Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

 Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende


Edição de base:

GARCIA DE RESENDE. Cancioneiro Geral. Fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias.

Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

VOLUME I

V

Tavoada de todalas cousas que estam neste livro assi em ordem como nele vam e nas cousas de folgar acharam um sinal como este . .

De Diogo de Melo a Aires Telez.        fo. CLXXXII

Trovas e cantigas suas.        fo. CLXXXIII

De Dom Pedro d' Almeida a Dona Briatiz de Vilhana.        fo. CLXXXIII

Trovas e cantigas suas.        fo. CLXXXIIII

De Simão da Silveira, cantigas.       fo. CLXXXIIII

De Jorge de Resende a ũa molher.        fo. CLXXXIIII

Trovas e cantigas suas, desta folha atee às folhas        fo. CLXXXVIII

‡ De Joam da Silveira a Pero Moniz.        fo. CLXXXVIII

Vilancete de Joam da Silveira.        fo. CLXXXIX

De Dom Rodrigo Lobo.        fo. CLXXXIX

D' Alvaro Fernandez d' Almeida.        fo. CLXXXIX

Trovas e cantigas suas.        fo. CXC

‡ De Joam Gomez d' Abreu.        fo. CXC

De Francisco Lopez a ũa molher.        fo. CXCI

Trovas e cantigas suas.        fo. CXCII

De Bernardim Ribeiro.        fo. CXCII

‡ De Pero de Sousa Ribeiro.        fo. CXCIII

‡ Do Baram ao Coudel-mor.        fo. CXCIII

De Simão de Sousa a Dona Caterina de Figueiroo.        fo. CXCIII

Trovas e cantigas suas, desta folha atee        fo. CXCVI

Do Estribeiro-mor, trovas e cantigas suas, desta folha atee        fo. CXCVII

De Francisco Mendez, o frade.        fo. CXCVII

D' Aires Telez a ũa dama.        fo. CXCVIII

Trovas e cantigas suas.        fo. CXCIX

De Duarte de Resende.        fo. CXCIX

D' Antoneo Mendez, lamentaçam.        fo. CC

Trovas e cantigas suas.        fo. CCI

De Diogo Velho da chancelaria.        fo. CCI

D' Anrique da Mota a ũa molher.        fo. CCI

‡ Trovas e cantigas suas.        fo. CCII

Trovas suas a ũ clerigo.        fo. CCIII

‡ Outras suas a ũ alfaiate.        fo. CCIII

‡ Outras suas a ũ hortelam.        fo. CCV

Outras a ũ seu amigo.        fo. CCV

‡ Outras suas a Dom Joam.        fo. CCVI

‡ Outras a ũa mula.        fo. CCVI

‡ Outras suas a Vasco Abul.        fo. CCIX

De Bernardim Ribeiro.               fo. CCXI

De Manuel de Goios ao Conde do Vimioso.        fo. CCXII

Trovas e cantigas suas.   fo. CCXIII

De Francisco de Sousa aa razam.        fo. CCXIII

Trovas suas atee às folhas        fo. CCXV

De Dom Rodrigo aas damas.       fo. CCXV

‡ De Garcia de Resende a Manuel de Goios.     fo. CCXV

Grosa sua a Tempo bueno.        fo. CCXVII

‡ Trovas suas a Rui de Figueiredo.        fo. CCXVII

Trovas e cantigas, desta folha atee        fo. CCXXI

De Garcia de Resende aa morte de Dona Ines de Crasto.        fo. CCXXI

‡ Outras suas a Pedr' Alvarez.        fo. CCXXII

‡ Outras a Joam Rodriguez de Saa.        fo. CCXXII

‡ Motos que mandaram a Garcia de Resende e a reposta sua.        fo. CCXXII

Trovas e cantigas suas.        fo. CCXXIII

‡ Outras a Rui de Figueiredo.        fo. CCXXIIII

‡ D' Afonso Valente a Garcia de Resende e a reposta sua.        fo. CCXXIIII

‡ De Garcia de Resende a ũ jogo de cartas.        fo. CCXXVI

627

DE DIOGO DE MELO DA SILVA,

ESTANDO EM ALCOBAÇA,

A AIRES TELEZ, QU' ES‑

TAVA EM ALMEIRIM.

Se cahi nesta certeza

de vos mandar estas trovas,

foi por me mandardes novas

da corte de Su' Alteza.

Nam tiro fora ninguem,

mandai-me das que teverdes,

mas guai de quem cá nam vem,

que nam fica por seu bem,

dizei vós o que quiserdes.

Dar-vos-ei conta de mim,

nam me tenhais em maa conta,

pois sabeis que tanto monta

estar cá com' em Almeirim.

Digo acerca do medrar

que o vejo laa tam pouco

que deveis de perdoar

a quem tem onde folgar

polo nam terdes por louco.

Trago jaa dous mil vilãaos,

que cá faço cada hora

darem mootes oos de fora

que parecem cortesãaos.

Andam jaa tam ensinados

que mao grado oos do paço,

têm-me fora mil cuidados

que trouxe desesperados.

Isto é o que cá faço.

Tambem, ando acupado

com moça que nam sae fora,

chamo-lh' às vezes senhora,

ela a mim meu namorado.

É marca de ter janeela

põe-se nela para a ver,

tem ũas aguas de donzela

e eu sinto-me par' eela,

sem no sua mãi saber.

Nessas damas laa nam falo

nem tambem nam nas desgabo,

mas com estas cá me calo,

porque logo vêm oo cabo.

Nam quero dama de laa,

qu' ee de sua openiam,

deixai-me co as de caa,

porque nestas, senhor, haa

virem logo aa concrusam.

S' algũ hora vou aa caça,

mando chamar caçadores,

outras horas pescadores,

tudo haa em Alcobaça.

Todos mandam aa vontade

sem andar aa de ninguem.

Julgai isto de verdade,

de qu' haa-d' haver saudade

quem esta vida caa tem?

Tudo me podeis mandar,

ir de caa nam mo mandeis,

que nam posso nem podeis,

bem podeis em al falar.

Nam nego ser grande gosto

as pousadas dessa terra,

mas eu cá tenho meu posto

e s' El-Rei laa tem Agosto,

tenho-m' eu caa co a serra.

Fim.

Nam posso de caa partir

por cousas qu' eu mesmo pinto,

as quaes laa hei-de sentir,

que agora cá nam sinto.

Isto nam hei-de fazer,

bem me podeis perdoar

e vá-s' a nam esquecer

qu' haveis tambem d' escrever

de quem me caa faz andar.

628

DE DIOGO DE MELO, DESAVIN‑
DO-SE D' ŨA DAMA, QUE TRA‑
ZENDO OUTRO SERVIDOR
DEZIA QU' ELE ERA
PERDIDO POR ELA.

Senhora, nam me perdi

nem menos m' hei-de perder

e tenho certo de mi

que, pois nam m' arrependi,

que nam m' hei-d' arrepender.

Nam digais que me leixastes,

qu' eu fui o que vos leixei

e bem sei

que no jogo que jugastes

mais perdestes que ganhastes

e eu fui o que ganhei.

Ganhei que nam me perdi,

porque vos via perder,

e pois nam m' arrependi,

tenho jaa certo de mi

que nam m' hei-d' arrepender.

629

OUTRA SUA.

Quem quiser contentamento

nam lhe lembrem esperanças,

pois vemos que nũ momento

se fazem tantas mudanças.

As cousas que daa Ventura,

ela mesma as desfaz

serem de tam pouca dura,

que nenhũa nam segura,

gram contentamento traz.

Desfaça o fundamento

quem espera em esperanças,

pois vemos tantas mudanças

desvairadas nũ momento.

630

OUTRA SUA.

Meus olhos, quem vos mandava

oulhar quem vos nam olhava?

E pois vós isso quisestes,

sofrei, pois que nam sofrestes

a vida que vos eu dava.

Nam me podeis dar desculpa,

pois quereis quem vos nam quer,

eu soo tenho esta culpa

em vos dar tanto poder.

Este mal arreceava:

olhardes quem nam olhava

ao mal que me fizestes,

pois me deu o que me destes

pola vida que vos dava.

631

DE DIOGO DE MELO VINDO
D' AZAMOR, ACHANDO SUA
DAMA CASADA.

Bem te conheço, Ventura,

que me quiseste mostrar

o prazer quam pouco dura,

quando o queres desviar.

E pois isto haas-de ter,

nam te quero agardecer

algũ bem, se mo fizeste,

pois havias de fazer

na fim tudo o que quiseste.

Tu quebras as esperanças

e desfazes fundamento,

toda es feita em mudanças

sem deixar contentamento.

Mas quem Ventura conhece

e seus males lh' oferece

e em seu poder se vê,

isto e muito mais merece

quem por Ventura se crê.

Coraçam, se me deixaras

no tempo que eu quisera,

nam tiveras nem tevera

cousas com que me mataras.

Defendes-me e nam t' aqueixas

que nam diga que me deixas

tantos males, sem rezam.

A quem contarei mis queixas,

coraçam, meu coraçam?

Trago tempo acupado

em me ver de tudo fora,

mas trist' ee aquela hora,

quando me lembr' oo passado.

Lembra-me minha verdade

e quam pouca lealdade

amostrou em se casar.

Casada sem piadade,

vosso amor m' haa-de matar!

Deste tempo tam mudado

nam me fica em poder

mais que ũ triste prazer,

se nele tinha passado.

Tenho esperança perdida

do que a tinha servida,

que jaa nam posso cobrar,

direi mal a minha vida

cada vez que m' alembrar.

Quando me quero lançar,

tenho-a na fantesia

e de noite vou sonhar

co ela, que lhe dizia:

— Pois fizestes tal mudança,

sem terdes de mi lembrança,

acabai-me minha vida,

pois nam tenho esperança

de jamais ver-vos vencida.

Cabo.

Sempre lhe veja prazer

coma hora que casou

e veja nunca lhe ver

mais que quanto me deixou.

Pois tam triste me deixaste

co a vida que tomaste,

enquanto vida tiveres,

rogo a Deos, pois que casaste,

que chorando desesperes.

632

VILANCETE SEU.

Coraçam, de que t' aqueixas?

Se nam achas quem te crea,

nam sigas vontad' alhea.

Deixa-te de t' enganar,

nam trabalhes por enganos,

que depois os desenganos

nam t' ham-de poder mudar.

Se tu queres escapar,

crê-me tu, porque te crea,

nam sigas vontad' alhea.

633

DE DOM PEDRO D' ALMEIDA AA
SENHORA DONA BRIATIZ DE
VILHANA, QUE COMEÇA‑
VA ENTAM DE
SERVIR.

De quanto mal se m' ordena,

para ter melhor desculpa,

olhai antes minha culpa,

senhora, que minha pena.

E por isso do que faço

e inda que faça mais,

nam quero que me devais

mais qu' aas culpas em que jaço.

Leixo o mal que se m' ordena,

porque tem boa desculpa,

mas olhai-me minha culpa

em pago de minha pena.

634

OUTRA SUA.

Na vida qu' ee mal segura,

quem nela tem seu cuidado,

anda mais aventurado,

sendo longe da ventura.

E quem certo vê e tem

no descanso mao sinal,

desesperar-se de bem

é menos mal:

porque mal que muito dura

sempre daa novo cuidado

e quem deste é desviado,

este tem melhor ventura.

635

DE DOM PEDRO, DESAVINDO-SE
DE ŨA MOLHER DE QUE
ANDAVA MUITO
NAMORADO.

O cuidado verdadeiro

que deseja de matar,

se alguem quer acabar,

acaba-s' ele primeiro.

E o que mata mais manso     

a vida melhor segura,

pois nam daa em mais descanso,

senhora, qu' enquanto dura.

Tomei o mais verdadeiro,

qu' ee mais perto de matar,

porque, quando s' acabar,

m' ache jaa morto primeiro.

636

OUTRA SUA AA SENHORA DONA
BRIATIZ DE VILHANA.

Nam abasta sofrimento

quer seja bem empregado,

qu' ond' haa grande pensamento

tambem ha grande cuidado.

Ja descanso com meu mal

que seja mao de sofrer,

perca-s' o que se perder

qu' eu nam quero mais nem al.

Perigoso sofrimento

perigo bem empregado,

pois que daa de mor cuidado

menos arrependimento.

637

DE DOM PEDRO A ŨA SENHORA,
QUE TRAZIA Ũ HABITO DE
VELUDO AZUL ESCURO
POR TENÇAM.

Senhora, dai-m' um seguro,

pois calar custa mais caro,

para vos gabar bem craro

o vosso veludo escuro.

Isto nam é novidade,

senhora, mas é rezam,

que onde nam ha vontade

o habito nam faz frade,

se o nam faz a tençam.

E inda mais vos seguro,

senhora, por falar craro,

que no vosso habito escuro

eu fui o que comprei caro.

638

OUTRA SUA A ŨA MOLHER,
QUE LHE MANDOU ŨS PENSA‑
MENTOS DE FERRO.

Pensamentos qu' andam fora,

tomo eu por mao sinal,

porque os trazeis, senhora,

para pensardes em aal.

Mas os pensamentos certos,

a que cá chamam cuidados,

os que parecem cerrados,

estes andam mais abertos.

Quem vo-los visse, senhora,

laa dentro para sinal

e nam trazidos de fora

e andar pensando em al.

639

VILANCETE SEU A ŨA MOLHER,
QUE O QUERIA CONTENTAR
COM ENGANOS.

Enganos, bem vos entendo,

i laa dar falso prazer

a quem vos nam entender.

Se folguei com meu engano,

foi por ver tambem o vosso,

e desejo, mas nam posso,

ter prazer com vosso dano.

Que mais val ũ desengano,

quando vem com' haa-de ser

qu' oos enganos dê prazer.

Quem conhece vosso mal

nam se cega nem s' engana,

ca quem faz que menos dana

traz ũ dano mais mortal.

Enganos falai em aal,

a outrem vos i vender,

qu' eu bem vos sei entender.

640

VILANCETE SEU, DE LOUVOR,

Ũ soo remedio teria

quem vos vio, para viver,

e este nam pode ser.

Inda qu' outro i nam haa,     

aqueste nam quero eu,

pois o mor descanso seu

em nam ver-vos soo estaa.

Milhor é o mal que daa,

vendo-vos algũ prazer,

que a vida sem vos ver.

641

DE DOM PEDRO A LUIS
DA SILVEIRA.

Nam sam eu tam enganado

que me acolhais na mão

a serdes de mim louvado,

que louvor que é cuidado

laa o traz outro foãao.

Eu nam vos louvo nem gabo

e sabeis porque me deço:

é porqu' eu como diabo

bem sei qu' onde nam haa cabo

que nam pode haver começo.

Querei-m' aqui responder

e dizer vossa tençam,

que desejo de saber

o remedio qu' haa-de ter

quem tever esta paixam.

Nesta pregunta pequena,

que a mim assi me mata,

se vos vem, senhor, a vena,

nela nam tomareis pena

senam se for a da pata.

A pergunta.

Se teverdes ũs amores,

com algũa malfadada,

secretos, com que folgueis,

e houver competidores

qu' acertem a malhoada,

que fareis?

Por isso dond' haa-de vir

ũ remedio muito certo

a quem cuidado sentir,

que nam se pod' encobrir

nem pode ser descuberto?

Reposta de Luis da Silveira
polos consoantes.

Senhor, tendo ja lançado

nestas cousas o bastam,

fui por vós reçucitado

e mui desassessegado

co esta vossa questam,

na qual me vereis o rabo.

E pois me assi conheço,

confessai que vos mereço

em errar muito mor gabo.

Eu hei-vos d' obedecer,

isto tendes ja na mãao,

e para mais me dever,

sabei qu' ee com entender

maas repostas quam maas são.

Vossa pregunta m' ordena

tanta confusãao e cata,

que dera por Joam de Mena

ou por dez anos de Sena

atee dez marcos de prata.

A reposta.

Os mais dos descobridores,

quando vam dar na cilada,

trovam-se como ouvireis

e ficam com tais tremores

que vos nam empecem nada,

se sabeis.

Vós os podeis destroir,

que vos acham com concerto

e o qu' ham-de presumir

os haa-de fazer fujir

de vos porem em aperto.

642

DE DOM PEDRO D' ALMEIDA A
ESTE MOTO QUE LHE MANDOU
ŨA SENHORA.

O que a Ventura tolhe

nam o pode o tempo dar.

Quem no tempo se fiar,

senhora, pior escolhe,

porqu' o qu' a Ventura tolhe

nam o pode o tempo dar.

E por isso o qu' ee melhor,

ist' ee o que mais empece.

porqu' o mal sempr' ee maior

e tudo vem ser pior

a quem Ventura falece.

Tudo é temporizar

e pois nada nam s' escolhe,

o que a Venture tolhe

nom o pode o tempo dar.

643

OUTRA SUA A ŨA MOLHER,
QU' ESTAVA MUITO
DEVOTA Ũ DIA
DE CINZA.

Nam vos lembre tanto alma,

pois nam na tendes perdida

que vos esqueçais da vida.

Isto vemos caa e laa,

senhora, em qualquer pessoa,

nunca ter a alma boa,

quando tem a vida maa.

E pois isto craro estaa,

bom é ser arrependida,

mas nam ja qu' esqueça a vida.

644

DE DOM PEDRO A ŨA MOLHER,
QUE LHE MANDOU DIZER QUE
O VENDERAM TRES VEZES
EM ŨA NOITE, NŨ JOGO
QUE ELAS JOGAVAM.

Quem de noite me vendeo,

sabendo que me vendia,

que fizera jaa de dia?

E pois ando posto em preço

e vim a haver esta fim,

quero ver ao que deço

ou quem daa menos por mim.

Que cativeiro roim

em perdê-lo ganharia,

se me vendessem de dia!

645

DE DOM PEDRO, ESTANDO
DOENTE, A ŨA SENHORA
QUE ESTAVA EM ŨU
SERAM DE GRAN‑
DE FESTA

Nam quero ver o prazer

que me traz mais que sentir,

tenh' oo laa quem o tever,

qu' onde me nam querem ver

antes o quero ouvir.

E pois isto mais me val

por me guardar de receos,

quero antes ter meu mal

qu' ir ver prazeres alheos.

646

CANTIGA SUA.

Aas vezes vem liberdade

de ver muitas novidades

e quem tem ũa vontade

faz-lhe ter muitas vontades.

A quem dam por despedida

vontades fartas e cheas

tem a vontade comprida,

que quem vive sem ter vida

nam quer ver vidas alheas.

Daqui vem ter liberdade

e fazer mil novidades,

que por ũa soo vontade

vem perder muitas vontades.

De Dom Pedro a Garcia de

Resende com estas trovas

que lhe mandou.

Nam sei a que me nam ponha

jaa por vós atee morrer,

pois por vos obedecer

vos mostro minha vergonha.

Metei-as laa sô a terra,

qu' a mim justo me parece

que braço que tantas erra

tal pena, senhor, merece.

647

DE SIMÃO DA SILVEIRA AA
SENHORA DONA JOANA
DE MENDOÇA, SOBRE
ŨA AVE QUE LHE
LANÇOU D' ŨA
JANELA.

Em a voss' ave tomando,

lhe senti no coraçam

que vos quer morrer na mam,

antes que viver voando.

Isto vem de conhecer-vos

de que todo mal s' ordena:

ũus se depenam por ver-vos

e outros vos vem com pena.

Estaa-se toda matando,

queria por salvaçam

ir morrer na vossa mam,

antes que viver voando.

648

CANTIGA DE SIMÃO
DA SILVEIRA.

Para mim tanto me monta

ser presente com' ausente,

tudo vem a ũa conta,

porem mal por quem o sente.

Esta conta tenho feita

e fizeram-ma fazer,

com saber

que nada nam aproveita.

Assi que tanto me monta

ser presente com' ausente,

tudo vem a ũa conta,

porem mal por quem no sente.

649

DE JORGE DE RESENDE, ES‑
TANDO DESAVINDO E QUE‑
RENDO-SE TORNAR
AVIR.

Nam posso com meu cuidado

nem é minha minha vida,

que, sendo desesperado,

d' amores tam perdida

que ja sou dela cansado.

E tambem minha vontade,

que roubou a liberdade,

é em tudo contra mim,

minha fee e saudade

nam tem fim.

Com que me defenderei,

se tantos males me seguem?

Que estremo tomarei,

pois já de todo me querem

acabar no que tomei?

E nam tenho coração

nem me quer valer rezão

pera leixar de seguir

aquesta triste tenção

de vos servir.

Que pera me defender

dos males que m' ordenais,

trabalhei por vos nam ver

estes dias, em os quais

me houvera de perder.

Que sempre, meu bem, vos vejo

ant' os olhos com desejo

d' acabar naquesta lei

e nela com mal sobejo

vevirei.

