom Francisco de Viveiro.
Quem algũ siso tiver
diraa que nam vos gabemos,
pois que saiba o que quiser,
que diga mais que souber,
é nada par’ o que vemos.
E por isso assi cuidar
me calo com soo saber
qu’ o que se deve dizer
era acima de louvar.
De Dom Joam Lobo.
O campo craro se via
ficar por vós ateegora,
se nam fora
a senhora Dona Maria
Anriquez, minha senhora.
Esta soo quero leixar,
pois é soo no merecer,
entam a meu parecer
podeis vós todos levar.
De Diogo de Melo.
Nam posso gabar que queira
as cousas per si gabadas,
mas terei esta maneira:
ir-m’ -ei com Joam da Silveira,
se nam fala nas casadas.
Co ele m’ hei-d’ assinar
sempre neste parecer,
pois que nom posso dizer
o que nam posso calar.
Do Barão.
Todo mal eu adevinho,
porque como vos fui ver
vi o qu’ havia de ser
do triste de meu sobrinho.
Querer-vos homem gabar
é lançar tempo a perder,
qu’ inda que tenho lugar,
nam pode têlo querer.
De Dom Pedro de Noronha.
Nas cousas que grandes são
compre ter mui grande tento,
qu’ onde sobeja rezão
falece o entendimento.
Por isso quem começar
de falar ou de dizer,
haa primeiro bem de ver
quam mal se pod’ acabar.
De Jorge da Silveira.
Naquestas damas que vemos,
vemos grande sobressalto,
porque só no qu’ entendemos
pondelo risco mais alto
ca todas quantas sabemos.
Pois quem podesse chegar
oo qu’ estaa por entender,
aind’ est’ encarecer
era pequeno louvar.
Do Marquês.
Vi tam gram merecimento,
vi tam grande fermosura,
que perdi atrevimento
e ganhei desaventura.
Mas s’ ousasse de falar,
o qu’ eu diria
seria qu’ era heresia
cuidar ninguem de louvar
quem nam pode comparar.
Outra sua.
É pecar no Spirito Santo,
é presunção mui sobeja,
por alto saber que seja,
de o soo cuidar m’ espanto.
Eu nom creio nem creria
que ninguem tal presumisse,
antes cri o que seria
ousadia
d’ heresia, como disse.
De Jorge de Melo.
Quando Deos da gentileza
quis que fosseis vós o cabo,
ordenou qu’ era simpreza
dar-vos gabo.
Tem certo quem vos olhar,
se vos souber entender,
qu’ haa-de ter
pera sempre em que cuidar.
Outra sua.
Vive com dobrada dor
quem ser vosso nom alcança,
e, depois que vosso for,
teraa muito boom senhor
e de si maa esperança.
Quem servir-vos começar
seja certo qu’ ha-de ver,
se nam morrer,
de si cedo mao pesar.
De Manuel de Goios.
Eu nam sei como pagais
nem vos paga quem vos vir,
nem se serve em vos servir,
se fica devendo mais.
Que se quero descontar
da pena ou do prazer,
nam no sei detreminar
qu’ ambas crecem com vos ver.
De Gracia de Resende.
Nam sei quem se quer meter
em cousa tanto sobida,
que antes que a saida
lhe dê nem nada disser,
o faraa ensandecer.
Quem tal cuidado tomar,
se nam tiver tal saber,
como tendes parecer
e merecer,
faraa bem de se calar.
De Vasco Gomez d’ Abreu.
O que vir milhor de nós
e mais vos quiser gabar,
dir-vos-ha que vós soes vós,
e entam pode cuidar
que nam ha mais que falar.
E se maneira buscar
outra mais ou quiser ter,
haa mester que seu saber
como vós nam tenha par.
De Joam Fogaça.
A muito s’ atreveria
quem cuidasse,
por muito que vos louvasse,
que diria
a vossa galantaria.
Porque quem em vós falar
pode muito bem dizer,
sem errar,
que soo Deos tem o poder,
senhora, de vos louvar.
De Dom Fernando d’ Ataide.
Pois triste tam soo fiquei
de minha passada dor,
vós soes a que louvarei,
vós soes a que tirarei
em qualquer outro louvor.
Mas ha nisto de pagar
o vosso boom parecer
na vida qu’ hei-de viver,
qu’ ele soo m’ ha-de tirar.
De Luis da Silveira.
S’ esta senhora vos veio
mostrar seu parecer,
foi porque houve Deos receo
de O ela preceder
e a lá quisesse ter.
E pera lá nam leixar
lembrou-lhe qu’ ouvio dizer
dous santos: — Mal parecer
pera oulhar,
quanto mais pera adorar
e pera crer.
De Tristam Fogaça.
Sem tirar ninguem afora,
senhora, nisto me fundo:
que quantos haa neste mundo
vos devem ter por senhora.
E quem tam cego andar
qu’ isto bem nam entender,
o que mais vir nam é ver,
que ver se possa chamar.
De Vasco de Foios.
De quem se tanto gabar
que disser
que nam é em seu poder
louvar-vos nem vos louvar,
bem no podem reprender.
Que saber que sabe nada
conhecer-se sem poder
i isto tanto saber
ca ind’ estaa por nacer
pessoa tam acabada.
Por isso quem vos oulhar
a vosso gram parecer
nam compre rezam buscar,
que por fee se deve crer.
581
DE
JORGE D’ AGUIAR, APAR‑
TANDO-SE DOS AMORES.
Amores, desd’ hoje mais
nam me conteis
por vosso nem me queirais.
Nam quero nojos que dais
nem quero vossas mercês.
Deixo vossas esperanças
vãas e sem nenhũ repouso,
deixo-vos, porque nom ouso
sofrer mais vossas mudanças.
Nam m’ hajais por vosso mais
nem mo chameis.
Amores, pois que sois tais,
nam quero nojos que dais
nem quero vossas mercês.
Ajuda de Francisco da Silveira.
Lembra-me que vos servi
muito e mui de verdade
e com quanta lealdade,
e por isso me perdi.
E pois que tanto matais,
nam me culpeis
de nam ser ja vosso mais,
e pois tantos nojos dais,
nom quero vossas mercês.
De Dom Joam de Meneses.
Se vos servi algũ hora
da sogeiçam em qu’ estava,
nam quero mais que ser fora,
porqu’ agora
sei quam mal o empregava.
E por isso nunca mais
m’ acolhereis
de ser vosso, pois matais
com tantos nojos que dais
qu’ ante nom queira mercês.
Do Coudel-moor.
Quem podeer tanto consigo
precure sa liberdade,
mas eu nam posso comigo
nem posso mudar vontade.
Com todo mal que façaes
nem me fazeis,
amores, sempre jamais
nam quero nojos que dais,
pois me podeis dar mercês.
D’ Anrique d’ Almeida.
Por me tirar desta briga
de quem mal ouço dizer,
quero servir ũa amiga
qual milhor me parecer.
Senhora, laa ond’ estais
perdoareis,
se disser que quero mais
à saudade que me dais
ca d’ outrem cem mil mercês.
582
DE
SIMÃAO DE SOUSA À SENHORA
DONA BRIATIZ DE SAA.
Quem quiser saarar o mal
que doutra molher tiver,
oolhe a que lh’ eu disser.
Por que s’ haa-d’ oulhar rezam,
por ela s’ ha-de perder
e s’ haa-de ter sojeiçam
onde pode milhor ser.
Ó perdiçam de prazer
pera quem olhos tiver,
ó molheres, que molher!
O Barão.
Como saarará meu mal
quem folgou de mo fazer
e folga de me perder,
cuidando que pode ser,
devendo de cuidar al?
E por mais certo sinal,
enquanto vida tiver,
nom verei outra molher.
Jorge da Silveira.
Bem vejo o risco que corro
naqueste meu cativeiro,
mas sam seu tam verdadeiro,
qu’ inda que me dêm dinheiro
nam quero dele ser forro.
Venha-me mal sobre mal,
venha-m’ o que me vier,
venha por esta molher.
Do Conde do Vimioso.
A vista qu’ ha-de salvar
tudo se perde por ela,
por isso nam sei cuidar
s’ ee mor perigo oulhar,
se moor dita conhecê-la.
Mas sinto qu’ estaa em vê-la,
com quanto mal me fizer,
minha vida sem na ter.
Dom Rodrigo de Crasto.
A tristeza que se tem
co as condições da minha,
bem pode matar asinha,
mas nunca leixar ninguem.
Assi que quem se quer bem
e algũu prazer quiser
fuja daquessa molher.
Gonçalo da Silva.
Se fora no mal passado,
vosso conselho tomara
e podera ser qu’ achara
este remedio provado.
Mas quem estaa apartado
de mal e o nom quiser,
nom veja essa molher.
Aires Telez.
De meu mal ja desespero,
porqu’ ha nele gram desvairo,
faz-me bem o que nam quero
e quero o que m’ ee contrairo.
E sei qu’ o mor adversairo
que minha vida tiver
será ver ũa molher.
Dom Pedro d’ Almeida.
O remedio do cuidado,
que m’ a mim pode sarar,
nam estaa em bem oulhar,
porque vem de mal olhado.
E quem disto for tocado,
guarde-se do qu’ eu fizer
e olhe quem lh’ eu disser.
O Capitão da Ilha.
A hora hei por perdida
que passo sem na oulhar,
vendo-a me custa a vida
que m’ outra nom pode dar
nem tomar.
Porque se nom pod’ achar
quem tanto poder tiver,
senam em quem eu disser.
Joam da Silveira.
Nam tem remedio meu mal,
comprir-s’ -á sua ventura,
porque par’ ela ter cura
haa-se d’ achar outra tal.
E por mais certo sinal,
quem outra cousa disser
mostrar-lh’ -ei ũa molher.
Simão da Silveira.
Mil mortes d’ ũa figura
sem lembrança da que tinha,
por m’ acabar mais asinha
m’ ordenou minha ventura.
É mui impidosa cura,
cada ũ dig’ oo que quiser
e deixe-m’ ũa molher.
Garcia de Resende.
Os olhos que se puserem
firmes em seu parecer
livrar-s’ -am de quem quiserem
mas dos seus nam pode ser.
Meus olhos, pois fostes ver
quem vos nam vê nem vos quer,
sofrei quanto vos fizer.
Outra sua.
Quem na vir nam veraa mais
outra pessoa nacida,
quem nam na tem conhecida
dou-lhe dela estes sinais:
que daa sempre triste vida,
nom presta tê-la servida,
porqu’ a quem mor bem lhe quer
deixa mais cedo perder.
Dom Joam Lobo.
Se fosseis ja conhecida,
pois curais mal em mudança,
qu’ em ter esta confiança,
Ataide, minha vida,
nam posso ter esperança.
Est’ ee a que me faz mal,
se remedio me nam der,
nam mo dê outra molher.
Dom Joam de Meneses.
As aves que mudam mal
o bom caçador ordena
como mudem sua pena
e se cubram doutra tal.
Mas corre risco mortal
da nova que lhe vier
e guai de quem na tiver!
Outra sua.
E quem pode com ajudas
mudar-se coma falcam,
perde a pena de Simão
e fica Simão e Judas.
Vêm-lhe penas tam agudas
que sobe quam alto quer,
mas guarda de Lucifer.
Dom Alonso Pacheco.
Pues do yo perdi la vida
alguno piensa bevir,
em ser más de mi servida
no la quiero deservir.
Elha causa mi partir,
otra me fará bolver
a morir en su poder.
Dom Alvaro de Noronha.
Nos males em que ha cura
todo beneficio val,
mas o mal qu’ ee immortal
quem lhe remedio procura
perde todo o cabedal.
Quem quiser ver o sinal
do que digo assi ser,
olhe o que lh’ eu disser.
Dom Alvaro d’ Abranches.
Isto nunca vio ninguem,
por isso nam sei dizer
nem estaa no conhecer
saber certo donde vem.
O moor descanso que tem
quem este meu mal tiver
é nam saber entender.
Joam Rodriguez de Saa.
O mal que tenho sofrido
de sofrer e encubrir
nom se cura com sentido,
porque naceo de sentir.
Disto soo lhe pode vir
o remedeo e, quem mo der,
é muito mais que molher.
Dom Luis de Meneses.
Porque sei qu’ hei-de guanhar,
folgaria d’ apostar
ũa muito grande cousa:
qu’ o que diz Simão de Sousa
nam tem Deos mais qu’ arranhar.
E quem disto dovidar,
deixe quem ele quiser
e olhe quem me nam quer.
Francisco de Brito.
Cuido eu em quem seraa
a que tanto poderaa.
Acho qu’ ee a que me tem,
sem me fazer nenhũ bem
que me ja nunca faraa.
Nisto se conheceraa,
mas, quem descanso quiser,
fuja de a conhecer.
Dom Gonçalo de Castel Branco.
S’ ousara de nomear,
ja tevera dito quem
me pode dar com olhar
saude, que de ninguem
atequi quis aceitar.
Por todo meu mal guardar
a saarar, quando disser
o nome desta molher.
Francisco de Sousa.
Ũa me parece bem,
nam sei se dizeis por ela,
que se bem quiserdes vê-la,
nam vos lembraraa ninguem.
Tanta jentileza tem,
tam fermosa é, quando quer,
qu’ ee muito mais que molher.
Vasco de Foes.
Meu senhor Simão de Sousa,
deixar-m’ -ia antes finar
sem fazer nenhũa cousa
que convosco me curar.
S’ algũu tempo tanto mal
m’ ham meus olhos de fazer,
nam nos quero, s’ haa-de ser.
Outra sua.
Se fosseis com’ eu ferido,
da vida desesperado,
vós terieis o cuidado
que tenho de mi perdido.
Por isso curar meu mal
nam é bem nem pode ser
nem tenho olhos par’ o ver.
Do Estribeiro-mor.
Ó quem podera tomar
o conselho do rifam,
mas é mui mal desejar.
O mal de meu coraçam
foi ter sogeita a rezam
da vontade, que me quer
com seus enganos perder.
De Badajoz.
Non tengo por buen concerto
el remedio que me dais,
que com lo que vos sanais
con esso bivo yo muerto.
Mas sé vos dezir de cierto
que yo fuelgo de lo ser,
por ver su gram merecer.
De Simão de Sousa.
Nam ha i tempo passado,
senam presente e por vir,
pera sentir
meu mal qu’ estava guardado,
que tanto tardou em vir.
Quem no qu’ os meus olhos vir,
qu’ ele estei no que quiser,
faraa o que eu fizer.
Outra sua e cabo.
Falei soo do poder seu,
sem falar no mais que tem,
tambem do nam poder meu
oulhar jaa outrem ninguem.
E se i houver alguem
que dovide no que digo,
eu lho provarei mui bem
comigo.
583
DE
SIMÃO DE MIRANDA AA
SENHORA DONA BRIATIZ DE
VILHANA, ACONSELHANDO‑
-LHE QUE SE GUARDE DE
SOBERBA E DESPRE‑
ZAR NINGUEM.
Fortuna, sortes, maao fado,
sempre vêm pola soberba
ou por quem muito despreza
qualquer mal-aventurado.
Da soberba vem cahir
do mais alto no mais fundo,
guarde-se quem neste mundo
folga mal de bem ouvir.
Quem cahir neste pecado,
nom se fie em gentileza,
porque quem muitos despreza
seu valer é desprezado.
Do Conde do Vimioso.
Qual vos eu quisesse mais
nam no sei determinar,
com a soberba matais,
mas tambem, se dela usais,
é começo de pecar.
Pois cahirdes em pecado,
remiraa nossa tristeza,
da soberba e crueza
nam se queixe o desprezado.
Dom Alonso Pacheco.
Nam me salva a rezam
sendo perdido por ela,
mas meu mal e perdiçam
tudo bem s’ emprega nela.
Eu dou por bem empregado
em mim toda a tristeza,
porque na minha firmeza
se descansa meu cuidado.
De Simão de Sousa.
Ahi nam ha salvaçam
sem ũa pouca d’ homildade,
quem tivesse piadade,
teria mais perfeiçam.
Mas vejo bem mal julgado
que daa por males firmeza
e esforçar-se a crueza
sobre quem tudo tem dado.
De Garcia de Resende.
Artigo de nossa fee
é nam desprezar ninguem
e fazer a todos bem,
segundo cada ũ ee.
Emparar desemparado,
oo triste nom dar tristeza,
aos firmes ter firmeza,
esperar desesperado.
De Joam Rodriguez de Saa.
Que disso sintais paixam
nom vos deveis d’ espantar,
que dos anjos é pecar
em soberba e presunçam.
Nem cuideis de ser vingado
do que faz sua crueza,
que perder a gentileza
nom se segue de pecado.
De Simão de Miranda, por‑
que vio a cantiga na cabeça
da Senhora Dona Joana
de Mendoça.
Seja a cantiga adorada,
senhores, que o nam mereça,
nam ela, mas a cabeça
onde ontem foi mostrada.
Esta nam teraa pecado
d’ enveja nem de soberba,
pois nam pode a natureza
dar-lhe mais do que lh’ ee dado.
584
DE
SIMÃO DE SOUSA AA SENHORA
DONA GUIOMAR DE MENESES.
Vossa graça e parecer
vai, senhora, de maneira
que deve, quem quer viver,
de fazer por vos nam ver,
ahinda qu’ ele nam queira.
E deve-se d’ entender
em quem vos nam tenha visto,
porque depois de vos ver
nam se pode fazer isto.
Que quem vos bem conhecer
e vos vir, que Deos nam queira,
nam pode leixar de ser
vosso enquanto viver
nem viver doutra maneira.
Do Comendador-mor d’ Avis.
Vosso nome e fermosura
sam duas cousas iguaes,
porque melhor m’ entendaes
ũa delas daa tristura,
a outra penas mortaes.
Assi qu’ a meu parecer,
o vosso é de maneira
que quem leedo quiser ser
nam deve nunca querer
ver-vos, ahinda que queira.
Do Barãao.
Nam sei em que siso cabe
perder tempo em vos gabar,
pois no que tam bem se sabe
se nam deve de gastar.
Porem quem me quiser crer
deve de buscar maneira
que nam moira sem vos ver,
que sem isso nam morrer
é morte mais verdadeira.
Do Conde do Vimioso.
Louvar vossa perfeiçam,
gabar-vos ofensa é
se nam fosse a tençam
porque, se mingua rezam,
senhora, sobeja fee.
Para a pena por vos ver
desejo de ter maneira,
porque sem isto viver,
se vida pudeesse ter,
nam sei para que se queira.
De Dom Joam de Castel Branco.
Se vos eu vira, senhora,
antes de ter o mal meu,
ja desd’ entam ategora
minha vida se me fora
ou m’ eu fora pelo seu.
Mas por quem me vejo ser
perdido, sem ter maneira
de me poder repender,
me faz ousar de vos ver
e fará em que nam queira.
Luis da Silveira.
Tomaria desta dor,
pois o remedio é tal,
sofrê-la por menos mal
que curar co qu’ ee pior.
Este é o meu parecer
e é ja em que nam queira,
e quem bem quiser saber
quam mal se pode sofrer
pregunt’ a Luis da Silveira.
Simão da Silveira.
Onde sobeja rezam,
o louvor é escusado
e falo sem afeiçam
sendo bem afeiçoado.
Porqu’ o vosso parecer
nos obriga de maneira
que quem vos houver de ver
o haa sempre de fazer,
ainda qu’ ele nam queira.
O Craveiro.
Infindas cousas diria,
senhora, a este rifam,
se nam fosse, porque sam,
da senhora Dona Maria.
E contudo a meu ver,
vós pareceis de maneira
que quem vivo quiser ser
arrede-se de vos ver,
ahinda que Deos nam queira.
Manuel de Goios.
Nam espero de tomar
o conselho do rifam
e o que m’ haa-de custar,
quero por satisfaçam.
Porque soo pera vos ver
me compre buscar maneira,
tudo o al s’ haa-d’ esquecer
e que al podesse ser
nam entendo quem no queira.
Garcia de Resende.
Tem mui certo quem vos vir
nam querer ver mais ninguem
nem desejar outro bem,
senam pera vos servir.
Por isso quem quer viver,
trabalhe por ter maneira
de vos ver,
que morto polo fazer
é a vida verdadeira.
Tristam Fogaça.
Quem teraa saber que gabe
tam alto merecimento
nem siso pera qu’ acabe
dizer o que disso sabe,
que nam perca mais o tento?
Porqu’ a graça, parecer
é, senhora, de maneira,
que deve, quem quer viver
contente de si, fazer
por vos ver, em que nam queira.
Outra sua.
Se vossa mercê servida
de mim fizesse memoria,
nam sei cousa que na vida
houvesse por mor vitoria.
Porqu’ a graça, parecer
é, senhora, de maneira,
que deve sempre viver
bem triste, sem vosso ser
servidor tee derradeira.
Dom Alvaro d’ Abranches.
Eu devo de ser sospeito
pola vida que tomei,
contudo nam leixarei
dizer o que disso sei
por esse mesmo respeito:
que vos nam poderaa ver
ninguem que tenha maneira
de poder leixar de ser,
por tal graça e parecer,
sandeu, inda que nam queira.
Cabo de Simão de Sousa.
Senhora, qu’ aqui vejais
a tençam de cada ũu,
nam fica de nós nenhũu
que se nam cale co mais.
Eu sam logo o primeiro
qu’ o mais leixei de dizer,
mas nam ja o derradeiro
que vos soubess’ entender.
585
DE
GARCIA DE RESENDE A ŨU
PROPOSITO EM QUE FEZ ESTE
VILANCETE A QUE TAMBEM
FEZ O SOM.
Coraçam, coraçam triste,
triste coraçam, coitado,
quem vos deu tanto cuidado?
Vede bem o que fizestes,
ond’ andastes, que ouvistes,
quem vos tem, a quem vos destes,
que calais, que descobristes.
Que foi isso que sentistes,
que vistes, triste, coitado,
que vos deu tanto cuidado?
De Dom Alvaro d’ Abranches.
Quem mo daa nam me consente
que lhe possa chamar seu,
e pois doutrem se nam sente,
este mal todo é meu.
Eu nam culpo quem mo deu,
senam se m’ haa por culpado
de viver neste cuidado.
Dom Joam de Meneses.
Oo cego, que quem vos cega
nam vos quer nem vós a mim,
donde vem que nossa fim
bem e mal tudo s’ emprega.
Negais-me por quem vos nega,
fico eu bem aviado,
engeitado d’ engeitado.
Outra sua.
Vem meu mal de tanto bem
que se paga com se dar,
quando mais me descansar,
se veraa donde me vem.
Este soo descanso tem,
qu’ a poucos é outorgado,
que moiram deste cuidado.
Joam da Silveira.
Quem em meu mal dovidar
ou tanto nam poder crer,
compre-lhe par’ o saber
nam preguntar, mas olhar.
E logo pode julgar,
se nam for afeiçoado,
quem daraa tanto cuidado.
Simão de Sousa.
Dos olhos oo coraçam
vem o mal qu’ o meu padece,
o cuidado dá rezam,
que se nam vê nem conhece.
Onde tudo desfalece,
coraçam desenganado
nam vive mui descansado.
Dom Pedro d’ Almeida.
A pena qu’ ee sem rezam,
por mais dor de quem a sente,
de matar nam é contente,
mas consente
na vida pera a paixam.
Esta é sua tençam:
dar a vida a ũ coitado,
s’ ee vida de moor cuidado.
Joam Rodriguez de Saa.
Quem meu cuidado tomou,
quem nem cuidar me nam deu,
inda mais acrecentou
ao mal que me causou
negar-lh’ o nome de seu.
Consinto que seja meu
soo por nam ser devulgado
o segredo do cuidado.
Alvaro Fernandez d’ Almeida.
O coraçam, quando tem
cuidado sem outro mal,
parece rezam igual
perguntar donde lhe vem.
Mas o meu, qu’ ee sempre triste
e tam mal afortunado,
tem por descanso cuidado.
Aires Telez.
Nam sei nenhũa rezam
nem na ha em quem vos destes,
para os males que quisestes,
para a vida que vos dam.
De toda satisfaçam,
coraçam desenganado,
quem vos deu tanto cuidado?
Tristam da Silva.
Quem vos deu tanto tormento,
coraçam, em nam sentir
e nam poder descobrir,
segundo o mal que vos sento.
Que nam sei qual sofrimento
possa ser tam esforçado
qu’ encubra tanto cuidado.
Manuel de Goios.
Se vos nam quer quem quereis
e vos isto doobra as dores,
sabei-o, se nam sabeis,
qu’ est’ ee manha dos amores:
oos desleaes dar favores
e oos perdidos cuidado,
sem lembrar o mal passado.
Dom Gonçalo.
Quem vos fez tudo leixar,
por quem vos pondes em fim,
quem vos fez nam vos lembrar
de vós mesmo nem de mim?
Quem vos fez ò galarim
sofrer todo mal dobrado,
quem vos deu tanto cuidado?
Francisco de Sousa.
Nam me pena, coraçam,
a pena de que penais,
porque vós vos contentais
tê-la por satisfaçam.
Mas ser ela de feiçam
que é mal-aventurado
quem descobre tal cuidado.
Garcia de Resende e cabo.
Que farei, qu’ hei-de sofrer
o vosso mal e o meu?
Polos olhos irem ver
padecemos vós e eu.
Mas que quem tal vida deu
nam tenha dela cuidado,
tudo é bem empregado.
586
DE
DOM JOAM DE MENESES A
ŨA DAMA QUE REFIAVA
E BEIJAVA DONA
GUIOMAR DE
CRASTO.
Senhora, eu vos nam acho
rezam para rafiar
e beijar tam sem empacho
Dona Guiomar,
salvante se vós sois macho.
Se o sois e nam sois dama,
é mui bem que o digais
e tambem deve sua ama
nam querer que vós jaçais
soo com ela em ũa cama.
Confessai-nos que sois macho
ou que folgais de beijar,
que doutra guisa nam acho
rezam de antrepernar
tal dama tam sem empacho.
Ajuda de Fernam da Silveira.
Dous gostos podeis levar,
senhora, desta maneira,
pois sabeis de tudo usar:
ser macho pera Guiomar
e femea pera Nogueira.
E por isso nam vos tacho,
antes vos quero louvar,
nos trajos em que vos acho
podereis vós emprenhar
outra molher como macho.
Dom Rodrigo de Castro.
Lancem-vos fora do paço,
ou vos levem a Lixboa
ou vos dêm outra machoa
com que percais o raivaço.
Lancem-vos ũ barbicacho
ou vos mandemos capar,
porqu’ outra forma nom acho
pera poder escapar
Dona Guiomar,
pois s’ afirma que sois macho.
Dom Pedro da Silva.
Pera parecer donzela
cousas tendes bem que farte,
mas chamardes vós muela
a beiços de dama bela
nam vos vem de boa parte.
D’ hoje avante nom me agacho
nem mais hei assi d’ andar,
mas com mui gentil despacho
vos hei-d’ ir arregaçar
e oulhar,
se sois femea ou macho.
Fernam da Silveira, o Regedor.
Com estes tratos d’ amor,
com estes beijos maa hora
vos nom ham ja por senhora,
mas por ũu fino senhor.
