LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em
meio eletrônico
Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende
Edição de base:
GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.
VOLUME I
VTavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . ‡ .
De Diogo de Melo a Aires Telez. fo. CLXXXII
Trovas e cantigas suas. fo. CLXXXIII
De Dom Pedro d' Almeida a Dona Briatiz de Vilhana. fo. CLXXXIII
Trovas e cantigas suas. fo. CLXXXIIII
De Simão da Silveira, cantigas. fo. CLXXXIIII
De Jorge de Resende a ũa molher. fo. CLXXXIIII
Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas fo. CLXXXVIII
‡ De Joam da Silveira a Pero Moniz. fo. CLXXXVIII
Vilancete de Joam da Silveira. fo. CLXXXIX
De Dom Rodrigo Lobo. fo. CLXXXIX
D' Alvaro Fernandez d' Almeida. fo. CLXXXIX
Trovas e cantigas suas. fo. CXC
‡ De Joam Gomez d' Abreu. fo. CXC
De Francisco Lopez a ũa molher. fo. CXCI
Trovas e cantigas suas. fo. CXCII
De Bernardim Ribeiro. fo. CXCII
‡ De Pero de Sousa Ribeiro. fo. CXCIII
‡ Do Baram ao Coudel-mor. fo. CXCIII
De Simão de Sousa a Dona Caterina de Figueiroo. fo. CXCIII
Trovas e cantigas suas, desta folha
atee fo. CXCVI
Do Estribeiro-mor, trovas e cantigas suas, desta folha atee fo. CXCVII
De Francisco Mendez, o frade. fo. CXCVII
D' Aires Telez a ũa dama. fo. CXCVIII
Trovas e cantigas suas. fo. CXCIX
De Duarte de Resende. fo. CXCIX
D' Antoneo Mendez, lamentaçam. fo. CC
Trovas e cantigas suas. fo. CCI
De Diogo Velho da chancelaria. fo. CCI
D' Anrique da Mota a ũa molher. fo. CCI
‡ Trovas e cantigas suas. fo. CCII
Trovas suas a ũ clerigo. fo. CCIII
‡ Outras suas a ũ alfaiate. fo. CCIII
‡ Outras suas a ũ hortelam. fo. CCV
‡ Outras suas a Dom Joam. fo. CCVI
‡ Outras suas a Vasco Abul. fo. CCIX
De Bernardim Ribeiro. fo. CCXI
De Manuel de Goios ao Conde do Vimioso. fo. CCXII
Trovas e cantigas suas. fo. CCXIII
De Francisco de Sousa aa razam. fo. CCXIII
Trovas suas atee às folhas fo. CCXV
De Dom Rodrigo aas damas. fo. CCXV
‡ De Garcia de Resende a Manuel de Goios. fo. CCXV
Grosa sua a Tempo bueno. fo. CCXVII
‡ Trovas suas a Rui de Figueiredo. fo. CCXVII
Trovas e cantigas,
desta folha atee fo. CCXXI
De Garcia de Resende aa morte de Dona Ines de Crasto. fo. CCXXI
‡ Outras suas a Pedr' Alvarez. fo. CCXXII
‡ Outras a Joam Rodriguez de Saa. fo. CCXXII
‡ Motos que mandaram a Garcia de Resende e a reposta sua. fo. CCXXII
Trovas e cantigas suas. fo. CCXXIII
‡ Outras a Rui de Figueiredo.
fo. CCXXIIII
‡ D' Afonso Valente a Garcia de Resende e a reposta sua. fo. CCXXIIII
‡ De Garcia de Resende a ũ jogo de cartas. fo. CCXXVI
627
DE DIOGO DE MELO DA SILVA,
ESTANDO EM ALCOBAÇA,
A AIRES TELEZ, QU' ES‑
TAVA EM ALMEIRIM.
Se cahi nesta certeza
de vos mandar estas trovas,
foi por me mandardes novas
da corte de Su' Alteza.
Nam tiro fora ninguem,
mandai-me das que teverdes,
mas guai de quem cá nam vem,
que nam fica por seu bem,
dizei vós o que quiserdes.
Dar-vos-ei conta de mim,
nam me tenhais em maa conta,
pois sabeis que tanto monta
estar cá com' em Almeirim.
Digo acerca do medrar
que o vejo laa tam pouco
que deveis de perdoar
a quem tem onde folgar
polo nam terdes por louco.
Trago jaa dous mil vilãaos,
que cá faço cada hora
darem mootes oos de fora
que parecem cortesãaos.
Andam jaa tam ensinados
que mao grado oos do paço,
têm-me fora mil cuidados
que trouxe desesperados.
Isto é o que cá faço.
Tambem, ando acupado
com moça que nam sae fora,
chamo-lh' às vezes senhora,
ela a mim meu namorado.
É marca de ter janeela
põe-se nela para a ver,
tem ũas aguas de donzela
e eu sinto-me par' eela,
sem no sua mãi saber.
Nessas damas laa nam falo
nem tambem nam nas desgabo,
mas com estas cá me calo,
porque logo vêm oo cabo.
Nam quero dama de laa,
qu' ee de sua openiam,
deixai-me co as de caa,
porque nestas, senhor, haa
virem logo aa concrusam.
S' algũ hora vou aa caça,
mando chamar caçadores,
outras horas pescadores,
tudo haa em Alcobaça.
Todos mandam aa vontade
sem andar aa de ninguem.
Julgai isto de verdade,
de qu' haa-d' haver saudade
quem esta vida caa tem?
Tudo me podeis mandar,
ir de caa nam mo mandeis,
que nam posso nem podeis,
bem podeis em al falar.
Nam nego ser grande gosto
as pousadas dessa terra,
mas eu cá tenho meu posto
e s' El-Rei laa tem Agosto,
tenho-m' eu caa co a serra.
Fim.
Nam posso de caa partir
por cousas qu' eu mesmo pinto,
as quaes laa hei-de sentir,
que agora cá nam sinto.
Isto nam hei-de fazer,
bem me podeis perdoar
e vá-s' a nam esquecer
qu' haveis tambem d' escrever
de quem me caa faz andar.
628
DE DIOGO DE MELO, DESAVIN‑
DO-SE D' ŨA DAMA, QUE TRA‑
ZENDO OUTRO SERVIDOR
DEZIA QU' ELE ERA
PERDIDO POR ELA.
Senhora, nam me perdi
nem menos m' hei-de perder
e tenho certo de mi
que, pois nam m' arrependi,
que nam m' hei-d' arrepender.
Nam digais que me leixastes,
qu' eu fui o que vos leixei
e bem sei
que no jogo que jugastes
mais perdestes que ganhastes
e eu fui o que ganhei.
Ganhei que nam me perdi,
porque vos via perder,
e pois nam m' arrependi,
tenho jaa certo de mi
que nam m' hei-d' arrepender.
629
OUTRA SUA.
Quem quiser contentamento
nam lhe lembrem esperanças,
pois vemos que nũ momento
se fazem tantas mudanças.
As cousas que daa Ventura,
ela mesma as desfaz
serem de tam pouca dura,
que nenhũa nam segura,
gram contentamento traz.
Desfaça o fundamento
quem espera em esperanças,
pois vemos tantas mudanças
desvairadas nũ momento.
630
OUTRA SUA.
Meus olhos, quem vos mandava
oulhar quem vos nam olhava?
E pois vós isso quisestes,
sofrei, pois que nam sofrestes
a vida que vos eu dava.
Nam me podeis dar desculpa,
pois quereis quem vos nam quer,
eu soo tenho esta culpa
em vos dar tanto poder.
Este mal arreceava:
olhardes quem nam olhava
ao mal que me fizestes,
pois me deu o que me destes
pola vida que vos dava.
631
DE DIOGO DE MELO VINDO
D' AZAMOR, ACHANDO SUA
DAMA CASADA.
Bem te conheço, Ventura,
que me quiseste mostrar
o prazer quam pouco dura,
quando o queres desviar.
E pois isto haas-de ter,
nam te quero agardecer
algũ bem, se mo fizeste,
pois havias de fazer
na fim tudo o que quiseste.
Tu quebras as esperanças
e desfazes fundamento,
toda es feita em mudanças
sem deixar contentamento.
Mas quem Ventura conhece
e seus males lh' oferece
e em seu poder se vê,
isto e muito mais merece
quem por Ventura se crê.
Coraçam, se me deixaras
no tempo que eu quisera,
nam tiveras nem tevera
cousas com que me mataras.
Defendes-me e nam t' aqueixas
que nam diga que me deixas
tantos males, sem rezam.
A quem contarei mis queixas,
coraçam, meu coraçam?
Trago tempo acupado
em me ver de tudo fora,
mas trist' ee aquela hora,
quando me lembr' oo passado.
Lembra-me minha verdade
e quam pouca lealdade
amostrou em se casar.
Casada sem piadade,
vosso amor m' haa-de matar!
Deste tempo tam mudado
nam me fica em poder
mais que ũ triste prazer,
se nele tinha passado.
Tenho esperança perdida
do que a tinha servida,
que jaa nam posso cobrar,
direi mal a minha vida
cada vez que m' alembrar.
Quando me quero lançar,
tenho-a na fantesia
e de noite vou sonhar
co ela, que lhe dizia:
— Pois fizestes tal mudança,
sem terdes de mi lembrança,
acabai-me minha vida,
pois nam tenho esperança
de jamais ver-vos vencida.
Cabo.
Sempre lhe veja prazer
coma hora que casou
e veja nunca lhe ver
mais que quanto me deixou.
Pois tam triste me deixaste
co a vida que tomaste,
enquanto vida tiveres,
rogo a Deos, pois que casaste,
que chorando desesperes.
632
VILANCETE SEU.
Coraçam, de que t' aqueixas?
Se nam achas quem te crea,
nam sigas vontad' alhea.
Deixa-te de t' enganar,
nam trabalhes por enganos,
que depois os desenganos
nam t' ham-de poder mudar.
Se tu queres escapar,
crê-me tu, porque te crea,
nam sigas vontad' alhea.
633
DE
DOM PEDRO D' ALMEIDA AA
SENHORA DONA BRIATIZ DE
VILHANA, QUE COMEÇA‑
VA ENTAM DE
SERVIR.
De quanto mal se m' ordena,
para ter melhor desculpa,
olhai antes minha culpa,
senhora, que minha pena.
E por isso do que faço
e inda que faça mais,
nam quero que me devais
mais qu' aas culpas em que jaço.
Leixo o mal que se m' ordena,
porque tem boa desculpa,
mas olhai-me minha culpa
em pago de minha pena.
634
OUTRA SUA.
Na vida qu' ee mal segura,
quem nela tem seu cuidado,
anda mais aventurado,
sendo longe da ventura.
E quem certo vê e tem
no descanso mao sinal,
desesperar-se de bem
é menos mal:
porque mal que muito dura
sempre daa novo cuidado
e quem deste é desviado,
este tem melhor ventura.
635
DE DOM PEDRO, DESAVINDO-SE
DE ŨA MOLHER DE QUE
ANDAVA MUITO
NAMORADO.
O cuidado verdadeiro
que deseja de matar,
se alguem quer acabar,
acaba-s' ele primeiro.
E o que mata mais manso
a vida melhor segura,
pois nam daa em mais descanso,
senhora, qu' enquanto dura.
Tomei o mais verdadeiro,
qu' ee mais perto de matar,
porque, quando s' acabar,
m' ache jaa morto primeiro.
636
OUTRA SUA AA SENHORA DONA
BRIATIZ DE VILHANA.
Nam abasta sofrimento
quer seja bem empregado,
qu' ond' haa grande pensamento
tambem ha grande cuidado.
Ja descanso com meu mal
que seja mao de sofrer,
perca-s' o que se perder
qu' eu nam quero mais nem al.
Perigoso sofrimento
perigo bem empregado,
pois que daa de mor cuidado
menos arrependimento.
637
DE DOM PEDRO A ŨA SENHORA,
QUE TRAZIA Ũ HABITO DE
VELUDO AZUL ESCURO
POR TENÇAM.
Senhora, dai-m' um seguro,
pois calar custa mais caro,
para vos gabar bem craro
o vosso veludo escuro.
Isto nam é novidade,
senhora, mas é rezam,
que onde nam ha vontade
o habito nam faz frade,
se o nam faz a tençam.
E inda mais vos seguro,
senhora, por falar craro,
que no vosso habito escuro
eu fui o que comprei caro.
638
OUTRA
SUA A ŨA MOLHER,
QUE LHE MANDOU ŨS PENSA‑
MENTOS DE FERRO.
Pensamentos qu' andam fora,
tomo eu por mao sinal,
porque os trazeis, senhora,
para pensardes em aal.
Mas os pensamentos certos,
a que cá chamam cuidados,
os que parecem cerrados,
estes andam mais abertos.
Quem vo-los visse, senhora,
laa dentro para sinal
e nam trazidos de fora
e andar pensando em al.
639
VILANCETE SEU A ŨA MOLHER,
QUE O QUERIA CONTENTAR
COM ENGANOS.
Enganos, bem vos entendo,
i laa dar falso prazer
a quem vos nam entender.
Se folguei com meu engano,
foi por ver tambem o vosso,
e desejo, mas nam posso,
ter prazer com vosso dano.
Que mais val ũ desengano,
quando vem com' haa-de ser
qu' oos enganos dê prazer.
Quem conhece vosso mal
nam se cega nem s' engana,
ca quem faz que menos dana
traz ũ dano mais mortal.
Enganos falai em aal,
a outrem vos i vender,
qu' eu bem vos sei entender.
640
VILANCETE SEU, DE LOUVOR,
Ũ soo remedio teria
quem vos vio, para viver,
e este nam pode ser.
Inda qu' outro i nam haa,
aqueste nam quero eu,
pois o mor descanso seu
em nam ver-vos soo estaa.
Milhor é o mal que daa,
vendo-vos algũ prazer,
que a vida sem vos ver.
641
DE DOM PEDRO A LUIS
DA SILVEIRA.
Nam sam eu tam enganado
que me acolhais na mão
a serdes de mim louvado,
que louvor que é cuidado
laa o traz outro foãao.
Eu nam vos louvo nem gabo
e sabeis porque me deço:
é porqu' eu como diabo
bem sei qu' onde nam haa cabo
que nam pode haver começo.
Querei-m' aqui responder
e dizer vossa tençam,
que desejo de saber
o remedio qu' haa-de ter
quem tever esta paixam.
Nesta pregunta pequena,
que a mim assi me mata,
se vos vem, senhor, a vena,
nela nam tomareis pena
senam se for a da pata.
A pergunta.
Se teverdes ũs amores,
com algũa malfadada,
secretos, com que folgueis,
e houver competidores
qu' acertem a malhoada,
que fareis?
Por isso dond' haa-de vir
ũ remedio muito certo
a quem cuidado sentir,
que nam se pod' encobrir
nem pode ser descuberto?
Reposta de Luis da Silveira
polos consoantes.
Senhor, tendo ja lançado
nestas cousas o bastam,
fui por vós reçucitado
e mui desassessegado
co esta vossa questam,
na qual me vereis o rabo.
E pois me assi conheço,
confessai que vos mereço
em errar muito mor gabo.
Eu hei-vos d' obedecer,
isto tendes ja na mãao,
e para mais me dever,
sabei qu' ee com entender
maas repostas quam maas são.
Vossa pregunta m' ordena
tanta confusãao e cata,
que dera por Joam de Mena
ou por dez anos de Sena
atee dez marcos de prata.
A reposta.
Os mais dos descobridores,
quando vam dar na cilada,
trovam-se como ouvireis
e ficam com tais tremores
que vos nam empecem nada,
se sabeis.
Vós os podeis destroir,
que vos acham com concerto
e o qu' ham-de presumir
os haa-de fazer fujir
de vos porem em aperto.
642
DE DOM PEDRO D' ALMEIDA A
ESTE MOTO QUE LHE MANDOU
ŨA SENHORA.
O que a Ventura tolhe
nam o pode o tempo dar.
Quem no tempo se fiar,
senhora, pior escolhe,
porqu' o qu' a Ventura tolhe
nam o pode o tempo dar.
E por isso o qu' ee melhor,
ist' ee o que mais empece.
porqu' o mal sempr' ee maior
e tudo vem ser pior
a quem Ventura falece.
Tudo é temporizar
e pois nada nam s' escolhe,
o que a Venture tolhe
nom o pode o tempo dar.
643
OUTRA SUA A ŨA MOLHER,
QU' ESTAVA MUITO
DEVOTA Ũ DIA
DE CINZA.
Nam vos lembre tanto alma,
pois nam na tendes perdida
que vos esqueçais da vida.
Isto vemos caa e laa,
senhora, em qualquer pessoa,
nunca ter a alma boa,
quando tem a vida maa.
E pois isto craro estaa,
bom é ser arrependida,
mas nam ja qu' esqueça a vida.
644
DE DOM PEDRO A ŨA MOLHER,
QUE LHE MANDOU DIZER QUE
O VENDERAM TRES VEZES
EM ŨA NOITE, NŨ JOGO
QUE ELAS JOGAVAM.
Quem de noite me vendeo,
sabendo que me vendia,
que fizera jaa de dia?
E pois ando posto em preço
e vim a haver esta fim,
quero ver ao que deço
ou quem daa menos por mim.
Que cativeiro roim
em perdê-lo ganharia,
se me vendessem de dia!
645
DE DOM PEDRO, ESTANDO
DOENTE, A ŨA SENHORA
QUE ESTAVA EM ŨU
SERAM DE GRAN‑
DE FESTA
Nam quero ver o prazer
que me traz mais que sentir,
tenh' oo laa quem o tever,
qu' onde me nam querem ver
antes o quero ouvir.
E pois isto mais me val
por me guardar de receos,
quero antes ter meu mal
qu' ir ver prazeres alheos.
646
CANTIGA SUA.
Aas vezes vem liberdade
de ver muitas novidades
e quem tem ũa vontade
faz-lhe ter muitas vontades.
A quem dam por despedida
vontades fartas e cheas
tem a vontade comprida,
que quem vive sem ter vida
nam quer ver vidas alheas.
Daqui vem ter liberdade
e fazer mil novidades,
que por ũa soo vontade
vem perder muitas vontades.
De Dom Pedro a Garcia de
Resende com estas trovas
que lhe mandou.
Nam sei a que me nam ponha
jaa por vós atee morrer,
pois por vos obedecer
vos mostro minha vergonha.
Metei-as laa sô a terra,
qu' a mim justo me parece
que braço que tantas erra
tal pena, senhor, merece.
647
DE
SIMÃO DA SILVEIRA AA
SENHORA DONA JOANA
DE MENDOÇA, SOBRE
ŨA AVE QUE LHE
LANÇOU D' ŨA
JANELA.
Em a voss' ave tomando,
lhe senti no coraçam
que vos quer morrer na mam,
antes que viver voando.
Isto vem de conhecer-vos
de que todo mal s' ordena:
ũus se depenam por ver-vos
e outros vos vem com pena.
Estaa-se toda matando,
queria por salvaçam
ir morrer na vossa mam,
antes que viver voando.
648
CANTIGA DE SIMÃO
DA SILVEIRA.
Para mim tanto me monta
ser presente com' ausente,
tudo vem a ũa conta,
porem mal por quem o sente.
Esta conta tenho feita
e fizeram-ma fazer,
com saber
que nada nam aproveita.
Assi que tanto me monta
ser presente com' ausente,
tudo vem a ũa conta,
porem mal por quem no sente.
649
DE
JORGE DE RESENDE,
ES‑
TANDO DESAVINDO E QUE‑
RENDO-SE TORNAR
AVIR.
Nam posso com meu cuidado
nem é minha minha vida,
que, sendo desesperado,
d' amores tam perdida
que ja sou dela cansado.
E tambem minha vontade,
que roubou a liberdade,
é em tudo contra mim,
minha fee e saudade
nam tem fim.
Com que me defenderei,
se tantos males me seguem?
Que estremo tomarei,
pois já de todo me querem
acabar no que tomei?
E nam tenho coração
nem me quer valer rezão
pera leixar de seguir
aquesta triste tenção
de vos servir.
Que pera me defender
dos males que m' ordenais,
trabalhei por vos nam ver
estes dias, em os quais
me houvera de perder.
Que sempre, meu bem, vos vejo
ant' os olhos com desejo
d' acabar naquesta lei
e nela com mal sobejo
vevirei.
E pois ja nesta firmeza
hei-d' acabar sempre vosso,
acabe vossa crueza,
senhora, que ja nam posso
com tanta dor e tristeza.
Olhai se é merecido,
por viver assi vencido
e vos ter em tanto preço,
ser ante vós esquecido
o que padeço.
Que se de vós esta vida
tam triste fosse lembrada,
nam seria tam perdida
como é nem tam cansada,
por vos querer sem medida.
Que nam seria tam forte
vossa condiçam que morte
por vos querer m' ordenasse
e assi daquesta sorte
m' acabasse.
Mas o nam terdes lembrança,
senhora, meu bem, de mim,
me nam dá mais esperança
que de cedo ver a fim
qu' ordenou vossa mudança.
E esta me satisfaz
porque me veja em paz,
com sospiros e cuidados
e soidades que m' os faz
ser dobrados.
Que meus males tam crecidos
com morte s' acabaram
e meus continos gemidos,
que sahem de coraçam,
entam seram fenecidos.
E tambem a maa ventura,
que contra mim tanto dura,
acabando, acabaraa,
querer-vos, qu' isto procura,
leixar-m'-aa.
Fim.
Pois com minha fim serão
de mim tantos males fora,
peço-vos em concrusam,
senhora, minha senhora,
que ma deis por galardam.
E se isto me negais,
lembrai-vos que me causais
mais dor da que sei dizer
e creça, pois que folgais,
meu padecer.
650
VILANCETE A ŨA MOLHER QUE
SERVIA, COM QUE LHE JA FORA
BEM E SEM NENHŨA REZAM
O COMEÇOU D' ESQUIVAR E
SOUBE COMO SECRETA‑
MENTE SE SERVIA
DOUTRO.
Fui, senhora, descobrir
em meu mal a causa dele
e nela fiquei sem ele.
Fiquei livre e descansado
sem ser triste na lembrança,
ja nunca fareis mudança
que me ponha em cuidado.
Em meu mal serei julgado,
quem souber a causa dele
ser bem que viva sem ele.
E nam vos descubro mais,
porque sei que m' entendeis
e tambem que conheceis
se errais ou nam errais.
Mas por quem me vós trocais,
daqui digo triste dele,
pois ja vejo meu mal nele.
Fim.
Vós me tinheis prometido,
e nam com pouca afeiçam,
que em vosso coraçam
nunca seri' esquecido.
Mas pois sem ser merecido,
mudaste minha fee nele,
assi o fareis a ele.
651
CANTIGA A ŨA MOLHER QUE
LHE DISSE QUE NAM CURAS‑
SE DE A SERVIR, QUE
PERDERIA MUITO
NISSO.
Quem pode tanto perder
que mais perdido nam seja?
Quem vos vio e se deseja
livre do vosso poder?
E neste conhecimento,
inda que faleça amor,
o que menos vosso for
tem menos contentamento
e na culpa maior dor.
Pois que posso eu perder,
s' isto tudo em mim sobeja,
que mais perdido nam seja,
vivendo sem vosso ser?
652
OUTRA SUA.
Desvairadas fantesias,
sospiros desconcertados
acompanham meus cuidados,
e meus dias
nisto soo sam acupados.
E a causa donde vem
este desvairo ou mudança
é lembranças de lembrança,
que me têm
a vida posta em balança.
Que nunca leixam porfias
de conquistar meus cuidados
com sospiros tam cansados,
que meus dias
nam sam em al acupados.
653
OUTRA, QUERENDO-SE PAR‑
TIR DONDE ESTAVA
ŨA MOLHER.
Vai-se-m' o tempo cercando
de meu mal senhorear
minha vida, até quando
ante vós, meu bem, tornar.
E nesta lembrança jaa
sam meus dias tam cansados,
que nam espero que laa
me leixem vossos cuidados
tornar cá.
Que quem vive sospirando
por lh' a partida lembrar,
olhai bem que fora, quando
si vir de vós apartar!
654
TROVAS SUAS EM ŨA PARTIDA.
El dia que me parti
dante vos, senhora mia,
se partió mi alegria donde
nunca más la vi.
E sin elha caminando
vo moriendo poco a poco,
com mis ojos lhanteando,
gritos dando como loco.
Quanto más de vos m' alexo,
más s' acrecienta mi mal,
mi dolor est tam mortal
que del bevir ya m' aquexo.
Los ojos bueltos atraz,
el coraçon me desmaia
por no ver quien a mi traya
nuevas que os vio jamas.
Deseo passar los dias,
las noches más m' entristecem,
todas cosas m' avorrecem
sino seguir mis porfias.
Las quales me dam por gloria
esta vida que posseo,
sin haver de mi deseo
esperança de vitorea.
E assi sin esperança
de veros desesperado,
vo firme con mi cuidado,
mas la vida em balança.
Lagrimas del coraçon
siempre salen por mis ojos,
mis males e mis enojos
no tienem comparacion.
Soledad em tal manera
me causa dolor esquivo,
que m' espanto como bivo
com vida tam lastimera,
desesperada de ter
descanso nunca en sus dias,
porque las congoxas mias
no se pueden socorrer.
Porque vos de quien mi mal
podia ser socorrido
deseais verme perdido,
com tormento desigual.
Y porque vuestro deseo
yo deseo de comprir,
soy contento de seguir
esta vida que posseo.
Com cara triste y mortal
y la voz enroquecida,
ando com pena crecida
y crece pera más mal.
No siento consolacion
que me dexe consolar
ni menos com qu' afloxar
pueda tam cruel passion.
Descanso de mis enojos
es el mal que más me aterra,
ca vos, que me dais la guerra,
traigo siempre ante mis ojos.
Este es el sostimento
de la mi penosa vida,
con esto es destroyda
y se dobra mi tormento.
Mirad, senhora, y quien
tal vida pueda sofrir
qual sufro por vos servir
y tiengo todo por bien.
Porque vos soes vida mia,
en quien la mi alma adora
y sin vos una soo hora
de vida no la queria.
Cabo.
Ni quiero destos dolores
otra merced ni la pido
sino so que en olvido
vos non pongais mis amores,
y sea de vos lembrada
la mucha tristeza mia,
pues mi fe com alegria
a vos soo la tengo dada.
655
DE JORGE DE RESENDE.
Pois por vós meu mal s' ordena
e meus cuidados sem fim,
nam querais qu' assi sem mim
acabe naquesta pena.
Valei a tanta paixam,
quanta passo toda hora,
ou, se nam quereis, senhora,
tornai-me meu coraçam.
Que gram sem rezam fareis
a mim que tanto vos quero,
pois vedes que desespero,
se me logo nam valeis.
Nam consintais ser culpada
neste mal que m' ordenais,
que pois vós soo mo causais,
ficais nele condenada.
Oulhai se sereis tachada,
pois moiro por vos querer
e doi-me ver-vos fazer
ũa cousa tam errada.
Que ficando vós servida,
sem culpa de meu penar,
folgaria d' acabar
por dar fim a tam maa vida.
Assi que soo pelo vosso,
por quam bem vo-lo mereço,
dai ja ò meu bem começo,
pois com tanto mal nam posso.
Nam consintais que se diga
que fazeis tal sem rezam
em querer qu' esta paixam
para sempre me persiga.
Cabo.
E se tanto desejais
de me ver por vós perdido,
com mil paixões destroido
consento, pois que folgais.
Que nam quero mais prazer
de meus males desiguais
que só saber que ficais
servida com me perder.
656
CANTIGA SUA.
Vivo soo em vos querer
e vós em me destrohir,
tudo vos hei-de sofrer
sempre vos hei-de servir.
Mas o erro que fazeis
é o que me dá paixam,
oulhai quanto me deveis
nesta soo satisfaçam.
Ja me nam podeis perder,
bem me podeis destroir,
que tudo hei-de sofrer,
sempre vos hei-de servir.
657
CANTIGA SUA.
Se menos rezam tivera
no que sento d' acabar,
menos tempo me valera,
mas ela me vai salvar.
Que de quem me fui vencer
é de tal merecimento,
que dobrar meu padecer
é dobrar contentamento.
E se meu mal nam tivera
isto pera descansar,
ja de todo me perdera,
mas aqui me fui salvar.
658
VILANCETE SEU.
Meus males, se m' acabardes,
que fareis,
pois em mim todos viveis?
Vós sem mim nam tendes vida
e a minha vossa é,
pois dizei, por vossa fee,
que ganhais em ser perdida?
Nam vos saiais da medida
e fareis,
meus males, o que deveis.
Repousai, pois repousastes
em mim passa de tres annos,
onde sofri tantos danos
quantos me vós ordenastes.
De todo bem m' apartastes,
que quereis?
Ceçai jaa, nam m' acabeis!
Fim.
Nam useis tanta crueza,
leixai a meus olhos ter
ũ soo dia de prazer,
pois têm tantos de tristeza!
Nisto fareis gentileza,
se quereis,
e despois m' acabareis.
659
CANTIGA A ŨA MOLHER QUE
SERVIA, PORQUE LHE PEDIO
LICENÇA PERA ŨA COUSA
QUE ERA REZAM QUE
FIZESSE E A ELE
DAVA PAIXAM.
Vejo que tendes rezam
no que me mandais pedir,
tambem minha condiçam
nam no poode consentir.
Mas pois em mim o leixais,
eu vejo bem se m' engano,
fazei-o, nam mo digais,
porque seja menos dano.
Porem todo daa paixam,
nam vo-lo sei encobrir,
mas pois vós tendes rezam,
é forçado consentir.
660
CANTIGA SUA.
Senhora, de meu cuidado
nam sei julgar o que sento,
porque dá contentamento
e faz-me desesperado.
Desespera-m' esperar
ver a fim de meu desejo,
mas na hora que vos vejo
nam sei mais que desejar,
porqu' entam é acabado
ũ grande contentamento,
mas vosso merecimento
me torna desesperado.
661
OUTRA CANTIGA SUA.
Vejo que crece meu mal,
nam vejo rezam porquê,
mas sei que vossa mercê
é a causa principal.
Mostrai-me como matais
que bem sei que me matastes,
se com ver me condenastes
tambem nisso me salvais.
E pois nisto é igual
a paixam com a mercê,
de que moiro ou porquê,
decrarai-me vós meu mal.
662
OUTRA CANTIGA SUA.
Ó triste, que m' ee forçado
de partir donde nam sei,
que faça d' apassionado,
que farei?
Qu' em partir partem de mim
vida, descanso, prazer;
paixões, cuidados, querer
m' hão-de seguir atee fim.
Que deles nunca apartado
hei-de ser, e bem no sei,
mas o partir é forçado,
que farei?
663
CANTIGA SUA.
Quem consentio em vos ver
a si mesmo condenou,
quem de ver-vos s' apartou
nunca mais terá prazer.
Nestas ambas me culparam
os olhos com que vos vi,
que logo me cativaram
e tambem me condenaram
o dia que me parti.
Partio-se de mim prazer,
meu descanso s' acabou.
Oo meu bem, quem m' apartou
de vos ver?
664
CANTIGA SUA.
Lembranças tristes, cuidados
magoam meu coraçam,
quando cuido nos passados
dias, que passados sam.
Que a vida me custasse
todo outro padecer,
folgaria de sofrer
s' o passado nam lembrasse.
Mas porque sejam dobrados
meus males mais do que sam,
cuido sempre em beens passados
que perdi bem sem rezam.
665
GROSAS SUAS A ESTES MOTOS:
Doces esperanças tristes.
Com quanto mal sempre vistes
padecermos, coraçam,
tomastes por galardam
doces esperanças tristes.
Que s' esperança não dereis
a meus crecidos cuidados,
neles culpa nam tivereis,
oh quanto milhor vivereis,
se foram desesperados!
Mas com quanto sempre vistes
nossas dores e paixam,
tomastes por galardam
doces esperanças tristes.
Vida com tanto cuidado.
Pois que sam desesperado
de nunca descanso ter,
pera que quero soster
vida com tanto cuidado?
Que lançando bem a conta
do em que posso parar,
sam certo de m' acabar
ũ mal que tanto m' afronta.
E pois isto afirmado
ja tenho que haa-de ser,
pera que quero soster
vida com tanto cuidado?
666
CANTIGA, AQUEIXANDO-SE
DOS SOSPIROS.
Sospiros, porque quereis
vir todos juntos a mim,
pois perdeis por minha fim
nam ter onde repouseis?
Leixai-me que ja me leixa
por vós a vida, prazer,
e meu coraçam s' aqueixa
de vos nam poder sofrer.
Eu nam sei porque queireis
vir todos juntos a mim,
pois em me dardes a fim,
a vós tambem a dareis.
667
OUTRA SUA.
¡ Oh muerte, pues que dolores
me causaste desiguales,
com dar fim a mis amores
no dobres vida a mis males!
Con esto me pagarias
los males que me quesiste
ordenar,
si diesses fim a mis dias
y querer vida tam triste
acabar.
Pues m' haas causado dolores
tan esquivos y mortales,
com dar fim a mis amores
no dobres vida a mis males.
668
TROVAS ESTANDO DESAVINDO.
Onde nam vale rezam
que aproveitam querelas?
Mas se sam do coraçam
quem s' ha-de calar co elas?
Ja nam posso mais sofrer,
tudo hei-de provicar,
pois me quisestes perder
eu nam me posso ganhar.
E pois desta esperança
ja estou desesperado,
nam pode vir mal andança
que me dê maior cuidado
de que hei-d' haver temor.
Usai toda crueldade,
pois com tanto desamor
falsastes fee e verdade.
Des que de vós me venci
e por vosso me quisestes,
sempre jamais vos servi
no risco que me posestes.
E por bem nem mal que visse
nunca disso m' apartei
nem por cousas que ouvisse,
mudança nunca cuidei.
E assi com tal firmeza
passava por vos querer
tanta dor, tanta tristeza
que cuidei de me perder.
E vós por maior vitoria
haverdes e serdes leda,
achegastes-m' aa mor groria,
por me dardes maior queda.
E na hora que me vistes
mais contente e namorado,
sem mais tardar me feristes
no que sam mais magoado.
Acabastes meu prazer,
trocastes contentamento
em dobrado padecer
e a vida em tormento.
Cabo.
Assi vivo sem ter vida
e moiro sem acabar,
por serdes desconhecida
quis assi desabafar.
Mas bem sei qu' ee por de mais
e aqui quero dar fim,
pois vós mesma me julgais,
que sois imiga de mim.
669
CANTIGA.
Acabastes minha vida,
mas bem sei que nam sereis
de nenhũa tam servida,
pois querida
ja nunca tal cobrareis.
Se vingança desejara,
este fora gram conforto.
Oh quem tanto nam amara,
porque nisso descansara!
Mas doi-me despois de morto,
que com verdade querida,
senhora, nunca sereis
e sereis mais requerida
que servida,
e por mim sospirareis.
670
ESPARÇA A ŨA MOLHER
QUE SERVIA E SE CASOU.
Os meus dias s' acabaram,
porque estes ja nam sam,
o prazer, vida passaram,
de todo se me quebraram
as cordas do coraçam.
Ó olhos cansados, tristes,
que tantos males ja vistes,
chorai tam grande mudança
e vós, falsa esperança,
leixe-me, pois vos partistes,
de todo vossa lembrança!
671
OUTRA ESPARÇA.
Quem me poderaa valer,
pois eu nam posso sentir
o que mais são me seria?
Ja faleceo meu prazer
e eu quis nisso consentir,
crendo que acabaria.
Mas com quanto mal padeço,
nam posso triste acabar,
porque sei,
senhora, que nam mereço.
De me ver assi tratar,
que farei?
672
OUTRA ESPARÇA EM QUE ES‑
TAA O NOME D' ŨA SENHORA
NAS PRIMEIRAS LETRAS
DE CADA REGRA.
De vós, senhora, e de mim
Ousarei de m' aqueixar
Nos males que nam têm fim,
Antes vam ò galarim
Jurando de m' acabar,
Lastimado com rezam.
Amores bem me fizeram
Resestir minha paixam,
Inteira satisfaçam
Aa mester, pois me prenderam.
673
OUTRA ESPARÇA.
Cuidado, quem te pudesse
de si ũ hora apartar,
e que mais bem nam tivesse
era muito nam cuidar
que tu es destroiçam
do coraçam namorado
e teens esta condiçam:
que es agualardoado
como que nom dás paixam.
674
OUTRA ESPARÇA, NAM PODEN‑
DO VER SUA DAMA, BUSCANDO
TODOS OS REMEDIOS
PERA ISSO.
A grorea de conhecer-vos
nam ma pode ja negar
meu mal, que seja dobrado;
mas rezam consente ver-vos,
ventura nam daa lugar
e moiro desesperado.
Que a vida sem vos ver
nam é vida nem viver
nem se deve chamar vida
nem sem vós nam pode ser
que leixe de ser perdida.
675
OUTRA ESPARÇA.
¿Adu halharé prazer?
¡ Oh males, males, lexadme,
si non lo quereis hazer,
acabad y acabadme,
que mi vida se destruye
sin halhar consolacion
en lo que siente!
Todo descanso me huye,
duro es el coraçon
que tal sofrir me consiente.
676
VILANCETE, PORQUE DESPOIS
DE CASADA SUA DAMA O CON‑
FORTAVA ŨA AMIGA, DIZEN‑
DO QUE AINDA DEVIA DE
TER ESPERANÇA.
Quem em vida m' acabou
nam deve ninguer de crer
que morto m' haa-de valer.
A cousa qu' estaa incerta
bem se pode dovidar,
mas aquesta é tam certa
que se nam deve cuidar.
Pera mais males me dar,
vontade se deve crer,
mas nam pera me valer.
Qu' esperança tam perdida
é a que vem nesta parte,
pois o ja é minha vida
aousadas quanto farte.
E quem acabou dest' arte,
sem lho nunca merecer,
como lh' ha-de socorrer?
Cabo.
Nam tenho mais certo bem
que buscar a sepoltura
nem espere ja ninguem
de me ver outra ventura,
que meus males nam têm cura,
nam digo pola nam ter,
mas por mingua de querer.
677
CANTIGA.
Quebrastes minh' esperança,
falsastes vossa verdade
e pusestes em balança
mudar-se minha vontade
e querer tomar vingança.
Mas nam consente meu bem
que vos troque mal por mal,
sofrer-vos-ei como quem
ja nam pode fazer al
nem outro remedeo tem.
Porem moiro na lembrança
do desterro da vontade,
chorarei vossa mudança,
viverei em saudade,
fora de tod' esperança.
678
OUTRA CANTIGA.
Minha vida sam tristezas,
meu descanso é sospirar,
vossas obras sam cruezas
que juram de m' acabar.
A passar esta paixam
ja estou oferecido,
mas nam no ter merecido
me magoa o coraçam.
Assi vivo em tristezas,
meu descanso é sospirar
e vós com vossas cruezas
consentis em m' acabar.
679
CANTIGA.
Senhora, pois me matais
por vos dar meu coraçam,
peço-vos que me digais
de que maneira tratais
aos que vossos nam sam.
E quiça que nesta conta
levarei contentamento,
se vir que tanto me monta
na paga de meu tormento.
E se vós a todos dais
tam crua satisfaçam,
peço-vos que me digais
que tormentos enventais
aos que vossos nam sam.
680
ESPARÇA.
Que triste vida me dais,
que cuidado tam crecido,
que penas tam desiguais,
sem vo-lo ter merecido!
Havei ora piadade,
pois que minha liberdade
estaa em vosso poder.
Nam folgueis de me perder
que fazeis gram crueldade.
681
OUTRA ESPARÇA.
Nam tenho ja esperança,
meu prazer perdido é
e com toda mal andança
nam poode fazer mudança
d' adorar-vos minha fee.
E vós que esta firmeza
vedes e minha tristeza,
quereis meus males dobrar.
Ja devia de quebrar,
senhora, tanta crueza!
682
VILANCETE DE JORGE
DE RESENDE.
Que se perca minha vida
no que desejo cobrar,
mais se deve aventurar.
Sogiguei meu coraçam
a cousa de tanto preço
qu' ahinda lhe nam mereço
dar-me tal satisfaçam.
Em tam justa perdiçam
quisera, por me salvar,
mil vidas qu' aventurar.
683
OUTRO VILANCETE SEU.
Pois tanta parte vos cabe
da perda de minha vida,
nam consintais ser perdida.
Vós perdeis em se perder
o poder dela e de mim,
eu nam perco mais em fim
que leixar de padecer.