E pois ja nesta firmeza

hei-d' acabar sempre vosso,

acabe vossa crueza,

senhora, que ja nam posso

com tanta dor e tristeza.

Olhai se é merecido,

por viver assi vencido

e vos ter em tanto preço,

ser ante vós esquecido

o que padeço.

Que se de vós esta vida

tam triste fosse lembrada,

nam seria tam perdida

como é nem tam cansada,

por vos querer sem medida.

Que nam seria tam forte

vossa condiçam que morte

por vos querer m' ordenasse

e assi daquesta sorte

m' acabasse.

Mas o nam terdes lembrança,

senhora, meu bem, de mim,

me nam dá mais esperança

que de cedo ver a fim

qu' ordenou vossa mudança.

E esta me satisfaz

porque me veja em paz,

com sospiros e cuidados

e soidades que m' os faz

ser dobrados.

Que meus males tam crecidos

com morte s' acabaram

e meus continos gemidos,

que sahem de coraçam,

entam seram fenecidos.

E tambem a maa ventura,

que contra mim tanto dura,

acabando, acabaraa,

querer-vos, qu' isto procura,

leixar-m'-aa.

Fim.

Pois com minha fim serão

de mim tantos males fora,

peço-vos em concrusam,

senhora, minha senhora,

que ma deis por galardam.

E se isto me negais,

lembrai-vos que me causais

mais dor da que sei dizer

e creça, pois que folgais,

meu padecer.

650

VILANCETE A ŨA MOLHER QUE
SERVIA, COM QUE LHE JA FORA
BEM E SEM NENHŨA REZAM
O COMEÇOU D' ESQUIVAR E
SOUBE COMO SECRETA‑
MENTE SE SERVIA
DOUTRO.

Fui, senhora, descobrir

em meu mal a causa dele

e nela fiquei sem ele.

Fiquei livre e descansado

sem ser triste na lembrança,

ja nunca fareis mudança

que me ponha em cuidado.

Em meu mal serei julgado,

quem souber a causa dele

ser bem que viva sem ele.

E nam vos descubro mais,    

porque sei que m' entendeis

e tambem que conheceis

se errais ou nam errais.

Mas por quem me vós trocais,

daqui digo triste dele,

pois ja vejo meu mal nele.

Fim.

Vós me tinheis prometido,

e nam com pouca afeiçam,

que em vosso coraçam

nunca seri' esquecido.

Mas pois sem ser merecido,

mudaste minha fee nele,

assi o fareis a ele.

651

CANTIGA A ŨA MOLHER QUE
LHE DISSE QUE NAM CURAS‑
SE DE A SERVIR, QUE
PERDERIA MUITO
NISSO.

Quem pode tanto perder

que mais perdido nam seja?

Quem vos vio e se deseja

livre do vosso poder?

E neste conhecimento,

inda que faleça amor,

o que menos vosso for

tem menos contentamento

e na culpa maior dor.

Pois que posso eu perder,

s' isto tudo em mim sobeja,

que mais perdido nam seja,

vivendo sem vosso ser?

652

OUTRA SUA.

Desvairadas fantesias,

sospiros desconcertados

acompanham meus cuidados,

e meus dias

nisto soo sam acupados.

E a causa donde vem

este desvairo ou mudança

é lembranças de lembrança,

que me têm

a vida posta em balança.

Que nunca leixam porfias

de conquistar meus cuidados

com sospiros tam cansados,

que meus dias

nam sam em al acupados.

653

OUTRA, QUERENDO-SE PAR‑
TIR DONDE ESTAVA

ŨA MOLHER.

Vai-se-m' o tempo cercando

de meu mal senhorear

minha vida, até quando

ante vós, meu bem, tornar.

E nesta lembrança jaa

sam meus dias tam cansados,

que nam espero que laa

me leixem vossos cuidados

tornar cá.

Que quem vive sospirando

por lh' a partida lembrar,

olhai bem que fora, quando

si vir de vós apartar!

654

TROVAS SUAS EM ŨA PARTIDA.

El dia que me parti

dante vos, senhora mia,

se partió mi alegria donde

nunca más la vi.

E sin elha caminando

vo moriendo poco a poco,

com mis ojos lhanteando,

gritos dando como loco.

Quanto más de vos m' alexo,

más s' acrecienta mi mal,

mi dolor est tam mortal

que del bevir ya m' aquexo.

Los ojos bueltos atraz,

el coraçon me desmaia

por no ver quien a mi traya

nuevas que os vio jamas.

Deseo passar los dias,

las noches más m' entristecem,

todas cosas m' avorrecem

sino seguir mis porfias.

Las quales me dam por gloria

esta vida que posseo,

sin haver de mi deseo

esperança de vitorea.

E assi sin esperança

de veros desesperado,

vo firme con mi cuidado,

mas la vida em balança.

Lagrimas del coraçon

siempre salen por mis ojos,

mis males e mis enojos

no tienem comparacion.

Soledad em tal manera

me causa dolor esquivo,

que m' espanto como bivo

com vida tam lastimera,

desesperada de ter

descanso nunca en sus dias,

porque las congoxas mias

no se pueden socorrer.

Porque vos de quien mi mal

podia ser socorrido

deseais verme perdido,

com tormento desigual.

Y porque vuestro deseo

yo deseo de comprir,

soy contento de seguir

esta vida que posseo.

Com cara triste y mortal

y la voz enroquecida,

ando com pena crecida

y crece pera más mal.

No siento consolacion

que me dexe consolar

ni menos com qu' afloxar

pueda tam cruel passion.

Descanso de mis enojos

es el mal que más me aterra,

ca vos, que me dais la guerra,

traigo siempre ante mis ojos.

Este es el sostimento

de la mi penosa vida,

con esto es destroyda

y se dobra mi tormento.

Mirad, senhora, y quien

tal vida pueda sofrir

qual sufro por vos servir

y tiengo todo por bien.

Porque vos soes vida mia,

en quien la mi alma adora

y sin vos una soo hora

de vida no la queria.

Cabo.

Ni quiero destos dolores

otra merced ni la pido

sino so que en olvido

vos non pongais mis amores,

y sea de vos lembrada

la mucha tristeza mia,

pues mi fe com alegria

a vos soo la tengo dada.

655

DE JORGE DE RESENDE.

Pois por vós meu mal s' ordena

e meus cuidados sem fim,

nam querais qu' assi sem mim

acabe naquesta pena.

Valei a tanta paixam,

quanta passo toda hora,

ou, se nam quereis, senhora,

tornai-me meu coraçam.

Que gram sem rezam fareis

a mim que tanto vos quero,

pois vedes que desespero,

se me logo nam valeis.

Nam consintais ser culpada

neste mal que m' ordenais,

que pois vós soo mo causais,

ficais nele condenada.

Oulhai se sereis tachada,

pois moiro por vos querer

e doi-me ver-vos fazer

ũa cousa tam errada.

Que ficando vós servida,

sem culpa de meu penar,

folgaria d' acabar

por dar fim a tam maa vida.

Assi que soo pelo vosso,

por quam bem vo-lo mereço,

dai ja ò meu bem começo,

pois com tanto mal nam posso.

Nam consintais que se diga

que fazeis tal sem rezam

em querer qu' esta paixam

para sempre me persiga.

Cabo.

E se tanto desejais

de me ver por vós perdido,

com mil paixões destroido

consento, pois que folgais.

Que nam quero mais prazer

de meus males desiguais

que só saber que ficais

servida com me perder.

656

CANTIGA SUA.

Vivo soo em vos querer

e vós em me destrohir,

tudo vos hei-de sofrer

sempre vos hei-de servir.

Mas o erro que fazeis

é o que me dá paixam,

oulhai quanto me deveis

nesta soo satisfaçam.

Ja me nam podeis perder,

bem me podeis destroir,

que tudo hei-de sofrer,

sempre vos hei-de servir.

657

CANTIGA SUA.

Se menos rezam tivera

no que sento d' acabar,

menos tempo me valera,

mas ela me vai salvar.

Que de quem me fui vencer

é de tal merecimento,

que dobrar meu padecer

é dobrar contentamento.

E se meu mal nam tivera

isto pera descansar,

ja de todo me perdera,

mas aqui me fui salvar.

658

VILANCETE SEU.

Meus males, se m' acabardes,

que fareis,

pois em mim todos viveis?

Vós sem mim nam tendes vida

e a minha vossa é,

pois dizei, por vossa fee,

que ganhais em ser perdida?

Nam vos saiais da medida

e fareis,

meus males, o que deveis.

Repousai, pois repousastes

em mim passa de tres annos,

onde sofri tantos danos

quantos me vós ordenastes.

De todo bem m' apartastes,

que quereis?

Ceçai jaa, nam m' acabeis!

Fim.

Nam useis tanta crueza,

leixai a meus olhos ter

ũ soo dia de prazer,

pois têm tantos de tristeza!

Nisto fareis gentileza,

se quereis,

e despois m' acabareis.

659

CANTIGA A ŨA MOLHER QUE
SERVIA, PORQUE LHE PEDIO
LICENÇA PERA ŨA COUSA
QUE ERA REZAM QUE
FIZESSE E A ELE
DAVA PAIXAM.

Vejo que tendes rezam

no que me mandais pedir,

tambem minha condiçam

nam no poode consentir.

Mas pois em mim o leixais,

eu vejo bem se m' engano,

fazei-o, nam mo digais,

porque seja menos dano.

Porem todo daa paixam,

nam vo-lo sei encobrir,

mas pois vós tendes rezam,

é forçado consentir.

660

CANTIGA SUA.

Senhora, de meu cuidado

nam sei julgar o que sento,

porque dá contentamento

e faz-me desesperado.

Desespera-m' esperar

ver a fim de meu desejo,

mas na hora que vos vejo

nam sei mais que desejar,

porqu' entam é acabado

ũ grande contentamento,

mas vosso merecimento

me torna desesperado.

661

OUTRA CANTIGA SUA.

Vejo que crece meu mal,

nam vejo rezam porquê,

mas sei que vossa mercê

é a causa principal.

Mostrai-me como matais

que bem sei que me matastes,

se com ver me condenastes

tambem nisso me salvais.

E pois nisto é igual

a paixam com a mercê,

de que moiro ou porquê,

decrarai-me vós meu mal.

662

OUTRA CANTIGA SUA.

Ó triste, que m' ee forçado   

de partir donde nam sei,

que faça d' apassionado,

que farei?

Qu' em partir partem de mim

vida, descanso, prazer;

paixões, cuidados, querer

m' hão-de seguir atee fim.

Que deles nunca apartado

hei-de ser, e bem no sei,

mas o partir é forçado,

que farei?

663

CANTIGA SUA.

Quem consentio em vos ver

a si mesmo condenou,

quem de ver-vos s' apartou

nunca mais terá prazer.

Nestas ambas me culparam

os olhos com que vos vi,

que logo me cativaram

e tambem me condenaram

o dia que me parti.

Partio-se de mim prazer,

meu descanso s' acabou.

Oo meu bem, quem m' apartou

de vos ver?

664

CANTIGA SUA.

Lembranças tristes, cuidados

magoam meu coraçam,

quando cuido nos passados

dias, que passados sam.

Que a vida me custasse

todo outro padecer,

folgaria de sofrer

s' o passado nam lembrasse.

Mas porque sejam dobrados

meus males mais do que sam,

cuido sempre em beens passados

que perdi bem sem rezam.

665

GROSAS SUAS A ESTES MOTOS:

Doces esperanças tristes.    

Com quanto mal sempre vistes

padecermos, coraçam,

tomastes por galardam

doces esperanças tristes.

Que s' esperança não dereis

a meus crecidos cuidados,

neles culpa nam tivereis,

oh quanto milhor vivereis,

se foram desesperados!

Mas com quanto sempre vistes

nossas dores e paixam,

tomastes por galardam

doces esperanças tristes.

Vida com tanto cuidado.

Pois que sam desesperado

de nunca descanso ter,

pera que quero soster

vida com tanto cuidado?

Que lançando bem a conta

do em que posso parar,

sam certo de m' acabar

ũ mal que tanto m' afronta.

E pois isto afirmado

ja tenho que haa-de ser,

pera que quero soster

vida com tanto cuidado?

666

CANTIGA, AQUEIXANDO-SE

DOS SOSPIROS.

Sospiros, porque quereis

vir todos juntos a mim,

pois perdeis por minha fim

nam ter onde repouseis?

Leixai-me que ja me leixa

por vós a vida, prazer,

e meu coraçam s' aqueixa

de vos nam poder sofrer.

Eu nam sei porque queireis

vir todos juntos a mim,

pois em me dardes a fim,

a vós tambem a dareis.

667

OUTRA SUA.

¡ Oh muerte, pues que dolores

me causaste desiguales,

com dar fim a mis amores

no dobres vida a mis males!

Con esto me pagarias

los males que me quesiste

ordenar,

si diesses fim a mis dias

y querer vida tam triste

acabar.

Pues m' haas causado dolores

tan esquivos y mortales,

com dar fim a mis amores

no dobres vida a mis males.

668

TROVAS ESTANDO DESAVINDO.

Onde nam vale rezam

que aproveitam querelas?

Mas se sam do coraçam

quem s' ha-de calar co elas?

Ja nam posso mais sofrer,

tudo hei-de provicar,

pois me quisestes perder

eu nam me posso ganhar.

E pois desta esperança

ja estou desesperado,

nam pode vir mal andança

que me dê maior cuidado

de que hei-d' haver temor.

Usai toda crueldade,

pois com tanto desamor

falsastes fee e verdade.

Des que de vós me venci

e por vosso me quisestes,

sempre jamais vos servi

no risco que me posestes.

E por bem nem mal que visse

nunca disso m' apartei

nem por cousas que ouvisse,

mudança nunca cuidei.

E assi com tal firmeza

passava por vos querer

tanta dor, tanta tristeza

que cuidei de me perder.

E vós por maior vitoria

haverdes e serdes leda,

achegastes-m' aa mor groria,

por me dardes maior queda.

E na hora que me vistes

mais contente e namorado,

sem mais tardar me feristes

no que sam mais magoado.

Acabastes meu prazer,

trocastes contentamento

em dobrado padecer

e a vida em tormento.

Cabo.

Assi vivo sem ter vida

e moiro sem acabar,

por serdes desconhecida

quis assi desabafar.

Mas bem sei qu' ee por de mais

e aqui quero dar fim,

pois vós mesma me julgais,

que sois imiga de mim.

669

CANTIGA.

Acabastes minha vida,

mas bem sei que nam sereis

de nenhũa tam servida,

pois querida

ja nunca tal cobrareis.

Se vingança desejara,

este fora gram conforto.

Oh quem tanto nam amara,

porque nisso descansara!

Mas doi-me despois de morto,

que com verdade querida,

senhora, nunca sereis

e sereis mais requerida

que servida,

e por mim sospirareis.

670

ESPARÇA A ŨA MOLHER

QUE SERVIA E SE CASOU.

Os meus dias s' acabaram,

porque estes ja nam sam,

o prazer, vida passaram,

de todo se me quebraram

as cordas do coraçam.

Ó olhos cansados, tristes,

que tantos males ja vistes,

chorai tam grande mudança

e vós, falsa esperança,

leixe-me, pois vos partistes,

de todo vossa lembrança!

671

OUTRA ESPARÇA.

Quem me poderaa valer,

pois eu nam posso sentir

o que mais são me seria?

Ja faleceo meu prazer

e eu quis nisso consentir,

crendo que acabaria.

Mas com quanto mal padeço,

nam posso triste acabar,

porque sei,

senhora, que nam mereço.

De me ver assi tratar,

que farei?

672

OUTRA ESPARÇA EM QUE ES‑
TAA O NOME D' ŨA SENHORA
NAS PRIMEIRAS LETRAS
DE CADA REGRA.

De vós, senhora, e de mim

Ousarei de m' aqueixar

Nos males que nam têm fim,

Antes vam ò galarim

Jurando de m' acabar,

Lastimado com rezam.

Amores bem me fizeram

Resestir minha paixam,

Inteira satisfaçam

Aa mester, pois me prenderam.

673

OUTRA ESPARÇA.

Cuidado, quem te pudesse

de si ũ hora apartar,

e que mais bem nam tivesse

era muito nam cuidar

que tu es destroiçam

do coraçam namorado

e teens esta condiçam:

que es agualardoado

como que nom dás paixam.

674

OUTRA ESPARÇA, NAM PODEN‑
DO VER SUA DAMA, BUSCANDO
TODOS OS REMEDIOS
PERA ISSO.

A grorea de conhecer-vos

nam ma pode ja negar

meu mal, que seja dobrado;

mas rezam consente ver-vos,

ventura nam daa lugar

e moiro desesperado.

Que a vida sem vos ver

nam é vida nem viver

nem se deve chamar vida

nem sem vós nam pode ser

que leixe de ser perdida.

675

OUTRA ESPARÇA.

¿Adu halharé prazer?

¡ Oh males, males, lexadme,

si non lo quereis hazer,

acabad y acabadme,

que mi vida se destruye

sin halhar consolacion

en lo que siente!

Todo descanso me huye,

duro es el coraçon

que tal sofrir me consiente.

676

VILANCETE, PORQUE DESPOIS
DE CASADA SUA DAMA O CON‑
FORTAVA ŨA AMIGA, DIZEN‑
DO QUE AINDA DEVIA DE
TER ESPERANÇA.

Quem em vida m' acabou

nam deve ninguer de crer

que morto m' haa-de valer.

A cousa qu' estaa incerta

bem se pode dovidar,

mas aquesta é tam certa

que se nam deve cuidar.

Pera mais males me dar,

vontade se deve crer,

mas nam pera me valer.

Qu' esperança tam perdida

é a que vem nesta parte,

pois o ja é minha vida

aousadas quanto farte.

E quem acabou dest' arte,

sem lho nunca merecer,

como lh' ha-de socorrer?

Cabo.

Nam tenho mais certo bem

que buscar a sepoltura

nem espere ja ninguem

de me ver outra ventura,

que meus males nam têm cura,

nam digo pola nam ter,

mas por mingua de querer.

677

CANTIGA.

Quebrastes minh' esperança,

falsastes vossa verdade

e pusestes em balança

mudar-se minha vontade

e querer tomar vingança.

Mas nam consente meu bem

que vos troque mal por mal,

sofrer-vos-ei como quem

ja nam pode fazer al

nem outro remedeo tem.

Porem moiro na lembrança

do desterro da vontade,

chorarei vossa mudança,

viverei em saudade,

fora de tod' esperança.

678

OUTRA CANTIGA.

Minha vida sam tristezas,

meu descanso é sospirar,

vossas obras sam cruezas

que juram de m' acabar.

A passar esta paixam

ja estou oferecido,

mas nam no ter merecido

me magoa o coraçam.

Assi vivo em tristezas,

meu descanso é sospirar

e vós com vossas cruezas

consentis em m' acabar.

679

CANTIGA.

Senhora, pois me matais

por vos dar meu coraçam,

peço-vos que me digais

de que maneira tratais

aos que vossos nam sam.

E quiça que nesta conta

levarei contentamento,

se vir que tanto me monta

na paga de meu tormento.

E se vós a todos dais

tam crua satisfaçam,

peço-vos que me digais

que tormentos enventais

aos que vossos nam sam.

680

ESPARÇA.

Que triste vida me dais,

que cuidado tam crecido,

que penas tam desiguais,

sem vo-lo ter merecido!

Havei ora piadade,

pois que minha liberdade

estaa em vosso poder.

Nam folgueis de me perder

que fazeis gram crueldade.

681

OUTRA ESPARÇA.

Nam tenho ja esperança,

meu prazer perdido é

e com toda mal andança

nam poode fazer mudança

d' adorar-vos minha fee.

E vós que esta firmeza

vedes e minha tristeza,

quereis meus males dobrar.

Ja devia de quebrar,

senhora, tanta crueza!

682

VILANCETE DE JORGE
DE RESENDE.

Que se perca minha vida

no que desejo cobrar,

mais se deve aventurar.

Sogiguei meu coraçam

a cousa de tanto preço

qu' ahinda lhe nam mereço

dar-me tal satisfaçam.

Em tam justa perdiçam

quisera, por me salvar,

mil vidas qu' aventurar.

683

OUTRO VILANCETE SEU.

Pois tanta parte vos cabe

da perda de minha vida,

nam consintais ser perdida.

Vós perdeis em se perder

o poder dela e de mim,

eu nam perco mais em fim

que leixar de padecer.

Querei isto conhecer,

pois é vossa minha vida,

nam consintais ser perdida.

684

OUTRO VILANCETE.

Pois meu bem tam verdadeiro

ante vós tam pouco val,

a vida será meu mal.

Seram cheos de tristeza

os dias que viverei,

s' acabar, acabarei

de sentir vossa crueza.