Tambem trazês ũu recacho
e ũ som de galear,
que beijais tam sem empacho
Dona Guiomar,
que vos ham todos por macho.
Outra sua e cabo.
Ũa mui estranha cousa
se ruge caa antre nós,
porque laa convosco pousa
Dona Joana de Sousa,
dizem qu’ ee prenhe de vós!
Tambem diz cũ mochacho
vos foi nam sei quem topar!
Havei eramaa empacho,
mandai ũ deles cortar
ou tapar,
e ficai femea ou macho.
587
D’
ANRIQUE D’ ALMEIDA PAS‑
SARO AA BARGUILHA
DE DOM
GOTERRE, QUE FEZ DE
BORCADO,ENDEREN‑
ÇADAS AAS DAMAS.
Nom hajais por maravilha
o preguntar donde vos vem
quererdes saber que tem
Dom Goterre na barguilha.
Quant’ eu devinhar nam posso
como deemo isto dizeis,
se vos ele deixa o vosso,
vós oo seu que lhe quereis?
Par Deos, é gram maravilha
que tem de fazer ninguem
co que tem ou que nam tem
Dom Goterre na barguilha!
O Coudel-moor.
Barguilha de falso peito,
reboloa,
quando vem a ser no feito
nunca boa.
Faz amostra e grã parada,
porque toda a casa peje,
se acha quem lhe rabeje
sai-vos tam envergonhada
e encurtada,
entam buscai quem peleje.
E fica toda d’ um jeito
a pessoa,
porque s’ enganou no feito
d’ arralhoa.
Dom Alvaro d’ Ataide a esta cantiga.
Sobrinho, de meu conselho,
pois debaixo nam jaz nada
senam um triste folhelho,
nom te faças dominguelho
por bragada.
Ca se jouver no teu leito
putarroa,
achar-t’ -aa tam encolheito
e do nembro tam tolheito,
qu’ iraa maa e viraa boa.
Ferram da Silveira a esta cantiga.
Segundo a tençam minha,
quem barguilha assi guarnece
quer soprir com louçainha
o que por obra falece.
E o que nisto sospeito
e caa soa
é que nam é pera feito
tam mixilhoa.
Cantiga sua a esta barguilha.
Cavalheiros de Castilha,
vós qu’ estais em Freixinal,
vinde ver ũa barguilha
a Portugal,
do filho do Marichal.
É de bom borcado raso
qu’ eschameja como brasa,
e é gram caso
sair um homem de casa
com barguilha toda rasa.
Mandai lançar em Sevilha
um pregam que seja tal:
Dom Goterre fez barguilha
cordeal,
vinde-a ver a Portugal!
O Coudel-moor a esta cantiga.
O fidalgo de linhajem,
filho de pai mui honrado,
é de ũa tal carnajem
que sem mais fazer menajem
vos vem jaa desnaturado.
Com recheos de pontilha,
raspa, lãa e isto tal,
faz ũ cume de barguilha
tam mortal
que mao grado a Sandoval.
Joam Correa a esta cantiga.
Todalas cousas provistas,
sem mais grosa,
polos quatro Avangelistas
nestas vistas
nom vem cousa tam pomposa.
Mas nam é grã maravilha,
em caso que venha tal,
ser um sonho da barguilha
ainda mal,
porque tudo é papassal.
Dom Rodrigo de Castro a esta cantiga.
Irei eu daqui a Roma
por ver isto que se diz,
meteras-lh’ o teu nariz
e siquer fizera soma,
ora toma!
Porque s’ aqueste barguilha
nesta festa do Natal
que jaa vai a Bobadilha
de Freixinal
nova dela e que tal.
Dom Pedro da Silva.
Quem te vir o teu borcado
e te for buscar o centro,
achará grande toucado
e chico recado dentro.
Em nenhũ reino nem ilha
nunca se vio trajo tal
com’ esta tua barguilha,
por teu mal,
mui vazia do ilhal.
Dom Alvaro d’ Ataide.
Barguilha de gram valia,
chea de lãa ou de pena,
por nom andares vazia
enche-te de carne ajena
ou t’ encherei de la mia.
Fizeste d’ ũ mao retalho
de borcado, feito em tiras,
pera pequeno tassalho
grande outeiro de mintiras.
Pelo qual logo ordena,
como nom ande vazia,
enche-a de carne ajena
ou t’ encherei de la mia.
Letreiro d’ Anrique d’ Almeida aa barguilha.
Aqui jaz o encurtado
que o mundo mal logrou,
aqui jaz quem nom pecou
contra Deos ũ soo pecado.
Aqui jaz quem nunca sono
fez perder a seu senhor,
aqui jaz quem a seu dono
nunca fez vender penhor.
Ponhamos-lhe por ditado,
pois tam maa vida passou:
Aqui jaz quem nom gostou
deste mundo ũ soo bocado!
O Coudel-moor ao letreiro.
Aqui jaz quem sempre jaz
dormente, mas nunca dorme,
leixem o viver em paz,
pois que jaz e nunca faz
de si forma em que enforme.
Aqui jaz quem sem comer
jaz em som mais que de farto,
aqui jaz sem se mover,
que jaz fora de poder
de matar ninguem de parto!
Dom Goterre por si às damas.
Assi me veja eu em Beja
muito aa minha vontade,
com’ isto vai com enveja,
mas nam jaa por ser verdade.
Senhoras, por meu repairo,
a quem nisto dovidar
eu lhe espero de mostrar
o contrairo.
588
DOM
JOAM MANUEL A ŨAS PAN‑
CADAS QUE DEU Ũ
TIPRE A Ũ
TENOR E ABADE, EM
PAGA
DOUTRAS QUE LHE JA
DERA, ENDERENÇA‑
DAS AO DUQUE
DOM DIOGO.
Ũa musica, senhor,
ouvi de que m’ espantei:
o tipre contr’ o tenor
cantarem: Aque d’ El-Rei!
Mas o tipre nam cantava
nem aguardava compasso,
o tenor mais que de passo
suas vozes altas dava.
O rifam: Aque d’ El-Rei!
A copra: Por Deos, senhor!
A torna: Moiro de dor!
O vilancete nam sei.
Manuel Godinho.
Porque jaa o abadam
co tipre nam acordava
fa, ut, tipre co bordam,
o tenor por cantochão
um descanto que soava.
O vilancete, senhor,
depois do Aque d’ El-Rei,
diz que dizia o tenor:
Qu’ eramaa vo-las eu dei.
Jorge Moniz.
O nosso tipre medrou
e tornou-se atabaqueiro,
o tenor mui mais vozeiro
do que soia cantou.
A cantiga escutei
e nam dizia o tenor
donzelha por cuyo amor,
mas sin vergonça con temor
Aque de Deos e d’ El-Rei!
Fernam Godinho.
Ooh que alto contraponto
e que baixa tam rastreira,
que encontro de tincheira,
que assentar de pesponto!
O solfar ficou menor,
segundo que certo sei,
oh quem vio pena maior,
tam grande como passei?
Tristam da Cunha.
O tipre nom aguardou
que fossem buscar estante,
como vio o tenor diante,
di avante
a musica começou.
Amor yo nunca pensé
descantava o tenor,
que tu levasses o milhor
fasta aora que lo sé.
Pedr’ Homem.
O tenor desacordava,
mas o tipre, por ser boom,
algũas vezes errava,
porque se nas costas dava
nam soava
e ficava em somitoom.
Peroo cantou o tenor,
depois do Aque d’ El-Rei,
nunca foi pena maior
que saber mão de cantor,
pois a mão do quanto sei.
O contador Luis Fernandez.
Sobre tres altas em supra
vi meter ũa terceira
assaz baixa na trincheira,
per modo de voz quadupra.
Caio com elas o tenor,
de maneira que cuidei
que os brados do cantor
deziam: Aque d’ El-Rei!
Joam de Montemoor.
Nunca tal cantor s’ achou,
segundo caa vai soando,
o que quem sobrepojou,
pois que quadupra cantou
quatro por ũa levando.
Meteo porlação maior
seis que terceira seis que sei
que lhe deram grande dor,
com as quaes cantou, senhor,
tres vezes Aque d’ El-Rei!
Rodrigo Alvarez.
Quando ouvi tal mistura
de vozes cuidei que era
pois com sobra de tristura
mi vida se desespera.
Quando a eles cheguei,
dizia o tipre: — Senhor,
se fogires, matar-t’ -ei!
E respondia o tenor:
— Aque de Deos e d’ El-Rei!
Bertolameu da Costa.
Nunca tipre assi cantou
de tal modo cantochão,
nunca jamais o errou
enquanto o tenor achou
cuidai que nom deu no chão.
Desacordava o tenor,
o tipre vos jurarei
que lhas pegou do teor
que vos em cima contei.
Rui Lopez.
De vós e de mim queixoso
o tenor ouvi cantar,
de vós, porque sois forçoso,
de mim, que sam tam gotoso
que nunca pude apildar.
A copra polo rumor
fee dela vos nam darei,
o vilancete, senhor,
certo foi Aque d’ El-Rei!
O Craveiro.
Setent’ anos ha que vivo,
mas eu nunca vi tal canto,
nam vi tipre tam esquivo,
nem vi dar tam gram quebranto
qual deu o tipre oo tenor
naquela rua d’ El-Rei,
que sem duvida foi maior
qu’ oo qu’ em Tangere levei!
Afonso Rodriguez.
Mangones, deeste pancadas
e Lopo bem te zopou
que se bõoas as levou,
aosadas,
que nam menos tas pegou.
E pois levaste sabor
em lhe dar as que eu sei,
comporta-te com a dor
do negro Aque d’ El-Rei!
Outra sua.
Creo que nunca s’ achou
cantiga de tal maneira
qual este tipre acertou:
todo um pão escodeou
ao tenor na caaveira.
Tive por morto o tenor,
na vontade o soterrei,
senam quando o vi, senhor,
que bradava Aque d’ El-Rei!
Duarte d’ Almeida.
O tipre vi que cantava
altas vozes: Mata, mata!
No tenor assi soava
a oitava como a quarta.
Era o cantar, senhor,
mais forte do que cuidei,
dava-s’ oo deemo o tenor,
dizendo com grande dor:
— Nom me val Deos nem El-Rei!
Rodrigo de Magalhães.
Quant’ eu nunca vi tal canto
nem tal rogido de vozes
e o de que mais m’ espanto
é ver que soava tanto
o compasso como as vozes!
E quando mais me cheguei,
ouvi cantar o tenor:
Cata que bom pagador
é, senhor, das que lhe dei.
Fernam de Crasto.
Quando vi ter oo tenor
um pontinho na meetade
da coroa d’ outra cor,
assentei caa na vontade
qu’ era porlação maior.
Cuidei qu’ era o Anos Dei
que cantava este tenor
da missa do L’ om’ armey,
senam quando ouvi, senhor,
dar brados Aque d’ El-Rei!
Gonçalo Gomez da Silva.
Quand’ oos brados acudi,
dizendo-vos a verdade,
o tenor cantar ouvi:
Et in terra paos a mi
deram de boa vontade.
Cheguei-me entam oo tenor:
— Como estais? — lhe preguntei.
E respondeo-me: — Senhor,
nesta terra nam ha i rei!
Lionel Rodriguez.
Nunca vi tal acertar
de tipre des qu’ aqui ando,
nem tenor tam mal cantar,
porque logo em começando
começou desacordar.
O que dezia escuitei
e vi cantar o tenor:
Com mortal sanha m’ irei
mostrar oo corregedor.
Afonso Valente e cabo.
Ũa sincopa ouvi
repartida por tal modo
e o que nela senti
no tenor a conheci
por ser a parte de todo.
A proporçãao mesurei
por diapasam que sei,
contando bem seu valor,
e do tipre ao tenor
doze compassos achei.
589
DE
NUNO PEREIRA A ŨA DAMA,
DA MANEIRA QUE LHE HAVIA DE
GUARNECER ŨA MULA EM
QUE
FOSSE, PARTINDO-SE EL-REI
PAR’ À BATALHA A FAZER
O SAIMENTO D’ EL-REI
SEU PAI, ETC.
Meus olhos e minha vida,
d’ hoje mais m’ havei por vosso,
vós sereis de mim servida
nesta ida,
senam s’ eu nada nam posso,
de mula e guarnimento
e sombreiro de guedelha,
que vós laa no saimento,
antre cento,
nom vejais vossa semelha.
Ũ macho vos tenho havido,
que traz Pero de Queiroos,
se o rabo for comprido,
desmedido,
dar-lh’ -emos ũ par de noos.
Qu’ ele nom seja perfeito
e as pernas tenha mancas,
ee besta de mui bom jeito,
e seu feito
é saltar em cima d’ ancas.
Todos sam azurradores
estes muus que assi sam,
se forem os servidores
maos andadores
a vooz dele seguiram.
Gabam-no de boom choutar
e praz-me por vós bem irdes,
mas se muito revelar,
ex apupar,
afora quando cahirdes.
Os guarnimentos d’ Irlanda
feitos de manto de Frisa,
do de Vasco de Miranda
tal qual anda
por nos mais matar de risa.
E será a funda da seela
de bancal com arvoredo,
e des i ex a burreela
com a donzela,
tal que ja agora hei medo.
A sela seraa mourisca
a deste mouro das pazes,
e eu vejo quem se chisca
da gram trisca
e da grita dos rapazes.
Mas vós ireis embuçada
d’ alfareme de cendal,
de tres moços aguardada,
mui olhada,
pois nom vai nenhũa tal.
Os moços iram vestidos
de pelotes gironados
mui largos e mui compridos,
guarnecidos
de tarramaques bordados.
Cada ũ sa carapuça
de gualteira com penacho,
cada um com sua chuça
e vós murça,
refoufinhando no macho.
Emnovar bem me queria
antr’ estoutros cortesãos
com cirios de confraria,
e mataria
encanados e nam sãaos.
E pois is bem arraiada
com tam gram prosperidade,
é bem que vades cantada
e levada
com levade ora levade.
Hei-de fazer o partel,
castelhanos dizem prato,
muitos coscorões com mel,
atee fartel
nam de galinhas nem pato.
E por fruita das castanhas
das colharinhas da Beira,
porque causam boas manhas
mui estranhas,
pera convidar praceira.
Cabo.
Por mercê querei, senhores,
com ajudas m’ acudir,
pois sabeis que sam amores
e servidores
que querem damas servir.
Ajuda dos galantes de algũas
peças que lhe ainda falecem
pera a partida e começa
logo Dom Goterre.
Seete varas de bragal
senhora, vos dou por touca,
porque em todo Portugal
nem em Arouca,
nam acharês outra tal.
Mantilha color de telha
como costumão na Beira,
e, por vos dar a conteira
más inteira,
levai peloina vermelha.
Senhora, minha irmãa
vos manda per’ eesta ida
um par de luvas de lãa
de Covilhãa,
por serdes dela servida.
E pois s’ esta cousa atiça,
nam seria cousa feea
tres voltas de linguiça,
ou souriça
oo pescoço por cadea.
O Conde de Tarouca.
Senhora, pois que tecido
esqueceo nesta receita,
eu vos mando ũ d’ empreita,
que de Ceita
me trouverão guarnecido.
E pois is per’ aa Batalha
a seer neste saimento,
ũs alforges com bitalha
que nemigalha
levai por avisamento.
Outra sua.
Nam seria muito mal,
se nam levasseis burel,
ũ chouriço por firmal,
qu’ em Portugal
nam ha tam doce joel.
Levareis por gargantilha
ũa gentil reste d’ alhos,
que seraa gram maravilha
em Sevilha
achar taes pendericalhos.
Jorge d’ Aguiar.
Joeira velha, quebrada,
levarês por açafate
de redor encanelada,
remendada
d’ um çambarco tal que mate.
E seraa bem guarnecida
do que pertenc’ oo caminho,
porque vades bem servida
e percebida
e me nam chameis mezquinho.
Outra sua.
Dou-vos mais ũa salsinha
pera ajuda da jueira,
d’ ũa coor garcesazinha
ou chichorrinha,
mas nam ha-de ser inteira.
E ũ pentem enredado
com seu vinagre e azeite,
per mil partes desdentado,
escadeado,
tal que lendem nam engeite.
Outra sua.
Ũ estojo com tanaz
e tisoiras e navalha,
porque se guedelha traz
e mester faz
que nam fique nemigalha.
E por verdes s’ is gentil,
com’ eu creio qu’ is oo cabo,
dou-vos espelho fendil,
que antre mil
vos julguem por qual vos gabo.
Do Conde de Vila Nova.
Pois tantas cousas levais,
eu dou-vos ũa guirlanda
e dar-vos-ei alvarais
com que hajais
ũa egua ruça panda.
Que o macho na jornada
vos ha logo de cansar,
porque nam come cevada
quasi nada,
e podeis a pee ficar.
Outra sua.
Se vos egua falecer,
buscareis o vintaneiro,
que logo faça trazer
e correger
um mui valente sendeiro.
Pera isto mostrareis
meu alvara, que levais,
e, se o nam der, tomareis
e trar-m’ -eis
estormento do qu’ achais.
Dom Joam de Meneses.
Levareis por almofada
ũ mui grande camareiro,
em que vades assentada,
perfumada,
pera vós de lindo cheiro.
Levarês de paao espora
soo ũ gram chapim d’ honesta,
os dedos dos pees de fora,
por agora
vos vades milhor da feesta.
Outra sua.
Dou-vos mais por servidores
dous diabos principaes,
e beijá-los por amores
dos favores
sej’ oo moor que lhe façais.
Por vos nam ver em trabalho
co eles nem alvoroço,
levarês dous dentes d’ alho
num chocalho,
por reliquias oo pescoço.
Outra sua.
Por fazer cousa ennovada,
irês oo reves na sela,
oo rabo mui bem pegada,
escanchada,
faça quem quiser burrela.
Tambem vos quero avisar
que leveis rebuço posto
polos nam desnamorar,
e guardar
que vos nam vejam no rosto.
Dom Rodrigo de Meneses.
Ũ cabresto enrodilhado
levai oo redor que mate,
almoface nele atado
com noo dado
tal que nunca se desate.
E daqui tee à Batalha,
vós e o macho comereis
dos farelos com da palha
ou nemigalha
e de noite ambos jareis.
Outra sua.
Levareis mais sobraçada
borracha chea de vinho,
a que deis gram topetada,
mui bem dada,
se cansardes no caminho.
Çarrar-vos-eis co que digo
e fazei por ser vermelho,
e havê-me por voss’ amigo,
Dom Rodrigo,
pois vos dou tam bom conselho.
Joam Rodriguez Pereira.
Vosso arreio vai inteiro,
bem ireis a Deos prazendo,
e eu dou-vos ũ pandeiro
alcancareiro,
que leveis na mão tangendo.
E dou-vos ũa crespina
de chaparia de latam,
porque sois dama mui fina
e bem dina
pera mais do que vos dam.
Afonso de Carvalho.
Por escusar zombaria
de galantes e donzelas,
o que milhor vos seria
é freiria
d’ Aaveiro, mas nam das Chelas.
Leixai vestidos e mula
e tod’ este mao repairo;
eu vos dou ũa cogula
per’ eescapula
deste vosso maao fadairo.
Diogo Moniz.
Ja vos nam falece al,
voss’ arreo vai machucho,
e eu dou-vos ũ atafal
dadival,
com estribo de capucho.
E se retrancas farpadas
quiserdes levar de caa,
de vossas cores bordadas,
debrumadas,
levai-as, tanto me daa,
e arralhaa.
Dom Fernando.
Dou-vos tavoas concertadas
e dou-vo-las de cortiça,
quebradas e remendadas,
mal atadas,
com atilhos de tamiça.
Porque quando vós sobirdes
nelas pera cavalgar,
vos vejamos, se cairdes
e descobrirdes,
o desonesto lugar.
Francisco da Silveira.
Segund’ is aparelhada
de tudo o que me parece,
pera vos nam minguar nada,
d’ abastada,
aquisto soo vos falece:
oo pescoço campainha,
por servidor Marramaque,
falar muito ant’ a Rainha
com bespinha
e sacudir ũ grão traque.
Outra sua. Fim.
O cheirar a raposinhos
seria cousa galante,
rimaria cos fucinhos
nestes caminhos
qu’ havês d’ andar d’ hoj’ avante.
Ireis toda d’ ũu jaez,
aas outras fareis enveja,
falaram de vós em Fez,
e mais de dez
fareis rir de vós em Beja.
590
DE
DOM GOTERRE AOS GIBÕOES
DE FERNAM DA
SILVEIRA E DOM
PEDRO DA SILVA, QUE FEZE‑
RAM DE BORCADO COM
MEAS MANGAS E CO‑
LAR DE GRAAM.
Sempre vivam suas famas,
destes jibões que fizestes,
com que tanto prazer destes
eestas damas.
Polo qual me dam cruzados,
mil presentes de lacõoes,
por lhe dar bem apodados
o vosso par de gibõoes,
do teor destes colhõoes
abrasiados.
Dom Rodrigo de Castro.
Eu disse qu’ eram corais
deles coma de centolas
ou bicos de tarambolas
ou d’ algũas aves tais,
ou pernas, pees de perdizes,
qual quiserdes destas tres,
ou os vermelhos narizes
de Jam Garcês.
Outra sua.
Senhores, se me tomais
as d’ onça de Pero Feo,
elas foram mais d’ arreo,
mas nam jaa tam cordiais.
Temos grandes presunções,
andamos mui abalados
de ter tam bem apodados
o vosso par de gibõoes
aguiarados.
O Coudel-moor.
Mais que francelha
andam os gibõoes maneiros
e decem, nam referteiros,
a ezcarlata que semelha
coor de telha.
Ũ pouco mais efaimados
do outro que se desdoura,
os gibõoes aguiarados
filharam polos costados
ũa toura
daquestes perros fanados.
Mas pardelha
assaz andam de roleiros,
pois decem a custureiros
d’ ezcarlata mal vermelha,
cor de telha.
591
DE DOM
RODRIGO DE MON‑
SANTO AO MONGI
COM
CAPELO DE DOM MAR‑
TINHO DE TAVORA.
Que nam venha bem a pelo,
eu venho bem espantado
de ver ũ mongi forrado
com capelo!
Era de pardo forrado,
vestido mui cortesão,
feito bem de sobremão
com mangas todo çarrado.
Cheguei-me por conhecê-lo
com mui bom dessimular
e nisto fui-lh’ enxergar
um capelo!
Por vos descobrir a cousa
e vos nam irdes em vão,
este era o filho meão
de Rui de Sousa.
Vi-lhe mui crespo cabelo,
vi-lhe vestido forrado
e fiquei maravilhado
do capelo!
Foi-lhe por mim preguntado,
por nam ir assi barrãao:
— Que nome lhe tendes dado
eeste vosso gabinardo
d’ ũa tam nova feiçam?
Respondeo-me com maa zelo:
— Senhor, é mongi forrado!
— Pois eu veijo-lhe pegado
um capelo!
Pero de Sousa Ribeiro.
Eu fiquei bem espantado,
se vistes bem amarelo,
d’ achar Tavora culpado
em capelo.
Eu estou tam mal sentido
que vos nom posso dizer
quanto me deu de prazer
ver um tam rico vestido.
Quem mo desse ainda vê-lo,
para ver
como se pode meter
o capelo.
Sua.
Que graça foi saber eu
que o pedio emprestado
e mui fino penhor deu,
ficando porem guardado.
D’ hoje mais lhe ponho o selo
de meu parente nom ser,
pois partio a socorrer
com capelo.
592
DE
DOM RODRIGO DE MONSAN‑
TO A LOURENÇO DE
FARIA, DA
MANEIRA QUE MANDAVA A
Ũ SEU ESCRAVO QUE
CURASSE ŨA SUA
MULA.
Lourenço comprar
pastel de pam alvo,
dizend’ oo escravo:
— Querer jaa chofrar.
Escravo com medo:
— Senhor, chofrarei.
Lourenço azedo:
— Asinha, Dom Perro,
azpera molei!
De Joam Fogaça.
— Senhor, mi alçar
cuberta de rabo
vós estar diabo
com tanto mandar!
— Cam arrenegado,
eu te matarei!
— Sem rabo lavado
e cono chofrado,
m’ hei-d’ ir para El-Rei!
593
DE
DOM RODRIGO DE CRASTO E
FERNAM DA
SILVEIRA E JOAM FO‑
GAÇA A JOAM GOMEZ DA ILHA,
PORQUE VIRAM Ũ CAVALO
COM ŨAS ALCALADAS E
SOUBERAM QUE ERA
SEU E QUE ERA
VINDO ELE
DA ILHA.
Polas vossas alcaladas
soubemos qu’ ereis chegado,
as quaes nam sejam mostradas,
mas caladas,
por nam ser de voos falado.
Ca desta terra o zombar
é tam bravo e tam forte
que quem dele escapar
ha-de passar pola morte.
Ora sem nenhum receo,
por noss’ amor e respeito,
nos dizei do voss’ arreo
se foi na Ilha confeito
coma feito.
Ca vos juramos pardez
que vos nam veio d’ aalem,
que tal feiçam de jaez
nam se traz em Tremecem.
Reposta de Joam Gomez polos consoantes.
Pois vos parecem erradas
as tenções de meu cuidado
e per trovas mui delgadas,
bem trovadas,
sam per vós desenganado,
em vós me quero louvar
peroo que pena soporte,
posto que de motejar
eu haja onze por sorte.
Por um parecer alheo,
mais que quantos vi perfeito,
meu jaez fermoso ou feo
foi na Ilha contrafeito,
de seu jeito,
aa guisa de Miquinez,
a for de mouro focem,
das onças passa de dez,
todas mociças d’ argem.
594
RODRIGO DE CASTRO, PORQUE
TRAZENDO MUITO GRANDE
BARBA POR SEU IRMÃAO
DOM FERNANDO A FOI
RAPAR AA NAVALHA.
Houve ledice sobeja
da nova que me foi dada:
qu’ a vossa barb’ ee rapada
e rasada
que muit’ embora vos seja!
E quero saber primeiro
s’ estava i Joam Fogaça
e se vos disse o barbeiro
em acabando: — Prol faça!
Que assi eu prazer veja,
deveerá ser festejada
a tua barba rapada
e rasada
que muit’ eeramaa te seja!
De Dom Alvaro d’ Ataide.
Para namorar Don’ Ana,
que nam é peca,
compre barba d’ Afonseca
ou dos de Santa Susana.
Polo qual de ti moteja
e estaa mui abalada,
da tua barba rapada
e rasada
que muit’ emboora te seja!
De Dom Goterre.
Nam cureis de tomar vozes,
cuidai se a nam vendeis,
que compriraa qu’ espereis
o tempo dos biaroozes,
que laa vem outra vendeja.
Tende-a bem encrespada,
porque barba penteada
e anafada
no Carmo muito s’ enteja.
O Coudel-mor.
Mandai-a guardar mui bem
e fiai-vos vós em mim,
porqu’ o Corpo de Deos vem
e comprar-vo-l’ -aa Jooquim,
que é velho e parvoeja
e traz ũa jaa çafada
e a vossa penteada,
anafada,
é tal qual ele deseja.