Querei isto conhecer,
pois é vossa minha vida,
nam consintais ser perdida.
684
Pois meu bem tam verdadeiro
ante vós tam pouco val,
a vida será meu mal.
Seram cheos de tristeza
os dias que viverei,
s' acabar, acabarei
de sentir vossa crueza.
Fará fim minha firmeza,
pois ela me tem ja tal
que viver hei por mor mal.
685
OUTRO VILANCETE SEU.
Esta dor m' ha-d' acabar,
meus olhos, se assi é,
que em vós haa pouca fe.
Mas rezam nam me consente
poder-me nisso afirmar,
que quem é tam eicelente
nam haa tam craro d' errar.
Nisto me vou confortar,
vós, meu bem, oulhai que é
grande erro nam ter fe.
686
CANTIGA SUA.
Nam pode meu coraçam
libertar-se de cativo,
porqu' ee grande a sogeiçam
em que vive e em que vivo.
Que s' algũa liberdade
em mim e nele tivera,
que mor vitoria quisera
que fazer-vos a vontade?
Mas é tal a sogeiçam
de vos querer, em que vivo,
que nam pode o coraçam
libertar-se de cativo.
687
VILANCETE, DESAVINDO-SE DE
ŨA MOLHER QUE SERVIA.
Vós me quisestes perder,
eu, senhora, me guanhei,
pois de vosso me livrei.
Eu compri quanto abastasse
como quem vos muito amava,
vós quisestes que cuidasse
quanto contra mim errava.
Contudo nam me pesava,
mas agora qu' acordei,
conheço que me salvei.
688
OUTRO VILANCETE.
Por mais mal que me façais
nunca mudar me fareis,
até que nam m' acabeis.
Minha fee, minha firmeza
em vosso poder estaa,
sofrerei minha tristeza,
pois vossa mercê ma daa.
E meu bem nunca faraa
mudança nem na vereis,
até que nam m' acabeis.
689
PERGUNTA SUA.
Pois em vós, senhor, se acha
toda duvida que temos
nos amores descuberta,
nam vos perguntar é tacha,
por vermos do que queremos
a carreira ser aberta.
E porque em meu cuidado
sento muita torvaçam
em cuidar naqueste caso,
seja por vós decrarado,
pois que vossa descriçam
faz o asparo ser raso.
É, senhor, o que pergunto
e de vós quero saber
por descansar meu sentido:
Qual é cousa que traz junto
com pesar, dor, gram prazer,
sendo d' amores ferido?
Porque isto m' acontece
sem saber donde me vem,
mas sei que nace d' amores.
E pois em meu saber falece,
socorrer-m' a vós convem,
que soes primor dos primores.
690
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Secreto dolor de mi.
Yo gané por os mirar
mis dias puestos em fim,
las noches mal sospirar
e nunca puedo quitar
secreto dolor de mi.
Ũa passion que no digo
aflige mi vida triste,
guerreo siempre comigo
y la ventura que sigo
em mal y más mal consiste.
Todo me causa pesar,
plazer ya lo despedi,
mi descanso es sospirar
y no se puede quitar
secreto dolor de mi.
691
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Meus olhos a minha vida
sam contrairos.
Querer-vos tam sem medida
me faz viver em desvairos,
rezam da fee é vencida,
meus olhos a minha vida
sam contrairos.
Sam contrairos, pois forçarão
minha vida a vos querer
com tal fee que cativarão
meus sentidos e causarão
nam ser vida meu viver.
Amor, rezam, fee crecida
sempre me poem em desvairos,
minha dor é sem medida,
meus olhos a minha vida
sam contrairos.
692
CANTIGA SUA.
Lembrai-vos, meu bem, de mim,
porque soo em vossa mão
estaa minha salvação
e minha fim.
Se de vós nam for lembrado,
que remedio posso ter?
Querei-me, meu bem, valer,
nam moira desesperado,
que sem vós nam haa em mim
senam toda perdição
e tomar por salvação
ver minha fim.
693
OUTRA CANTIGA SUA.
Pois vivo desesperado,
bem seria
que me leixasseis ũ dia,
meu cuidado!
Gualardam nam no espero
nem haa em meu mal mais bem
que soo querer, porque quero
mais que nunca quis ninguem.
Porque sam desesperado
d' alegria,
leixai-me ja ũ soo dia,
meu cuidado!
694
OUTRA SUA.
Meus olhos, quando partistes,
me fizestes conhecer
cuidados, lembranças tristes,
sospiros e padecer.
Todo prazer me roubastes,
nam sei quando vos verei
nem quando descansarei
desejos que me leixastes.
Fezestes meus dias tristes,
dobrastes meu padecer,
meus olhos, pois que partistes,
nam me queirais esquecer.
695
CANTIGA A ŨA AMIGA DE
QUE MUITO CONFIAVA E
SOUBE QUE O VENDIA
E FALAVA POR
OUTRO.
Eu cuidei que me salvava
e fui, senhora, saber
que d' ũ arte m' enganava,
que me lançava a perder.
Atentai nisto que digo,
e nam queirais que mais diga,
que quem é tam grande amigo
deverá de ter amiga.
Nam creais que descuidava,
pois que tudo fui saber
e de quem mais confiava
achei querer-me vender.
696
CANTIGA FINANDO-SE ŨA
MOLHER QUE SERVIA.
Mis ojos, pues ya perdistes
esperança de tener
algũ descanso,
vuestros dias seran tristes
y vuestro gram padecer
nunca manso.
Bevireis muy lastimados,
deseosos d' algũ dia
poder ver
con quien ereis consolados,
quien vuestra passion hazia
menor ser.
Desdichados ojos tristes,
pues que no podeis tener
ningun descanso,
lhorad el bien que perdistes,
que ya vuestro padecer
no vereis manso.
697
MONIZ E A DOM GARCIA D' AL-
BOQUERQUE, QUANDO FO‑
RAM COM DOM JOAM DE
SOUSA A CASTELA, QUE
FOI POR EMBAIXADOR,
DO QUE LHE HAVIA
D' ACONTECER, EN-
DERENÇADAS AAS
DAMAS.
Senhoras.
De dous qu' ham-d' acompanhar
Dom Joam atee Castela,
quero eu adevinhar
o modo que ham-de levar
atee se tornarem dela.
E confio em seu saber,
que se nam escandalizem,
posto que lhe profetizem
a maneira que ham-de ter.
Eles ja polo caminho
ham-d' ir ambos sempre soos
e naquisto vereis vós
qu' ha-de ser o qu' adevinho:
ũ deles parecer-lh' aa
que leixa feito alicerce
e o outro sospiraraa,
porque às vezes cuidaraa
que quem nam parece esquece.
Sam gentis homens que farte,
brandos de conversaçam,
sam dous amigos d' ũa arte,
galantes qu' em qualquer parte
que estiverem valeram.
Nam se podem enfadar
pessoas tam concertadas,
mas antes pera falar,
folgaram de caminhar
mais jornadas.
Ham-d' estar muito frautados
aa mesa, quando cearem,
e, se algũs aperfiarem,
ham-d' estar eles dobrados.
E com sospiro calado
dirá hũ per ante alguem:
— Por Deos, estes estam bem
fora de nosso cuidado.
O outro mais cortesão,
eu apostarei que colha
ũ ramo seco sem folha,
que leve sempre na mão.
Ham tambem de caminhar
algum hora sem se ver,
porqu' às vezes ũ cuidar
val mais que quanto falar
num caminho pode ser.
Se andarem por luar,
por si está adevinhado,
cada ũ s' ha-d' apartar
e entam ò contemprar
perdei cuidado.
E na primeira jornada
haa ũ de dizer assi:
— Quem já estivesse aqui
da tornada!
E se laa os convidarem,
aa primeira rogar-s' -am,
o que virem andaram
muito cheos de notarem.
Parecer-lh' -am grandes anos
todolos dias passados,
far-s' -am muito namorados
per geitos a castelhanos.
Ambos soos polo caminho
iram assi saudosos,
apartados do sobrinho,
por ir mais sustanciosos.
Iram assi cordiais
às vezes atuar-s' -am,
ham-de levar presunçam
de representarem mais
que Dom Joam.
Levam motos respondidos,
pedidos per' aa despesa,
trabalharam por empresa,
mas nam ham-de ser ouvidos.
O qu' este tempo fizeram
ham que fica em balança
e tambem sei que disseram:
— Ó duvidosa lembrança!
A ũ deles ham-d' ouvir
el secreto es descuberto.
Ooh que responder tam certo!
E nom se pode encobrir
e sorrir.
Se quereis que mais alcance,
nom digais muito s' estendem,
mais ham-de cantar romance
em que cuidem que s' entendem.
Trova por parte deles.
Dizei tudo o que puderdes,
qu' em fim eles partiram
e, s' isto por mal houverdes,
ride vós quanto quiserdes,
qu' eles sabem como vam.
Nam se pode grosar ida
em dias tanto sem festa,
que soo polo de tal vida
antes nunca vi partida
a proposito mais que esta.
698
VILANCETE
DE JOAM DA
SILVEIRA.
Nam sinto o que me fazeis,
senam o mais
que sei que me desejais.
Os trabalhos hei por bem
que sejam camanhos sam,
qu' eu nam chamo mal senam
aa verdade com que vem.
Nem deles nam me deveis
senam o mais,
que sei que me desejais.
Que nisto qu' assi me trata
a que nada me nam val,
o que vejo faz-me mal,
mas o qu' entendo me mata,
porque com quanto fazeis,
co que mostrais,
o que fica me doi mais.
699
DESENGANO QUE LHE DAVAM.
Querem-me desenganar,
que farei desenganado?
Descanso fora cuidar
si nam houvera cuidado.
Grande tempo, grande engano
trouxe eu mesmo comigo,
levou-mo ũ desengano,
fiquei eu soo no perigo.
Todo o tempo de folgar
para mim é escusado,
cansado sou de cuidar
da parte do meu cuidado.
700
OUTRA CANTIGA SUA.
Ũ novo mal que me veo,
donde o bem esperei,
me tem assi que nam sei
que desejo ou que receo.
Por seguir ũs vãos enganos
me leixei mesmo a mim,
com tudo me desavim,
concertei-me com meus danos.
Mas pois que m' eu fiz alheo
de quem me nam guardarei
e que fim esperarei
d' antre desejo e receo?
701
D'
ALVARO FERNANDEZ
D' ALMEIDA A Ũ
FUNDAMENTO.
Quando faço fundamento
daquilo que mais m' apraz
a Fortuna me desfaz
tud' em casteelos de vento.
Qu' isto assi seja ordenado,
ja me nam podem tirar
morrer bem-aventurado,
pois m' eles ham-d' acabar.
Assi passo esta vida,
julgai quejanda seraa,
pois o mor bem que nel' haa
é lembrar-me como estaa
para tudo oferecida.
Minha dor tam esquecida,
oo minha fim e começo,
quem vos visse conhecida
de quem eu tam bem conheço!
Cabo.
Òs desastres quem lhes deu
sobre mim tanto poder?
Ou como pod' isto ser,
pois a vós soo me dei eu?
Nam me dê Deos mais vitoria,
pois o mal assi m' alcança,
senam perder a memoria
quando perdess' esperança.
702
ESPARÇA SUA.
Pois os males quantos sam
nam mudam meus fundamentos,
mal podem outros tormentos
enlhear minha tençam.
E pois isto está assentado,
medido por este peso,
oo cuidado mal despeso,
oo mal despeso cuidado!
703
OUTRAS D' ALVARO FERNANDEZ
D' ALMEIDA AŨA MOLHER,
QUE FALAVA NELE MAL.
Se podesseis ter maneira
de mudar a serventia,
gram proveito vos faria,
senhora, quanto a primeira.
E por mais craro o dizer
feede-vo-l' a boca tanto
que m' espanto
como vos podem sofrer!
Por isso de meu conselho,
vós divieis d' escusar
de todo ponto o falar,
senam for por ũ juelho.
E seja logo cerrada
a boca de sobremão,
de feiçam
que dela nam saia nada.
As gengivas e os dentes
nunca os tais vi a ninguem,
vós pareceis-me tam bem
como tende los parentes.
Em tudo sois acabada,
Jam Cotrim
porem vós falais em mim
coma molher magoada.
Se bem ou mal pareceis,
que vos posso eu fazer?
Pexe devereis de ser,
pois pola boca morreis.
Nunca isto confessei,
mas eu dela me finara,
se de vós nam m' arredara
assi como m' arredei.
Fim.
As trovas sam acabadas,
porque as quero acabar,
ma' las magoas olvidadas
malas vos sam d' olvidar.
Leixai cada ũ viver,
dai ò demo tam má manha
qu' eu nam posso mais dizer,
porque tenho que fazer
na Gram Bretanha.
704
CANTIGA D' ALVARO FERNAN‑
DEZ D' ALMEIDA.
Apressões de cada dia,
que as eu possa sofrer,
elas dam bem que fazer
aa fantesia.
Porque se cuido que vou
no meio de minhas dores,
vejo quem m' as ordenou,
sem culpa doutras maiores
em qu' estou.
Rogo à Virgem Maria
que me nam queira valer,
se trago na fantesia
cousa que possa entender.
705
OUTRA SUA A ŨA SENHORA,
QUE TINHA ŨS SINAIS
NO ROSTO.
Meus olhos viram sinaes,
começando meus amores,
senhora, que nam creaes
que podiam ser piores.
Mas eu nam quis tomar deles
senam engano dobrado,
sendo certo que por eles
fora bem desenganado.
Mas pois vós assi leixais
quem vos deu tantos amores,
nam m' enganarei jamais,
mas cuidarei que sinais
sam proficias maiores.
Outra sua.
Eu via sempre crecer
de contino cuidado,
quando tinha mais prazer,
me sentia mais cansado.
Pois nam cri estes sinais
nem outros que vi peores,
bem merecem meus amores
o descanso que lhe dais.
706
CANTIGA SUA.
Muito mais mal merecera
do que passo cada dia,
se me por vós nam perdera,
pois que vos ja conhecia.
E neste conhecimento
vejo o bem que me Deos fez,
pois que naci ũa vez
para morrer por vós cento.
Se eu isto nam quisera,
bem vejo que merecia
perder mil almas nũ dia,
s' o corpo tantas tivera.
707
CANTIGA
D' ALVARO FERNAN‑
DEZ D' ALMEIDA SOBRE Ũ
CASO DE QUE ELE NAM
DAVA CONTA A
NINGUEM.
Ja dera gritos ũ mudo
co meo d' ũa paixam
qu' eu tenho, mas sofro tudo
por conservar a tençam.
Sofro muita dor secreta
do que é e ha-de ser,
sendo a causa manifesta
é em mim tam encuberta,
qu' ando pera ensandecer.
A meus males nam lh' acudo,
porque quer meu coraçam
que lhe conserve a tençam
e que leixe perder tudo.
Sua ao mesmo caso.
Tantos males tem meu mal
que se nam podem dizer
e tam maos sam de calar,
como se podem sofrer?
O tempo vai-se passando
e falece o sofrimento,
meus olhos vam amostrando
os sinais do pensamento.
Carecido é este mal
de descanso e de prazer,
pois nam posso mais dizer
tendo tanto que falar.
Outra sua a este mesmo caso.
Que m' aproveita saber
o que me pode matar,
pois se nam pod' escusar
o qu' ha-de ser?
As cousas sam lemitadas
e fados de cada um,
vidas mal-aventuradas
ũas por outras mudadas,
muitos cuidados por um.
Trabalhei por alcançar
isto que vim a saber
para me desenganar,
e acabei de conhecer
que pois havia de ser,
nam se podia escusar.
708
D' ALVARO FERNANDEZ D' AL‑
MEIDA A ŨA DAMA GORDA,
COMO LOUVOR.
Levais donas e donzelas,
todo mundo precedeis
no serão e nas janelas,
onde quer que pareceis.
E mais sois bem desviada
das damas qu' agora sam,
porque sois mui carregada
qu' ee sinal de presunçam.
Logo pareceis antr' elas
daqueles a que recendeis
nas pousadas, nas janelas,
onde quer que pareceis.
709
OUTRAS SUAS A ESTE
VILANCETE QUE DIZ:
Tangovos yo mi pandero,
tangovos y penso en al.
Si tu, pandero, supiesses
mi dolor y lo sentiesses,
el sonido que hiziesses
seria lhorar mi mal.
Quando taño est' estromento
es com fuerça de tormento,
porqu' está nel pensamento
la memoria deste mal.
Y si penso en mi dolor
hazese mucho mayor,
no sé qual es lo mejor
ni sé como sufro tal.
Em mi coraçon, senhores,
son continos los dolores,
los cantares son cramores
de qu' el jesto daa senhal.
Y la causa dest' enganho
ha más que dura d' un anho,
no oso dezir mi danho
porque no muera su mal.
Cabo.
Desta pena es la groria
assentalha en la memoria,
porqu' esta es la vitoria
del triste que quiso tal.
710
CANTIGA D' ALVARO FERNAN‑
DEZ D' ALMEIDA.
Para me poder valer
tiro do qu' ando cuidando,
qu' o qu' ha-de ser haa-de ser,
para qu' ee andar cansando?
E mais sei que tanto monta
verdade como engano,
porqu' engano e desengano
tudo vem a ũa conta.
Quando as cousas ham-de ser
nam ha i ir-lh' atalhando,
porqu' ee mao de desfazer
o que o tempo vai fundando.
711
DE
JOAM GOMEZ D' ABREU A
DOM DUARTE DE
MENESES, ES‑
TANDO COM EL-REI NOSSO
SENHOR EM ARAGAM,
EM QUE LHE DAA
NOVAS DE
LIXBOA.
Meu senhor, por vos pagar
os ensinos que me dais,
novas vos quero mandar
com qu' ee certo que folgais.
Temos cá mui gentis damas
e mui bem acompanhadas,
e vós la pagais as camas
e pousadas.
Nam prometem caa pancadas
as damas por lhes falar,
mas dam dores mui dobradas
a quem nam se quer calar.
Dam dinheiro por ouvir
às vezes toda pessoa,
andam gordas ja de rir
nesta Lixboa.
Ja nam tomam cá espadas
em as calhes desonestas,
mas mui acerca das frestas
das nossas damas prezadas.
Com bisarma Bras Correa
quer o paço vir roldar,
boons fidalgos aa cadea
quer levar.
Quem nam tem rocim ligeiro
mais que quantos haa em Fez,
nam aguarde no terreiro
que se dêm as horas dez.
Andam logo beleguins
pola costa passeando,
se vos acham i falando,
eis vos is.
A senhora que casava,
ela, a nosso parecer,
estaa disso escusada,
segundo ouvi dizer.
Ũ dos quatro do conselho
a requere para si,
ri-se mais do Conde velho
que de mi.
Prima vossa servidores
acha mais do qu' haa mester,
faz-lhe tam poucos favores
que nam ha i qu' escrever.
Ouve palavras coutinhas
algum hora por desdem
e com novas mao sinhas
folga bem.
Lordelo vejo andar
sempre tam triste com' eu,
dizendo qu' haa-de casar
com ũ d' Abreu.
Culpariês vós Miranda
ir buscar vida viçosa,
se soubesseis como anda
tam fermosa.
Em Anriquez Guiomar
vos nam falo ao presente,
porqu' estando ela doente
me quisera desonrar:
diz que disse dela mal,
estaa de mim descontente,
e ser disso inocente
nam me val.
Prima vossa tem cuidado
de galantes assentar,
tem-se ja desenganado
de no conto nam entrar.
E em parte ha gram prazer
sahir eu mal despachado,
por irmão aqui trazer
escusado.
O Noronha do ruam
é da Silva namorado,
a Candea d' Aragam
foi por ela apodado.
E chamou caa respondinos
oos galantes qu' aqui stam,
faz-m' andar em desatinos
sem rezam.
Tem que passa dos oitenta
servidor nesta cidade
e tem outros de quarenta,
na verdade.
Tinoco anda escondido,
quer com musicas vencê-la,
é de boubas mais perdido
que por ela.
Estaa com Castro Dom Rodrigo
mui acerca de casar,
Sancho quer ser seu amigo,
nam quer ja ninguem matar.
Ateequi estev' encerrado,
fez mangas de chamalote,
presumimos qu' o pelote
é frisado.
Troux' aqui o seu pecado
ũ domingo Joam Falcam,
vi-lhe logo o coraçam
ir de todo trastornado.
Perguntei-lhe: — Que buscais?
Nam vos lembra o mal passado?
Respondeo-me: — Sam sinais
de namorado!
Se visseis atravessar
aas janelas o Coutinho
e com damas praticar
em talhadas de toucinho!
Folgariês de o ver
de partir cũa senhora,
nam quisesseis mais viver
ũa soo hora.
É por Melo tam sandeu
vosso amigo o de Toar
que me pesa polo seu
de o ver assi penar.
E dela pior tratado
do que certo lhe merece,
cada vez mais namorado
me parece.
Seria muita custura
pera toda esta somana
contar-vos da fermosura
da senhora Dona Joana.
Sabei certo que Meneses,
todas juntas quantas sam,
matam quantos portugueses
cá estam.
O Duque tem gaviães,
dama nenhũa nam mata,
tem galantes bastiães
e nam de prata.
Ensaiou-se no terreiro
ant' as janelas da Ifante,
fez do seu paje fouveiro
ja galante.
Do senhor que cá repousa
no bairro por escolar
nam haa i que dizer cousa,
que seja pera contar.
Seu Sampaio servidor
traz mui loura cabeleira,
anda caa no Salvador
com ũa freira.
Filhos dous Penamacor
da Condessa de Liceira,
o pequeno, qu' ee maior,
tem Macedo por terceira.
Andam ambos derredor
seus amores maldizendo,
o que é comendador
remetendo.
Haa tambem damas singelas
qu' estam sempre a passar,
no eirado e nas janelas
pola seesta as vi estar.
Crece a erva derredor,
andam i bestas pacendo,
a contar-vos mais, senhor,
nam entendo.
O Sousinha em arrefem
se vestio de louçainha,
de gangorra e bedem
foi aa sala da Rainha.
Serve mal sua donzela
vai-lhe bem com' é rezam,
assentou-se ja com ela
no serão.
Fim.
Sam d' Abreu Gomes Joam,
que com mui grande mesura
me conheço ser feitura
mestre meu de vossa mão.
Encomendas òs irmãos
dai-lhe minhas por nobreza
e beijai por mim as mãaos
a su' Alteza.
712
CANTIGA DE
FRANCISCO
D' ALMADA.
¡ Ooh gozo de mi alegria,
quieres que nos despidamos,
que la desventura mia
manda que no nos veamos
em quantos dias bivamos.
Pues afraco tu deseo
aunque grave te sea,
que la coita em que me veo
manda que nunca te vea.
De la gloria que solia
conviene que nos partamos,
que la desventura mia
manda que no nos veamos
em quantos dias bivamos.
713
DE
FRANCISCO LOPEZ PEREIRA
A ŨA MOLHER QUE SERVIA.
O vosso amor que m' aqueixa
anda em voltas comigo,
foge-me, quando o sigo,
se lhe fujo, nam me leixa.
Nam me leixa sossegar.
quando o creio, entam me nega,
no bem que faz se me entrega
pera m' a vida tirar.
Onde estou ali nam sam
e sam donde nam estou,
por mui longe que me vou
fica com meu coraçam.
Naquilo que mais me praz,
sento logo desprazer,
sem poder triste saber
meu descanso em que jaz.
Traz-me assi enganado
que nam sei o que desejo,
mata-me se vos nam vejo,
vendo-vos falo dobrado.
Faz-me tanto mal em soma,
que nam sei onde me vaa,
se m' algũa groria daa
nesse momento ma toma.
Tambem manda que nam guarde
as cousas que me defende,
aquelas em que m' ofende
que as nam fale nem brade.
Compre-me ver e sofrê-lo,
calar-me, nam lhe falar,
porque mais quero pagar
com isto que merecê-lo.
Em aquesta deferença
donde vos sou tam conforme,
eu nam sei a quem me torne
nem que busque com que o vença,
senam a vós, minha senhora,
que tendes tanto poder
que me podestes fazer
de livre vosso nũa hora.
Fim.
E pois vosso amor é
o que me causa este dano,
nam queirais que deste engano
se magoe minha fe.
Mas pois que a mal tamanho
resistir com al nam posso,
mandai-lhe que como a vosso
me trate, nam coma estranho.
714
CANTIGA SUA.
Vam seguindo seus estremos
meus males cada vez mais
e vejo que vos lembrais
cada vez ja de mim menos.
Se o fazeis com rezam
nam m' ouçais nunca desculpa
e, se vos nam tenho culpa,
doia-vos minha paixam.
Nam queirais que siga estremos,
que mostrem que me matais,
que com a vida que me dais
nam no posso fazer menos.
715
ESPARÇA SUA.
Dizei-nos que merecemos,
senhoras, pois nos matais,
que, se nisso culpa temos,
é bem que nós vos vinguemos
de nós, em que vos vingais.
E se nam somos culpados,
queiram vossas fremosuras,
por nos nam ver acabados,
que mingoem nossos cuidados
e creçam vossas venturas.
716
CANTIGA SUA.
Senhora, eu vos mereço
desconhecerdes-m' assi.
que tambem des que vos vi
mesmo eu me desconheço.
Aquisto nam vos desculpa,
mas pois ventura ordena
ser eu soo naquesta pena,
minha seja toda a culpa.
Quero-a, que eu a mereço
e nam quero mais de mi
que lembrar-me que vos vi
pera quanto mal padeço.
717
ESPARÇA SUA.
Ja muitos dias pudemos
sem nos ouvirdes viver,
mas ũ dia sem vos ver,
senhoras, nós nam sabemos
como se possa sofrer.
Pedimos que nos queirais
dar olhos com que vejamos
e vidas com que possamos
sofrêla que desejais
pois pera mais
nam quereis que as queiramos.
718
CANTIGA SUA.
Nam façais quanto podeis,
porque pera me matar,
senhora, pode abastar
menos do que me fazeis.
Mostre-se vosso poder
a quem dele inda dovida,
que a mim nam me fica vida
pera o ja desconhecer.
E se com tudo quereis,
senhora, que em mim se veja,
dai-me vida em qu' isto seja
e crer-s'-aa quanto podeis.
719
TROVAS SUAS.
Des que entrei nesta pousada,
vi cos olhos a figura
da sem remedio cilada,
que me tinha aqui armada
minha boa ou maa ventura.
Vi gentes postas em guerra,
vi cidades sem abrigo,
vi cerco de mar e terra,
mas ja agora sei que era
pressagio d' El-Rei Rodrigo.
A liberdade é perdida,
por terra todo seu muro,
e vejo constituida
oo corpo mal dê por vida
e à alma pena de juro.
Mas pois foram destinados
meus dias par' esta pena,
sigam-s' os cursos fadados,
cumpram-se nestes cuidados
os que tem quem mos ordena.
Cabo.
Ó amor, pois me comprende
a força de teu poder,
em meu remedio entende,
nam queiras que quem m' ofende
te possa desconhecer.
Acende em framas vivas
de furor suas entranhas
com dores mortais, esquivas,
porque senta a que m' obrigas
nestas qu' eu sofro tamanhas.
720
CANTIGA SUA.
Ved ya como puede ser
vivir yo que, si vos veo,
mi vida veo perder
y si no os puedo ver,
matame vuestro deseo.
Matame que condicion
non halho pera librarme,
en mi mal no haa redencion,
pues que dobla la passion
lo que penso descansarme.
Ansi que no puede ser
viver yo segun que veo,
vendoos irm' a perder
y no os podiendo ver,
matarme vuestro deseo.
721
OUTRA CANTIGA SUA.
Mundo triste, que vingança
me daraa de ti ninguem,
pois que com tua mudança
quisestes ficar sem bem
por me ver sem esperança.
Modos buscaste anovados,
que per rezam nam recolho,
em mil cruezas fundados,
pois quebraste a ti ũ olho
por mos ver ambos quebrados.
Assi que nam sei vingança
que de ti me dê ninguem,
pois que com tua mudança
quiseste ficar sem bem
por me ver sem esperança.
722
Pois que doutrem vos lembrais
e de mim sois esquecida,
seraa bem que, pois folgais,
façamos fim d' hoje a mais
pera toda nossa vida.
Seja o passado esquecido
e deitado da memoria
e por ũ sonho havido
nossas cousas, que oo sentido
nunca dêm pena nem groria.
Peço-vos que o façais,
pois que disso sois servida,
e que fim des hoje a mais
façamos, pois que folgais
pera toda nossa vida.
723
OUTRA CANTIGA SUA.
Aflaca vuestro deseo
y criece mi voluntad
com lo que morir me veo
y vos del mal que posseo
agenais la piedad.
Ni os mueve compassion
a tener de mi nembrança,
sabiendo com que razon
sufro y calho mi passion
tan agena d' esperança.
Mirad, mirad lo que siento
con ojos de piedad
no olvideis mi tormiento,
nembreos mi perdimiento,
firmeza, fee y verdad.
724
CANTIGA SUA.
Por saber que vida siga,
se mingua meu mal ou dobra,
mandai, senhora, que diga
com as palavras a obra.
Confessais que me quereis,
nenhũ remedio me dais,
ou falai como obrais
ou obrai como dizeis.
Que nam sei vida que siga
nem em que meu bem se cobra,
sem vós mandardes que diga
com as palavras a obra.
Prende-me vossa mostrança,
solta-me vosso obrar,
ũ com me desesperar,
outro com dar-me esperança.
Nam queirais dar-me fadiga,
pois por i nada se cobra,
sede amiga ou imiga
no falar como na obra.
725
DE FRANCISCO LOPEZ AA
PRISAM DE JOANA
DE FARIA.
Estabat como soia
em suas contemprações
esta senhora Faria,
que de noite e de dia
daa gram pena oos corações.
Repousado seu sentido,
de dentro da casa sua
ouvio ũ grande arroido
e com o receo perdido
saio aa porta da rua.
Com todos seus fariseus
erat autem Joam da Nova,
que pareciam judeus,
que prendiam Cristus Deus
no horto, segum se prova.
Foram tam sem piedade
aquestes, que a prenderam,
que vos juro de verdade
que tamanha crueldade
a ninguem nunca fizeram.
Interrogavit à guia
sua mãi: — A quem buscais?
Bradando a voz dezia:
— A Joana de Faria
e a vós que nos falais.
Foram logo mui cortadas
a mãi e tambem a filha,
com isto tam trespassadas
e da cor tam demudadas
que era gram maravilha.
E dixit: — Que mal tem feito
a coitada inocente?
A Ti, Deos, peço direito
deste tamanho despeito,
que nos faz aquesta gente!
Nam curarão de rezões
os lobos e a tomarão
com tam grandes empuxoẽes
que nom sento corações
que de ver tal nom quebrarão!
Fogirão os servidores,
nulus nunquam pareceo,
foram tantos seus tremores
que a fee de seus amores
naquela hora se perdeo.
Nam houv' ahi quem cortasse
orelha a beleguim
nem quem espada tirasse,
que naquilo se mostrasse
sua fee nam fazer fim.
Dacta es segum se soa
a Faria por mor dano
a esse Pero de Lixboa,
que por ser gentil pessoa
era pontifix esse ano.
E ele, pela fazer
de ũ em outro andar,
disse seu juiz nam ser
e mandou-a remeter
oo Botelho, sem tardar.
Fim.
Tanquam latrones com ela
vi beleguins apegados,
houve tamanha mazela
que por nunca conhecê-la
dera eu muitos cruzados.
Triste, coitada de vós,
menina com tanto mal,
amar os tristes de nós,
que ficamos cá tam soos
e com dor tam desigual.
726
CANTIGA SUA.
Olhai bem como nos tratam
e vereis como nos correm,
que se guardam donde morrem
as que vivem donde matam.
Quem aquisto bem olhar,
vede se poderaa crer
que haa medo de morrer
quem folga de nos matar.
Oh quantas maneiras catam
com que nossos males dobrem,
que se guardam donde morrem
as que vivem donde matam.
727
ESPARÇA SUA.
Chegámos dous servidores
dessa casa bem cansados,
do caminho tam tomados
como somos dos amores,
que nos trazem tais tornados.
Se vivos nos desejais,
vinde logo eesta bandeira,
porque em dor de tal maneira
e penas tam desiguais
nunca viver vos vejais.
728
DE
BERNALDIM RIBEIRO A ŨA
MOLHER QUE SERVIA E VAM
TODAS SOBRE MEMENTO.
Lembre-vos quam sem mudança,
senhora, é meu querer,
perdida toda esperança
e de mim vossa lembrança
nunca se pode perder.
Lembre-vos quam sem porquê
desconhecido me vejo
e contudo minha fee
sempre com vossa mercê,
com mais crecido desejo.
Lembre-vos que se passaram
muitos tempos, muitos dias,
todos meus beens s' acabaram
contudo nunca mudaram
querer-vos minhas porfias.
Lembre-vos quanta rezam
tive pera esquecer-vos
e sempre meu coraçam,
quanto menos galardam,
tanto mais firm' em querer-vos.
Lembre-vos que sem mudar
o querer desta vontade
m' haveis sempre de lembrar
tee de todo m' acabar
vós e vossa saudade.
Lembre-vos como pagais.
o tempo que me deveis,
olhai quam mal me tratais,
sam o que vos quero mais,
o que menos vós quereis.
Lembre-vos tempo passado,
nam porque de lembrar seja,
mas vereis quam magoado
devo de ser co cuidado
do que minh' alma deseja.
Lembre-vos minha firmeza
de vós tam desconhecida,
lembre-vos vossa crueza,
junta com minha tristeza,
que nunca foi merecida.
Lembre-vos que se quisereis
assi como consentistes
nestes meus males, fizereis
com o menos que podereis
nam ser em meus dias tristes.
Lembre-vos quam mal tratado
lembranças vossas me trazem,
eu sempre menos mudado,
quando mais desesperado
vossas mostranças me fazem.
Lembre-vos a quam maa vida
tenho por bem vos querer,
esta dor faz mais crecida
nam vos ver arrependida
de mo assi desconhecer.
Lembre-vos, minha senhora,
que, por ja me verdes vosso,
mostrais que vos desnamora
procurar ver-vos cad' hora,
o qu' eu escusar nam posso.
Lembre-vos que nem por isso
minha fee vereis mudada,
o qu' estaa craro e bem visto,
pois cousas mores naquisto
tiveram forças de nada.
Lembre-vos qu' outra mercê
de mim nunca foi pedida,
senam soo que minha fee,
pois tinha causa porquê
fosse de vós conhecida.
Nestes dias dezimados,
lembre-vos com quanta pena
ham-de viver meus cuidados
sendo ja desesperados,
vendo que nada os condena.
Lembre-vos que vida tal
nunca vo-la mereci,
olhai bem em quanto mal
me pagais o ser leal
co tempo que vos servi.
Fim.
Lembre-vos que vosso amor
m' haa, senhora, d' acabar,
pois com tanto desfavor
nunca ora minha dor
de vós me pode apartar.
Lembre-vos, pois nisto espero
d' acabar, qu' acabo aqui,
que com quanto desespero
nam menos assi vos quero
que no dia em que vos vi.
729
CANTIGA SUA.
Nunca foi mal nenhũ moor
nem no ha i nos amores
qu' a lembrança do favor,
no tempo dos desfavores.
Eu por minha maa ventura
nam haa ja mal que nam visse,
mas nunca tanta tristura
me lembra qu' inda sentisse.
Fui e sam grande amador
e vai-me bem mal d' amores
e muitos vi de grão dor,
mas est' é suma das dores.
730
DE
PERO DE SOUSA RIBEIRO
AO BARAM, PORQUE LHE FAZIA
CABANAS ŨA CAPA BORLADA
DE MALMEQUERES.
Que mal me queres, Cabanas,
que senreira teens comigo,
que tanto pano me danas,
sendo sempre teu amigo?
D' envençam de malmequeres
estav' eu bem descuidado,
mas tu, perro arrenegado,
pagarás o que fizeres.
Sempr' este foste, Cabanas,
juguetas mui mal comigo,
pois estas obras que danas
trazem-no riso consigo.
Francisco da Silveira por parte
de Cabanas.
— Senhor, porque vos queixaes?
Para que sam tais oufanas?
Se vos mal entretalhais
para qu' ee culpar Cabanas?
Tendes condiçam estranha,
erraes a galantaria,
entam quereis que nam ria
a de Mendanha.
731
CANTIGA DE PERO DE SOUSA
RIBEIRO.
Aperfia meu cuidado
comigo sem me deixar,
tanto que seraa forçado,
se dura, de me matar.
Nunca me deixa tristeza
de a ter tenho rezam,
pois vejo meu coraçam
contra mim em tal firmeza.
Faz-me ser desesperado
tal vida sem esperar,
tanto que seraa forçado,
se dura, de me matar.
732
DE PERO DE SOUSA A DONA
MARIA D' EÇA.
A que meu descanso empeça
tempo é de a nomear,
oo minha senhora d' Eça,
parti-me sem vos falar!
Se neste paço andava,
senhora, sem vos servir,
andava porque cuidava
qu' era servir-vos mentir.
Mas nunca a ninguem aqueça
convosco dessimular,
oo minha senhora d' Eça,
parti-me sem vos falar!
733
DE PERO DE SOUSA A DOM FER‑
NANDO PEREIRA, ANDANDO AM‑
BOS COM ŨA DAMA E NŨ CAMI‑
NHO FORAM ACHAR ŨA SUA
AZEMELA COM Ũ REPOSTEI‑
RO D' ARMAS ALHEAS.
Achámos-t' um reposteiro
com cruz de Cristos no meo,
que te nam custou dinheiro,
mas tam certo como es feo,
é alheo.
Se o mandaras fazer,
fora verde e lionado,
ou tu mentes no cuidado
em que m' eu vejo morrer.
Compr' outro do teu dinheiro
das cores de quem receo,
qu' eu ja bem creo qu' es feo,
mas descreo
de ser teu o reposteiro.
734
VILANCETE QUE FEZ PERO DE
SOUSA, QUANDO EL-REI NOSSO
SENHOR VEO DE SANTIAGO,
QUE FEZ O SENGULAR MOMO
EM SANTOS, O QUAL VILAN‑
CETE IAM CANTANDO
DIANTE DO ENTREMES
E CARRO EM QUE
IA SANTIAGO.
Alta Rainha, Senhora,
Santiago por nós ora.
Partimos de Portugal
catar cura a nosso mal,
se nos Ele e vós nam val,
tudo é perdido agora.
Pois que somos seus romeiros
e das damas tam enteiros,
cessem jaa nossos marteiros,
que nunca cessam ũ hora.
Pedimos a Vossa Alteza,
em qu' estaa nossa firmeza,
que nam consinta crueza
neste seram oos de fora.
Aqui nos tem ja presentes
de nossos males contentes,
pois nom valem aderentes,
hoje nos valei, Senhora.
735
DO
BARAM A FRANCISCO DA
SILVEIRA, PORQUE D' ŨA LOBA
ÇAFADA MANDOU FAZER ŨA
CAPA DE GRADA.
Senhor, vingança me dai
ou a pedirei a El-Rei
daqueste perro d' Issai
que fez quanto lh' eu mandei.
Porque lhe disse em desdem
qu' a lob' era jaa çafada,
levou-a par' à pousada,
fez dela capa de grada,
que nam agrada a ninguem.
Tal alfaiate deixai
e servi-vos do d' El-Rei,
pois este perro d' Issai
me fez quanto lh' eu mandei.
736
DE
SIMAM DE SOUSA AA SE‑
NHORA DONA CATERINA DE
FIGUEIROO.
Oo vida, que se nam sente
de quem na daa e a tem
por pior fim!
Ó meu mal, qu' estás presente,
ó meu bem, que nam es bem
nem no haa em mim!
Mas vivo em me lembrar
que soes vós por quem sostenho
nam viver
e que nam posso leixar
d' haver quantos males tenho
por prazer.
Por isso nam façais vós
errada, que ambos vemos
conhecida,
sem fazer nenhũ de nós
o que cada ũ devemos
eesta vida.
Vós por me mandardes mal
e eu qu' em vo-lo comprir
assi me fundo,
vós por fazerdes igual
o mandado do sentir
que sou o mundo.
Que mais descanso nam tenha,
ja vos dei quanto bem tinha
que ja nam tenho,
mas nam sei quem se sostenha
senam eu na vida minha,
que sostenho.
Sobr' isto mal me fazeis
e nam vedes qu' o qu' eu faço
é fengido;
assi que quanto quereis,
senhora, eu contrafaço
e sam perdido.