Fará fim minha firmeza,

pois ela me tem ja tal

que viver hei por mor mal.

685

OUTRO VILANCETE SEU.

Esta dor m' ha-d' acabar,

meus olhos, se assi é,

que em vós haa pouca fe.

Mas rezam nam me consente

poder-me nisso afirmar,

que quem é tam eicelente

nam haa tam craro d' errar.

Nisto me vou confortar,

vós, meu bem, oulhai que é

grande erro nam ter fe.

686

CANTIGA SUA.

Nam pode meu coraçam

libertar-se de cativo,

porqu' ee grande a sogeiçam

em que vive e em que vivo.

Que s' algũa liberdade

em mim e nele tivera,

que mor vitoria quisera

que fazer-vos a vontade?

Mas é tal a sogeiçam

de vos querer, em que vivo,

que nam pode o coraçam

libertar-se de cativo.

687

VILANCETE, DESAVINDO-SE DE
ŨA MOLHER QUE SERVIA.

Vós me quisestes perder,

eu, senhora, me guanhei,

pois de vosso me livrei.

Eu compri quanto abastasse

como quem vos muito amava,

vós quisestes que cuidasse

quanto contra mim errava.

Contudo nam me pesava,

mas agora qu' acordei,

conheço que me salvei.

688

OUTRO VILANCETE.

Por mais mal que me façais

nunca mudar me fareis,

até que nam m' acabeis.

Minha fee, minha firmeza

em vosso poder estaa,

sofrerei minha tristeza,

pois vossa mercê ma daa.

E meu bem nunca faraa

mudança nem na vereis,

até que nam m' acabeis.

689

PERGUNTA SUA.

Pois em vós, senhor, se acha

toda duvida que temos

nos amores descuberta,

nam vos perguntar é tacha,

por vermos do que queremos

a carreira ser aberta.

E porque em meu cuidado

sento muita torvaçam

em cuidar naqueste caso,

seja por vós decrarado,

pois que vossa descriçam

faz o asparo ser raso.

É, senhor, o que pergunto

e de vós quero saber

por descansar meu sentido:

Qual é cousa que traz junto

com pesar, dor, gram prazer,

sendo d' amores ferido?

Porque isto m' acontece

sem saber donde me vem,

mas sei que nace d' amores.

E pois em meu saber falece,

socorrer-m' a vós convem,

que soes primor dos primores.

690

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Secreto dolor de mi.

Yo gané por os mirar

mis dias puestos em fim,

las noches mal sospirar

e nunca puedo quitar

secreto dolor de mi.

Ũa passion que no digo

aflige mi vida triste,

guerreo siempre comigo

y la ventura que sigo

em mal y más mal consiste.

Todo me causa pesar,

plazer ya lo despedi,

mi descanso es sospirar

y no se puede quitar

secreto dolor de mi.

691

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Meus olhos a minha vida

sam contrairos.

Querer-vos tam sem medida

me faz viver em desvairos,

rezam da fee é vencida,

meus olhos a minha vida

sam contrairos.

Sam contrairos, pois forçarão

minha vida a vos querer

com tal fee que cativarão

meus sentidos e causarão

nam ser vida meu viver.

Amor, rezam, fee crecida

sempre me poem em desvairos,

minha dor é sem medida,

meus olhos a minha vida

sam contrairos.

692

CANTIGA SUA.

Lembrai-vos, meu bem, de mim,

porque soo em vossa mão

estaa minha salvação

e minha fim.

Se de vós nam for lembrado,

que remedio posso ter?

Querei-me, meu bem, valer,

nam moira desesperado,

que sem vós nam haa em mim

senam toda perdição

e tomar por salvação

ver minha fim.

693

OUTRA CANTIGA SUA.

Pois vivo desesperado,

bem seria

que me leixasseis ũ dia,

meu cuidado!

Gualardam nam no espero

nem haa em meu mal mais bem

que soo querer, porque quero

mais que nunca quis ninguem.

Porque sam desesperado

d' alegria,

leixai-me ja ũ soo dia,

meu cuidado!

694

OUTRA SUA.

Meus olhos, quando partistes,

me fizestes conhecer

cuidados, lembranças tristes,

sospiros e padecer.

Todo prazer me roubastes,

nam sei quando vos verei

nem quando descansarei

desejos que me leixastes.

Fezestes meus dias tristes,

dobrastes meu padecer,

meus olhos, pois que partistes,

nam me queirais esquecer.

695

CANTIGA A ŨA AMIGA DE
QUE MUITO CONFIAVA E
SOUBE QUE O VENDIA
E FALAVA POR
OUTRO.

Eu cuidei que me salvava

e fui, senhora, saber

que d' ũ arte m' enganava,

que me lançava a perder.

Atentai nisto que digo,

e nam queirais que mais diga,

que quem é tam grande amigo

deverá de ter amiga.

Nam creais que descuidava,

pois que tudo fui saber

e de quem mais confiava

achei querer-me vender.

696

CANTIGA FINANDO-SE ŨA
MOLHER QUE SERVIA.

Mis ojos, pues ya perdistes

esperança de tener

algũ descanso,

vuestros dias seran tristes

y vuestro gram padecer

nunca manso.

Bevireis muy lastimados,

deseosos d' algũ dia

poder ver

con quien ereis consolados,

quien vuestra passion hazia

menor ser.

Desdichados ojos tristes,

pues que no podeis tener

ningun descanso,

lhorad el bien que perdistes,

que ya vuestro padecer

no vereis manso.

697

DE JOAM DA SILVEIRA A PERO

MONIZ E A DOM GARCIA D' AL­-

BOQUERQUE, QUANDO FO‑

RAM COM DOM JOAM DE

SOUSA A CASTELA, QUE

FOI POR EMBAIXADOR,

DO QUE LHE HAVIA

D' ACONTECER, EN-

­DERENÇADAS AAS

DAMAS.

Senhoras.

De dous qu' ham-d' acompanhar

Dom Joam atee Castela,

quero eu adevinhar

o modo que ham-de levar

atee se tornarem dela.

E confio em seu saber,

que se nam escandalizem,

posto que lhe profetizem

a maneira que ham-de ter.

Eles ja polo caminho

ham-d' ir ambos sempre soos

e naquisto vereis vós

qu' ha-de ser o qu' adevinho:

ũ deles parecer-lh' aa

que leixa feito alicerce

e o outro sospiraraa,

porque às vezes cuidaraa

que quem nam parece esquece.

Sam gentis homens que farte,

brandos de conversaçam,

sam dous amigos d' ũa arte,

galantes qu' em qualquer parte

que estiverem valeram.

Nam se podem enfadar

pessoas tam concertadas,

mas antes pera falar,

folgaram de caminhar

mais jornadas.

Ham-d' estar muito frautados

aa mesa, quando cearem,

e, se algũs aperfiarem,

ham-d' estar eles dobrados.

E com sospiro calado

dirá hũ per ante alguem:

— Por Deos, estes estam bem

fora de nosso cuidado.

O outro mais cortesão,

eu apostarei que colha

ũ ramo seco sem folha,

que leve sempre na mão.

Ham tambem de caminhar

algum hora sem se ver,

porqu' às vezes ũ cuidar

val mais que quanto falar

num caminho pode ser.

Se andarem por luar,

por si está adevinhado,

cada ũ s' ha-d' apartar

e entam ò contemprar

perdei cuidado.

E na primeira jornada

haa ũ de dizer assi:

— Quem já estivesse aqui

da tornada!

E se laa os convidarem,

aa primeira rogar-s' -am,

o que virem andaram

muito cheos de notarem.

Parecer-lh' -am grandes anos

todolos dias passados,

far-s' -am muito namorados

per geitos a castelhanos.

Ambos soos polo caminho

iram assi saudosos,

apartados do sobrinho,

por ir mais sustanciosos.

Iram assi cordiais

às vezes atuar-s' -am,

ham-de levar presunçam

de representarem mais

que Dom Joam.

Levam motos respondidos,

pedidos per' aa despesa,

trabalharam por empresa,

mas nam ham-de ser ouvidos.

O qu' este tempo fizeram

ham que fica em balança

e tambem sei que disseram:

— Ó duvidosa lembrança!

A ũ deles ham-d' ouvir

el secreto es descuberto.

Ooh que responder tam certo!

E nom se pode encobrir

e sorrir.

Se quereis que mais alcance,

nom digais muito s' estendem,

mais ham-de cantar romance

em que cuidem que s' entendem.

Trova por parte deles.

Dizei tudo o que puderdes,

qu' em fim eles partiram

e, s' isto por mal houverdes,

ride vós quanto quiserdes,

qu' eles sabem como vam.

Nam se pode grosar ida

em dias tanto sem festa,

que soo polo de tal vida

antes nunca vi partida

a proposito mais que esta.

698

VILANCETE DE JOAM DA
SILVEIRA.

Nam sinto o que me fazeis,

senam o mais

que sei que me desejais.

Os trabalhos hei por bem

que sejam camanhos sam,

qu' eu nam chamo mal senam

aa verdade com que vem.

Nem deles nam me deveis

senam o mais,

que sei que me desejais.

Que nisto qu' assi me trata

a que nada me nam val,

o que vejo faz-me mal,

mas o qu' entendo me mata,

porque com quanto fazeis,

co que mostrais,

o que fica me doi mais.

699

DE DOM RODRIGO LOBO A ŨU

DESENGANO QUE LHE DAVAM.

Querem-me desenganar,

que farei desenganado?

Descanso fora cuidar

si nam houvera cuidado.

Grande tempo, grande engano

trouxe eu mesmo comigo,

levou-mo ũ desengano,

fiquei eu soo no perigo.

Todo o tempo de folgar

para mim é escusado,

cansado sou de cuidar

da parte do meu cuidado.

700

OUTRA CANTIGA SUA.

Ũ novo mal que me veo,

donde o bem esperei,

me tem assi que nam sei

que desejo ou que receo.

Por seguir ũs vãos enganos

me leixei mesmo a mim,

com tudo me desavim,

concertei-me com meus danos.

Mas pois que m' eu fiz alheo

de quem me nam guardarei

e que fim esperarei

d' antre desejo e receo?

701

D' ALVARO FERNANDEZ
D' ALMEIDA A Ũ
FUNDAMENTO.

Quando faço fundamento

daquilo que mais m' apraz

a Fortuna me desfaz

tud' em casteelos de vento.

Qu' isto assi seja ordenado,

ja me nam podem tirar

morrer bem-aventurado,

pois m' eles ham-d' acabar.

Assi passo esta vida,

julgai quejanda seraa,

pois o mor bem que nel' haa

é lembrar-me como estaa

para tudo oferecida.

Minha dor tam esquecida,

oo minha fim e começo,

quem vos visse conhecida

de quem eu tam bem conheço!

Cabo.

Òs desastres quem lhes deu

sobre mim tanto poder?

Ou como pod' isto ser,

pois a vós soo me dei eu?

Nam me dê Deos mais vitoria,

pois o mal assi m' alcança,

senam perder a memoria

quando perdess' esperança.

702

ESPARÇA SUA.

Pois os males quantos sam

nam mudam meus fundamentos,

mal podem outros tormentos

enlhear minha tençam.

E pois isto está assentado,

medido por este peso,

oo cuidado mal despeso,

oo mal despeso cuidado!

703

OUTRAS D' ALVARO FERNANDEZ
D' ALMEIDA AŨA MOLHER,
QUE FALAVA NELE MAL.

Se podesseis ter maneira

de mudar a serventia,

gram proveito vos faria,

senhora, quanto a primeira.

E por mais craro o dizer

feede-vo-l' a boca tanto

que m' espanto

como vos podem sofrer!

Por isso de meu conselho,

vós divieis d' escusar

de todo ponto o falar,

senam for por ũ juelho.

E seja logo cerrada

a boca de sobremão,

de feiçam

que dela nam saia nada.

As gengivas e os dentes

nunca os tais vi a ninguem,

vós pareceis-me tam bem

como tende los parentes.

Em tudo sois acabada,

Jam Cotrim

porem vós falais em mim

coma molher magoada.

Se bem ou mal pareceis,

que vos posso eu fazer?

Pexe devereis de ser,

pois pola boca morreis.

Nunca isto confessei,

mas eu dela me finara,

se de vós nam m' arredara

assi como m' arredei.

Fim.

As trovas sam acabadas,

porque as quero acabar,

ma' las magoas olvidadas

malas vos sam d' olvidar.

Leixai cada ũ viver,

dai ò demo tam má manha

qu' eu nam posso mais dizer,

porque tenho que fazer

na Gram Bretanha.

704

CANTIGA D' ALVARO FERNAN‑
DEZ D' ALMEIDA.

Apressões de cada dia,

que as eu possa sofrer,

elas dam bem que fazer

aa fantesia.

Porque se cuido que vou    

no meio de minhas dores,

vejo quem m' as ordenou,

sem culpa doutras maiores

em qu' estou.

Rogo à Virgem Maria

que me nam queira valer,

se trago na fantesia

cousa que possa entender.

705

OUTRA SUA A ŨA SENHORA,
QUE TINHA ŨS SINAIS
NO ROSTO.

Meus olhos viram sinaes,

começando meus amores,

senhora, que nam creaes

que podiam ser piores.

Mas eu nam quis tomar deles

senam engano dobrado,

sendo certo que por eles

fora bem desenganado.

Mas pois vós assi leixais

quem vos deu tantos amores,

nam m' enganarei jamais,

mas cuidarei que sinais

sam proficias maiores.

Outra sua.

Eu via sempre crecer

de contino cuidado,

quando tinha mais prazer,

me sentia mais cansado.

Pois nam cri estes sinais

nem outros que vi peores,

bem merecem meus amores

o descanso que lhe dais.

706

CANTIGA SUA.

Muito mais mal merecera

do que passo cada dia,

se me por vós nam perdera,

pois que vos ja conhecia.

E neste conhecimento

vejo o bem que me Deos fez,

pois que naci ũa vez

para morrer por vós cento.

Se eu isto nam quisera,

bem vejo que merecia

perder mil almas nũ dia,

s' o corpo tantas tivera.

707

CANTIGA D' ALVARO FERNAN
DEZ D' ALMEIDA SOBRE Ũ
CASO DE QUE ELE NAM
DAVA CONTA A
NINGUEM.

Ja dera gritos ũ mudo

co meo d' ũa paixam

qu' eu tenho, mas sofro tudo

por conservar a tençam.

Sofro muita dor secreta

do que é e ha-de ser,

sendo a causa manifesta

é em mim tam encuberta,

qu' ando pera ensandecer.

A meus males nam lh' acudo,

porque quer meu coraçam

que lhe conserve a tençam

e que leixe perder tudo.

Sua ao mesmo caso.

Tantos males tem meu mal

que se nam podem dizer

e tam maos sam de calar,

como se podem sofrer?

O tempo vai-se passando

e falece o sofrimento,

meus olhos vam amostrando

os sinais do pensamento.

Carecido é este mal

de descanso e de prazer,

pois nam posso mais dizer

tendo tanto que falar.

Outra sua a este mesmo caso.

Que m' aproveita saber

o que me pode matar,

pois se nam pod' escusar

o qu' ha-de ser?

As cousas sam lemitadas

e fados de cada um,

vidas mal-aventuradas

ũas por outras mudadas,

muitos cuidados por um.

Trabalhei por alcançar

isto que vim a saber

para me desenganar,

e acabei de conhecer

que pois havia de ser,

nam se podia escusar.

708

D' ALVARO FERNANDEZ D' AL‑
MEIDA A ŨA DAMA GORDA,
COMO LOUVOR.

Levais donas e donzelas,

todo mundo precedeis

no serão e nas janelas,

onde quer que pareceis.

E mais sois bem desviada

das damas qu' agora sam,

porque sois mui carregada

qu' ee sinal de presunçam.

Logo pareceis antr' elas

daqueles a que recendeis

nas pousadas, nas janelas,

onde quer que pareceis.

709

OUTRAS SUAS A ESTE
VILANCETE QUE DIZ:

Tangovos yo mi pandero,

tangovos y penso en al.

Si tu, pandero, supiesses

mi dolor y lo sentiesses,

el sonido que hiziesses

seria lhorar mi mal.

Quando taño est' estromento

es com fuerça de tormento,

porqu' está nel pensamento

la memoria deste mal.

Y si penso en mi dolor

hazese mucho mayor,

no sé qual es lo mejor

ni sé como sufro tal.

Em mi coraçon, senhores,

son continos los dolores,

los cantares son cramores

de qu' el jesto daa senhal.

Y la causa dest' enganho

ha más que dura d' un anho,

no oso dezir mi danho

porque no muera su mal.

Cabo.

Desta pena es la groria

assentalha en la memoria,

porqu' esta es la vitoria

del triste que quiso tal.

710

CANTIGA D' ALVARO FERNAN‑
DEZ D' ALMEIDA.

Para me poder valer

tiro do qu' ando cuidando,

qu' o qu' ha-de ser haa-de ser,

para qu' ee andar cansando?

E mais sei que tanto monta

verdade como engano,

porqu' engano e desengano

tudo vem a ũa conta.

Quando as cousas ham-de ser

nam ha i ir-lh' atalhando,

porqu' ee mao de desfazer

o que o tempo vai fundando.

711

DE JOAM GOMEZ D' ABREU A
DOM DUARTE DE MENESES, ES‑
TANDO COM EL-REI NOSSO
SENHOR EM ARAGAM,
EM QUE LHE DAA
NOVAS DE
LIXBOA.

Meu senhor, por vos pagar

os ensinos que me dais,

novas vos quero mandar

com qu' ee certo que folgais.

Temos cá mui gentis damas

e mui bem acompanhadas,

e vós la pagais as camas

e pousadas.

Nam prometem caa pancadas

as damas por lhes falar,

mas dam dores mui dobradas

a quem nam se quer calar.

Dam dinheiro por ouvir

às vezes toda pessoa,

andam gordas ja de rir

nesta Lixboa.

Ja nam tomam cá espadas

em as calhes desonestas,

mas mui acerca das frestas

das nossas damas prezadas.

Com bisarma Bras Correa

quer o paço vir roldar,

boons fidalgos aa cadea

quer levar.

Quem nam tem rocim ligeiro

mais que quantos haa em Fez,

nam aguarde no terreiro

que se dêm as horas dez.

Andam logo beleguins

pola costa passeando,

se vos acham i falando,

eis vos is.

A senhora que casava,

ela, a nosso parecer,

estaa disso escusada,

segundo ouvi dizer.

Ũ dos quatro do conselho

a requere para si,

ri-se mais do Conde velho

que de mi.

Prima vossa servidores

acha mais do qu' haa mester,

faz-lhe tam poucos favores

que nam ha i qu' escrever.

Ouve palavras coutinhas

algum hora por desdem

e com novas mao sinhas

folga bem.

Lordelo vejo andar

sempre tam triste com' eu,

dizendo qu' haa-de casar

com ũ d' Abreu.

Culpariês vós Miranda

ir buscar vida viçosa,

se soubesseis como anda

tam fermosa.

Em Anriquez Guiomar

vos nam falo ao presente,

porqu' estando ela doente

me quisera desonrar:

diz que disse dela mal,

estaa de mim descontente,

e ser disso inocente

nam me val.

Prima vossa tem cuidado

de galantes assentar,

tem-se ja desenganado

de no conto nam entrar.

E em parte ha gram prazer

sahir eu mal despachado,

por irmão aqui trazer

escusado.

O Noronha do ruam

é da Silva namorado,

a Candea d' Aragam

foi por ela apodado.

E chamou caa respondinos

oos galantes qu' aqui stam,

faz-m' andar em desatinos

sem rezam.

Tem que passa dos oitenta

servidor nesta cidade

e tem outros de quarenta,

na verdade.

Tinoco anda escondido,     

quer com musicas vencê-la,

é de boubas mais perdido

que por ela.

Estaa com Castro Dom Rodrigo

mui acerca de casar,

Sancho quer ser seu amigo,

nam quer ja ninguem matar.

Ateequi estev' encerrado,

fez mangas de chamalote,

presumimos qu' o pelote

é frisado.

Troux' aqui o seu pecado

ũ domingo Joam Falcam,

vi-lhe logo o coraçam

ir de todo trastornado.

Perguntei-lhe: — Que buscais?

Nam vos lembra o mal passado?

Respondeo-me: — Sam sinais

de namorado!

Se visseis atravessar

aas janelas o Coutinho

e com damas praticar

em talhadas de toucinho!

Folgariês de o ver

de partir cũa senhora,

nam quisesseis mais viver

ũa soo hora.

É por Melo tam sandeu

vosso amigo o de Toar

que me pesa polo seu

de o ver assi penar.

E dela pior tratado

do que certo lhe merece,

cada vez mais namorado

me parece.

Seria muita custura

pera toda esta somana

contar-vos da fermosura

da senhora Dona Joana.