De Dom Pedro d’ Ataide.
Quando me dizem rapada,
eu embuço,
que cuidei qu’ andava atada
no toutuço.
Porem como quer que seja,
quer postiça quer criada,
eu hei por graça sobeja
aa navalha ser pinchada,
arrasada,
que muit’ eeramaa te seja!
Dom Rodrigo de Monsanto.
Eu logo daqui o digo
que s’ alguem for co barbeiro,
qu’ hei-de ser com Dom Rodrigo
atee ficar no terreiro
derradeiro.
Qu’ a navalha foi sobeja,
destemperada,
que rapou toda a papada,
bigodes, mea queixada
e gizou laa pelooreja,
que muit’ eeramaa te seja!
De Fernam da Silveira e fim.
Que sejamos norte e sul
dizei por vida daleme
se saistes muito azul
dos punhos do alfageme.
Que nam poode ser que seja
senam que cor anovada
vos ficasse da rapada
tam escamada,
que muit’ eeramaa vos seja!
595
DE
DOM JOAM DE MENESES, EM
NOME DAS
DAMAS,
AO CONDE
DE VILA NOVA E A ANRIQUE
CORREA, QUE FIZERAM
CARAPUÇAS DE
SOLIA.
Nam sei mal que nam mereça
quem vos fez tal zombaria,
que vos meteo na cabeça
carapuça de solia.
Se vos enganou Agosto,
somos-lh’ em obrigaçam,
por fazerdes envençam
de que temos tanto gosto
e de vós nam.
E mais diz Dona Maria
qu’ ee rezam que lh’ avorreça
a quem metem em cabeça
carapuça de solia.
De Pedr’ Homem a Anrique Correa.
Se a fizestes por leve,
é pesada,
se por doce, é salgada,
se por fria, é de neeve.
Que a vós nam vos pareça,
nam foi pequena ousadia
quererdes trazer de dia
carapuça na cabeça.
O Conde de Tarouca.
Desse pano e desse forro
eu fizer’ antes pelotes
ou caçotes,
porque por vós eu me corro
de lhe ver dar tantos motes.
Qu’ ee ja tanta a zombaria
e touraria,
qu’ ahinda que mais nam creça
dá-lh’ o vaao pola cabeça
de solia.
Dom Joam a ambos.
Falai com este truãao
qu’ aqui cura de mao aar,
se vo-las pode tirar
assi como levaçam,
e se nam
El-Rei vos manda apartar
antes que mais dano creça,
porque s’ acha em solorgia
que s’ apega esta solia
como bubas na cabeça.
O Camareiro-moor.
Par Deos bem vos soub’ armar
quem em tam pouca solia
vos fez ambos embicar
e cair juntos nũ dia.
Foi tam grande zombaria,
que nunca creo qu’ esqueça,
enquanto i houver solia
ou cabeça.
Sua por Briatiz d’ Azevedo.
Juraria por minh’ alma
que nunca se vio tal jogo,
pois por fogirdes à calma
destes convosco no fogo.
Ainda m’ afirmaria
que nam sei o que pareça
ũu habito de solia
na cabeça.
Jorge de Vasco Goncelos.
Eu nam lhe dou muita culpa,
qu’ alvoroço lha fez fazer,
mas o nam se conhecer,
aquisto nam tem desculpa.
Conheça eramaa conheça
que fez maa galantaria
e quem lhas fez merecia
muitos couces na cabeça.
Manuel de Goios a ambos.
Quem vo-las fez, a verdade,
nam é a ninguem culpado,
pois a vós fez a vontade
e a nós perdei o cuidado.
Este mal vem da cabeça
e meu conselho seria,
porqu’ ao corpo nam deça
que cureis a fantesia.
Sua a Anrique Correa.
Dona Joana me disse
que vos podia dizer
que, se vo-la ela visse,
que se veria morrer.
Diz qu’ haa medo qu’ esmoreça
e jurou-me que queria
antes ver-vos sem cabeça
que com ela com solia.
Jorge Furtado.
Senhores, sem culpa sam
por ser de menor idade,
pera conselhar irmão
tam feito à sa vontade.
Se mal fez, que o padeça,
pois em si tanto se fia,
que meteo sua cabeça
em poder de maa solia.
Antonio de Mendoça.
Irmão que ha-d’ ensinar
os mais moços por mais velho
e que haa-de dar conselho,
para lho homem tomar,
nam haa tam rijo d’ errar.
E bem que nam lh’ obedeça
nem lhe fale mais ũ dia,
pois fiou sua cabeça
d’ ũu covodo de solia.
Outra sua e fim.
E sabeis que lhe custou,
trazendo-a muito pouco,
co ela nada ganhou
e ficou
para sempre dali mouco.
E rezam que o padeça,
pois lhe veio a fantesia
querer trazer na cabeça
carapuça de solia.
596
DE
DOM JOAM MANUEL A LOPO
DE SOUSA, AIO DO
DUQUE, VINDO
DE CASTELA NO VERAM COM ŨA
GRANDE CARAPUÇA DE VELU‑
DO, QUE OS CASTELHANOS
CHAMAM GANGORRA.
Rifam.
Dessa gangorra faria
ũu gibãao
ou a traria na mão.
É cousa chãa coma palma
que quem vo-la vir trazer
e vós, qu’ haveis de morrer
ũu de riso, outro de calma.
Na cabeça a nam traria
e na mão
traria antes ũu jibam.
Outra sua.
S’ outra tal soma de pano
entrar por Riba de Coa,
receberãao muito dano
os rindeiros daquest’ ano
d’ alfandega de Lixboa.
Mas muito mais perderia
ũ cortesão
em trazer tal envençam.
Do Baram.
Em tempo d’ El-Rei Duarte,
dizem que foram usadas
mui grandes caperutadas,
mas nunca foram dest’ arte.
Polo qual desta reria,
com razam,
que fosse de meu irmão.
Outra sua.
Mas pois qu’ esta feita é,
compre qu’ outra se nam faça
e desta se faça graça
ao porteiro da See,
para trazer co a maça.
E contudo lhe diria
qu’ em Verão
sempre a traga na mão.
Pedr’ Homem.
Saiba todo portugues,
porque tal trajo o nam vença,
qu’ estas vêm d’ ũa doença
que se chama mal frances:
pegou-se da frontaria
a Perpinhão,
morreo logo o capitão.
Outra sua.
Ó gorra de grão valia,
quem t’ a ti bem contemprasse,
inda qu’ em terra t’ achasse,
nunca se levantaria:
à ũa nam poderia,
a outra rezão
preguntem ò de Guzmão.
Rui de Sousa.
Sobrinho, nam vos pareça
qu’ estais em Valhadoli,
caa nam trazem na cabeça
tres varas d’ azeitoni.
Eu a vós perdoaria,
mas foãao
nam digo quem nem quem nam.
Dom Joam de Meneses.
Quem teus males bem soubesse
e te visse como vi,
dovido que te trouxesse,
ainda que se lhe desse
ũu reino todo por ti.
Que nam te levantaria
Dom Johãao,
em que t’ achasse no chão.
Outra sua.
Quem vio nunca purtugues
que gastasse tanto pano
em ũ tam mao entremes?
Que mais fizera ũ frances
ou castelhano?
Foi mui grande grosaria
e gorra nam
fazer-se tal envençam.
O Conde de Tarouca.
É mui alta e poderosa
por detras e por diante,
seca d’ aar e mui calmosa,
das ilhargas perigosa
pera rirem d’ ũu galante.
Da face dela faria
barquilãao
ou do forro ũu balandrãao.
Outra sua.
Esta gorra me semelha
que devia ser geerada
nũa gram caperotada,
cavalgada
d’ ũu sombreiro de guedelha.
Polo qual a nam trairia
no Verão,
senam se fosse na mão.
Jorge da Silveira.
Nam é trajo de galante
para meter em terreiro,
inda qu’ escuse sombreiro
por soãao nem por levante.
Mas antes dela faria
ũu gabãao,
pois errou de ser jubãao.
Do Conde de Vila Nova.
Ũus perguntam que teraa
de cera, linhas e pano,
mas se me eu nam engano
quatro quintais pesaraa.
Por isso antes traria
ũ piastrãao
na cabeça ou na mão.
Jorge de Vasconcelos.
Porque caa nam se pegasse,
seria muita rezão
quem de Castela chegasse
que na corte nam entrasse,
sem trazer recadaçam.
E disto logo faria
ordenação
de fidalgo atee piãao.
Vasco de Foes.
Nam deve ninguem zombar,
pois faz Deos por milhor tudo,
mas deve-se d’ espantar
qual foi o que foi achar
fazer pasteis de veludo.
Os quaes eu nam provaria
no Veraão,
com medo d’ algum cajão.
O senhor Dom Afonso.
Com’ estara rependido
quem naqui portou primeiro,
fora-lhe melhor vendido
o sobejo a bom dinheiro.
É propia galantaria
de castelãao,
que nunca foi cortesãao.
O Coudel-moor.
Que nam seja de trazer
este trajo com qu’ entrastes
porque é d’ escarnecer.
Tod’ esta corte obrigastes
sobre aposta a nam traria,
nem na mão
té nom passar o Verão.
Sua.
Nam digo ser ardideza
meter em corte real
peça que nam tem igual
em sabor e em grandeza.
D’ ũu quarto dela faria
ũu gibão
e o mais fiqu’ em trufão.
Outra sua.
Renego de louçainha
que consigo traz aviso,
que faz logo volvorinha
com que mata mil de riso.
Em arcaaz a fecharia
com chavão,
tee fazer dela gibão.
Afonso Furtado.
Bem era de recear
tal trajo, se s’ apegasse,
e homem que o louvasse
mais dino de castigar.
Log’ hoje dela faria
ũu gibão,
mas nam ja pera Verão.
Anrique Correa.
Antes que mais dano creça
daquesta negra gangorra,
dêm co xastre na mazmorra.
E a quem na traz na cabeça
outra pena nam daria
senão
que a trouxesse ũ Verãao.
Antonio de Mendoça.
Qu’ em Castela se custume,
em Portugal eu concrudo
que, segundo seu pesume,
fará muito mor velume
de trovas que de veludo.
E por isso a leixaria
a Dom Joam,
que nam mostrasse o rifam.
Dom Martinho da Silveira.
Se riso, prazer nos dais,
a carapuça o padeça
e guardai de a pôr mais,
que perdereis a cabeça.
Venda-se na judaria
e acharão
por ela mais d’ ũu milhão.
Sua em nome dos rindeiros d’ alfandega.
Senhor, mande Voss’ Alteza
tornar-se Lopo de Sousa,
que por causa desta cousa
nam vêm galés de Veneza.
A fama lá chegaria,
e é rezão,
deste grão carapução.
Sancho de Pedrosa.
Esta negra cubertura
menos mal que dizem faz,
pois aquele que a traz
nestes dias tanto dura.
Oo que gram graça seria
castelão
com gangorra no serão!
Anrique Anriquez.
Eu vi ja cem mil maneiras
de trajos bem cortesãaos
e tambem vi cidadãos
vestidos d’ alvas cordeiras.
Mas nam vi nem ver queria
envenção
tam fornida no Verão.
Francisco de Sampaio.
Carapucinhas d’ olão
e barretinhos singelos
seram estes caramelos
que de frio os matarão.
Nam se faça zombaria
e sacaram
outra forma d’ envençam.
Simão de Miranda.
Quem na traz por carapuça
de siso a Portugal,
trouxer’ antes ũa murça
ou mitra pontifical.
Mais honesto lhe seria
ser ladrão,
que ver-lha trazer na mão.
Nuno Fernandez d’ Ataide.
Eu nam sei pera que seja
ũa tam gram diadema,
senam pera na igreja
pendurar antro vos dema.
Que é certo que faria devação
ver ũu tal carapução.
Jorge Barreto.
Nam se poderá fazer
envençam mais a meu grado,
para milhor poder ser,
quem na trouxer, apodado.
Digo que a nam traria
nũu serão,
por me darem ũ milão.
Dom Manuel.
Se trouxerdes no Verão
tres varas de terçopelo,
nam vos ficará cabelo
que vos nam leve na mão.
E crede que nem tanquia
com sabam
mais prestes vos peleram.
Dom Gonçalo Coutinho.
Quando per escaramuças
nam poderam fazer danos
franceses a castelhanos,
lançaram-lhe carapuças.
E com esta sajaria
ficaram
com elas por maldiçam.
Joam Falcam.
A tesoira do judeu,
que cercea mil pelotes,
por dar mais lugar òs motes
ainda nela nam deu.
Da volta soo se faria
ũu faixam
que cercasse o calação.
Dom Joam de Moura.
Gorra de parminias,
segundo as novas qu’ ouço,
eu te farei ũu gamouço
primeiro que tu te vas.
Quem al tem na fantesia
é cibrão
assi com’ eu sam cristão.
Pero Moniz.
Antes me trosquiaria
como anda Vasco Palha,
porque tal galantaria
parece ser zombaria
feita per mão de missalha.
Assi que m’ afirmaria
sem afeição
qu’ a gangorra é de Milão.
Rui de Sousa, o Cide.
Qu’ aqui nam seja defeso,
a ninguem nam aconteça
fiar de sua cabeça
cousa de tamanho peso.
Antes m’ aconselharia,
porque nam
desse com tudo no chão.
Manuel de Goios.
Se Martim Telez vivera,
em Castela nam s’ achara
quem tal cousa cá trouxera,
que o logo nam pagara.
Se a visse, matar-s’ -ia
com sua mão
o bisconde Dom Joam.
Dom Lopo d’ Almeida.
Eu nam sei a quem pareça
que tam poderoso é
que possa ter na cabeça
o corucheo desta see.
Nam creo que poderia
Sansão
trazê-la todo ũ Verão!
Dom Garcia de Castro.
Esta gorra é precedente
a todo trajo galante,
se nam fosse repunante
par’ a saude da jente.
Ja diz Antam de Faria
qu’ em Mourão
morreo delas ũu vilão.
Antam de Faria.
Se nam fosse por pendença,
eu certo nam na traria,
peso com que Dom Garcia
nunca fará reverença.
Porque mais leve seria
o morrião
com qu’ ele foi ter ò chão.
O Marquês.
Eu houv’ outra tal tiara,
quando fui feito marquês,
mas, se tam caro custara,
marquesado nam tomara,
se nam fora em que me pês.
Ant’ outra vez tomaria
Tutuão
que tomar esta na mão.
Desculpa de Lopo de Sousa.
Eu me tenho por sesudo,
pois por nam pagar direito
de seis peças de veludo,
meti em vestido feito.
Ca sem isto o meu metia
em condição,
por mingua de descrição.
Reposta do Conde de Portalegre.
Nam sei tal caso com’ esse
a quem nam pareça mal,
que soo por vosso intaresse
danes todo Portugal.
Cal lá em Andaluzia,
daqui nam,
vós irês sem poniçam.
Pero Farzam Buscante.
Senhores, leixá-las vir,
nam corra ninguem de rosto,
leixá-las chegar a Agosto,
fartar-nos-emos de rir.
Soltem-lhe da vozaria
o rifam,
as trovas o correram.
Antam Diaz, monteiro.
Fazer todos gram calada,
eu a erguerei por trela,
e depois d’ alevantada
leixá-la passar a armada,
que se nam torn’ a Castela.
Que grande dano faria,
num Veram,
escapar tal envençam.
Dom Alvaro d’ Ataide.
— Gangorra, porque vieste
de Castela a Portugal?
Pois é certo que fizeste
a quem te traz muito mal.
Por te trazer merecia
ũ coscorram
aa corte de Roselham.
Outra sua.
Gangorra, senhora mana,
que ousadia foi esta,
que vós nam soes para festa
nem menos para somana?
Que fosseis vós de tauxia
nem motam,
nam vos traria na mam.
Outra sua.
Afirma o gram monarca
filosofo sabedor,
que se chama Luis d’ Arca,
das Pias comendador,
que por feesta antes leria
porluçam
que trazer carapuçam.
Pergunta de Jorge de Vas‑
concelos a Lopo de
Sousa e fim.
Dizei-me como trouxestes
tam longe de Portugal
ũu peso tam desigual,
pois que por maar nam viestes.
Eu nam sei como se meta
na cabeça co a mam,
senhores, tal envençam,
qu’ haa mester ũa carreta
para a trazer nũ seram!
E pois por maar nam viestes
tam longe de Portugal,
como tam descomunal
gangorra trazer podestes?!
597
DE
DOM ANTONEO DE VALHASCO,
ESTANDO EL-REI
NOSSO SENHOR
EM ÇARAGOÇA, A ŨAS CEROI‑
LAS DE CHAMALOTE QUE
FEZ MANUEL DE NORO‑
NHA, FILHO DO CAPI‑
TAM DA ILHA DA
MADEIRA.
Rifam.
Que se pierda la memorea,
no es razon,
senhor, de tal invencion.
Si son ceruelas deveras,
Manuel fue contra la ley
en no las lhevar a El Rey,
pues que fueron las primeras
y tambien seran postreras
de razon
o si no es por maldicion.
Otra suyo.
Sepa todo cortesano,
porque par’ otras s’ acuerde,
que calças de raso verde
causaram muerte a Lezcano.
Pues miraa quanto es más sano
el veludo en Aragon
que los chamilotes som.
Otra suya.
En este mundo mezquino
ved las cosas como vam:
ya se calça el cordovam
sobre chamilote fino.
Es assi que ahun ayer vino
a ser garçon
y sacó tal invencion.
Otra de Dom Antonio.
Porque quereis que se hable,
senhores, en estas trobas
de que haremos las lobas
si lo sab’ el Condestable.
Chamilote razonable
valdria más para ũu jibon
que de borcado ũu ropon.
Otra suya.
Ya vi calças de demasco,
de que huve gram manzilha,
y oí dizer em Castilha
de Dom Sancho de Valasco.
Mas no tuvo fantasia
ni presuncion
qu’ hoviesse tal invencion.
De Dom Alonso Pimentel.
Las vuestras calças, senhor,
elhas andam em lugar
que merecem bien andar,
pues no puede ser pior.
A tal ceo tal favor,
es razon
que se haga al envencion.
Otra suya.
De ver cerca el chamilote,
el jubon toma desmaio
y tambien recela el sayo
que le quepa algun’ açote.
Que quien lhieva tanto mote
de invencion,
el temelhe es gram razon.
Otra suya.
El que s’ atrevió passar
hondura de tanto mote,
por aguas de chamilote
pasaraa las de la mar.
¡Ooh que malo es navegar
sim guion,
senhor, por tal invencion!
Otra suya.
Vos traes calças de risa,
porque son de chamilotes,
tambien son calças de motes
que son pior que de frisa.
Si se saca la pesquisa
delh’ envencion,
que mueraes es gran razon.
Joam Fogaça.
Muitos trajos se fizeram
dinos de riso e de mote,
mas calças de chamalote
nunca jamais se trouxeram.
Sempre ficará memoria,
com rezam,
senhor, de tal envençam.
O Camareiro-moor.
Soes, senhor, tam enganado
com ceroilas deste pano,
que ũu mes desencalmado
vos causou ser apodado
todo anno.
Antes quero nam ser sano,
em Aragam,
que fazer tal envençam.
Inhigo Lopez.
Seguilde que va herido,
no tengais temor de nada,
que la yerva es muy provada,
por ahi estará caido.
Ha gran rato que es corrido
con razon
a causa del envencion.
Dom Rodrigo de Mocoso.
Se fue traje por mais frio,
fue desordem de codicia,
y se fue por desvario
quiça que tuvo justiça.
Que muriesse sin malicia
es razon,
de tan pesada invencion.
Otra suya.
E muy justo Emanuel
en chamilote calçado,
porque fuesse reparado
el burlar burlando del.
Fue más dulce que la miel
esta invencion,
para nuestra redencion.
Curelha.
Sedme testigos, senhores,
como Manuel de Noronha
muere de pura ponçonha
y no d’ amores.
Pequenhas son las calores
d’ Aragon
pera tam fresca invencion!
Pero Fernandez de Cordova.
Posistes en albolote
este reino y en debate,
en fazer al chamilote
en tierra de guardalate
pusiesse forca y açote.
Pues vos pagais el escote,
senhor, desta alteracion,
nos calceis por aficion.
Dom Joam de Meneses.
Tam secretas las traya
como si fuessen de malha,
que quien tal invencion halha
halharaa quien delha ria.
Yo antes las sacaria
em ũ jubon
otra vez por invencion.
Otra suya.
— Senhor mio ¿como estais?
— Muito mal,
pois que vim de Portugal
a vos dar de que riais.
— Vos burlais,
pues cumpleos que tengais
buen coraçon,
que teneis mala invencion.
Outra sua.
Nas aguas de chamalote
pareceo seu mal sem cura
e corre risco de morte
soo de frio sem quentura.
Oh que grão desaventura
de garçam
morrer de tal envençam!
Gonçalo Mendez Çacoto.
Boons galantes escolhidos,
d’ envenções inventadores,
conheci grandes senhores,
mas nam ja tam atrevidos.
Nem nos vi ser tam providos
que das Ilhas na memorea
esta envençam
trouxessem té Aragam!
Outra sua.
Ó calças, tu nam me mentes,
eu entendo estas chamas,
se te bem virem as damas,
todas bateram nos dentes
de frio, que nam de quentes,
com razam,
pois de dentro mais o sam.
Dom Rodrigo de Sande.
Depois de bem apodadas,
cheas de pena e de mel,
seram logo empicotadas
ou enforcadas
pois nos gastaram papel.
Fora milhor d’ ouropel,
meu coraçam,
esta vossa envençam.
Outra sua.
E dai tres figas aa morte,
se vós nam andardes quente,
que nam sabe esta jente
que calças de chamalote
sam mais frias que o norte.
E é cousa tanto forte
em Aragam
mais que de Peropinhão.
Anrique Correa.
Esta cousa é muito dina
para no tombo jazer,
haa mester qu’ a Rui de Pina
se faça logo saber.
Por ficar dela memorea
é rezam
que s’ escrev’ esta envençam.
Outra sua.
Os feitos tam assinados
levam-nos todos a Frandes,
pera virem fegurados
como cousas muito grandes.
E pois esta é de groria,
é razam
que vá lá esta envençam.
Outra sua.
Porque dizem qu’ o mal voa,
era bem que se tirasse
ũu estormento
e que se leve a Lixboa,
ante que nela entrasse
esta nova de tormento.
E por honra de vitoria,
é rezam
que riam da envençam.
Dom Duarte de Meneses.
Foi cousa muito mais fea
fazerdes de chamalote
envençam de tanto mote
que beijar mãos aa candea.
Nem sei dama que as crea,
nem vos queira com rezão,
se vos vir tal envençam.
Antonio de Mendoça.
Se sois, senhor, enganado
com ser frias, fazeis mal,
qu’ andareis mais afrontado
de zombado
que se fossem de saial.
Se levais a Portugal
tal envençam,
aas Ilhas vos mandarão.
Simão de Miranda.
Amei mais o chamalote
que lila nem guardalate,
que fiz calças d’ ũ pelote
de que jaço de remate.
Nam fizera Marramate
esta envençam
nem o grão Pero de Lobam!
Outra do Camareiro-mor.
Quando de zarzagania
se fizerão outras tais,
eu vi ũa profecia,
que dizia
que quem vivesse veria
outras mais especiais.
E porqu’ estas o sam mais,
com rezam
riremos de cujas sam.
Nuno Fernandez d’ Ataide.
Fizestes tais entremeses
nestas calças que trazeis,
que juram aragoneses
qu’ as cortes durem tres meses,
se vós nam vos corregês.
Assi que vós nos fareis,
com rezam,
invernar em Aragam.
Outra de Joam Fogaça.
Digo, padre, que pequei
e sam perdido
da envençam que saquei,
de que sam arrependido.
Nam tenho dela vãa groria
mas contriçam,
que pequei por envençam.
Outra de Simão de Miranda.
Minha culpa digo mais
que pequei de confiado,
sendo bem aconselhado
fiz ceroilas cordiaes.
Disto, padre, nam riais,
mas dai rezam
pera minha salvaçam.
Outra de Gonçalo Mendez Çacoto.
Nam é bem que ò padre peça
remissam de tantos danos,
pois vivendo dez mil anos
nam é cousa que esqueça,
qu’ ũa graça des qu’ empeça
em rifam
cada ũu a traz na mão.
De Manuel de Noronha
a Dom
Antoneo de Valasco, sobre
o rifam que lhe fez.
Rifam.
Antes que de chamalote,
fizera desse rifam
ceroilas par’ o Veram.
E mais das copras farei
outra loba de que ria,
que seja quasi tam fria
com’ a curta de solia,
que vos eu ja perdoei.
E assi escaparei,
nas copras e no rifam,
das calmas deste Veram.
Outra à loba curta
de solia,
que fez Dom Antonio.
Eu vi loba de solia,
que me pareceo razam
nam lembrar pera rifam.
Da vossa barba rapada
quanto é o qu’ eu diria,
eu a hei por quasi nada
pera a loba de solia.
Dai ò demo a fantesia
e toda vossa descriçam,
pois a loba é tam fria
que nam lembra o rifam.
Outra sua.
Eu vi viuva anojada
com outra tal envençam,
mas com barba tam rapada
nunca vi ja cortesão.
De morrer desejaria,
e seria gram razam,
pois que fez loba tam fria,
tendo ja feito o rifam.
Outra sua.
D’ algũs destes trovadores
nam quero ser ajudado,
antes soo com minhas dores
que tam mal acompanhado.
Em que m’ hajam por culpado,
a isto m’ atreveria,
pois que é tam condenado
o da loba de solia.
Do coudel-moor Francisco da
Silveira, estando em Portugal,
a estas ceroilas de Manuel
de Noronha, as quaes
mandou a Castela.
Rifam.
Grande corte de Castilha,
nam hajaes por maravilha
Manuel calçar-se mal,
que nam é de Portugal,
mas é da Ilha.
Enganou-se por Verão
e foi lá em forte ponto,
cuidando qu’ em Aragam
nam havia cortesão
que de rir viesse a conto.
Mas de laa ou de Sevilha,
parece por maravilha,
acertou algũ ser tal
que quis rir de Portugal
e rio da Ilha.
Com’ ele da Ilha veo,
se soube cá por seu sino
que de chamalote fino
faria calças d’ arreo.
Mas haa-se por maravilha
serem feitas em Sevilha
e culpar-se em Portugal:
pague laa, pois fez o mal
em Castilha.
Cuidaram nos castelhanos
que nos tinham ja na rede.
Ora crede
que somos cá tam oufanos
que nam calçamos tais panos.
Em caçotes, em fraldilha,
em jubões, em tabardilha,
em outros deste metal
se gastam, e nam tam mal
como em Castilha.
A quem taes ceroilas fez
se devera perdoar
por esta primeira vez.
E dando-lh’ este lugar
em outra o foreis tomar.
Dig’ oo Conde de Tendilha
e a senhora Bobadilha
se da Ilha do Funchal
foi homem tam por seu mal
a Castilha.
Estava fora do rol
e destes motes isento,
e meteo requerimento
com que nam fez sua prol,
mas ante seu corrimento.