Em meus males descansava
antes que mos defendesse
quem mos deu
e co eles m' alegrava,
mas nam quis que os sofresse
polo seu.
Olhai bem quam pouco ser
dais à vida que sostenho,
de que vivo,
que me lançais a perder
e perco quanto bem tenho
e quanto digo.
Donde me viraa descanso
s' a rezam, qu' era perdida,
me tirarão?
Se eu cuido nisso, canso,
qu' em me darem estoutra vida
me matarão.
E trouve-m' a este fim
esta dor que m' assi trata,
que nam cansa,
que nam sei parte de mim,
mas tanto quanto me mata,
me descansa.
Nestes males haa ũ mal
que ninguem nam pode ter
senam eu,
a que nam acho igual,
qu' eu folgo bem de sofrer
polo seu.
Matai-m' aa vossa vontade
com vossos males estranhos
sem rezam,
qu' ess' ee a minha verdade,
posto que sejão tamanhos
como sam.
Fim.
De quanto vedes que digo,
nam cuideis que me aqueixo,
mas descanso,
que é o maior abrigo
de quantos busquei e deixo
e mais manso.
737
OUTRAS SUAS A ESTA SENHORA.
É tanto o mal que sento
que nam posso escusar,
senhora, de vos lembrar,
que moiro de sofrimento.
E pois estou neste fim
a que me determinastes,
quero-vos lembrar de mim,
pois vos vós nunca lembrastes.
Muitas vezes vou cuidando
como posso descansar,
acabo sempre cansando
de cuidar.
E maneira nunca vejo
pera isto poder ser,
sem acabar de viver
que agora mais desejo.
Assi nam sei desejar
de ser bem-aventurado,
porque nam posso cuidar
no que sam desenganaado.
Fazei o com que folgais,
qu' eu isto hei-de fazer
sempre enquanto viver,
posto que vós nam queirais.
Cousas que daa presunção
têm muito boa desculpa,
fujo sempre desta culpa
e vós da minha rezão.
Nem se podem guardar tanto
ũs olhos que algũ hora
nam olhem sua senhora
detras d' alguem ou d' ũ canto.
Qu' este mal qu' ee o meu bem
de todos o guardo eu,
mas qu' ha-de fazer quem tem
tantos medos polo seu?
Assi nam sei que me valha,
se tolhem o que nam dam
e dam muito maa rezam
por nemigalha.
Fim.
S' olhardes o fim que sigo,
verês bem craro meu mal,
queixo-me enquanto digo,
mas nada porem me val.
Esta hora vai perdida
e eu me vou a perder,
nam me mata minha vida
nem me quer leixar viver.
738
DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
CATERINA DE FIGUEIRÓ.
Para me tirar a vida
muitas cousas s' ajuntarão,
duas delas abastarão.
Abastará nam vos ver,
ou ver que me nam olhais,
pois que sam males mortais
qualquer destes de sofrer.
E co estes à minha vida
tantos outros s' ajuntarão
que de todo ma tirarão.
739
DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
CATERINA DE FIGUEIRÓ.
Ja muitos dias havia
qu' este tempo receava
e me trouxe a fantesia
que devia
saber de mim com' andava.
Quando as cousas têm tal fim
haa nelas grandes sinais,
comecei d' olhar por mim
e Almeirim
me descobrio inda mais.
O viver tam atrevido
ond' ee tam desordenado,
o prazer é ja perdido
e mal sofrido,
bem perdido e mal ganhado.
S' esta vida toda é tal,
nam na ter milhor me vem,
assi nisto nem no al
nam sinto mal
nem desejo nenhũ bem.
Trabalho de se nam ver
o que vou dessimulando,
finjo que tenho prazer
e por se crer
lhorando ando cantando.
Desejo de m' acabar
este mal qu' em mim nam cabe
e queria-m' endinar,
por me vingar,
mas, s' eu posso, Deos o sabe.
Esperança de prazer
nam vos vendo é perdida,
se trabalho por vos ver,
vou saber
qu' em ambas nam tenho vida.
Assi nam sei o que faço,
todalas cousas receo,
o fundamento desfaço
em que jaço,
pois eu nem ele tem meo.
O meu mal foi ordenado
a qu' eu só sei o respeito,
leixa-m' assaz magoado
e vingado,
mas porem nam satisfeito.
E pois é por tam mao fim,
deve de ter maior culpa,
a tam mao estado vim
que a dou a mim,
por dar a outrem desculpa.
Vós me fizestes perder
o gosto do desejar,
enfado-me de viver
por vos ver
em outras cousas folgar.
Ooh trabalhoso cuidado,
eu soo vos hei-de sentir!
Ooh tempo tam bem gastado,
ja passado,
tam mao o qu' estaa por vir!
A groria é perdida
do mal daquesta demanda,
hei medo de minha vida,
mal sostida,
polo lugar em que anda.
J' eestaa mal determinado
qu' isto nam fosse mais cedo,
nunca m' eu vi tam ousado
d' enganado,
nem houve tamanho medo.
Fim.
Ũ conforto posso ter,
que outro me nam ficasse,
é ouvir sempre dizer
que nam quis fazer
Deos a quem desemparasse.
Ja desfiz meu fundamento
por dar a meus males fim.
Oo meus castelos de vento,
quanto sento
ver-vos ja fora de mim!
740
CANTIGA SUA.
Tudo se pode sofrer,
pera tudo i haa rezão,
mas nam jaa homem viver
sem coração.
No lugar qu' o meu estaa,
pus por mais seguro seu,
mas como vivirei eu,
se o nam consentem laa?
Nam se vio nem ha-de ver
tal modo de perdição,
todos folgão de viver
e eu nam.
741
DE SIMÃO DE SOUSA A ŨU SEU
AMIGO, POR QUEM FALAVA.
O trato é assentado
muito à minha vontade,
mas, na verdade,
eu achei o mar picado.
Na primeira altercámos,
desfiz-lh' as suas rezões
e nas minhas concrusões
assentámos.
742
DE SIMÃO DE SOUSA À SENHO‑
RA DONA JOANA DE MENDOÇA.
Nam sei de mim o que fora
nem que fizera,
se meu bem vo-lo nam dera.
S' ateegora nam souberam
quem sempre teveste bem,
foi medo que me poserão
os males de quem mo tem,
Que s' este medo nam fora,
eu dissera
minha dor a quem ma dera.
E vendo que m' ee pior,
nam quero senam dizê-lo
e escolho por milhor
fazer-me mal e sofrê-lo.
Quiça o digo em hora
que quisera
nam ter vida que perdera.
Se me mata, saberam
por quem moiro e são vencido,
qu' ee muito boa rezão
pera tudo ser perdido.
Sempre o fui e agora
por quem era
rezão que tudo perdera.
Da senhora Dona Joana
de Mendoça me chamo eu,
por esta sam ja sandeu,
que com ninguem nam s' engana
se dela doutrem nam fora
nem quisera
nenhũ bem que me fizera.
E ainda que tivesse
o bem d' outrem, nam no quero,
por mais pena que me desse
nam daria o mal qu' espero.
Porque se ele nam fora,
nam tivera
descanso nem no quisera.
E se jaa dessimulei
o mal deste pensamento,
foi muito grande tormento
qu' eu bem sinto e sentirei.
Mas nam sei d' então teegora
que fizera,
s' isto em mim nam conhecera.
Conheço qu' ee grã rezão
que me mate, se quiser,
mas quem tal causa tiver
tem boa satisfação.
Tê-la-ei sempre e agora,
mas quisera
ter mais vidas que perdera.
Pola que tenho perdida
desejo mais que perder,
sem esperar de haver
deste meu bem conhecida.
Contudo digo, senhora:
– Quem tivera
mor poder qu' em si vos dera!
Fim.
Nam quero mais qu' a rezão,
fazê o peor que souberdes
e de vossa condição
usai quanto vós queserdes.
Que, se de vós livre fora,
nam houvera
por bem nenhũ que tivera.
Cantiga destas trovas.
Ateequi dessimulei
quanta dor tenho e me dais,
j' agora nam posso mais.
Poderei sempre sofrer
quanto mal por bem houverdes,
mas nam leixar de dizer
que folgo de me perder,
vós folgai no que quiserdes.
Esta dor dessimulei
ateequi, mas nam creais
que a pude encubrir mais.
743
DE SIMÃO DE SOUSA
A DONA JOANA DE MENDOÇA.
Males que nam são de fora
e que vêm do coração,
estes matão, qu' outros não.
Nestes que do meu me vem
corro eu risco mortal,
mas como podi' eu ter bem,
se nam tivera este mal?
Conquanto é desigual
a dor do meu coração
dêm-na a mim e outrem nam.
Por segurar minha vida
a dei eeste mal presente,
ó vida, que es tam perdida
com' eu dela sam contente!
Este mal por bem, se sente,
posto que a perdição
estê bem certa na mão.
Descanso do meu viver,
trabalho que nunca cansa,
vida tomada por mansa,
mais forte que pode ser!
Que desviado prazer
de quantas cousas o dam
é o desta perdição!
744
CANTIGA SUA A ESTA
SENHORA.
Por ter em vós esperança
seja, pois nam quero al
d' algũ bem ou de mais mal.
E será com condiçam,
pois i nam ha bem sem ela,
se ma tirardes entam
leve-s' a vida co ela.
Que dela pera perdê-la
é muito certo sinal
de se perder tudo o al.
745
DE SIMÃO DE SOUSA A ESTE
VILANCETE ALHEO.
Pois deixaste em mi memorea,
cuidado, pena y dolor,
loado seas, amor.
Si te dó gracias, mi dios,
no son por las que me hazes,
antes nelhas me desplazes,
que d' um mal me hazes dos.
Si tu por bien das a nos
vida de tanto dolor,
loado seas, amor.
Quanto bien tuve te di,
tu a mi quanto mal veo,
acrecentas mi deseo
por vida menguar a mi.
Pues veo morir em ti
mi vida, qu' es mi dolor,
loado seas, amor.
746
DE SIMÃO DE SOUSA, ESTANDO
DONA JOANA PRESA POR
MANDADO DA RAINHA.
Senhora, pois que sois presa
e ja nam pode ser al,
seja por cousa defesa
que vos nam pod' estar mal.
Assi que tal prisoneiro
nesta prisam o topasse,
sendo eu o cacireiro
e senhor quem se pagasse.
747
DE SIMÃO DE SOUSA, QUE LHE
DISSERAM QUE CASAVA DONA
JOANA DE MENDOÇA.
Diz que quem cala consente,
isto nam s' entenda em vós,
porque nam paguemos nós
tudo em vida descontente.
Se o fazeis, é rezam
que diga meu parecer
e saibais minha tençam,
por tudo se vos dizer.
O costume deste reino,
di-lo-ei que nam sam mudo:
de fidalgo t' escudeiro
aas molheres pende tudo.
Andam bradando por casa
com paixam, dor e cuidado,
justando em sela rasa,
refertando o mal gastado.
Azeite, vinho e pão
a suas mercês s' encomenda,
é bem que se nam entenda
o que a entender-lhes dão.
Tambem lhes pedem rezão
do que disto é gastado,
dizendo qu' a provisão
é de molher de recado.
Às vezes vam à cozinha
sem haver nela que ver,
que condiçam tanto minha
ou para minha molher.
Leixando o que tendes caa
e que d' outros s' oferece,
por tomardes o de laa
qu' ee pior do que parece.
Outra causa m' esquecia,
que nam vai nesta receita,
qu' ee paixam de cada dia
de que a conta está feita:
é qu' a chave do dinheiro
se nam fia de Deos Padre,
senhora, d' ũa gram verdade
qu' ee condiçam d' escudeiro.
Ja d' i a dous ou tres anos
qu' isto vem arrefecer,
começão os desenganos
a crecer e vorrecer.
Si nam haa conformidade,
quando as cousas assi vão,
pouc' aproveita rezão
onde falece vontade.
Isto a meu parecer,
senhora, qu' aqui aponto,
ainda nam vem a conto
par' qu' havês lá de ter.
Eu soo me sei desviar
de todos polo que sei,
são todo de dexa far
mice a Domine Dei.
Todo meu feito é prazer,
comia contentamento,
folgar, rir, cantar, tanjer,
haver tudo o al por vento.
S' a senhora que vier
nam for muito dessorada,
fará tudo o que quiser,
se o for, nam fará nada.
E terá bem negros dias,
qu' eu tambem posso morrer,
certo nam podia ser
da doença de Mancias.
Se for à minha vontade,
dina do meu pensamento,
dar-lh' ei minha liberdade,
busque-l' oo contentamento.
Se vos vir tam enganada
e nos leixardes tam sós,
quando preguntar por vós,
será pola enforcada.
Polo entender milhor
virá negro a dizer:
— Mandar fazer de comer,
senhora, pera meu senhor.
Fim.
Este aviso querê-o,
ele podês engeitar,
que ninguem nam tem receo
senam do recuchilhar.
Tambem vos doê de vós
que sem vida nos leixais,
em na tirardes de vós
pola dar a quem vos dais.
748
DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
JOANA DE MENDOÇA.
Nam me podeis agravar
com cousa que me fizerdes,
porque nam sei desejar
senam o que vós quiserdes.
No que sei que vós folgais,
nisso folgo eu tambem,
se me nam fizerdes bem,
mas que nunca mo façais.
Que co esta condiçam
quis vida pera perder,
que me deu a presunçam
de vos saber entender.
Com isto soube acertar,
que me mil vezes mateis,
nisso soo hei-de folgar,
nam sei no que folgareis.
749
DE SIMÃO DE SOUSA A ŨA
MOÇA DA CAMARA DA RAINHA,
QUE NŨ PASSO SE LHE
FEZ DAMA.
Exempro bem verdadeiro
que a todos hei-de dá-lo,
diz que queda de sindeiro
é maior que de cavalo.
Ja se o sindeiro é
d' albarda,
é milhor andar a pee
ũa valente jornada.
Tiveras cornos, sindeiro,
pois que ja nam es cavalo,
que dar couce ũ chincheiro
ja quem xequer sabe dá-lo.
750
DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
JOANA DE MENDOÇA.
Senhora, quem vos nam vio,
é fora d' um gram cuidado,
quem vos vio bem lh' ha custado!
Custa bem e custa dor,
custa vida e dai-la tal
que deve de ser milhor
o que s' ha por maior mal.
Se quero cuidar em al
ou fengir outro cuidado,
é trabalho escusado.
E pois i nam ha descanso,
menos piadade vossa,
sej' oo tormento mais manso
com que a vida milhor possa.
Qu' a dor disto seja vossa,
eu por meu hei o cuidado
que me tanto tem custado!
751
OUTRA SUA A ESTA SENHORA.
Se vedes polo que faço
que o posso bem fazer,
é porqu' al nam pode ser.
Neste tempo que passou,
que nunca pode passar,
na vida que me deixou
vi vida pera deixar.
E por m' outrem nam matar,
o quis eu a mim fazer
por tal culpa ninguem ter.
752
OUTRA SUA A DONA JOANA.
Quem souber minha vontade
e culpar minha tençam,
ou terá rezam ou nam.
Ũa vontade que tinha
que me dava mil vontades,
por ũa mintira minha
me mostrou muitas verdades.
Vaidade das vaidades,
errada contempraçam
das qu' algũ descanso dam.
753
DE SIMÃO DE SOUSA.
Descanso de minha pena,
remedio desta paixam,
ó senhora,
por quem tanto mal s' ordena,
onde as cousas assi vão
quem nam fora?
Por remedio vos busquei
de quando eu nam vevia
sem vos ver,
em lugar disto achei
tanta dor que nam queria
ja viver.
Ó vida de minha vida,
cuidado que me nam deixa
cuidar em al,
que vos vejo tam perdida
qu' atee minh' alma se queixa
deste mal!
Que farei ou que fazeis,
onde vos is, que deixais
tudo caa?
Vedes o quem vós perdeis,
que lá onde vos levais
nam haa laa.
Leixais o mundo perdido,
vós, senhora, mal guanhada,
sem desejo.
Fica o mundo destroido,
vós cedo desenganada
tambem vos vejo.
Quando vos despois achardes
neste engano qu' ha-de dar
prazer a nós,
por mais que entam chorardes,
eu sam o qu' hei-de chorar
mais ca vos.
S' estas magoas sentisseis
que no coraçam me dam,
senhora,
nam pode ser que nam visseis
que de minha perdiçam
é vinda a hora.
Tirastes-m' o meu prazer,
destes-me tanta tristeza
por tanto bem
que nam quero ja viver,
por nam ver tanta crueza
em ninguem.
Oh que tristeza tam triste,
que desconsolada vida
e que cuidado!
Que se tu, Fortuna, viste
golpe em vida perdida
a mim é dado.
Fizeste-me muito mal
e a vida nam s' esforça
par' o sofrer.
Eu nam posso fazer al,
mas isto seraa força
de nam viver.
Remedio nam no espero,
que quem mo podia dar
nam no tem.
Antes dele desespero,
que todo desesperar
a mim convem.
Senhora, pois vos levais,
leixando minha verdade
por i perdida,
lembre-vos que me leixais
sem nenhũa piadade
e sem vida.
Oh cruel tormento meu,
que d' outrem nam pode ser
nem é bem que seja,
que tanto trabalho deu
a mim, a quem o viver
me sobeja!
Atormentado de mim
desconsolado, perdido,
vida perdida!
Que despiadoso fim!
Ooh quem nam fora nacido
nesta vida!
Quem ha jaa de querer nada
deste mundo nem de vós,
nem daqui,
qu' a cousa vai ja danada
em ver mao pesar de vós
feito por i.
Podera ora bem ser
qu' algũ hora soidade
desta fee
vos possa entristicer,
senhora, que gram verdade
esta ee.
Fim.
Estas palavras perdidas
nam nas digo por guanhar
nada co elas,
mas se nos tirais as vidas,
leixai-me desabafar
por elas.
E leixai-me fartar bem
qu' eu desta hora vos deixo
por diante.
Nam me defenda ninguem,
ja que me eu nam aqueixo,
que m' espante.
754
Bem perdido e mal guanhado
nam se sente e eu o sento,
ooh fundamento enganado,
tomado sem fundamento!
Onde rezam é perdida
no que s' entam oferece,
fica a tençam conhecida
d' ũa que se nam conhece.
Sentido tam acupado,
esprito que foste isento,
quem te fez tam enganado
que te nam deu fundamento?
755
DE FRANCISCO HOMEM,
ESTRIBEIRO-MOOR D' EL‑
REI NOSSO SENHOR.
¡ Oh quien viesse prazo cierto
y fuesse venida suerte
del muy querido concierto
de su deseada muerte!
E mi mal quiero encobrir
e comigo padecer
por me nom dar gram prazer
al tiempo de mi morir.
Porque no quiso Ventura
que fuessedes piadosa,
pues que vos fizo fermosa
sobre toda fremosura.
Mas estava ya ordenado
del começo de mis dias
las grandes angustias mias,
firmadas de mi cuidado.
Yo de passiones ferido
y de dolores passado,
de veros amortecido
y del deseo finado.
¡ Ooh que grande estremo sigo!
Hay começo, mas no medio,
o fim de tod' el remedio,
senhora, como soy vivo.
Y con tormiento mortal,
dolor y pena y olvido,
distes las armas al mal
con que me tiene vencido.
De mi estoy muy dudoso,
todo el prazer se desvia,
¡ oh mi cuidado lhoroso,
perdida esperança mia!
Los vuestros graciosos ojos,
fermosos e deseados,
los mios con sus enojos
muy tristes y muy cansados.
Querelhams' elhos de mim,
yo quexome delhos cierto,
mas aqueste desconcierto
es concierto de mi fim.
Vos, senhora, lo quereis
y crueza lo consiente,
mas elh' alma triste siente
el mal que vos me fazeis.
Mas yo cierto seré suyo,
que la fee pide y quiere,
qu' este fuego de que fuyo
yo lo pido y el me fiere.
Dezirvos la mi gram pena
no lo sufren mis querelhas,
que mi mala suerte ordena
el mal que me viene delhas.
Yo no oso descobrir
mis lhantos y disfavores,
cercado ya de dolores
me parto pera el morir.
Soy cativo del enganho,
sogeito de la sogeita,
desta ventura imperfeita
que se queixa de su danho.
Y cierto dudosa groria
levais deste mi tormento,
qu' es grande el vencimento
y pequenha la vitoria.
Fim
No me quero ya quexar,
que mi mal y mi porfia
no se puede imaginar
ni lo daa la fantesia.
Porque crece cada hora
tam grande, mortal y fuerte,
que vos por me dar la muerte
ya me la quitais, senhora.
756
OUTRAS SUAS SOBRE Ũ REGI‑
MENTO DE ŨAS CONTAS EM
QUE SE GUANHAVAM
MUITOS PERDÕES.
Este é o regimento
e reza-se desta sorte:
começa-se em meu tormento
e acaba-se em minha morte.
Oulhai, senhora, por ele
e nam por mim,
aldemenos vereis nele
minha fim.
Item, senhora, rezando
este rosairo tres vezes,
confessada e confessando
que meus males nunca vedes,
vós ficareis sem culpa
e eu na pena,
porque a culpa me desculpa,
sabendo de quem s' ordena.
Que s' eu enganado vivo,
desenganado padeço.
nam me dais o que mereço
nem me quereis por cativo.
Mas dizei-me vós agora
que farei,
que sem vos lembrar, senhora,
morrerei.
E porque busco os estremos,
me buscam eles a mim,
mas triste de mim que vim
aa conta qu' ambos fazemos.
E eu a faço de perdido
sem ventura,
vencido que é ja vencido
da vossa gram fremosura.
Mas é mui certo que a vida
que em tais perigos se vê
nam pode ser nem se crê
senam que é ja reperdida.
Tomai as contas na mão
com tal fee
que este vosso coração
vosso é.
Anda o esprito em pena
nesta vida que nom tem,
este fogo donde vem
que tantos males m' ordena?
Porqu' este mal que m' aqueixa
nam tem meio,
mas pois que m' ele nom deixa
de vós veio.
Ooh coitada d' esperança
que tomou nome de minha
porque em ver-vos adevinha
que mudada dais mudança!
Que vos fiz? Que vos mereço?
Que me dais?
Dores e dor, que padeço,
desiguais.
Fim.
Virdes vós, senhora, a ter
perdam de tantos enganos,
nom ouso nem sei dizer
que sois livre de mil anos.
Que segundo o vós fazeis
sem nos terdes,
hei medo que nos mateis
como o souberdes.
757
CANTIGA SUA.
Senhora, laa vos daram
ũas contas que pedistes,
porque as minhas nam nas vistes
nem ouvistes
nem vos pareceo rezam.
Eu com minha conta feita,
rompestes-ma sem na ver,
mas tam puco m' aproveita
calá-lo com' o dizer.
Os extremos vossos sam,
contas de longe pedistes,
meus males nam nos sentistes
nem me vedes nem me vistes,
sendo comigo a rezam.
758
OUTRA SUA.
O tempo fará o seu,
que dos sinais da Ventura
esperança nam segura.
Oo Ventura, que ordenais
sem esperança vencido,
qu' em começo tam perdido
perdidos sam nos sinais.
Porque de perigo seu
a mudança me segura
muito gram desaventura.
Mas a causa deste mal,
nom é mal, pois de vós vem,
que quanto mais desigual
mais merecimento tem.
Seguro que o tempo deu
com sinais de fremosura
nam sam de vida segura.
759
TROVA SUA A ŨU HOMEM, QUE
SE QUEIXAVA DO TEMPO.
Como o tempo é de mudanças
busca sempre meios tais
que no que mais desejais
daa mui longas esperanças.
Nam quer senam que gasteis
somanas, meses e anos
e ele com seus enganos
traz encubertos os danos
de males que nom sabeis.
760
Que novidade oo revez
daa este meu coraçam,
que semea ũa paixam
e nacem dez!
Lavrei cos olhos enganos,
a rezam semeou pena
e meu cuidado m' ordena
novidade de mil danos.
Senhora, vai atravez
com males meu coraçam,
que semea ũa paixam
e colhe dez!
761
OUTRA SUA, QUE MANDOU A
SUA DAMA, DE NOSSA
SENHORA DA PENA.
Naquesta pena mui alta,
meus olhos, vedes tal dano
qu' haveis por vid' o engano.
Porque perigo tam grande,
tam grande como meu é,
hei medo que se desmande
a vida, mas nam ja a fee.
Que por mais males que dê
a pena do desengano,
folgo porqu' ee mor meu dano.
762
OUTRA SUA QUE MANDOU
A SUA DAMA, PORQUE SE
FERIO NUM DEDO.
Do vosso ferir hei medo,
porque a culpa da tençam
deu sinal ao vosso dedo
do mal do meu coraçam.
A vingança que ha-de vir
agora se descobrio,
que quem cos olhos ferio
com ferro se ha-de ferir.
A culpa nam é da mão
nem foi, senhora, do dedo,
mas do vosso coração
ousado e sem nenhũ medo.
763
OUTRA SUA.
Pois que minha vida é tal,
ja queria saber certo
se vem vosso bem tam perto
como o mal.
Porque o mal tenho comigo
e ele anda ja sem mim,
mas coma maior imigo
o bem me põe em perigo,
perigo que nam tem fim.
Mas a fee, que é immortal
teraa esperança certo
de ver o bem mui incerto
e certo o mal.
764
OUTRA SUA.
Tudo vejo contra mim,
vós e eu e a razam,
coitado d' um coraçam
que sam tres a dar-lhe fim!
Cercado e combatido,
querendo-se defender,
a vontade o tem vendido
e a rezam o fez perder.
Descobrio-se contra mim
cuidado, dor e paixam,
coitado d' um coraçam
que mil modos tem de fim!
765
DE
FRANCISCO MENDEZ DE
VASCONCELOS, INDO-SE
METER FRADE, A Ũ SEU
AMIGO QUE LHE
MANDOU PREGUN‑
TAR ONDE IA.
Meu senhor, vós desejais
minha partida saber,
peço-vos que nam sintais
a perda de me perder.
Que onde quer que m' achar
e estiver,
servir-vos-ei de folgar
no que poder.
De ser vosso obrigado
sam certo que o sabeis,
porque culpa me nam deis
respondo oo preguntado,
o qual sempre quis calar,
porque sabia
haver-vos pena de dar
a que sentia.
Trazer isto tam calado
me convinha pera ser,
a ninguem nam no dizer
me forçava seu cuidado,
do que culpa me nam deis,
que, se olhardes,
vereis craro que errareis
em ma dardes.
Que se laa tal vos dissera,
o pesar-vos m' estorvara,
sem quererdes nam fizera
aquilo que desejara.
E dest' arte nam vos vendo,
nam dareis
a mim pena da que entendo
que tereis.
Por menos males sentir
de vos ver fogi partindo,
per outr' arte tal partir
sem ver-vos fui mais sentindo.
Mata-me a saudade
que tereis,
a que levo na vontade
ja sabeis.
Na dor que levo conheço
a que vós por mim tereis
e nela, senhor, mereço
a que mais padecereis.
E por de mim vos vingar,
quero dizer
a vida que vou buscar
pera viver:
Pardo habito, cordam
do meu nome nomeado,
com manto da condiçam
da minha bem desviado.
Com alforge e cajado
mendigando,
a mim mesmo do passado
castigando.
Escolhi aquesta cor
pola meu coraçam ter,
o qual de cheo de dor
em trabalho quer morrer.
Nunca pude al fazer
pola razam
e a quem mal parecer
peço perdam.
Aqueste triste vestido
e maneira de viver,
por ter menos que perder,
escolhi ja de perdido.
E nele sem mais querer
vivirei,
a vida que hei-de ter
nomearei:
Vivirei de sentimento
de quem mal tenho vevido,
terei vida com tormento,
que bem tenho merecido.
E serei arrependido
do passado,
o qual tenho conhecido
ser errado.
Vivirei de saudade
sem dizer de que seraa,
vivirei sem liberdade,
que mais livre me faraa.
A mim outrem mandaraa
e eu farei;
se errar, castigaraa
e sofrerei.
Vivirei ledo, contente,
nos tormentos desta vida,
minha dor nam conhecida
outras moores me consente.
Toda cousa qu' atormente
buscarei,
de sofrer sempre doente
andarei.
Meu descanso haa-de ser
cansar em outros servir,
quanto moor pena sentir
mais ledo m' hei-de fazer.
Seraa todo meu prazer
ser desprezado,
de ninguem nam me querer
mui consolado.
Terei meu contentamento
mui firme neste desejo,
das cousas em que me vejo
terei bom conhecimento.
Por ter mais merecimento,
haverei
por descanso o tormento,
que terei.
Nestas cousas meu viver
seraa sem o desejar
e seraa meu descansar
esperança de morrer.
Triste vida hei-de ter
dessimulada,
de ninguem a conhecer,
magoada.
Os custumes mudarei,
a condiçam ficaraa,
com ela consolarei
a dor que al me faraa.
Meu viver contentaraa
os qu' entenderem,
dos outros nam me daraa
maldizerem.
Nam hei muito de curar
de falar encapuchado,
ha-me bem pouco de dar
ser de pecos mal julgado.
Deos me mate avisado
que é lei
de que nunca condenado
vevirei.
As cousas como merecem
ham-de ser de mim tratadas,
as pessoas avisadas
no pouco tudo conhecem.
Nam sam frade pera ser
santeficado
nem por dos outros me ver
ser adorado.
Meu desejo é salvar
minha' alma mui simprezmente,
disto soo serei contente
que Deos pode ordenar.
Nam m' hei muito de matar
por me terem
por santo nem por causar
de o dizerem.
Em ter pena minha groria
soo terei que a mereço
e leixar viva memoria
desta morte que padeço.
Dessa culpa me conheço
mui errada,
ser daqui me ofereço
castigada.
Vivendo desta maneira
serei alem de contente,
porque sei como se sente
tudo o al aa derradeira.
E, enfim, pois a morrer
somos forçados,
pera qu' ee, senhor,
sofrer tantos cuidados?
Enquanto sempre vivemos
por prazeres alcançar,
ooh quantos males sofremos
quando nos soe a leixar!
E pois vemos o prazer
quam pouco dura,
pera que querem merecer
maior tristura?
Deste mal bem conhecer
hei por bem o qu' escolhi
e se nam o conheci
assi quero cá viver.
E laa viva quem quiser
em favores,
laa guarde quem os tiver
suas dores.
Laa gostai vossos serãos,
laa guardai vossos amores,
que bem sei como sam vãos
seu favor e desfavores.
E ja sei quam pouco dura
seu prazer
e senti quanta tristura
soem fazer.
Lá guardai vir enfadados
d' aguardar a quem servis,
laa guardai ser namorados,
pois tantos males sentis.
E trabalhai por andardes
com as damas,
laa vos honrai de danardes
suas famas.
Laa guardai mui bem El-Rei,
laa trabalhai por viver
que em fim tudo bem sei
que vos haa-d' avorrecer.
Mas tal é nossa ventura
que consente
que vida de tal tristura
nos contente.
Laa guardai vossa riqueza,
laa trabalhai pola ter,
que eu rico na proveza
por outr' arte hei mais de ser.
Laa trabalhai por leixar,
quando morrerdes,
a quem houver de lograr
o que tiverdes.
E fazei como fizeram
algũs que vistes morrer,
que quanto mor renda houveram
mais morriam por haver.
Nam contentes da que tinham.
mas cansando,
e mil trabalhos sostinham
desejando.
Ooh quanto fora milhor
nam terem caa que leixar
e acharam mais favor
na conta que ham-de dar,
de como foram gastadas,
se fizeram
obras bem-aventuradas,
pois tiveram!
Vede bem a brevidade
da vida em que vivemos
e vede a vaidade
do prazer que nela temos.
Olhai bem quam pouco dura
nela bem
e vede quanta tristura
sempre tem.
Lembre-vos que nam sabeis
o que tendes de viver
e que pode mui bem ser
que mui cedo morrereis.
E por isso trabalhai
por corregerdes
vossa vida, que se vai
sem lhe valerdes.
O que cada dia vemos
nos devia d' ensinar
e de quanto mal fazemos
nos devia cavidar.
Mas por prazeres seguir
mundanais,
queremos penas sentir
desiguais.
Asseelo por concrusam
do que disse e direi
que sam frade e serei
pera sempre com rezam.
Nam fiz isto de paixam
nem vaidade,
mas de limpa devaçam
e vontade.
Fim.
Sejam como forem lidas
por me mais mercê fazer
com quantas tendes rompidas
que laa nam pude romper.
Porque culpa me nam dê
a que entendo,
senhor, em vossa mercê
m' encomendo.
766
D'
AIRES TELEZ A ŨA
MOLHER QUE SERVIA,
PORQUE LHE DEU
ŨA BOLETA.
Nam espere ninguem jaa
por servir contentamento,
pois o meu merecimento
tam pequeno fruito daa.
Dispus minha vida bem,
mas rendeo-me muito mal
e nam posso colher al
senam mal que dela vem.
Bom serviço é jaa vento,
pois em tal lugar estaa,
que grande merecimento
tam pequeno fruito daa.
767
CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
COM QUE ANDAVA, QUE
MANDOU DIZER QUE
ESTAVA MAL SEN‑
TIDA E NAM SA‑
BIA DE QUÊ.
Vossa doença sabida,
senhora, que nam é al
senam serdes mal sentida
do meu mal.
Est' ee o mal verdadeiro,
senhora, se o curais,
ũ remedio a dous dais
e inda que nam queirais
o meu ha-de ser primeiro.
Nam me lembra minha vida
nem sinto ja daqui al,
senam de ser homecida,
senhora, no vosso mal.
768
CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
COM QUE ANDAVA, A QUE
PEDIO ŨA COUSA E ELA
RESPONDEO QUE LHA
NAM QUERIA FAZER,
PORQUE TINHA
DUAS LEIS.
Em que me visseis viver
em outra lei ateequi,
senhora, como vos vi,
conheci
que na vossa hei-de morrer.
E pois que ja tenho a fee,
senhora, dai vós a graça,
qu' as obras forçado lh' ee
qu' em vosso nome as faça.
Pois que nam quero viver
na lei que tive atequi,
consenti,
senhora, que desd' aqui
na vossa possa morrer.
769
CANTIGA SUA.
Ao mal-aventurado
se lhe vem um novo mal,
renova-se todo o al
que cuida qu' ee ja passado.
E tem moor padecimento
do qu' ee o prazer que tem,
se lhe lembra algũ bem
que lhe deu contentamento.
Pois nam viva descansado
quem cuida que passou mal,
que se vier outro tal
ser-lh' ha present' o passado
770
OUTRA SUA.
Sendo meus males mortais
pera nunca descansar,
acertaram de ser tais
que me nam podem matar.
E nam posso ter a vida
mais qu' enquanto os tiver
e eles podem-me ter
depois da vida perdida.
Porqu' enquanto me durar
a cousa que me doi mais,
seram meus males mortais
sem me poderem matar.
771
CANTIGA SUA QUE FEZ UM
DIA QUE DE TODO SE
DESAVEO.
Desejando sempre vida,
foi gram dita nam na ter
pola agora nam perder.
E co esta vida tal
tenho o que nam tem ninguem,
qu' os desastres que me vem
nam me fazem bem nem mal.
Isto é culpa de quem
me nunca deixou haver
a vida pera perder.
Por meu mal que nam tem cura,
tenho eu isto provado
qu' o mais mal-aventurado
mais seguro é da ventura;
e o mais desenganado
de ter bem e ter prazer
é-o mais de o perder.
Ajuda do Conde do Vimioso.
Quando vida desejei
nam entendia viver
qu' era cousa de perder
o qu' em perder me guanhei.
Mas agora que o sei,
a vida que hei-de ter,
tê-la-ei sem na querer.
772
TROVA SUA QUE MANDOU AO
CONDE DO VIMIOSO Ũ DIA
QUE FALOU À SENHORA
DONA JOANA MANUEL,
NŨ SERÃO DA
CORESMA.
Ooh que ditoso falar
foi o vosso no serão!
Ooh que boa confissam
pera s' a moça salvar,
mas vós nam!
Oo alma de Dom Joam,
laa onde quer que estás
quanta pena que terás!
Reposta do Conde do Vimioso.
Se tivera que dizer,
faleceo-m' a fantesia,
qu' eu soo tenho ousadia
pera meus males sofrer.
S' os mortos podem saber
dos vivos o seu viver,
Dom Joam, laa ond' estaas
que doo de mim haveraas!
773
D' AIRES TELEZ A ŨA MOLHER
COM QUE ANDAVA, SOBRE ŨUS
CRAVOS QUE LHE MANDOU.
Que mil cousas vos mereça,
senhora, nam pode ser
que se me possam meter
estes cravos na cabeça.
Muito ha que é rezam
d' esperar por algum fruito,
mas a vossa condiçam
faz ser este temporam
e inda havê-lo por muito.
E com' eu isto conheça,
senhora, nam posso crer
que vós me queirais meter
nenhum cravo na cabeça.
774
CANTIGA
SUA QUE FEZ A ŨA
MOLHER COM QUE
ANDAVA,
PORQUE LHE DISSE Ũ DIA
QUE LHE NAM QUERIA
MAL NEM BEM.
Quem em seu poder me tem,
pois nam pode querer al,
ò menos queira-me mal
por nam ser nem mal nem bem.
Se mo quiser de verdade,
como sei que mo deseja,
ainda que bem nam seja
ò menos será vontade.
Maa ou boa quem na tem,
pois nam pode ja ter al,
hei qu' ee muito menos mal
que nam ter nem mal nem bem.
775
CANTIGA SUA À SENHORA
DONA JOANA DE MENDOÇA.
Pois co mal que me causais,
senhora, tendes prazer,
nem sei porque nam olhais
que pera o eu sentir mais
devia menos de ser.
E quem é sua verdade
desejar de vos servir,
como podeis presumir
que pode nada sentir
fazendo-vos a vontade?
Pois enquanto nam tirais
do meu mal vosso prazer,
é rezam que me creiais,
que quanto o fizerdes mais
tanto menos haa-de ser.
776
DE
DUARTE DE RESENDE A ŨA
MOLHER QUE
SERVIA.
Nel tiempo que Cancro tiene
Febo dentro en su posada
declinante,
quando ya menos detiene
en los dias su pasada
que deante;
en aquel que Proserpina
tiene la primera hora
su reinar,
yo propuse muy aina
servirte siempre, senhora,
sin errar.
En este tiempo mi vida
empeçó de caminar
en su porfia,
porfiando dar salida
al dolor que fue ganar
en aquel dia.
E como pues en aqueste
el padre ya retrocede
de Feton,
mi plazer rotrocedeste
tanto que de ti procede
mi passion.
Y luego tu bien busqué,
halhelo mi enemigo
capital,
porque como te miré
halheme qual aqui digo
de tu mal:
que por solo yo mirar
tu lindeza muy ufana
a la sazon,
quieres tu comigo usar
como la casta Diana
con Anteon.
Como quando se opone
o geito resplandeciente
a nuestro viso,
su conus luego traspone
la superfaz del vidente
emproviso.
Bien assi tu claridad
pospusó de mi pirame
la salud,
robando mi libertad,
porque siempre jamas lhame
tu virtud.
Procuran siempre mis danhos
disfavores com reveses
de tu vista,
no veo cobrar los anhos
lo que se pierde em los meses
mi conquista.
¡Oh quita, senhora, enojos
y sea tu merced dudosa
a mi remedio,
solo por verem mis ojos
si eres em todo raviosa,
tan sin medio!
Dime, senhora, que culpa
mis continuados servicios
te merecem
y tanto que te desculpa,
porque los tus beneficios
me carecem.
Si por mi atrevimento
requestar tu gran valer
con mis gemidos,
muchos sin merecimiento
soo por lo de su querer
son queridos.
Si por mi dicha alcançasse
que quisesses ya mirar
mi semblante,
porque piedad forçasse
tu coraçon a mudar
su talante,
no creo que tu crueza
contigo bevir quisiesse,
bien mirando
mi grandissima graveza,
mas pienso luego huysse
de tu mando.
Que por cierto yo no creo
qu' hombre haya tal sofrido
a ninguna,
mas creo, pues que lo veo,
que pior me has ferido
que Fortuna.
Ca sus bienes de consuno
buelvense como la faya
con los vientos,
e a ti no bolvio ninguno
que algũ descanso traya
a mis tormientos.
Y con este danho tal
es la mi passion gigante
ya por cierto,
que ando muerto inmortal
y hecho una boz clamante
en tu disierto.
Desierto de compassion
y de bienes provechosos
para mi,
poblado con mi passion
y mis males trabajosos
hast' aqui.
Fim.