Sabei certo que Meneses,

todas juntas quantas sam,

matam quantos portugueses

cá estam.

O Duque tem gaviães,

dama nenhũa nam mata,

tem galantes bastiães

e nam de prata.

Ensaiou-se no terreiro

ant' as janelas da Ifante,

fez do seu paje fouveiro

ja galante.

Do senhor que cá repousa

no bairro por escolar

nam haa i que dizer cousa,

que seja pera contar.

Seu Sampaio servidor

traz mui loura cabeleira,

anda caa no Salvador

com ũa freira.

Filhos dous Penamacor

da Condessa de Liceira,

o pequeno, qu' ee maior,

tem Macedo por terceira.

Andam ambos derredor

seus amores maldizendo,

o que é comendador

remetendo.

Haa tambem damas singelas

qu' estam sempre a passar,

no eirado e nas janelas

pola seesta as vi estar.

Crece a erva derredor,

andam i bestas pacendo,

a contar-vos mais, senhor,

nam entendo.

O Sousinha em arrefem

se vestio de louçainha,

de gangorra e bedem

foi aa sala da Rainha.

Serve mal sua donzela

vai-lhe bem com' é rezam,

assentou-se ja com ela

no serão.

Fim.

Sam d' Abreu Gomes Joam,

que com mui grande mesura

me conheço ser feitura

mestre meu de vossa mão.

Encomendas òs irmãos

dai-lhe minhas por nobreza

e beijai por mim as mãaos

a su' Alteza.

712

CANTIGA DE FRANCISCO
D' ALMADA.

¡ Ooh gozo de mi alegria,

quieres que nos despidamos,

que la desventura mia

manda que no nos veamos

em quantos dias bivamos.

Pues afraco tu deseo

aunque grave te sea,

que la coita em que me veo

manda que nunca te vea.

De la gloria que solia

conviene que nos partamos,

que la desventura mia

manda que no nos veamos

em quantos dias bivamos.

713

DE FRANCISCO LOPEZ PEREIRA
A ŨA MOLHER QUE SERVIA.

O vosso amor que m' aqueixa

anda em voltas comigo,

foge-me, quando o sigo,

se lhe fujo, nam me leixa.

Nam me leixa sossegar.

quando o creio, entam me nega,

no bem que faz se me entrega

pera m' a vida tirar.

Onde estou ali nam sam

e sam donde nam estou,

por mui longe que me vou

fica com meu coraçam.

Naquilo que mais me praz,

sento logo desprazer,

sem poder triste saber       

meu descanso em que jaz.

Traz-me assi enganado

que nam sei o que desejo,

mata-me se vos nam vejo,

vendo-vos falo dobrado.

Faz-me tanto mal em soma,

que nam sei onde me vaa,

se m' algũa groria daa

nesse momento ma toma.

Tambem manda que nam guarde

as cousas que me defende,

aquelas em que m' ofende

que as nam fale nem brade.

Compre-me ver e sofrê-lo,

calar-me, nam lhe falar,

porque mais quero pagar

com isto que merecê-lo.

Em aquesta deferença

donde vos sou tam conforme,

eu nam sei a quem me torne

nem que busque com que o vença,

senam a vós, minha senhora,

que tendes tanto poder

que me podestes fazer

de livre vosso nũa hora.

Fim.

E pois vosso amor é

o que me causa este dano,

nam queirais que deste engano

se magoe minha fe.

Mas pois que a mal tamanho

resistir com al nam posso,

mandai-lhe que como a vosso

me trate, nam coma estranho.

714

CANTIGA SUA.

Vam seguindo seus estremos

meus males cada vez mais

e vejo que vos lembrais

cada vez ja de mim menos.

Se o fazeis com rezam

nam m' ouçais nunca desculpa

e, se vos nam tenho culpa,

doia-vos minha paixam.

Nam queirais que siga estremos,

que mostrem que me matais,

que com a vida que me dais

nam no posso fazer menos.

715

ESPARÇA SUA.

Dizei-nos que merecemos,

senhoras, pois nos matais,

que, se nisso culpa temos,

é bem que nós vos vinguemos

de nós, em que vos vingais.

E se nam somos culpados,

queiram vossas fremosuras,

por nos nam ver acabados,

que mingoem nossos cuidados

e creçam vossas venturas.

716

CANTIGA SUA.

Senhora, eu vos mereço

desconhecerdes-m' assi.

que tambem des que vos vi

mesmo eu me desconheço.

Aquisto nam vos desculpa,

mas pois ventura ordena

ser eu soo naquesta pena,

minha seja toda a culpa.

Quero-a, que eu a mereço

e nam quero mais de mi

que lembrar-me que vos vi

pera quanto mal padeço.

717

ESPARÇA SUA.

Ja muitos dias pudemos

sem nos ouvirdes viver,

mas ũ dia sem vos ver,

senhoras, nós nam sabemos

como se possa sofrer.

Pedimos que nos queirais

dar olhos com que vejamos

e vidas com que possamos

sofrêla que desejais

pois pera mais

nam quereis que as queiramos.

718

CANTIGA SUA.

Nam façais quanto podeis,

porque pera me matar,

senhora, pode abastar

menos do que me fazeis.

Mostre-se vosso poder

a quem dele inda dovida,

que a mim nam me fica vida

pera o ja desconhecer.

E se com tudo quereis,

senhora, que em mim se veja,

dai-me vida em qu' isto seja

e crer-s'-aa quanto podeis.

719

TROVAS SUAS.

Des que entrei nesta pousada,

vi cos olhos a figura

da sem remedio cilada,

que me tinha aqui armada

minha boa ou maa ventura.

Vi gentes postas em guerra,

vi cidades sem abrigo,

vi cerco de mar e terra,

mas ja agora sei que era

pressagio d' El-Rei Rodrigo.

A liberdade é perdida,

por terra todo seu muro,

e vejo constituida

oo corpo mal dê por vida

e à alma pena de juro.

Mas pois foram destinados

meus dias par' esta pena,

sigam-s' os cursos fadados,

cumpram-se nestes cuidados

os que tem quem mos ordena.

Cabo.

Ó amor, pois me comprende

a força de teu poder,

em meu remedio entende,

nam queiras que quem m' ofende

te possa desconhecer.

Acende em framas vivas

de furor suas entranhas

com dores mortais, esquivas,

porque senta a que m' obrigas

nestas qu' eu sofro tamanhas.

720

CANTIGA SUA.

Ved ya como puede ser

vivir yo que, si vos veo,

mi vida veo perder

y si no os puedo ver,

matame vuestro deseo.

Matame que condicion

non halho pera librarme,

en mi mal no haa redencion,

pues que dobla la passion

lo que penso descansarme.

Ansi que no puede ser

viver yo segun que veo,

vendoos irm' a perder

y no os podiendo ver,

matarme vuestro deseo.

721

OUTRA CANTIGA SUA.

Mundo triste, que vingança

me daraa de ti ninguem,

pois que com tua mudança

quisestes ficar sem bem

por me ver sem esperança.

Modos buscaste anovados,

que per rezam nam recolho,

em mil cruezas fundados,

pois quebraste a ti ũ olho

por mos ver ambos quebrados.

Assi que nam sei vingança

que de ti me dê ninguem,

pois que com tua mudança

quiseste ficar sem bem

por me ver sem esperança.

722

OUTRA CANTIGA SUA.

Pois que doutrem vos lembrais

e de mim sois esquecida,

seraa bem que, pois folgais,

façamos fim d' hoje a mais

pera toda nossa vida.

Seja o passado esquecido

e deitado da memoria

e por ũ sonho havido

nossas cousas, que oo sentido

nunca dêm pena nem groria.

Peço-vos que o façais,

pois que disso sois servida,

e que fim des hoje a mais

façamos, pois que folgais

pera toda nossa vida.

723

OUTRA CANTIGA SUA.

Aflaca vuestro deseo

y criece mi voluntad

com lo que morir me veo

y vos del mal que posseo

agenais la piedad.

Ni os mueve compassion

a tener de mi nembrança,

sabiendo com que razon

sufro y calho mi passion

tan agena d' esperança.

Mirad, mirad lo que siento

con ojos de piedad

no olvideis mi tormiento,

nembreos mi perdimiento,

firmeza, fee y verdad.

724

CANTIGA SUA.

Por saber que vida siga,

se mingua meu mal ou dobra,

mandai, senhora, que diga

com as palavras a obra.

Confessais que me quereis,

nenhũ remedio me dais,

ou falai como obrais

ou obrai como dizeis.

Que nam sei vida que siga

nem em que meu bem se cobra,

sem vós mandardes que diga

com as palavras a obra.

Prende-me vossa mostrança,

solta-me vosso obrar,

ũ com me desesperar,

outro com dar-me esperança.

Nam queirais dar-me fadiga,

pois por i nada se cobra,

sede amiga ou imiga

no falar como na obra.

725

DE FRANCISCO LOPEZ AA
PRISAM DE JOANA
DE FARIA.

Estabat como soia

em suas contemprações

esta senhora Faria,

que de noite e de dia

daa gram pena oos corações.

Repousado seu sentido,

de dentro da casa sua

ouvio ũ grande arroido

e com o receo perdido

saio aa porta da rua.

Com todos seus fariseus

erat autem Joam da Nova,

que pareciam judeus,

que prendiam Cristus Deus

no horto, segum se prova.

Foram tam sem piedade

aquestes, que a prenderam,

que vos juro de verdade

que tamanha crueldade

a ninguem nunca fizeram.

Interrogavit à guia

sua mãi: — A quem buscais?

Bradando a voz dezia:

— A Joana de Faria

e a vós que nos falais.

Foram logo mui cortadas

a mãi e tambem a filha,

com isto tam trespassadas

e da cor tam demudadas

que era gram maravilha.

E dixit: — Que mal tem feito

a coitada inocente?

A Ti, Deos, peço direito

deste tamanho despeito,

que nos faz aquesta gente!

Nam curarão de rezões

os lobos e a tomarão

com tam grandes empuxoẽes

que nom sento corações

que de ver tal nom quebrarão!

Fogirão os servidores,

nulus nunquam pareceo,

foram tantos seus tremores

que a fee de seus amores

naquela hora se perdeo.

Nam houv' ahi quem cortasse

orelha a beleguim

nem quem espada tirasse,

que naquilo se mostrasse

sua fee nam fazer fim.

Dacta es segum se soa

a Faria por mor dano

a esse Pero de Lixboa,

que por ser gentil pessoa

era pontifix esse ano.

E ele, pela fazer

de ũ em outro andar,

disse seu juiz nam ser

e mandou-a remeter

oo Botelho, sem tardar.

Fim.

Tanquam latrones com ela

vi beleguins apegados,

houve tamanha mazela

que por nunca conhecê-la

dera eu muitos cruzados.

Triste, coitada de vós,

menina com tanto mal,

amar os tristes de nós,

que ficamos cá tam soos

e com dor tam desigual.

726

CANTIGA SUA.

Olhai bem como nos tratam

e vereis como nos correm,

que se guardam donde morrem

as que vivem donde matam.

Quem aquisto bem olhar,

vede se poderaa crer

que haa medo de morrer

quem folga de nos matar.

Oh quantas maneiras catam

com que nossos males dobrem,

que se guardam donde morrem

as que vivem donde matam.

727

ESPARÇA SUA.

Chegámos dous servidores

dessa casa bem cansados,

do caminho tam tomados

como somos dos amores,

que nos trazem tais tornados.

Se vivos nos desejais,

vinde logo eesta bandeira,

porque em dor de tal maneira

e penas tam desiguais

nunca viver vos vejais.

728

DE BERNALDIM RIBEIRO A ŨA
MOLHER QUE SERVIA E VAM
TODAS SOBRE MEMENTO.

Lembre-vos quam sem mudança,

senhora, é meu querer,

perdida toda esperança

e de mim vossa lembrança

nunca se pode perder.

Lembre-vos quam sem porquê

desconhecido me vejo

e contudo minha fee

sempre com vossa mercê,

com mais crecido desejo.

Lembre-vos que se passaram

muitos tempos, muitos dias,

todos meus beens s' acabaram      

contudo nunca mudaram

querer-vos minhas porfias.

Lembre-vos quanta rezam

tive pera esquecer-vos

e sempre meu coraçam,

quanto menos galardam,

tanto mais firm' em querer-vos.

Lembre-vos que sem mudar

o querer desta vontade

m' haveis sempre de lembrar

tee de todo m' acabar

vós e vossa saudade.

Lembre-vos como pagais.

o tempo que me deveis,

olhai quam mal me tratais,

sam o que vos quero mais,

o que menos vós quereis.

Lembre-vos tempo passado,

nam porque de lembrar seja,

mas vereis quam magoado

devo de ser co cuidado

do que minh' alma deseja.

Lembre-vos minha firmeza

de vós tam desconhecida,

lembre-vos vossa crueza,

junta com minha tristeza,

que nunca foi merecida.

Lembre-vos que se quisereis

assi como consentistes

nestes meus males, fizereis

com o menos que podereis

nam ser em meus dias tristes.

Lembre-vos quam mal tratado

lembranças vossas me trazem,

eu sempre menos mudado,

quando mais desesperado

vossas mostranças me fazem.

Lembre-vos a quam maa vida

tenho por bem vos querer,

esta dor faz mais crecida

nam vos ver arrependida

de mo assi desconhecer.

Lembre-vos, minha senhora,

que, por ja me verdes vosso,

mostrais que vos desnamora

procurar ver-vos cad' hora,

o qu' eu escusar nam posso.

Lembre-vos que nem por isso

minha fee vereis mudada,

o qu' estaa craro e bem visto,

pois cousas mores naquisto

tiveram forças de nada.

Lembre-vos qu' outra mercê

de mim nunca foi pedida,

senam soo que minha fee,

pois tinha causa porquê

fosse de vós conhecida.

Nestes dias dezimados,

lembre-vos com quanta pena

ham-de viver meus cuidados

sendo ja desesperados,

vendo que nada os condena.

Lembre-vos que vida tal

nunca vo-la mereci,

olhai bem em quanto mal

me pagais o ser leal

co tempo que vos servi.

Fim.

Lembre-vos que vosso amor

m' haa, senhora, d' acabar,

pois com tanto desfavor

nunca ora minha dor

de vós me pode apartar.

Lembre-vos, pois nisto espero

d' acabar, qu' acabo aqui,

que com quanto desespero

nam menos assi vos quero

que no dia em que vos vi.

729

CANTIGA SUA.

Nunca foi mal nenhũ moor

nem no ha i nos amores

qu' a lembrança do favor,

no tempo dos desfavores.

Eu por minha maa ventura

nam haa ja mal que nam visse,

mas nunca tanta tristura

me lembra qu' inda sentisse.

Fui e sam grande amador

e vai-me bem mal d' amores

e muitos vi de grão dor,

mas est' é suma das dores.

730

DE PERO DE SOUSA RIBEIRO
AO BARAM, PORQUE LHE FAZIA
CABANAS ŨA CAPA BORLADA
DE MALMEQUERES.

Que mal me queres, Cabanas,

que senreira teens comigo,

que tanto pano me danas,

sendo sempre teu amigo?

D' envençam de malmequeres

estav' eu bem descuidado,

mas tu, perro arrenegado,

pagarás o que fizeres.

Sempr' este foste, Cabanas,

juguetas mui mal comigo,

pois estas obras que danas

trazem-no riso consigo.

Francisco da Silveira por parte
de Cabanas.

— Senhor, porque vos queixaes?

Para que sam tais oufanas?

Se vos mal entretalhais

para qu' ee culpar Cabanas?

Tendes condiçam estranha,

erraes a galantaria,

entam quereis que nam ria

a de Mendanha.

731

CANTIGA DE PERO DE SOUSA
RIBEIRO.

Aperfia meu cuidado

comigo sem me deixar,

tanto que seraa forçado,

se dura, de me matar.

Nunca me deixa tristeza     

de a ter tenho rezam,

pois vejo meu coraçam

contra mim em tal firmeza.

Faz-me ser desesperado

tal vida sem esperar,

tanto que seraa forçado,

se dura, de me matar.

732

DE PERO DE SOUSA A DONA
MARIA D' EÇA.

A que meu descanso empeça

tempo é de a nomear,

oo minha senhora d' Eça,

parti-me sem vos falar!

Se neste paço andava,

senhora, sem vos servir,

andava porque cuidava

qu' era servir-vos mentir.

Mas nunca a ninguem aqueça

convosco dessimular,

oo minha senhora d' Eça,

parti-me sem vos falar!

733

DE PERO DE SOUSA A DOM FER‑
NANDO PEREIRA, ANDANDO AM‑
BOS COM ŨA DAMA E NŨ CAMI‑
NHO FORAM ACHAR ŨA SUA
AZEMELA COM Ũ REPOSTEI‑
RO D' ARMAS ALHEAS.

Achámos-t' um reposteiro

com cruz de Cristos no meo,

que te nam custou dinheiro,

mas tam certo como es feo,

é alheo.

Se o mandaras fazer,

fora verde e lionado,

ou tu mentes no cuidado

em que m' eu vejo morrer.

Compr' outro do teu dinheiro

das cores de quem receo,

qu' eu ja bem creo qu' es feo,

mas descreo

de ser teu o reposteiro.

734

VILANCETE QUE FEZ PERO DE
SOUSA, QUANDO EL-REI NOSSO
SENHOR VEO DE SANTIAGO,
QUE FEZ O SENGULAR MOMO
EM SANTOS, O QUAL VILAN‑
CETE IAM CANTANDO
DIANTE DO ENTREMES
E CARRO EM QUE
IA SANTIAGO.

Alta Rainha, Senhora,

Santiago por nós ora.

Partimos de Portugal

catar cura a nosso mal,

se nos Ele e vós nam val,

tudo é perdido agora.

Pois que somos seus romeiros

e das damas tam enteiros,

cessem jaa nossos marteiros,

que nunca cessam ũ hora.

Pedimos a Vossa Alteza,

em qu' estaa nossa firmeza,

que nam consinta crueza

neste seram oos de fora.

Aqui nos tem ja presentes

de nossos males contentes,

pois nom valem aderentes,

hoje nos valei, Senhora.

735

DO BARAM A FRANCISCO DA
SILVEIRA, PORQUE D' ŨA LOBA
ÇAFADA MANDOU FAZER ŨA
CAPA DE GRADA.

Senhor, vingança me dai

ou a pedirei a El-Rei

daqueste perro d' Issai

que fez quanto lh' eu mandei.

Porque lhe disse em desdem

qu' a lob' era jaa çafada,

levou-a par' à pousada,

fez dela capa de grada,

que nam agrada a ninguem.

Tal alfaiate deixai    

e servi-vos do d' El-Rei,

pois este perro d' Issai

me fez quanto lh' eu mandei.

736

DE SIMAM DE SOUSA AA SE
NHORA DONA CATERINA DE
FIGUEIROO.

Oo vida, que se nam sente

de quem na daa e a tem

por pior fim!

Ó meu mal, qu' estás presente,

ó meu bem, que nam es bem

nem no haa em mim!

Mas vivo em me lembrar

que soes vós por quem sostenho

nam viver

e que nam posso leixar

d' haver quantos males tenho

por prazer.

Por isso nam façais vós

errada, que ambos vemos

conhecida,

sem fazer nenhũ de nós

o que cada ũ devemos

eesta vida.

Vós por me mandardes mal

e eu qu' em vo-lo comprir

assi me fundo,

vós por fazerdes igual

o mandado do sentir

que sou o mundo.

Que mais descanso nam tenha,

ja vos dei quanto bem tinha

que ja nam tenho,

mas nam sei quem se sostenha

senam eu na vida minha,

que sostenho.

Sobr' isto mal me fazeis

e nam vedes qu' o qu' eu faço

é fengido;

assi que quanto quereis,

senhora, eu contrafaço

e sam perdido.

Em meus males descansava

antes que mos defendesse

quem mos deu

e co eles m' alegrava,

mas nam quis que os sofresse

polo seu.

Olhai bem quam pouco ser

dais à vida que sostenho,

de que vivo,

que me lançais a perder

e perco quanto bem tenho

e quanto digo.

Donde me viraa descanso

s' a rezam, qu' era perdida,

me tirarão?

Se eu cuido nisso, canso,

qu' em me darem estoutra vida

me matarão.

E trouve-m' a este fim

esta dor que m' assi trata,

que nam cansa,

que nam sei parte de mim,

mas tanto quanto me mata,

me descansa.

Nestes males haa ũ mal

que ninguem nam pode ter

senam eu,

a que nam acho igual,

qu' eu folgo bem de sofrer

polo seu.

Matai-m' aa vossa vontade

com vossos males estranhos

sem rezam,

qu' ess' ee a minha verdade,

posto que sejão tamanhos

como sam.