Compoer, senhor da Ilha,
pois por força na quadrilha
vos fostes de Portugal
a envencionar mal
a Castilha.
Compre que vos desculpeis,
tomando a culpa por vossa,
sem s’ haver nada por nossa,
pois que soo a mereceis.
E compre que Calçadilha
no sermão diga em Castilha,
em voz alta, especial,
que nam soes de Portugal
mas soes da Ilha!
Fostes lá muito aramaa
para vos fazer tal cousa,
que a vós dano traraa
e que nam vos valeraa
Pereira, Silva nem Sousa.
Milhor vos fora em camilha
jazer curando ũa asilha
ou vos tornar oo Funchal,
que com trajo tam sem sal
ir a Castilha.
Ajuda de Jorge d’ Aguiar.
Cuidei que como passasse
d’ ũa poesia vana
ou de trovas de mangana,
nam s’ achasse em Triana
quem de ceroilas trovasse.
Mas pois o paço se filha
per Valasco e Bobadilha
a causa d’ ũ trajo tal,
nam se deva ver por mal
Marramaque ir a Castilha.
Os trajos naquesta terra
sam sempre tam escoimados,
que quem na feiçam os erra,
inda que sejam borcados,
ness’ hora sam apodados:
como ouvistes da barguilha,
nas entradas de Castilha,
do filho do Marichal,
que as calçou por seu mal
com’ as ceroilas da Ilha.
Mas somos tam piadosos
e de tam boa naçam,
que vêm cá mil esquinosos
com trajos mui mais melosos
do qu’ estas ceroilas sam;
mas por ter deles manzilha
e de todo o de Castilha,
quebramos o rir em al,
e vós laa is tratar mal
ũ inocente da Ilha!
Duarte da Gama.
Porque quer ninguem dizer
mal daquesta vossa cousa,
pois a vid’ ha ja de ser
tam certo como o morrer
em Castela Rui de Sousa.
Quisereis mais afeiçam
do irmão
do craveiro de Padilha
que fazer tal envençam
em Castilha.
D’ hoj’ avante antre nós,
quem for mal envencionado,
será mui bem apodado
e por força degradado
pera vós.
Porque dentro em Aragam
e em Castilha,
saibam qu’ esta envenção
fez de vós rir vosso irmão
lá na Ilha.
— ¿De qué las lobas haremos?
Dom Antonio preguntou,
como quem nam se lembrou
qu’ o Condestable sacou
ũa roupa que sabemos,
a qual foi de gram frisada.
Mas por ser laa de Castilha
nam foi nunca apodada,
merecendo ser trovada
mais qu’ as ceroilhas da Ilha.
Jorge da Silveira.
Nam sintais o rir de caa
nem mote que a vós vaa,
que milhor é qu’ em vós falem
que dizerem que nam sabem
se fostes laa.
Como dizem em Sevilha
e assi por toda Castilha
que de todo Portugal
nenhum homem nam foi tal
como o da Ilha.
Diogo Brandam.
Muito mal se conformou,
com cousas de sua terra,
quem tais calças enventou
por nossa guerra.
Porque como se criara
em cousas doces comer,
desta Ilha,
delas mesmas se calçara
e escusara
o zombar e escarnecer
de Castilha.
Neste trajo s’ afirmou
qu’ os da Ilha faram tudo,
que ja lá outro s’ achou
que frisou
duas peças de veludo.
Desta vez que foi aa Ilha,
desembarcou em Sevilha
sem tocar em Portugal,
e por isso o fez tam mal
em Castilha.
Joam Gomez d’ Abreu
ao rifam de Castela.
Quem havia lá, senhor,
d’ enventar essa frieza,
senam quem de natureza
era frio e sem sabor.
Antes eu sofrera dor
de quentura em Aragam
que sacar tal envençam.
Nam trarei jamais de cote
seda preta nem de cor,
pois quem quer no salvanor
mete ja bom chamalote.
Nam deseja ser maçote
em Aragam
quem sacou tal envençam.
Fim.
A El-Rei seraa castigo
este trajo de Noronha,
que nam leve mais consigo
quem no meta em vergonha.
Dêm-lhe, dêm-lhe lá peçonha,
que, se escapa este Verão,
sacará outra envençam.
598
DESTES
TROVADORES ABAIXO NO‑
MEADOS A NUNO
PEREIRA, POR ŨA
CARTA QUE ESCREVEO AO PRIN‑
CEPE E PÔS-LHE NO SOBRE‑
ESCRITO: PER’ ALTEZA
DO PRINCEPE NOS‑
SO SENHOR.
Do Coudel-moor.
Nós outros, a civel gente,
quando nos tomam de salto,
escrevemos: Oo mui alto,
poderoso e eicelente.
Mas pois o paço despreza
velhices de notador,
d’ hoje mais vaa: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Fernam da Silveira.
Bem cuidou de dar no fito
ou oo menos na calveira,
quem notou tal sobrescrito
como pôs Nuno Pereira.
Tentai bem na sotileza
que buscou este reitor,
quando escreveo: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Jorge d’ Aguiar.
Estando na frontaria,
nessas partes de Castela,
em hora de meio-dia,
me chegou esta novela.
Mandei logo com destreza
tomar portos de sabor,
nam passasse tal cimpreza
a qual ia Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Diogo Zeimoto.
Eu andei jaa Picardia
e a terra do Dalfim,
França e a Lombardia,
e tam gram sensaboria
nam s’ acharaa como em mim!
Com toda minha frieza
nom sam eu tam sensabor
qu’ escrevesse: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
D’ Anrique d’ Almeida Passaro.
Como fostes dar no fundo
de tam gram sensaboria,
pois que sabieis qu’ havia
Anriqu’ Almeida no mundo!
Nam fizera mor frieza
ũ muito mao orador
que escrever: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
Do Doutor Mestre Rodrigo.
Eu fui jaa em Pecarronia
e tambem em Parvolide
e falei cos de Gumide
e cos doutores d’ Uxonia.
Mas nam achei tal frieza
nem nenhũ tam sensabor
qu’ escrevesse: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Joam d’ Arraiolos Mourisco.
Mi conocer bem Alarves
e muitas terras andar
e correr jaa os Algarves
d’ aquem-mar e d’ alem-mar.
Nunca ver tal parvoeza,
dita por tal sabedor,
como escrever: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor!
De Dom Anrique Anriquez.
Nunca al vi senam sesudos
fazer mui grandes erradas
e dos sotis e agudos
sahir grandes badaladas.
Vós com vossa sotileza
quisestes ser orador
em escrever: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Dom Afonso Anriquez.
O diabo nam achara
tal maneira d’ escrever,
nem por muito qu’ estudara
nam no podera saber.
E vós por mais jentileza,
por mais perro e sabedor,
escrevestes: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Joam Fogaça.
Quem muitos anos viver,
muitas cousas ouviraa,
muitas folgaraa de ver,
doutras muitas se riraa.
Daquesta vossa agudeza
tam fria, tam sensabor,
se rim todos ante Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Gomez Soarez.
Quem deixa caminho chãao
e caminha por atalho,
estaa jaa certo na mãao
qu’ haa-de levar mor trabalho.
Vós deixastes a certeza,
cuidando que era primor
escreverdes: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Diogo de Miranda.
Se foreis aragoes
ou sensabor castelhano,
ou doce valenceano
passaara por entremes.
Nam sei se foi ardideza,
se foi serdes sabedor,
acertardes Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
Alvaro Nogueira.
Senhor, é muita rezam
pois tais cousas acertais,
que tenhais gram presunçam
e vos ensoberveçais.
Deu-vos Deos maior sabeza
que nunca deu ò orador,
pois escreveis: Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Diogo Pereira.
Vós soubeestes a verdade,
vós sabeis o qu’ escreveis,
tudo o al é vaidade
senam o que vós fazeis.
Nunca vi tam gram destreza
d’ escrever e notador
qual foi a de Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
De Nuno Pereira a
todos estes
trovadores e a outros que aqui
nam vam, por se nam acha‑
rem suas trovas, em
reposta das que lhe
fizeram.
A Jorge d’ Aguiar.
Eu venho da frontaria,
som alcaide de Zagala,
todo o mundo de mim fala
e da minha galania.
Como sam na forteleza
sam ũ deemo velador
com viva, viva Alteza
do Princepe nosso Senhor!
A Dom Anrique Anriquez.
Sam de cote gracioso,
digo mil graças de cote,
a quem quero dou ũ mote
e pico-me de pomposo.
Doutro cabo tal baixeza
e com passo de gram dor,
qu’ em chapins nam chego Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Dom Afonso Anriquez.
Sam galante catelãao,
o moor qu’ ha daqui oo Cairo
e gasto cũ boticairo
cada dia ũ chinfrãao,
porqu’ ee tal minha magreza
que requere confessor,
bem o sabe Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
Ao Coudel-moor.
Par Deos, eu me maravilho,
quem nam morre de pasmar
em ver meu gentil trovar
e ja agora o de meu filho?!
Benza Deos sua agudeza,
a mim guarde o Salvador
para serviço d’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Francisco da Silveira.
Essa trova que laa vai,
ela vai posta por minha,
ora vós sed’ adevinha
se a fiz eu, se meu pai.
Eu pico-me de franqueza,
onde quer que louvor for,
na corte de Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Alvaro Nogueira.
Eu sam todo muito louro
e sam louro muito franco,
eu sam todo, todo branco,
sam ũa madeixa d’ ouro.
Eu sam cheo de frieza
e sam gram refiador
e sam seu de Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Joam Fogaça.
Haver-m’ -ei por tengomengo,
se m’ eu nom gabo per mim,
que sam gentil estrelim
ou heres sobre framengo;
nos olhos ũa frouveza
mais brancos que ũ leitor,
e sam servidor d’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Jorge da Silveira.
Eu em mim tanto confio
qu’ antr’ as damas dou mil rotos
e tenho mais altos cotos
que o lageo meu tio.
Sobr’ isso tal dereiteza
que pareço justador
que quer justar ant’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Gomez Soarez.
Eu de coote acairelado
por filha de minha sogra,
despesa nam se me logra
nem val ser pintirinhado.
Ooh que grande realeza
tem quem é grand’ amador
em cas da tia d’ Alteza
do Princepe nosso Senhor!
A Diogo Zeimoto.
Eu mala por castelhano,
texugo por aaravia
e tanho por geometria,
trouxe vestido de pano.
Tudo isto é ancheza
e feiçam do atambor,
que se tange ante Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Diogo de Miranda.
Sam amigo dos amigos,
ponho a barba cos mais altos,
e sem dar pulos nem saltos
escuso cambo de figos.
Que me tachem de frieza,
as damas no salvanor
me beijem e viva Alteza
do Princepe nosso Senhor!
A Garcia de Melo.
Perguntei a Anu por novas
das Alcaçovas e paz,
respondeo-me: — Se vos praz,
laa vos vi posto nas trovas.
Respondi-lhe: — Que frieza
e que grande sensabor,
quem grosa carta d’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Rui de Sousa Borjes.
Eu m’ achei mui alterado
e houve por gram duçura
de me ver ir na mistura,
nas trovas intitulado.
Ficou-me tal altareza
e do paço tal amor
que jaa m’ honro com Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Aires da Silva, camareiro-moor.
Eu sam caçador de galgos
e tenho feiçam de choupa,
nom folgo na guarda-roupa
nem deixo laa ir fidalgos.
Na beesta tenho certeza
e sam jaa comendador,
mantenha Deos su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Anrique d’ Almeida Passaro.
Que passaro, que menino,
que burro d’ escarnecer!
E quero-m’ indo fazer
em motes trovador fino!
E é mais minha longueza
qu’ a do frade pregador,
que prega ao pai d’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
Ao Doutor Mestre Rodrigo.
Eu comi atabafea,
uro em Deu, e grãaos torrados
e pees de vitela à cea
com bandouva apicaçados.
Nem pimenta de Veneza
me nom deu a tal sabor
como me deu Per’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Diogo Pereira d’ Alter.
Eu tenho fremosa filha,
tal é minha presunçam,
e que seja rechoncham
nom hajais por maravilha.
Nem que tenha redondeza,
mais a tem o atanor
do que beebe Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Fernam Gomez da Mina.
Se m’ a mim nam mente Aixa,
se me Comba nam engana,
sei bailar melhor mangana
que dançar alta nem baixa.
O Rei gaba e despreza
qualquer outro bailador,
isto provarei à Alteza
do Princepe nosso Senhor.
Outra sua.
Ando por ruas a pee,
meus brozeguis com recramos,
criados, compadres, amos,
tudo casta de Guinee.
Todo Portugal me preza,
porque fui descobridor
da Mina de Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Mari’ Anes da Ifante.
Nom som d’ alcovitaria
nem menos curo d’ amores,
ca me poem os trovadores
nesta gram sobrançaria.
Porque com minha baixeza
louvo muito o criador
que me fez e fez Alteza
do Princepe nosso Senhor.
Ao saiam da Ifante.
Quem me mete a mim saiam
andar em trovas lampeiro,
pois andar no reposteiro
é mui mao jogo de cam.
Nom quero tal agudeza
nem buscar corregedor
nem queixar-me a Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Francisco de Miranda.
Som Francisco de Miranda,
som mui louçam e galante,
tam hirto e tam estante
como o mundo de mim anda
espantado da hirteza
que me nam chega cantor
de quantos tem Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
A Fernam da Silveira e fim.
Eu tenho gentil feiçam
com quarent’ anos bem feitos,
e tenho detrás os peitos
maiores ca Dom Joam.
Nem ha em todo Veneza
ũ tam mao cavalgador,
perguntem a Su’ Alteza
do Princepe nosso Senhor.
599
DE
NUNO PEREIRA A DOM JOAM
PEREIRA, QUANDO CASOU, POR‑
QUE A PRIMEIRA NOITE FOI
DORMIR AA POUSADA DE
JOAM DE SALDANHA.
Dai ora oo demo tal manha
do noivo que vai casar
e a primeira noite passar
na pousada de Saldanha.
Dom Joam despois que ceou
potajees, pastés de pote,
ũ rabo de porco achou,
que por muito qu’ esfregou
nam pôde fazer virote.
E diz que por nam passar
ũa vergonha tamanha,
que se lançara no mar
se nam achara Saldanha.
De Joam de Saldanha.
A pousada nunca tolho
a ninhũ desacorrido,
nem a noivos nam convido
se nam vêm daar oo ferrolho.
Bem houve por cousa estranha
estar para me lançar
e ouvir noivo braadar:
— Valei-me, senhor Saldanha!
600
DE
NUNO PEREIRA A ANRIQUE
D’ ALMEIDA, PORQUE ESTANDO
EM SANTAREM SOUBE COMO
ELE SERVIA DE VEADOR
Ò DUQUE DOM
DIOGO.
Que novas, comendador,
meu senhor,
correm cá por Santarem:
que vos chamam veador
inda bem!
Bento quem tais novas traz
para tornar,
bento Deos que cousas faz
para folgar!
Quem vos mandava tomar
tal oficio com saber
que nam m’ haveis d’ escapar
sem vos bem nam escozer.
E pois qu’ em dai cá aquela palha
vos castigo,
ora esta soo vos valha
e lembre que vo-lo digo.
Outra sua em nome
dos
oficiaes de Santarem.
Correm cá as novas correm
da vossa veadoria,
soterramos cada dia
mil que desta graça morrem.
Tal riso e tal prazer
e graça de tanto riso,
quem te fez assi fazer
Deos lhe dê o paraiso.
Ajuda das donzelas
da senhora
Dona Felipa.
Dona Maria de Sousa.
S’ a feiçam me nam engana,
sois em cabo gracioso
e agora quam pomposo
andareis com vossa cana,
diante das iguarias,
com guarda, guarda-porteiro,
com o rol das moradias
ja agora neste Janeiro.
Lianor Moniz.
Que mandar fazer de lume,
que mandar armar de panos,
que chamar oos moços manos,
que castigos de queixume!
Quam cortês vos mostrareis
agora d’ oficial,
que carretos que trareis
para nam falar em al!
Dona Maria da Cunha.
Sem vos ver nem laa estar,
vede se sam adevinha:
qu’ is cem vezes aa cozinha
por vos mais negocear.
E sei que jaa vos retrocha
a Infante com vergonha
de mandar acender tocha
primeiro que sol se ponha.
Maria de Sousa.
Ooh que dar de consoada,
peros, castanhas e figos,
e contar aos amigos
ordenanças na pousada!
Culpar muito a Ifante
e os seus oficiaes,
dizendo que d’ hoje avante
pode ver quanto emnovais.
Joana Ferreira.
Assi faz Deos a quem quer
fazer honras e mercês,
deste oficio saltarês
mui cedo ser esmoler.
D’ aturar bem aturai,
qu’ ee conselho d’ amizade,
e ũus ocolos comprai
que requerem a tal idade.
Dona Joana Anriquez.
Aguardai, pois aguardastes
a vida toda do padre,
enfadando sua madre
e vós nam vos enfadastes.
Pois vos ajuda a ventura
sabê-vos vós ajudar,
que quem no paço atura
nunca deixa de medrar.
Dona Isabel da Silva.
Que vós jaa tenhais ũ eele,
que cinquenta se monta,
veador nam façais conta
de fazer preegas na pele.
Servi bem vosso senhor
que sejais o derradeiro,
podeis ficar veador
com’ estriga de cenceiro.
Dos da chancelaria
para
saberem como o haviam
de intitolar.
De Bixorda.
Vós decrarai-vos, senhor,
por vos homem intitular,
como vos ham-de chamar:
s’ em Cristos comendador
ou do Duque veador.
Pois vos eu hei-d’ escrever,
pois vos eu hei-de servir,
compre-me, senhor, saber
a qual haveis d’ acodir.
Quando vos homem chamar,
a vós digo monseor,
se vos ham-de nomear
em praça por veador
se por frei comendador?
De Nuno Pereira por
cabo destas.
Se é certo que é tal,
por minha vida,
é a graça mais sobida
que se vio em Portugal!
Se a vós veador dais,
jurarei,
segundo o que de vós sei,
vós mesmo vos apodais.
Outra graça sabereis,
em que ando
cada dia contemprando,
quantos castelos fareis:
d’ ũas idas a Castela
e d’ esperanças
de manterdes vossas lanças,
sem ferver vossa panela.
Cabo.
É tamanho meu desejo
de vos ver
que me faz entresticer,
porque tal cousa nam vejo.
E por ser desenganado,
s’ ee verdade,
jur’ oo Corpo de Deos, Dom Frade,
que vos vaa ver rebuçado.
601
DO
COUDEL-MOOR FRANCISCO DA
SILVEIRA A PERO
DE SOUSA RIBEI‑
RO, SOBRE LOUÇAINHAS QUE
MANDAVA FAZER SECRETAS
E FORAM ACHADAS NA
JUDARIA, PORQUE
ELE NAM SAHIA
DE LAA.
Algũa cousa ha-de ser
nesta somana algũ dia,
segundo vai o mexer
na judaria.
O ruje-muje é tanto
sem conto apuridar:
em ũs enxergais espanto
e outros de canto em canto
de riso a rebentar.
Cordeal cous’ haa-de ser
nesta somana algũ dia,
polos sinaes que fui ver
na judaria.
Eu vi Maçoude embuçado,
vós vede que cous’ eest’ ee,
d’ um olho escalavrado
vir em som dessimulado
dizendo: — Vinha d’ um pee.
Vi outro maralecer
vi gritar ũa judia,
alfaramiz vi prender
naquele dia!
O ceo andava trovado
e a noite fez trovam,
sol sahio ensanguentado,
ver o dia nevoado
me fez gram maginaçam.
Ũa estreela vi correr,
a terra toda tremia,
ora vede o qu’ haa-de ser
naquele dia.
Cabo.
Os sinais sam de perigo,
mostram todos gram temor,
guai daquele qu’ ele for,
mas eu sobre tudo digo
que Deos é o sabedor.
Se seraa o despender,
minha será a alegria
o dia qu’ houver de ser
a galania.
De Nuno Pereira.
Eu vi olheira nũ olho
a um judeu,
vi outro vezinho seu
lançar barbas em remolho.
Vi muitos judeus ferver,
preguntei que se fazia,
responderam: — I-o ver
aa judaria.
De Jorge da Silveira.
Eu achei caminhos cheos
dos judeus qu’ iam fogindo,
ũus com medo e receo,
outros de riso cahindo.
Fui-m’ a eles para ver
que revolta tal seria.
Disseram: — I-o saber
aa judaria.
De Diogo da Silveira.
As damas têm jaa tomadas
par’ esta cousa janelas
e andam tam abaladas,
que sam cheas as estradas
e terreiro para vê-las.
Milhor fora nunca ser
vestido de tal valia,
qu’ andarem todos a ver
o que sae da judaria.
D’ Anrique d’ Almeida.
Dizem quem vem e quem vai,
qu’ ouvem grande arroido,
chamam judeus Adonay,
as judias dizem guai
com cristam tam atrevido!
Valha-nos Deu verdadeiro,
pois justiça i nam haa,
que cosamos em sabaa,
e do pano que nam daa
façamos mongi inteiro.
Outra sua.
S’ a Rainha nam viera
com sua donzelaria,
este cristam nam tevera
tanta pressa nem metera
em doilo a judaria.
Mas compre-nos preguntar
quem é sua namorada,
por lhe mandarmos rogar
que vos dei sequer lugar
atee somana acabada.
Cantiga de Dona
Mecia Anri‑
quez a estas louçainhas.
Quem vio nunca louçainha,
que, antes que s’ acabasse,
que as damas da Rainha
de riso todas matasse.
E vede o que seraa
o dia do parecer
ou quem entam poderaa
escapar de nam morrer.
Quant’ eu digo, mana minha,
que seraa bem quem achasse
lugar a par da Rainha
que o riso a nam matasse.
602
DO
COUDEL-MOOR FRANCISCO DA
SILVEIRA AO BARAM DOM DIOGO
LOBO SOBRE TRES FERIDAS
QUE LHE DEU ŨA PORCA
NO MONTE, SEM LHE
ELE DAR NENHŨA.
Ja nós vimos em Lixboa
pelejar usso com touro
e aasno com a lioa
e judeu com perro mouro.
Mas nunca lança de Lorca
vimos encontrar de marca,
que fizesse vir a porca
co lobo arca por arca.
De Jorge da Silveira.
Ouvi novas de caidas
que houvestes monteando
e tambem de tres feridas
qu’ houvestes, nenhũa dando.
Pesou-me como s’ eu fora,
como minhas me magoaram,
mas quero saber agora
o que fez vossa senhora,
porque cá mal se soaram.
De Nuno Pereira.
Galante qu’ assi s’ emborca
a encontrar aa bolina,
nam digo topar com porca,
mas qualquer magra cochina
o revolve e desatina.
Feri sempre d’ arremesso
por segurardes a vida,
mas o mal de rocim messo
magra bacora parida
faz o rir vir aa ferida.
Outra sua.
Mas seja bem empregado
em vós, pois ferir quisestes
a quem por vosso pecado
vos deu o que lhe nam destes.
603
DO
BARAM A LIONEL DE MELO,
SOBRE Ũ PELOTE DE VELUDO
QUE TROUXE EM FORRO DOU‑
TRO FRISADO E DEPOIS
O TIROU E O FORROU
DE CORDEIRAS.
Temos-vos em grand’ estima,
cremos que sois deos segundo,
pois o qu’ andava de fundo
foi por vós posto em cima.
Temos que quem isto faz
mil cousas moores faraa
e faraa da guerra paz
e da paz guerra traraa.
Mas quem convosco s’ anima,
estaa seguro no mundo,
pois qu’ inda qu’ ande de fundo
o podeis tornar acima.
Ajuda de Francisco da Silveira.
Nam fizera mais Marina,
a de Mendoça,
Lianor nem Caterina,
nem a outra de Medina
nem em velha nem em moça.
Para estas tudo rima
e para as outras do mundo,
mas saio qu’ andou de fundo
mao lustro daraa de cima.
604
DE FERNAM DA SILVEIRA A DOM
RODRIGO DE CASTRO QUE BEIJOU
ŨA DAMA E ELA METEO-LHE A
LINGUA NA BOCA.
Pois medistes assi crua
a sua lingua co a vossa,
dizei-nos qual é mais grossa,
se a vossa, se a sua.
Tambem queremos saber
atee onde foi metida
e qual era mais comprida,
mais solta no remexer.
Se veio tal falcatrua
por sua parte ou por vossa,
nos dizei qual é mais grossa
se a vossa, se a sua.
Reposta de Dom Rodrigo.
Mais comprida e mais delgada
achei a sua que a minha,
porque toda a campainha
me leixou escalavrada.
E fez-me tam grandes brigas
nos queixais,
que mos nom fizera tais
ũ grande molho d’ ortigas.
Outra sua.
Eu disse-lhe: — Tate, perra,
nam metais assi de ponta
a lingua que tanto monta
com’ oos da boca em terra!
Fazei conta!
Dizia: — Mano, deixai-me
enquanto tenho lugar!
E eu bradava: — Soltai-me,
deixai-me resfolegar,
que me quereis afogar!
Outra de Fernam da Silveira.
Ouvi de todos mandado
da senhora Dona Guiomar,
que manda desencerar
ũ croque qu’ ee encerado.
E manda que mui asinha
a degradem do seram,
porque toda a campainha
esfolou a seu irmam.
605
DE FERNAM DA SILVEIRA A DOM
RODRIGO E A OUTROS, SOBRE
ŨA CARTA QUE TINHAM
DE LOP’ ALVAREZ
DE MOURA
Mais prazer que ũa toura
nos daraa ver essa carta
pois que mata.
Mandai-no-la, que lhe pês,
senhores, e vê-la-emos,
e todos tres julgaremos
e vos diremos
se vem muito descortês
e quiçaa cantá-la-emos.
606
DE DOM RODRIGO DE MONSANTO E
DOUTROS AO CONDE PRIOR, SENDO
MANCEBO, PORQUE ACHARAM NŨ
CAMINHO Ũ SEU MOÇO D’ ESPO-
RAS COM ŨA TROUXA DE
VESTIDOS AAS COSTAS.
A vinte tres dias do mes de Janeiro,
ũa sesta-feira,
aquem das Cabritas, alem da Landeira,
topámos troteiro.
Toparam troteiro com cousa tam pouca,
tam pouca, tam leve que quem a levava
diz que tam leve co ela s’ achava
que dava tais saltos, tam alto pulava,
mais alto que Çaide, bailando com touca!
Senhor Dom Joam, o vosso troteiro
chegou ò Barreiro e logo embarcou.
A barca com ele tam leve s’ achou,
por onde o barqueiro levar-Ih’ escusou
da trouxa dinheiro!
Sem vela, sem remo, partio derradeira
e chegou primeiro,
porque a trouxa do vosso troteiro
a fez mais veleira!
607
FREIRE, ESTANDO PARA
MORRER.
Pois que vejo que Deos quer
deste mundo me levar,
quero bem encaminhar
a minha alma, se poder.
Enquanto estou em meu siso,
a morte dando-me guerra,
mando alma ao Paraiso
des i o corpo aa terra.