Al Citarides, potente,
remediador d' amadores
desdichados,
pidote haga presente
mis ansias y mis dolores
tan sobrados.
Y el que sabe la razon
de querelhas, mis tormientos
más que muerte,
a el pido el galardon,
segun mis merecimientos
en quererte.
777
ESPARÇA SUA.
Io triste m' estoy mirando
y esperando
qu' el tiempo qu' es por venir
me consuele,
qu' el presiente no sé quando
hará mejor mi bevir
de lo que suele.
Que a los males y temor
del amar
si quiero ter sofrimento
del tormiento,
mi dolor
descubre mi sentimiento.
778
CANTIGA.
No puedo triste dezir
la passion de mi partida,
ni partiendo mi bevir,
no se deve lhamar vida.
Partida mata plazer,
partida causa mudança,
partida pone nembrança
qu' acrecienta esperança
qu' es el mismo fenecer.
Assi que causam morrir
los danhos de tal partida,
pues bivendo com partir
me parto de la mi vida.
779
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Desespera-m' esperança.
Esperei, mas a mudança
faz ò revés do que quero
e, se remedio espero,
desespera-m' esperança.
Esperança de ter vida
me fez muito confiado,
mas pois a tenho perdida
sam ja bem desenganado,
porque vejo que mudança
é contraira do que quero
e, quando a milhor espero,
desespera-m' esperança.
780
CANTIGA.
S' obedecera à rezam
e resestira à vontade,
eu vivera em liberdade
e nam tivera paixam.
Mas quando ja quis olhar
s' em algũ erro caira,
achei ser tudo mentira,
s' a isto chamam errar.
Que seguir sempre razam,
e nam mil vezes vontade,
é negar sensualidade
cujo é o coraçam.
781
VILANCETE.
Mais vida podera ter
donde nenhũa s' alcança,
mas matou-m' a confiança.
Se confiei no presente,
fez-mo o tempo passado,
do porvir nam fui lembrado,
coitado de quem no sente.
A verdade nam me mente,
mas enganou-m' a esperança,
porque quis a confiança.
782
CANTIGA.
O bem qu' assi se desfaz
nom lhe devem chamar bem,
pois tam pouco satisfaz
a quem no tem.
Porque dele vem o al
com que tod' outro faz fim
e o fim é sempre tal,
que inda mal,
porque o acho eu em mim.
Porque vejo que desfaz
tudo o que pode ser bem
e sento o dano que faz
e donde vem.
783
OUTRA CANTIGA.
Nam posso ter o que quero,
o que tenho nam queria,
ca nam no tendo teria
ũu bem de qu' eu desespero.
Nam tenho poder em mim,
mas tem-no em mim o desejo,
desespero, pois nam vejo
o efeito do seu fim.
Assi tenho o que nam quero
e nam tenho o que queria,
ca, se o tevesse, teria
este bem que nam espero.
784
D'
ANTONEO MENDEZ DE PORTA‑
LEGRE, LHANTO EM
MODO DE
LAMENTACION.
Recordad ya mis sentidos,
del desmaio levantados,
con muy profundos gemidos
de mis entranhas tirados
hazen lhantos doloridos.
Lagrimas tam mal sofridas
com mortal rezon lhoradas,
turbias, de sangre mezcladas,
venid de dentro salidas,
de mis lhagas lastimadas.
Levanten boz dolorosa
mis clamores desiguales
y mis sospiros mortales
canten em muy triste prosa
los mis dolorosos males.
Vengan mis grandes pesares
lhorando del coraçon,
los gritos de mi passion,
em muy amargos cantares,
planhiendo mi perdicion.
De mis lastimas raviosas
salgan grandes alaridos,
los abismos escondidos,
em sus sombras espantosas
seam mis males oidos.
Venga la triste ventura
a mi angustioso pranto,
porque el dolorido canto
de la grande desventura
que me dió le ponga espanto.
Comiença la lamentacion.
Como está desamparada,
quam sola lhora su pena
mi vida de males lhena,
triste, muy desconsolada,
de todo plazer agena,
de gram dolor trepassada.
Está soo assi planhendo
dentro delh' alma gimiendo
de mortal ravia cercada,
sus mismas carnes rompiendo.
De si sola se querelha,
está la muerte lhamando,
noches y dias lhorando
lagrimas que corren delha,
las suas mixilhas banhando.
Y no hay quien la consuele
em su gram tribulacion,
todos sus sentidos son,
del mal que tanto le duele,
muy lhenos de turbacion.
Como la veo desierta
de todo el bien que tenia,
su gloria, su compania,
de luto toda cubierta,
de descanso muy vazia.
Y de verse triste tal
que ningum plazer consiente,
la muerte tiene presente,
acordandose del mal
de que tantos males siente.
Que complidos son los dias
qu' endinaron los mis fados,
pera qu' estavam guardados
em mis tristes profecias
pesares desordenados.
Los anhos de mi dolor,
a mis males prometidos,
presentes som ya venidos
a lhorar el mal mayor
para que fueron nacidos.
La mi suerte desastrada
com sus ondas de mudanças
ha buelto las esperanças
de la mi edad passada
em muy amargas lembranças.
Mis raviosas desventuras
nel mejor tiempo que vieron
todo mi bien convertieron
em lhoros y em amarguras
del pesar con que vivieron.
Bueltas son em gran tristura
mis alegrias passadas,
mis pasiones tam lhoradas,
lhorando la sepultura
donde fueron ordenadas.
Lhoran mis males crecidos
y mis bienes acabados,
mis pesares començados,
mis plazeres convertidos
em lhantos desesperados.
Y com tal lamentacion,
mis sentidos contemplando
representan, suspirando,
la triste recordacion
com que muero deseando.
¡Oh bivir desesperado,
de mis glorias ataud
como m' has desemparado,
tam lexos de mi salud,
mi descanso sepultado!
Muerta es toda mi gloria,
todo mi bien pereció,
la triste vida quedó
lamentando la memorea
del mal que biviendo vio.
Y con la gram crueldad
del dolor que nelha mora,
la muerte siente cad' hora,
lhorando la soledad
con que mi anima lhora.
I con este desconsuelo
mis dolores son tamanhos
qu' a mis pesares estranhos,
si les procuro consuelo,
acrecientan más mis danhos.
No sufren consolacion
tam penados sentimientos,
que mis tristes pensamientos
no falhan comparacion
al dolor de mis tormentos.
Mas de verme triste yo
nel estremo en que me veo,
com mi fortuna guerreo,
porque bivo me dexó,
muerto todo mi deseo.
¡Oh muerte desordenada,
raviosa, lhaga sin cura
y tierra hambrienta, dura!
¿Adonde tienes robada
mi deseada folgura?
Fim.
¿Donde tienes mi querer?
¿Qu' es de mi plazer perdido?
¡Oh mi penado sentido!
¿quando se poderá poner
tantos males em olvido?
Y pues ya queda mi suerte
de remedeo despedida,
con la gram pena sentida
lhorará tanto la muerte
quanto durar en la vida.
785
Cogitavi dies
antiquos et
annos eternos in
mente habui.
D' ANTONEO MENDEZ SOBRE
ESTA PALAVRAS.
Sospirando meus cuidados,
chorando minha lembrança,
cuidei na triste mudança
dos dias que sam passados,
perdidos sem esperança.
Cuidei em todos meus danos,
lembrou-me todo meu mal,
cuidei nos tempos e anos
de que me nam ficou al
senam tristes desenganos.
Chorei mortal saudade
cá dentro no coraçam,
qu' esta só consolaçam
ficou à minha verdade
em minha gram perdiçam.
Cuidei nos dias que vi
nos males em que me vejo
e da gram dor que senti.
É tam triste meu desejo
que choro porque naci.
Cuidei nos antigos dias
do tempo que é ja mudado,
vi meu bem todo tornado
em chorar como Mancias
a memorea do passado.
Chorei o mal que padeço,
chorei o bem que passou,
vi meu tempo qu' acabou
e deixou-me no começo
dos males que m' ordenou.
Cuidei na passada vida
contente com seus amores,
vi de todo destruida
e em mui estranhas dores
minha grorea convertida.
Cuidei no tempo presente,
lembrou-me como passaram
os anos, que me deixaram
da vida mais descontente
que da morte qu' ordenaram.
Cuidei na triste ventura,
suas mudanças chorei,
com que chorando farei
a meus dias sepultura
dos males com que fiquei.
Vi mortaes desconfianças
em meu triste pensamento,
chorei o gram perdimento,
que m' ordenam as lembranças
passadas, qu' agora sento.
Fim.
Cuidei nos grandes cuidados
que sempre vivo cuidando.
Disse com sospiros: — Quando
poderei ver acabados
tantos males em que ando?
Desenganou-me a lembrança
do tempo em que cuidei,
pois descanso nom achei
na vida nem segurança
qu' em morrer descansarei.
786
VILANCETE SEU.
Tristezas, nam me deixeis,
pois é pera me dobrardes
maior mal, quando tornardes.
Por meu descanso vos sigo,
que ja outro nam espero,
prazer nam busco nem quero,
pois tam mal se quer comigo.
Ver-m' -ei em grande perigo,
quando me depois tornardes
o mal qu' agora tirardes.
Ja deixei as esperanças
do prazer que vi passar,
que nam ouso d' esperar
outra vez suas mudanças.
Nam sofrem minhas lembranças
tristezas sem m' acabardes,
deixar-vos nem me deixardes.
787
CANTIGA SUA.
Lembranças, a que viestes?
Saudades, que buscaes?
Se ver-me vivo, tardais,
se morto, vós o fizestes.
Vós folgais com minha vida,
eu folgo de ver perdê-la,
pois que nam tenho mais dela
que tê-la sempre perdida.
Mas no tempo que viestes,
nam tenho de vivo mais
ca ter vivos os sinais
dos males que me fizestes.
788
VILANCETE DE PERO VAZ.
Ninguem dá o que nam tem
e os meus males sem fim
poderam-na dar a mim.
Folgava com meus cuidados
por segurar minha vida
e eu vejo-a perdida,
eles tenho-os dobrados.
Inda vos veja acabados,
males, que nam tendes fim,
pois a vós destes a mim.
Ajuda d' Antoneo Mendez.
Acabei meus dias eu,
eles nunca s' acabaram,
mas por m' acabar buscaram
outro mal maior qu' o seu.
Deram-mo, que lhe nam deu
quem mos dá tanto sem fim
que ma dam eles a mim.
789
Deixai-me triste viver
com minha dor tam crecida,
cuidados, que quero ver
se podem males fazer
mais que tirarem-m' a vida.
Porque quando m' acabarem
com sua maior crueza,
des que morto me deixarem,
deixaram minha firmeza
mais viva em me matarem.
Pois se jaa nom tem poder
de mudar fee tam crecida,
meus males bem podem crer
que nom podem mais fazer
que dar fim a triste vida.
790
ESPARÇA SUA.
Oh maior bem de meu mal,
descanso de meu desejo,
meu cuidado tam mortal
com que minha vida é tal
que mais que morto me vejo!
Remedeo de meu tormento,
tormento de meu sentido,
ante vós meu perdimento
nam deve ser esquecido,
pois por vós nele consento.
791
CANTIGA SUA.
De quantos males me dais,
dai-me aqueste só conforto,
senhora, pois me matais,
que nam vos arrependais
de meu mal depois de morto.
Porque no tempo qu' ouvir
que tendes por mim tristeza,
hei medo de ressurgir
pera tornar a sentir
outra vez vossa crueza.
Deixai-me, pois me matais,
acabar, qu' ee gram conforto,
que mais crua vos mostrais
em querer que viva mais
qu' em folgar de me ver morto.
792
DE
DIOGO VELHO DA CHANCE‑
LARIA. DA CAÇA QUE SE CAÇA
EM PORTUGAL, FEITA NO
ANO DE CRISTO DE MIL
QUINHENTOS. XVI.
Rifam.
Oh que caça tam real
que se caça em Portugal!
Rica caça, mui real,
que nunca deve morrer,
pera folgar de lhe correr
tod' a jente natural!
Linda caça mui sobida
se descobre em nossa vida,
a qual nunca foi sabida
nem seu preço quanto val!
Oh da gram mata Lixboa,
onde toda caça voa,
Arabia, Persia e Goa,
tudo cabe em seu curral!
Calecud e Cananor,
Melaca, Tauris Menor,
Adem, Jafo Interior,
todos veem per ũu portal.
Talhamar da grã riqueza,
Damasco com forteleza,
Troia, Cairo com sa grandeza
nom domarom nunca tal!
O mui sabio Salamom,
que fez o grande montom,
teve sa parte e quinhom,
mas nom todo o cabedal.
Mida, Anglia com norte
e Alexandre tam forte
nom conservou esta sorte
nem o seu vidro cristal.
Priamo, Juba, Assueiro,
Membrot, Pompeo guerreiro,
nenhũ foi tam sobranceiro,
nem tam pouco Anibal.
Carina navegador
navegou com muita dor,
nunca foi descobridor
deste tam rico canal.
Hercoles, Cesar corredores
tambem foram caçadores
e nom foram achadores
deste cetro tam real.
Ciro, Porsena fronteiro,
Afrons, Jupiter herdeiro,
nenhũ foi tam verdadeiro
nem Saturno paternal.
Eneas, Ulixes caminheiro,
Tolomeu, Prinio messejeiro,
Nino, Remulo primeiro,
jemerom, sabendo tal.
Macabeu cos Doze Pares,
com seus deoses e altares,
nom teverom tais lugares
nem tal graça especial.
Ouro, aljofar, pedraria,
gomas e especearia,
toda outra drogaria
se recolhe em Portugal.
Onças, liõos, alifantes,
moonstros e aves falantes,
porcelanas, diamantes,
é ja tudo mui jeral.
Jentes novas, escondidas,
que nunca foram sabidas,
sam a nós tam conhecidas
como qualquer natural.
Jacobitas, abassinos,
cataios, ultramarinos,
buscam godos e latinos
esta porta principal.
O avangelho de Cristo
cinco mil leguas é visto
e se crê ja lá por isto
o Misterio Divinal.
Os das grandes carapuças,
longas pernas, grandes chuças,
fariseus, suas aguças,
nem o Chinches austerial.
Amaro e o Ermitam
em sua contemplaçom
leixarom revelaçom
deste horto terreal.
Em o ano de quinhentos
e com mil primeiro tentos
descobrirom os elementos
esta caça tam real.
Em este segre cintel
reina El-Rei Dom Manuel,
que recolhe em seu anel
sua devisa e seu sinal.
Porque é mui virtuoso,
excelente e justiçoso,
Deos o fez tam poderoso
rei de cetro imperial.
Sua santa parçaria,
Rainha Dona Maria,
estas maravilhas lia
por esprito divinal.
Esta é jentil a andina
pera cantar com a Mina,
Çafim, Zamor, Almedina
tambem é de Portugal!
Rezam é que nom nos fique
a alma do Ifante Anrique
e que por ela se soprique
ao nosso Deos celestrial,
Porque foi desejador
e o primeiro achador
d' ouro, servos e odor
e da parte oriental.
O poderoso rei segundo
Joham Perfeito, jocundo,
que seguio este profundo
caminho tam divinal,
O Cabo de Boa Esperança
descobrio com temperança
por sinal e de mostrança
deste bem que tanto val.
A madre consolador
de muito bem sostedor,
em virtudes fundador,
sua parte tem igual,
D' El-Rei Dom Joham parceira,
Dona Lianor, herdeira
natural e verdadeira
rainha de Portugal.
Emanuel sobrepojante,
rei perfeito, roboante,
sojugou mais por diante
toda a parte oriental.
Nunca sejam esquecidos,
seus nomes sempre sabidos
e de gloria compridos
pera sempre eternal.
Aquele grande prudente
profetizou do ponente
e de toda sua jente
caçar caça tam real.
O gram Rei Dom Manuel
a Jebusseu e Ismael
tomaraa e fará fiel
a lei toda universal.
Ja os reis do Oriente
a este Rei tam exelente
pagam parias e presente
a seu estado triunfal.
Pola grande confiança
que em Deos tem e esperança
é-lhe dada gram possança
de memoria inmortal.
O dos mui lindos buscantes,
rasteiros e tam voantes
caçadores rastejantes
que caçam caça real,
Sam conhecidos de cujos
sam estes lindos sabujos,
é bem criar-lhe os andujos
pera casta natural.
É o tempo achegado
pera Cristo seer louvado,
cada ũu tome cuidado
deste bem que tanto val.
As novas cousas presentes
sam a nós tam evidentes
como nunca outras jentes
jamais virom mundo tal.
Fim.
É ja tudo descuberto,
o mui lonje nos é perto,
os vindoiros têm ja certo
o tesouro terreal.
793
D'
ANRIQUE DA MOTA A ŨA MO‑
LHER, QUE LHE MANDOU DIZER
QUE A CADA LETRA DO SEU
NOME LHE FIZESSE ŨA TRO‑
VA E CHAMAVA-SE AN‑
TONIA VIEIRA.
Se vossa mercê quisera,
eu nam passar este vaso,
grande mercê me fezera,
porque se nam conhecera
quam pouco sei neste caso.
Mas pois ja meu coraçam
em tudo vos obedece,
sem temor de reprensam
dir-vos-ei minha tençam
daquilo que me parece.
No .A., senhora, s' entende
o Amor muito sobejo
que me mata e que m' encende,
que me manda e me defende
que nam cumpra meu desejo.
E o .M. vos decrara
a Morte que me causais,
da qual eu nam m' aqueixara,
se das dores vos matara
que me vós a mim matais.
E o .T. é a Tristeza
que me dais, porque sam vosso,
mas nam tem poder crueza
de vencer minha firmeza
nem eu muito menos posso.
O .O. sam os Olhos tristes
com que triste vos vi eu,
e os com que me vós vistes
sam setas com que feristes
meu coraçam, sendo meu.
O .N. nam quer dizer
senam Nam, que me dizeis,
sem quererdes conceder
em dizer si nem querer
o que quero que sabeis.
O .I. diz que sois Imiga
do descanso qu' eu quisera,
aos vossos dais fadiga
e quem mais por vós obriga
menos gualardam espera.
O .A., senhora, vos chama
Avarenta de favores:
desamais a quem vos ama,
tendes de crua tal fama
quanta tendes de primores.
Polo V. se manifesta
minha sojeita Vontade,
que sendo livre nam presta
e faz cativa moor festa
do que faz com liberdade.
E diz o segundo .I.
que tenho fee Inmortal
e creo que nam naci
senam des que conheci
ser moor bem o voso mal.
Pelo .E. tenho sabido
a Enveja que me tem
algũs, que têm conhecido
quanto sam por vós perdido,
ganhado por querer bem.
No .I. terceiro conheço,
senhora, que soes Isenta,
pois que quanto vos mereço
tendes em tam pouco preço
que tudo nam vos contenta.
O .R. é a Rezam
que vós tendes de querer
tanto minha salvaçam,
quanto vossa perfeiçam
foi causa de m' eu perder.
E o .A. por derradeiro
diz que digo sempre Ai!
Este é o pregoeiro
que diz do meu prisoneiro
coraçam como lhe vai.
Este brada noite e dia,
por saber quem no ouvir
vossa crua fantisia
e minha grande alegria,
morrendo por vos servir.
794
GROSA
SUA A ESTE MOTO QUE
FEZ EM QUE NAM ESTAM
MAIS
NEM MENOS LETRAS QUE AS
DO NOME D' ANTONIA
VIEIRA.
Ja vitoria nam é.
Matar ũu homem vencido,
preso sobre sua fee,
ja vitorea nam é.
Matardes-me vós, senhora,
pelo meu nam me dá nada,
mas por vós, que soes culpada
em matar quem vos adora.
E que me matais agora,
pois nam matais minha fee,
ja vitorea nam é.
Que vitorea levareis
matar ũ vosso cativo,
pois confesso que nam vivo
senam quanto vós quereis.
E posto que me mateis,
sem vos lembrar minha fee,
ja vitorea nam é.
795
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Gram trabalho é viver.
Pois nam s' escusa perder
a vida com grande afronta,
lançando bem esta conta
gram trabalho é viver.
Es vida tam estimada
quanto sam breves teus dias,
que sendo por sempre dada,
quanto es agora amada,
tam desamada serias,
E pois nunca dás prazer
que nam venha com afronta,
lançando bem esta conta
gram trabalho é viver.
Outra grosa em vilancete.
Quem nesta vida cuidar
pode bem certo saber
qu' ee gram trabalho viver.
Quem cuidar nesta mudança
qu' este triste mundo faz,
achará que nele jaz
a maior desconfiança.
E pois nunca dá bonança,
sem temor de se perder,
gram trabalho é viver.
Cada ũ em seu estado
meta bem a mão no seo,
achará, segundo creo,
muita dor, muito cuidado.
E pois ante de ganhado
este bem s' ha-de perder,
gram trabalho é viver.
Estes beens de tanta briga
com fadiga sam havidos,
com fadiga possuidos
e leixados com fadiga.
E pois este mal sogiga
no ganhar e no poder,
gram trabalho é viver.
Logo m' eu contentaria,
se nesta vida presente
alguem vivesse contente
ou descansado ũu soo dia.
Mas porqu' isto qu' eu queria
nunca foi nem ha-de ser,
gram trabalho é viver.
796
D' ANRIQUE DA MOTA A JOAM
RODRIGUEZ DE SAA PARA QUE
FALASSE POR ELE AO CONDE,
SEU SOGRO, E A JORGE DE
VASCONCELOS, SEU CUNHA‑
DO, SOBRE DINHEIRO QUE
LHE NAM PAGAVAM DE
VINHOS, QUE LHE
VENDEO PERA
ŨA ARMADA.
Senhor, a quem Febo deu
lingua virgiliana,
de que corre, de que mana
quanta fama ouço eu.
E alem deste primor,
o mui alto deos d' amor
triunfante
vos fez ũu gentil galante,
de damas gram servidor.
De nobreza e fidalguia
escuso de vos louvar,
pois vosso claro solar
como sol resplandecia.
E das artes liberais
e vertudes cardeais
nam vos gabo,
porque nisto nam tem cabo
a gram fama que cá dais.
Eu, senhor, porque conheço
vosso alto nacimento,
quis tomar atrevimento,
pedir-vos isto que peço.
E que seja desigual
pedir esta mercê tal
sem servir,
fazê-o por conseguir
vosso lindo natural.
Eu fiz, senhor, ũu partido
co senhor vosso cunhado,
no qual perdi o ganhado
e nam ganhei o perdido.
Compri com ele sem briga
por me tirar de fadiga,
e agora
faz-me na paga tal mora
que nam sei ja que lhe diga.
E por mais me agravar,
remete-me a Dom Martinho,
que mandou gastálo vinho,
qu' ele mo mande pagar.
Dom Martinho nam me crê,
se lhe falo, nam me vê
nem me ouve.
Vede, senhor, quem trouve
a pedilo meu por mercê.
Falei tres vezes a El-Rei
nesta tam mao pagamento,
Sua Alteza com bom tento
ouvio quanto lhe falei.
Mas, porem, sempre me disse
que Dom Martinho ouvisse
meu agravo,
nam sei u jaz este cravo
nem menos sei quem no visse.
Eu andando sem saber
quem posesse nisto meo,
em sonhos, senhor, me veo
que vós me podeis valer.
Vasconcelos mo comprou,
Castel Branco mo gastou
em Zamor,
mas eu nam acho, senhor,
quem diga que mo pagou!
E pois vós soes ũ Teseo
em esforço e bom destinto,
livrai-me do laberinto
de que sair nunca creo.
Porque acho desta vez
que o que Dedalo fez
nam foi tal,
pois que Fedra nam me val
nem o gram pelouro de pez.
Mas vós, que tendes na mão
o cordel per u sair,
se me quiserdes ouvir,
podês-me dar redençam.
E pois sois bom luitador
e podeis i lutar, senhor,
per dous erros,
livrai-me destes desterros
e ganhais ũ servidor.
Fim em vilancete.
Destas idas, destas vindas,
destas pagas dos amores,
por ũu prazer cem dolores.
No tempo do contratar
andam tam bem assombrados,
que nam venham namorados
que mais saibam lisonjar.
Mas este negro pagar
nos causa com desfavores
por ũ prazer cem dolores.
E pois que vossa mercê
naceo pera bem fazer,
folgai de me socorrer,
pois m' agravam sem porquê.
E por vosso me havê,
porque cante mil louvores
de vossos grandes primores.
Outro vilancete ao Conde de
Vila Nova sobre este caso.
Quanto ganho nos partidos,
tanto gasto em çapatos,
d' Herodes pera Pilatos.
Ex-me vou e ex-me venho
como barca de carreira,
quanto ganho, quanto tenho
tudo leva a taverneira.
E assi desta maneira
gasto todos meus çapatos
d' Herodes pera Pilatos.
Quando cuido qu' estou bem,
entam acho qu' estou mal,
quando cuido ser alem,
sam aquem de Portugal.
E per este modo tal,
gasto todos meus çapatos
d' Herodes pera Pilatos.
Ando muito mais bolido
do que é saco de malha,
tenho gram monte de palha,
mas o gram nam é havido.
Sem chegar a ser ouvido,
rompo todos meus çapatos
d' Herodes pera Pilatos.
E, pois que, senhor, o meu
fiz de vossa jurdiçam,
dai-mo, dai-mo, qu' ee rezam,
dai-mo, pois que Deos mo deu!
Nam queirais que gaste eu
o que nam guanhei nos tratos
d' Herodes pera Pilatos.
797
D'
ANRIQUE DA MOTA A Ũ
CRELIGO SOBRE ŨA PIPA DE
VINHO QUE SE LHE FOI
POLO CHAM E LEMEN‑
TAVA-O DESTA
MANEIRA.
— Ai, ai, ai, ai! Que farei?
Ai que dores me cercaram!
Ai que novas me chegaram!
Ai de mim! onde me irei?
Que farei triste, mezquinho,
com paixam?
Tudo leva maao caminho,
pois que vai todo meu vinho
pelo cham!
Ooh vinho, quem te perdera
primeiro que te comprara!
Ooh quem nunca te provara
ou provando-te morrera!
Oh quem nunca fora nado
neste mundo.
pois vejo tam mal logrado
um tal bem, tam estimado,
tam profundo!
Ooh meu bem tam escolhido,
que farei em vossa ausencia?
Nam posso ter paciencia
por vos ver assi perdido!
Oo pipa tam mal fundada,
desditosa,
de fogo sejas queimada,
por teres tam mal guardada
esta rosa!
Oo arcos, porque suxastes?
Oo vimeens de maldiçam,
porque nam tivestes mão
assi como me ficastes!
Oo mao vilão tenoeiro,
desalmado,
tu teens a culpa primeiro,
pois levaste o meu dinheiro
mal levado!
Fala com a sua negra.
— Oo perra de Manicongo,
tu entornaste este vinho!
Ũa posta de toucinho
t' hei-de gastar nesse lombo!
— A mim nunca, nunca mim
entornar,
mim andar augua jardim,
a mim nunca sar roim,
porque bradar?
— Se nam fosse por alguem,
perra, eu te certefico
bradar com almexerico,
Alvaro Lopo tambem.
— Vós logo todos chamar,
vós beber,
vós pipo nunca tapar,
vós a mim quero pingar,
mim morrer!
— Ora, perra, cal-te ja,
senam matar-t'-ei agora!
— Aqui star juiz no fora,
a mim logo vai té laa.
Mim tambem falar mourinho
sacrivam,
mim nam medo no toussinho,
guardar nam ser mais que vinho,
creligam.
— Ora te dou oo diabo,
rogo-te ja que te cales,
que bem m' abastam meus males
que me vêm de cada cabo.
Olhai a perra que diz
que fará:
irá dizer oo juiz
o que fiz e que nam fiz
e crê-la-á...
E pois ela é tam roim,
bem será que me perceba,
diraa qu' ee minha manceba
para se vingar de mim.
Entam em provas, nam provas,
gastarei,
iram dar de mim más novas
e faram sobre mim trovas...
Que farei?
O siso será calar
pera nam buscar desculpa.
Pois a negra nam tem culpa,
pera que lha quero dar?
Eu sem aqui o culpado
e outrem nam,
eu sam o denificado
e eu sam o magoado,
eu o sam!
Que negra entrada de Março!
Se todo vai por est' arte
e as terças doutra parte
ham-me de dar um camarço.
Oo vós outros que passais
pelas vinhas,
respondei, assi vivais,
se vistes dores iguais
co as minhas!
Fim em vilancete.
Pois nam tenho aqui parentes
saltem vós, amici mei,
chorareis como chorei!
Chorareis a minha pipa
chorareis a anno caro,
chorareis o desemparo
do meu bem de Caparica.
E pois tanta dor me fica,
saltem vós, amici mei,
chorareis como chorei!
Fala com o Vigairo.
― Ó gordo padre vigairo,
vós que sabeis que dor é,
ajudai por vossa fee
a chorar este fadairo!
Se perdera o breviairo
nem a capa, que comprei,
nam chorara o que chorei!
Responde o Vigairo.
— Oo irmão, muito perdeste!
E segundo em mim sento
nam tevera atrevimento
de sofrer o que sofreste!
É um tam grande mal este,
que
com doo que de ti hei
pera sempre chorarei!
Fala com Alvaro Lopez.
— Oo Alvaro, irmão amigo,
vê-lo, jaz aqui no chão!
Pois perdeste teu quinham,
vem e chorarás comigo!
Certamente eu te digo
que, quando morreo El-Rei,
pardeos tanto nam chorei!
Reposta d' Alvaro Lopez.
— Milhor me fora perder
dez mil vezes meu oficio
ou ũ grande beneficio
que tanta pena sofrer!
Pois nam temos que beber,
ó irmão, onde m' irei?
Pois que choras, chorarei!
Fala com o Almoxarife.
— Oo almoxarife irmão,
levantemos esta pipa
e veremos se lhe fica
ainda algum nembro são.
Mas eu tenho tal paixão
do triste, que nam logrei,
que por sempre chorarei!
Responde o Almoxarife.
— Pois que nam tem alma jaa,
pera qu' ee alevantada?
Mas muito pior seraa
que dizem que ficaraa
esta casa violada;
a confraria é danada.
Oo irmão, que te farei?
Se chorares, chorarei!
Fala com o Juiz dos orfãos.
— Vós que tendes jurdiçam
naqueles que nam têm pai,
vinde, vinde aqui, chorai,
que eu tambem orfão são.
E que vossa condiçam
seja d' agua como sei,
chorareis como chorei!
Reposta do Juiz dos orfãos.
— Esforçai, nam vos mateis,
perto é daqui a Agosto,
a negra fica convosco
com que vos confortareis.
Do perdido nam cureis
nem chameis Aque d' El-Rei
e eu vos consolarei.
Fim da Cementaçam do Creligo.
— Todo genero honrado
em que vertude consiste,
ajudai chorar o triste
que jaz aqui entornado!
E pois eu por meu pecado,
pera tanto mal fiquei,
pera sempre chorarei!
798
D' ANRIQUE DA MOTA A ŨU
ALFAIATE DE DOM DIOGO,
SOBRE Ũ CRUZADO QUE
LHE FURTARAM
NO
BOMBARRAL.
— Guaias, que sam destroçado!
Ai, Adonai, que farei?
Pois que quis o meu pecado
que perdi o meu cruzado,
que por maas noites guanhei!
Guai de mim! Onde m' irei,
que receba algum conforto?
Se o calo, abafarei!
Jur' em Deu, num calarei,
porque ness' hora sam morto.
Mas ir-m'-ei por essa terra
como homem sem ventura,
porqu' a dor que me desterra
me fará tam crua guerra
que moira sem sepultura!
Guizeraa, que gram tristura,
oh quem ante nam nacera
com tam gram desaventura,
pois seis meses de custura
todos juntos os perdera!
Ai, que quero abafar,
ai que me quero perder,
quero-m' ir lançar no mar,
milhor é de me matar
que sempre prove viver!
Oh quem me desse saber
onde um toiro estivesse,
i-lo-ia cometer,
jur' em Deu, em me comer
grande graça me fizesse!
Doutra parte nam é siso
buscar minha perdiçam,
que quando culpam Narciso,
que morreo por mau aviso,
pois de mim ja que diram?
Mas, porem, espantar-s'-am
os que souberem tal lodo
como vivo com paixam!
Oh se viesse um liam
que m' esbandalhasse todo!
Certo eu naci maa hora,
em pior fui bautizado,
pois des entam ategora
sempre em mim mofina mora,
sempr' andei atrevessado!
Que farei, triste, coitado,
que nam sei ja que me faça?
Tudo é bem empregado
em mim, pois tomei de grado
esta lei nova de graça.
Eu que me queira calar
com perda tam conhecida,
nam posso dessimular,
porque por meu sospirar
será minha dor sabida.
Ooh cruzado, minha vida,
pera que te conheci,
pois tua triste partida
me causa dor tam crecida
qual eu nunca padeci!
Eu nam sei que mal eu fiz
que tal perda me convenha,
o coraçam cá me diz
que vá buscar o juiz
e creo que bem me venha.
E direi que me mantenha
em justiça com sa vara.
Ooh quem me dera ter grenha,
pois nam tenho quem me tenha,
eu por mi m' arrepelara!
Partir-m'-ei? Nam partirei?
Ir-me-ei onde me for?
Tornarei? Nam tornarei?
Se morrer, nam viverei?
Ou terei prazer ou dor?
Mas, porem, se o senhor
Dom Diogo isto sabe,
segundo me tem amor,
porque sam seu servidor,
jur' em Deu que nam me gabe.
Pergunta Dom Joani ò alfaiate.
— Como veens espavorido,
Manuel, que Deos te valha!
Como nam tendes sabido,
senhor, como sem perdido?
— Nam sei disso nemigalha.
Com quem houveste baralha?
Nam me negues isto mais!
— Oxala fosse baralha!
Nam me fica grãao nem palha,
quero-m' ir, nam me tenhais!
— Aguarda, aguarda, diabo!
Dize-m' esta puridade,
que bem sabes por meu cabo
que sempre muito te gabo,
por te ter boa vontade.
Nam me negues a verdade,
que quiçaa te virá bem.
Tenho-te tal amizade,
hei-de ti tal piadade,
que nam no crerá ninguem.
— Senhor, vou desamarrado
co a perda que mantenho,
levo meu colo alçado
e vou tam desatinado,
que nam sei se vou se venho.
O que tinha nam no tenho,
nem é ja em meu poder,
estas barbas vos empenho,
que valia d' um cermenho
me nam fica por perder.
— Contudo nam acabaste
de decobrir teu pesar,
mil rodeos me buscaste
e porem agora vás-te
sem nada me decrarar
Nam has assi de passar
nem te hei-de leixar ir,
has hoje d' arrebentar,
senam aqui has-d' estar!
— Ora começai d' ouvir:
Um cruzado que poipei
em que tanto me revia,
tantas vezes o olhei
até que nam no achei
nem é ja onde soia!
Eu nam sei se cairia
da bolsa, se mo furtaram...
— Ou quiçaa t' esqueceria
em jugando... Algum dia
dar-to-am, se to acharam.
— E pois um pesar tam raso
me fez ser de dor sogeito,
pois passei ja este vaso,
conselhai-me neste caso
o que é mais meu proveito.
— Isto dizes, é ja feito:
a Sant' Esprito irás
batendo rijo no peito
e contar-Lh'-ás teu despeito
e quiçaa o cobrarás...
Oraçam de Manuel em
Sant' Esprito.
Ó Tu, Senhor Sant' Esprito,
posto que T' eu nam conheça,
de Ti, Senhor, me é dito
que es um Deos infinito
e mo metem em cabeça.
E dizem que m' ofereça
a Ti em minha paixam
e posto que me nam creça
devaçam, quanta mereça,
nam me ponhas culpa nam.
Adevinha-m', adevinha,
Tu, Senhor, quem me levou
um cruzado, que eu tinha
pera dar à molher minha,
que nam sei quem mo furtou!
Dom Joam m' aconselhou
que me viesse eu a Ti.
Vês-m' aqui onde m' estou.
Nam me falas? Ja me vou,
que nam posso estar aqui!
Alevantei minhas velas
como nao com grã fadiga,
carregado de querelas,
e fui achar Joam de Belas
o qual manda que o siga.
E diz: — Queres que te diga,
Manuel, ũa gram nova?
— O Senhor Deos vos bendiga!
— Ja este demo s' atriga
e nam quer ouvir a prova.
Novas bem certas que Joam
de Belas dá a Manuel do seu
cruzado.
— Tua saberas qu' eu ouvi
dizer qu' um homem dissera,
o qual eu nam conheci,
que passara por aqui
outr' homem, nam sei dond' era...
E aquele homem soubera
d' um seu anigo chegado
que ũ dia desta era
um seu filho lhe trouvera...
— Esse é o meu cruzado!
Nam quero mais escuitar,
Senhor meu, muitas mercês!
O juiz me vou buscar,
que mande logo citar
esse homem que dizês.
Nam m' hajais por descortes.
porque vos leixo aqui soo,
tanta mercê me fareis,
que naquisto m' ajudeis
por desdarmos este noo.
Fala Manuel co
Juiz, que era
Gonçalo da Mota.
— Senhor juiz, venho caa
com muito grande paixam,
estou cá, nam estou laa,
Joam de Belas vos diraa
toda minha concrusam.
Eu nam sei quem nem quem nam
um cruzado me furtou,
ou se me cahio no cham,
porem tenho presunçam
que um homem o achou.
O Juiz.
— Esse homem donde é?
Bem será que mo digais,
porque sem mais bolir pee
vos juro, por minha fee,
que vosso cruzado hajais.
— Senhor Juiz, bem vivais!
Isso é o qu' eu espero!
— Ora sus, nam tarde mais,
esse homem, qu' acusais,
o nome saber-lhe quero.
Sinais que Manuel dá do homem
que lhe achou o cruzado.
― Eu nam sei ond' ele vive
porem é dond' ele for
a par dele nam estive
nem menos nam no retive
nem sei ond' ee morador.
Mas ponho qu' ee lavrador
e foi filho de alguem
e mais tem na sua cor
e tambem tem mor amor
a si mesmo ca a ninguem.
E é filho de molher,
traz o rosto por diante,
saberá quanto souber
e teraa o que tever
ou é feo ou é galante.
É mais baixo que gigante
e é maior que pineu
ou é fraco ou é possante
nam é rei nem é ifante
ou é cristão ou judeu.
Se mais sinais demandardes,
dar-vo-los-ei, se quereis,
mas porem, se bem julgardes
em est' homem condenardes,
grande mercê me fareis.
— Bem será ja qu' acabeis,
nam cureis mais de falar
e pois vós tanto sabeis,
esperai e ouvireis
a sentença qu' hei-de dar.
Sentença do Juiz.
— Visto bem por mi Juiz
este feito e maa auçam
e o qu' eu sobr' isto fiz
e o qu' este homem diz
em sua maa concrusam,
digo por boa rezam
que, s' ele perdeu o cruzado,
as Epistolas de Catam,
que quarenta e oito sam,
ham culpa neste pecado.
Fim.
Mas, porem, porqu' alegais
sinais com que m' embaçastes,
por esses mesmos sinais
eu julgo que vós percais
o cruzado que furtastes.
Porqu' assi como o guanhastes
sem temor de Deos nem medo,
abofee bem no lograstes
e nam sei como o guardastes
que se nam perdeo mais cedo.
799
D'
ANRIQUE DA MOTA AO HORTELAM
QUE A RAINHA TEM NAS CALDAS,
QUE É Ũ HOMEM MUITO PEQUE‑
QUENO E CHAMA-SE JOAM GRAN‑
DE E PASSOU ESTAS PALAVRAS
COM ELE POR TRAZER A CARRE‑
TO DE DIZER QUE O PREVEDOR
DAS CALDAS, QUE CHAMAM
JERONIMO D' AIRES, ERA
MUITO SECO EM SUAS COU‑
SAS, E COMEÇA A BATER
À PORTA DA HORTA. E
FALAM AMBOS Ũ
COM O OUTRO.
— Ou laa, ou laa, ou delaa!
— Quem está i?
— Chegai, peço-vos, aqui,
que queria entrar laa.
— Quem sois vós? Abrir-vos-ei...
— Abri vós e vê-lo-eis.
— Que quereis?
— Abri e dir-vo-lo-ei.
Em abrindo a porta.
— Amigo, Deos vos ajude!
— E a vós faça!
— Dizei-me, por vossa graça,
assi Deos vos dei saude,
se estaa aqui Joam Grande,
um mui grande hortelam?
— Eu o sam,
enquanto a Rainha mande!