Fim.

De quanto vedes que digo,

nam cuideis que me aqueixo,

mas descanso,

que é o maior abrigo

de quantos busquei e deixo

e mais manso.

737

OUTRAS SUAS A ESTA SENHORA.

É tanto o mal que sento

que nam posso escusar,

senhora, de vos lembrar,

que moiro de sofrimento.

E pois estou neste fim

a que me determinastes,

quero-vos lembrar de mim,

pois vos vós nunca lembrastes.

Muitas vezes vou cuidando

como posso descansar,

acabo sempre cansando

de cuidar.

E maneira nunca vejo

pera isto poder ser,

sem acabar de viver

que agora mais desejo.

Assi nam sei desejar

de ser bem-aventurado,

porque nam posso cuidar

no que sam desenganaado.

Fazei o com que folgais,

qu' eu isto hei-de fazer

sempre enquanto viver,

posto que vós nam queirais.

Cousas que daa presunção

têm muito boa desculpa,

fujo sempre desta culpa

e vós da minha rezão.

Nem se podem guardar tanto

ũs olhos que algũ hora

nam olhem sua senhora

detras d' alguem ou d' ũ canto.

Qu' este mal qu' ee o meu bem

de todos o guardo eu,

mas qu' ha-de fazer quem tem

tantos medos polo seu?

Assi nam sei que me valha,

se tolhem o que nam dam

e dam muito maa rezam

por nemigalha.

Fim.

S' olhardes o fim que sigo,  

verês bem craro meu mal,

queixo-me enquanto digo,

mas nada porem me val.

Esta hora vai perdida

e eu me vou a perder,

nam me mata minha vida

nem me quer leixar viver.

738

DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
CATERINA DE FIGUEIRÓ.

Para me tirar a vida

muitas cousas s' ajuntarão,

duas delas abastarão.

Abastará nam vos ver,

ou ver que me nam olhais,

pois que sam males mortais

qualquer destes de sofrer.

E co estes à minha vida

tantos outros s' ajuntarão

que de todo ma tirarão.

739

DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
CATERINA DE FIGUEIRÓ.

Ja muitos dias havia

qu' este tempo receava

e me trouxe a fantesia

que devia

saber de mim com' andava.

Quando as cousas têm tal fim

haa nelas grandes sinais,

comecei d' olhar por mim

e Almeirim

me descobrio inda mais.

O viver tam atrevido

ond' ee tam desordenado,

o prazer é ja perdido

e mal sofrido,

bem perdido e mal ganhado.

S' esta vida toda é tal,

nam na ter milhor me vem,

assi nisto nem no al

nam sinto mal

nem desejo nenhũ bem.

Trabalho de se nam ver

o que vou dessimulando,

finjo que tenho prazer

e por se crer

lhorando ando cantando.

Desejo de m' acabar

este mal qu' em mim nam cabe

e queria-m' endinar,

por me vingar,

mas, s' eu posso, Deos o sabe.

Esperança de prazer

nam vos vendo é perdida,

se trabalho por vos ver,

vou saber

qu' em ambas nam tenho vida.

Assi nam sei o que faço,

todalas cousas receo,

o fundamento desfaço

em que jaço,

pois eu nem ele tem meo.

O meu mal foi ordenado

a qu' eu só sei o respeito,

leixa-m' assaz magoado

e vingado,

mas porem nam satisfeito.

E pois é por tam mao fim,

deve de ter maior culpa,

a tam mao estado vim

que a dou a mim,

por dar a outrem desculpa.

Vós me fizestes perder

o gosto do desejar,

enfado-me de viver

por vos ver

em outras cousas folgar.

Ooh trabalhoso cuidado,

eu soo vos hei-de sentir!

Ooh tempo tam bem gastado,

ja passado,

tam mao o qu' estaa por vir!

A groria é perdida

do mal daquesta demanda,

hei medo de minha vida,

mal sostida,

polo lugar em que anda.

J' eestaa mal determinado

qu' isto nam fosse mais cedo,

nunca m' eu vi tam ousado

d' enganado,

nem houve tamanho medo.

Fim.

Ũ conforto posso ter,

que outro me nam ficasse,

é ouvir sempre dizer

que nam quis fazer

Deos a quem desemparasse.

Ja desfiz meu fundamento

por dar a meus males fim.

Oo meus castelos de vento,

quanto sento

ver-vos ja fora de mim!

740

CANTIGA SUA.

Tudo se pode sofrer,

pera tudo i haa rezão,

mas nam jaa homem viver

sem coração.

No lugar qu' o meu estaa,

pus por mais seguro seu,

mas como vivirei eu,

se o nam consentem laa?

Nam se vio nem ha-de ver

tal modo de perdição,

todos folgão de viver

e eu nam.

741

DE SIMÃO DE SOUSA A ŨU SEU
AMIGO, POR QUEM FALAVA.

O trato é assentado

muito à minha vontade,

mas, na verdade,

eu achei o mar picado.

Na primeira altercámos,

desfiz-lh' as suas rezões

e nas minhas concrusões

assentámos.

742

DE SIMÃO DE SOUSA À SENHO‑
RA DONA JOANA DE MENDOÇA.

Nam sei de mim o que fora

nem que fizera,

se meu bem vo-lo nam dera.

S' ateegora nam souberam

quem sempre teveste bem,

foi medo que me poserão

os males de quem mo tem,

Que s' este medo nam fora,

eu dissera

minha dor a quem ma dera.

E vendo que m' ee pior,

nam quero senam dizê-lo

e escolho por milhor

fazer-me mal e sofrê-lo.

Quiça o digo em hora

que quisera

nam ter vida que perdera.

Se me mata, saberam

por quem moiro e são vencido,

qu' ee muito boa rezão

pera tudo ser perdido.

Sempre o fui e agora

por quem era

rezão que tudo perdera.

Da senhora Dona Joana

de Mendoça me chamo eu,

por esta sam ja sandeu,

que com ninguem nam s' engana

se dela doutrem nam fora

nem quisera

nenhũ bem que me fizera.

E ainda que tivesse

o bem d' outrem, nam no quero,

por mais pena que me desse

nam daria o mal qu' espero.

Porque se ele nam fora,

nam tivera

descanso nem no quisera.

E se jaa dessimulei

o mal deste pensamento,

foi muito grande tormento

qu' eu bem sinto e sentirei.

Mas nam sei d' então teegora

que fizera,

s' isto em mim nam conhecera.

Conheço qu' ee grã rezão

que me mate, se quiser,

mas quem tal causa tiver

tem boa satisfação.

Tê-la-ei sempre e agora,

mas quisera

ter mais vidas que perdera.

Pola que tenho perdida

desejo mais que perder,

sem esperar de haver

deste meu bem conhecida.

Contudo digo, senhora:

– Quem tivera

mor poder qu' em si vos dera!

Fim.

Nam quero mais qu' a rezão,

fazê o peor que souberdes

e de vossa condição

usai quanto vós queserdes.

Que, se de vós livre fora,

nam houvera

por bem nenhũ que tivera.

Cantiga destas trovas.

Ateequi dessimulei

quanta dor tenho e me dais,

j' agora nam posso mais.

Poderei sempre sofrer

quanto mal por bem houverdes,

mas nam leixar de dizer

que folgo de me perder,

vós folgai no que quiserdes.

Esta dor dessimulei

ateequi, mas nam creais

que a pude encubrir mais.

743

DE SIMÃO DE SOUSA
A DONA JOANA DE MENDOÇA.

Males que nam são de fora 

e que vêm do coração,

estes matão, qu' outros não.

Nestes que do meu me vem

corro eu risco mortal,

mas como podi' eu ter bem,

se nam tivera este mal?

Conquanto é desigual

a dor do meu coração

dêm-na a mim e outrem nam.

Por segurar minha vida

a dei eeste mal presente,

ó vida, que es tam perdida

com' eu dela sam contente!

Este mal por bem, se sente,

posto que a perdição

estê bem certa na mão.

Descanso do meu viver,

trabalho que nunca cansa,

vida tomada por mansa,

mais forte que pode ser!

Que desviado prazer

de quantas cousas o dam

é o desta perdição!

744

CANTIGA SUA A ESTA
SENHORA.

Por ter em vós esperança

seja, pois nam quero al

d' algũ bem ou de mais mal.

E será com condiçam,

pois i nam ha bem sem ela,

se ma tirardes entam

leve-s' a vida co ela.

Que dela pera perdê-la

é muito certo sinal

de se perder tudo o al.

745

DE SIMÃO DE SOUSA A ESTE
VILANCETE ALHEO.

Pois deixaste em mi memorea,

cuidado, pena y dolor,

loado seas, amor.

Si te dó gracias, mi dios,    

no son por las que me hazes,

antes nelhas me desplazes,

que d' um mal me hazes dos.

Si tu por bien das a nos

vida de tanto dolor,

loado seas, amor.

Quanto bien tuve te di,

tu a mi quanto mal veo,

acrecentas mi deseo

por vida menguar a mi.

Pues veo morir em ti

mi vida, qu' es mi dolor,

loado seas, amor.

746

DE SIMÃO DE SOUSA, ESTANDO
DONA JOANA PRESA POR
MANDADO DA RAINHA.

Senhora, pois que sois presa

e ja nam pode ser al,

seja por cousa defesa

que vos nam pod' estar mal.

Assi que tal prisoneiro

nesta prisam o topasse,

sendo eu o cacireiro

e senhor quem se pagasse.

747

DE SIMÃO DE SOUSA, QUE LHE
DISSERAM QUE CASAVA DONA
JOANA DE MENDOÇA.

Diz que quem cala consente,

isto nam s' entenda em vós,

porque nam paguemos nós

tudo em vida descontente.

Se o fazeis, é rezam

que diga meu parecer

e saibais minha tençam,

por tudo se vos dizer.

O costume deste reino,

di-lo-ei que nam sam mudo:

de fidalgo t' escudeiro

aas molheres pende tudo.

Andam bradando por casa  

com paixam, dor e cuidado,

justando em sela rasa,

refertando o mal gastado.

Azeite, vinho e pão

a suas mercês s' encomenda,

é bem que se nam entenda

o que a entender-lhes dão.

Tambem lhes pedem rezão

do que disto é gastado,

dizendo qu' a provisão

é de molher de recado.

Às vezes vam à cozinha

sem haver nela que ver,

que condiçam tanto minha

ou para minha molher.

Leixando o que tendes caa

e que d' outros s' oferece,

por tomardes o de laa

qu' ee pior do que parece.

Outra causa m' esquecia,

que nam vai nesta receita,

qu' ee paixam de cada dia

de que a conta está feita:

é qu' a chave do dinheiro

se nam fia de Deos Padre,

senhora, d' ũa gram verdade

qu' ee condiçam d' escudeiro.

Ja d' i a dous ou tres anos

qu' isto vem arrefecer,

começão os desenganos

a crecer e vorrecer.

Si nam haa conformidade,

quando as cousas assi vão,

pouc' aproveita rezão

onde falece vontade.

Isto a meu parecer,

senhora, qu' aqui aponto,

ainda nam vem a conto

par' qu' havês lá de ter.

Eu soo me sei desviar

de todos polo que sei,

são todo de dexa far

mice a Domine Dei.

Todo meu feito é prazer,

comia contentamento,

folgar, rir, cantar, tanjer,

haver tudo o al por vento.

S' a senhora que vier

nam for muito dessorada,

fará tudo o que quiser,

se o for, nam fará nada.

E terá bem negros dias,

qu' eu tambem posso morrer,

certo nam podia ser

da doença de Mancias.

Se for à minha vontade,

dina do meu pensamento,

dar-lh' ei minha liberdade,

busque-l' oo contentamento.

Se vos vir tam enganada

e nos leixardes tam sós,

quando preguntar por vós,

será pola enforcada.

Polo entender milhor

virá negro a dizer:

— Mandar fazer de comer,

senhora, pera meu senhor.

Fim.

Este aviso querê-o,

ele podês engeitar,

que ninguem nam tem receo

senam do recuchilhar.

Tambem vos doê de vós

que sem vida nos leixais,

em na tirardes de vós

pola dar a quem vos dais.

748

DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
JOANA DE MENDOÇA.

Nam me podeis agravar

com cousa que me fizerdes,

porque nam sei desejar

senam o que vós quiserdes.

No que sei que vós folgais,

nisso folgo eu tambem,

se me nam fizerdes bem,

mas que nunca mo façais.

Que co esta condiçam

quis vida pera perder,

que me deu a presunçam

de vos saber entender.

Com isto soube acertar,

que me mil vezes mateis,

nisso soo hei-de folgar,

nam sei no que folgareis.

749

DE SIMÃO DE SOUSA A ŨA
MOÇA DA CAMARA DA RAINHA,
QUE NŨ PASSO SE LHE
FEZ DAMA.

Exempro bem verdadeiro

que a todos hei-de dá-lo,

diz que queda de sindeiro

é maior que de cavalo.

Ja se o sindeiro é

d' albarda,

é milhor andar a pee

ũa valente jornada.

Tiveras cornos, sindeiro,

pois que ja nam es cavalo,

que dar couce ũ chincheiro

ja quem xequer sabe dá-lo.

750

DE SIMÃO DE SOUSA A DONA
JOANA DE MENDOÇA.

Senhora, quem vos nam vio,

é fora d' um gram cuidado,

quem vos vio bem lh' ha custado!

Custa bem e custa dor,

custa vida e dai-la tal

que deve de ser milhor

o que s' ha por maior mal.

Se quero cuidar em al

ou fengir outro cuidado,

é trabalho escusado.

E pois i nam ha descanso,

menos piadade vossa,

sej' oo tormento mais manso

com que a vida milhor possa.

Qu' a dor disto seja vossa,

eu por meu hei o cuidado

que me tanto tem custado!

751

OUTRA SUA A ESTA SENHORA.

Se vedes polo que faço

que o posso bem fazer,

é porqu' al nam pode ser.

Neste tempo que passou,

que nunca pode passar,

na vida que me deixou

vi vida pera deixar.

E por m' outrem nam matar,

o quis eu a mim fazer

por tal culpa ninguem ter.

752

OUTRA SUA A DONA JOANA.

Quem souber minha vontade

e culpar minha tençam,

ou terá rezam ou nam.

Ũa vontade que tinha

que me dava mil vontades,

por ũa mintira minha

me mostrou muitas verdades.

Vaidade das vaidades,

errada contempraçam

das qu' algũ descanso dam.

753

DE SIMÃO DE SOUSA.

Descanso de minha pena,

remedio desta paixam,

ó senhora,

por quem tanto mal s' ordena,

onde as cousas assi vão

quem nam fora?

Por remedio vos busquei

de quando eu nam vevia

sem vos ver,

em lugar disto achei

tanta dor que nam queria

ja viver.

Ó vida de minha vida,

cuidado que me nam deixa

cuidar em al,

que vos vejo tam perdida

qu' atee minh' alma se queixa

deste mal!

Que farei ou que fazeis,

onde vos is, que deixais

tudo caa?

Vedes o quem vós perdeis,

que lá onde vos levais

nam haa laa.

Leixais o mundo perdido,

vós, senhora, mal guanhada,

sem desejo.

Fica o mundo destroido,

vós cedo desenganada

tambem vos vejo.

Quando vos despois achardes

neste engano qu' ha-de dar

prazer a nós,

por mais que entam chorardes,

eu sam o qu' hei-de chorar

mais ca vos.

S' estas magoas sentisseis

que no coraçam me dam,

senhora,

nam pode ser que nam visseis

que de minha perdiçam

é vinda a hora.

Tirastes-m' o meu prazer,

destes-me tanta tristeza

por tanto bem

que nam quero ja viver,

por nam ver tanta crueza

em ninguem.

Oh que tristeza tam triste,

que desconsolada vida

e que cuidado!

Que se tu, Fortuna, viste

golpe em vida perdida

a mim é dado.

Fizeste-me muito mal

e a vida nam s' esforça

par' o sofrer.

Eu nam posso fazer al,

mas isto seraa força

de nam viver.

Remedio nam no espero,

que quem mo podia dar

nam no tem.

Antes dele desespero,

que todo desesperar

a mim convem.

Senhora, pois vos levais,

leixando minha verdade

por i perdida,

lembre-vos que me leixais

sem nenhũa piadade

e sem vida.

Oh cruel tormento meu,

que d' outrem nam pode ser

nem é bem que seja,

que tanto trabalho deu

a mim, a quem o viver

me sobeja!

Atormentado de mim

desconsolado, perdido,

vida perdida!

Que despiadoso fim!

Ooh quem nam fora nacido

nesta vida!

Quem ha jaa de querer nada

deste mundo nem de vós,

nem daqui,

qu' a cousa vai ja danada

em ver mao pesar de vós

feito por i.

Podera ora bem ser

qu' algũ hora soidade

desta fee

vos possa entristicer,

senhora, que gram verdade

esta ee.

Fim.

Estas palavras perdidas

nam nas digo por guanhar

nada co elas,

mas se nos tirais as vidas,

leixai-me desabafar

por elas.

E leixai-me fartar bem

qu' eu desta hora vos deixo

por diante.

Nam me defenda ninguem,

ja que me eu nam aqueixo,

que m' espante.

754

CANTIGA SUA.

Bem perdido e mal guanhado

nam se sente e eu o sento,

ooh fundamento enganado,

tomado sem fundamento!

Onde rezam é perdida

no que s' entam oferece,

fica a tençam conhecida

d' ũa que se nam conhece.

Sentido tam acupado,

esprito que foste isento,

quem te fez tam enganado

que te nam deu fundamento?

755

DE FRANCISCO HOMEM,
ESTRIBEIRO-MOOR D' EL‑
REI NOSSO SENHOR.

¡ Oh quien viesse prazo cierto

y fuesse venida suerte

del muy querido concierto

de su deseada muerte!

E mi mal quiero encobrir

e comigo padecer

por me nom dar gram prazer

al tiempo de mi morir.

Porque no quiso Ventura

que fuessedes piadosa,

pues que vos fizo fermosa

sobre toda fremosura.

Mas estava ya ordenado

del começo de mis dias

las grandes angustias mias,

firmadas de mi cuidado.

Yo de passiones ferido

y de dolores passado,

de veros amortecido

y del deseo finado.

¡ Ooh que grande estremo sigo!

Hay começo, mas no medio,

o fim de tod' el remedio,

senhora, como soy vivo.

Y con tormiento mortal,

dolor y pena y olvido,

distes las armas al mal

con que me tiene vencido.

De mi estoy muy dudoso,

todo el prazer se desvia,

¡ oh mi cuidado lhoroso,

perdida esperança mia!

Los vuestros graciosos ojos,

fermosos e deseados,

los mios con sus enojos

muy tristes y muy cansados.

Querelhams' elhos de mim,

yo quexome delhos cierto,

mas aqueste desconcierto

es concierto de mi fim.

Vos, senhora, lo quereis

y crueza lo consiente,

mas elh' alma triste siente

el mal que vos me fazeis.

Mas yo cierto seré suyo,

que la fee pide y quiere,

qu' este fuego de que fuyo

yo lo pido y el me fiere.

Dezirvos la mi gram pena

no lo sufren mis querelhas,

que mi mala suerte ordena

el mal que me viene delhas.

Yo no oso descobrir

mis lhantos y disfavores,

cercado ya de dolores

me parto pera el morir.

Soy cativo del enganho,

sogeito de la sogeita,

desta ventura imperfeita

que se queixa de su danho.

Y cierto dudosa groria

levais deste mi tormento,

qu' es grande el vencimento

y pequenha la vitoria.

Fim

No me quero ya quexar,

que mi mal y mi porfia

no se puede imaginar

ni lo daa la fantesia.

Porque crece cada hora

tam grande, mortal y fuerte,

que vos por me dar la muerte

ya me la quitais, senhora.

756

OUTRAS SUAS SOBRE Ũ REGI‑
MENTO DE ŨAS CONTAS EM
QUE SE GUANHAVAM
MUITOS PERDÕES.

Este é o regimento

e reza-se desta sorte:

começa-se em meu tormento

e acaba-se em minha morte.

Oulhai, senhora, por ele

e nam por mim,

aldemenos vereis nele

minha fim.

Item, senhora, rezando

este rosairo tres vezes,

confessada e confessando

que meus males nunca vedes,

vós ficareis sem culpa

e eu na pena,

porque a culpa me desculpa,

sabendo de quem s' ordena.

Que s' eu enganado vivo,

desenganado padeço.

nam me dais o que mereço

nem me quereis por cativo.

Mas dizei-me vós agora

que farei,

que sem vos lembrar, senhora,

morrerei.

E porque busco os estremos,

me buscam eles a mim,

mas triste de mim que vim

aa conta qu' ambos fazemos.

E eu a faço de perdido

sem ventura,

vencido que é ja vencido

da vossa gram fremosura.