E mando logo primeiro,
enquanto vivo me sento,
que deste meu testamento
seja meu testamenteiro
meu irmão, o de Barrocas,
que eu mais que todos amo,
por sempre fogir a trocas
e servir mui bem seu amo.
O qual me fará levar
com mui grão solenidade
oo Rossio da Trindade,
u me mando enterrar.
Pois me dali governei
gram parte de minha vida,
a carne que levarei
ali deve ser comida.
E vãao cantando diante
a de Braria e d’ Afonso
ũ tam solene responso
que todo mundo se espante!
A este ambos ajude
o macho de Gomez Borges,
o qual leve o ataude,
a bitalha e os alforges.
Rogo aos cortesãaos,
quanto lhe posso rogar,
que todos me vam honrar
com seus cirios nas mãos.
E pois eram espantados
de passar vida tam forte,
devem ser de mim lembrados,
dando-me honra na morte.
Item me levem d’ oferta
dous ou tres cestos de palha,
que pois custa nemigalha,
nam deve d’ haver referta.
Tambem me levem ũ alqueire
de farelos ou cevada,
pois na vida Luis Freire
disto nunca me deu nada.
Infindos perdões pedi
às pousadas u pousei,
d’ alguidares que quebrei
e gamelas que rohi.
E nam me devem culpar
de lhe fazer tantos danos,
pois que de palha fartar
nunca me pude em XX anos.
Item peço às verceiras
muitos enfindos perdões
e tambem aos hortelões
dos danos das salgadeiras,
que, abofee, se me soltava,
fome tal me combatia
que qualquer cousa qu’ achava,
tudo mui bem me solia!
E que meu amo agravos
me desse com amarguras,
deixo-lhe tres ferraduras
que nam têm mais de dous cravos.
E pero dele me queixo
de males que me tem dados,
dous ou tres dentes lhe leixo,
que mande fazer em dados.
Nam lhe posso mais leixar,
qu’ ele nunca mais me deu,
rogo Alvaro d’ Abreu
que o queira acompanhar.
Rogo tanto que se doa
dele tanto meu irmão
que o ponha em Lixboa
arredor de Sam Giam.
Fim.
Sobre minha sepoltura,
depois de ser enterrado,
se ponha este ditado
por se ver minha ventura:
Aqui jaz o mais leal
macho ruço que naceo,
aqui jaz quem nam comeo
a seu dono ũ soo real.
608
DO
COUDEL-MOOR FRANCISCO
DA SILVEIRA EM QUE
PEDE
QUE LHE RESPONDAM A
ESTA CANTIGA.
Faz-se muito recear
de servir ũa donzela,
ver muita gente queixar
sempre dela.
Receo de me meter
onde depois me nam possa
nenhũa cousa valer,
porque sei qu’ ee mui fermosa
e mui airosa.
É mais per’ arrecear,
senhores, a tal donzela,
ou é mais pera folgar
perder por ela?
Acuda todo galante
cũa copra eeste rifam
e diga sua tençam
pond’ estas ambas diante.
Responde a senhora Dona Felipa.
Fermosa dama servir
receo deve fazer,
mas mais se deve sentir
por ela se nam perder.
Nem se me pode negar,
em Portugal e Castela,
que perder é moor folgar
por tal donzela.
Briatiz d’ Ataide.
Nam pode bem responder
quem destas vive tam fora,
mas pois que meu parecer
quereis tomar e saber
perdê-vos logo ness’ hora.
Nam é nada recear
servir galante donzela
em respeito de folgar
perder por ela.
Dona Caterina Anriquez.
A tais preguntas nam sei,
senhor primo, responder,
mas, pois quereis, eu direi
e vos aconselharei
o que deveis de fazer:
Devê-la de recear,
se tal com’ eu é donzela,
mas mais deveis de folgar
perder por ela.
Dona Orraca.
Com quanto vejo quebrada
toda vossa presunçam
e vossa vida gastada,
que me daa muita paixam,
nam vos hei-d’ aconselhar
senam que por tal donzela
é muito per’ estimar
morrer por ela.
Dona Guiomar.
Quem ousa de me servir
em grão perigo se mete,
haa mil despreços d’ ouvir
e tanto mal de sentir
com que lhe sue o topete!
Mas que devais recear
a perigosa donzela,
mui mais é pera folgar
perder por ela.
Dona Branca.
Por quanto mal vos ja fiz,
vos aconselho agora
que olheis bem o que diz
esta fremosa senhora.
Haa-vos certo de matar
d’ amores, qu’ eu o sei dela,
mas eu escolho o folgar
de ser por ela.
Dona Margarida Anriquez.
Nam m’ ee mais de responder
a isto nem conselhar,
que se vos visse morrer
ante mim sem vos poder
em nada remediar.
Mas pois nam posso escusar,
nam temais esta donzela,
que nam é morte matar,
se é por ela.
Dona Joana de Melo.
Pois vos hei-d’ aconselhar
tudo o que me parecer,
convem-me de vos chorar,
que se nam pode escusar
ver-vos morte padecer.
Nam cureis de recear,
perdei-vos ante por ela,
folgai de vos ver matar
a tal donzela.
Dona Margarida Furtada.
Vendo-vos dessimular
a dor que muitos afoga,
vos quero sem me chamar,
senhor primo, conselhar,
porqu’ o sangue nam se roga.
E digo que se apartar
vos nam podeis de querela,
que é mais pera folgar
perder por ela.
Ines da Rosa.
Donde mil partem chorando,
porqu’ ousais de vos meter?
Andamos todas cuidando
como nada receando
tanto folgais de morrer.
Mas em ser vosso penar
por quem nam tem par a ela
a vantagem tem folgar
ter morte dela.
Dona Isabel Pereira.
Nam quisera responder,
pois vou contra tanta gente
e mais por quam descontente
sei que vos hei-de fazer.
Esta parte hei-de tomar,
que a galante donzela
o mais forte é ousar
de cometê-la.
Maria Jacome.
Se meu conselho tomar
quiserdes, nam curareis
em tal perigo entrar
com’ este em que vos meteis.
Qu’ hei doo de vos ver matar
a esta crua donzela
e, por isso, o afastar
é milhor dela.
Dona Maria de Tavora.
O prazer de ser perdido
por dama destes sinais
nam vos nego ser sobido,
porqu’ em perder-vos ganhais.
Mas mais deveis recear
o ousar de cometê-la,
pois fazê-lo é acabar
de perdê-la.
Nicolao de Sousa.
Eu me vou co recear,
pois o tenho e o escolhe
quem o tomou, por me dar
inda mais em que cuidar,
e meu descanso me tolhe.
Compre-me de me calar
e minha morte sofrê-la,
pois que convem nam ousar
de cometê-la.
Dom Pedro de Sousa.
Dama de tal perfeiçam
quem seraa o que nam quisesse,
por penas qu’ ela lhe desse,
servi-la de coraçam?
E pois certo é sem par,
hei por cego quem nam assela
que se deve desejar
perder por ela.
Jorge da Silveira.
Dama que todos aqueixe
se algũ nam traz contente,
desta quero em que me leixe
ser seu sempre firmemente.
Ca mais é pera folgar
de perder por tal donzela
do que é de recear
serviço dela.
Garcia Afonso de Melo.
A vida, que a perdesse,
nam haveria por perda
por dama que nam quisesse
em seus modos ser esquerda.
Nem é pera comparar
recear servir donzela,
com prazer que é folgar
perder por ela.
Lopo Soarez.
Que me tornasseis a vida
e eu tornass’ a viver,
seria outra vez perdida
como vos tornass’ a ver.
Pois a groria é acabar
nesta grão dor e sofrê-la,
digo qu’ ee pera folgar
perder por ela.
Davi.
Nam me posso repender
do que tequei tenho feito,
e a torto e a direito
o espero defender.
Pois tenho gentil querela
qu’ ee muito milhor morrer
que o deixar de perder
ja por ela.
Dom Rodrigo de Moura.
Quanto em maior ventura
vos meterdes em perigo
por servir gram fremosura,
tanto mais a mor trestura
traz maior prazer consigo.
Assi qu’ ee d’ aventurar
vossa vida a perdê-la,
pois perder será ganhar
em tal querela.
Dom Carlos.
Logo triste fui perdido
como yo fui namorado
y tam presto avorrecido
como deixé mi cuidado.
Pois tam penado
me veo por pelear
con esta forte donzela,
milhor fora arrecear
sempre dela.
Outra sua.
Mi dolor foy tam crecido
por ver vossa fremosura,
que sabendo ser perdido
quise dar a mi ventura
yo tristura.
Que antes quero penar
por tam fremosa donzela
que fogir sem recear
sempre dela.
Francisco Bermudez.
Receos tenho passados
e sinto agora paixam,
que sam meus tristes cuidados
tam penados
que matam meu coraçam!
E o que minha vida assela,
pera menos mal passar
é qu’ ee mais pera folgar
perder por ela.
Pedr’ Homem.
Todo mundo quer servir
a que parece milhor,
mas s’ ela nam consentir
estaa certo oo despedir
a queixar-se o servidor.
E se todos contentar,
eu louvo muito perdê-la
e se nam, é de louvar
perder por ela.
Rui de Sousa.
Se vedes com’ eu começo,
ja vos tenho respondido
que, pois a morte ja peço,
menos mal é ser perdido.
Mas hei por groria penar
e por vida matar-m’ ela,
antes que me ver amar
doutra donzela.
Anrique de Melo.
Luita sempre meu cuidado
se direi, se calarei.
Se me calo, sam penado,
se o digo, morrerei.
Que farei?
Antes me quero queixar
por servir gentil donzela
que fogir nem recear
sempre dela.
Joam Lopez de Sequeira.
Se a dama por alguem
nam quisesse consentir
galantes querer-lhe bem,
escusado é mais ninguem
desejar de a servir.
Mas ante o recear,
louvaria todo dela,
que nam é guanho guanhar
com tal donzela.
Jorge de Melo.
Dama de gram fremosura,
dama de gram gentileza,
viver por ela em tristeza
hei-o por boa ventura.
Que nam é de recear
o perder por tal donzela,
pois d’ i se ganh’ oo folgar
de ser por ela.
Afonso Valente.
A dama que for fermosa,
mui descreta, mui sentida,
muito deve ser servida
e temida
da vida que daa penosa.
Mas assi proceda dela,
nam se deve de leixar
tal querela.
Reposta de Francisco da
Silveira à sua pregunta.
Gram medo é cometer
quem meus males ha por viço,
mas moor groria é perder
mil vidas em seu serviço.
Tudo é de soportar
a tam fremosa donzela,
se nam der azo a conchar
s’ outrem dela.
609
DESPEDIMENTO
DOS SERVI‑
DORES DA SENHORA DONA
LIANOR MAZCARENHAS,
PORQUE DISSE QUE SE
LHE TORNARAM
CORNIZOLOS.
D’ Afonso Valente.
Por em vós serem achadas
mil vontades repartidas,
vossas ameixeas crecidas
e de vós mal conhecidas
cornizolos sam tornadas.
Que quem bem vos conhecer,
fugir-vos-á,
e, se o nam quiser fazer,
morreraa.
Dom Joam de Sousa.
Ja vos tinha bem deixada
e tornva-m’ a perder,
nom querendo conhecer
nem folgando de saber
quam mal sois anaçoada.
D’ hoje mais chamar-me vosso
nam entendo,
mas, se jaa o fui e posso,
m’ arrependo.
Jorge d’ Aguiar.
Vosso gram desconhecer
vossas nam certas medranças,
vossas fracas esperanças
faram fazer mil mudanças
a quem mui firme nacer.
Polo qual com tais maneiras
nom culpar
quem por outrem levantar
suas bandeiras.
Rui Gomez da Grãa.
Com gram dor, com gram cuidado,
com mui sobeja tristeza,
é força fazer mandado
de vossa grande crueza.
A qual sempre mal obrando
contra nós,
nos manda partir de vós
brasfamando.
Afonso de Boim.
Aquestes que vos deixaram
como nestas copras vistes,
que triste vida levaram,
o que vós pouco sentistes,
vos pedem em gualardam
dos dias mal despendidos,
que vós lhe deis quitaçam,
como ja vossos nam sam
e vam de vós espedidos.
Fim.
Assi todos descansados,
como vossa mercê, vê,
livres de vossos cuidados,
que daveis demasiados,
se vam com vossa mercê.
610
DO
PRIOR DE SANTA CRUZ
POLO PRINCEPE DOM
AFON‑
SO, QUANDO CASOU DONA
BRANCA, COM QUEM
ELE ANDAVA D’ AMORES.
Lhoran mis ojos
y mi coraçon
com mucha razon.
Lhoran mi pena,
mi mal no fengido,
mi dicha no buena,
tan lexos d’ olvido.
Morió mi sentido
de biva passion,
con mucha razon.
Dom Joam, camareiro-mor.
Com tristes cuidados
tal vida faré
que consolaré
los desconsolados.
Seran acabados
mi mal y pasion,
con mucha razon.
Outra sua.
¿ Ado fuyré
del mal que me fiere?
¿ Si no os serviere
como biviré?
Pues triste diré
que la mi pasion
es sin redencion.
De Pedr’ Homem.
Se de mis dolores
descanso s’ alcança,
será em lembrança
de vuestros amores,
que san los mayores
que nel mundo son,
con mucha razon.
Outra sua.
Lagrimas mias.
amores primeros
seran derraderos
en fim de mis dias.
Seran profecias
de mi perdicion
con mucha razon.
Nuno Pereira.
Lhoran dos vidas
com grande agonia
la vuestra y la mia
por seren partidas.
Seran concluydas
con coita y passion,
com mucha razon.
Outra sua.
Lhoran lembrança
de su triste vida,
lhoran esperança
que tienem perdida.
Mas no se l’ olvida
al mi coraçon
su lhoro i razon.
611
DE
DUARTE DA GAMA,
EM LIXBOA,
SENDO EL-REI EM ÇARAGOÇA, A JOAM
GOMES D’ ABREU, PORQUE ESTANDO
NA COSTA DOS PAÇOS, ANDANDO
D’ AMORES, LHE CAHIO Ũ CAVA‑
LO POLA COSTA E MORREO
LOGO E A ELE NAM
FEZ NENHŨ NOJO.
A morte deste cavalo
me mataraa de paixam,
se vos faz ir a Lorvam.
Nam teremos cá quem ria,
nem nós outros de quem rir,
nem quem faça poesia,
nem quem ouse cada dia
de cair.
Se quereis, senhor, servir
as damas de perfeiçam
nam vos vades a Lorvam.
Desta morte tam honrada
querem as damas saber
qual haveis por mais culpada
ou qual é mais magoada,
sem no ser.
E pois dela escapastes,
seraa mui grande rezam
que nam vades a Lorvam.
Agora querem saber
em que haveis de cavalgar,
agor’ ee o seu prazer
saberem qu’ haa i d’ haver
de que trovar.
Agora vos querem dar
em qu’ andeis ũu rocinam,
por nam irdes a Lorvam.
D’ hoje mais em musselado
arraiado de latam,
fareis vossa habitaçam
ou em grande sindeiram
derrabado.
E de como andais honrado,
seraa bem que vosso irmão
leve as novas a Lorvam.
Dom Garcia d’ Albuquerque.
Pera vos desesperar
rinchou aqueste cavalo,
como cantou morto o galo
pera Judas s’ enforcar.
Vós deveis logo d’ andar,
sem tardar,
a buscar assolviçam
ò moesteiro de Lorvam.
Vossa pendença fareis
como fez El-Rei Rodrigo,
mas em moimento vivo
com cobra nam entrareis.
Porque s’ assi o fazeis,
pagareis
pola lingua com rezam
o trovar de maldiçam.
Parece-me grande error
padecer o inocente
ũa morte tam vidente
por culpa do pecador.
Oh que mal, oh que dolor,
que o senhor
cause morte ò rocinam
polo que fez em Lorvam!
Dom Bernaldim d’ Almeida.
Crede vós, senhor, por certo
qu’ o cavalo adivinhou,
em tomar morte tam perto
de quem certo lha causou.
E pois por si se matou,
ele achou
que era vossa salvaçam
o morrer de tal cajam.
Joam Paez.
Nam sejaes tam desatado,
falai com Bertolameu,
que por serdes dos d’ Abreu
vos daraa outro emprestado.
Que sejaes remedeado
com paixam,
maior é ir a Lorvam.
Que com magreza vos choute,
podeis dele aproveitar-vos
e pera nada gastar-vos,
mandai-lho como for noite.
Pois ja tendes em qu’ andar
este Veram,
nam vos vades a Lorvam.
É verdade que sam mancos
e vós tendes mui maao baço,
seraa bem que de dous rancos
vos ponham dentro no paço.
Sereis fora d’ embaraço
e andai chão,
nam cureis d’ ir a Lorvam.
Dom Afonso d’ Albuquerque.
Ateequi tempo perdido
foi todo quanto gastastes,
nam cuidastes
que era tam mal despendido
como despois o achastes,
mal andastes,
pois vos pareceo rezam
do paço fazer Lorvam.
Sua.
Por muito bem empregada
devieis, senhor, d’ haver
esta queeda desestrada,
que vos foi acontecer.
Pois certo s’ haa-de saber,
em Lorvam,
que morreo desse cajam.
Diogo Brandam.
Veo mui bem ao rocim,
pois ha tanto que nam come,
ser aquela sua fim
pola nam fazer com foome.
Nenhũ outro sam s’ assome
em nam fartar rocinam,
por nam morrer de cajam.
Este, que nam sei se deve,
comprou gordo e anafado,
em tres dias que o teve
o matou d’ entressilhado.
Vio-se tam desesperado
que quis mais morrer entam
que viver de sua mão.
Fez-lhe ter tam pouca fee
o tratá-lo de tal sorte,
que polo leixar a pee
quis tomar aquela morte.
Sofriam vida tam forte,
que foi d’ ambos redençam
o morrer de tal cajam.
O demo vos deu contenda
com damas e com amores,
nam é tanta vossa renda
o que por perda da fazenda
nam sintaes algũas dores.
Nam des causa a trovadores
que vos falem na feiçam,
polo nam saber Lorvam.
Pero Fernandes Tinoco.
Pois folgou mais de morrer
qu’ a ser vosso todavia,
é sinal que nam vevia,
quando o tinheis em poder.
Se lhe dereis de comer,
sequer por raçam,
nunca foreis a Lorvam.
Nam tenhaes, senhor, perfia
a quererdes o esfolar,
ca ond’ entra arrebentar
é dos gozos e comedia.
Pois foram em confraria
por ũu irmão,
nam vos presta ir a Lorvam.
Quis-vos Deos, ainda bem,
qu’ escapastes ò arreo,
seela, citara e freo,
que nam quis comprar ninguem,
Que valha tudo ũu vintem,
nam acharam
quem no tenha em Lorvam.
Ficar-vos-á soidade
como eu hei d’ ũa donzeela,
pois nam podês de verdade
dizer ao moço: — Sela!
Que defronte da janela
avoou pera o cham
quem vos fez ficar piam.
Nam vos dê ninguem abalo,
sofrê tudo na pousada,
pois que foi hora minguada
em que vos mingou o cavalo.
E ja agora desamá-lo
seraa coraçam
muito moor qu’ ir a Lorvam.
Mas segundo, senhor, sei
que de todo estais sem pelo,
s’ estivera aqui El-Rei
cavalgareis no camelo
ou trabalhai por havê-lo
d’ Aragam
e espantarês Lorvam.
Diogo Brandam, porque ouvio
dizer que Joam Gomez mandara
esfolar o cavalo e vender a pele
e que ũu moço seu a dera por
quatro vinteens e que ele
nam contente mandara
dizer a quem a comprou
que lhe desse a pele ou
mais dinheiro por ela.
Sabeis a nova que anda
do cavalo que morreo,
que a pele se vendeo
e ha sobr’ isso demanda.
A contia recebida
tem Jam Gomez, qu’ ee autor.
Queixa-se de mal vendida,
defende-se o comprador.
Vai a causa procedida,
sendo ja a pele cortida.
Rifam de Dom Garcia
a esta nova.
Hei gram medo
de vermos alguem calçado
da pele deste coitado.
Antes queria calçar
borzeguis de chamalote,
sendo certo de levar
trovas de riso e mote
ca sofrer dano tam forte
como é ver-me calçado
da pele deste coitado.
Ũ mandado s’ haa-d’ haver
do concelho e da justiça,
que ninguem ouse fazer
calçado pera trazer
desta pele por cobiça
de a vender,
polo pouco qu’ ha custado,
caro seraa o calçado.
Avisad’ os çapateiros
que dela nam façam nada,
ha mester i bainheiros
e tambem os correeiros,
posto que seja comprada.
Ser-lhe-á tornada,
que dela cinto pintado
é tam maao como calçado!
Ainda que é rezam,
e a mim mo parecia,
que morrendo o sindeiram,
partisse logo Joham
co ela à correaria
e seria
menos maao ser esfolado,
pera algũ cofre encoyrado.
Quem na comprou por oitenta,
faraa reedeas e lategos
sobrecarregas cinquenta,
inda que custe noventa.
As demandas e embargos
que amargos
seram ò triste coitado,
qu’ esfolou com tal cuidado.
Se a vossa s’ esfolara
nam sei por quanto se dera,
porque s’ ela nam trovara
eu creo que nam s’ achara
quem na de graça quisera.
E qu’ o trovar
é assaz mal empregado
o que por ela for dado.
Duarte da Gama.
Eu a Deos e à ventura
vendera-a òs açacaes,
para forrar atafais
ou cobrir enxalmadura.
Desta vez se m’ afegura,
s’ a demanda tanto dura,
qu’ o coitado
ha-de ser o condenado.
Assaz tem em que cuidar
quem dela fez tal barato
e tambem no desbarato
de nam ter em que andar.
Destas duas moor pesar
s’ espera qu’ ha-de tomar
este coitado
qu’ ha-de ser ja degradado.
Comas pera cabeleira
lhe mandou tambem cortar
e fez delas ũu bom par,
que vendeo a Jam Caldeira,
e tambem vendeo na feira,
qu’ o coitado
foi de todo despojado.
Dom Afonso d’ Albuquerque.
Juizes, vereadores,
regedores,
logo deveis de mandar,
sem tardar,
a todolos cortidores
que de cores
nam façam nenhũu calçado
da pele deste coitado.
Em cousas d’ outro mester
podeis mandar que se gaste,
e abaste,
nam o lancem a perder.
Haveis, senhor, de crer
que era ja remedeado,
encaminhado,
da pele deste coitado.
Dom Bernaldim d’ Almeida
Se se ha-de desfazer
em arcas pera guardar
quem se nam soube salvar
nem escapar
de tal morte padecer,
nam lhe metais em poder
nenhũ vestido emprestado
nem o vosso esfarrapado.
Sua.
Espanto-me, pois vendestes
a pele de tal maneira,
como a carne nam comestes
ou tasalhos a fizestes,
pera vender na Landeira
ou na Silveira,
que nelas comem salgado
o cavalo por veado.
Joam Paez.
A abadessa mui sentida
estaa disto com rezam,
ser a pele aqui vendida
e tam prestes consomida,
pertencendo a Lorvam.
Nam lhe daram,
quando lá for, gasalhado
por ser na venda culpado.
Diogo Brandam.
Por esta pele buscá-lo
ando ja de rua em rua,
foi seu pecado cegá-lo
em vender a do cavalo,
por lhe falarem na sua.
Sendo crua
lhe foi o rabo cortado
e pentem nele pegado.
Nem sei porque quer havê-la,
tendo o preço por inteiro,
se quer arca fazer dela,
o que ha-de meter nela
queria saber primeiro.
Mais verdadeiro
é aqueste seu cuidado,
que nam de ser namorado.
Oh que manhas de fouveiro,
oh que fim pera louvar,
milhor foi que ser ligeiro,
gastar na vida dinheiro
e i-lo na morte dar!
Foi erro bem de culpar
e condenar
em ser Joam degradado,
nam sendo nada culpado.
A vertude desta pele
é rezam que se celebre,
qu’ ainda que se querele,
nam podem dizer por ele
que vende o gato por lebre.
Que com monjas se requebre,
nam é nelas tam culpado
que mereça desterrado.
Profacio Pascoal.
Sua morte desviou
a que o cavalo morreo,
a vida lhe repairou
porq’ entam reçucitou,
quando lh’ a pele vendeo.
E por tanto mereceo
o esfolado
ser dele sempre adorado.
Pero Fernandez Tinoco.
Por demanda que mais ata
em certo vos provarei
que quem soo por si se mata
o vestido é d’ El-Rei.
Mas eu nam lho pedirei,
pois sam lembrado
que foi vosso o esfolado.
Sua e fim.
Devereis coma guineu
de fazer a carne em postas
ou trazer a pele às costas
como Sam Bertolameu.
Mas vendê-la coma judeu
desmedrado,
fostes mal aconselhado.
De Joam Gomez d’
Aabreu,
antes de ver estas trovas, por‑
que sendo degradado, lhe
disseram que lhas
faziam.
Veo-m’ aas orelhas ter,
cá ond’ ando degradado,
que me têm ja lá trovado.
Em cuidar que sam partido
todos ousam de falar,
mas vós crede qu’ eu envido
para quando laa tornar.
Quem quiser trovas fazer
seja bem certeficado
que seraa rijo cimbrado.
A Tinocos e a Noronhas
ponho culpas poucachinhas,
porque ja em trovas minhas
descobri suas vergonhas.
E contudo lh’ haa-de ser
seu trabalho bem pagado,
em que seja degradado.
Cabo.
Dizem caa nesta comarca
que laa querem ser das damas
Paiz, do Sem, Brandões e Gamas,
outra jente desta marca.
Se lh’ eu isto vir sofrer,
eu me dou por bem vingado
ser por elas degradado.
De Joam Gomez d’
Abreu, depois
que vio as trovas que lhe fizeram,
a estes abaixo nomeados, em que
faz deles bestas e os manda
citar por parentes do cava‑
lo, se o querem acusar
pela morte dele.
Foi citado Dom Garcia
por parente do cavalo,
respondeo que nam queria
acusar nem demandá-lo.
Que se livre é gram rezam,
pois nam foi nada culpado.
— Falai laa com meu irmam
qu’ estaa disso magoado.
A Dom Afonso.
Respondeo com grand’ aquesta:
— O irmão, vós que dizeis?
Por ventura sou eu besta
ou que deemo me quereis?
Inda qu’ eu ande vestido
nesta loba assi çafada,
nam cuideis qu’ ando sentido
desta cousa quasi nada.
A Simão de Sousa do Sem.
O de Sousa e mais do Sem
respondeo com grande sanha:
— Nam me cite a mim ninguem,
que não tenho jaa essa manha.
Antes sei mui bem cantar
estas damas, minhas dores,
hei-as todas de matar
de riso, que nam d’ amores.
Outra sua.
J’ eu ũ hora ouvi na fresta
da senhora Dona Maria
ũa dama que dizia:
— Tende mãao naquessa besta!
Mas quant’ eu nam entendi
tal falar
nem cuidei que o aziar
se pedia para mi.
A Dom Bernaldim.
Oo mui doce Bernaldim
de gangorras farto e cheo,
devereis de ter receo
de fazer trovas a mim.