— Isso seraa zombaria...
— Bem, porquê?
— Porque sois ũ cutilquê
pouco moor que cotovia!
E Jam Grande deve ser
um homem grande, crecido,
mui comprido
de descriçam e saber...
E vós pareceis bogio
com capelo,
redondo como novelo
ou pimeu em desafio.
— Se vós vindes a zombar,
nam vos quero mais ouvir!
Quero-m' ir,
que nam posso aqui estar.
— Aguardai, nam vos partais,
escuitai-me!
— Estarei e segurai-me
que nam zombeis de mim mais.
— Deixai-me passála porta,
que queria lá entrar
a falar
co hortelão desta horta.
— Pois ou grande ou pequeno
ex-m' aqui!
— O que dizeis é assi?
— Assi é por Sant' Ileno.
Vede vós o que quereis.
— Parecês arratalinho
folforinho...
— Nam disse que nam zombeis?
Ora i-vos logo fora
da minha horta,
que quero çarrála porta!
— Ei-lo demo vem agora!
Nam vos pidirei perdam
por qualquer cousa qu' errasse
ou passasse
mais de vossa condiçam.
— Por i me podeis levar,
que per bem
nam me vencerá ninguem.
Ora podeis vós entrar!
— Benz'-as Deos as larangeiras,
parece qu' a olho crecem!
E ja tecem
por aqui estas limeiras!
Oh que cousa tam real
começada!
— Entrai, que nam vedes nada!
— Oh que fremoso cidral!
E estas larangeirinhas
de laranjas carregadas!
— Sam prantadas
por estas santas mãos minhas!
— Quanto vós aqui prantais
tudo prende!
Por que tanto se m' entende
que ninguem nam sabe mais!
— Ũ pao seco aqui metido,
co saber que me Deos deu,
farei eu
ficar verde e mui frolido!
― Oh que cousa de louvor
esta ee!
Metei cá, por vossa fee,
este vosso provedor.
I correndo mui asinha,
que vos valha Deos, trazê-o
e fazê-o,
qu' ee serviço da Rainha.
— Ó Jesu, nam me faleis
nesta cousa,
porque meu saber nam ousa
fazer isso que quereis!
Porque toda a natureza
nem o saber de Medea
nem Cumea
nam faram tal ardideza.
Porque sua sequidade
é de sorte
que nunca, senam per morte,
mudará sa calidade.
E pera se regar bem,
primeiro despenderei
e secarei
toda quanta aagua aqui vem!
E ainda nam m' atrevo
a regá-lo
e, se quiser bem aguá-lo,
nam farei cá o que devo.
Antes ele fique seco
que dar maa conta de mim
e, enfim,
serei julgado por peco.
Porque sempre ouvi falar
cá e laa
que o que natura daa
ninguem o pode negar.
Ele tem seca naçam
de seu seco natural,
pelo qual
nam ha i ja redençam.
— Assim que vos despedis
de trazê-lo,
doutra parte eu ponho selo
a isso que concrudis.
Porque depois que naci
outra tam seca pessoa,
sendo booa,
nunca nesta terra vi!
Fim e concrusam.
E assi que concrudindo,
nunca pude achar maneira
pera que sua sequeira
se fosse deminuindo.
Porem dizem cá ũ dito,
bem me deveis d' entender,
que se acha em escrito,
que, quando virmos sol fito,
qu' esperemos por chover.
800
D'
ANRIQUE DA MOTA A
ŨU
SEU AMIGO EM REPOSTA DE
ŨA
CARTA QUE LHE MANDOU, EM
QUE LHE CONTAVA ŨA VI‑
SAM QUE VIRA E PEDIA
CONSELHO E DECRARA‑
ÇAM DA DITA VISAM.
Descriçam do tempo.
A madre que começava
derramar seus lavradores
a filha de novas frores
o mundo ja visitava
e Neptuno derramava
seus tesouros.
Sobre cristãos, sobre mouros,
Febo seus cabelos louros
reservava
e sem graça se mostrava.
O qual ia repousando
na casa do animal,
que co rabo fere mal
e da boca é mui brando.
Neste tempo era quando
me foi dado
ũ escrito mui çarrado,
que me deu muito cuidado,
em cuidando
no que nele vou achando.
E depois de o ter lido,
fiquei todo sem prazer
por nam poder entender
seu estilo mui sobido.
E assi entrestecido
me parti,
na qual ida me temi
de m' acontecer assi,
como hei lido,
que Homero foi perdido.
E com tam gram desatino,
prossegui por minha via,
Ramusia tomei por guia
como fez El-Rei Cadino.
E achei-me tam mofino
caminhante,
que quanto mais vou avante
me acho tam inorante
de contino,
muito mais que um menino.
E ia tam tresportado
que nam via ceo nem terra,
a mim mesmo dava guerra
co este novo cuidado.
Porqu' ia tam enlevado
em cuidar
que sem caminho achar
me foi Furtuna levar
a um prado
d' humanos desabitado.
O qual todo se cerrava
d' ũa serra per tal arte,
tam alta de cada parte
que as nuveens traspassava.
Na qual serra vi qu' andava
montesina
muita fera salvagina
e toda ave de rapina
se criava
naquesta selva tam brava!
E eu vendo que errei
o caminho da pousada
comecei buscar entrada
por sair per u entrei.
E depois que trabalhei
em buscá-lo
sem poder jamais achá-lo,
de ter aas como Dedalo
desejei,
quando cercado m' achei.
E des que nam achei meio
pera sair da montanha,
bradava com grande sanha
mesturada com receo.
Porem o carro febeo
caminhando
me foi toda luz tirando,
em tais trevas me leixando
como Orfeo,
quando do Inferno veo.
E depois que me cercou
a sombra de Tesifone,
fiquei mais triste que Prone,
quando seu filho matou.
Porque des que s' apartou
a luz do dia,
fogio de mim alegria
e por minha companhia
me ficou
temor, que m' acompanhou.
E com quanto mal dobrado
atequi passei tam duro,
com receo do futuro
m' esquecia do passado.
Porque me vi mui cercado
de bestigos,
de minha vida imigos,
e eu por fogir perigos
foi forçado
em ũa arvor ser trepado.
E depois dali passar
gram parte da noite escura,
maldisse minha ventura
que m' ali veo portar.
E comecei de rogar
a Cupido
qu' alomie meu sentido
e pera que fui trazido
a tal lugar
me quisesse decrarar.
E eu que nam acabava
meu rogo tam paciente
quando vi supitamente
um craror que me cercava.
E no meio dele estava
poderoso
um moço cego, fremoso,
ora ledo ora cuidoso
se mostrva
e tinha aas com que voava.
E trazia por sinal
de suas obras secretas
um coldre com muitas setas
e um arco mui real.
E a quem é mais leal
a seu mandado,
esse vive mais penado,
esse tem tanto cuidado
que mais val
fogir do seu arraial.
E aqueles que feria
com seus furiosos tiros
fazia-lhe dar sospiros,
sem cansar noite nem dia.
E vi que tanto podia
seu poder
que nam presta defender,
nem o humano saber
nam sabia
resestir sua perfia.
E eu com alteraçam,
que tinha do grande medo,
falei um pouco mais cedo
do que mandava rezam.
E disse com torvaçam:
— Oo senhor,
se tu es o deos d' Amor,
livra, livra de tal dor
meu coraçam,
que nam moira de paixam!
O qual logo respondeo:
— Eu sam o grande Cupido,
eu fui amado e temido
de quanta gente naceo!
E quem me nam conheceo
nem amou,
poucas cousas acabou,
nunca galante andou
nem viveo
quem sem amores morreo.
E eu posso dar cuidados,
eu dou pena e eu groria,
por mim alcançam vitoria
os constantes namorados.
E os que sam mais honrados
e servidos,
se quero, sam abatidos,
e por contrairo queridos
e amados
os tristes desesperados.
E assi que em meu poder
é a chave dos amores
e por tanto os amadores
me devem obedecer.
Devem-me reconhecer
obediencia,
pois minha grande excelencia,
por mais alta priminencia,
tem poder
pera dar dor e prazer.
E porque tu invocaste
minha grande magestade
com tam humilde vontade,
grande graça percalçaste.
Mas nam cuides qu' escapaste
da gram pena
que te meu saber ordena,
mas daquesta mais pequena
te livraste,
quando meu nome chamaste.
E dirás a teu amigo
que nam cure de cuidar
na visam que vio passar,
que o pôs em gram perigo.
Porque aquele bestigo
qu' ele via,
que as carnes lhe comia,
será grande alegria
que consigo
logrará como te digo.
E tanto qu' isto falou
ũa nuvem o cobrio
e assi se transluzio
que os olhos me cegou.
E des que se apartou
sem no ver,
trabalhei por me decer
e achei-me, sem saber
quem me levou,
nesta terra ond' estou.
Fim.
Agora, senhor, olhai
estoutra visam que vi
e entenderês aqui
vosso feito como vai.
Mas de mim vos afirmai
que soo a vista
me dá tam forte conquista
que nam sei quem lhe resista
nem se sai
minha dor por dizer ai.
801
D'
ANRIQUE DA MOTA A DOM JOAM
DE NORONHA E A
DOM SANCHO SEU
IRMÃO, PORQUE SE FORAM CON‑
FESSAR A SAM BERNALDI NA ME‑
TADE DO VERÃO, LEVANDO
CONSIGO O VIGAIRO D' OVI‑
DOS, QUE É MUITO GORDO.
E VIERAM JANTAR A Ũ
LUGAR QUE CHAMAM OS
GIRALDOS E NOM ACHA‑
RAM VINHO PERA BEBER.
No Verão ir confessar
na força dos dias grandes,
nam ha i bancos de Frandes
pera tanto arrecear.
O frade mui devagar
assentado a seu prazer,
a cegarrega a cantar,
entam estar e suar
isto é mais que morrer.
Portanto foi ordenado
o confessar no Inverno,
porqu' o mor mal do Inferno
é ser muito encalmado.
Ante ser escomungado,
que ir confessar por calma,
que açaz é gram pecado
ser o corpo maltratado
com pouco proveito d' alma.
Ora ponhamos que jaa
seja feita confissam
com mui grande contriçam,
como creo que seraa.
Vejamos quem poderaa
comprir agora pendença,
a qual é cousa tam maa
que se n' alma vida daa,
no corpo causa doença.
É ũa cousa mui sãa
pera os corrutos aares
nos dias caniculares
o beber pela menhãa
Atouguia ou Lourinhãa.
Quem nam tiver, Caparica
sobre pera ou maçãa
e o al é cousa vãa,
em salvo está quem repica.
E se disser o contrairo
esse frade por ventura,
dizei-lhe qu' assi se cura
o padre do campanairo.
Porque tem um bibiairo
em que reza sem perigo
muito mais que no rosairo,
nam digais qu' ee o vigairo,
porqu' eu, senhor, nam no digo.
Nem eu certo nam diria
do senhor vigairo nada
nem da sua imbiguada,
porque m' escomungaria.
Mas, porem, eu juraria
na saia de Sam Bernaldo
que ja ele rezaria
um responso que dizia:
Libera me do Giraldo!
In die illa tremenda,
quando for o ceo movido
e o vinho falecido,
que nam achem quem no venda
nem fiado nem aa tenda,
nem per força nem per rogo.
Domine michi defenda
de tam aspera emmenda,
ante me julgue per fogo.
Açaz gram pendença era
a que fez vossa mercê
querer beber sem ter quê!
Ooh que pendença tam fera!
Sempre ouvi que nesta era
é perigo ter barriga
e eu vi na Primavera
e no curso da espera
qu' haviens de ter fadiga.
Vierom do Oriente
tres Reis Magos que sabeis
e vós fostes todos tres
muito gordos em Ponente.
O frade muito contente
na sua cela mui fria
e vós per calma mui quente!
Eu m' espanto certamente
sairdes daquele dia!
Fim.
Ora ja vos confessastes,
guardai-vos de jejũuar,
qu' assaz vos deve abastar
ó suor que laa suastes.
Porque dou-lhe que contastes
mais pecados do que eram,
eu m' afirmo que pagastes
n' afronta que lá passastes
a pendença que vos deram.
802
TROVAS
D' ANRIQUE DA MOTA
A
ŨA MULA MUITO MAGRA E VELHA,
QUE VIO ESTAR NO BOMBARRAL,
À PORTA DE DOM DIOGO, FILHO
DO MARQUÊS, E ERA DE DOM
ANRIQUE, SEU IRMÃO, QUE
IA EM ROMARIA A NOSSA
SENHORA DE NAZARE‑
TE E LEVAVA NELA
UM SEU AMO.
— Donde sois, senhora mula,
qu' assi stais desmazalada?
Vós no pecado da gula
nam devês de ser culpada.
Segundo estais dilicada,
juraria
que sereis acustumada
a comer pouca cevada
cada dia.
Vós por vossa grã magreira
nam devês ter dor de baço,
ja devês deixar o paço,
pois vos dam tam má conteira.
Qu' eu nam sinto quem vos queira,
porem sei,
quando foi d' Alfarroubeira,
qu' andaveis na dianteira
cos d' El-Rei.
Dessa vossa guarniçam
bem sei que vos contentais,
doutra parte é razam,
pois que tem tantos metais:
ouro, prata, estanho e mais,
tem verniz,
latam, cobre nam deixais,
parecês i ond' estais
ũa boiz.
Se fordes a Nazaree,
ali é vosso fartar:
ooh que gram duçura é
area e agua do mar!
Se vos Deos bem ajudar
nesta jornada,
quero-vos profetizar
que havês lá de ficar
estirada.
Vós parecês um diabo
se nam quanto sois mais fea,
por mais que bulais co rabo
havês de ter bem maa cea.
Tendes feiçam de lamprea
na longura,
da barriga pouco chea.
Oh Jesu que má estrea,
que trestura!
A Mula.
— Abofee bem vos meteis
sem saber com quem falais
e demais se vós cuidais
que falais com quem soeis,
vós de mim zombar querês!
Assaz de mal
que fui do senhor Marquês
e ja reis vi morrer tres
em Portugal.
— O que dizeis é assi?
Dizei, assi vos Deos farte.
— No tempo d' El-Rei Duarte
vos afirmo que naci.
E ja quatro reis servi
portugueses
e com quanto mal sofri
nunca de casa sahi
dos Marqueses.
— Pois com quem viveis agora
que vos tem tam maltratada?
— Traz-m' ũ homem emprestada
de quem seja cedo fora.
— Nam me direis onde mora?
— Se ousasse...,
mas traz ũa tal espora
queria lá na maa hora,
se falasse.
— No tempo dos caramelos
que comês, que Deos vos valha?
— Ũa quarta de farelos,
ũa jueira de palha.
— Nam comês outra bitalha?
assi gozedes.
— Nam como mais nimigalha!
— Dar-vos-á fome batalha
j' ora vedes.
— Ora bem, e no beber
assi vos poem provisam?
— Quant' a disso farta sam,
nam ha i al que dizer.
Se me dessem de comer
dessa maneira,
bem podia gorda ser,
nam me viria morrer
de lazeira!
— Tendelos ossos mui altos
e a carne mui somida,
andais bem fora dos saltos,
sois de quadris bem fornida!
— Por i verês vós a vida
que eu passo,
e por ser mais destroida,
vou com ũ homem nesta ida
mui escasso.
— Ora bem, esse voss' amo
nam direis como se chama?
— É o amo qu' eu desamo,
que a mim bem pouco ama.
Nam hei-de calar sa fama,
que m' esfole,
mas s' agora houvesse lama,
se lh' eu nam fezesse a cama
na mais mole.
Gomez Anriquez.
— Oh Jesu, que má visonha!
Oh que cousa tam disforme!
Tem no pescoço conforme
com garganta de cegonha!
Donde é tal carantonha
de tais geitos?
— Sam da casa de Noronha
e nam hei-d' haver vergonha
de meus feitos.
Porque, vedes-me aqui,
eu vos juro de verdade
que pormeti virgindade
e estou tal qual naci.
Em meu bom tempo servi
quanto pude
e, depois que envelheci,
nunca mais bem recebi
nem saude.
O Amo que ia nela.
— Que diabo lhe quereis
a esta triste coitada?
— Diz que nam come cevada
e que vós que lha tolheis!
— Quero, pois qu' isso dizeis,
que saibais
que a come cada mes...
— Cada mes? Ha vinta tres
que ma nam dais!
Anrique da Mota.
Porque partido houvestes
a mula que foi das boas,
aforada em tres pessoas,
oh qu' aramaa cá viestes!
Nunca foro me dissestes
de tal sorte!
Mas pois vós isso fezestes,
eu me faço logo prestes
pera morte.
O Amo.
— Estais ora mui em finta
e estais trocendo o rosto.
— Mas bradam todos convosco
por me terdes tam faminta!
— Deveis lançar ũa finta
em Alcoentre
pera lhe encher a cinta,
fico-vos que mais nam sinta
dor de ventre.
Fala o Amo com Anrique da
Mota.
Se soubesseis como anda,
ficariês espantado!
— Sei que anda, mal pecado,
nam mui farta de vianda...
Parece longa varanda
de taverna,
trave longa, muito panda,
zambuco que se nam manda
nem governa.
Fala o Amo com a mula,
quando se ja queriam ir.
— Toda a jente se vai jaa,
vamo-nos d' aqui emboora!
— Mas que vamos na má hora
que comigo andará.
— Andai rijo e ver-vos-aa
esta jente!
— Nunca Deos tal quereraa!
Quem me dá vida tam maa,
que o contente.
Quanto mais que eu nam posso
fazer isso que quereis,
porqu' o meu mal e vosso
tod' é meu, como sabeis.
O que ando é que me pês
e com paixam
des que em mim vos colhês,
cuidais que sam ũ arnes
de Milam.
O Amo.
— Andai, andai, nam vos torçais,
qu' olham todos pera nós!
— Oxala rissem de vós
tanto atá que vos deçais!
— Aguardai, pois que palrais,
coçar-vos-ei,
e vós, dona, respingais!
— Se me vós assovelais,
que farei?
Despidimento da Mula, em se
partindo.
— Senhores do Bombarral,
vou-me com vossa mercê,
tanta mercê me fazê
que vos lembrês de meu mal.
E a cousa principal
que a Deos peçais
qu' esta fome tam jeral,
que anda em Portugal,
nam dure mais.
Que se eu sam mal provida,
quando a terra é abastada,
que farei quando a cevada
a quarenta é vendida?
S' eu escapo desta ida
com tal cura,
hei-de buscar ũa ermida
onde faça outra vida
mais segura.
Dali a dias, indo Anrique da
Mota ter a Alcoentre, onde Dom
Anrique estava, achou a Mula,
que lhe deu conta de todo o
que se passara na jornada da
romaria, onde fora, de
que ja era tornada.
— Folgo bem de vos achar
senhor meu, naquesta terra,
pera vos contar a guerra
que me dá nam mastigar.
Se quiserdes escuitar,
contar-vos-ei
meu intrinsico penar,
minha gram dor e pesar
que passei!
Partimos naquele dia
que nos vós vistes partir,
todos via muito rir,
senam eu que nam podia:
que nam pousa alegria
nem prazer
na tripa muito vazia,
porque todo bem se cria
de comer.
E fomos ter no Arelho
onde lá esses senhores
e todos seus servidores,
todos eram d' ũu conselho:
linguado, perdiz, coelho
e, enfim,
muito branco e vermelho,
e eu em ũ palheiro velho
por roim!
Pois lá em Selir do Porto
— que terra de fideputa! ―
de cevada mui enxuta,
carecida de conforto,
suei sangue ali no horto
com paixam!
Meu esforço ali foi morto,
porem foi o grande torto
sem razam.
Que vos juro de verdade,
que como fomos chegados,
todos foram apousentados
senam eu! Que gram maldade,
nam haverem piadade
de meu mal
e de minha hetiguidade,
senam só Lopo d' Andrade
que me val!
O qual me deu por pousada
ũa casa muito fria,
de vianda mui vazia,
mui varrida e mui aguada.
E selada e enfreada
me deixaram
e a porta bem fechada,
sem me dar de comer nada
se tornaram.
Fiquei assi passeando,
chorando minhas fadigas,
em minhas obras antigas
como ja quase sonhando.
Muitas vezes sospirando
por comer!
Os galos todos cantando
e eu triste, arrenegando,
sem prazer.
Senam quando ei-lo vem
qu' ũa quarta d' ũa quarta
de farelos, que mal farta
quem taam grande fome tem.
Mas eu disse: — Nam combem
d' engeitar
este tam pequeno bem,
porque nam fique aquem
de cear.
Fomo-nos Alfeiziram
onde ha infindo sal,
nam levei eu dali al
senam dor de coraçam.
Dali a Famalicam
nam tardámos
— que nome de maldiçam! ―
que nem cevada nem pam
nam achámos!
E dali a Pederneira
levei ũ bom suadoiro,
mas eu nam levava coiro
no lombo nem na cilheira.
Levava mui gram peteira
na barriga,
muita fome, gram lazeira
e cheguei desta maneira
com fadiga.
Bem disse o sabedor:
Hoje mal e pior craas!
Se eu mal passei atras,
ali foi muito pior:
d' area lá meu senhor
fartar-me manda.
Ela tem mui gentil cor,
mas dai ò demo o sabor
da vianda!
Tomámos outra jornada
lá caminho d' Alcobaça,
eu levava pouca graça,
porqu' ia mui esfaimada.
Ali fui atormentada
nesta via
e na cruz marteirada
com a sela bem lograda,
que corria.
Fiquei muito descansada,
quando me vi no moesteiro,
em poder do estribeiro,
de poder deste tirada.
E fiquei mui espantada
quando vi
cevada ja debulhada
ante mim apresentada,
que comi!
Tive muitas alegrias
os dias que ali passei,
nam sei quando taes tres dias
em meus dias passarei!
Gram saudade tomei
na partida
e partindo comecei:
— Oh quam pouco que logrei
esta vida!
Assi triste lamentando
me parti e sem prazer,
outros mil males passando
que nam sam pera dizer.
As Caldas viemos ter,
sem tardar
perguntei por mais saber:
— Estas aguas têm poder
de m' engordar?
E disseram-me: — Si, tem.
Porem logo sem detença:
— Quem nelas entrar, convem
que faça mui gram pendença.
— Bem me praz desta convença,
pois é tal,
mas esta minha doença
é faminta pestenença
mui mortal.
É ũa dor de tristura
que faz aos mais honrados
dar sospiros mui dobrados
se os toca per ventura.
Que nam ha i dor tam dura
de sofrer
a vivente criatura
como ver-se em apertura
de comer.
Esta faz muitas vilezas
onde nam valem castigos,
esta faz mil fortalezas
dar em poder dos inmigos.
Esta faz muitos amigos
se perderem,
os presentes e antigos
se poseram em mil perigos
por comerem.
Assi qu' à dor, que m' asseita,
Hipocras e Galeano
dam em contra de seu dano
ũa mui gentil receita.
E dizem qu' ha-de ser feita
per est' arte:
de farelos satisfeita,
cevada bem escolheita,
que me farte.
Se haveis por confissam
açaz sam de confessada
eu nam como ja cevada,
isto porque ma nom dam!
E tomo por devaçam
jejũar,
pois quant' a por contriçam
assaz d' enfadada sam
de chorar.
Eu estando concertada
pera entrar ja nos banhos,
foram meus males tamanhos
que fui logo enfreada.
E ali foi apartada
a companhia:
cada parte foi tornada
com seu senhor à pousada,
que soia.
A Mula a Dom Diogo,
quando ia.
— Vossa Senhoria vai
caminho do Bombarral,
resesti, senhor, meu mal,
pois que fui de vosso pai.
E convosco me levai
que eu m' irei
ou, senhor, m' encomendai
a vosso irmão, senam cuidai
que morrerei.
E dizê-lhe com rigor
que mande curar de mim,
nam deseje minha fim,
pois que fui tal servidor.
Olhai bem o grand' amor
que me tinha
vosso padre, meu senhor,
que somente seu favor
me mantinha.
Olhai bem quanto serviço
fiz na idade passada,
nam queira tomar por viço
ver-me morrer esfaimada.
Ũ alqueire de cevada,
que é ũ vento,
com farelos mesturada,
com pouco mais quase nada
me contento.
Dom Diogo.
— Bem é isso que pedis,
meu irmão o saberá,
servi vós como servis,
que tudo se bem fará.
— Ó senhor, qu' esquecerá,
logo se diga
ante que daqui se vaa,
que depois nam lembrará
minha fadiga.
Todos teveram folgança,
senhor meu, neste caminho,
cevada, pam, carne, vinho,
tudo foi em abastança.
Todos andam em bonança,
sem tromenta,
senam eu sem esperança,
qu' esta fome por herança,
m' atormenta.
Dom Diogo.
— Nam digais isso, maa hora,
pois que eu sei o contrairo,
se eu todos bem repairo,
como ficais vós de fora?
— Nam digo mais por agora,
porqu' ee feio,
mas pois isto se inora
mandai vós fazer demora
e sabei-o.
Dom Diogo.
— Nam sei como ser podia
nam comerdes vós cevada,
pois vos era ordenada
bem tres quartas cada dia.
— Certo eu bem folgaria
e convem
saber vossa senhoria
o certo desta porfia,
mas é bem.
Dom Diogo ao seu Veador.
— Dizei, Bastiam da Costa,
vós que sabeis a verdade,
dai aqui vossa reposta:
Quem faria tal maldade?
— O senhor, é vaidade,
nam vos menta,
nam lhe des autoridade,
que ja passa da idade
dos setenta!
— Vós quereis atabucar-me
que nam ouse de falar?
Vós bem me podeis matar,
mas eu nam hei-de calar!
E vós cuidais d' enganar-me
neste vale?
— Mas vós querês defamar-me,
nam queirais vós assanhar-me
que eu fale.
— Porem vós tomais solaz
e em mim nam entra riso.
— Ó senhor, que nam tem siso,
diz aquisso que lhe praz.
— Ora isso nam me faz
nenhũ agravo.
— Preguntai a quem me traz
e sabei bem onde jaz
este cravo.
Dom Diogo ao Amo.
— Dizei, amo, pois lograis
esta triste descarnada,
nam lhe vistes dar cevada?
— Ó senhor, nam na creais!
Que depois que cá andais
nam ha fome:
tres quartas lhe dam e mais!
— Bem, e vós força m' achais
de quem come?
Dom Diogo ao Veador.
— Dizei a quem entregais
a raçam e saber-s'-aa
a cevada que lhe dais.
— Ao amo que i estaa!
— Dizei, amo, vinde caa,
é assi?
— Assi foi, é e será
e ela nam o negará,
que eu lha vi.
— Dizei: Vistes-me gostar
a cevada que dizeis?
— Nam, mas sei, e vós sabeis,
que vo-la mandava dar.
— Senhor, se de mim
s' achar que foi comida,
fazei-me vós desselar,
mandai-m' a sela quebrar
e a brida!
Dom Diogo.
— Ora eu nam tenho culpa
na má vida que passastes,
a verdade me desculpa
a qual vós espermentastes.
— Senhor, vós bem vos mostrastes
verdadeiro
e a quem m' encomendastes
bem comprio o que mandastes
per inteiro.
Porem toda a culpa tem
este moço que me cura:
a cevada bem precura
mas ele guarda-a mui bem.
Sabe Deos quam mal me vem
esta lazeira,
mas fazê-lo me convem,
porque nam acho ninguem
que me queira.
Senhor, hei-de conhecer,
pois a verdade se crê,
a muito grande mercê
que me folgastes fazer.
Porem eu posso dizer
que passei
oito dias sem comer,
mantendo-me no prazer
que levei.
Acaba a Mula de contar a
Anrique da Mota todo o que
passou e dá fim e concrusam.
E depois destas razões
todos fomos apartados,
senam eu que de paixões
nam no fui, por meus pecados!
Aqui ando com cuidados
sem deporte,
u meus dias mal logrados
seram sempre lastimados
até morte!
803
ANRIQUE
DA MOTA A VASCO ABUL,
PORQUE ANDANDO ŨA MOÇA BAI‑
LANDO EM ALANQUER DEU-LHE,
ZOMBANDO, ŨA CADEA D' OURO
E DEPOIS A MOÇA NAM LHA
QUIS TORNAR E ANDARAM
SOBRE ISSO EM
DEMANDA.
E VEO VASCO ABUL FALAR
SOBRE ISSO À RAINHA,
ESTANDO EM ALMA‑
DA, E AHI LHE FEZ
ESTAS TROVAS.
— Que buscais cá nesta terra
com tal sul,
meu senhor Vasco Abul?
— Cá m' ordenam ũa guerra.
— Seram isso mexericos?
— Nam sejais vós tal com' eu,
mas sam ũs senhores ricos,
que per bicos
me querem levar o meu!
— Trazeis algũa demanda
ou que é?
— Nam no sei, por minha fee!
Mal viva quem me cá manda!
— Vós andais esmorecido,
eu nam sei que vós haveis!
— É ũu caso tam sobido
que dovido
se o vós entendereis!
— Nam cureis de duvidar
e dizee-mo!
— Nam no digo, porque temo
que ham-de mim de zombar.
— Que caso pod' esse ser
em que tanto sopesais?
— Eu vo-lo quero dizer,
pera ver
o conselho que me dais.
Fui lá muito na maa hora
nesta era!
Em hora que nam devera
vi bailar ũa senhora.
— Sei que foram isso brigas...
— Mas cuido que sam pecados!
Bem mereço eu mil figas
e fadigas,
pois que perco meus cruzados!
— Furtaram-vos lá dinheiro?
— Mas tomaram
e per geito m' assacaram,
que fiz outrem meu herdeiro.
— Quant' a isso folgaria
de saber como passou.
— É a mais alta perfia
e zombaria
que nunca ninguem cuidou!
Ũa gentil bailadeira
d' Alanquer,
fremosa, gentil molher,
me chofrou desta maneira:
por me nam parecer fea,
vendo-a bailar ũ dia,
lhe mandei por boa estrea
ũa cadea,
qu' eu no pescoço trazia.
Depois, quando a quisera
recolher,
quiseram-me fazer crer
que eu por sua lha dera!
— E vós ficais di honrado,
nam deveis dizer i al,
que o homem bem criado,
namorado,
o bom é ser liberal.
Bailava balho vilam
ou mourisca?
— Mas chamo-lh' eu carraquisca,
mais viva que tardiam!
Eu nam sei quem me venceo
pera tomar tal trabalho!
— Calai-vos, que mais perdeo,
pois morreo,
Sam Joham per ũ soo balho!
E que percais cinquenta
boons cruzados,
ũu homem dos mais honrados
nestas cousas s' espermenta!
— Vós falaes bem do arnes
e nam curais de vesti-lo...
— Fazei vós o que fazês
e ficarês
autor de novo estilo.
— E vós lá no Bombarral
assi dais?
— Nós nom somos liberais,
somos jente bestial...
Mas vós deveis de folgar
de serdes nisto devasso,
por de vós fama ficar
e enlhear
quem diz que vós soes escasso.
— Nam quero vosso conselho
nem mo deis,
pois que sei e vós sabeis
que sei mais por ser mais velho.
— Oh, calai-vos, ganhai fama,
usai liberalidade,
e quiça se vos nom ama
essa dama
amar-vos-á de verdade.
E também fazeis serviço
enfinito
ao Senhor Sant' Isprito,
que é cousa de gram viço
e ganhais o Paraiso.
Pois é orfãa a senhora,
tomai, senhor, est' aviso,
pois é siso
e ir-vos-eis muito emboora.
E i levar boa vida
a vossa casa,
qu' isto é vergonha rasa,
avareza conhecida.
Pois que soes bom cavaleiro
e vindes de nobre jente,
nam vos façais tisoureiro
do dinheiro
e dai sempre nobremente.
Vesti-vos de gentileza,
que Deos vos valha,
e rapai-vos aa navalha
que vos veja Sua Alteza.
Fazei mui alegre rosto,
guarnecei-vos de retrós
e, pois soes tam bem desposto,
levai gosto
em falarem cá de vós.
— Ataes-me por tal maneira
que me pesa
e nam posso achar defesa
que preste, posto que queira.
A verdade nam me val,
por escasso m' apregoo
e quem me faz liberal,
por meu mal,
certo nunca lhe perdoo!
Fim em vilancete.
Pois destes tam levemente
este colar,
nam vos deve de lembrar.
O colar que ja foi vosso,
que é de quem nam é vossa,
buscai quem vos nisso possa
conselhar, pois eu nam posso.
E pois o tam bem fizestes
em o dar,
nam vos deve de lembrar.
Todos vós outros, senhores,
que sabeis aqueste feito,
sede meus ajudadores,
receba de vós favores
com que supra meu defeito.
Ajuda de Mestre Gil.
O tempo tem poder tal,
que faz do servo isento,
faz liberal avarento,
do avarento liberal.
E pois vosso natural
de guardar mudou em dar,
nam vos deve de lembrar.
Agostinho Giram.
Com o colar que cuidastes
de prender, ficastes preso,
e compraste-lo per peso
e sem peso o entregastes.
E pois que tam bem obrastes
em o dar,
nam vos deve de lembrar.
Afonso Fernandez Montarroio.
O galante que s' encarna
em amores e em dar
nam se deve mais coçar
nem menos deve ter sarna.
Pois ficais desta encarna
descarnado, sem colar,
nam vos deve de lembrar.
Joam Alvarez, secretareo.
Todo homem qu' é escasso,
se lhe vem aa fantesia
dará mais em ũ soo dia
que em cent'anos ũ devasso.
E pois destes sem compasso
este colar,
nam vos deve de lembrar.
Diogo de Lemos.
Alexandre foi louvado,
porque foi mui liberal
e vós, se fizerdes al,
podereis ser mui tachado.
E pois ja o tendes dado,
dai ò demo este colar,
nam vos deve de lembrar.
Diogo Gonçalvez.
Mui galante vos mostrais,
bem rapado, sem carepa,
e crede, senhor, que peca
quem vos diz que vós arraes.
E pois vossa alma ganhais
em o dar,
nam vos deve de lembrar.
Tomé Toscano.
O dinheiro da igreja
naquisto s' ha-de gastar:
criar orfãas e casar,
porque Deos servido seja!
E pois que Deos vos deseja
de salvar,
nam vos deve de lembrar.
Bastiam da Costa, cantor.
Andais ledo em grã guisa
como quem veo da Mina,
galante, cheo de frisa,
com vossa gentil devisa
de cruz vermelha, mui fina.
E pois ja se determina
que percais este colar,
nam vos deve de lembrar.
Fernam Diaz.
Destas novas que vam caa
folgo por ser voss' amigo
e quem diz que soes mindigo
ja nunca mais o dirá.
E portanto, senhor, ja
nam cuideis neste colar
nem vos deve de lembrar.
Por Branc' Alvarez, cristaleira.
Porque sei que sois dureiro
em sair de vós mercês,
deveis andar prazenteiro
por terdes o mealheiro
pregado como sabeis.
E pois mester me nam haveis,
quero-vos aconselhar:
nam vos lembre este colar.
Embargos d' Anrique da Mota
pera se nom entregar o colar
a Vasco Abul, feitos à
Rainha Dona Lianor.
Senhora:
Bem posso eu com razam,
por ser dos orfãaos juiz,
aceitar a tal auçam,
o direito assi o diz
nas Sergas d' Esprandiam.
E também por nam cuidar
nos meus beens, que se me perdem,
pois ando tam devagar
quero, Senhora, ordenar
qu' esta orfãa nam deserdem.
E diz e provar entende
esta orfãa ou menor
que ela bem se defende
e qu' este seu servidor
o seu nunca mal despende.
E é homem mui sesudo,
e posto que seja seco,
esteve ja no estudo
e entende assi em tudo
que nam perde o seu de peco.
Item entende provar,
se nom for ano bissexto,
que quem tem bem pode dar,
assi o diz outro texto
na Conquista d' Ultramar.
E no parrafo segundo
doutra caronica nova,
diz que El-Rei Sagismundo,
que é ja no outro mundo,
que faz muito à nossa prova.
E assi quer provar mais
que El-Rei de Fez é mouro
e que antre os metaes
val mais este colar d' ouro
que de ferro dous quintais.
E tambem, Senhora, quer
per testemunhas provar,
que é foral d' Alanquer,
que quem colar d' ouro der
nam no possa mais tomar.
Item quer provar tambem
que ela quer a cadea
e que contra ela vem
o Doutor Pero Correa,
primo de Matusalem.
Mas Vossa Alteza lhe mande,
pois que parece paul,
que algũs dias cá ande
e o direito demande
por parte de Vasc' Abul.
E assi mais quer provar,
per muitos homens honrados,
qu' ele lhe deu o colar
por cinquenta cruzados,
sem ũ soo grãao lhe minguar.
E logo ao entregar
mingou ũ cruzado e meo,
o qual lhe deve pagar,
pois que logo ao pesar
o peso certo nom veio.
E por menos sospeiçam,
por testemunhas lhe dou
ũ paje do Gram Soldam,
qu' a esta terra chegou
em tempo d' El-Rei Ispam.
E tambem ũ boticairo
que se chama Janes Breca,
que ora vive no Cairo,
e ũ mouro qu' ee vigairo
dentro na casa de Meca.
Item o Dalfim de França
e El-Rei de Tremecem
e Joham Pirez de Bragança,
Jan Espera Deos tambem
sabe muito desta dança.
E damos tambem Elias,
que sabe bem deste feito,
e o profeta Jeremias
e aquele que Hurias
fez matar d' amor sogeito.
E pera mais brevidades
ũ homem nos preguntai,
qu' está nas Sete Cidades
e também damos dous frades,
qu' estam em Monte Sinai.
Porqu' estes conhecer tem
dos liberais e avaros
e nomeamos tambem
ũs dous parentes de Sem,
que vivem nos Montes Craros.
E por esta inquiriçam
do que queremos provar
haver mester dilaçam,
Vossa Alteza a mande dar,
segundo que for razam.
E por nam haver enganos
no que está tam provado
e ninguem receber danos,
mandai-nos dar sessent' anos
que é termo razoado.
E porqu' isto se navegue
por ũ caminho mui santo,
a cadea se entregue
a est' orfãa entretanto
e o seu nom se lhe negue.
E pera maior firmeza
nomeamos a fiança,
se o manda Voss' Alteza:
o tesouro de Veneza
qu' ee açaz em abastança.
Fim.
E por isto se seguir
e haver fim por meu azo,
Voss' Alteza mande-m' ir
e, acabado este prazo,
poderei cá acudir.
E poder-s'-am concrudir
estas demandas injustas
e protestamos das custas
e repricar, se comprir.
O parecer de Gil Vicente neste
processo de Vasco Abul à
Rainha Dona Lianor.
Senhora:
Voss' Alteza me perdoe,
eu acho muito danado
este feito processado
em que manda que razoe.
Vai a cura tam errada,
vai o feito tam perdido,
vai tam fora da estrada
que a moça condenada
Vasc' Abul fica vencido.
O principio do cimento
assegura a fortaleza,
se o cume tem fraqueza
gerou-se no fundamento.
É errada a qualidade
deste caso na primeira,
vem a tanta variedade,
que na fim e na metade
tem os pés por cabeceira.
Este dar moveo amor,
porqu' amor gera franqueza
no ventre da escaceza,
por mostrar quanto é senhor.
Pois s' o caso é namorado,
fundado todo em amores,
o autor foi enframado
e ò que deu, dado ou nom dado,
convêm outros julgadores.
Quem mete Bartolo aqui
nem os doutores legistas
nem os quatro Avangelistas?
Mas os namorados si!
Mande, mande Voss' Alteza
este processo o Arelhano,
vereis com quanta graveza
busca leis de gentileza
no lindo estilo romano.
Ele deve ser juiz
e se apelaçam querês,
apelem par' ò Marquês,
procurem Pero Moniz.
Pera qu' ee qui responder,
pera qu' era processar,
pera qu' ee qui proceder,
pois nam é nem pode ser
que se possa aqui julgar?
Vejo tanta deferença,
vai a causa tam remota
que os embargos do Mota
vam primeiro qu' a sentença.
E Mestre Antonio tambem
vem com texto que topou,
textos vam e textos vem
e este caso mais convem
a quem menos estudou.
Assi qu' ee meu parecer
e estou certeficado
que o feito vai errado
e nam deve proceder.
Porque, com' ee dito ja,
isto é caso d' amor,
rompa-s' o que feito está,
se quer que nam digam lá
que nom sabem cá d' açor.
Fim.
Leve o caso Dom Diogo
Coutinho por relator,
porqu' El-Rei nosso Senhor
o fará despachar logo.