Mas é mui certo que a vida

que em tais perigos se vê

nam pode ser nem se crê

senam que é ja reperdida.

Tomai as contas na mão

com tal fee

que este vosso coração

vosso é.

Anda o esprito em pena

nesta vida que nom tem,

este fogo donde vem

que tantos males m' ordena?

Porqu' este mal que m' aqueixa

nam tem meio,

mas pois que m' ele nom deixa

de vós veio.

Ooh coitada d' esperança

que tomou nome de minha

porque em ver-vos adevinha

que mudada dais mudança!

Que vos fiz? Que vos mereço?

Que me dais?

Dores e dor, que padeço,

desiguais.

Fim.

Virdes vós, senhora, a ter

perdam de tantos enganos,

nom ouso nem sei dizer

que sois livre de mil anos.

Que segundo o vós fazeis

sem nos terdes,

hei medo que nos mateis

como o souberdes.

757

CANTIGA SUA.

Senhora, laa vos daram

ũas contas que pedistes,

porque as minhas nam nas vistes

nem ouvistes

nem vos pareceo rezam.

Eu com minha conta feita,

rompestes-ma sem na ver,

mas tam puco m' aproveita

calá-lo com' o dizer.

Os extremos vossos sam,

contas de longe pedistes,

meus males nam nos sentistes

nem me vedes nem me vistes,

sendo comigo a rezam.

758

OUTRA SUA.

O tempo fará o seu,

que dos sinais da Ventura

esperança nam segura.

Oo Ventura, que ordenais

sem esperança vencido,

qu' em começo tam perdido

perdidos sam nos sinais.

Porque de perigo seu

a mudança me segura

muito gram desaventura.

Mas a causa deste mal,

nom é mal, pois de vós vem,

que quanto mais desigual

mais merecimento tem.

Seguro que o tempo deu

com sinais de fremosura

nam sam de vida segura.

759

TROVA SUA A ŨU HOMEM, QUE
SE QUEIXAVA DO TEMPO.

Como o tempo é de mudanças

busca sempre meios tais

que no que mais desejais

daa mui longas esperanças.

Nam quer senam que gasteis

somanas, meses e anos

e ele com seus enganos

traz encubertos os danos

de males que nom sabeis.

760

OUTRA SUA.

Que novidade oo revez      

daa este meu coraçam,

que semea ũa paixam

e nacem dez!

Lavrei cos olhos enganos,

a rezam semeou pena

e meu cuidado m' ordena

novidade de mil danos.

Senhora, vai atravez

com males meu coraçam,

que semea ũa paixam

e colhe dez!

761

OUTRA SUA, QUE MANDOU A
SUA DAMA, DE NOSSA
SENHORA DA PENA.

Naquesta pena mui alta,

meus olhos, vedes tal dano

qu' haveis por vid' o engano.

Porque perigo tam grande,

tam grande como meu é,

hei medo que se desmande

a vida, mas nam ja a fee.

Que por mais males que dê

a pena do desengano,

folgo porqu' ee mor meu dano.

762

OUTRA SUA QUE MANDOU
A SUA DAMA, PORQUE SE
FERIO NUM DEDO.

Do vosso ferir hei medo,

porque a culpa da tençam

deu sinal ao vosso dedo

do mal do meu coraçam.

A vingança que ha-de vir

agora se descobrio,

que quem cos olhos ferio

com ferro se ha-de ferir.

A culpa nam é da mão

nem foi, senhora, do dedo,

mas do vosso coração

ousado e sem nenhũ medo.

763

OUTRA SUA.

Pois que minha vida é tal,

ja queria saber certo

se vem vosso bem tam perto

como o mal.

Porque o mal tenho comigo

e ele anda ja sem mim,

mas coma maior imigo

o bem me põe em perigo,

perigo que nam tem fim.

Mas a fee, que é immortal

teraa esperança certo

de ver o bem mui incerto

e certo o mal.

764

OUTRA SUA.

Tudo vejo contra mim,

vós e eu e a razam,

coitado d' um coraçam

que sam tres a dar-lhe fim!

Cercado e combatido,

querendo-se defender,

a vontade o tem vendido

e a rezam o fez perder.

Descobrio-se contra mim

cuidado, dor e paixam,

coitado d' um coraçam

que mil modos tem de fim!

765

DE FRANCISCO MENDEZ DE
VASCONCELOS, INDO-SE
METER FRADE, A Ũ SEU
AMIGO QUE LHE
MANDOU PREGUN‑
TAR ONDE IA.

Meu senhor, vós desejais

minha partida saber,

peço-vos que nam sintais

a perda de me perder.

Que onde quer que m' achar

e estiver,

servir-vos-ei de folgar

no que poder.

De ser vosso obrigado

sam certo que o sabeis,

porque culpa me nam deis

respondo oo preguntado,

o qual sempre quis calar,

porque sabia

haver-vos pena de dar

a que sentia.

Trazer isto tam calado

me convinha pera ser,

a ninguem nam no dizer

me forçava seu cuidado,

do que culpa me nam deis,

que, se olhardes,

vereis craro que errareis

em ma dardes.

Que se laa tal vos dissera,

o pesar-vos m' estorvara,

sem quererdes nam fizera

aquilo que desejara.

E dest' arte nam vos vendo,

nam dareis

a mim pena da que entendo

que tereis.

Por menos males sentir

de vos ver fogi partindo,

per outr' arte tal partir

sem ver-vos fui mais sentindo.

Mata-me a saudade

que tereis,

a que levo na vontade

ja sabeis.

Na dor que levo conheço

a que vós por mim tereis

e nela, senhor, mereço

a que mais padecereis.

E por de mim vos vingar,

quero dizer

a vida que vou buscar

pera viver:

Pardo habito, cordam

do meu nome nomeado,

com manto da condiçam

da minha bem desviado.

Com alforge e cajado

mendigando,

a mim mesmo do passado

castigando.

Escolhi aquesta cor

pola meu coraçam ter,

o qual de cheo de dor

em trabalho quer morrer.

Nunca pude al fazer

pola razam

e a quem mal parecer

peço perdam.

Aqueste triste vestido

e maneira de viver,

por ter menos que perder,

escolhi ja de perdido.

E nele sem mais querer

vivirei,

a vida que hei-de ter

nomearei:

Vivirei de sentimento

de quem mal tenho vevido,

terei vida com tormento,

que bem tenho merecido.

E serei arrependido

do passado,

o qual tenho conhecido

ser errado.

Vivirei de saudade

sem dizer de que seraa,

vivirei sem liberdade,

que mais livre me faraa.

A mim outrem mandaraa

e eu farei;

se errar, castigaraa

e sofrerei.

Vivirei ledo, contente,

nos tormentos desta vida,

minha dor nam conhecida

outras moores me consente.

Toda cousa qu' atormente

buscarei,

de sofrer sempre doente

andarei.

Meu descanso haa-de ser

cansar em outros servir,

quanto moor pena sentir

mais ledo m' hei-de fazer.

Seraa todo meu prazer

ser desprezado,

de ninguem nam me querer

mui consolado.

Terei meu contentamento

mui firme neste desejo,

das cousas em que me vejo

terei bom conhecimento.

Por ter mais merecimento,

haverei

por descanso o tormento,

que terei.

Nestas cousas meu viver

seraa sem o desejar

e seraa meu descansar

esperança de morrer.

Triste vida hei-de ter

dessimulada,

de ninguem a conhecer,

magoada.

Os custumes mudarei,

a condiçam ficaraa,

com ela consolarei

a dor que al me faraa.

Meu viver contentaraa

os qu' entenderem,

dos outros nam me daraa

maldizerem.

Nam hei muito de curar

de falar encapuchado,

ha-me bem pouco de dar

ser de pecos mal julgado.

Deos me mate avisado

que é lei

de que nunca condenado

vevirei.

As cousas como merecem

ham-de ser de mim tratadas,

as pessoas avisadas

no pouco tudo conhecem.

Nam sam frade pera ser

santeficado

nem por dos outros me ver

ser adorado.

Meu desejo é salvar

minha' alma mui simprezmente,

disto soo serei contente

que Deos pode ordenar.

Nam m' hei muito de matar

por me terem

por santo nem por causar

de o dizerem.

Em ter pena minha groria

soo terei que a mereço

e leixar viva memoria

desta morte que padeço.

Dessa culpa me conheço

mui errada,

ser daqui me ofereço

castigada.

Vivendo desta maneira

serei alem de contente,

porque sei como se sente

tudo o al aa derradeira.

E, enfim, pois a morrer

somos forçados,

pera qu' ee, senhor,

sofrer tantos cuidados?

Enquanto sempre vivemos

por prazeres alcançar,

ooh quantos males sofremos

quando nos soe a leixar!

E pois vemos o prazer

quam pouco dura,

pera que querem merecer

maior tristura?

Deste mal bem conhecer

hei por bem o qu' escolhi

e se nam o conheci

assi quero cá viver.

E laa viva quem quiser

em favores,

laa guarde quem os tiver

suas dores.

Laa gostai vossos serãos,

laa guardai vossos amores,

que bem sei como sam vãos

seu favor e desfavores.

E ja sei quam pouco dura

seu prazer

e senti quanta tristura

soem fazer.

Lá guardai vir enfadados

d' aguardar a quem servis,

laa guardai ser namorados,

pois tantos males sentis.

E trabalhai por andardes

com as damas,

laa vos honrai de danardes

suas famas.

Laa guardai mui bem El-Rei,

laa trabalhai por viver

que em fim tudo bem sei

que vos haa-d' avorrecer.

Mas tal é nossa ventura

que consente

que vida de tal tristura

nos contente.

Laa guardai vossa riqueza,

laa trabalhai pola ter,

que eu rico na proveza

por outr' arte hei mais de ser.

Laa trabalhai por leixar,

quando morrerdes,

a quem houver de lograr

o que tiverdes.

E fazei como fizeram

algũs que vistes morrer,

que quanto mor renda houveram

mais morriam por haver.

Nam contentes da que tinham.

mas cansando,

e mil trabalhos sostinham

desejando.

Ooh quanto fora milhor

nam terem caa que leixar

e acharam mais favor

na conta que ham-de dar,

de como foram gastadas,

se fizeram

obras bem-aventuradas,

pois tiveram!

Vede bem a brevidade

da vida em que vivemos

e vede a vaidade

do prazer que nela temos.

Olhai bem quam pouco dura

nela bem

e vede quanta tristura

sempre tem.

Lembre-vos que nam sabeis

o que tendes de viver

e que pode mui bem ser

que mui cedo morrereis.

E por isso trabalhai

por corregerdes

vossa vida, que se vai

sem lhe valerdes.

O que cada dia vemos

nos devia d' ensinar

e de quanto mal fazemos

nos devia cavidar.

Mas por prazeres seguir

mundanais,

queremos penas sentir

desiguais.

Asseelo por concrusam

do que disse e direi

que sam frade e serei

pera sempre com rezam.

Nam fiz isto de paixam

nem vaidade,

mas de limpa devaçam

e vontade.

Fim.

Sejam como forem lidas

por me mais mercê fazer

com quantas tendes rompidas

que laa nam pude romper.

Porque culpa me nam dê

a que entendo,

senhor, em vossa mercê

m' encomendo.

766

D' AIRES TELEZ A ŨA
MOLHER QUE SERVIA,
PORQUE LHE DEU
ŨA BOLETA.

Nam espere ninguem jaa

por servir contentamento,

pois o meu merecimento

tam pequeno fruito daa.

Dispus minha vida bem,

mas rendeo-me muito mal

e nam posso colher al

senam mal que dela vem.

Bom serviço é jaa vento,

pois em tal lugar estaa,

que grande merecimento

tam pequeno fruito daa.

767

CANTIGA SUA A ŨA MOLHER
COM QUE ANDAVA, QUE
MANDOU DIZER QUE
ESTAVA MAL SEN‑
TIDA E NAM SA‑
BIA DE QUÊ.

Vossa doença sabida,

senhora, que nam é al

senam serdes mal sentida

do meu mal.

Est' ee o mal verdadeiro,

senhora, se o curais,

ũ remedio a dous dais

e inda que nam queirais

o meu ha-de ser primeiro.

Nam me lembra minha vida

nem sinto ja daqui al,

senam de ser homecida,

senhora, no vosso mal.

768

CANTIGA SUA A ŨA MOLHER

COM QUE ANDAVA, A QUE

PEDIO ŨA COUSA E ELA

RESPONDEO QUE LHA

NAM QUERIA FAZER,

PORQUE TINHA

DUAS LEIS.

Em que me visseis viver

em outra lei ateequi,

senhora, como vos vi,

conheci

que na vossa hei-de morrer.

E pois que ja tenho a fee,

senhora, dai vós a graça,

qu' as obras forçado lh' ee

qu' em vosso nome as faça.

Pois que nam quero viver

na lei que tive atequi,

consenti,

senhora, que desd' aqui

na vossa possa morrer.

769

CANTIGA SUA.

Ao mal-aventurado

se lhe vem um novo mal,

renova-se todo o al

que cuida qu' ee ja passado.

E tem moor padecimento

do qu' ee o prazer que tem,

se lhe lembra algũ bem

que lhe deu contentamento.

Pois nam viva descansado

quem cuida que passou mal,

que se vier outro tal

ser-lh' ha present' o passado

770

OUTRA SUA.

Sendo meus males mortais

pera nunca descansar,

acertaram de ser tais

que me nam podem matar.

E nam posso ter a vida

mais qu' enquanto os tiver

e eles podem-me ter

depois da vida perdida.

Porqu' enquanto me durar

a cousa que me doi mais,

seram meus males mortais

sem me poderem matar.

771

CANTIGA SUA QUE FEZ UM
DIA QUE DE TODO SE
DESAVEO.

Desejando sempre vida,

foi gram dita nam na ter

pola agora nam perder.

E co esta vida tal

tenho o que nam tem ninguem,

qu' os desastres que me vem

nam me fazem bem nem mal.

Isto é culpa de quem

me nunca deixou haver

a vida pera perder.

Por meu mal que nam tem cura,

tenho eu isto provado

qu' o mais mal-aventurado

mais seguro é da ventura;

e o mais desenganado

de ter bem e ter prazer

é-o mais de o perder.

Ajuda do Conde do Vimioso.

Quando vida desejei

nam entendia viver

qu' era cousa de perder

o qu' em perder me guanhei.

Mas agora que o sei,

a vida que hei-de ter,

tê-la-ei sem na querer.

772

TROVA SUA QUE MANDOU AO
CONDE DO VIMIOSO Ũ DIA
QUE FALOU À SENHORA
DONA JOANA MANUEL,
NŨ SERÃO DA
CORESMA.

Ooh que ditoso falar

foi o vosso no serão!

Ooh que boa confissam

pera s' a moça salvar,

mas vós nam!

Oo alma de Dom Joam,

laa onde quer que estás

quanta pena que terás!

Reposta do Conde do Vimioso.

Se tivera que dizer,

faleceo-m' a fantesia,

qu' eu soo tenho ousadia

pera meus males sofrer.

S' os mortos podem saber

dos vivos o seu viver,

Dom Joam, laa ond' estaas

que doo de mim haveraas!

773

D' AIRES TELEZ A ŨA MOLHER
COM QUE ANDAVA, SOBRE ŨUS
CRAVOS QUE LHE MANDOU.

Que mil cousas vos mereça,

senhora, nam pode ser

que se me possam meter

estes cravos na cabeça.

Muito ha que é rezam

d' esperar por algum fruito,

mas a vossa condiçam

faz ser este temporam

e inda havê-lo por muito.

E com' eu isto conheça,

senhora, nam posso crer

que vós me queirais meter

nenhum cravo na cabeça.

774

CANTIGA SUA QUE FEZ A ŨA
MOLHER COM QUE ANDAVA,
PORQUE LHE DISSE Ũ DIA
QUE LHE NAM QUERIA
MAL NEM BEM.

Quem em seu poder me tem,

pois nam pode querer al,

ò menos queira-me mal

por nam ser nem mal nem bem.

Se mo quiser de verdade,

como sei que mo deseja,

ainda que bem nam seja

ò menos será vontade.

Maa ou boa quem na tem,

pois nam pode ja ter al,

hei qu' ee muito menos mal

que nam ter nem mal nem bem.

775

CANTIGA SUA À SENHORA

DONA JOANA DE MENDOÇA.

Pois co mal que me causais,

senhora, tendes prazer,

nem sei porque nam olhais

que pera o eu sentir mais

devia menos de ser.

E quem é sua verdade

desejar de vos servir,

como podeis presumir

que pode nada sentir

fazendo-vos a vontade?

Pois enquanto nam tirais

do meu mal vosso prazer,

é rezam que me creiais,

que quanto o fizerdes mais

tanto menos haa-de ser.

776

DE DUARTE DE RESENDE A ŨA
MOLHER QUE SERVIA.

Nel tiempo que Cancro tiene

Febo dentro en su posada

declinante,

quando ya menos detiene

en los dias su pasada

que deante;

en aquel que Proserpina

tiene la primera hora

su reinar,

yo propuse muy aina

servirte siempre, senhora,

sin errar.

En este tiempo mi vida

empeçó de caminar

en su porfia,

porfiando dar salida

al dolor que fue ganar

en aquel dia.

E como pues en aqueste

el padre ya retrocede

de Feton,

mi plazer rotrocedeste

tanto que de ti procede

mi passion.

Y luego tu bien busqué,

halhelo mi enemigo

capital,

porque como te miré

halheme qual aqui digo

de tu mal:

que por solo yo mirar

tu lindeza muy ufana

a la sazon,

quieres tu comigo usar

como la casta Diana

con Anteon.

Como quando se opone

o geito resplandeciente

a nuestro viso,

su conus luego traspone

la superfaz del vidente

emproviso.

Bien assi tu claridad

pospusó de mi pirame

la salud,

robando mi libertad,

porque siempre jamas lhame

tu virtud.

Procuran siempre mis danhos

disfavores com reveses

de tu vista,

no veo cobrar los anhos

lo que se pierde em los meses

mi conquista.

¡Oh quita, senhora, enojos  

y sea tu merced dudosa

a mi remedio,

solo por verem mis ojos

si eres em todo raviosa,

tan sin medio!

Dime, senhora, que culpa

mis continuados servicios

te merecem

y tanto que te desculpa,

porque los tus beneficios

me carecem.

Si por mi atrevimento

requestar tu gran valer

con mis gemidos,

muchos sin merecimiento

soo por lo de su querer

son queridos.

Si por mi dicha alcançasse

que quisesses ya mirar

mi semblante,

porque piedad forçasse

tu coraçon a mudar

su talante,

no creo que tu crueza

contigo bevir quisiesse,

bien mirando

mi grandissima graveza,

mas pienso luego huysse

de tu mando.

Que por cierto yo no creo

qu' hombre haya tal sofrido

a ninguna,

mas creo, pues que lo veo,

que pior me has ferido

que Fortuna.

Ca sus bienes de consuno

buelvense como la faya

con los vientos,

e a ti no bolvio ninguno

que algũ descanso traya

a mis tormientos.

Y con este danho tal

es la mi passion gigante

ya por cierto,

que ando muerto inmortal

y hecho una boz clamante

en tu disierto.

Desierto de compassion

y de bienes provechosos

para mi,

poblado con mi passion

y mis males trabajosos

hast' aqui.

Fim.

Al Citarides, potente,

remediador d' amadores

desdichados,

pidote haga presente

mis ansias y mis dolores

tan sobrados.

Y el que sabe la razon

de querelhas, mis tormientos

más que muerte,

a el pido el galardon,

segun mis merecimientos

en quererte.

777

ESPARÇA SUA.

Io triste m' estoy mirando

y esperando

qu' el tiempo qu' es por venir

me consuele,

qu' el presiente no sé quando

hará mejor mi bevir

de lo que suele.

Que a los males y temor

del amar

si quiero ter sofrimento

del tormiento,

mi dolor

descubre mi sentimiento.

778

CANTIGA.

No puedo triste dezir

la passion de mi partida,

ni partiendo mi bevir,

no se deve lhamar vida.

Partida mata plazer,

partida causa mudança,

partida pone nembrança

qu' acrecienta esperança

qu' es el mismo fenecer.

Assi que causam morrir

los danhos de tal partida,

pues bivendo com partir

me parto de la mi vida.

779

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Desespera-m' esperança.

Esperei, mas a mudança

faz ò revés do que quero

e, se remedio espero,

desespera-m' esperança.

Esperança de ter vida

me fez muito confiado,

mas pois a tenho perdida

sam ja bem desenganado,

porque vejo que mudança

é contraira do que quero

e, quando a milhor espero,

desespera-m' esperança.

780

CANTIGA.

S' obedecera à rezam

e resestira à vontade,

eu vivera em liberdade

e nam tivera paixam.