— Que ereis vós oo meu rocim
ou oo asno da Ifante?
Respondeo: — Sam mor galante
que haa no cham d’ Alquemim.
A Joam Paiz.
A Joam Paiz foi pobricada
esta nossa citaçam.
Respondeo: — Sam escrivam
o que nam jaa besta albardada.
Eu cuidei d’ ir em batel
com fidalgos esta festa
e acho que fico besta
sendo jaa dantes tonel.
A Pero Fernandez Tinoco.
O Tinoco s’ agravava
dizendo com grande dor
das que tinha:
— Pardeos, ee desonra brava
citar ũ comendador
por bestinha!
Inda qu’ eu seja doente
e diga bem d’ ũ perna,
por vingar o meu parente
irei morrer aa taverna!
612
DO CONDE DE BORBA A FRAN‑
CISCO D’ ANAYA, QUE VEO A POR‑
TUGAL COM GRANDE DOO E
TRAZIA Ũ JAEZ DOURADO E
ENVERNIZADO, POSTO
SOBRE PANO DE DOO
E MUITO LARGO,COM
GRANDES ENXAR‑
RAFAS PRETAS.
Rifam
Que cabeçadas, peitoral,
que seu dono
é entrado em Portugal,
que nos faz perder o sono.
Fez por doo este senhor
para si este jaez,
para nós tem mais sabor
e é milhor
ca se fora feito em Fez.
Nam tenhais qu’ ee de metal,
se nam seu dono,
que veo tam cordial
que nos faz perder o sono.
Joam Fogaça.
Certo nam diraa ninguem,
segundo creo,
senhor, que o vosso arreo
foi feito em Tremecem
nem que lhe parece bem.
Nem digo por dizer mal
de seu dono,
mas o vosso peitoral
é tal
que nos faz perder o sono.
Outra sua.
Caparazam, cabeçadas
e tudo o al do cavalo
e velhacas alcaladas,
que ainda calo,
por serem tam desastradas.
E nam digo agora al,
porqu’ hei sono,
se nam toma peitoral
polo mal que fez teu dono.
Outra sua.
Das caixas envernizadas
crede, senhor, que m’ abalo,
porque sam meas douradas,
enxarrafadas,
nas quaes agora nam falo.
Quem fez tam mao peitoral
nam perdeo sono,
o qual veo a Portugal
por muito mal de seu dono.
Diogo Brandam.
Nam m’ espanto ja da sela
nem das citaras de fundo,
que tudo ha em Castela,
mas espanto-me ver nela
outro ja nomem segundo.
Oo jaez especial,
tu fazes perder o sono,
tu fazes presumir mal
de teu dono!
Requerimento a Antonio Carneiro.
Senhor Antonio Carneiro,
porque nisto vai a vida,
vós tomai de nós dinheiro,
alongai esta partida.
Oo menos até Natal
lhe fazei perder o sono
e, se nam quiser seu dono,
fique cá o peitoral.
Sancho de Pedrosa.
Nam ha i saber nem siso
que se triste nam fizesse,
se nos Castela nom desse
tantos bocados de riso.
Grande Inverno lhe nom val
nem as chuvas dest’ Outono,
tudo passou por seu mal,
pois se vio em Portugal
est’ arreio com seu dono.
Outra sua.
Mazaganis africanos
mui lindos trazem jaezes,
mas tirão outros das fezes
para matar castelhanos.
Em passo tam desigual
dormem seu folgado sono,
cuidando qu’ em Portugal
nam riram disto tal
e de seu dono.
Dom Manuel de Meneses.
Ha i tanto que falar
em jaez desta maneira,
que sendo bem de notar
a cabeleira
fica ja em nam lembrar.
Bem custou o peitoral
a seu dono,
pois o troux’ a Portugal
a fazer perder o sono.
Dom Joam de Meneses.
As cousas muito gabadas
nam podem parecer bem
e porem
peitoral e cabeçadas
nam nas vi taes a ninguem.
S’ o arreio todo é tal,
de seu dono
haverá em Portugal
muito mais riso que sono.
Outra sua.
El-Rei nosso Senhor creo
que gabou o caparazam
e dobrou-lh’ a presunçam,
que ja tinha do arreo.
Diz que faz o peitoral
perder o sono,
mas o caparazam é tal
que fará perder seu dono.
Outra sua.
Nam sei quem vos aconselha,
mas sois mal aconselhado,
pois trazeis vossa guedelha
nas guedelhas d’ um finado.
Fernam Brandam.
Mui grande graça foi esta
daqueste jaez um soo
trazê-lo ele por doo
e cá fazem dele festa.
Para sempr’ em Portugal,
inda que moira seu dono,
ficará o peitoral
immortal,
pois nos faz perder o sono.
De Jorge de Vasconcelos e fim.
No estremo com carneiros
nam cuideis que o passou,
mas diz que nũs simideiros
tomado dos portageiros
por atafal o salvou.
E depois que perdeo o sono
por meter ũ atafal
por jaez em Portugal,
é para rir de seu dono.
613
DE PERO DE SOUSA RIBEIRO A
ESTES CASADOS ABAIXO NOMEA‑
DOS, QUE ANDAVAM D’ AMORES
E PARTIA-SE EL-REI COM A
RAINHA PERA ALMEIRIM.
Ao Marquês.
O primeiro entremes
em que quero começar
seraa o senhor Marquês,
entam dahi altracar.
O qual des que passou Maio
ategora, qu’ ee Setembro,
todo seu braço e nembro
tem mais mangas qu’ oo Sampaio.
Tem atacas, tem madeixas,
tem sedas de muitas cores
e de todos seus favores
a Marquesa nam tem queixas.
E tem, a meu parecer,
mais mangas per’ Almeirim,
mas se tal acontecer,
mal por ele, bem por mim.
Ao Conde de Marialva.
Marialva tem tomado
este caso d’ afeiçam,
qu’ hei medo ser condenado
com aljofar em gibam.
Mas s’ a partida d’ El-Rei
ha-de ser detreminada,
eu fico que o darei
na cinta cũa esmaltada.
Ao Conde de Borba.
O Conde de Borba tem
tanta graça neste feito,
que lh’ havemos ja por bem
ficar ũ pouco desfeito.
Mas no cabo do caminho.
s’ eu nam estou enganado,
Jam da Silva é brasfamado
ou eu nam sou adevinho.
A Dom Diogo.
Em Dom Diogo nam falo,
porqu’ ee mor cousa do mundo,
e pois nela nam ha fundo
sem o mais trovar me calo.
E contudo é mui bem
que nam negue sua fama
dar conta disso que tem
cada dia a sua dama.
Ao Baram.
Guardava per’ oo Baram,
que tem feitos vestidos,
e começo no gibam,
senhores, é de tecidos.
Ora vede que pelote
lhe pode em cima lançar,
haa-de ser de chamalote
e ha-o de debrũar.
Ao Conde de Vila Nova.
Dom Martim de Castel Branco
tem tanto pera falar,
que creo que haa-de aguar
ou ficar ja sempre manco.
E juro por Deos dos celos
que estaa bem espiado
e visto qu’ ee conselhado
polo de Vascoconcelos.
Outra a ele.
Tem mui grande aparelho
par’ homem nele trovar,
alem de desconfiar
jaz em vestido vermelho.
E tem mais que eu nam calo,
nem era pera calar,
qu’ ham-d’ ir ele e Dom Gonçalo
ũ polo outro falar.
A Anrique Correa.
Anrique Correa tem
qu’ ee da sua mesturada,
ora vede quanto bem
pera a trova ir ornada.
E nam será maravilha
por sêla graça comprida,
conselho tomar da Ilha
acerca desta partida.
A Dom Lopo, Conde d’ Abrantes.
Dom Lopo quero leixar,
porque tem no gasto feito,
tambem tenho bom respeito
a o eu mal nam tratar.
E porem por se guardar
de perigos ou cajões,
compre-lhe de s’ apartar
d’ alamares ou botões.
Cabo.
Outros haveraa casados
que se querem namorar,
mas eu os leixo folgar,
que os nam dou por achados.
E por mais nam s’ alongar
a obra que vai crecendo,
quero-me logo louvar,
que pus nela tal tovar
que me vou todo tremendo.
Destes casados
abaixo nomeados
e doutros solteiros a Pero de Sousa
Ribeiro em pago destas trovas,
que fez por seus pecados, e
começa logo Joam Fogaça
em nome do corregedor da
corte, com o pregam que
manda lançar.
Pague tres mil em dinheiro
quem daqui atee Janeiro
em outra cousa falar,
senam em rir e trovar
Pero de Sousa Ribeiro.
A quem souber envençam,
jeitos, trajos e gibam,
di-lo-aa logo sô pena
de pagar aquela pena
que se contem no rifam.
E como passar Janeiro
poderaa qualquer obreiro
di avante trabalhar,
que nam manda mais guardar
Pero de Sousa Ribeiro.
Joam Fogaça.
Fez pelotes, fez capuzes,
fez giboons e fez barrete,
fez de prata bracelete,
traz na boca vera cruzes
milhor que freo ginete.
Fez arreo do fouveiro,
que val mui pouco dinheiro,
fez cousas para pasmar,
as quaes nam pode negar
Pero de Sousa Ribeiro!
Dom Gonçalo Coutinho.
Amarelo ũ pelote
sacou de ja sus bordado,
com que levou tanto mote,
que depois sempre de cote
foi ategora zombado.
Por amores nũ ceiceiro
dizem que foi o primeiro
qu’ enventou o voltear,
este é sem vos bulrar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Eu lhe vi capuz frisado,
em que ainda nam falastes,
de prata todo franjado,
item mais fez um tabardo
com botõoes d’ ambalas partes.
E pois gasta seu dinheiro
com alfaiates, sirgueiro,
para nos desenfadar,
é homem pera prezar
Pero de Sousa Ribeiro.
Do Conde de Vila Nova.
Faz mil geitos nũ serãao
com que faz a gente rouca
de rir e nam ja em vãao.
Traz ũ cabelo na mão
milhor ca Çaid ũa touca.
Quem quiser todo Janeiro
e quinze de Fevereiro
poderaa sempre zombar,
sem ter de que s’ agravar
Pero de Sousa Ribeiro.
Joam Rodriguez Pereira.
Vejo o paço alvoroçado,
vejo-os todos remexer,
dizei que fostes fazer,
cunhado, ja pousentado.
Dou-m’ oo demo todo inteiro
co trovar ja de fumeiro,
que quisestes renovar,
porque dais em que falar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Fota, capelhar vermelho,
tahili e um terçado,
nũa mula, cum espelho
na mão, diz que foi achado,
em Vagos, cerca d’ Aveiro,
aa sombra d’ ũ castanheiro.
Isto nam vai por palrar,
mas por pena nam pagar
Pero de Sousa Ribeiro.
Anrique Correa.
N’ eestalajem da Guerreira
é certo que foi achado
muitas seestas
e sabeis de que maneira:
cum mui bom capuz chapado,
que lhe deu El-Rei nas festas.
E diz o estalajadeiro
que nam ficou caminheiro
que quisesse mais andar,
por virem todos oulhar
Pero de Sousa Ribeiro.
Jorge de Vascogoncelos.
Vi-lh’ ũa manha fazer
que nam fizera ũ mouro:
do estribo polo ver
tirar o pee e meter
em corro indo com touro.
E nam ficou no terreiro.
portugues nem estrangeiro
que nam fizesse apupar,
quando viram remirar
Pero de Sousa Ribeiro.
O Conde de Marialva.
Vi-o ja canas jugar,
vi grande prazer em vê-lo,
vi-o mal arremessar
e vi-o logo tornar
e pôla mão no cabelo,
No serãao e no terreiro
lhe vi tanto por inteiro
destes seus jogos usar,
que se deve bem trovar
Pero de Sousa Ribeiro.
Nuno Pereira.
Grosas nam saem d’ antre nós,
querem cá dizer qu’ ee tacha
olhar-se homem, se se acha,
se sõoes outrem, se sõoes vós.
Pode ser maior marteiro,
se no ombro cae argueiro,
que nam s’ ha-d’ espenicar,
entam vam rir e trovar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Por mercê haja perdam,
que o fiz mais que forçado
com receo do pregam
e de nam ser penhorado.
Nam tenho beens nem dinheiro,
hei medo do pregoeiro
num escravo penhorar
quem vos mandava trovar
Pero de Sousa Ribeiro.
Dom Diogo.
Dou oo demo vossos feitos
que vos trazem tanto dano,
homem feito pelicano
que cos olhos fer’ os peitos.
Nũ amor tam verdadeiro
coma o meu e tam inteiro,
nam devereis de tocar,
pois i havia trovar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
O qu’ a minha senhora falo
é o menos que lhe quero
e o que mais sinto calo,
que dizer-lho nom espero,
se me nam mata primeiro
seu amor, que é tam guerreiro.
Pois vos fostes desamar,
eu vos farei esmaiar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Vós de tantos filhos padre,
vós que ja tres reis lograstes,
s’ enfadastes sua madre
como na filha cuidastes?
Pois já soes o derradeiro
daquele tempo primeiro,
compre-vos mais repousar
que trovar nem namorar,
Pero de Sousa Ribeiro.
Manuel de Noronha.
Se tevessemos memoreas
pera tudo nos lembrar,
ha nele cem mil estoreas
notaveis pera contar:
É de Cristos cavaleiro,
muitas vezes foi zombado
por geitos, trajos, coçado,
Pero de Sousa Ribeiro.
Anrique de Sousa.
Sem falar com afeiçam,
as enxarrafas d’ um cinto,
polas tirar dum gabam,
levou-as limpas na mão,
e nam cuideis que vos minto,
Pero de Sousa Ribeiro,
que é, senhores, tam mosqueiro,
com bolir e rabear,
que nam lhe pode durar
cousa que faça sirgueiro.
Gonçalo da Silva.
Vede qual apodadura
parece sua mercê:
frouva qu’ em agua se vê
ou ave qu’ oo sol se cura.
Viva-nos tal cavaleiro,
que o paço tod’ inteiro
quis agora renovar,
com dar sempre de folgar,
Pero de Sousa Ribeiro.
O Marichal.
Sejam-lhe logo arrincados,
por trazer a boca bem,
os colmilhos, ou ferrados,
pois que dana com bocados
cordões, cruzes, quanto tem.
E mais diz ũ serralheiro
que pague certo dinheiro.
se lh’ a boca bem olhar,
se logo nam enfrear
Pero de Sousa Ribeiro.
Dom Rodrigo de Meneses.
Eu eest’ homem nam lhe vi
fazer cousa de tachar
nem som muito de louvar
algũas que dele ouvi.
Se lá vem ser maao toureiro
nem ficar emborazeiro
nam lhe podem ja tirar
ser mui doce pera olhar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Tambem estou descontente
de nam serdes conselhado,
ante de fazer presente
o que ja tinheis passado.
Como o demo é arteiro
e vós useiro e vezeiro
tomou-vos, fez-vos falar,
que fora milhor calar,
Pero de Sousa Ribeiro.
Dom Afonso de Noronha.
Se Veneza embaixador
outra vez aqui mandar,
eu lho hei-d’ ir amostrar,
por matar
de prazer o monseor.
Ca voto a Deos verdadeiro
qu’ ee erro vir estrangeiro,
que hajam de festejar,
sem lhe logo nam levar
Pero de Sousa Ribeiro.
As donzelas da Infante.
Havemos dele gram doo,
fidalgo velho e honrado,
em triste dia minguado
naceo ele em Figueiroo.
Logo disse ũ feiticeiro
que havia num Janeiro
ũ gram trabalho passar,
que er’ escusado criar
Pero de Sousa Ribeiro.
As damas da Rainha Dona Lianor.
A todas muito nos pesa
por assi ser esta cousa,
triste de Pero de Sousa
que tomou tam maa empresa!
Com seu olho remeleiro
e na mão o seu babeiro,
cá o viamos entrar
antes do demo tomar
Pero de Sousa Ribeiro.
O Baram.
Mandou El-Rei na fazenda
riscar tenças e padram,
té qu’ em vosso caso entenda
cos da sua Rolaçam.
E mandou ò tesoureiro
que vos nam dê mais dinheiro
atee se determinar
que na corte hajaes d’ andar
Pero de Sousa Ribeiro.
Guerra, queixando-se a El-Rei.
Senhor, as vossas donzelas
eu ja guardá-las nom posso,
que por ver est’ homem vosso
nam m’ aproveita co elas
fechar portas nem janelas.
E pois nam dam por porteiro
antes que venha Janeiro,
me mandai remedear
ou fazei-lhes bem mostrar
Pero de Sousa Ribeiro.
O Conde de Borba.
Nam hajais por maravilha
nam poder tam bem guardar
Jam da Silva sua filha.
Que me leixe de matar
que por ela sam sojeito
e despeso,
porqu’ ee dama de tal peso
que me tem todo desfeito.
Outra sua.
E quem nisto quis trovar
eu lhe tenho perdoado,
pois tambem me fez lembrar
quanto sei que tem passado.
Qu’ eu o vi ja nũ terreiro,
com mil cousas de sirgueiro,
tanto olhar e remirar,
com qu’ espero d’ agastar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Tudo isto nom é taibo,
antes era mui marfuz,
quero-lhe leixar ũ saibo
com que traga
na sa boca a vera cruz.
Pois nam acho ja seleiro.
boticairo nem tindeiro
que nos queiram trabalhar,
por ir todos contemprar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Tudo isto vai mui brando
e é bem que assi se faça,
por mais ir dessimulando
o começo desta graça.
Eu, porem, tomo ũ parceiro
que me veja por dinheiro
quantas vezes vei olhar
do seu pee at’ ò colar
Pero de Sousa Ribeiro.
Outra sua.
Nam tem Deos mais qu’ arranhar
par’ O eu sempre louvar
que me dar ũ homem feito,
em que haja tanto geito
que me vai desenfadar.
Eu estou apercebido
se o vejo mais trovar
e lh’ ouvir dizer invido,
para logo revidar.
D’ Anrique de Figueiredo e fim.
Por muitas razões me calo
do que se poode dizer,
nam sei quem poode fazer
a mouro morto matá-lo.
Ande solto no terreiro
o mes todo de Janeiro
para nos desenfadar,
e quem no quiser olhar
pague dous reaes primeiro.
614
DEZEMBRO DE MIL E QUATROCEN-
TOS E NOVENTA, FEZ EL-REI DOM
JOAM, EM EVORA, ŨAS JUSTAS
REAES NO CASAMENTO DO PRIN-
CEPE DOM AFONSO, SEU FILHO,
COM A PRINCESA DONA ISABEL DE
CASTELA. E FOI O DIA DA AMOS-
TRA ŨA QUINTA-FEIRA E AA SESTA
SE COMEÇARAM E DURARAM TEE
Ò DOMINGO SEGUINTE. E EL-REI
COM OITO MANTEDORES MANTEVE
A TEA EM ŨA FORTALEZA DE
MADEIRA SENGULARMENTE FEITA,
ONDE TODOS ESTAVOM DE DIA
E DE NOITE, QUE TAMBEM JUSTA-
VAM. E AS LETRAS E CIMEI-
RAS QUE SE TIRAM SAM ESTAS.
Os mantedores.
El-Rei trazia ũus
liames de nao
e dezia a letra:
Estes liam de maneira
que jaamais poode quebrar
quem co eles navegar.
O Prior de Sam Joam
trazia
Alexandre em cima dos
grifos e dizia:
No es menor mi pensamiento,
mas ha quebrado tristura
las alas de mi ventura.
Dom Diogo d’ Almeida
trazia
ũa boca d’ Inferno com
almas e dizia:
Nembraos de mis passiones,
animas, y descansareis
de quantas penas teneis.
Joam de Sousa trazia
ũa
besta fera e dezia:
Aquesta guarda sus armas,
mas a mi, qu’ amor enciende,
nunca delhas me defiende.
Aires da Silva
trazia um cam
Cerveiro e dezia:
Guardas tu, mas no tan cierto,
como yo siempre guardé
la fee del bien que cobré.
Veopargas, frances, trazia ũa
cabeça de cabra e dezia:
Quien me tocare naquesta,
yo le romperé la testa.
Dom Joam de Meneses
trazia
ũ icho com ũ homem metido
tee cinta e dezia:
Es tan dulce mi prision
que deve, pera matarme,
no prenderme, mas soltarme.
Alvaro da Cunha
trazia ũa
harpa sem cordas e dizia:
Quanto más oye alegria
quien no alcança ventura,
tanto más siente tristura.
Rui Barreto levava ũ
banco
pinchado e dizia:
Más quiero morir tras el,
sus peligros esperando,
que la muerte recelando.
Aventureiros.
O Duque trazia seis justadores
seus e ele e eles traziam
os sete planetas.
O Duque levava o
deos
Saturno e dizia:
El consejo qu’ hee tomado
deste mui antigo dios
es dexar a mi por vos.
Dom Joam Manuel
levava
o Sol e dizia:
Sobre todos resplandece
mi dolor,
porque es el qu’ es mayor.
Pedr’ Homem trazia
Venus
e dizia:
Si esta gracia y hermosura
puede darla,
de vos tiene de tomarla.
Garcia Afonso de
Melo
trazia a Lũua e dizia:
Ante la luz de su lumbre
de vuestra gran claridad,
es la desta escuridad.
Lourenço de Brito
trazia
Mercurio e dizia:
No hay saber ni descricion
al que os mira,
porqu’ em vendos se le tira.
Joam Lopez de
Sequeira
levava Mares, deos das
batalhas, e dizia:
La vitoria que de aqueste
he recebido
es verme de vos vencido.
Antonio de Brito levava
Jupiter e dizia:
Aqueste suele dar vida
al que más servir se halha
y vos al vuestro quitalha.
Os outros
aventureiros que
vieram per si.
Dom Fernando, filho
do Mar‑
quês, trazia ũu forol e
dizia a letra:
En el mar de mi deseo,
viendo su lumbre segui
a elha y dexé a mi.
Pedr’ Aires, castelhano,
trazia
ũa serpe e dizia:
La vida pierde dormiendo
el que muerde est’ animal,
y yo calhando mi mal.
Dom Anrique Anriquez
trazia ũa torre com
ũu sino e dizia:
Este sona mi servicio
ser com vos
tan cierto como con Dios.
O Conde d’ Abrantes
trazia
ũa hidra de sete cabeças
e dizia:
Quando sanam d’ um dolor
los que como yo padecen,
siete del se le recriecen.
O Capitam Fernam
Martinz
trazia ũa atalaia e dizia:
Ha descubierto mi vida
desde aqui
gran descanso pera mi.
Dom Rodrigo de Meneses
trazia ũas limas e dizia:
Estas sueltan las prisiones
de que muchos ham salido
y a mi ham más prendido.
O Conde de Vila Nova
levava ũa mão com ũs
malmequeres e dizia:
Cem mil destas desfojé,
mas fue mi ventura tal
que siempre quedo nel mal.
Jorge da Silveira
levava
ũas fateixas e dezia:
Van buscando mis servicios
el gualardon que cayó
donde nunca pareció.
Dom Diogo Pereira
levava
o Anjo Sam Miguel com
balanças e dezia:
Se a mi gram querer y fee
gualardon tiene defesa,
tu lo pesa.
Dom Rodrigo de
Castro
levava a torre de Babilonia
e dizia:
Es tan baxa mi ventura
y tan alto elh’ edificio
que no basta mi servicio.
O Barãao Dom Diogo
Lobo trazia um liam
rompente e dizia:
Con sus fuerças y mi fee
todos mis males dobree.
Dom Pedro de Sousa
trazia
ũ matador e dizia:
Vuestra vista desbarata
más do qu’ este roba y mata.
Francisco da Silveira trazia
lũuas cheas e minguadas e dizia:
Las menguadas son mis bienes
y por mi dicha ser tal
las lhenas son de mi mal.
Pero d’ Abreu trazia
ũa aguea e dizia:
Nam t’ espantes do que faça,
sigue-me bem e verás,
eu te matarei a caça
e tu a depenarás.
Diogo da Silveira
trazia
ũu madronheiro com ma‑
dronhos e dizia:
Neste remedio de vida
tengo la mia perdida.
Sua.
Ferido busqué aquesto
por remedio de mi mal,
mas no puedo, qu’ es mortal.
Nuno Fernandez d’
Ataide
trazia ũus fetos e dizia:
En el começo daquestos
comencé
y nelhos acabaré.
Garcia de Sousa
trazia
ũs compassos e dezia:
No puede ser compassada
la fee que vos tengo dada.
Arelhano trazia ũa
celada
e dizia:
Es descanso de mi mal
ser en aquesta celada
toda mi vida gastada.
Diogo de Mendoça
levava
ũas ancoras e dizia:
Que venga toda fortuna,
jamas sueltam vez nenguna.
615
ESTES
SAM OS PORQUÊS,
QUE
FORAM ACHADOS NO PAÇO
EM SETUVAL, EM TEMPO
D’ EL-REI DOM JOAM,
SEM SABEREM
QUEM OS
FEZ.
Pois que vemos tantos modos
d’ homens, os quaes nam sabemos,
rezam é que preguntemos
o porque o fazem todos.
Porque nam Vila Real
come galinha nem pato?
Porque o Prior do Crato
apanha tanto enxoval?
E porque tam bem guardado
tem Abranches seu dinheiro?
Porque o mor Camareiro
soo trocar é seu cuidado?
Porqu’ ousam d’ ir oo serão
Saldanha e Jorge de Melo?
Porque é Afonso Telo
tam amigo de melão?
E porque tem seu irmão
emparedada a molher?
Porque tam mal Dom Joam
sabe cantar, a meu ver?
Porque traz de cavaleiro
Dom Gonçalo presunção?
Porque Abranches Dom Joam
s’ embrida como gaiteiro?
Porque ha por asselado
Lopo da Cunha o que diz?
Porque fala Joam Moniz
com’ homem qu’ anda pasmado?
E porque tam acupado
é na caça Dom Rodrigo?
Porque ò Lobo alvitonado
nam lhe sabemos amigo?
E porque vida tam vãa
fazem Correa e Pereira?
Porque anda Joam Caldeira
tam calvo pola manhãa?
Porque Tinoco Fernam
d’ Ingraterra tam asinha?
Porque Bucar Dom Joam
tanto olha pola sobrinha?
E porque todo Miranda
pende à banda dos maiores?
Porque Dom Anrique anda
tam redondo nos amores?
Porque daa nenhũa cousa
Marialva a castelhanos?
Porque sobre novent’ anos
é mundanal Rui de Sousa?
Porque seu filho primeiro
no Inverno traz çafões?
Porque com tantos botões
vem Dom Duarte oo terreiro?
Porque Nicolao seu ponto
traz em se vender aa jente?
Porque louvam tam sem conto
Almeidas qualquer parente?
Porque fala tanto à mesa
Lopo Soarez na guerra?
Porque tem tam boa presa
Viseu no odre qu’ aferra?
Porque Diogo da Silveira
requere ser do conselho?
Porque traz Nuno Pereira
cabeleira sobre velho?
E porque tanta hipocresia
ha em Saldanha Diogo?