E virá de lá, Senhora,
ũ processo tam fermoso,
Vasc' Abul ir-s'-á emboora,
sofra-se, pois se namora
e logo quer ser esposo.
Reeprica d' Anrique da Mota
a estas razões de
Gil Vicente.
A quem Deos tem ordenado
algũ bem ou pormetido
entam lhe é outorgado,
quando mais desesperado,
por ser mais agardecido.
E portanto estaa sabido
por Deos vir esta reposta,
porque certo nam dovido,
segundo o mar é erguido,
este colar ir à costa.
Em tomardes Arelhano
por juiz daqueste feito,
procurastes vosso dano,
porem eu vos desengano
que vos é muito sospeito.
Que por comprir o preceito
desta lei dos amadores,
de quem ele é sogeito,
se nam tevermos direito
haa-nos de fazer favores.
Pois ja muito mais errastes
em pedirdes o Marquês,
per vós mesmo vos matastes,
o colar nos confirmastes,
pois que tal juiz querês.
E como vós nom sabês,
pois passou em vossos dias,
qu' este senhor que dizês
é Mancias portugues
e inda mais que Mancias.
Nom sabeis quantos milhares
tem despesos de cruzados,
quantas joias e colares,
quantos ricos alamares
por amores tem gastados,
sem mais serem demandados
nenhũs destes despendidos,
porque antre os namorados
nam é erro serem dados
e é erro ser pididos.
Pois tambem se procurar
esse galante Moniz,
qu' ò deemo vai o colar,
porque s' ham-de concertar
o precurador co juiz.
Entam verês o que diz
ama d' El-Rei sobre nós:
eu direi que nam no fiz,
vós dirês que sam biliz,
eu direi que o soies vós.
Vós falaes por nossa parte
e contra vós estudaes,
olhai por quam sotil arte
sua graça Deos reparte
pera que nam vos percaes.
Esta nao que navegaes
por parte de Vasc' Abul
medo hei que a percaes,
pois a agulha que levaes
vos faz ja do norte, sul.
Tendes vento por d' avante
e ha i grande baixia
e nam ha nenhũ galante
que de vós se nom espante
navegardes por tal via.
Tomai, tomai outra via,
acordai ja deste sono,
porque toda esta porfia
por razam s' acabaria
em dar o seu a seu dono.
Ũa gram defesa sento
que Vasc' Abul pode dar,
porqu' eu farei juramento
que nunca seu pensamento
foi de dar este colar.
E assi nam deve gozar
dos privilegios d' amor
e pois isto foi zombar,
o seu lhe devem tornar
sem lhe dar outro favor.
Fim.
E tanto que lhe for dado,
nam seja aqui mais ouvido,
seja daqui degradado,
nam se chame namorado,
pois d' amor nam foi vencido.
Mas eu certo nam dovido
por isto que se cá fez
qu' ele nam seja atrevido
em praça nem escondido
a emprestá-lo outra vez.
804
DE
BERNARDIM RIBEIRO A ŨA
SENHORA QUE SE VISTIO
D' AMARELO.
Tequi me pud' enganar,
mas agora que podeis
trazêla cor do pesar
pera mim soo a trazeis.
Qu' a dor do desesperar
é tanto mal de sofrer,
que nam é pera passar
quanto mais pera trazer.
Mas isto vai daquel' arte,
quando s' antre montes brada:
o tom é em ũa parte,
em outro é a pancada.
Assi foi qu' a minha dor
mostrou em vós o sinal,
porqu' ao menos na cor
vos lembrasseis do meu mal.
805
CANTIGA SUA À SENHORA
MARIA QUARESMA.
Ũs esperam a Quaresma
pera se nela salvar,
eu perdi-me nela mesma
pera nunca me cobrar.
Mas com esta perda tal
eu m' hei por mui bem guanhado,
porque o milhor de meu mal
estaa todo no cuidado.
Os que cuidam qu' a Quaresma
nam é pera condenar,
se a virem ela mesma,
mal se poderam salvar.
806
OUTRA SUA.
Antre tamanhas mudanças
que cousa terei segura?
Duvidosas esperanças,
tam certa desaventura.
Venham estes desenganos
do meu longo engano e vam
que ja o tempo e os annos
outros cuidados me dam.
Ja nam sou pera mudanças,
mais quero ũa dor segura,
vá crêlas vãas esperanças
quem nam sabe o qu' aventura.
807
ESPARÇA SUA A ŨAS SOSPEITAS.
Sospeitas, veedes-m' aqui,
levai-m' onde desejais,
quanto pude vos sofri,
j' agora nam posso mais.
Sabe Deos bem com' eu vou,
mas nam pod' aqui ser al,
que ja de triste nam sou
por mim nem polo meu mal.
808
OUTRA ESPARÇA SUA.
D' esperança em esperança
pouco a pouco me levou
grand' engano ou confiança,
que me tam longe leixou.
Se m' isto tomara outrora,
cuidara de ver-lhe fim,
mas qu' hei-de cuidar j' agora
sem esperança e sem mim?
809
OUTRA ESPARÇA SUA.
Chegou a tanto meu mal
que nam sei estar sem ele
e fujo dond' ha i al
como se fugisse dele.
Mas vendo-me em tal estado
que me vou craro matar,
nam quero mais que cuidar
por ver s' enfado ũ cuidado
que me nam pod' enfadar.
810
VILANCETE SEU.
Antre mim mesmo e mim
nam sei que s' alevantou
que tam meu imigo sou.
Ũs tempos com grand' engano
vivi eu mesmo comigo,
agora no mor perigo
se me descobre o mor dano.
Caro custa ũ desengano
e pois m' este nam matou
quam caro que me custou.
De mim me sou feito alheo,
antr' o cuidado e cuidado
estaa ũ mal derramado,
que por mal grande me veo.
Nova dor, novo receo
foi este que me tomou,
assi me tem, assi estou.
811
OUTRO SEU.
Com quantas cousas perdi
ainda me consolara,
se m' esperança ficara.
Mas parece que sabia
desaventura ou mudança
se me ficass' esperança
o bem que me ficaria.
Tornou-se-m' em noite o dia
qu' em tanto bem m' outrogara,
qu' ò menos eu m' enganara.
Tudo me desemparou,
desemparado de mim,
cuidado que nam tem fim
este soo me nam leixou,
a vid' ainda me leixara,
se m' ela assi nam ficara.
Fui tanto tempo enganado
quanto comprio a meus danos,
agora vam-s' os enganos
que compria a meu cuidado.
Tudo do qu' era é mudado,
se m' eu tambem soo mudara
quantas magoas qu' atalhara!
812
OUTRO SEU.
Esperança minha, is-vos,
nam sei se vos verei mais,
pois tam triste me leixais.
Noutro tempo ũa partida,
qu' eu nam quisera fazer,
me magoou minha vida
enquanto eu nela viver.
Desta ja que posso crer,
que pois qu' assi me leixais
é pera nam tornar mais.
Após tamanha mudança
ou desaventura minha,
onde vós m' is esperança,
vá-se todo o mais qu' eu tinha.
Perca-s' assi tam nasinha
tudo, pois que nam olhais
quam tarde e mal me leixais.
813
OUTRO SEU.
Cuidado tam mal cuidado,
quando m' haveis de leixar
pera tanto nam cuidar?
Com meu mal vos sofreria,
s' antes da vida perder
cuidais ainda de ver
algũa hora d' ũ dia.
Mas tudo o qu' eu mais queria
ja se foi pera ũ lugar
donde nam pode tornar.
Foram bem-aventurados,
nam conheceram mudança
os que na mor esperança
foram da vida levados.
Nam tiveram os cuidados
que se nam podem cuidar
e muito menos leixar.
Esta a vida que foi minha
tal que vê-la é crueldade,
ũ modo de piedade
seria matar-m' asinha.
De quant' esperança eu tinha
nam pude ũa soo salvar
e vivo e hei-de cuidar.
814
DE
MANUEL DE GOIOS AO CONDE
DO VIMIOSO, EM QUE LHE DÁ
CONTA DO QUE PASSOU COM
SEUS AMORES DESPOIS
QUE O LEIXOU DE
VER.
Em vos dar conta de mim
nam erro, mas faço bem,
pois nam deve haver ninguem
que vo-la nam dê de si.
Ora ouvi,
que mil cousas achareis
com que e de que rireis.
E será cousa primeira,
de que quero que se ria,
achar ninguem que a queira
nem sirva Dona Maria.
Que seria
se achou inda tambem
a quem nam fizesse bem?
E pois que ja comecei
querer-vos, senhor, dizer
tudo quanto cá passei,
des que vos leixei de ver,
e escreve
quero tambem nestas novas
minhas cantigas e trovas.
Logo como fui chegado
trouve-m' assi refecido
nas palavras desatado,
nas mostranças recolhido.
Esquecido
me vi dela o outro dia,
que soube que a servia.
Nam passou cousa que diga
despois que me decrarei,
senam soo esta cantiga
que lhe fiz e lhe mandei,
em que mostrei
quam triste vida me dava
e quam pouco lhe lembrava:
Cantiga.
S' algũu hora vos lembrasse
o que faz vossa lembrança,
terieis mais temperança
com quem na de vós tomasse.
Nam vos desejo moor parte
deste mal que me fazeis
senam soo que vos lembreis
que de mim nunca se parte.
E se de vós alcançasse
esta bem-aventurança,
podia ter esperança
qu' algũu hora vos pesasse.
Nam cuideis que me prestava
bem servir nem mal trovar,
que tudo me desprezava
por me mais desesperar.
Quis-lhe mostrar
nesta cantiga mudança
e fiquei em mais bonança.
Cantiga.
Nam sei porque conheci
quem m' assi desconheceo,
que despois que me venceo
nam se lembra se naci.
Nam vos soube conhecer,
pois me tam mal conhecestes,
soube-me milhor perder
do que vós a mim perdestes.
Eu sam o que me venci
e vós quem me conheceo,
pois em fim nam me perdeo
e eu perdi-me a mim.
Cessou sua maa vontade
de quem era desprezado,
mas tomou ũa amizade
que me deu novo cuidado:
um pinchado
que se quis nela salvar
como em tavoa no mar.
Enquanto m' a mim renderam
os ceumes dest' amigo,
dava queixas sem castigo
dos males que me fizeram.
Des que puseram
a vergonha a ũa parte,
vinguei-me, senhor, dest' arte:
O seu comer aguardei
e a mesa alevantada,
esta trova lhe lancei
a todas enderençada.
Tam gabada
foi a trova que ficaram
que nunca se mais falaram:
Senhoras:
Antre vós ha ũa dama
que faz secretos favores
a quem é doudo d' amores
por outra, que o desama
por outros competidores.
E com tudo isto cuida
que o tem certo na mam
e ele trá-la mais cornuda
do qu' eu sam.
Despois d' ũ gram mes passar
em mui crua desavença,
tornámos travar pendença
nos modos e a tratar.
E acabar:
eu lhe fiz satisfaçam,
ela a mim ou si ou nam.
Foi de mim bem refiada
nũa tarde que a vi,
sem eu quedar na pousada
de que gram prazer senti.
Foi-se dali
e fiquei com tanta dor
como aqui digo, senhor:
Vilancete.
Quando recebem folgança
meus olhos culpados sam
no mal de meu coraçam.
Vejo soo em vos olhar
minha vida descansada,
como acaba de passar
fico em pena dobrada,
porque fica na lembrança
de vos ver tal empressam,
que me doi o coraçam.
Um dia me desprezou
ũa mui grande mesura,
nunca vistes tal trestura
qual comigo entam ficou!
Mas tornou
como vio esta cantiga
digo-a por mal que diga:
Cantiga.
Por mais mal que me façais
nunca leixar-me fareis
d' esperar té qu' acabeis.
Nam creais que é em mim
leixar o mal que tomei;
que me mostre minha fim,
partir-me dele nam sei.
Isto nam mo agradeçais,
porque inda que me pês,
senhora, vós o fareis.
Por cousas que nam têm nome
nós viemos a romper,
vossa mercê daqui tome
o qu' isto podia ser.
Foi dizer
mal de mim a ũa amiga,
fiz-lh' entam esta cantiga:
Cantiga.
Porque nam tendes desculpa
no mal que me tendes feito,
andais buscando respeito
pera me dar vossa culpa.
Eu a tenho e sam culpado,
mas sabeis, senhora, em quê,
em servir vossa mercê
sobre tam desenganado.
Em mim nam ha outra culpa
no mal que me tendes feito,
ser-vos-ia mais proveito
buscardes outra desculpa.
Pelo qu' aqui nam direi
por me dar mais disso qu' ela,
esta, senhor, lhe mandei
çarrada de mim chancela.
Fez burrela
de tudo o que lh' escrevi
e muito maior de mim.
Vilancete.
Ja quisestes que quisesse
por meu bem todo meu mal
e agora quereis al.
Ja vos vi nam vos pesar
co que mostrais que vos pesa,
no que me pondes defesa
me destes muito lugar.
Se querieis que soubesse
que fazieis de vós al,
é mui mal, mas menos mal.
Pus-me logo a escrever
esta pera lhe mandar
senam soo por lhe mostrar
que me queria perder.
Nam me quis crer
e fez grande zombaria
d' eu dizer o que dezia.
Vilancete.
Quem m' a mim deu esta vida,
se a nam quer pera si,
porque a tira de mi?
Faça dela o que quiser,
que em fim ha-de perdê-la,
como a eu nam tiver
nam teraa mais parte nela.
Quem me tira desta vida
e a mim fora de mi
nam estaa muito em si.
Mandei-lh' esta da pousada,
du nam sai nem sairá
até que lhe nam ouvirá
sua culpa desculpada.
Ençarrada
esteve sem se vestir
tee lho eu mandar pedir.
Cantiga e fim.
Trabalhais por me perder,
folgais de me destroir,
nam vos posso mais sofrer
nem vos quero mais servir.
Muito ha ja que leixei
de leixar este cuidado,
mil cousas vos perdoei
como homem namorado.
Nam nas posso mais sofrer
nem vos quero mais servir,
escusarei de vos ver
polas tanto nam sentir.
815
DE
MANUEL DE GOIOS SENDO
DESAVINDO E QUERENDO-SE
TORNAR AVIR.
Ya me sigue la porfia
qu' en mi porfió o deseo
con que yo dantes seguia
el dolor en que me veo.
Lo qu' escogi por mejor
m' ha sido más adversario,
quien tomé por valedor
m' ha salido por contrario.
Y porqu' el bevir danhoso
quedase con más enganho,
salióme más peligroso
el remedio que mi danho.
Temi vuestra crueldad,
quise foir al morir,
mas quien vio vuestra beldad
jamas le puede fuir.
En dexar de vos servir
no dexé vuestro servicio,
mas dexé el beneficio
que deviera recebir.
Ni dexé mi gran tristura
con el tal apartamiento,
ni jamas vuestra figura
s' apartó del pensamiento.
El que perdió lh' esperança
y queda con su dolor
no puede fazer mudança
sino de mal en pior.
Pues tal fizo la primera
segun mi pena crecida,
verés en esta postrera
ser postrera de la vida.
Fim.
Si hoviere diferencia
de quien es el más culpado,
juzgues' en vuestra presencia,
quedando yo condenado.
Mas s' a vos no vos desculpa
echar sobre mi el cargo,
quered por vuestro descargo
revelarme desta culpa
Sobrescrito que vinha nestas
trovas.
Estas copras vos diram
quanto ja fui namorado
e de muito desamado
quis negar minha paixam
por me ver desesperado;
e fengi que desamava
quem me sempre desamou.
Por verdes se me prestou
o remedio que tomava
a conta disso vos dou.
816
OUTRAS SUAS, SENDO DESAVINDO.
Cantiga.
De si mesma me vingou
quem, por mais perda me dar,
ordenou de lhe ficar
quanta comigo ficou.
Eu perdi nam me perder
qu' ee gram perda pera mim,
muito mais perdeo em fim
quem tal perda me quis ver.
Porque ja desesperou
de me mais desesperar,
e em lugar de me matar
da morte me segurou.
Mas ter a morte perdida
nam me tira de perigo,
pois quem é de si imigo
mais se recea da vida.
A quem com ela ficou,
quando da morte gostar,
se pode bem preguntar
qual delas mais o matou.
Nam sei quem vida deseja
se recea de perde-la,
pera quem nam gosta dela
nam ha cousa mais sobeja.
Nunca a ninguem desejou
que a nam visse minguar,
eu a quis de mim tirar
e entam me sobejou.
Fim.
Quando meu mal começava,
eu me vi tam acabado
que fui bem desenganado
que convosco m' enganava.
E sabês que m' enganou
querer-vos desenganar,
que vos nam pode leixar
quem por vós tudo leixou.
Trovas suas d' ajuda.
Nam sei quem vida deseja
se recea de perdê-la,
pera quem nam gosta dela
nam ha cousa tam sobeja.
Nunca a ninguem desejou
que a nam visse minguar,
eu a quis de mim tirar
e entam me sobejou.
Fim.
Quando meu mal começava,
eu me vi tam acabado
que fui bem desenganado
que convosco m' enganava.
E sabeis que m' enganou
querer-vos desenganar,
que vos nam pode leixar
quem tudo por vós leixou.
817
OUTRA SUA, ESTANDO DESAVINDO.
Dizei-me se me perdi,
saberei se me perdestes,
porque nam no sei de mi
com quanto mal me fizestes.
Se sou em vossa vontade
perdido como mostrais,
perca-se minha verdade,
que nam posso perder mais.
Ja nam tenho mais em mi,
tudo al vós mo perdestes,
sem saber se me perdi
com quanto mal me fizeste.
818
CANTIGA SUA A ŨAS DAMAS
QUE LHE PREGUNTARAM POR‑
QUE TRABALHAVA NINGUEM
POR ENGANOS.
Trabalho por m' enganar,
porque sam desenganado,
qu' hei primeiro d' acabar
que s' acabe meu cuidado.
Escolho por menos dano
o que me fez maior mal,
quanto mais me desengano
menos posso fazer al.
Culpe-me quem me culpar,
hajam-me por enganado,
que eu sam mais obrigado
a vos ver caa me salvar.
819
VILANCETE SEU.
Pois vos nam posso acabar,
meus males, acabar-m'-eis
e acabareis.
Nam vos desejo dar fim,
mas consento em ma dardes,
porque, quando m' acabardes,
acabeis tambem em mim.
Nam quero sem vós ficar
nem que vós sem mim fiqueis,
que nam posso nem podeis.
820
TROVA DE MANUEL DE GOIOS,
D' AJUDA A ŨA CANTIGA DE
LUIS DA SILVEIRA.
Senhora, que m' agraveis,
descanso neste cuidado,
porque sam desenganado,
que a quem mais mal fazeis
é milhor aventurado.
E que vós a outro fim
me tireis de meu sentido,
o qu' a outros traz perdido
é remedio pera mim.
821
DE
FRANCISCO DE SOUSA,
AQUEIXANDO-SE DA REZAM
E VONTADE.
A vontade e a rezam
ambas vejo contra mim,
a vontade é enfim
a que segue openiam.
A rezam nam me abasta,
posto que seja sobeja,
ond' a vontade deseja
em chegando tudo gasta.
Nam tenho a mim por amigo,
tenho ambos por contrairos
e, s' antr' eles haa desvairos,
eu sam o moor meu imigo.
De todas suas querelas
sam seu juiz e vogado
e do que é por mim julgado
fico eu com todas elas.
Quisera tudo deixar
e achei que nam podia,
porque de mim me devia
primeiramente guardar.
E ficou-m' assi dobrado
o desejo contra mim,
que desejo minha fim
por ser fora de cuidado.
Mil vezes quero cuidar
se darei culpa à ventura
e acho que é grande cura
ja nam se poder curar.
Tais novidades acodem
de novidades tam novas
que descanso, porqu' em trovas
escritas ja ser nam podem.
Estou nũa fantesia,
se mo alguem nam desdissesse,
descanso se me viesse
para mim nam no queria.
Ando tam envolto em mal
haa tantos dias e annos,
que seriam novos danos
o querer cuidar em al.
Assi que pois tanto monta,
nesta me deixem viver,
porque viver e morrer
tudo tenho nũa conta.
Ũa segurança tem
esta vida de milhor,
que nam pode ser pior,
qu' ee pera mim grande bem.
Se quero cuidar na vida,
acho-me tam alcançado
doutro cuidado passado,
que a deixo por perdida.
E se m' ela aqui deixasse
nas voltas desta mudança,
dar-m'-ia mais esperança
do qu' ela de mim levasse.
Que s' algum morto queria
tornar cá ou lhe convem,
eu certo m' afirmo bem
que ja cá nam tornaria.
Que mal posso lá passar,
por muito mais mal que veja,
que muito pior nam seja
achando o qu' hei-de deixar.
Fim.
E porem nisto concrudo
que sam tam afeiçoado
eeste meu triste cuidado
que deixo por ele tudo.
E que m' ele faça mal
nisto soo m' afirmarei:
que jamais o deixarei
nem quero cuidar em al.
822
CANTIGA DE FRANCISCO
DE SOUSA.
Tirai-vos fora sospiros,
dai lugar ò coraçam,
que chore sua paixam.
Dai tempo, dai-lhe poder,
porque juntos nam moirrais,
que da maneira qu' estais
é impossivel viver.
Porque me deveis de crer
qu' ee grande consolaçam
lagrimas oo coraçam.
823
OUTRA SUA.
Acho que me deu Deos tudo
para mais meu padecer:
os olhos pera vos ver,
coraçam para sofrer
e lingua para ser mudo.
Olhos com que vos olhasse,
coraçam que consentisse,
lingua que me condenasse,
mas nam ja que me salvasse
de quantos males sentisse.
Assi que me deu Deos tudo
para mais meu padecer:
os olhos para vos ver,
coraçam para sofrer
e lingua para ser mudo.
824
OUTRA SUA.
Ja os dias que viver
nam terei mais que pedir,
porque soo com vos servir
me soube satisfazer.
Satisfiz minha vontade
para toda minha vida,
pois vê-la por vós perdida
nam hei dela saudade.
Nem jamais sei al querer
nem desejar nem pedir,
porque soo com vos servir
me soube satisfazer.
825
TROVAS SUAS A ESTE
VILANCETE:
Abaix' esta serra,
verei minha terra.
Oo montes erguidos,
deixai-vos cahir,
deixai-vos somir
e ser destroidos,
pois males sentidos
me dam tanta guerra
por ver minha terra!
Ribeiras do mar,
que tendes mudanças,
as minhas lembranças
deixai-as pssar;
deixai-mas tornar
dar novas da terra,
que daa tanta guerra!
Cabo.
O sol escurece,
a noite se vem,
meus olhos, meu bem
ja nam aparece.
Mais cedo anoitece
aaquem desta serra
que na minha terra.
826
TROVA SU' A AFONSO D' ALBO‑
QUERQUE EM GOA, PORQUE
LHE MANDOU PEDIR ŨA
ESCRAVA POR Ũ JU‑
DEU MUITO FEO.
Senhor, eu estou cortado
de nam saber responder,
porque fiquei embaçado
do rosto e do recado
de quem mo veo trazer.
Porem laa mando enfim
essa que me nam magoa,
Deos vos dei poder em Goa
e a mim leve a Lixboa,
polo nam terdes em mim.
827
OUTRA SUA A ŨA FREIRA, QUE
SEM NA CONHECER LHE MAN‑
DOU Ũ ESCRITO, POR UM
MOÇO SEU E ELA NAM
SE ASSINOU.
Senhora, um moço meu
me deu um escrito tal
sem lembrança nem sinal
do nome de quem lho deu!
Eu o vi muito bem visto,
mas nam li dele rezam,
porqu' ando mao cortesão
das damas de Jesu Cristo.
828
PREGUNTA DE PERO DA SILVA.
Quem deseja d' acabar
vida triste tam coitada,
que via deve tomar
ou qual outra desejar
com qu' esta desesperada
nam lhe possa mais lembrar?
O remedio que teraa
quem se vê sem nenhum ter,
vossa mercê mo deraa
e crendo que me faraa
nisto a mor que pode ser,
o negar-mo escusaraa.
Reposta de Francisco de Sousa
polos consoantes.
Servi quem m' ha-de matar,
se quereis ver acabada
vida tam maa de deixar,
porqu' ela pode mudar
todalas outras em nada
a quem se dela acordar.
Porque quem na vir veraa
tam grande seu merecer,
que de si s' esqueceraa
e de mim se lembraraa,
quando me vir padecer,
porque sei que me creraa.
829
FRANCISCO DE SOUSA A PERO DA
SILVA POR Ũ MOÇO QUE LHE
DEU PERA LHE ENSINAR
UM CAMINHO.
O vosso gram guiador,
que comigo veio caa,
certefico-vos, senhor,
qu' era o moor desviador
que podera vir de laa.
Caminho muito sabido
é a ele tam estranho,
que, por Deos, eu fiquei manho
em ver que moço tamanho
era tam mal entendido!
830
CANTIGA DE FRANCISCO
DE SOUSA.
Senhora, ja nam entendo
que vida possa viver,
pois que nego, nam vos vendo,
quanto descubro em vos ver.
Encobri quam desigual
sobejo bem vos queria,
por me nam quererdes mal
me calava e consentia.
Pois que ja certo vou crendo
que me nam posso valer,
quero mais dizer morrendo
que calando padecer.
831
TROVAS DE FRANCISCO DE SOUSA.
Meus males vam-se acabando
por muito craros sinais,
quanto mais ando atalhando
pera me matarem mais
atalhos andam buscando.
Sem porquê e sem razam
se levantam contra mim
cegos desta openiam:
qu' em me dar tam triste fim
estaa sua salvaçam.
Conformei tanto a vontade
co este cego desejo,
que se peço piedade
outra ja dele nam vejo
senam negar-m' a verdade.
Deixo-m' andar aguardando
o tempo que tudo cura,
comigo dessimulando
e minha desaventura
vem-no logo provincando.
Buscam cem mil novidades
fingidas d' ũa feiçam,
que sendo todas maldades
trazem tal cor e razam
que se julgam por verdades.
Isto hei-de padecer
com tamanho sofrimento
qual nunca se vio sofrer,
porque neste certo que sento
mal se poderá dizer.
Assi vivo nesta vida
tam morto que nam sam vivo!
Ó minha vida perdida,
porque sam eu tam cativo
de quem ma tem destroida?
Mas que me presta queixar,
pois assi quero viver
com quem me nam quer matar
nem me quer deixar morrer
para mais m' atormentar?
Em tal estremo estou
que tudo perdoaria,
se nesta volta que vou
podesse viver um dia
livre de quem me deixou.
E torno logo a cuidar,
qu' ainda qu' isto quisesse,
se o podia acabar
comigo, mas que podesse,
nam no quero maginar.
Doi-me tanto o coraçam
cuidar que pod' isto ser,
que tomo por salvaçam
saber que mo faz dizer
ver-me com tanta afriçam.
Porqu' a muito grande dor
a quem é atormentado
fá-lo fazer malfeitor,
de sem culpa condenado,
de fiel qu' ee roubador.
Assi por minha ventura
sam eu no mal que padeço
que com sobeja tristura,
vendo que nam no mereço,
busco remedio sem cura.
Ando coma quem é cego,
pregunto por donde irei,
o que sinto nam no nego
para ver s' acertarei
ond' a Furtuna põe prego.
Fim.
Se nam visse mais mudanças
nestas me satisfaria
sem outras vãas esperanças,
porque sei que soo ũ dia
nam dam seguras fianças.
Neste mal me deixem jaa
minhas fortunas viver,
porqu' ele s' acabará
ou me deixará morrer,
qu' ee o mor bem que ele daa.
832
Os lugares em qu' andei
convosco ledo e oufano,
nesta tristeza os busquei,
mas o que neles achei
foi a meu dano moor dano.
Comecei-lh' a preguntar
que fora daquela grorea
qu' ali me viram passar.
Responderam sem falar
qu' estava na memoria.
— Em qual memoria — pregunto
― pode tal lembrança ser?
Responderam: — Tudo junto,
o propio e o transunto
na vossa podereis ver.
Na reposta que senti
vi meu mal camanho era,
vi o que logo me vi,
partir deles e de mi
para donde nam quisera.
Comecei de caminhar
ũ caminho povoado
por ũ mui craro lumar,
que me fazia parar
a cada passo pasmado.
Pus os olhos nas estrelas
por nam ver donde andava,
olhando por todas elas
lagrimas, tristes querelas
escuro tudo tornava.
Com lembranças ledas, tristes,
vim assim fantesiando
fantesias que nam vistes,
sentidos que nam sentistes
como nos vinham matando.
Mas quem soubera morrer
a tal tempo e tal hora
para nam tornar a ver
vida tam maa de sofrer
com' esta triste d' agora!
Oo vida de minha vida,
oo triste groria passada,
oo memoria estrestecida,
pois sois tam desconhecida
para que me lembrais nada?
Esquecei vossas lembranças,
deixai-me viver assi
sem vossas vãas esperanças,
porque com vossas mudanças
vivo sem vós e sem mim.
Cantiga e fim.
Lembranças nam persigais
a quem ja nam tem poder
mais que quanto vós lhe dais
para sospiros e ais,
para chorar e gemer.
Ooh minha triste memoria,
ooh minha dor nam fengida!
Se lembrar fosse vitorea
a quem dariês mais groria
ca quem dais tam triste vida?
Mas estas lembranças tais
deviês ja d' esquecer,
que, se lembram, acordais
os meus sospiros e ais
e meu chorar e gemer.
833
CANTIGA SUA.
Lembranças, nam me deixeis
com quanto m' atormentais,
confesso que me matais
e quero que me mateis.
Quero vossa companhia,
quero mais vossos enganos
qu' hei por vida de mil anos
viver convosco soo ũ dia.
Por isso nam me culpeis,
que antes ser quero mais
morto do que me lembrais
ca vivo do qu' esqueceis.
834
CANTIGA SUA.
Meus males, que me quereis?
Meu coraçam, que cuidais?
Sentidos, que desejais?
Olhos, porque nam olhais
o dano que me fazeis?
A triste vida que vivo
de que nunca sam isento,
cuidado, grande tormento
nam vos dê contentamento
nem ver-me sempre cativo.
Deixai-me, nam me mateis
com quantos nojos me dais,
nam folgueis co que folgais,
olhos, porque nunca mais
nenhũ descanso tereis.
De Francisco de Sousa a Garcia
de Resende com estas trovas
atras escritas.
Laa vos mando treladadas
as que me podem lembrar,
as quaes podeis emmendar,
pois as mando por erradas.
Fica-me deste cuidado
contentamento,
que tenho rependimento
de tempo tam mal gastado.
835
MAS, PORQUE FIZERAM ŨU ROL
DOS HOMENS QUE HAVIA
PARA CASAR CORTESÃAOS
E ACHARAM SESSENTA
E ANTRE ELES IAM
ALGŨS QUE PAS‑
SAVAM DOS
SESSENTA.
Temos ja sabido cá
que pondes laa em ementa
os que passam de sessenta.
Tomastes cuidado certo,
pois nam é de muita dura,
qu' eles têm a morte perto
e vós vida mais segura.
Quem tevera tal ventura
qu' entrara lá na ementa
e fora jaa de setenta!
836
DE
GARCIA DE RESENDE,
ESTANDO
EL-REI EM ALMEIRIM, A MANUEL DE
GOIOS QU' ESTAVA POR CAPITAM
NA MINA E LHE MANDOU PEDIR
QUE LHE ESCREVESSE NO-
VAS DA CORTE, AS QUAES
LHE MANDA.
Mandais-me de lá pedir
que de cá vos mande novas,
e eu soo por vos servir
vos quis fazer estas trovas
que vos mataram de rir.
É nisto vereis, senhor,
se é vosso servidor
quem foi tomar tal cuidado,
estando tam desviado
de cuidar qu' ee trovador.
E pois que tenho perdido
a vergonha e o saber,
soo por voos serdes servido
deveis-me d' agradecer
acupar nisto o sentido.
Que certo nam me lembrei,
quando estas comecei,
se fazia mal nem bem
nem oulhe nelas ninguem,
pois eu nelas nam oulhei.
Por nam cair em certeza
nam hei, senhor, de dizer
cousa que toque em Veneza,
mas novas de Su' Alteza,
que folgareis de saber:
Qu' estaa sam, a Deos louvores
tem consigo mil senhores,
os quaes estam aforrados,
andam mui pouco aguardados
e grandes aguardadores.
Vai mil vezes montear
e caçar com pouca gente
e andam nisto tam quente
algũs que badalejar
vemos mil vezes o dente,
nam de frio natural,
mas d' humido redical
que jaa neles é gastado
por muito tempo passado,
que passaram bem ou mal.
Estaa jaa certo na mãao,
o dia que vai caçar,
haver à noite serão
e nam podeis laa cuidar
os galantes qu' eele vãao.
S' acerta de nam haver
serãao, é por entender
em despachos e conselho,
que m' espanto nam ser velho
quem tanto tem que fazer!
E esta vida que tem
teraa tee Abril passado
e no outro mes que vem
dizem qu' ee determinado
o Veram em Santarem.
Nam tomeis disto penhor,
pois que bem sabeis, senhor,
o que posso alcançar
nem quero mais decrarar
a tam bom entendedor.
Estaa tambem de saude
a Rainha nossa Senhora,
em quem crece ameude
cada dia e cada hora
muita enfinda vertude.
Por este caminho vãao
seus filhos e assi stam
sobretudo tam galantes
que tal Principe e Ifantes
nunca foram nem seram!
As novas de grande peso
nam esperareis de mim,
pois sabeis que é defeso
quem estaa em Almeirim
dizer com que seja preso.
Estou fora de falar
nelas e quero contar
as com que sei que folgais
e s' aqui nam toco mais
pond' a culpa a nam ousar.
As damas que cá ficaram,
quando daqui vos partistes,
algũas delas casaram
e vivem por isso tristes
e outras se contentaram.
Das casadas vos darei
esta nova, porque sei
que o haveis laa d' ouvir,
porqu' ee cousa para rir
o que vos d' ũa direi.
A que sabeis que casou,
que diz qu' ee mal maridada,
o dia que s' ençarrou
ũa grande bofetada
a seu esposo pegou!
Vede bem o que faria
ou se lhe responderia
o marido a consoante.
Dizem que di em diante
lhe gastou a cortesia.
Dona Camila casou
com Joam Roiz de Saa,
no outro dia a levou,
nisto muitas cousas haa
de que vos conta nam dou.
Convidou as damas todas,
ũ dia ante das vodas,
Dom Martinho a gentar,
houv' ahi tal que casar
desejou mais qu' aves gordas...
Têm por cousa mui sabida
muitos qu' estaa concertado
casar Dona Margarida
de Mendoça cum privado,
de qu' haa muito qu' ee servida.
Dona Guiomar de Meneses
estaa fora ha oito meses
do paço, nũ moesteiro.
Nunca mais houve terreiro
nem no bailar antremeses.
Ũa de sangue real,
que se criou em Castela
sendo nossa natural,
nam anda ninguem co ela
nem casa em Portugal.
Faz mesuras de cabeça,
nam acha quem lhe mereça
mesura doutra feiçam
senam primo com irmão
ou outrem que o pareça.
Filhas do Conde Prior
sam duas aqui entradas,
nam têm inda servidor
e ũa delas, ousadas,
qu' ee disto merecedor,
gentil molher, despejada.
Da outra nam digo nada,
vaa no conto das que calo,
que de muitas vos nam falo
que nam quedam na pousada.
D' Anriquez Dona Maria
bem deveis laa de saber
que nam é jaa quem soia,
nam digo no parecer,
porque crece cada dia.
Nam traz nenhũ servidor,
porqu' ee de tanto primor
que ninguem a nam contenta
nem é de todo isenta,
que o nam consent' amor.
Dona Joana de Mendoça,
que deixastes à partida
ũa muito gentil moça,
nam é cousa desta vida,
que mat' oos homens per força.
Creceo tanto em fermosura,
em manhas, desenvoltura,
graça, saber, discriçam,
que nam sinto coraçam
a que nam dê maa ventura.
A outra sua igual
no nome e na idade
sabei que em Portugal
gentileza de verdade
nunca se vio outra tal.
Pois a nam posso louvar,
quero vo-la nomear:
Dona Joana Manuel,
mais que o Anjo Gabriel,
tem tudo para gabar.
As duas favorecidas,
Calataiud, Figueiroo,
de serem cá mal servidas
perdei disso bem o doo,
qu' estam longe d' esquecidas:
Figueiroo é no seram
de cantigas, de tençam,
mais servida que ninguem
de tres que cantam mui bem,
nisto sabereis quem sam...
Ha poucos dias qu' entrou
ũa gram Dona Mecia
da Silveira, qu' apanhou
logo nesse mesmo dia
esses galantes qu' achou.
E conto logo primeiro
a Francisco de Biveiro,
qu' anda forçando as paredes
e leixou baldo e redes
por passear no terreiro.
A outra Dona Maria
de Meneses, que cá vistes,
tem tanta galantaria
que daa mil cuidados tristes
a quem nos dar nam devia.
E aquesta mesma via
Tavora Dona Mecia
leva com seus servidores,
aos quaes faz sem favores
mil despreços cada dia.
Doutra fermosa molher,
que laa naceo nũa ilha,
nam digo mais senam ser
muito grande maravilha
quem na vir nam se perder.
Nesta quero acabar
e começai d' escuitar
novas doutra qualidade,
nas quaes certo na verdade
vos nam quisera tocar:
El-Rei de Fez ajuntou
mais jente que da primeira
e sobr' Arzila tornou,
mas achou-se de maneira
que logo d' i apildou.
E vai tam rijo coçado,
que creo qu' escarmentado
ficará daquesta vez:
nunca mais entrou em Fez,
anda fora, degradado.
Dom Francisco no lugar
era entam e bem no quente,
por isto quero passar,
mas de quam honrada gente
levou vos quero contar.
Esta soo cousa nam calo:
cinquenta de cavalo
tev' oito meses consigo
e o al qu' aqui nam digo
é muito mais que o que falo.
Nuno Fernandez daqui
vai cedo por capitam
por dous anos a Çafi
e quinhentas lanças vam
co ele, segundo ouvi.
Houv' isto com aderentes,
algũs ficam descontentes
por nam serem escolhidos
para isso nem ouvidos,
cuidando qu' andavam quentes.
Os senhores de Castela,
qu' andavam cá desterrados
por ũa justa querela,
sam de todo perdoados,
tornam-s' agora par' ela.
Vieram-se despedir,
fez-lhe El-Rei ao partir
honra, mercê e favor,
os quaes diz que vam, senhor,
bem prestes par' oo servir.
Ũ homem chegou aqui
que vio do mundo gram parte
e as novas que lh' ouvi
conta-as e di-las d' ũ arte
que parecem ser assi.
E por mui certo contou
que o Viso-Rei tomou
ũa muito grossa armada,
em qu' oito mil à espada
trouxe e dous reis cativou.
Destes senhores privados
de que novas desejais,
qu' aqui nam vam nomeados,
bem sabeis quaes sam os mais
escolhidos e chamados.
Estam todos mui honrados,
nas rendas avantejados,
nas mercês e nos favores,
algũs deles têm amores
e outros outros cuidados.
Fala em geral.
As damas nunca parecem,
os galantes poucos sam,
cousas de prazer esquecem,
os negoceos vêm e vam,
nunca minguam, sempre crecem.
Nam ha ja nenhũ folgar
nem manhas eixercitar,
é tanto o requerimento
que ninguem nam traz o tento
senam em querer medrar.
Mil pessoas achareis
menos das que cá leixastes,
doutras vos espantareis,
porque vê-las nam cuidastes
da maneira que vereis!
Ũs acabam, outros vêm
e ũs têm, outros nam têm
e os mais polo geeral
folgam muito d' ouvir mal
e pouco de dizer bem.
Se cá soes bem ensinado,
cada feira valeis menos,
e, se mal, sois estranhado
dous dias e logo vemos
ficardes mais estimado.
E vai isto de maneira
que na capela cadeira
d' espaldas têm escudeiros
e consentem-lh' os porteiros
estarem na dianteira.
Anda tudo tam danado
que o que menos merece
se mostra mais agravado,
e d' homens que nam conhece
é El-Rei emportunado.
E estes, que Deos padeça,
ham-de cobrir a cabeça
perant' ele no seram
e soo por isso laa vam,
sem haver quem os conheça.
Boons e maos todos ja trazem
os rabos alevantados,
em lobas frisadas jazem,
capuzes apestanados
pola ponta do pee trazem.