Mas quando ja quis olhar

s' em algũ erro caira,

achei ser tudo mentira,

s' a isto chamam errar.

Que seguir sempre razam,

e nam mil vezes vontade,

é negar sensualidade

cujo é o coraçam.

781

VILANCETE.

Mais vida podera ter

donde nenhũa s' alcança,

mas matou-m' a confiança.

Se confiei no presente,

fez-mo o tempo passado,

do porvir nam fui lembrado,

coitado de quem no sente.

A verdade nam me mente,

mas enganou-m' a esperança,

porque quis a confiança.

782

CANTIGA.

O bem qu' assi se desfaz

nom lhe devem chamar bem,

pois tam pouco satisfaz

a quem no tem.

Porque dele vem o al

com que tod' outro faz fim

e o fim é sempre tal,

que inda mal,

porque o acho eu em mim.

Porque vejo que desfaz

tudo o que pode ser bem

e sento o dano que faz

e donde vem.

783

OUTRA CANTIGA.

Nam posso ter o que quero,

o que tenho nam queria,

ca nam no tendo teria

ũu bem de qu' eu desespero.

Nam tenho poder em mim,

mas tem-no em mim o desejo,

desespero, pois nam vejo

o efeito do seu fim.

Assi tenho o que nam quero

e nam tenho o que queria,

ca, se o tevesse, teria

este bem que nam espero.

784

D' ANTONEO MENDEZ DE PORTA
LEGRE, LHANTO EM MODO DE
LAMENTACION.

Recordad ya mis sentidos,

del desmaio levantados,

con muy profundos gemidos

de mis entranhas tirados    

hazen lhantos doloridos.

Lagrimas tam mal sofridas

com mortal rezon lhoradas,

turbias, de sangre mezcladas,

venid de dentro salidas,

de mis lhagas lastimadas.

Levanten boz dolorosa

mis clamores desiguales

y mis sospiros mortales

canten em muy triste prosa

los mis dolorosos males.

Vengan mis grandes pesares

lhorando del coraçon,

los gritos de mi passion,

em muy amargos cantares,

planhiendo mi perdicion.

De mis lastimas raviosas

salgan grandes alaridos,

los abismos escondidos,

em sus sombras espantosas

seam mis males oidos.

Venga la triste ventura

a mi angustioso pranto,

porque el dolorido canto

de la grande desventura

que me dió le ponga espanto.

Comiença la lamentacion.

Como está desamparada,

quam sola lhora su pena

mi vida de males lhena,

triste, muy desconsolada,

de todo plazer agena,

de gram dolor trepassada.

Está soo assi planhendo

dentro delh' alma gimiendo

de mortal ravia cercada,

sus mismas carnes rompiendo.

De si sola se querelha,

está la muerte lhamando,

noches y dias lhorando

lagrimas que corren delha,

las suas mixilhas banhando.

Y no hay quien la consuele

em su gram tribulacion,

todos sus sentidos son,

del mal que tanto le duele,

muy lhenos de turbacion.

Como la veo desierta

de todo el bien que tenia,

su gloria, su compania,

de luto toda cubierta,

de descanso muy vazia.

Y de verse triste tal

que ningum plazer consiente,

la muerte tiene presente,

acordandose del mal

de que tantos males siente.

Que complidos son los dias

qu' endinaron los mis fados,

pera qu' estavam guardados

em mis tristes profecias

pesares desordenados.

Los anhos de mi dolor,

a mis males prometidos,

presentes som ya venidos

a lhorar el mal mayor

para que fueron nacidos.

La mi suerte desastrada

com sus ondas de mudanças

ha buelto las esperanças

de la mi edad passada

em muy amargas lembranças.

Mis raviosas desventuras

nel mejor tiempo que vieron

todo mi bien convertieron

em lhoros y em amarguras

del pesar con que vivieron.

Bueltas son em gran tristura

mis alegrias passadas,

mis pasiones tam lhoradas,

lhorando la sepultura

donde fueron ordenadas.

Lhoran mis males crecidos

y mis bienes acabados,

mis pesares començados,

mis plazeres convertidos

em lhantos desesperados.

Y com tal lamentacion,

mis sentidos contemplando

representan, suspirando,

la triste recordacion

com que muero deseando.

¡Oh bivir desesperado,

de mis glorias ataud

como m' has desemparado,

tam lexos de mi salud,

mi descanso sepultado!

Muerta es toda mi gloria,

todo mi bien pereció,

la triste vida quedó

lamentando la memorea

del mal que biviendo vio.

Y con la gram crueldad

del dolor que nelha mora,

la muerte siente cad' hora,

lhorando la soledad

con que mi anima lhora.

I con este desconsuelo

mis dolores son tamanhos

qu' a mis pesares estranhos,

si les procuro consuelo,

acrecientan más mis danhos.

No sufren consolacion

tam penados sentimientos,

que mis tristes pensamientos

no falhan comparacion

al dolor de mis tormentos.

Mas de verme triste yo

nel estremo en que me veo,

com mi fortuna guerreo,

porque bivo me dexó,

muerto todo mi deseo.

¡Oh muerte desordenada,

raviosa, lhaga sin cura

y tierra hambrienta, dura!

¿Adonde tienes robada

mi deseada folgura?

Fim.

¿Donde tienes mi querer?

¿Qu' es de mi plazer perdido?

¡Oh mi penado sentido!

¿quando se poderá poner

tantos males em olvido?

Y pues ya queda mi suerte

de remedeo despedida,

con la gram pena sentida

lhorará tanto la muerte

quanto durar en la vida.

785

Cogitavi dies antiquos et
annos eternos in
mente habui.

D' ANTONEO MENDEZ SOBRE
ESTA PALAVRAS.

Sospirando meus cuidados,

chorando minha lembrança,

cuidei na triste mudança

dos dias que sam passados,

perdidos sem esperança.

Cuidei em todos meus danos,

lembrou-me todo meu mal,

cuidei nos tempos e anos

de que me nam ficou al

senam tristes desenganos.

Chorei mortal saudade

cá dentro no coraçam,

qu' esta só consolaçam

ficou à minha verdade

em minha gram perdiçam.

Cuidei nos dias que vi

nos males em que me vejo

e da gram dor que senti.

É tam triste meu desejo

que choro porque naci.

Cuidei nos antigos dias

do tempo que é ja mudado,

vi meu bem todo tornado

em chorar como Mancias

a memorea do passado.

Chorei o mal que padeço,

chorei o bem que passou,

vi meu tempo qu' acabou

e deixou-me no começo

dos males que m' ordenou.

Cuidei na passada vida

contente com seus amores,

vi de todo destruida

e em mui estranhas dores

minha grorea convertida.

Cuidei no tempo presente,

lembrou-me como passaram

os anos, que me deixaram

da vida mais descontente

que da morte qu' ordenaram.

Cuidei na triste ventura,

suas mudanças chorei,

com que chorando farei

a meus dias sepultura

dos males com que fiquei.

Vi mortaes desconfianças

em meu triste pensamento,

chorei o gram perdimento,

que m' ordenam as lembranças

passadas, qu' agora sento.

Fim.

Cuidei nos grandes cuidados

que sempre vivo cuidando.

Disse com sospiros: — Quando

poderei ver acabados

tantos males em que ando?

Desenganou-me a lembrança

do tempo em que cuidei,

pois descanso nom achei

na vida nem segurança

qu' em morrer descansarei.

786

VILANCETE SEU.

Tristezas, nam me deixeis,

pois é pera me dobrardes

maior mal, quando tornardes.

Por meu descanso vos sigo,

que ja outro nam espero,

prazer nam busco nem quero,

pois tam mal se quer comigo.

Ver-m' -ei em grande perigo,

quando me depois tornardes

o mal qu' agora tirardes.

Ja deixei as esperanças

do prazer que vi passar,

que nam ouso d' esperar

outra vez suas mudanças.

Nam sofrem minhas lembranças

tristezas sem m' acabardes,

deixar-vos nem me deixardes.

787

CANTIGA SUA.

Lembranças, a que viestes?

Saudades, que buscaes?

Se ver-me vivo, tardais,

se morto, vós o fizestes.

Vós folgais com minha vida,

eu folgo de ver perdê-la,

pois que nam tenho mais dela

que tê-la sempre perdida.

Mas no tempo que viestes,

nam tenho de vivo mais

ca ter vivos os sinais

dos males que me fizestes.

788

VILANCETE DE PERO VAZ.

Ninguem dá o que nam tem

e os meus males sem fim

poderam-na dar a mim.

Folgava com meus cuidados

por segurar minha vida

e eu vejo-a perdida,

eles tenho-os dobrados.

Inda vos veja acabados,

males, que nam tendes fim,

pois a vós destes a mim.

Ajuda d' Antoneo Mendez.

Acabei meus dias eu,

eles nunca s' acabaram,

mas por m' acabar buscaram

outro mal maior qu' o seu.

Deram-mo, que lhe nam deu

quem mos dá tanto sem fim

que ma dam eles a mim.

789

CANTIGA D' ANTONEO MENDEZ.

Deixai-me triste viver         

com minha dor tam crecida,

cuidados, que quero ver

se podem males fazer

mais que tirarem-m' a vida.

Porque quando m' acabarem

com sua maior crueza,

des que morto me deixarem,

deixaram minha firmeza

mais viva em me matarem.

Pois se jaa nom tem poder

de mudar fee tam crecida,

meus males bem podem crer

que nom podem mais fazer

que dar fim a triste vida.

790

ESPARÇA SUA.

Oh maior bem de meu mal,

descanso de meu desejo,

meu cuidado tam mortal

com que minha vida é tal

que mais que morto me vejo!

Remedeo de meu tormento,

tormento de meu sentido,

ante vós meu perdimento

nam deve ser esquecido,

pois por vós nele consento.

791

CANTIGA SUA.

De quantos males me dais,

dai-me aqueste só conforto,

senhora, pois me matais,

que nam vos arrependais

de meu mal depois de morto.

Porque no tempo qu' ouvir

que tendes por mim tristeza,

hei medo de ressurgir

pera tornar a sentir

outra vez vossa crueza.

Deixai-me, pois me matais,

acabar, qu' ee gram conforto,

que mais crua vos mostrais

em querer que viva mais

qu' em folgar de me ver morto.

792

DE DIOGO VELHO DA CHANCE
LARIA. DA CAÇA QUE SE CAÇA
EM PORTUGAL, FEITA NO
ANO DE CRISTO DE MIL
QUINHENTOS. XVI.

Rifam.

Oh que caça tam real

que se caça em Portugal!

Rica caça, mui real,

que nunca deve morrer,

pera folgar de lhe correr

tod' a jente natural!

Linda caça mui sobida

se descobre em nossa vida,

a qual nunca foi sabida

nem seu preço quanto val!

Oh da gram mata Lixboa,

onde toda caça voa,

Arabia, Persia e Goa,

tudo cabe em seu curral!

Calecud e Cananor,

Melaca, Tauris Menor,

Adem, Jafo Interior,

todos veem per ũu portal.

Talhamar da grã riqueza,

Damasco com forteleza,

Troia, Cairo com sa grandeza

nom domarom nunca tal!

O mui sabio Salamom,

que fez o grande montom,

teve sa parte e quinhom,

mas nom todo o cabedal.

Mida, Anglia com norte

e Alexandre tam forte

nom conservou esta sorte

nem o seu vidro cristal.

Priamo, Juba, Assueiro,

Membrot, Pompeo guerreiro,

nenhũ foi tam sobranceiro,

nem tam pouco Anibal.

Carina navegador

navegou com muita dor,

nunca foi descobridor

deste tam rico canal.

Hercoles, Cesar corredores

tambem foram caçadores

e nom foram achadores

deste cetro tam real.

Ciro, Porsena fronteiro,

Afrons, Jupiter herdeiro,

nenhũ foi tam verdadeiro

nem Saturno paternal.

Eneas, Ulixes caminheiro,

Tolomeu, Prinio messejeiro,

Nino, Remulo primeiro,

jemerom, sabendo tal.

Macabeu cos Doze Pares,

com seus deoses e altares,

nom teverom tais lugares

nem tal graça especial.

Ouro, aljofar, pedraria,

gomas e especearia,

toda outra drogaria

se recolhe em Portugal.

Onças, liõos, alifantes,

moonstros e aves falantes,

porcelanas, diamantes,

é ja tudo mui jeral.

Jentes novas, escondidas,

que nunca foram sabidas,

sam a nós tam conhecidas

como qualquer natural.

Jacobitas, abassinos,

cataios, ultramarinos,

buscam godos e latinos

esta porta principal.

O avangelho de Cristo

cinco mil leguas é visto

e se crê ja lá por isto

o Misterio Divinal.

Os das grandes carapuças,

longas pernas, grandes chuças,

fariseus, suas aguças,

nem o Chinches austerial.

Amaro e o Ermitam

em sua contemplaçom

leixarom revelaçom

deste horto terreal.

Em o ano de quinhentos

e com mil primeiro tentos

descobrirom os elementos

esta caça tam real.

Em este segre cintel

reina El-Rei Dom Manuel,

que recolhe em seu anel

sua devisa e seu sinal.

Porque é mui virtuoso,

excelente e justiçoso,

Deos o fez tam poderoso

rei de cetro imperial.

Sua santa parçaria,

Rainha Dona Maria,

estas maravilhas lia

por esprito divinal.

Esta é jentil a andina

pera cantar com a Mina,

Çafim, Zamor, Almedina

tambem é de Portugal!

Rezam é que nom nos fique

a alma do Ifante Anrique

e que por ela se soprique

ao nosso Deos celestrial,

Porque foi desejador

e o primeiro achador

d' ouro, servos e odor

e da parte oriental.

O poderoso rei segundo

Joham Perfeito, jocundo,

que seguio este profundo

caminho tam divinal,

O Cabo de Boa Esperança

descobrio com temperança

por sinal e de mostrança

deste bem que tanto val.

A madre consolador

de muito bem sostedor,

em virtudes fundador,

sua parte tem igual,

D' El-Rei Dom Joham parceira,

Dona Lianor, herdeira

natural e verdadeira

rainha de Portugal.

Emanuel sobrepojante,

rei perfeito, roboante,

sojugou mais por diante

toda a parte oriental.

Nunca sejam esquecidos,

seus nomes sempre sabidos

e de gloria compridos

pera sempre eternal.

Aquele grande prudente

profetizou do ponente

e de toda sua jente

caçar caça tam real.

O gram Rei Dom Manuel

a Jebusseu e Ismael

tomaraa e fará fiel

a lei toda universal.

Ja os reis do Oriente

a este Rei tam exelente

pagam parias e presente

a seu estado triunfal.

Pola grande confiança

que em Deos tem e esperança

é-lhe dada gram possança

de memoria inmortal.

O dos mui lindos buscantes,

rasteiros e tam voantes

caçadores rastejantes

que caçam caça real,

Sam conhecidos de cujos

sam estes lindos sabujos,

é bem criar-lhe os andujos

pera casta natural.

É o tempo achegado

pera Cristo seer louvado,

cada ũu tome cuidado

deste bem que tanto val.

As novas cousas presentes

sam a nós tam evidentes

como nunca outras jentes

jamais virom mundo tal.

Fim.

É ja tudo descuberto,

o mui lonje nos é perto,

os vindoiros têm ja certo

o tesouro terreal.

793

D' ANRIQUE DA MOTA A ŨA MO
LHER, QUE LHE MANDOU DIZER
QUE A CADA LETRA DO SEU
NOME LHE FIZESSE ŨA TRO‑
VA  E CHAMAVA-SE AN‑
TONIA VIEIRA.

Se vossa mercê quisera,

eu nam passar este vaso,

grande mercê me fezera,

porque se nam conhecera

quam pouco sei neste caso.

Mas pois ja meu coraçam

em tudo vos obedece,

sem temor de reprensam

dir-vos-ei minha tençam

daquilo que me parece.

No .A., senhora, s' entende

o Amor muito sobejo

que me mata e que m' encende,

que me manda e me defende

que nam cumpra meu desejo.

E o .M. vos decrara

a Morte que me causais,

da qual eu nam m' aqueixara,

se das dores vos matara

que me vós a mim matais.

E o .T. é a Tristeza

que me dais, porque sam vosso,

mas nam tem poder crueza

de vencer minha firmeza

nem eu muito menos posso.

O .O. sam os Olhos tristes

com que triste vos vi eu,

e os com que me vós vistes

sam setas com que feristes

meu coraçam, sendo meu.

O .N. nam quer dizer

senam Nam, que me dizeis,

sem quererdes conceder

em dizer si nem querer

o que quero que sabeis.

O .I. diz que sois Imiga

do descanso qu' eu quisera,

aos vossos dais fadiga

e quem mais por vós obriga

menos gualardam espera.

O .A., senhora, vos chama

Avarenta de favores:

desamais a quem vos ama,

tendes de crua tal fama

quanta tendes de primores.

Polo V. se manifesta

minha sojeita Vontade,

que sendo livre nam presta

e faz cativa moor festa

do que faz com liberdade.

E diz o segundo .I.

que tenho fee Inmortal

e creo que nam naci

senam des que conheci

ser moor bem o voso mal.

Pelo .E. tenho sabido

a Enveja que me tem

algũs, que têm conhecido

quanto sam por vós perdido,

ganhado por querer bem.

No .I. terceiro conheço,

senhora, que soes Isenta,

pois que quanto vos mereço

tendes em tam pouco preço

que tudo nam vos contenta.

O .R. é a Rezam

que vós tendes de querer

tanto minha salvaçam,

quanto vossa perfeiçam

foi causa de m' eu perder.

E o .A. por derradeiro

diz que digo sempre Ai!

Este é o pregoeiro

que diz do meu prisoneiro

coraçam como lhe vai.

Este brada noite e dia,

por saber quem no ouvir

vossa crua fantisia

e minha grande alegria,

morrendo por vos servir.

794

GROSA SUA A ESTE MOTO QUE
FEZ EM QUE NAM ESTAM MAIS
NEM MENOS LETRAS QUE AS
DO NOME D' ANTONIA
VIEIRA.

Ja vitoria nam é.

Matar ũu homem vencido,

preso sobre sua fee,

ja vitorea nam é.

Matardes-me vós, senhora,

pelo meu nam me dá nada,

mas por vós, que soes culpada

em matar quem vos adora.

E que me matais agora,

pois nam matais minha fee,

ja vitorea nam é.

Que vitorea levareis 

matar ũ vosso cativo,

pois confesso que nam vivo

senam quanto vós quereis.

E posto que me mateis,

sem vos lembrar minha fee,

ja vitorea nam é.

795

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Gram trabalho é viver.

Pois nam s' escusa perder

a vida com grande afronta,

lançando bem esta conta

gram trabalho é viver.

Es vida tam estimada

quanto sam breves teus dias,

que sendo por sempre dada,

quanto es agora amada,

tam desamada serias,

E pois nunca dás prazer

que nam venha com afronta,

lançando bem esta conta

gram trabalho é viver.

Outra grosa em vilancete.

Quem nesta vida cuidar

pode bem certo saber

qu' ee gram trabalho viver.

Quem cuidar nesta mudança

qu' este triste mundo faz,

achará que nele jaz

a maior desconfiança.

E pois nunca dá bonança,

sem temor de se perder,

gram trabalho é viver.

Cada ũ em seu estado

meta bem a mão no seo,

achará, segundo creo,

muita dor, muito cuidado.

E pois ante de ganhado

este bem s' ha-de perder,

gram trabalho é viver.

Estes beens de tanta briga 

com fadiga sam havidos,

com fadiga possuidos

e leixados com fadiga.

E pois este mal sogiga

no ganhar e no poder,

gram trabalho é viver.

Logo m' eu contentaria,

se nesta vida presente

alguem vivesse contente

ou descansado ũu soo dia.

Mas porqu' isto qu' eu queria

nunca foi nem ha-de ser,

gram trabalho é viver.

796

D' ANRIQUE DA MOTA A JOAM
RODRIGUEZ DE SAA PARA QUE
FALASSE POR ELE AO CONDE,
SEU SOGRO, E A JORGE DE
VASCONCELOS, SEU CUNHA‑
DO, SOBRE DINHEIRO QUE
LHE NAM PAGAVAM DE
VINHOS, QUE LHE
VENDEO PERA
ŨA ARMADA.

Senhor, a quem Febo deu

lingua virgiliana,

de que corre, de que mana

quanta fama ouço eu.

E alem deste primor,

o mui alto deos d' amor

triunfante

vos fez ũu gentil galante,

de damas gram servidor.

De nobreza e fidalguia

escuso de vos louvar,

pois vosso claro solar

como sol resplandecia.

E das artes liberais

e vertudes cardeais

nam vos gabo,

porque nisto nam tem cabo

a gram fama que cá dais.