Porque parece morcego
Dom Luis ao meio-dia?
Porqu’ ee Dom Luis Coutinho
tam leve qu’ anda nelh’ aire?
Porque tantas filhas pare
a molher de Dom Martinho?
Porque Pero de Baiam
diz mal d’ Antam de Faria?
Porque Pedr’ Homem trazia
tanta cilada em gibam?
Porque nam pode a demanda
o Tavares acabar?
Porque Vasco de Miranda
nunca leixou de furtar?
Porque Jam Lopez Sequeira
cuida qu’ ee tam ressabido?
Porqu’ a Francisco Silveira
nunca se rompe o vestido?
Porque se mostra feroz
Mazcarenhas capitão?
Porque Lima Dom Joam
nunca ũ hora com’ arroz?
Porque o Coudel-mor fez
tanta má trova escrever?
Porque Afonso d’ Alboquer
dá pareas a El-Rei de Fez?
Porque Anriquez Dom Anrique
é mais ventoso que Maio?
Porque no campo d’ Orique
nunca naceo papagaio?
Porque nunca da ucharia
Rui Lobo nada dar quer?
Porque traz rebolaria
Alvaro Lopes de saber?
Porque o Barrocas anda
de tantos lares corrido?
Porque Aires de Miranda
cada mes lança ũ pedido?
Porque tanto casamento
Dona Felipa ja vio?
Porque de tanto enguento
Teixeira o rosto cobrio?
Porque Dona Branca mais
presume do qu’ ee fermosa?
Porque se vem a da Rosa
oo serão e outras tais?
Porque Francisca de Sousa
é tam chea d’ autoridade?
Porque sai em tanta cousa
Dona Orraca ao padre?
Porque tanto arrebique
Isabel Cardosa traz?
Porque é tam mao rapaz
Dona Margarida Anrique?
Porque fala todo o dia
por todos Britiz Pereira?
Porque traz Dona Maria
sôs braços tal raposeira?
Porque Dona Guiomareta
nunca tem o rosto quedo?
Porque nam dam com ũa seta
a Jacome e Azevedo?
Cabo.
Cos porquês deveis folgar,
pois que a ninguem empece
e ria quem s’ alegrar
e quem nam va-se beijar
onde lh’ a pele falece.
616
DO CONDE
DO VIMIOSO A Ũ
FI‑
DALGO QUE NO SERÃO D’ EL-REI
SE METEO EM ŨA CHIMINE E
FEZ SEUS FEITOS NŨ BRA‑
SEIRO E DIZIAM QUE ERA
Ũ DOS CAPITÃES QUE
IAM A TORQUIA
COM O CONDE
DE TAROUCA.
Foi feito tam atrevido
o dest’ homem que devia
nam parar at’ à Torquia.
Sua.
Será lá ũ Anibal,
fará feitos de Pompeo,
pois cá fez façanha tal,
com qu’ esqueçeo o Cabral
e outros que nam nomeo.
Valente e mal sofrido
deve ser quem se vencia
no serão de tal porfia.
Sua.
Correo risco o estrado
por ser lonje a chemine,
vio-se tam afadigado,
o coitado,
que nam pôde mudar pee.
A pee quedo e combatido
usou de tal valentia
que saio como queria.
Dom Gonçalo Coutinho.
Duas onças d’ ũ serãao
tomadas por noite fria
fazem maior purgação
ca cinco d’ escamonia.
E se for homem corrido
num braseiro, em ũ dia
fará o qu’ eu nam diria.
Outra sua.
O diabo lh’ afirmou
que o faria envesivel
e aa cinza o levou
sem o entender o civel.
E depois que acolhido
o vio e vivo fedia,
abalou-se, que morria.
Joam da Silveira.
S’ a Veneza for mandado,
compre-lhe nam ir por mar,
sem levar a bom recado
ũ navio despejado
para s’ ele despejar,
E com quam apercebido
desta maneira eu iria,
inda nam m’ atreveria.
Outra sua.
Para serem como sam
vossas culpas perdoadas,
valeo-vos esta razam:
ser de camara o serão
e bem de camara, ousadas.
Que se em sala cometida
fora tal descortesia,
nunca se perdoaria.
Diogo Brandam.
O mundo vai de maneira
que ja nele tudo achais:
ũu fez aguas na primeira,
outro foi casar à Beira,
este descobrio jamais
qu’ at’ aqui nam foi sabido,
qu’ em braseiro se podia
fazer tal galantaria!
Outra sua.
Se nam fora em chemine,
que foi logo polo vão,
pastilhas, lenho-aloe
nem os cheiros de Guine
nam bastaram no serão.
Porqu’ era tam desmedido
o grão olor que sahia
que por fora recendia!
Alvaro Fernandez d’ Almeida.
Ja nos nam dará fadigas
Branc’ Alvarez com suas mãos,
aas boticas dou mil figas
pois i ha-d’ haver serãos.
Hipocras estaa corrido,
porque quanto ele sabia
soubemos em ũ soo dia.
Outra sua.
Se com damas nam falou
por galante nem terceiro
e com elas se pejou,
enventou
despejar-se no braseiro.
Foi despejo tam crecido
que nam sei como vevia
quem tanta aquela trazia!
Manuel de Goios.
Soes milhor para pedreiro
que pera sofrer paixões,
pois fizestes em braseiro
camara sobre carvões.
O que nos tem parecido
que foi alta gemetria
e baixa galantaria.
Luis d’ Antas.
Quem a som de manistreis
sahe tam demasiado,
que faria com cristeis
em lugar despovoado?
Faria maior sonido
co traseiro nũ soo dia
que dez quartaos em Torquia.
Duarte da Gama.
Levareis, senhor, na mão,
de barro ou de madeira,
ũ privado oo serãao.
como quem leva cadeira
à pregação.
Que indo despercebido
quiça que nam s’ acharia
ũ braseiro cada dia.
Outra sua.
As privadas com razam
dam de vós cem mil querelas,
mui agravadas estam
por fazerdes no seram
o qu’ ouvera de ser nelas.
Que sejais delas vencido
mui justa cousa seria,
pois fizestes demasia.
Diogo de Sepulveda.
Nam queiramos nada nam
de nenhũ grande pedreiro,
pois antre nós ha barão
que fez camara em braseiro,
fundada sobre carvam.
Nunca no tempo sabido
se lavrou d’ alvanaria
com tanta descortesia!
Afonso d’ Alboquerque.
Polo cheiro
que na camara se sentio
se foi eele o reposteiro
e diz qu’ achou no braseiro
cousa que nunca se vio!
E ficou esmorecido,
quando vio qu’ homem sahia,
causa qu’ assi recendia.
Outra sua.
Sahio
nam ja fora de seu siso,
mas cousa que, quem a vio
e o que ja descobrio,
nos matou todos de riso,
em contar quam desmedido
era aquilo que jazia
no braseiro, que fedia.
Garcia de Resende.
Neste vosso desbarato
que houvestes do serãao,
se nam foreis tam hinhato
cobrirei-lo coma gato,
co a mão,
com da cinza e do carvam.
Nam fora nunca sabido
e com tal galantaria
saireis ind’ outro dia.
O Doutor Mestre Rodrigo
Nunca i nem acharam
n’ Avicena nem Rasis
que fizesse purgaçam,
mais que aguarico, serão
de damas muito gentis.
O que me tem parecido
é que o tresandaria
o aar da galantaria.
Diogo Fernandez.
Quem os vir querer entrar
diraa que sam namorados
e entam de despejados,
salvanor, vam-s’ assentar
a cagar.
Fui peco e ando corrido,
porque aa porta nam via
qual era o que fedia.
Dom Afonso de Noronha.
Trazei-vos a bom recado
e dai guarda oo pousadeiro,
porque diz que tem votado,
se o acha descuidado,
saltar co ele ò braseiro.
Nam andeis despercebido
nem cuideis qu’ ee zombaria
que vos filharaa ũu dia.
Dom Duarte de Meneses.
Quem em tal lugar cagou
teve maior coração
e a mais s’ aventurou
que Joam Andre que matou
o Grão Duque de Milão.
Devem d’ haver por ardido
quem s’ a tanto atrevia
que em chemine sahia.
Desculpa do que cagou.
Senhores, mestre Joam
diz que foi o que fiz nada,
segundo para serão
tenho a compreissãao danada.
Mas contudo é razam
qu’ eu esteja rependido,
pois podia,
porque fora nam sabia.
617
DE
JOAM DA SILVEIRA A SIMAM
DE SOUSA DO SEM, PORQUE VEO
AO TERREIRO D’ ALMEIRIM EM
ŨA MULA, COM ŨAS LARGAS
ESPORAS DA JINETA ES‑
MALTADAS E COM
CHAPINS.
Tu jaa nam t’ has-d’ ir assi,
porque cuidas que namoras,
oor’ olha polas esporas
e por ti.
Vieste tam enganado
por trazeres trajo novo,
qu’ em entrando todo o povo
de riso foi abalado.
Bradam todos: — Acudi,
senhores, log’ essas horas,
a rirdes destas esporas
que vêm aqui.
D’ Aires Telez.
Têm os mouros profecia,
que de nós se dessimula,
que dizia
que, quando a mourisca em mula
se visse, que correria
grão risco a galantaria,
Isto se comprio em ti
aquelas horas
quando trouvest’ as esporas,
que te vi.
Fernam de Pina.
Eu com’ homem teu amigo
quis saber tua praneta
e achei que na gineta
te via ũ grão perigo.
E como te vi aqui
metido nessas esporas,
disso logo eessas horas:
— Ex aqui
o perigo que lhe vi.
De Dom Joam Lobo.
Quero-te dar ũ aviso,
nam no tomes ò revés,
que nam vejas os teus pés,
porque, ves,
morrerás coma Narciso.
Este conselho de mi
toma em milhores horas
do que calçaste as esporas
de Çafi.
Aires Telez.
A mula vinh’ espantada
e muito fora de si
de ver ũu marzagani
aa bastarda.
Dezia: — Mocalami,
nas más horas,
ouvest’ aquestas esporas
pera ti e pera mi.
Martim Afonso de Melo.
Mula mal-aventurada,
se nam naceste em Fez,
por que andas arraiada
de jaez?
Quem t’ enganou? E assi
nas más horas
que sofresses tais esporas
sobre ti.
Vasco Martinz Chichorro.
Contigo ninguem s’ apoda
porque tam fermoso es
que nam teens noda,
mas nam olhes par’ òs pés,
porque desfarás a roda
ò revés.
Olha sempre pera ti,
mas nam ja par’ as esporas,
que calçaste em boas horas
pera mi.
Pero Mazcarenhas.
Em mula tant’ acicate
foi grande contrafazer,
má morte te nunca mate,
pois com pees’ cheos d’ esmalte
nos mataste de prazer.
Haa ja mais de dez mil horas
que todo mundo se ri
das tuas negras esporas,
com as quaes ninguem namoras
nem se namoram de ti.
Joam d’ Abreu.
Quando entrou polo terreiro,
veriês todos correr
e polo Deos verdadeiro
que queriam dar dinheiro
polo ver.
Porque alem de vir porrim
e trazer tam más esporas,
veo às horas,
as milhores d’ Almeirim.
Dom Luis de Meneses.
É tamanho enfadamento
ver trajos mal enventados
que daria dous cruzados
por nam ver os que dobrados
este traz cada momento.
E porem este que vi
das esporas,
polo ver todalas horas
eu daria ũ tomi.
Alexemão.
Esta moeda é de mouros
onde prezam a gineta,
que tu metes em muleta
e tambem andas òs touros.
Em tudo isto te vi
estas esporas,
que calçaste nas más horas
pera ti.
Antonio da Silva.
Galante de taes estremos
dias ha que se nam vio
nem dele tanto se rio
como deste, que sabemos
qu’ este trajo descobrio,
em que nós nada nam cremos.
Descobrio nas más horas
pera si,
oo qu’ esmaltadas esporas
pera mi!
Garcia de Resende.
Na era de Jesu Cristo
de mil e quinhentos e dez,
no terreiro d’ Almeirim,
foi homem em mula visto
com larga espora de Fez,
calçada sobre chapim.
Disse como o conheci
ja nũs touros eestas horas
com adarga essas esporas
vi aqui.
Outra sua.
Em cavalo o grão Lobam
trouxe carrancas de prata,
sendo El-Rei em Çaragoça,
mas por milhor envençam
hei esta, pois que mais mata
de rir os homens por força.
Tambem oo Noronha vi
ceroilas, qu’ em tam más horas
calçou, com’ estas esporas
pera ti.
Simão da Silveira.
Pois que ja Arquiles nam es
nem menos Heitor troiano,
dize, mano,
que engano
te fez morrer polos pés.
Fiquei perdido por ti
log’ essas horas
e monseor das esporas
acudi.
Outra sua.
Julgam cá algũs juizes,
monseor micelo mio,
de qu’ eu rio,
qu’ os teus pés pera fastio
valem mais que de perdizes.
Emboora te eu vi
e tu muito nas más horas
calçast’ aquestas esporas
pera ti.
Luis da Silveira.
Quando andaste co touro
parecias-me frances
e agora vinhas mouro
na cabeça e nam nos pés.
Ora ves,
e tu cuida-lo ò revés
co qu’ eu moiro.
Mas se andas mais assi
todalas horas
se riram todos de ti
muito mais que das esporas.
Outra sua.
Quando vi o messajeiro,
cuidei qu’ eras a ginete,
acudi logo ò terreiro.
Se t’ achara capacete,
armara-te cavaleiro,
que valera bom dinheiro
para ti e para mi,
por quantas horas
havia de rir de ti
e das esporas.
Os Arrafeens de Çafi.
Vem-se tam pouco honrar
e prezar
neste tempo a gineta,
que j’ agora vem andar
em muleta.
Este mal veo aqui
polas esporas,
qu’ este trouxe nas más horas
pera si.
O Meirinho da corte.
Porque ninguem nam cometa
ir outr’ hora contra a lei,
eu m’ irei òs pés d’ El-Rei
e lhe direi
como danão a gineta.
Porqu’ eu vi ontem aqui
nũa mula ũas esporas,
que nunca em outras horas
se virão trazer assi.
618
DESTES
TROVADORES ABAIXO
NO‑
MEADOS A DOM FRANCISCO DE
BIVEIRO, QUE ANDAVA NEGO‑
CIADO EM DAR ŨA MULA E
TOUCA, TABARDO E SOM‑
BREIRO A ŨA DAMA, QUE
LHO MANDOU PEDIR
PARA ŨU CAMINHO
E ERA RECADO
FALSO.
De Monserio.
Vai cá muito grande fama,
anda ja mui descuberto
qu’ ũa dama
vos tem n’ aljaveira certo.
Folgaria de saber
ist’ ò demo que lhe dais.
pera ver
quam mal o vosso gastais.
De Luis da Silveira.
Eu ja dou-vos ũ conselho,
o qual é chão coma palma,
que nam lho mandeis vermelho,
porque faz ja mui grã calma.
O Conde de Marialva,
com outro tal que mandou,
ũa dama soterrou
e perdeo o corpo e alma.
Joam Gonçalvez, capitão da Ilha.
Se se sofrer em Verão,
eu vos tenho enculcada
envençam,
que vem cosida e talhada:
loba aberta alaranjada,
qu’ aqui fez ũ bom senhor,
com qu’ irá mui bem betada
e mais vestida de cor.
Dom Geronimo.
Pois s’ aqui conselho mete,
dou-vos este desengano:
sombreiro nam des de pano,
mas ũu mui fino palhete
que vá sobolo barrete.
Este faz afronta pouca,
leva a dama mui airosa,
ja s’ é ũ pouco fremosa
podês escusar a touca.
Martim Afonso de Melo.
Senhor, d’ ilhargas capuz
lhe mandai de tafetaa
e buz buz
que com mais açafraraa.
E faria fundamento
d’ avano mandar levar,
porque se vem a encalmar
e lhe falecer o vento
que lhe nam faleça o ar.
Joam Rodriguez de Saa.
Ũa peça muito seca
darei par’ ò atabio,
porque, se laa fizer frio,
quem levar mui boa beca,
eu me fio
que nam irá muito peca.
Mete mão no cozcorrinho,
peitai Lourenço Godinho,
nam hajais doo do dinheiro,
co ela escusais sombreiro
e olhai-m’ este pontinho.
Simão da Silveira.
Tenho achado ũ ardil
per que nam gastareis tanto,
o qual é qu’ hajais ũ manto
de Diogo de Madril.
Passará tá fim d’ Abril,
porque é de mea frisa,
ja s’ a dama for aa guisa
e fizer bisa
irá muito mais gentil
que d’ outra guisa.
Gonçalo da Silva.
Meu senhor, o de Viveiro,
se pano, seda nam tendes,
aqui anda Pero Mendez,
que o fia sem dinheiro.
E eu serei o terceiro,
porque sei com’ isto pica
e, pois vos às costas fica,
nam hajais doo do dinheiro,
venha tudo ò tavoleiro.
Dom Alvaro de Noronha.
Eu sam tanto voss’ amigo
qu’ hei-de tomar sobre mim
o dado, se for roim,
que a mais me nam obrigo.
Ateegora nam sei quem
tal mercê vos quis fazer,
mas ela, a meu parecer,
nam fez bem.
Simão de Sousa.
Nam sei o que nisto vai,
mas vós perdei o cuidado,
qu’ o Contrai
estaa mal avaliado.
Se vos podeis escusar
seria tudo,
porqu’ assi deve d’ estar
o veludo.
Nuno da Cunha.
Pois que ja haveis de dar
tabardo, touca, sombreiro,
devieis d’ oulhar primeiro
o qu’ isto pode custar.
Mas s’ el’ ee merecedor,
a mim parece rezam
nam oulhar valiaçam
e tirar o caparãao
ao penhor.
A Vasco de Foes.
Senhor, seja por vosso bem
esta dama o que vos quer,
mas nam sei se é molher
que o tenha dito alguem.
E se é desta maneira,
dar-vos-ei a minha touca,
qu’ , ahinda que Deos nam queira,
em a pondo será mouca.
Diogo de Melo de Castel Branco.
Porque se vos nam engrife
e fazer custa mais pouca,
vos enculco outra touca
qu’ aqui trazia o xarife.
Ele tem-na em Lixboa
e mandai levar de cá
provisão d’ El-Rei, que lá
se sirva vossa pessoa.
Garcia de Resende.
Se nam achardes Contrai,
vós sereis de mim servido
com ũ roupão verdegai
do mercador de Cambrai,
qu’ ee ũ bem novo vestido.
S’ alfareme enrodilhado
quiser levar ou lançado
oo pescoço por desdem,
eu vos haverei tambem
o qu’ ele traz emprestado.
Aires Telez.
Porqu’ ee tempo de trestura,
este será o meu dito:
qu’ hajais ũa vistidura,
qu’ aqui anda verd’ escura,
d’ ũa dama do Egito.
Tem ũ geito de bedem
com que pod’ ir à mourisca
e que seja muit’ à trisca,
quem s’ a tudo nam arrisca
nam pode parecer bem.
Dom Joam de Larcam.
Senhor, nam vos destruais,
qu’ eu vos haverei asinha
ũ alvara da Rainha
de morto que nam sirvais
em louçainha.
E s’ isto nam abastar
mais serviço vos farei:
que o farei confirmar
por El-Rei.
Aires Telez.
Se mula houverdes mester,
eu sei quem vo-la dará,
mas havei-la de manter
e soster
tee qu’ a Rainha se vá.
E bem vos há-de pagar
o que co ela gastardes,
pois que soo ha-de levar
e tambem aconselhar
a quem na, senhor, mandardes.
Outra sua.
É pirnalta e embicada
e nam tem ja nenhũ dente,
eu fico nesta jornada
que fiqueis dela contente.
A mula é vagarosa,
peitai Joana do Taço,
qu’ eu vos faço,
s’ a dama é amorosa,
qu’ ela vos fique no laço.
Diogo de Melo da Silva.
Os guarnimentos falecem
pera a mula que vos dam,
se vos estes bem parecem,
lançai mão.
Aqui anda ũ capelão
deste Bispo de Viseu,
que traz ũs de cordovão
e estes enculco eu.
Outra sua.
A mul’ é embicadeira,
a dama pode cahir,
havei moços d’ estribeira
d’ algũ abade da Beira,
que lhe possam acudir.
O abade é balhesteiro,
folgará de lhos prestar,
escusareis de gastar
em alugar
quem na tire d’ atoleiro.
De Dom Francisco de
Biveiro,
em reposta destas trovas, a
todos os que lhas fizeram
e esta primeira vai
aas damas.
Pois Deos com todo poder
vos quis fazer,
senhoras, mais eicelentes
qu’ as passadas nem presentes
nem quantas sam por nacer,
estas trovas que aqui vam,
juntas com as que lá estam,
as vejam vossas mercês,
que eu me fio no que sabês
se julgais sem afeiçam.
A todos juntos.
Senhores.
Vossas trovas foram lidas
e entendidas
e muito bem decraradas,
mas sabei que foram ridas
muito milhor que trovadas.
E depois que me fartar
de zombar delas nas ruas,
espero de repricar
e amostrar
que nom levo em colo duas.
A Luis da Silveira e Simão da Silveira.
Começo nos dous irmãos,
cortesãos,
que nom tem mais Deos que dar,
tam alvos e tam louçãos
cujos geitos, pees e mãos
sam mui doces de notar.
Ũ deles sabe latim,
o outro vai a Çafim
nesta viagem d’ agora,
se por eles me nom fora,
nam estivera em Almerim.
O maior se alvoroçou
e mal bordou
pelotes, capas dous pares,
peroo tanto que as tirou
logo ess’ hora nos sacou
do coraçam mil pesares.
Nam quero mais m’ estender,
fique o mais por dizer
agora desta viagem,
porque são d’ ũa linhagem
de quem me tem em poder.
A Monsorio.
Venhamos ao seu praceiro,
o estrangeiro,
que pousa nas suas pousadas,
que fico por ele aosadas
que nom gaste seu dinheiro
em estas barcarriadas.
É tam doce Monsorio
e tam massio,
por sua desaventura,
que com toda esta quentura
nos mata a todos com frio.
A Martim Afonso de Melo.
Martim Afonso de Melo
eu o asselo,
mas nam ja para galante,
que parece por diante
bizcainho longo e belo.
E posto que me desama
por quem ama,
tem duas peças de valor:
a cor pera cobertor,
as pernas pera ũa dama,
que lhe faltam segum fama.
A Dom Alvaro de Noronha.
O outro nam decrarado,
namorado,
que olha minha senhora,
o vimos vir em fort’ hora
com amarelo e encarnado.
É cousa para nam crer-se,
que soo em ver-se
vestido nestes pelotes
lhe naceram tantos motes,
que nom poderam colher-se.
A Simão de Sousa do Sem.
Outro por me aconselhar
me foi tocar
e meteo-se em peego fundo,
este soo naceo no mundo
para m’ eu desenfadar.
Traz capa nom debrũada,
aberta, curta, mal lançada,
cintas, bainhas de coiro,
dou-m’ ò demo se nam moiro
com cousa tam anovada.
A Nuno da Cunha.
Do vosso bom provimento
me contento,
porqu’ ee conta certa e boa,
sei que valerá em Lixboa
a mais de doze por cento.
Se foreis aconselhado
do vosso ouro tirado
que vos vimos rosto a rosto,
milhor vos fora tirado
da vossa capa que posto.
A Antoneo da Silva.
O da Silva vi eu donde
nenhũa cousa se esconde
no serão, com sua dama,
despachar, segundo fama,
muitas cousas com o Conde.
Fez de ouro, prata e seda
e de moeda
ũ mao vestido de momo,
perdoe-me se me assomo,
pois nam teve a pena queda.
A Joam Rodriguez de Saa
novamente casado.
Do genro de Dom Martinho
eu adevinho
que quem tem tanto vagar,
que a trovas se vai lançar,
cedo cace e ande caminho.
O que desta manha usa,
o al refusa,
sabeis que tem o trovar,
que mui milhor que caçar,
ũa d’ Arronches escusa.
A Joam Gonçalves,
filho
do Capitão.
Eu vos vi ja nũ serão,
capitão,
alcatifas bem pingar,
muito milhor que dançar,
isto é certo na mão.
Metestes-vos na pinguela
da burrela
nam quero maior vingança
que ver-vos perder na dança
e nam vos cobrar sem ela.
A Aires Telez.
D’ Aires Telez nada digo,
que eu me obrigo,
que nam no fez por me errar,
mas por rir-se e zombar,
porque certo é meu amigo.
Fez isto assi nam sei como
e eu lhe tomo
agora qualquer desculpa,
mas s’ outra ora me tem culpa
verá bem como me assomo.
A Diogo de Melo de
Castel
Branco e ao Estribeiro-mor.
Estes dous nam sam culpados,
que buscaram emprestados
rengrões pera me mandar,
nam nos quero acoimar,
acoimem-nos seus pecados.
Deles vos posso dizer
que qualquer homem que os vir
e os ouvir,
se mui bem os entender,
enfadado poderá ser,
mas nam ja fazê-lo rir.
A Garcia de Saa.
O de Saa nam é culpado,
eu o tenho bem olhado,
se a boca bem guardar
de se rir e de zombar
mestre lhe seraa escusado.
Diz que culpa me nam tem
nem ao pensamento lhe vem
destas cousas ter enveja,
assi eu viva e prazer veja
qu’ el’ ee mancebo de bem.
A Vasco de Foes.
Se se houvera de ensoar
ou entoar
qualquer graça ou zombaria,
por vós mesmo eu ousaria
antre as outras a gabar.
Mas porque as cousas do paço
ũ pedaço
às vezes and’ ir sem som,
por isto seria bom
tirar-vos dest’ embaraço.
A Fonte, cuja trova
nom veio
antre as outras nem a vio.
Quisera ver a de Fonte,
que anteconte
lhe ouvera de responder,
porque haa tanto que dizer
que fora de monte a monte.
Ele cuida que é capaz
e nisto jaz;
mande-ma e responderei,
por ela lhe amostrarei
se é assi ou o contrafaz.
Ao Adiam.
Confessou-me o adaiam,
e isto é chão,
que quem sua trova fez,
nam em França, mas em Fez
aprendeo esta envenção.
Como a vio, me foi dizer
e prometer
que o ha-de escomungar,
se o acolhe mais em trovar
atee mais nam aprender.
A Garcia de Reesende.
O redondo do Reesende,
bem m’ entende,
tanje e canta muito bem,
e debuxaraa alguem,
se com isto nam se ofende.
Antre estas fez ũa trova
e nam se trova
de tam mal nisso tocar,
milhor lhe fora calar
e meter-se nũa cova.
A Lopo de Valdevesso.
Por Lopo de Valdevesso
eu atravesso
mais de quatrocentas dobras,
qu’ ele nam vio tam maas cobras
do direito nem do avesso.
Ped’ o treslado de siso,
com tal aviso,
que lho nam possão negar,
porque espera de as levar
à groria do Paraiso.
A Dom Joam de Larcam.
De morto prevelegiar
nam haa lugar
a quem é morto d’ amores,
porque sam tais suas dores
que matam sem acabar.