Contas e lenços lavrados
e da sala namorados,
e nunca dizem de quem,
e pousando em Santarem
sam assi afidalgados.
Quem for muito comedido
e quem for josteficado
nam será muito valido;
quem for desavergonhado
seraa com todos cabido.
Nam ha homens de primor
nem quem sirva por amor
senam por ter e mandar,
nem ha quem queira lembrar
o proveito do senhor.
Quem tem renda quer poupar
e quem gasta bem o seu
nam no podem comportar,
ham-no logo por sandeu
e qu' ee siso entesourar.
Os velhos sam namorados,
os mancebos acupados,
os casados sam solteiros,
os fracos sam mui guerreiros
e os clerigos casados.
Ha cá poucas amizades
e grandes competimentos,
custumam pouco verdades,
servem-se muito de ventos
e cousas de vaidades.
Nam lembra a ninguem rezam
senam soo encher a mam
e passe por u poder,
nem creais que bem fazer
faz ninguem, se El-Rei nam.
E se quer ir ter Veram
algũ cabo ou invernar
e d' algũs toma a tençam,
cada ũu o quer levar
para onde tem seu pam,
pois nisto nam tem respeito
senam soo a seu proveito.
Vede bem qu' aconselhar
faram num bom pelejar
ou em outro grande feito!
Cabo.
Porque sei qu' esperareis
que vos dê novas de mim,
vos dou estas qu' ouvireis:
qu' estou sam em Almeirim
da sorte qu' aqui vereis.
Nunca mais sahi daqui
ũa hora nem parti
de servir e d' aguardar
e acerca do medrar
tal m' estou qual me naci.
837
Tiempo bueno, tiempo bueno,
¿quien te me lhevó de mi?
Qu' en acordarme de ti
todo plazer m' es ajeno.
Fue tiempo y horas ufanas
em que mis dias gozaron,
mas en elhas se sembraron
la simiente de mis canas.
¿Quien no lhora lo passado
viendo qual va lo presente?
¿Quien busca más acidente
de lo qu' el tiempo l' ha dado?
Yo me vi ser bien amado,
mi deseo em alta cima.
Contemplar em tal estado
la memorea me lastima.
Y pues todo m' es ausente,
no sé qual estremo escoja.
Bien y mal todo m' anoja,
mezquino de quien lo siente.
Grosa de
Garcia de Resende
a este rimance.
Los tiempos atras passados,
que fuessen mal despendidos,
siempre seran deseados
y por muy buenos contados
los d' aora por perdidos.
Yo de mil nembranças lheno
d' una hora que te vi
sospiro siempre por ti:
tiempo bueno, tiempo bueno,
¿quien te me lhevó de mi?
¿Quien m' apartoo del prazer
y descanso que tenia?
¿Quien causa mi padecer
si no verte fenecer
cada hora e cada dia?
Corres muy suelto, sin freno,
tan rezio passas por mi,
por te ver ir tanto peno
qu' en acordarme de ti
todo plazer m' es ajeno.
Nembrança no da logar
a poder bevir contento,
haze mi pena doblar,
quando pienso qu' el holgar
passoo más presto que vento.
Dos mil esperanças vanas
que mis ojos descansaron
ya como sombra passaron,
fue tiempo y horas ufanas
em que mis dias gozaron.
¿Que se hizo mi tristura
que me solia alegrar,
quando maas me vi penar?
¿Que fue daquelha ventura
qu' el bien solia doblar?
Ya todas en mi moraron
y me fueron mui humanas,
buenas enquanto duraron,
mas en elhas se sembraron
la simiente de mis canas.
No quedó sino memoria
para maas me lastimar,
todo mi plazer y gloria
es ansi como istoria
que a outrem vi contar.
¿Quien puede ser consolado,
siendo desto tan ausente?
¿Quien bive sino penado?
¿Quien no lhora lo passado
viendo qual va lo presente?
No sé quien pueda bevir
con tantos moodos de males,
que menos es el morir
que de contino sofrir
passiones tan desiguales.
Pues es tan conveniente
declinar qualquier estado,
merece dolor doblado
quien busca maas acidente
de lo qu' el tiempo l' ha dado.
Porque yo todo passee,
todo sé quan poco dura,
bien y mal esprimentee
y lo maas cierto que halhee
fue la fim ser de tristura.
Yo me vi con gran cuidado
d' una passion muy soblima,
yo me vi desesperado,
yo me vi ser bien amado,
mi desseo en alta cima.
Esto muy poco duroo
y quedóme mal que harte,
el descanso que me dió
tan aina se perdió
que del no supo más parte.
Es dolor continuado,
passion que no tiene istima,
cuando niembra el bien passado
contemplar em tal estado
la memoria me lastima.
Ca no es maas la nembrança
nel triste que tiene amor
del tiempo de bien andança
que matar elh' esperança
y abivar el dolor.
El parecer excelente,
la bondad que sobrepoja
ante mis ojos se antoja,
y pues todo m' es ausente
no sé qual estremo escoja.
Cabo.
La muerte no la desseo
por tal descanso no ver,
ni la vida que posseo
no la queria ni creo
que nadia quiera tener.
Todo de mi se despoja,
de todo soy desplazente
e con nada paciente,
bien y mal todo m' anoja,
mizquino de quien lo siente.
838
DE
GARCIA DE RESENDE A RUI DE
FIGUEREDO, O
POTAS, QUE LHE
MANDOU PREGUNTAR SE PODE‑
RIA POUSAR COM ELE EM
ALMEIRIM, EM QUE
LHE
MANDA DIZER COMO A
POUSADA ESTÁ E DA
MANEIRA QUE ELE
HA-DE VIR.
Tenho as casas despejadas,
podeis vir quando quiserdes,
de reposteiros armadas
e camas mui concertadas
para vós e quem trouxerdes.
Sotãaos frios no Veram,
no Inverno temperados;
se nam vindes cortesam,
haveis de ser apodados
vós e o vosso vilam.
Por serdes bem recebido,
trazei no alforge pato
com pescoço mui comprido,
que faça mais aparato
que ũ papa revestido.
Trareis chocas em tabardo,
inda que seja em Agosto,
vilão vestido de pardo,
por virdes mais alpavardo
nam trareis touca no rosto.
S' achardes cidra, cidram,
peras ou figos orjaeis,
marmelos, uvas, melam,
tanto que nam possa mais
carregareis o vilam.
Destarte vireis sem pejo
e sereis bem recolhido,
mas inda bem nam decido
me parece que vos vejo
d' antemão serdes corrido...
Trareis em cima da seela
ũ manto mal riatado,
bedem velho emprestado
e nos alforges paneela
acupada com pescado.
Vinde à brida sem retrancas,
qu' ee bom trajo de caminho,
e que tenhas pernas mancas
trareis menino nas ancas
a que chamareis sobrinho.
Trazei mais diante voos
trouxa com vestido feito,
por nam fazerdes cá moos,
seraa todo deste jeito
e andareis como noos:
loba d' Ipre pespontada,
mangas d' Usteda ou solia,
beeca curta e engraxada,
barba d' ũ dia rapada
e de dous meses trosquia.
Brozegui largo, amarelo,
com çapatos de veado
e barretinho singelo,
pola borda ja çafado,
de feiçam de cugumelo,
negro, velho, com traçado;
e menino com sombreiro,
ramal de contas lançado
ò pescoço e mal calçado,
que saibam qu' ee d' escudeiro.
Ũ par de luvas de lam
trazei por amor de mim,
porqu' ee cousa muito sam
par' oos frios d' Almeirim,
à noite e pola menham.
Se vindes desta maneira
folgaram cá de vos ver,
mandar-m'-eis logo dizer,
em chegando à Bandeira,
para vos ir receber.
S' a guarda quiser saber
quem soes, dizei que rendeiro;
se pousada oferecer,
vós oferecei dinheiro
por vos deixarem decer.
Dizei que vem detras arca
e besta com pam e vinho
e panos de lam e linho.
S' o rocim nam é de marca,
guardar-vos-ei do meirinho.
Os que vos virem diram,
vendo logo vosso jeito,
que pareceis fradegam
fora d' havito, em meijam,
co topete jaa desfeito.
Pareceis lecenceado,
que foi ouvidor nas Ilhas,
ou fisico namorado
e cristam novo engraxado,
que tem quintam em Cacilhas.
Marrano, alcoviteiro,
gram conhecedor de vinhos,
ambrador, manco caxeiro
e clerigo feiticeiro,
que vende boons purgaminhos.
Tambem fostes ja livreiro,
roim encadernador,
e n' alfandega siseiro
e soes fora escudeiro
e em casa borlador.
Estudante sem saber,
bacharel de boa casta
qu' ensina moços a ler,
clerigo que por comer
espancou sua madrasta.
Moordomo de confraria
que tem chocalho à porta
e sempre galinhas cria
ou charamelam d' Hongria
casado com puta torta.
Por nam estranhardes nada
e ser tudo coma o vosso,
com pertenças a pousada,
senam s' eu nada nam posso,
vos terei aparelhada.
Porque, senhor, como fora
e no paço tenho a cama,
para vós farei agora
cama tal que cada hora
desejeis nela ũa dama.
Para acrecentar desejo
tereis almadraque velho,
manta nova d' Alentejo
que vos dê polo artelho,
porque o mais seraa sobejo;
chumaço desenfronhado
e com seu lençol cubeerto,
novo, grosso, mal lavado,
de pulgas acompanhado
para estardes mais esperto.
Mantẽes curtos, mal curados,
mesa de tres pees redonda,
pichel, bacios vidrados,
brancos e verdes, quebrados,
para vós isto avonda.
E estareis assentado
nũ tanho de Santarem.
Por vos tudo saber bem
o coopo seraa quebrado
e albarrada tambem.
E por vos nam apalpar
a terra com o comer,
hei-vos tambem d' ordenar
que nam vos ham mais de dar
que o que laa soeis de ter.
Que mudança de lugares
muda muito a compreisam
e se mudam os manjares,
vêm as doenças a pares
e tard' ou nunca se vam.
Perdizes, capões, galinhas,
frangãaos, rolas e vitelas,
passarinhos d' esparrelas,
pasteis, tortas, escudelas
sam viandas mui daninhas.
Laparos, patos, cevados,
cabritos e escahidas,
lombos de porcos, veados,
pavos, faisães, bons pescados
encurtam muito as vidas.
Tereis, senhor, ò jentar
vaca magra sem toucinho,
com seu quartilho de vinho
com que possais jarrear
e nam me chamar mezquinho.
A cea, da vaca fria,
rabam, queijo e salada,
é comer que o corpo cria:
o mais é velhacaria
e fazenda mal gastada.
Cabo.
E pois isto tendes certo,
vinde muito descansado
e destarte atabiado,
porque quem vos vir ò perto
caia logo d' abalado.
Tudo isto que vos digo
e muito mais achareis
e nestas me nam obrigo,
pois sabeis que sam amigo,
o moor que nunca tereis.
839
VILANCETE DE GARCIA DE
RESENDE, A QUE TAMBEM
FEZ O SOM.
Minha vida,
pois esperança nam tem,
nam na deseje ninguem.
Se souberam
meus olhos, quando vos viram,
o mal qu' havia de ser,
nam poderam
consentir nem consentiram
ver-m' assi logo perder.
Padecer
é meu e nam de ninguem,
sem desejar nenhũ bem.
Quem quiser
nam ser mal-aventurado
nem ter sempre triste vida
ha mester,
como se vir com cuidado,
que lhe dê logo sahida,
que perdida
é a vida que o tem,
sem esperar nenhũ bem.
Digo isto,
porque logo nũ momento
perdi toda a esperança.
Tenho visto
perder muito em pouco tempo
e ganhar desconfiança.
Oh lembrança,
nam me vos tire ninguem,
que jaa nom quer' outro bem.
Cabo.
Porque sei
que tudo ha-d' acabar
contrairo do que s' espera,
bradarei
que se guardem d' esperar,
porqu' esperar desespera.
Se me dera
este conselho alguem,
quiçaa me guardara bem.
840
GARCIA DE RESENDE A ESTE
MOTO D' ŨA SENHORA:
Nesta vida e depois dela.
Pois m' assi soube perder
e por tam justa querela,
vede como pode ser
que leixe de vos querer
nesta vida e depois dela.
Terei onde quer que for
a fee com que vos servi,
lembrar-m'-aa soo que vos vi
e nam vosso desamor.
Que m' isto lance a perder,
tenho tam justa querela
que ja hei sempre de ser
vosso, enquanto viver
nesta vida e depois dela.
841
PREGUNTA D' ŨA MOLHER A
GARCIA DE RESENDE, COM
QUE LHE FOI BEM E ES‑
TAVAM DESAVINDOS.
Pregunto-vos por amor
ond' estaa e faz desvio,
se amor ou desamor
em balança é our' e fio.
Porque ambos hei passado,
cada ũ tem sua vena,
por vós seja decrarado
qual daa moor prazer ou pena.
Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.
Eu me vi jaa com favor
e depois triste perdi-o,
fiquei com gram desfavor
e do bem passado, frio.
Nam pode ser comparado
o descanso co a pena,
porqu' o bem vem com cuidado
e o mal mais mal ordena.
842
OUTRA SUA.
Quando homem tem prazer,
entam lhe vai alembrar
que o poderaa perder
por s' a vontade mudar
de quem no tem em poder.
E o mal é sempre mais
e daa sempre maior dor,
doobra sospiros mortais
a quem vê o desamor,
senhora, que lhe mostrais.
843
CANTIGA SUA.
Senhora, pois minha vida
tendes em vosso poder,
por serdes dela servida
nam queirais que destruida
possa ser.
Isto nam por me pesar
de morrer, se vós quereis,
que milhor m' ee acabar
que soportar
quantos males me fazeis.
Mas soo por serdes servida
de mim, enquanto viver,
vos peço que minha vida
nam queirais que destruida
possa ser.
844
DE GARCIA DE RESENDE, ESTANDO
EM EVORA, AO CONDE DO VIMIOSO
QUE SE PARTIO DI PARA A CORTE,
SOBRE NEGOCEOS DO PAI.
Rifam.
Meu senhor, des que partistes,
nam vivo nem vivem caa
nem creo que viveis laa.
Nós com vossa saudade
temos vida sem prazer
e vós laa em requerer
mil negoceos da Trindade
nam podeis ledo viver.
Assi andamos mui tristes,
nós por nam vos vermos caa
e vós por andardes laa.
Cá nam ha andar na praça
nem curral à sesta-feira
nem queremos ter maneira
de fazermos fazer graça
ò Mendez da cabeleira.
Olhai bem se nunca vistes
tanta mingua fazer caa
nenhũ homem qu' ande laa.
Nem haver e desejar,
nem prazer ũa soo hora
nem menos com quem falar,
nem novas para contar,
nem digo mais por agora.
Soomente qu' andamos tristes
todos quantos somos caa
por vós, senhor, serdes laa.
Cabo.
Havei doo de nossa vida,
mandai-nos, senhor, dizer
se esta vossa partida
com nos virdes cedo ver
ha-de ser restetuida,
senam todos quantos vistes
tristes, por irdes de caa,
nos vereis mui cedo laa.
845
GARCIA DE RESENDE A ESTE
MOTO D' ŨA SENHORA:
Descansaron mis ojos
y nunca mi coraçon.
Di plazer a mis enojos
em veros e a mi pasion
y descansaron mis ojos
y nunca mi coraçon.
En veros, senhora mia,
los ojos tomam plazer,
por no ser como queria
el coraçon alegria
nunca yo le vi tener.
Assi quitoo mis enojos
vuestra vista de passion
y descansaron mis ojos
y nunca mi coraçon.
846
VILANCETE.
¿Que haré yo sim ventura,
pues perdi
em veros a vos y a mi?
Trovas de Garcia de Resende
a este vilancete.
Los sospiros y cuidados
que mi vida por vos siente
me dexan harto contente
en seren por vos causados.
Y no quiero más holgura,
pues perdi
em veros a vos y a mi.
No queria más vitoria
que poder yo mereceros,
lhegaros a la memoria
que perdi a mi por veros.
Seria buena ventura
para mi
lembraros que me perdi.
847
PERGUNTA DE
GARCIA DE RESENDE
A JOAM DA SILVEIRA.
Pois que sois d' amor ferido
e sabeis sua paixam,
nom deveis ser esquecido
de mim, que mais que perdido
ando com muita rezam.
Querei-me, senhor, dizer
o remedio que terei
a poder-me defender,
que me nam façam perder
estas cousas que direi.
Pergunta.
Sam mui vencido d' amores
onde me nam aproveita,
nunca recebo favores,
mas antes mil desfavores
meu querer de si engeita.
Eu, se a quero esqueecer,
sento meu mal ser dobrado,
se faço pola nam ver,
ee-me pior que morrer
sofrer tam grande cuidado.
Reposta de Joam da Silveira
polos consoantes.
Nam podeis ser bem servido
no cuidado que me dam
estas vossas, qu' eu envido
que por ser nelas metido
me falece o coraçam.
Mas que nam tenha saber
eu, senhor, responderei
soo por vos obedecer,
mas nam jaa por eu querer
meter-me no que nam sei.
Reposta.
Por remedio destas dores
contemprai com' ee sojeita,
deixai modos d' amadores,
pois que com penas maiores
do que vós tendes vos deita.
Nom na vejais, por fazer
e comprir o seu mandado,
nem cureis de a cometer,
mas ante deixai de ser
de todo seu namorado.
Pregunta de Joam da Silveira
a Garcia de Resende.
Eu, senhor, quando envidei,
nom nego ser com gram medo,
mas como determinei
logo ess' hora protestei
de vos preguntar mui cedo:
ver de supito molher
fora d' amores e quedo
em qu' estaa seu logo ser
me mandai, senhor, dizer
se quereis que seja ledo.
Resposta de Garcia de Resende
polos consoantes.
Medi laa se nam fiquei,
de ravidar nam m' arredo,
pois servir-vos comecei,
a mãao toda tomarei
se me derdes ũ soo dedo.
Nam soub' amores reger
Alexandre, o de Macedo,
nem outros de moor poder,
porqu' as cousas de querer
nam sam per leis nem degredo.
848
OUTRA DE GARCIA DE RESENDE
A JOAM DA SILVEIRA.
Meu senhor, para saber
a cousa que dovidamos,
é necessario que hajamos
de quem mais sabe aprender.
A vós, que sois acabado,
por mercê quero pedir
que como bom namorado
o que tenho dovidado
queirais, senhor, descobrir.
Pergunta.
Vemos homeens namorados,
mui galantes e perfeitos,
serem d' amores sogeitos,
das damas pouco prezados.
E outros que sabem menos
e de menos merecer,
por esperiencia temos
que lhe vai melhor sabemos.
Em qu' estaa isto assi ser?
Reposta de Joam da Silveira
polos consoantes.
Nom tem nenhum entender
de todos quantos cuidamos
qu' algũa cousa trovamos
para gabar vos poder.
Por isso deste cuidado,
senhor meu, quero fogir,
que quanto mais apartado
sois de ser de mi louvado
tanto é mais vos servir.
Reposta.
Os tais homeens desamados
podem ser por mil respeitos,
por nom seguir tais proveitos
como os menos confiados.
Os quaes certo todos cremos
elas muito mais querer,
ca dos maiores que vemos,
o que todos entendemos
querem mais secretas ser.
849
DE GARCIA DE RESENDE A Ũ
SEU AMIGO, EM QUE
LHE
DAA CONTA DE SUA VIDA.
Inda que me nam peçais
a conta de minha vida,
quero, senhor, que saibais
s' ee bem ou mal despendida.
Digo qu' estou de saude,
a Deos louvores!
E que tenho ameude
desfavores
D' ũa soo molher que tem
minha vida em seu poder.
E porqu' isto sabe bem,
nenhũ bem me quer fazer
e traz-me tam enleado
que nam sei
se me dura este cuidado,
que farei...
E por vos dar verdadeira
conta e desenganada,
sabei que nam é casada
nem veuva nem é freira.
E por ela tam perdido
ando eu
que nam é meu meu sentido,
mas é seu.
Ando sempre acupado
a lhe fazer a vontade
e nam tenh' outro cuidado
maior que este, na verdade,
E quando cuido qu' acerto
a meu ver,
entam estou mais incerto
do que quer.
Se em janela ou à porta
aparece per terceira,
olha-me de tal maneira
qu' a vista logo me corta,
para ja nam poder ver
nem desejar
outra cousa que prazer
me possa dar.
Certefico-vos, senhor,
que mil vezes m' acontece
dar-me nam na ver tal dor
que a vida m' avorrece.
E s' algũ hora desejo
de viver,
é na hora que a vejo
aparecer.
Mil vezes, com desfavores
que me faz, quero provar
se poderei ter amores
em algum outro lugar.
E quanto mais apartado
estou dela,
tanto é mais meu cuidado
sempre nela.
Porque tem bem conhecido
o grande bem que lhe quero,
me daa cuidado crecido
para ver se desespero.
Por me nam satisfazer
o que mereço,
deseja de me perder
e lh' avorreço.
S' algũ hora me escuita
e lhe falo, ha-de fazer,
que se levo paixam muita,
muita mais torno a trazer.
Nam me daa contentamento
seu cuidado,
nisto traz o pensamento
acupado.
Nam tenh' outro passatempo
melhor que ir passear
polo campo e ordenar
cem mil cuidados de vento.
Enquanto lá ando, espero
algũ prazer,
como venho, desespero
de o ter.
Nem tenho conversaçam
com parente nem amigo,
ando na minha paixam
falando sempre comigo.
Desejo nam ver ninguem,
pois nam vejo
quem é meu mal e meu bem
e meu desejo.
Ja me mil vezes quiseram
amigos aconselhar,
mas de quanto me disseram
nam lhes quis nada tomar.
Nem lhe dav' outra rezam
nem mais desculpa
senam: quem me daa paixam
me tira a culpa.
É por quem isto padeço
de tanto merecimento
que sentir o mal que sento
é o mais que lhe mereço.
Nem queria mais prazer
à minha vida
que folgar ela de ser
disso servida.
Por estas cousas que disse
deveis vós, senhor, cuidar
se poderia contar
outras moores, se vos visse.
Quem tem tanto qu' escrever
e que falar,
muito mais deve sofrer
se quer calar.
Cabo.
Por saberdes minhas dores,
vos quis esta conta dar
como a quem ja mal d' amores
tem feito desesperar,
e por ver se podereis
remedear
minha vida, que vereis
pouco durar.
850
CANTIGA SUA.
Minha vida é de tal sorte
qu' o moor remedio que sento
é saber que co a morte
darei fim ò pensamento.
Com sospirar e gemer
tristezas, nojos, paixam,
juntos em meu coraçam
vivo soo polos sofrer.
Jaa nam ha quem me conforte
meu mal e grande tormento,
senam lembrança da morte
que daa fim ò pensamento.
851
GROSA SUA A ESTE MOTO QUE
LHE MANDOU ŨA MOLHER,
ESTANDO MUITO MAL
CO ELA.
Moto.
Tanto mal que desespero.
Esperei, jaa nam espero
de mais vos servir, senhora,
pois me fazeis cada hora
tanto mal que desespero.
Pois sei certo que folgais,
quando mais mal me fazeis,
e que nunca descansais,
senam quando me mostrais
quam pouco bem me quereis.
Servir-vos mais nam espero,
pois meu viver empeora
com me fazerdes, senhora,
tanto mal que desespero.
852
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Meus olhos, lembre-vos eu.
Pois é mais vosso que meu,
senhora, meu coraçam,
pois vosso cativo sam,
meus olhos, lembre-vos eu.
Lembre-vos minha tristeza
que jamais nunca me deixa,
lembre-vos com quanta queixa
se queixa minha firmeza.
Lembre-vos que nam é meu
o meu triste coraçam,
pois tendes tanta rezam
meus olhos, lembre-vos eu.
853
DE GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER QUE CONFESSAVA QUE
LHE QUERIA BEM, SEM FA‑
ZER POR ELE NADA.
Senhora, pois confessais
que grande bem me quereis
e que de mim vos lembrais
e que com meu bem folgais
e de meu mal vos doeis,
querei-me, meu bem, dizer,
pois que obras nunca vejo
para isto de vós crer,
como poderei viver,
pois meu mal é tam sobejo.
Sobejo com muitas dores,
que por vós sempre padeço,
e continos desfavores,
sem nunca dardes favores
a mim, que tanto mereço.
Nam digo que me fizesseis
quanto bem era rezam,
senam soo que vos doesseis
de meus males e me desseis
dalgũ deles gualardam.
Por gualardam haveria,
se soubesse qu' esperaveis
de me fazer algũ dia
tam leedo que fantesia
tomasse que vos lembraveis
de mim, qu' em ter esperança
m' haveria por ditoso,
se tevesse confiança
que meu servir, sem mudança,
me seria proveitoso.
Mas viver sempre tam fora
d' esperar daquisto ser
me faz que cuido, senhora,
cada dia e cada hora
que folgais de me perder.
E com este tal cuidar
s' acrecenta minha pena
e nam posso repousar,
quando me vai alembrar
que por vós meu mal s' ordena.
Que se triste s' ordenara
por outrem meu padecer
a quem tanto nam amara
como a vós, nam me penara
ver-me mil vezes morrer.
Mas de quem tem tal rezam
para me remedear
como vós, meu coraçam,
e me deita em perdiçam,
rezam é de m' agravar.
De quem me posso doer,
de quem me posso agravar,
se ninguem nam tem poder
para leedo me fazer
nem para meu mal dobrar,
senam vós de quem conheço
nam ser bem o vosso bem
para mim, pois que padeço
ũ mal, que nunca o começo
nem o cabo vio ninguem.
Que se fosse de verdade
vosso bem como dizeis,
mudarieis a vontade
para haverdes piadade
de quanto mal me fazeis.
Mas cuidai que quem bem quer
nam no pode encobrir
por muito mais que souber,
que nas obras que fizer
s' haa logo de descobrir.
Assi, vós, minha senhora,
nam tendes rezam que dar
para ser de culpa fora,
pois vós soo sois causadora
de meu mal sempre dobrar.
E tendo vós soo poder
de descansar meu desejo,
nam quereis nunca fazer
como possa leedo ser
e fazeis-me o mal que vejo.
Cabo.
E pois que tendes sabido
aquestas cousas que digo,
folgo ser por vós perdido.
Se fosse favorecido
quem poderia comigo?
Senhora de minha vida,
doa-vos meu padecer,
pois que jaa sempre querida
haveis de ser e servida
de mim, enquanto viver.
854
GARCIA DE RESENDE A ESTE
MOTO QUE LHE MANDOU
ESTA MOLHER:
Milhor fee que gualardam.
Que causeis meu padecer,
que dobreis minha paixam,
que me lanceis a perder,
contudo sempr' hei-de ter
milhor fee que gualardam.
Que viva com gram cuidado
mais triste que a tristeza,
que seja mais desamado,
nam hei-de ser apartado
de sofrer vossa crueza.
Que nunca tenha prazer,
que sempre tenha paixam,
que folgueis de me perder,
nam hei-de deixar de ter
melhor fee que gualardam.
855
GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER,
QUE VEO ESTAR ŨS DIAS COM Ũ
DOENTE POR QUEM FAZIA MIL
DEVOÇÕES E DISSE-LHE A
ELE QUE AO OUTRO DIA
SE HAVIA D' IR.
Senhora:
Ouvi-vos ontem dizer
qu' estaveis para vos ir:
quero-vos fazer saber
que fazeis em o fazer
cousa que s' haa-de sentir
muito de nós, os enfermos,
que saude recebemos
com vossa conversaçam.
E se aquisto nam temos,
tristes de nós que faremos
senam morrer de paixam?
Se verdade é tal nova,
dobrar-se-am nossas dores,
mandai-nos fazer a cova,
pois vos is da Porta Nova
à Rua dos Mercadores.
Oh que gram mal, na verdade,
nom quererdes piadade
haver de quem é rezam!
Se nam mudais a vontade,
crede que com saudade
nos lançais em perdiçam.
Para que quereis rezar
nem fazerdes devações?
Que obra podeis obrar,
que seja mais de louvar,
que tirardes mil paixões
a quem nunca noite e dia
ũa hora d' alegria
poderaa ter sem vos ver,
a quem ensandeceria
e com nojo morreria
fora do vosso poder?
Cabo.
Se logo nam revogais
a sentença nũ momento,
ouvireis fazer sinais
que fazem polos mortais
e depois o sahimento.
Rezareis mil orações
polos nossos corações,
que vós fizestes morrer
com muitas trebulações
e grandissimas paixões,
que nam podeeram sofrer.
856
CANTIGA SUA.
Folgo bem, pois que conheço
que folgais de dar paixam
a mim, que nam vos mereço,
por quantos males padeço,
dardes-m' este gualardam.
Que sempre viva penado
co este conhecimento,
fica-me contentamento
em saber que tal tormento
me dais sem ser eu culpado.
Porque soo o que padeço
é tanto que com rezam
me deveis, e vos mereço,
dardes a meu bem começo
e fim a tanta paixam.
857
CANTIGA SUA, DESAVINDO-SE
D' ŨA MOLHER.
Pois tanto prazer levais
em me fazer sempre mal,
errarei se fizer al
senam o que desejais.
Desejais nam vos servir
e folgais de me perder,
desejais nunca me ver
e muito mais nam m' ouvir
senam cantar e tanger.
E pois isto confessais,
inda que me venha mal,
errarei se fizer al
senam o que desejais.
858
Los mis ojos toda hora
nunca cessaran lhorando
hasta que torne, senhora,
donde parto sospirando.
No cessaran de lhorar
partida tan sin plazer,
dolor que no tiene par
seren lexos de mirar
vuestro gentil parecer.
¡Oh quanto mejor les fuera,
quando parti sospirando,
perder la vida nũ hora
por no bivieron lhorando!
859
GROSA SUA A
ESTE MOTO
D' ŨA SENHORA.
Ja nunca seraa mudado.
Mil vezes meu coraçam
me tem dito e afirmado
qu' inda que lhe deis paixam
ja nunca seraa mudado.
Porqu' ee tanto sem medida.
o grande bem que vos quer,
que por vós serdes servida
mil vezes perdera a vida,
sem se nunca arrepender.
Quem disto nam tem paixam,
que lhe deis sempre cuidado,
que o mateis sem rezam,
ja nunca seraa mudado.
860
GROSA SUA A ESTE MOTO:
Cada dia e cada hora.
Vossa pouca fee, senhora,
e vossa gram crueldade
me matam sem piadade
cada dia e cada hora.
Porque s' algũa firmeza
tivesseis no coraçam,
nam me darieis paixam
nem sempre mal e tristeza.
Mas o nam crerdes, senhora,
que vos quero de verdade,
vos faz mudar a vontade
cada dia e cada hora.
861
TROVAS
QUE GARCIA DE RESENDE
FEZ À MORTE DE DONA INES DE CAS‑
TRO, QUE EL-REI DOM AFONSO, O
QUARTO DE PORTUGAL, MATOU
EM COIMBRA, POR O PRINCIPE
DOM PEDRO, SEU FILHO, A
TER COMO MULHER E POLO
BEM QUE LHE QUERIA NAM
QUERIA CASAR, ENDE‑
RENÇADAS ÀS DAMAS.
Senhoras, s' algum senhor
vos quiser bem ou servir,
quem tomar tal servidor
eu lhe quero descobrir
o gualardam do amor.
Por sua mercê saber
o que deve de fazer,
vej' o que fez esta dama,
que de si vos daraa fama,
s' estas trovas quereis ler.
Fala Dona Ines.
— Qual seraa o coraçam
tam cru e sem piadade,
que lhe nam cause paixam
ũa tam gram crueldade
e morte tam sem rezam?
Triste de mim, inocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fee, amor
ò Princepe, meu senhor,
me mataram cruamente!
A minha desaventura,
nam contente d' acabar-me,
por me dar maior tristura
me foi pôr em tant' altura
para d' alto derribar-me.
Que, se me matara alguem
antes de ter tanto bem,
em tais chamas nam ardera,
pai, filhos nam conhecera
nem me chorara ninguem.
Eu era moça, menina,
per nome Dona Ines
de Crasto e de tal doutrina
e vertudes qu' era dina
de meu mal ser ò revés.
Vivia sem me lembrar
que paixam podia dar
nem dá-la ninguem a mim.
Foi-m' o Princepe olhar
por seu nojo e minha fim!
Começou-m' a desejar,
trabalhou por me servir,
Fortuna foi ordenar
dous corações conformar
a ũa vontade vir.
Conheceo-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele,
perdeo-me, tambem perdi-o,
nunca tee morte foi frio
o bem que triste pus nele.
Dei-lhe minha liberdade,
nam senti perda de fama,
pus nele minha verdade,
quis fazer sua vontade
sendo mui fremosa dama.
Por m' estas obras pagar
nunca jamais quis casar,
polo qual aconselhado
foi El-Rei qu' era forçado,
polo seu, de me matar.
Estava mui acatada
como princesa servida,
em meos paços mui honrada,
de tudo mui abastada,
de meu senhor mui querida.
Estando mui de vagar,
bem fora de tal cuidar,
em Coimbra d' assessego,
polos campos de Mondego
cavaleiros vi somar.
Como as cousas qu' ham-de ser
logo dam no coraçam,
comecei entresticer
e comigo soo dizer:
— Estes homeens donde iram?
E tanto que preguntei,
soube logo que era El-Rei.
Quando o vi tam apressado,
meu coraçam trespassado
foi que nunca mais falei!
E quando vi que decia,
sahi à porta da sala;
devinhando o que queria
com gram choro e cortesia
lhe fiz ũa triste fala.
Meus filhos pus derredor
de mim, com gram homildade,
mui cortada de temor
lhe disse: — Havei , Senhor,
desta triste piadade!
Nam possa mais a paixam
que o que deveis fazer,
metei nisso bem a mam,
qu' ee de fraco coraçam
sem porquê matar molher.
Quanto mais a mim, que dam
culpa, nam sendo rezam,
por ser mãi dos inocentes
qu' ante vós estam presentes,
os quaes vossos netos sam.
E têm tam pouca idade,
que, se nam forem criados
de mim, soo com saudade
e sua gram orfindade
morreram desemparados.
Olhe bem quanta crueza
faraa nisto Voss' Alteza
e tambem, Senhor, olhai,
pois do Princepe sois pai,
nam lhe deis tanta tristeza.
Lembre-vos o grand' amor
que me vosso filho tem
e que sentiraa gram dor
morrer-lhe tal servidor
por lhe querer grande bem.
Que s' algũ erro fizera,
fora bem que padecera
e qu' estes filhos ficaram
orfãaos, tristes, e buscaram
quem deles paixam houvera.
Mas pois eu nunca errei
e sempre mereci mais,
deveis, poderoso Rei,
nam quebrantar vossa lei,
que, se moiro, quebrantais.
Usai mais de piadade
que de rigor nem vontade,
havei doo, Senhor, de mim,
nam me deis tam triste fim,
pois que nunca fiz maldade.
El-Rei, vendo como estava,
houve de mim compaixam
e vio o que nam oulhava:
qu' eu a ele nam errava
nem fizera traiçam.
E vendo quam de verdade
tive amor e lealdade
oo Princepe cuja sam,
pôde mais a piadade
que a determinaçam.
Que se m' ele defendera
qu' a seu filho nam amasse
e lh' eu nam obedecera,
entam com rezam podera
dar-m' a moorte qu' ordenasse.
Mas vendo que nenhũ hora
des que naci ategora
nunca nisso me falou,
quando se disto lembrou,
foi-se pola porta fora,
Com seu rosto lagrimoso,
co proposito mudado,
muito triste, mui cuidoso,
como rei mui piadoso,
mui cristam e esforçado.
Ũ daqueles que trazia
consigo na companhia,
cavaleiro desalmado,
detras dele mui irado
estas palavras dezia:
— Senhor, vossa piadade
é dina de reprender,
pois que sem necessidade
mudaram vossa vontade
lagrimas d' ũa molher!
E quereis qu' abarregado,
com filhos como casado
estê, Senhor, vosso filho!
De vós mais me maravilho
que dele qu' ee namorado!
Se a logo nam matais,
nam sereis nunca temido
nem faram o que mandais,
pois tam cedo vos mudais
do conselho qu' era havido.
Olhai quam justa querela
tendes, pois por amor dela
vosso filho quer estar
sem casar e nos quer dar
muita guerra com Castela.
Com sua morte escusareis
muitas mortes, muitos danos;
vós, Senhor, descansareis
e a vós e a nós dareis
paz para duzentos anos.
O Princepe casaraa,
filhos de bençam teraa,
seraa fora de pecado,
qu' agora seja anojado,
amenhã lh' esqueceraa.
E ouvindo seu dizer,
El-Rei ficou mui torvado
por se em tais estremos ver
e que havia de fazer
ou ũ ou outro forçado.
Desejava dar-me vida
por lhe nam ter merecida
a morte nem nenhũ mal,
sentia pena mortal
por ter feito tal partida.
E vendo que se lhe dava
a ele tod' eesta culpa
e que tanto o apertava,
disse aaquele que bradava:
— Minha tençam me desculpa.
Se o vós quereis fazer,
fazei-o sem mo dizer,
qu' eu nisso nam mando nada,
nem vejo eessa coitada
por que deva de morrer.
Fim.
Dous cavaleiros irosos,
que tais palavras lh' ouviram,
mui crus e nam piadosos,
perversos, desamorosos,
contra mim rijo se viram.
Com as espadas na mam
m' atravessam o coraçam,
a confissam me tolheram.
Este é o gualardam
que meus amores me deram!
Garcia de Resende às damas.
Senhoras, nam hajais medo,
nam receeis fazer bem,
tende o coraçam mui quedo
e vossas mercês veram, cedo
quam grandes beens do bem vem.
Nam torvem vosso sentido
as cousas qu' haveis ouvido,
o porqu' ee lei de deos d' amor:
bem, vertude nem primor
nunca jamais ser perdido.
Por verdes o gualardam
que do amor recebeo,
porque por ele morreo,
nestas trovas saberam
o que guanhou ou perdeo:
nam perdeo senam a vida,
que podeera ser perdida
sem na ninguem conhecer,
e guanhou por bem querer
ser sua morte tam sentida.
Guanhou mais que sendo dantes
nom mais que fermosa dama,
serem seus filhos ifantes,
seus amores abastantes
de deixarem tanta fama.
Outra moor honra direi:
como o Princepe foi rei,
sem tardar, mas mui asinha,
a fez alçar por rainha,
sendo morta o fez por lei.
Os principais reis d' Espanha
de Portugal e Castela
e Emperador d' Alemanha,
olhai, que honra tamanha,
que todos decendem dela.
Rei de Napoles tambem,
Duque de Bregonha, a quem
todo França medo havia
e em campo El-Rei vencia,
todos estes dela vem.
Por verdes como vingou
a morte que lh' ordenaram,
como foi rei trabalhou
e fez tanto que tomou
aqueles que a mataram.
A ũ fez espedaçar
e ò outro fez tirar
por detras o coraçam.
Pois amor daa gualardam,
nam deixe ninguem d' amar!
Cabo.
Em todos seus testamentos
a decrarou por molher
e por s' isto melhor crer
fez dous ricos moimentos
em qu' ambos vereis jazer:
rei, rainha, coroados,
mui juntos, nam apartados,
no cruzeiro d' Alcobaça.
Quem poder fazer bem faça,
pois por bem se dam tais grados.
862
GARCIA
DE RESENDE, INDO PARA RO‑
MA, VEO A MALHORCA COM GRANDES
TORMENTAS E VIO ŨA GENTIL DAMA,
QUE CHAMAVAM DONA ESPERANÇA
E ANDAVA VESTIDA DE DOO. E
FEZ-LHE ESTE VILANCETE E
MANDOU-LHO, ENTOADO
TAMBEM PER ELE.
¿Que me quieres, Esperança?
¿Aqui me vienes buscar
por me más desesperar?
Pensava que me tenias
del todo ya olvidado
y aqui diste a mis dias
sobre males mal dobrado.
Seraa triste mi nembrança,
pues te halhé sin te buscar
para más desesperar.
De mi vida descontento,
de mis tierras apartado,
por la mar del pensamiento
em las ondas del cuidado,
com tormentas d' olvidança
me fiziste aqui portar,
por más me desesperar.
Las velas de mi querer,
rotas por te no mirar
contra razon fui dobrar
el cabo de padecer.
Pairando mucha dudança,
em las aguas de lhorar
te halhé por más penar.
Cabo.
Luego vi que mi tristura
havia más de crecer,
pues vi tu linda fegura
por mi mal luto traer.
Como te vi, Esperança,
vi que m' havias de dar
sobre pesares pesar.
863
GARCIA
DE REESENDE AO SECRETA‑
RIO QUE LHE DISSE, PORQUE TANGEO
E CANTOU MUITO BEM, QUE LHE DA‑
RIA DOUS PARES DE PERDIZES PERA
O PAPO E PERA AS MÃOS DOUS PA‑
RES DE LUVAS E QUE MANDASSE
A SUA CASA POR TUDO. E MAN‑
DOU COM ESTA COPRA.
A voz é para pedir
e as mãos para tomar,
vós, senhor, sois para dar
mil cousas afora rir.
O riso nam mo mandeis,
porque jaa cá tenho muito,
o al mandai e dareis
de bo' arvore bom fruito.
De Pedr' Alvarez Marreca
a Garcia de Resende,
sobre esta trova.
A voz é para ouvir,
as mãos sam para tocar,
o ventre para esperar
pola hora do parir.
O rostro para estar
à porta de boticairo
em panela ou alguidar,
com sabam azul do Cairo.
Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.
Galga magra de ganir,
fisico que quer preegar,
cabra morta d' espirrar,
judeu d' Alcacer Quebir.
Corretor sem cavalgar,
clerigo gram lapidairo
e confrade do rosairo
preso por adevinhar.
864
DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA
A GARCIA DE RESENDE.
Vós nesse vosso buraco,
de qu' estais muito contente,
pareceis o ladram Caco
ou giofre do gram dente.
Pareceis usso empalado,
touro cevado em lameiro
ou paio mui recheado,
dependurado em fumeiro.
Garcia de Resende a Joam Rodri‑
guez de Saa polos consoantes.
Galante trazido em saco,
mandado cá em presente,
pareceis catelam fraco
que foi d' amores doente;
valenceano molhado
e cabrito com sombreiro
ou cristos desensoado,
que dança a som de pandeiro.
Outra de Joam Rodriguez de Saa
polos consoantes.
Embaixador do Valaco
d' el-rei d' Hongria parente,
atabaque de deos Baco,
almofreixe de semente,
charamelam alporcado,
gram palheiro todo inteiro
e o certo sol tendeiro
a que fostes apodado.
Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.
Pareceis frangam velhaco
e bacharel d' oriente
e cerva com olho zarco
ou galga com dor de dente;
aragoes refinado,
doce, galante sergueiro,
castelhano perfumeiro,
musico acairelado.
865
ALVARO
DE SOUSA, PAJE DA LANÇA
D' EL-REI, E RUI DE MELO, ALCAIDE‑
-MOOR D' ELVAS, E ALVARO BAR‑
RETO E FRANCISCO DA CUNHA E
FRANCISCO HOMEM, ESTRIBEIRO‑
-MOOR D' EL-REI, E MANUEL
CORREA, ESTANDO JUNTOS
NŨA POSADA EM ALME‑
RIM, MANDARAM ESTES
MOTOS A GARCIA
DE RESENDE.
Senhor, pedimos a vossa mercê
que veja estes motos e por aqui
vereis quam pipa sois.
À senhora dona bandouva peço,
por mercê, que me responda:
Pareceis-me almofreixe
prima mudado no ar.
Ao senhor arco das velhas,
que sam os feixes d' alagar
dos braços, peço, por mercê,
que me responda:
Pareceis atabaque felpudo,
que vai polo virote.
Ao senhor viso-rei das enxundas
peço, por mercê, que me
responda:
Pareceis bufo embaçado
que luitou em eira.
Ao senhor trilhoada d' embigos
peço, por mercê, que me
responda:
Pareceis tonel passareiro.
Reposta de Garcia de Resende
a todos estes senhores, por
comprir seu mandado.
A Alvaro de Sousa, paje da
lança.
Cristam novo, page velho,
filho d' abade ou doutor,
doce mais que ũ cantor,
morto ò paao como coelho.
Galante de moesteiro,
douda andrina d' andadura,
castelhano sem fressura,
cristos molhado em ribeiro.
A Rui de Melo,
alcaide-mor
Meu senhor alcaide-mor,
dizei-me s' ee isto graça,
convosco nam sei que faça,
porque m' acho sem sabor.
Eu dissera algũa cousa
por vos nam irdes em vam
e porem deitai a mãao
desta d' Alvaro de Sousa,
vosso primo com irmãao.
A Alvaro Barreto.
Galante godo meci,
e doutra parte badana,
pareceis Madril Mangana,
qu' ensina a bailar aqui.
Nessa vossa fremosura
quem acharaa que dizer,
pois soes doce para ver
e todo al é pintura.
A Francisco da Cunha.
A meu senhor bacharel
com irmãa ama no paço,
pulga doente do baço,
capelanzinho d' anel,
pareceis gozo adaiam
com dous dedos de latim
e podengo escrivam,
que vende tinta roim
em Almeirim.
A Manuel Correa.
Senhor galante, listrado
como manta d' Alentejo,
doutrem doente vos vejo
de qu' andais barbialçado.
Fostes cá trazido d' Ilha
como libree que nam filha
e em novo foi ardido,
pareceis galan valido
del tiniente de Sevilha.
A Francisc' Homem,
estribeiro-moor.
Sindeiram valenceano
a qu' as tripas rugem muito,
pareceis judeu sem fruito,
grande enxerto deste ano.
Fostes nacido em paul
e criado em lezira,
calçado de toda vira,
com gram balandram azul.
866
DE
GARCIA DE RESENDE A JOAM
FOGAÇA, QUE LHE NAM QUERIA
MANDAR TROVAS SUAS.
Se cuidais que defender
acrecenta mais desejo,
nam s' haa nisto d' entender,
que ha-de ser
no que jaa fazeis com pejo.
Por isso sem mais tardar
m' haveis, senhor, de mandar
vossas trovas, quantas sam,
e se nam
guardai-vos do meu trovar,
que daa cos homeens no cham.
Reposta de Joam Fogaça.
Senhor, nam tenho lembrança
de cousa que ja fizesse
mais do que se faz em França,
porque, se o eu soubesse,
di-lo-ia sem tardança.
Ò gram comendador-moor
me lembra ũa que fiz,
a qual diz.
867
DE GARCIA DE RESENDE AO CONDE
PRIOR, MORDOMO-MOOR, COM ŨA
CERTIDAM DE RUI DE FIGUEIRE‑
DO, DO ORDENADO QUE HOUVE,
QUANDO FOI A ROMA, PERA
LHE DAREM A MORADIA
DO TEMPO QUE LAA
MAIS ANDOU.
Filhos do embaixador,
Garcia de Saa e eu
e rei d' armas Portugal,
a todos El-Rei nos deu
ũ ordenado, senhor,
e inda mal.
Nem mais nem menos ũ dia
do que a eles fostes dar
me ha, Vossa Senhoria,
de despachar.
Reposta do Conde
polos consoantes.
Vós sois mui gram trovador,
senhor, e amigo meu
e galante natural.
E porem queria eu
ver d' El-Rei nosso Senhor
ũ sinal
para haverdes moradia,
porqu' eu nam posso mandar
por esta soo portaria,
sem errar.
868
DE GARCIA DE RESENDE A JORGE
DE VASCONCELOS, PORQUE NAM
QUERIA ESCREVER ŨAS
TROVAS SUAS.
Neste mundo a moor vitoria
que se daa nem pode ter
qualquer pessoa
é ficar dela memoria.
Ora deixai d' escrever
cousa boa!
E olhai que os antigos
davam ò deemo as vidas
soo porque falassem neles,
e nós, por sermos imigos
de nós, temos esquecidas
mil cousas moores qu' as deles!
869
DE GARCIA DE RESENDE A BRAS
DA COSTA COM ŨU JUSTO,
POLO ACRECENTAMENTO
DE CAVALEIRO.
Polo qu' eu fiz pecador,
padeç' agora esse justo,
laa vo-lo mando, senhor,
se lhe nam tendes amor
far-vos-á parte do custo.
E em pago do marteiro
qu' a minha bolsa sentio,
m' assentai por cavaleiro,
pois o sam mui verdadeiro
de Cristos que nos remio.
Reposta de Bras da Costa.
Eu vos mando ũa nova,
que seja d' homem rebusto
e tambem por ter bom custo,
que folguei mais com o justo
que co a trova.
E ũa cousa vos digo,
pois que tanto a corte sigo,
compre ter pessoa leda
e quer d' amigo quer de inmigo
eu folgo com a moeda.
870
GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER, QUE LHE DAVA
ŨA CULPA.
Senhora, deveis cuidar,
pois vos Deos fez tam fermosa,
que nam foi por nos matar,
mas por culpas perdoar
e ser muito piadosa.
Olhai bem que vos mereço,
por camanho bem vos quero,
mais descanso do qu' espero,
menos mal do que padeço.
E se vos isto lembrar,
nam sereis despiadosa
para quem podeis matar,
mas sereis no perdoar
como soes em ser fermosa
871
TROVA SUA A DIOGO DE MELO,
QUE PARTIA PERA ALCOBAÇA
E HAVIA-LHE DE TRAZER DE
LAA Ũ CANCIONEIRO D' Ũ
ABADE QUE CHAMAM
FREI MARTINHO.
Decorai polo caminho,
té chegardes ò moesteiro,
qu' ha-de vir o cancioneiro
do abade Frei Martinho.
E s' esperardes de vir
sem mo mandardes trazer,
podeis crer
que quem tinheis em poder
para sempre vos servir
olhos que o viram ir...
872
GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER QUE DISSE QUE ELE
RIA MUITO.
Tem-me tam morto o cuidado,
que me faz jaa nam sentir,
e de muito trasportado
em vez de chorar vou rir.
Que se meu mal me lembrar
como me lembrais, meu bem,
meu prazer será chorar,
pois tam fora de cuidar
estaa em mim quem me tem.
E pois sam tam trasportado
que jaa nam tenho sentir,
quem me vir folgar ou rir
crea qu' ee de mor cuidado.
873
OUTRA SUA, DECRARANDO-SE
COM ŨA MOLHER.
Nam hei por vida a passada,
pois passou sem vos servir,
hei por boa a qu' ha-de vir,
pois vo-la jaa tenho dada.
E nam cuideis qu' ee d' agora
este mudar de viver,
que foi sempre e ha-de ser
serdes vós minha senhora.
Mas andou assi calada
minha vida em vos servir,
enquanto pôde fengir:
j' agora nam pode nada.
874
TROVAS SUAS A ESTE VILANCETE:
Mira, gentil dama,
el tu servidor
como está tam triste
com tanto dolor.
Mira que mereço
no ser desamado
ni tan olvidado,
pues tanto padeço.
Y pues con dolor
mi vida te lhama,
mira, gentil dama,
el tu servidor.
Pues tu hermosura
causó mi dolor,
mira mi tristura
y tu disfavor.
No trates peor
el que más te ama,
mira, gentil dama,
el tu servidor.
875
CANTIGA SUA.
Vivo jaa desesperado,
de viver nunca contente,
porque quem me daa cuidado
nam no sente.
De mim nam tem sentimento
nem daa que tenha paixam,
antes tem contentamento
em m' agravar sem rezam.
Assi triste afortunado,
da vida sam descontente,
porque quem me daa cuidado
nam no sente.
876
GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER, A QUE DISSERAM
QUE ELE QUERIA BEM A
OUTRA.
Senhora, nam é rezam
que por dito de ninguem
nam queirais quem vos quer bem.
Mas é bem que conheçais
quem por vós é mais perdido
e se vos tem bem servido
nam no desfavoreçais;
e tambem que nam creais
senam que quem vos vir bem
nunca mais veraa ninguem.
877
TROVAS SUAS A ESTE VILANCETE:
S' hay alguna neste mundo
que yo ame más que a vos,
mal me lo demande Dios.
E pois que tendes sabido
qu' em mim nam cabe mudança,
senhora, dai-m' esperança
e seja de mais perdido.
Que se nunca arrependido
fui de me perder por vós,
mal me lo demande Dios.
Outra sua.
Tenho jaa esta firmeza
tam firme no coraçam
que me nam daa jaa paixam
ter por vós sempre tristeza.
Se desfavor nem crueza
me pod' apartar de vós,
mal me lo demande Dios.
878
DE
GARCIA DE RESENDE A RUI
DE FIGUEIREDO POTAS, ESTAN‑
DO DETREMINADO PERA SE
METER FRADE.
Pois trocais a liberdade
por viver sempre sojeito,
sem haverdes saudade
dos amigos de verdade
vossos sem nenhũ respeito;
s' estais, senhor, de partida
para entrar em nova vida,
tomai isto que vos digo,
como d' um vosso amigo
grande, fora de medida.
Se determinais vestir
havito com seu cordam,
nam haveis nunca de rir
no moesteiro nem bolir,
qu' ee sinal de devaçam.
Diornal e breviairo,
contas pretas e rosairo
trazei de cote na mam,
sem rezardes oraçam
a santo do calandairo.
S' i houver deceprinar,
i com grande devaçam,
e depois da casa estar
às escuras, açoutar
rijo, mas seja no cham.
Ameude sospirar,
que todos possam cuidar
qu' ee de muito marteirado.
Assi estareis poupado
sem vos da regra tirar.
Haveis sempre de mostrar
que andais mui mal desposto
por do coro escapar,
qu' ee gram trabalho rezar
a quem nisso nam tem gosto.
E à mesa gejumhar,
que façais todos pasmar!
Mas tereis em vossa cela
mantimento sempre nela
com que possais jarrear.
Tereis nela putarram
que seja do vosso geito;
se bater o guardiam
à porta, dar-lhe de mam
para debaixo do leito.
Se vos achar suarento
dizei que vosso elamento
é estar dessa maneira:
esta regra é verdadeira
e o al tudo é vento.
Tereis de sô o colcham
jibam e calças de malha,
casco, luvas, burquelam,
punhal e espadarram,
chuça e ũa navalha,
escada de corda boa,
que suba e deça a pessoa
segura de nam quebrar;
cabeleira nam errar
para cobrir a coroa.
Como s' a lũa poser,
sahireis desse fadairo
vestido como faz mester,
porque entam haveis de ler
polo vosso calandairo.
Por segurar o caminho,
sede amigo do meirinho
e do alcaide tambem,
que nam queiram por ninguem
tomar-vos no vosso ninho.
Pobreza e castidade
e tambem obediencia
dareis à comonidade,
mas nam tereis caridade,
verdade nem paciencia.
Trabalhai muito por ir
de cas em cas a pedir
cos olhos postos por terra,
porque assi se faz a guerra
melhor que com bom servir.
Para melhor vos salvar
sede mui mexeriqueiro,
d' ũs e doutros mormurar
e o guardiam louvar
em tudo mui por inteiro.
Falai manso e devagar
e s' houverdes de rezar
seja alto e de maa mente
e fazei-vos mui ciente
por molheres confessar.
Se vos mandarem cavar,
aguar arvores ou varrer,
ser forneiro ou cozinhar,
ou os havitos lavar,
começai logo gemer
e dizei: — Padre, eu sam
de tam fraca compreissam
que nam digo trabalhar,
mas, s' um pouco m' abaixar,
cahirei morto no cham.
Cabo.
Isto podereis fazer,
mas o bom que a vida tem
nam no haveis vós de sofrer;
por isso, antes de ser
frade, conselhai-vos bem:
porque quanto bem merece
pola vida que padece
o bom frade vertuoso,
tanto o mao relegioso
torna atras e desmerece.
879
TROVAS
QUE AFONSO VALENTE
FEZ EM TOMAR A GARCIA
DE RE‑
SENDE, SEM LHAS MANDAR.
Pareceis-me lũa cris,
primo com irmão de bruto,
pareceis roxo bauto
doente de prioris;
sacabuxa, irmão de Jaques,
muito farto de bordões
e tanje tudo com traques,
homem que faz almadraques
ou seirões.
Albergue de frorentins
que se pagam de cidram,
homem farto de coxins,
recheados de cotam.
Pareceis devinhaçam,
pareceis ũa façanha,
tapeceiro do soldam,
quer gigante rebordam
como castanha.
Dizem que tangeis laud
e tocais bem os bemoles
e pousais em retrapoles
abaixo de gamaud.
Se tangeis por bequadrado,
enflamado como chama,
pareceis odre apojado
como mama.
Tendes cousas mui agudas,
Anrique Homem por tal via
e caís ambos num dia
como Sam Simam e Judas.
Fostes feito em Bozeima
e criado em Trapisonda,
soes tremelegua na onda
composto todo de freima.
Pareceis de sul sospiro,
bandouva de toda vira,
pareceis quartao que tira
e por fundo faz o tiro.
Pareceis alam que ladra
sobre farto sonorento,
pareceis cabo d' esquadra
de tres mil odres de vento.
Ou soes vaso ou atambor
nalguas bochechas do sul
ou tanho comendador
nado, feito no paul.
Pareceis grande meloa
de parto no mes d' Agosto,
arreboles de sol posto,
gram larada de boroa.
Pareceis canicolar
de todo ano bissesto
e soes o mesmo teisto
do plurar.
E tambem soes sengular
na massa feiçam de cuba
ou gram bebado d' estuba,
nua posta ao luar.
Pareceis mui grande rol
de grifos mui esfaimados,
albarda, molher de prol,
muito chea de bordados;
guia de dança d' espadas,
gram malassada d' estopas,
guia de dança de copas
todas cheas, arrasadas.
Nam digo mais por agora,
porque s' agrava o tinteiro,
por vos morrer o praceiro,
que era prior crasteiro
de Sam Vicente de Fora;
senam que soes enfenito
para dar prazer e rir
e protesto, se comprir,
repricar e dar no fito.
Pareceis ũ pouco o farto
pregador da vida eterna,
grega bebada de parto
antre cubas em taverna.
Bentas sejam de Balam
as fadas que vos fadaram,
as tetas que vos criaram,
qu' assi vos empetrinaram
para momo no seram,
Onde todos bem veram
vossa groria, vossa fama,
e caber-vos-á por dama
ũa saca d' algodam
e por tocha ũ gram tiçam.
Pareceis, segum m' esforça
esta em que vos enforco,
farmenga que tanje em çorça,
laude com pee de porco.
Soes alteroso da banha
mais que urca dos castelos,
urca digo d' Alemanha,
ou fazeis prova d' aranha
sobre farto de farelos.
Por nam dar polos cabelos,
quero logo dizer tudo,
pareceis tecelam mudo
em choco sobre novelos.
E porque melhor vos louve
de louvor mui soverano,
pareceis homem morciano
como couve.
E por dar melhor d' agudo
e vos nam maçar do coto,
agudo todo no boto,
tambem tocais de tronchudo.
Pareceis-me segum maço
nas esporas mui sofrido,
pareceis mui gram inchaço
que naceo a esse paço
de sobraço
de que anda mal sentido.
Pareceis de Lombardia,
posto que sejais de Grecia,
pareceis lioa neicia,
criada na ucharia.
Pareceis mais de setenta
cousas posto em gibam
e caís no horizam
d' ũ gram fardo de pimenta;
monje çujo d' Alcobaça,
patriarca de Veneza,
pareceis de Su' Alteza
ancho porteiro de maça.
Gram lavoira se vos perde,
porque vai em tal ensejo
vosso cu de verde a verde
como o Tejo.
Is cobrindo toda a ponte,
as leziras nom desfaço,
os lombos de monte a monte
sem parecer espinhaço.
Pareceis moura alfenada
qu' adevinha pola mão,
pareceis bufa calada
do levante no Verão.
Detras de Sam Nicolao
em alto graao,
vos vi eu nũa alta dança
com essa pança mui atento
e o som era de vento
e a mudança.
Vi-vos na feira d' Enves
a tanger mui grandes trombas
e vi-vos ler d' ũ conves
de cadeira a duas bombas.
Gram Sam Joam barba d' ouro,
barraxa, senhor da serra,
pareceis filho de touro
e de faca d' Ingraterra.
Nem soes carne nem soes pexe,
menos proveito nem dano,
senam mala ou almofreixe
de sobrano.
Soes o numero de cento
sem minguar ũ soo ceitil,
soes b grego tamboril
da crasta deste convento.
Todas estas cousas sam,
nam queirais al entender,
senam qu' aperteis a mam
ao comer,
porque vos is a perder.
Tirai-vos de tanto vicio,
ilhargas, banhas d' atum,
fazendo algũ exercicio
pola menham em jejum.
E quando fordes gentar
carrilhos frescos d' empada,
será vosso começar
em vara d' Irlanda assada.
E depois no acabar,
por vacuar
a freima todo no fundo,
ũa posperna do mundo
comereis para atestar.
E por cear leevemente
pera entrardes em feiçam,
ũ berneo cozido quente
comereis alto seram.
E deveis-vos de guardar
de saltar e andar contento,
porque vos pode quebrar
a linha do franzimento.
E depois de bem comprida
esta receita que digo,
ficarei tam vosso amigo
como sam de minha vida,
mas nam ja para calar
o que sinto dessa graça
que tendes de fateiraça
com qu' estou par' estalar.
Cabo.
Quanto mais contempro, cuido
em vossa feiçam e talho,
pareceis-me santo entruido
de parto d' ũ gram chocalho.
Pareceis por aravia
grande covãao de vesugos
e tambem por algemia
asaado de confraria
posto em saia de verdugos.
Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes a todas estas
trovas d' Afonso Valente, que
foi achar sem lhas ele man‑
dar. E vam fora da ordem
por conseguir as suas.
Honrado gozo petis,
redondo podengo curto,
fizestes trovas a furto
aas quaes responder vos quis.
Gato pintado em paarques
antre ussos e liõoes,
piam mui folam em xaques,
bebedinho que daa baques
e rezõoes.
Pusestes-vos nos polins
para vos erguer do cham,
barril que veo dos chins,
coco, bala ou malatam;
soberbo benafaçam,
bacharelzinho d' Idanha
que caça com perdigam,
muito longe d' alemam
e d' Alemanha.
O que soube o Talamud
vos levantaria os foles;
soes feitor de cagaroles,
caimbador de Calecud.
Mulato desorelhado,
que traz para forno rama,
e de muito carregado
jaz na lama.
Tabaliam de tres mudas,
tregeitador de Roxia,
bombardeirinho d' Hungria,
sotil em cousas meudas;
mui rebinchado Çoleima,
que foi çoqueiro de ronda,
cousinha muito redonda
que per si mesmo se queima.
Quisestes dar vosso giro
em trovas por meter vira,
juis de pôr de mentira,
gaiteiro de tiroliro.
Quem vos bem oulhar em quadra,
veraa baixo fundamento,
tereis certo negra ladra,
solorgiam do convento.
Pareceis precurador
que viveo com Vasco Abul
e doudete ambrador
com lobeta aberta azul;
doutor çuro sem pessoa
como bacoro desposto,
de que eu nam tenho gosto
para dizer cousa boa.
Homenzinho de folar
antre passaros mal feito,
pereceis malhãao no geito
e rebolar;
almotacee de Tomar,
vossa fantesia aduba
e é rezam qu' assi suba
quem trabalha por medrar.
Sobre rolda d' Almourol,
cos pees gotosos inchados,
fazeis de noite forol
òs coelhos e veados;
e dais em Tancos pousadas,
remais os batés das popas
e ahi vos tornais sopas
vós e outros com canadas.
Brigoso juiz de fora,
em saber gram malhadeiro,
fisico alcoviteiro,
pareceis honrado odreiro,
homem de cabo de nora.
Vós trazeis algũ esprito
que vos faz tanto bolir,
marrano, que quer pedir
com maas trovas per escrito.
Pareceis curto lagarto,
pintor manco d' ũa perna
e piparote ou quarto,
tinteiro, frasco ou lanterna;
desessegado trotam
em que nunca cavalgaram,
frade que de noit' acharam
e com putam amalharam
em trajos de refiam.
Creleguete gorriam
que com dia busca a cama
e com furia derrama
pichel de vinho no cham
por se fazer rebolam;
gajeiro que vai à orça,
que eu com couces emborco,
tereis latada de norça,
beocos de velho orco.
Gram ouriço de castanha,
moordomo de cogumelos,
pareceis pero d' Espanha,
homenzinho de patranha
de maa feiçam e maos pelos;
siseiro dos cotoselos,
presumis de mui agudo,
confeiteiro rebuludo,
sotil mestre d' abrir selos.
Por mui espantado m' houve
do trovar palenceano,
mas por serdes moucho oufão
me aprouve.
Preegador mui sedeudo
qu' alega sempr' o Ezcoto
e feiticeiro coloto
ou porteiro do estudo.
Malhadeirinho madraço
como cachorro ardido,
vendeirinho, gram tarraço,
prior que faz o rechaço
sobre chumaço,
cristam novo antremetido;
pucarinha de judia
em que tem roim especia
leelo que chamam Lucrecia,
odrete de malvasia.
Gozo morto em tormenta
ou redondo brebegam,
mal desposto foliam
em que todo povo atenta.
Em trovar nam tendes graça,
quereis tocar agudeza,
mas a vossa sotileza
é na taverna ou na praça.
Tod' eesta voss' obra feede
a lee-la, segundo vejo,
siseiro tomando em rede,
bucarejo.
Se vos oulho por defronte,
pareceis mui curto maço
ou gram caldeiram de fonte
e piloto do adarço.
Cangrejo que nam val nada
e quer soster presunçam,
pichel de mea canada,
bilhada, bola ou bulham;
jogral qu' anda em estaao
com berimbaao,
frade doudinho de França
por gram velhaco isento,
qu' a taverna é seu convento
per herança.
Rebolo qu' and' oo revés,
criareis em casa pombas,
odre volto do enves
com pegamaços e rombas;
escaravelho ou bisouro,
qu' em cousas çujas aferra,
pareceis sirgueiro mouro
que sabe pouco da guerra.
Pareceis pequeno feixe
ou roim trouxa de pano
e tecelam de Condeixe
marrano;
lecenceado sem tento
que presume de sotil,
sabereis pulhas cem mil,
trovais çujo e caçurrento.
Rabicurto sancristam,
qu' ensina moços a ler,
e ourivez beberram
que quer ser
alquemista sem saber;
eu vos acho maao endicio
em cuidardes que sois um
em trovar e noutro oficio
e em tudo sois nenhum.
Homenzinho polegar
que com más graças enfada,
judeu qu' ensina a dançar,
pardal com capa e espada.
D' arremedar e trovar
sois em Tomar
outro Roupeiro segundo
e cuidais que sois profundo,
nam tendo mais que palrar.
Pareceis ganso ipotente
ou cerceado tostam,
vereador de Benavente
e rendeiro de carvam.
Bem vos poder' eu matar
soo de puro corrimento
se nam fora por estar
em moores cousas atento.
Homem de curta medida,
recheado como figo,
potezinho que tem trigo
caagado tosam à brida,
trombeta do Lumiar
tam redondo como chaça
e pineu com grande maça
que se quer cũ grou matar.
Cabo.
Aljubeiro quartaludo
mais redondo que ũ alho,
falais, trovais, fazeis tudo
e em fim sois ũ bugalho;
juiz de caldeiraria,
qu' ensina a bailar texugos,
maçam que foi d' agomia
e mestre de geometria
ou batifolha de Burgos.
Trova sua a Afonso Valente,
no cabo destas.
Como gozo sorrateiro
cuidastes que por rasteiro
vos nam podia acertar;
ora olhai ess' apodar
e vereis se sam certeiro.
E quem fez tam mao pesar
de vós, estando em Tomar,
sem errar ũ consoante,
se vos tevera diante,
nunca podera acabar,
e guardar de mais trovar
d' hoje avante.
880
TROVAS FEZ GARCIA DE RESENDE,
POR MANDADO D' EL-REI NOSSO
SENHOR, PARA Ũ JOGO DE CARTAS
SE JUGAR NO SERAM DESTA
MANEIRA: EM CADA CARTA SUA
TROVA ESCRITA E SAM VINTE E
QUATRO DE DAMAS E VINTE E
QUATRO D' HOMEENS, S.: DOZE DE
LOUVOR E DOZE DE DESLOUVOR. E
BARALHADAS TODAS, HAM-DE TI-
RAR ŨA CARTA EM NOME DE
FOÃA OU FOÃO E ENTAM LÊ-LA
ALTO. E QUEM ACERTAR O LOUVOR
IRAA BEM E QUEM TOMAR A DE
MAL RIRAM DELE. COMEÇAM LO-
GO OS LOUVORES DAS DAMAS, OS
QUAES FEZ TODOS AA SENHORA
DONA JOANA DE MENDOÇA.
Nam sei que possa dizer
por vós que seja louvor,
que se tam ousado for,
perderei o entender.
Quando quero começar,
é cousa que nam tem cabo,
antes me quero calar
que cuidarem que vos gabo.
Fermosura tam sobeja
vos deu Deos cá antre nós
que nam sei quem vos bem veja
que se nam perca por vós.
Que nos deis sempre cuidado,
que nos mateis cada hora,
antes de vós desamado
qu' amado doutra senhora.
Pois sois sem comparaçam
de todas quantas naceram,
os que por vós se perderam
bem se perdem com rezam.
E pois nunca vimos tal
nem creo que vio ninguem,
que façais a todos mal,
eu digo que fazeis bem.
Tendes tanta gentileza,
tanto aar na fala e rir,
que quem vos, senhora, vir,
nunca sentiraa tristeza.
Fostes no mundo nacida
com graças tam escolhidas
que soo por vos ter servida
daria duas mil vidas.
Vossas grandes perfeições,
manhas e desenvolturas
tiram todalas tristuras
que acham nos corações.
Vossas penas sam prazer,
vossos cuidados vitoria,
vosso mal é bem fazer
e vosso esquecer memoria.
Quem vos nam vio nam tem vida,
quem vos nam servio, senhora,
pode contar por perdida
toda sa vida teegora.
E quem vir tal fermosura
seja certo qu' ha-de ter,
enquanto viver, tristura,
juntos pesar e prazer.
Do que vós tendes de mais
podeis dar a todas parte
e em vós ficar que farte,
sem falecer o que dais.
Que todas queiram tomar
manhas, graça e parecer
de vós, nam pode minguar
quanto nelas mais crecer.
Dama de tal fermosura,
dama de tal merecer,
o que vive sem vos ver
nam teve boa ventura.
Para qu' ee vida sem vós?
Nem se pode chamar vida!
E se nam foreis nacida,
porque naceramos nós?
Quem vio nunca tal senhora,
quem vio nunca tal molher,
que poode dar, se quiser,
a morte e vida num hora?
Certo nam dirá ninguem
que se vio tal criatura
nem que tal desenvoltura
donzela teve nem tem!
Sois tam linda, tam airosa,
que muitos matais por fama,
ante vós nenhũa dama
nam se chamará fermosa,
porque quantas damas sam
juntas soo nũa fegura
nam teraa comparaçam
ante vossa fermosura.
Se no mundo se perdesse
quanto se pode cuidar,
tudo vós podereis dar
sem que nada falecesse,
porque o qu' em vós sobeja
é tanto qu' abastaria
a mil mundos e teria
cada ũa o que deseja.
Cabo.
Em saber e descriçam
em vertudes e bondade
e em toda perfeiçam,
tendes primor na verdade.
Sois tambem mui piadosa,
amiga de todo bem,
sobretudo a mais fermosa
do qu' ouvio nem vio ninguem.
De deslouvor das damas.
Vós nam sois muito manhosa
nem matais ninguem d' amores,
sois mais fea que fermosa,
tendes poucos servidores.
E o que tam enganado
for que lhe pareçais bem,
ha mester desenganado
de vós mesma ou d' alguem.
Na dança sois muito atada,
no bailo pouco geitosa,
em passear desairosa,
em falar desengraçada.
Sois ũ pouco ja taluda
de tempo pera casar
e nam sois muito aguda
em escrever nem falar.
Pois que por galantaria
nunca haveis de ser condessa,
o meu conselho seria
trabalhar por abadessa:
servireis Nosso Senhor,
tereis certo de comer,
se quiserdes servidor
nam haa laa de falecer.
Pareceis mal em janela,
em serãao muito pior,
sois mais fria e sem sabor
do que nunca vi donzela.
Vós fareis bem d' ensinar
as damas moças a ler,
nam a vestir nem falar,
pois o nam sabeis fazer.
Vós nam sois para senhora
nem menos para terceira,
se me crerdes desd' agora
pareceis jaa mal solteira.
E pois manhas para dama
nam tendes nem parecer,
casai-vos e pode ser
que ainda sereis ama.
Se d' alguem por amizade
vós fosseis desenganada
e vos falasse a verdade,
estarieis na pousada.
Para vós nam é serãao,
dança nem bailo mourisco,
em fea pondes o risco
mais alto que quantas sãao.
Em falar sois enxabida
e em rir desengraçada,
sois mui pouco antremetida,
em responder mui pejada.
Sois tambem desensoada
para dançar tordiam,
quiçá, se foreis vezada,
bailareis bailo vilam.
Nam vos acho nenhũ jeito
para nos matar d' amores,
o corpo nam é bem feito,
as manhas sam sensabores.
Nam sois das mais estimadas
nem menos das mais sabidas,
que muitas sam as chamadas
e poucas as escolhidas.
Nos, senhora, perdoai,
se mal digo, se mal faço
em dizer que vosso pai
fez mal trazer-vos oo paço.
Antes fora bom conselho
meter-vos no Salvador
ou casar-vos cũu doutor,
ainda que fora velho.
Falais com pedras na mão
como que fosseis fermosa
e sois mui presuntuosa
sobre ter maa condiçam.
Nam sois muito bem desposta
nem pareceis muito bem,
se convosco fala alguem,
a todos dais maa reposta.
Senhora, de meu conselho
por viverdes descansada
guardai-vos de ter espelho
nem vos entre na pousada;
que se virdes o que vemos,
direis que temos rezam
de rirmos e de dizermos
que tendes mui maa feiçam.
Cabo.
Sois muito maa de servir
e sois sempre ravinhosa,
nam quereis ver nem ouvir,
tambem tocais de raivosa;
sois soberba, sois infinta,
sois muito forte molher.
S' eu tomar papel e tinta
muito mais hei-d' escrever.
Louvor dos homens.
Sam tam gentil cortesãao,
que s' as cãas me nam vieram,
as damas todas souberam
que dou mate a quantos sãao.
Nam curo de vaidade,
pico-me de gracioso
tambem de falar verdade,
às vezes sam comichoso.
Sam mui negoceador,
falo sempre aa poridade,
tenho muita gravidade,
logo pareço senhor.
Sam sesudo e avisado
e sam gram vesitador
d' oficiaes ou privado,
tambem de qualquer doutor.
Sam mui brando e temperado
e por meus amigos faço,
ando mui acompanhado
da pousada tee ò paço.
A todos respondo bem,
sam gram motejador
e estaa-me bem bedem,
nam sendo cavalgador.
Antre todos cortesãaos
mand' enxergar e ouvir,
sei bem as damas servir,
bulo sempre co as mãaos.
Sam sotil, brando e delgado,
mais universal que todos
e sobr' isso tam honrado
que dou tres figas òs godos.
Sam mui solto no falar,
falo tudo quanto quero,
nam me daa nada de dar
más repostas e ser fero.
Sou na dança mui airoso
e bom musico tambem
e tambem sam gracioso,
mas é à custa d' alguem.
Que me vós vejais calar,
eu trago muito boom jogo,
ando tam perto do fogo
que m' hei nele de queimar.
E por ser muito descreto
me fazem tantos favores,
vai-me sempre bem d' amores,
porque me têm por secreto.
Eu sam mui antremetido
com as damas e senhores
e com todos mui valido
e ando sempre d' amores.
Trago as damas em revolta,
nam me sabem entender
e aa qu' ee mais desenvolta
eessa dou mais que fazer.
Eu sam mui gentil galante
d' idade par' o conselho
e que seja um pouco velho
sam nos amores costante.
E sam mui bom caçador
de toda sorte de caça,
sei bem rir a ũa graça,
sobr' isso bom dançador.
Sam bem desposto e fremoso
e que seja ũ pouco frio
sam em tudo mui manhoso
e em mim muito confio.
Sam das damas servidor,
em muitas cousas sabido,
danço bem, sam trovador
e mais sam muito provido.
Eu prezo-me d' escrever
e dar conselho nũus motos,
sei bem cantar e tanjer,
algũs sam em mim devotos.
E sam prezado das damas,
estimado dos senhores
e com todos meus favores
nam lhe tiro suas famas.
Eu sam muito d' estimar
e assi sam estimado,
porque sei bem apodar
e tambem ser apodado.
Eu sam muito gracioso,
despejado no terreiro,
quero-me fazer pomposo,
nunca falo eescudeiro.
Cabo.
Eu sei bem falar trocado
e dar d' olho oos derredor,
presumo d' andar dobrado,
falo cousas de primor.
Sam destarte zombador
e nam m' acode ninguem,
sam lonje de sensabor,
folgo de parecer bem.
De deslouvor.
Vós nam no tomeis por vós,
mas vós sois tam desairoso
que fareis de qualquer de nós
de sem sabor, gracioso.
De mula e de cavalo
no terreiro e no serãao
sois tam fora de feiçãao
qu' eu ja nam posso calá-lo.
Vós m' entendeis bem, senhor,
quando vestis a lobeta,
que pareceis provisor,
cavalgador da gineta.
Sois um pouco desazado
e nam muito desenvolto,
em manhas nam muito solto,
em dar que rir avezado.
Vossos dias jaa passaram,
logo pareceis passado,
sois das damas enjeitado
e nunca vos enjeitaram.
Sois mais pai que servidor,
sois mais avô que galante,
por isso des hoje avante
deixai as damas, senhor.
Vós andais arrapiado,
nam sabemos s' ee de frio,
e sois jaa tam engelhado
qu' aas damas fazeis fastio.
Se o causa Almeirim
ou estes frios d' agora,
por mercê, crede-m' a mim,
nam enfadeis a senhora.
Que mostreis ser confiado,
nós outros sabemos bem
o qu' ha-de ter ou que tem
o galante namorado.
Sois ũ pouco repinchado,
bom para ver em jubam
e pareceis fradegam,
s' estais desatabiado.
Galante brasfamador
tendes feiçam de varrão,
tam lonje de sensabor
coma perto de malhãao.
Quem isto tomar por si
ha-de ser homem de paço
e jaa eu vejo d' aqui
alguem posto em embaraço.
Porque vindes oo serãao,
porque vos meteis na dança,
pois que pera cortesãao
andais mui longe de França?
Sois mui frio e sem sabor
e sabeis-vos mal vestir,
entam quereis presumir
de galante e dançador.
Vós sois longo e destripado
bem pera folgar de ver,
pareceis grou espantado,
bode morto por comer.
Se vos vier ter aa mão
esta carta por acerto,
quer esteis longe quer perto,
todos vos conhecerãao.
Galante sem se vestir,
namorado sem ter dama,
desavir, tornar a avir,
ele se ama e desama.
Sem ninguem, luita consigo,
ele caae, ele se aalça,
quem olhar isto que digo
veraa de que pee se calça.
Que vos eu pareça assi
nam vou laa nem faço mingua,
que nam solte muito a lingua,
outros piores ha aqui.
Eu nam sei porque nam sam
no paço muito valido,
pois que sam curto e corrido
e tenho gram presunçam.
Vós sois muito enfadonho
e falais sempre de siso
e amostrais-vos medonho
por nos tolherdes o riso.
Mando-vos eu meter medo,
mando-vos arenguear,
qu' haveis d' haver tard' ou cedo
que cous' ee desgravizar.
Cabo.
Vós andais amarlotado,
que sejais muito sabido,
e andeis atabiado,
andais sempre entanguido.
Haveis mester enxugado
ao sol e muito quente
ou muito bem apodado
por dar desprazer aa gente.
DEO GRACIAS.
Acabou-se de empremir o Cancioneiro Geeral, com previlegio do muito alto e muito poderoso Rei Dom Manuel nosso Senhor. Que nenhũa pessoa o possa empremir nem trova que nele vaa, sob pena de dozentos cruzados e mais perder todolos volumes que fizer. Nem menos o poderam trazer de fora do reino a vender, ahinda que lá fosse feito, sô a mesma pena atras escrita. Foi ordenado e emendado por Garcia de Reesende, fidalgo da casa d' El-Rei nosso Senhor e escrivam da fazenda do Principe. Começou-se em Almeirim e acabou-se na muito nobre e sempre leal cidade de Lixboa, per Hermam de Campos, alemam, bombardeiro d' El-Rei nosso Senhor e empremidor, aos XXVIII dias de Setembro da era de Nosso Senhor Jesu Cristo de mil e quinhentos e XVI anos.