Se me ũ podesse haver
para mais cedo morrer,
peitaria eu, Dom Joam,
ũ muito gentil falcam,
o milhor que pode ser.
A Dom Geronimo.
Monseor que andou em Castela
e fora dela
sem ser cá nem lá apodado,
por mao de seu pecado
me enviou ũa trova de lá.
Antre os outros me tocou
e nam errou,
que fui contra as martas suas
e tambem contra outras duas
envenções que ja sacou.
A Gonçalo da Silva.
Meu senhor, que vai à Mina,
nam se fina
em dizer graças no paço,
mas eu o tenho em ũ laço
se me ver nam desatina.
Mas porqu’ ham-d’ ir para El-Rei,
nam sei o que se lá ha-de passar,
por o nam escandalizar
com esta me calarei.
619
DE DOM FRANCISCO DE BIVEI‑
RO A SIMÃAO DA SILVEIRA E
AOS OUTROS AQUI NOMEA‑
DOS, QUE LHE MANDARAM
TROVAS, PORQUE ELE RIO
D’ UM PELOTE QUE FEZ
SIMÃO DA SILVEIRA
DE CHAMALOTE
FRANJADO.
De doença tam mortal
curai-vos, nam venha a morte,
haverdes por bom sinal
parecer-me a mim tam mal
tam má pelote.
Em mulas se virom selas
com mil franjas de retrós,
mas sei que nam vistes vós
a ninhũ pelote tê-las.
Que venham a Portugal
novidades tam de cote,
esta mais que todas val,
franjar-se como frontal
ũ pelote!
A Luis da Silveira.
Nam vos devem enganar
as afeições de parente,
porque o paço nom consente
tais cousas dessimular.
Se vos nam parece mal
este malvado pelote,
gastai vosso tempo em al,
nam cureis d’ andar em corte.
A Dom Pedro d’ Almeida.
Se quiserdes nam gastar,
fazei vós tais envenções
que durem nos corações,
enquanto o mundo durar.
Porque este trajo é tal
e de tal sorte
que fará ser immortal
ũu pelote.
A Simão de Sousa do Sem.
Ja nam posso agardecer
a Deos o que me tem dado,
pois me tam deferençado
fez de vosso parecer.
Vi-vos vir tam cordial
ontem com vosso pelote,
que me fez nam haver por mal
franjas no de chamalote.
Por Diogo Lopez de Sequeira.
Esta tal nova estê queda,
defendam-na beleguins,
que se a sabem os chins
alçarão o preço à seda,
que diram que em Portugal
ham por pouco andar de cote,
em ũ paço tam real,
franjado de retrós tal
ũ pelote.
620
D’ AIRES TELEZ A JORGE D’ OLI‑
VEIRA, RENDEIRO DA CHANCE‑
LARIA, PORQUE LEVOU A
JORGE DE MELO DOZE
MIL REAES POR Ũ PA‑
DRAM QUE DESPA‑
CHOU, SEM LHE
QUERER QUI‑
TAR NADA.
Quem tiver algum padrão,
trabalhe por ter maneira
que se guarde d’ ir à mãao
daqueste novo cristãao,
qu’ aqui anda d’ Oliveira.
Leva tudo por inteiro,
nam tem nenhũa afeição,
folga tanto com dinheiro
qu’ ahinda Deos verdadeiro
venderaa por ũ tostão.
Nam lhe tenho má tenção,
mas falo desta maneira,
porque doze mil na mão
lhe vi dar por ũ padrão
eeste Jorge d’ Oliveira.
Desembargo da Rolação.
Todos soem de guardar
a nós outros cortesia,
este nada quer quitar,
mas antes nos quer levar
de tudo chancelaria.
Pois de quanto aqui nos dam
no-la leva toda inteira.
acordam em Rolação
que proceda este rifão
contra Jorge d’ Oliveira.
Bula do Papa contra Jorge d’ Oliveira.
Vem cá querela tamanha,
que calar-se é grande mal,
d’ ũ cristão novo d’ Espanha,
do reino de Portugal.
Pois que dá tanta apressão,
sem deixar leira nem beira,
nós damos jeral perdão
a quem for neste rifão
contra Jorge d’ Oliveira.
D’ Aires Telez.
Serv’ homem coma soiço,
anda sempre em pendença
por haver dez mil de tença
em pago de seu serviço.
E em fim se haa padrão
inda corre esta tranqueira,
que quasi tudo na mão
fica a este bom cristão
d’ Oliveira.
Diogo de Melo da Silva.
Pois que tu foste tam vil
que rapaste doze mil
sem nada deles quitar,
ainda o has-d’ amargar,
segundo o demo é sotil.
Tu nam teens boa tenção,
crê-me, Jorge d’ Oliveira,
nem te vejo salvação,
pois trataste meu irmão
desta maneira.
De Francisco de Viveiro.
Ouço cramar deste feito,
mas dele nada nam sei,
que me nam tem dado El-Rei
de que lhe pague direito.
Mas segundo a feição
deste gordo d’ Oliveira,
guardar d’ haver doação,
que leva tudo na mão
quanto acha n’ aljaveira.
Joam Rodriguez de Saa.
Nam vos deve d’ espantar
qu’ ant’ os privados comprenda
o seu nam querer quitar,
pois ter por mim a fazenda
me nam pode aproveitar.
E ainda é de maneira
que sem dinheiro na mão
o judeu nem o cristão
nam tira dest’ Oliveira
desembargo nem padrão.
Do Conde do Vimioso.
Nam fiar mais em prendê-lo,
senhores, na cortesia,
que leva coiro e cabelo
e arrendou chancelaria
por asselar judaria.
De mao homem e boom cristão
s’ entregu’ este de maneira
que, se nam dais repelão,
é menos passar padrão
de Santiago que d’ Oliveira.
Conselho seu.
Por tua grei e na tua lei
morrerás,
a cristão nam quitarás,
nem no serás
se to nam mandar El-Rei.
Roubarás,
porás os homens no fio,
com dia te trancarás
de medo d’ algũ desvio
e como achares navio,
partirás.
Dom Nuno.
Nam m’ espanto nada disto
nem de cousa tam mal feita,
pois veens por linha direita
dos que prenderão a Cristo.
Teens inda tal devação
co a tua lei primeira,
que cuidas qu’ ee salvação
fazer sempre sem rezão
os que crêm na verdadeira.
Antoneo da Silva.
Jorge, levas mao caminho
naquisto qu’ andas fazendo,
nam cuides que Dom Martinho
t’ ha-d’ andar sempre valendo.
Trazes tam má presunção
e andas ja de maneira,
qu’ hei medo que cortesão
leve narizes na mão
e s’ acolha a Talaveira.
Pero de Mendoça.
Agravas tanta pessoa
que t’ hei medo
que se traga algũ teu dedo
na ribeira de Lixboa
muito cedo.
Mas se tu vas por Mourão
algum hora pera Feira,
nam hás-de pôr pee em chão,
que metido num seirão
haas-de passála ribeira.
Francisc’ Homen
Se Moises aqui tevera
um padrão,
com que vontade lho dera
este truão!
Como vai pela carreira,
como mostra o coração,
como tem a lei inteira
para esfolar um cristão!
Diabos o cozeram,
que o têm ja n’ aljaveira.
Simão da Silveira.
Oxala me visse eu
co ele ja nessas brigas,
para lhe pagar em figas
todo o seu.
A voltas com cozcorrão
esta é boa maneira,
nova paga d’ envenção,
enlear rabi Abrãao
rabi Mosse d’ Oliveira.
Martim Afonso de Melo.
Pois que s’ isto j’ assi faz,
venhamos logo à verdade:
este é o mais mao rapaz,
velhaco, grand’ alcatraz,
mofatraz,
gram zeloso de maldade.
Nas estrelas bom cristão,
cumpridor da fee inteira,
porem mui roim vilão
e gram cão,
grande Jorge d’ Oliveira.
Vasco Martinz Chichorro.
Quant’ a s’ isto é juguetar,
ela é maa zombaria,
pois que da chancelaria
nam podemos escapar.
Mas compre de ter maneira
co este novo cristão:
que vá ter de mão em mão
à fogueira.
Nuno da Cunha.
Quem quiser ser despachado
deste tam novo cristão
fale-lh’ antes num pizmão
que em Deos crucificado.
E se nam desta maneira
doutra nam m’ afirmaria,
que quite chancelaria
esta potra d’ Oliveira.
Garcia de Resende.
Se vos doer o cabelo
do qu’ alguem poode fazer,
guardar d’ amostrar má zelo,
meter tudo no capelo,
sem no ter.
Dar debaixo do mantão
figa a quem der na trincheira,
guardar de comer cação
nem leitão,
que o denfend’ à primeira.
Joam d’ Abreu.
Eu nam devo de tocar
nada sobr’ este rifam,
porque quem nam vio medrar,
nam pode saber falar
em padrão.
Pelo seu irei à mão
a quem tirar aa barreira,
que lhe nam dei em cabrãao,
pois é cristão
e seja quit’ à primeira.
Dom Pedro d’ Almeida.
Mais vos sofreo Jesu Cristo
oos que fostes n’ O matar,
e o mais quero calar,
porque sei que tudo isto
é zombar.
E por isso, Dom Abrãao,
nem judeu nem bom cristão,
vendedor da lei inteira,
como virdes na carreira
ũ padrão
tomar o fugir na mão.
Joam Gonçalvez, capitão.
A meu ver nam é culpado
em ser cristão, nem errou,
porque bem no refertou
e mal, em que lhe pesou,
lho fizeram ser forçado.
Dali lhe ficou tenção
de ter mui grande cenrreira
a qualquer fiel cristão,
e à derradeira
bem s’ entrega no padrão.
De Joam Lopez, que foi rendeiro.
Teens o teu bojo tamanho
que me nam quero espantar
quereres tudo levar,
para encheres esse tanho.
Mas da parte d’ Abraham,
antes qu’ outrem to requeira,
te peço coma irmão
que mudes a condição
em outra milhor maneira.
Joam Rodriguez Mazcarenhas, do Inferno.
Depois que de lá parti,
dizem cá estes senhores,
segundo vêm os cramores,
qu’ esperam cedo por ti.
Mas pois que ja cá te dam
por tuas obras cadeira,
assenta lá bem a mão
a quem quer que for cristão,
que lh’ amargue a Oliveira.
Da Beata da vila.
Com zelo nam contrafeito
vos envio aconselhar,
que nam devês de levar
por inteiro este dereito.
Porque estando em oração
a passada sesta-feira,
me veo em revelação
qu’ em Inverno e em Verão
podem queimar Oliveira.
Conselho dos Cristãos novos cortesãos.
Nam vos espante trovar,
amigo, rabi perfeito,
levai a todo rasgar
quanto poderdes cobrar
com direito ou sem direito.
Enchê vós vosso bolsam,
seja de qualquer maneira,
façam eles quantos sam
muitas trovas e rifam,
tud’ ee vento aa derradeira.
Fernam da Silveira.
Se m’ eu co ele acertara,
eu crera qu’ ele rendera,
porque de guisa o tratara,
que tudo bem me quitara
ou as orelhas perdera.
Eu lh’ escaldara a traseira
e com tam nova maneira
o soubera atagantar
que lhe fizera leixar
as bulras eest’ Oliveira.
Vasco de Foes.
Pois Jorge nam quis quitar,
pera gram pena lhe dar
isto se deve fazer:
tirem-lhe o arrendar,
fá-lo-am logo render;
ou soltem-no a repelão,
qu’ esta é boa maneira
d’ emmendar este cristão.
E então
vereis Jorge d’ Oliveira
nam falar mais em padrãao.
Do Corregedor da corte.
Se a outrem tal fizer,
por este meu assinado
dou lugar a quem quiser
que diga quanto souber,
tirando perro fanado.
E nam juguetem de mão,
que podem dar na moleira
e segundo todos sãao,
esbaforeidos darãao
d’ avesso com Oliveira.
Eiscramação de Jorge d’ Oliveira.
E quanto me custas, renda,
pola gram desdicha mia,
eu certo te soltaria,
se nam perdesse a fazenda!
Dás-me tamanha apressão
e é isto de maneira
que por ti me vem rifam
e me chamam bom cristão
d’ Oliveira.
Cabo.
Poor trinta que recebeste,
trinta trovas haverás
e polos trinta que deste,
no Inferno arderás.
Judas, outros que lá estão
t’ aparelham na carreira,
dizem todos a ũa mão:
— Venha, venha este cristão
d’ Oliveira
povoar esta caldeira.
621
D’ ANRIQUE CORREA A DOM
ANRIQUE, FILHO DO MARQUÊS,
PORQUE MANDOU ŨU CRU‑
ZADO AA SENHORA DONA
MARIA DE MENESES,
ANDANDO COM
ELA D’ AMORES
Haa-vos de ser demandado
por onzena conhecida
levardes por ũ ducado
todo o bem daquesta vida.
Vale mais de mil ducados
de juro com jurdiçam
os retornos mal levados
que vos vêm contra rezam.
Tornai-lhos porqu’ ee pecado
levar cousa mal havida,
nam queirais por ũ ducado
dar a mim tam triste vida.
Antoneo de Mendoça.
Foi por menos a metade
vendido do que valia
e pode-o de verdade
demandar Dona Maria.
E pois é tam mal guanhado
e ela arrependida,
nam tireis por ũ ducado
a meu irmão sua vida.
Jorge Furtado.
Nam haveis assi levar
este bem como cuidais,
sem primeiro vos matar,
pois a todos nos matais.
Ha-vos de ser demandado,
para ser restituida,
quem polo vosso ducado
tira a meu irmão a vida.
Da cidade de Lixboa.
Nam vos ham-de consentir
que tenhais nesta cidade
tanto bem sem o partir
com alguem por piadade.
É direito costumado
que a cousa mal vendida
se perca vosso ducado
e fazenda e a vida.
Petiçam dos parentes
desta
senhora à Rolação.
Senhor, fazei-nos justiça
deste filho do Marquês,
que por força, com cobiça,
leva o nosso, que nos pês.
Cuida, porqu’ ee enganado,
que é por ele perdida
e ela ri-se do ducado
e também de sua vida.
Da Misericordia.
Por ũ pequeno prazer
que queima mais que a brasa,
nam queirais alma perder,
pois que em breve tempo passa.
Tornai, filho, o mal levado,
porque oo tempo da partida,
nam percais por ũ ducado
todo o bem da outra vida.
Do Cabido da See.
Escomunham, antredito
lançaremos na cidade
polo retorno maldito,
que vos vem contra verdade.
E pois isto é provado
e a verdade sabida,
tomai o vosso ducado
e tornai-lhe sua vida.
Dos Cristãos novos.
Nam se deve consentir
qu’ em reino tam sengular
vá Dom Anrique presumir
de lhe todo o bem levar.
Se o leva, é roubado
e a terra abatida,
se consent’ em ũ ducado
tirar a tantos a vida.
Das Donas de Lixboa.
Queremos vos desenganar,
porque havemos piadade
de vos deixarmos cuidar
que vos ama de verdade.
Joga convosco dobrado,
porque é tam ressabida
que levará o ducado
e tirar-vos-ha a vida.
Dos Criados do Marquês.
Deixai, senhor, este bem
de que todo o mundo crama
e i folgar a Ourem,
porque nam percais a fama.
Nam tenhais dela cuidado,
pois é tam desconhecida
que vos levou o ducado
e vos quer tirar a vida.
Do Povo de Lixboa.
Mercadores e tratantes
dizem que ficam perdidos
e as damas e galantes
para sempre destruidos.
Polo qual será forçado
qu’ ela seja socorrida,
se pedis polo ducado
mais que ũ dia de vida.
Fim.
Acord’ El-Rei nosso Senhor
cos da sua Rolaçam
que Dom Anrique dê penhor
ou faça satisfaçam.
E que lhe seja tomado
qualquer cousa conhecida
que guanhou polo ducado
e faz-lhe mercê da vida.
622
DE SANCHO DE PEDROSA A DOM
FRANCISCO DE CRASTO, POR‑
QUE DEBRŨOU ŨA CAMI‑
SA DE VELUDO.
Um galante se vestio
d’ envençam mui enovada,
com camisa debrumada.
De veludo a bordou
com tençam de soportar
quantos motes possam dar
a quem tal envençam sacou.
Mas em lugar a tirou,
que irá bem apodada
a camisa debrumada.
Nesta era de quinhentos,
veremos muitos sinais
e aquestes seram tais
que nos dêm contentamentos
pera folgarmos e rir
e ser muito apodada
a quem cuida qu’ em vestir
era boa a debrumada.
De Tristam da Silva
em
que pede ajuda a Diogo
Brandam.
Senhor, a quem tanto crê
em vosso saber e graça,
esta gram mercê me faça
qu’ ajude vossa mercê.
E depois que vossa mão
for cansada d’ escrever,
o senhor vosso irmão
faça nisto o que quiser.
Diogo Brandam.
Se por contentar algũs
enventou cousas tam novas,
deve de sofrer as trovas,
pois fez tam novos debruns.
E se isto bem nam vio,
quando fez a debrumada,
guarde tudo na pousada.
Galante frances nem mouro
nunca tal fez atequi
mas é ja milhor assi
ca ser lavrada com ouro.
Eu tenho que se vestio,
que lhe nam falece nada,
em fazer a debrumada.
Joam Afonso de Beja.
Vós sabeis a entençam
deste galante, senhores,
se a fez por devaçam,
se por cuidado d’ amores.
A minha tençam seria
que fosse de vós zombada
muito milhor que bordada.
Porque à carne se chegou
tanto esta vestimenta,
diz Gaspar que na emmenta
a El-Rei a nam levou,
mas em lugar a leixou,
que seraa bem resgatada
a motes a debrumada.
Duarte da Gama.
Dino é d’ haver perdam
quem por nam gastar dinheiro
dos debruns do seu sombreiro
debruou um camisam.
Se a certo revestio,
rezam tem de ser chamada
a camisa debrumada.
Nam s’ espantem d’ hoje avante,
se fizer ũ alquemista
de robins um diamante,
pois que fez este galante
cousa que nunca foi vista.
Mas pois Deos ja permetio
fazer-se cousa enovada,
seja sempre memorada.
Rui de Figueiredo.
Dom Pedrinho a todos faz
mil queixumes do irmão,
por ir fazer envençam
com que a todos muito praz
e a ele nam.
Tambem diz que nam dormio
tod’ esta noite passada
em cuidar na debrumada.
Joam Paiz e fim.
A quantos aquesta virem,
senhores, faço saber
qu’ ee muita rezam de rirem
de quem esta foi fazer,
pola minha esquecer.
Nunca tal cousa se vio
que camisa debrumada
precedesse ũa lavrada.
623
DE LUIS DA SILVEIRA A DOM
JERONIMO D’ EÇA, A ŨAS MAN‑
GAS, QUE FEZ EM ALMEI‑
RIM MUITO ESTREITAS
E FORRADAS DE
MARTAS MUI‑
TO VELHAS.
Pareceram-nos tam mal
as tuas martas,
que s’ afirma que as matas
mui perto do teu casal.
Vimos-t’ em pontefical
com teus amitos,
que trazias por manguitos.
Como vinhas cordial!
Simão da Silveira.
Olhai que boa ventura
foi a destas vossas martas,
que ficam nas damas fartas
de riso e vós de quentura.
Andai vós ũa vez quente,
senhor, aa vossa vontade,
qu’ est’ ee verdade
e deixai vós rir a gente.
De Monsorio.
Vimos outras mui louçãas
em poder d’ um cortesão
e sem ver outra rezam,
no carãao,
julgámos qu’ eram irmãs.
A vós, senhor, nam vos mentão,
qu’ eu vos juro, Monsorio,
que nós somos os qu’ aquentão
e vós o morto de frio.
Simão de Sousa.
Os teus pachecos olhei
e escoldrinhei.
Se disser minha tençam,
aconselhar-t’ -ei
que nam venhas oo serãao.
Mas isto é escusado
e, porem,
se tu quiseres vir, vem,
mas seja atarrafado,
que t’ as nam veja ninguem.
Aires Telez.
Segundo sua criança
e seu craro alamento,
eu faria juramento
que nunca foram em França,
mas que morreram à lança
naqueste Paul da Atela.
Diz tambem ũa donzela
que, depois, d’ andar na dança,
se nam quisera ver nela.
Luis da Silveira.
Queixa-se Luis Teixeira,
tem ja mil concrusões postas,
que lhe tiraram das costas
estas peles de toupeira.
Nam sabe per que maneira
lhe fizeram tal engano,
diz qu’ ou ele foi cigano
ou mui fina feiticeira.
Dom Francisco de Biveiro.
Elas de martas se negam,
nam querem ja mais enganos,
de raposos se contentam
por serviços de vint’ anos.
E nam passem de Janeiro,
antes que sejam mais velhas,
que se chegam a Fevereiro
tirá-las-am por ovelhas.
Simão de Sousa, por
a
senhora Dona Maria
Anriquez.
Nam deveis olhar meus erros
mas a minha entençam,
que tirei por descriçam,
neste serãao,
qu’ o forro é de bezerros.
Vossa mercê tudo abarca
e em lugar de forrado
andais, senhor, encoirado
com’ arca.
624
DO CONDE DO VIMIOSO A LUIS
DA SILVEIRA, POR ŨAS MAN‑
GAS QUE FEZ DE CETIM CO
AVESSO PARA FORA.
Senhores, nam seja soo
a ũas mangas que vi
d’ avesso e nam por doo
senam se for do çati.
Altas mangas, doce geito,
gram maneira d’ antremes,
tam cheas de seu respeito
que por nam terem direito
sam trazidas oo revés.
Trazidas mas nam por doo
do coitado do çati,
que de velho, feito em poo,
tantas voltas fez de si.
Reposta de Luis da
Silveira
ao Conde sobre outras man‑
gas que trazia de ve‑
ludo, estreitas e
acairelaadas.
Tenho muito boons embargos
contra o qu’ este senhor diz,
que nam poode ser juiz,
de quem anda em trajos largos.
E a mais prova estei queda,
dou aquesta soo rezam:
que a sua jurdiçam
ataa tres covados de seda
se estende e mais nam.
O que lhe fez parecer
que nam jazia nas custas
fazer as suas tam justas
Ele foi mal justiçado
que nam ha i que dizer?
Mas pois a cousa vai crua,
lançai laa sobr’ elas sortes,
que vem a conceber motes
em seneitute sua.
As vossas mangas, senhor,
têm bem de que se queixar,
que sobre tanto suor
fostes-lhe mui mal pagar.
Sois mui desagardecido,
lembra-vos mal o passado,
que vos tem muito servido,
mui grossos caireis sofrido
e doces pontos levado.
Cabo.
Foram-vos muito fiees,
passaram cem mil andaços,
vêm ja da cabeça òs braços
e estavam pera ir òs pees.
Mas pois que por gualardam
as vindes meter em motes,
nam no saibam os pelotes
que vos nam aturaram.
625
DE LUIS SILVEIRA AO CONDE
DO VIMIOSO, PORQUE TRAZIA
NO BARRETE Ũ CORA‑
ÇAM D’ OURO.
O vosso coraçam d’ ouro
provar-vos-ei por rezam
qu’ ee maior que o d’ ũ touro,
mais bravo qu’ oo d’ ũ liam,
mais leal qu’ o mesmo mouro.
Ele foi mal justiçado
nam send’ as obras tam más,
foi pola bolsa tirado,
qu’ ee mor dor que por detras.
Trazeis o coraçam d’ ouro,
trazeis d’ ouro o coraçam,
qu’ ee maior que o d’ ũ touro,
mais bravo qu’ o d’ ũ liam,
mais leal qu’ o mesmo mouro.
Joam Rodriguez de Saa.
Nam haa i quem se conheça,
pois vos vós nam conheceis,
e que vos assi pareça,
sabeis quanto me deveis.
De vo-lo ver na cabeça
me caio o meu oos pees.
Dond’ ee o vosso tesouro
dahi é o coraçam,
o vosso coraçam d’ ouro
mais santo que o d’ ũ mouro.
mais mouro qu’ o d’ ũ cristam.
Reposta do Conde do Vimioso.
Quem diz qu’ o meu coraçam
é de metal,
anda lonje de seu mal.
Se metal quereis que seja,
lavra-se com gram fadiga,
funde-se de dor sobeja,
sam seus males sua liga.
Queira Deos qu’ alguem persiga
este mal,
que o tem d’ outro metal.
Sua.
Por nam ser falseficado
dam-lhe mil toques mortais,
nam me fica dele mais
que o nome e o cuidado.
Se digo que sam roubado
deste mal,
nam me ouvem nem me val.
Sua e cabo.
Do que meu coraçam sente
nam no culpe senam eu,
pois seu mal todo é meu
e meu bem todo ausente.
Quem disto vive contente
e nam quer al,
porque dizem dele mal?
626
DE SIMAM DA SILVEIRA A LOPO
FURTADO, QUE MANDOU DE
CASTELA, INDO DE CAA, Ũ
VILANCETE AA SENHO‑
RA DONA JOANA
MANUEL.
Rifam de Lopo Furtado.
De la tierra donde vine
vi más bien que pude ser,
alhaa me quiero bolver.
Rifam de Simão da
Silveira
polos conoantes.
Porqu’ hei medo que se fine
homem qu’ isto foi fazer,
a Castela o hei-d’ ir ver.
Neste reino haa tais guardas
que nom passa nemigalha,
por muito qu’ ele laa valha
se nom sam cousas furtadas,
mas as suas, aosadas,
qu’ oo sair nem oo meter
nom se poodem cá perder.
Com cousa laa tam defesa
nos tendes caa todos mortos,
metestes riso per portos
co que nos nada nam pesa.
Que fora moor a despesa,
folgara de o fazer,
meu senhor, por vos ir ver.
De Dom Pedro d’ Almeida.
Porqu’ espero d’ ir primeiro,
vos descubro este segredo:
que tenho jaa feiticeiro,
que, a peso de dinheiro,
m’ haa laa de pôr muito cedo.
E que me custasse ũ dedo,
tudo isto es de hazer
por vos ir mais cedo ver.
De Joam Rodriguez de Saa.
Passaareis grande perigo,
se nom fora esta rezam
para haver de nós perdam,
serdes messageiro amigo,
que nom tendes culpa, nam.
Val-vos isto e a tençam
para vos mais nam fazer
que desejar de vos ver.
Outra sua.
Mostrastes mui grande mingua,
se vos atentaram nela,
em nom levar a Castela
de caa mais que nossa lingua
e levar tam pouco dela.
Nom sinto tam rija trela
com que me podeessem ter,
que vos nam fosse laa ver.
Dom Luis de Meneses.
Esta fee que vós dais dela,
nom na daa ela de vós,
mas sei que vos damos nós
infindas graças por ela.
Muitos remos, muita vela
tudo espero de meter
por mais cedo vos ir ver.
Do Craveiro.
Custuma-s’ em Portugal
a dama muito fermosa
mandar-lhe mula de Loosa,
mas nam cantiga sem sal.
Nem nas damas nem em al
nom deis vosso parecer,
sem vos eu primeiro ver.
FIM DO TERCEIRO VOLUME