Eu, senhor, porque conheço

vosso alto nacimento,

quis tomar atrevimento,

pedir-vos isto que peço.

E que seja desigual

pedir esta mercê tal

sem servir,

fazê-o por conseguir

vosso lindo natural.

Eu fiz, senhor, ũu partido

co senhor vosso cunhado,

no qual perdi o ganhado

e nam ganhei o perdido.

Compri com ele sem briga

por me tirar de fadiga,

e agora

faz-me na paga tal mora

que nam sei ja que lhe diga.

E por mais me agravar,

remete-me a Dom Martinho,

que mandou gastálo vinho,

qu' ele mo mande pagar.

Dom Martinho nam me crê,

se lhe falo, nam me vê

nem me ouve.

Vede, senhor, quem trouve

a pedilo meu por mercê.

Falei tres vezes a El-Rei

nesta tam mao pagamento,

Sua Alteza com bom tento

ouvio quanto lhe falei.

Mas, porem, sempre me disse

que Dom Martinho ouvisse

meu agravo,

nam sei u jaz este cravo

nem menos sei quem no visse.

Eu andando sem saber

quem posesse nisto meo,

em sonhos, senhor, me veo

que vós me podeis valer.

Vasconcelos mo comprou,

Castel Branco mo gastou

em Zamor,

mas eu nam acho, senhor,

quem diga que mo pagou!

E pois vós soes ũ Teseo

em esforço e bom destinto,

livrai-me do laberinto

de que sair nunca creo.

Porque acho desta vez

que o que Dedalo fez

nam foi tal,

pois que Fedra nam me val

nem o gram pelouro de pez.

Mas vós, que tendes na mão

o cordel per u sair,

se me quiserdes ouvir,

podês-me dar redençam.

E pois sois bom luitador

e podeis i lutar, senhor,

per dous erros,

livrai-me destes desterros

e ganhais ũ servidor.

Fim em vilancete.

Destas idas, destas vindas,

destas pagas dos amores,

por ũu prazer cem dolores.

No tempo do contratar

andam tam bem assombrados,

que nam venham namorados

que mais saibam lisonjar.

Mas este negro pagar

nos causa com desfavores

por ũ prazer cem dolores.

E pois que vossa mercê

naceo pera bem fazer,

folgai de me socorrer,

pois m' agravam sem porquê.

E por vosso me havê,

porque cante mil louvores

de vossos grandes primores.

Outro vilancete ao Conde de
Vila Nova sobre este caso.

Quanto ganho nos partidos,

tanto gasto em çapatos,

d' Herodes pera Pilatos.

Ex-me vou e ex-me venho  

como barca de carreira,

quanto ganho, quanto tenho

tudo leva a taverneira.

E assi desta maneira

gasto todos meus çapatos

d' Herodes pera Pilatos.

Quando cuido qu' estou bem,

entam acho qu' estou mal,

quando cuido ser alem,

sam aquem de Portugal.

E per este modo tal,

gasto todos meus çapatos

d' Herodes pera Pilatos.

Ando muito mais bolido

do que é saco de malha,

tenho gram monte de palha,

mas o gram nam é havido.

Sem chegar a ser ouvido,

rompo todos meus çapatos

d' Herodes pera Pilatos.

E, pois que, senhor, o meu

fiz de vossa jurdiçam,

dai-mo, dai-mo, qu' ee rezam,

dai-mo, pois que Deos mo deu!

Nam queirais que gaste eu

o que nam guanhei nos tratos

d' Herodes pera Pilatos.

797

D' ANRIQUE DA MOTA A Ũ
CRELIGO SOBRE ŨA PIPA DE
VINHO QUE SE LHE FOI
POLO CHAM E LEMEN‑
TAVA-O DESTA
MANEIRA.

— Ai, ai, ai, ai! Que farei?

Ai que dores me cercaram!

Ai que novas me chegaram!

Ai de mim! onde me irei?

Que farei triste, mezquinho,

com paixam?

Tudo leva maao caminho,

pois que vai todo meu vinho

pelo cham!

Ooh vinho, quem te perdera

primeiro que te comprara!

Ooh quem nunca te provara

ou provando-te morrera!

Oh quem nunca fora nado

neste mundo.

pois vejo tam mal logrado

um tal bem, tam estimado,

tam profundo!

Ooh meu bem tam escolhido,

que farei em vossa ausencia?

Nam posso ter paciencia

por vos ver assi perdido!

Oo pipa tam mal fundada,

desditosa,

de fogo sejas queimada,

por teres tam mal guardada

esta rosa!

Oo arcos, porque suxastes?

Oo vimeens de maldiçam,

porque nam tivestes mão

assi como me ficastes!

Oo mao vilão tenoeiro,

desalmado,

tu teens a culpa primeiro,

pois levaste o meu dinheiro

mal levado!

Fala com a sua negra.

— Oo perra de Manicongo,

tu entornaste este vinho!

Ũa posta de toucinho

t' hei-de gastar nesse lombo!

— A mim nunca, nunca mim

entornar,

mim andar augua jardim,

a mim nunca sar roim,

porque bradar?

— Se nam fosse por alguem,

perra, eu te certefico

bradar com almexerico,

Alvaro Lopo tambem.

— Vós logo todos chamar,  

vós beber,

vós pipo nunca tapar,

vós a mim quero pingar,

mim morrer!

— Ora, perra, cal-te ja,

senam matar-t'-ei agora!

— Aqui star juiz no fora,

a mim logo vai té laa.

Mim tambem falar mourinho

sacrivam,

mim nam medo no toussinho,

guardar nam ser mais que vinho,

creligam.

— Ora te dou oo diabo,

rogo-te ja que te cales,

que bem m' abastam meus males

que me vêm de cada cabo.

Olhai a perra que diz

que fará:

irá dizer oo juiz

o que fiz e que nam fiz

e crê-la-á...

E pois ela é tam roim,

bem será que me perceba,

diraa qu' ee minha manceba

para se vingar de mim.

Entam em provas, nam provas,

gastarei,

iram dar de mim más novas

e faram sobre mim trovas...

Que farei?

O siso será calar

pera nam buscar desculpa.

Pois a negra nam tem culpa,

pera que lha quero dar?

Eu sem aqui o culpado

e outrem nam,

eu sam o denificado

e eu sam o magoado,

eu o sam!

Que negra entrada de Março!

Se todo vai por est' arte

e as terças doutra parte

ham-me de dar um camarço.

Oo vós outros que passais

pelas vinhas,

respondei, assi vivais,

se vistes dores iguais

co as minhas!

Fim em vilancete.

Pois nam tenho aqui parentes

saltem vós, amici mei,

chorareis como chorei!


Chorareis a minha pipa

chorareis a anno caro,

chorareis o desemparo

do meu bem de Caparica.

E pois tanta dor me fica,

saltem vós, amici mei,

chorareis como chorei!

Fala com o Vigairo.

― Ó gordo padre vigairo,

vós que sabeis que dor é,

ajudai por vossa fee

a chorar este fadairo!

Se perdera o breviairo

nem a capa, que comprei,

nam chorara o que chorei!

Responde o Vigairo.

Oo irmão, muito perdeste!

E segundo em mim sento

nam tevera atrevimento

de sofrer o que sofreste!

É um tam grande mal este,

que com doo que de ti hei
pera sempre chorarei!

 Fala com Alvaro Lopez.

Oo Alvaro, irmão amigo,

vê-lo, jaz aqui no chão!

Pois perdeste teu quinham,

vem e chorarás comigo!

Certamente eu te digo

que, quando morreo El-Rei,

pardeos tanto nam chorei!

Reposta d' Alvaro Lopez.

Milhor me fora perder

dez mil vezes meu oficio

ou ũ grande beneficio

que tanta pena sofrer!

Pois nam temos que beber,

ó irmão, onde m' irei?

Pois que choras, chorarei!

Fala com o Almoxarife.

Oo almoxarife irmão,

levantemos esta pipa

e veremos se lhe fica

ainda algum nembro são.

Mas eu tenho tal paixão

do triste, que nam logrei,

que por sempre chorarei!

 Responde o Almoxarife.

Pois que nam tem alma jaa,

pera qu' ee alevantada?

Mas muito pior seraa

que dizem que ficaraa

esta casa violada;

a confraria é danada.

Oo irmão, que te farei?

Se chorares, chorarei!

Fala com o Juiz dos orfãos.

Vós que tendes jurdiçam

naqueles que nam têm pai,

vinde, vinde aqui, chorai,

que eu tambem orfão são.

E que vossa condiçam

seja d' agua como sei,

chorareis como chorei!


Reposta do Juiz dos orfãos.

— Esforçai, nam vos mateis,

perto é daqui a Agosto,

a negra fica convosco

com que vos confortareis.

Do perdido nam cureis

nem chameis Aque d' El-Rei

e eu vos consolarei.

Fim da Cementaçam do Creligo.

— Todo genero honrado

em que vertude consiste,

ajudai chorar o triste

que jaz aqui entornado!

E pois eu por meu pecado,

pera tanto mal fiquei,

pera sempre chorarei!

798

D' ANRIQUE DA MOTA A ŨU
ALFAIATE DE DOM DIOGO,
SOBRE Ũ CRUZADO QUE
LHE FURTARAM NO
BOMBARRAL.

— Guaias, que sam destroçado!

Ai, Adonai, que farei?

Pois que quis o meu pecado

que perdi o meu cruzado,

que por maas noites guanhei!

Guai de mim! Onde m' irei,

que receba algum conforto?

Se o calo, abafarei!

Jur' em Deu, num calarei,

porque ness' hora sam morto.

Mas ir-m'-ei por essa terra

como homem sem ventura,

porqu' a dor que me desterra

me fará tam crua guerra

que moira sem sepultura!

Guizeraa, que gram tristura,

oh quem ante nam nacera

com tam gram desaventura,

pois seis meses de custura

todos juntos os perdera!

Ai, que quero abafar,

ai que me quero perder,

quero-m' ir lançar no mar,

milhor é de me matar

que sempre prove viver!

Oh quem me desse saber

onde um toiro estivesse,

i-lo-ia cometer,

jur' em Deu, em me comer

grande graça me fizesse!

Doutra parte nam é siso

buscar minha perdiçam,

que quando culpam Narciso,

que morreo por mau aviso,

pois de mim ja que diram?

Mas, porem, espantar-s'-am

os que souberem tal lodo

como vivo com paixam!

Oh se viesse um liam

que m' esbandalhasse todo!

Certo eu naci maa hora,

em pior fui bautizado,

pois des entam ategora

sempre em mim mofina mora,

sempr' andei atrevessado!


Que farei, triste, coitado,

que nam sei ja que me faça?

Tudo é bem empregado

em mim, pois tomei de grado

esta lei nova de graça.

Eu que me queira calar

com perda tam conhecida,

nam posso dessimular,

porque por meu sospirar

será minha dor sabida.

Ooh cruzado, minha vida,

pera que te conheci,

pois tua triste partida

me causa dor tam crecida

qual eu nunca padeci!

Eu nam sei que mal eu fiz

que tal perda me convenha,

o coraçam cá me diz

que vá buscar o juiz

e creo que bem me venha.

E direi que me mantenha

em justiça com sa vara.

Ooh quem me dera ter grenha,

pois nam tenho quem me tenha,

eu por mi m' arrepelara!

Partir-m'-ei? Nam partirei?

Ir-me-ei onde me for?

Tornarei? Nam tornarei?

Se morrer, nam viverei?

Ou terei prazer ou dor?

Mas, porem, se o senhor

Dom Diogo isto sabe,

segundo me tem amor,

porque sam seu servidor,

jur' em Deu que nam me gabe.

Pergunta Dom Joani ò alfaiate.

— Como veens espavorido,

Manuel, que Deos te valha!

Como nam tendes sabido,

senhor, como sem perdido?

— Nam sei disso nemigalha.

Com quem houveste baralha?

Nam me negues isto mais!

— Oxala fosse baralha!

Nam me fica grãao nem palha,

quero-m' ir, nam me tenhais!

— Aguarda, aguarda, diabo!

Dize-m' esta puridade,

que bem sabes por meu cabo

que sempre muito te gabo,

por te ter boa vontade.

Nam me negues a verdade,

que quiçaa te virá bem.

Tenho-te tal amizade,

hei-de ti tal piadade,

que nam no crerá ninguem.

— Senhor, vou desamarrado

co a perda que mantenho,

levo meu colo alçado

e vou tam desatinado,

que nam sei se vou se venho.

O que tinha nam no tenho, 

nem é ja em meu poder,

estas barbas vos empenho,

que valia d' um cermenho

me nam fica por perder.

— Contudo nam acabaste

de decobrir teu pesar,

mil rodeos me buscaste

e porem agora vás-te

sem nada me decrarar


Nam has assi de passar

nem te hei-de leixar ir,

has hoje d' arrebentar,

senam aqui has-d' estar!

— Ora começai d' ouvir:

Um cruzado que poipei

em que tanto me revia,

tantas vezes o olhei

até que nam no achei

nem é ja onde soia!

Eu nam sei se cairia

da bolsa, se mo furtaram...

— Ou quiçaa t' esqueceria

em jugando... Algum dia

dar-to-am, se to acharam.

— E pois um pesar tam raso

me fez ser de dor sogeito,

pois passei ja este vaso,

conselhai-me neste caso

o que é mais meu proveito.

— Isto dizes, é ja feito:

a Sant' Esprito irás

batendo rijo no peito

e contar-Lh'-ás teu despeito

e quiçaa o cobrarás...

Oraçam de Manuel em
Sant' Esprito.

Ó Tu, Senhor Sant' Esprito,

posto que T' eu nam conheça,

de Ti, Senhor, me é dito

que es um Deos infinito

e mo metem em cabeça.

E dizem que m' ofereça

a Ti em minha paixam

e posto que me nam creça

devaçam, quanta mereça,

nam me ponhas culpa nam.

Adevinha-m', adevinha,

Tu, Senhor, quem me levou

um cruzado, que eu tinha

pera dar à molher minha,

que nam sei quem mo furtou!

Dom Joam m' aconselhou

que me viesse eu a Ti.

Vês-m' aqui onde m' estou.

Nam me falas? Ja me vou,

que nam posso estar aqui!

Alevantei minhas velas

como nao com grã fadiga,

carregado de querelas,

e fui achar Joam de Belas

o qual manda que o siga.

E diz: — Queres que te diga,

Manuel, ũa gram nova?

— O Senhor Deos vos bendiga!

— Ja este demo s' atriga

e nam quer ouvir a prova.

Novas bem certas que Joam
de Belas dá a Manuel do seu
cruzado.

— Tua saberas qu' eu ouvi

dizer qu' um homem dissera,

o qual eu nam conheci,

que passara por aqui

outr' homem, nam sei dond' era...

E aquele homem soubera

d' um seu anigo chegado

que ũ dia desta era

um seu filho lhe trouvera...

— Esse é o meu cruzado!

Nam quero mais escuitar,

Senhor meu, muitas mercês!


O juiz me vou buscar,

que mande logo citar

esse homem que dizês.

Nam m' hajais por descortes.        

porque vos leixo aqui soo,

tanta mercê me fareis,

que naquisto m' ajudeis

por desdarmos este noo.

Fala Manuel co Juiz, que era
Gonçalo
da Mota.

— Senhor juiz, venho caa

com muito grande paixam,

estou cá, nam estou laa,

Joam de Belas vos diraa

toda minha concrusam.

Eu nam sei quem nem quem nam

um cruzado me furtou,

ou se me cahio no cham,

porem tenho presunçam

que um homem o achou.

O Juiz.

— Esse homem donde é?

Bem será que mo digais,

porque sem mais bolir pee

vos juro, por minha fee,

que vosso cruzado hajais.

— Senhor Juiz, bem vivais!

Isso é o qu' eu espero!

— Ora sus, nam tarde mais,

esse homem, qu' acusais,

o nome saber-lhe quero.

Sinais que Manuel do homem
que lhe achou o cruzado.


― Eu nam sei ond' ele vive

porem é dond' ele for

a par dele nam estive

nem menos nam no retive

nem sei ond' ee morador.

Mas ponho qu' ee lavrador

e foi filho de alguem

e mais tem na sua cor

e tambem tem mor amor

a si mesmo ca a ninguem.

E é filho de molher,

traz o rosto por diante,

saberá quanto souber

e teraa o que tever

ou é feo ou é galante.

É mais baixo que gigante

e é maior que pineu

ou é fraco ou é possante

nam é rei nem é ifante

ou é cristão ou judeu.

Se mais sinais demandardes,

dar-vo-los-ei, se quereis,

mas porem, se bem julgardes

em est' homem condenardes,

grande mercê me fareis.

— Bem será ja qu' acabeis,

nam cureis mais de falar

e pois vós tanto sabeis,

esperai e ouvireis

a sentença qu' hei-de dar.

Sentença do Juiz.

— Visto bem por mi Juiz

este feito e maa auçam

e o qu' eu sobr' isto fiz

e o qu' este homem diz

em sua maa concrusam,

digo por boa rezam

que, s' ele perdeu o cruzado,

as Epistolas de Catam,

que quarenta e oito sam,

ham culpa neste pecado.

Fim.

Mas, porem, porqu' alegais

sinais com que m' embaçastes,

por esses mesmos sinais

eu julgo que vós percais

o cruzado que furtastes.

Porqu' assi como o guanhastes

sem temor de Deos nem medo,

abofee bem no lograstes

e nam sei como o guardastes

que se nam perdeo mais cedo.

799

D' ANRIQUE DA MOTA AO HORTELAM
QUE A RAINHA TEM NAS CALDAS,
QUE É Ũ HOMEM MUITO PEQUE‑
QUENO E CHAMA-SE JOAM GRAN‑
DE E PASSOU ESTAS PALAVRAS
COM ELE POR TRAZER A CARRE‑
TO DE DIZER QUE O PREVEDOR
DAS CALDAS, QUE CHAMAM
JERONIMO D' AIRES, ERA
MUITO SECO EM SUAS COU‑
SAS, E COMEÇA A BATER
À PORTA DA HORTA. E
FALAM AMBOS Ũ
COM O OUTRO.

— Ou laa, ou laa, ou delaa!

— Quem está i?

— Chegai, peço-vos, aqui,

que queria entrar laa.        

— Quem sois vós? Abrir-vos-ei...

— Abri vós e vê-lo-eis.

— Que quereis?

— Abri e dir-vo-lo-ei.

Em abrindo a porta.

— Amigo, Deos vos ajude!

— E a vós faça!

— Dizei-me, por vossa graça,

assi Deos vos dei saude,

se estaa aqui Joam Grande,

um mui grande hortelam?

— Eu o sam,

enquanto a Rainha mande!

— Isso seraa zombaria...

— Bem, porquê?

— Porque sois ũ cutilquê

pouco moor que cotovia!

E Jam Grande deve ser

um homem grande, crecido,

mui comprido

de descriçam e saber...

E vós pareceis bogio

com capelo,

redondo como novelo

ou pimeu em desafio.

— Se vós vindes a zombar,

nam vos quero mais ouvir!

Quero-m' ir,

que nam posso aqui estar.

— Aguardai, nam vos partais,

escuitai-me!

— Estarei e segurai-me

que nam zombeis de mim mais.

— Deixai-me passála porta,

que queria lá entrar

a falar

co hortelão desta horta.

— Pois ou grande ou pequeno

ex-m' aqui!

— O que dizeis é assi?

— Assi é por Sant' Ileno.

Vede vós o que quereis.

— Parecês arratalinho

folforinho...

— Nam disse que nam zombeis?

Ora i-vos logo fora

da minha horta,

que quero çarrála porta!

— Ei-lo demo vem agora!

Nam vos pidirei perdam

por qualquer cousa qu' errasse

ou passasse

mais de vossa condiçam.

— Por i me podeis levar,

que per bem

nam me vencerá ninguem.

Ora podeis vós entrar!

— Benz'-as Deos as larangeiras,

parece qu' a olho crecem!

E ja tecem

por aqui estas limeiras!

Oh que cousa tam real

começada!

— Entrai, que nam vedes nada!

— Oh que fremoso cidral!

E estas larangeirinhas

de laranjas carregadas!

— Sam prantadas

por estas santas mãos minhas!

— Quanto vós aqui prantais

tudo prende!

Por que tanto se m' entende

que ninguem nam sabe mais!

— Ũ pao seco aqui metido,

co saber que me Deos deu,

farei eu

ficar verde e mui frolido!

― Oh que cousa de louvor

esta ee!

Metei cá, por vossa fee,

este vosso provedor.

I correndo mui asinha,

que vos valha Deos, trazê-o

e fazê-o,

qu' ee serviço da Rainha.

— Ó Jesu, nam me faleis

nesta cousa,

porque meu saber nam ousa

fazer isso que quereis!

Porque toda a natureza

nem o saber de Medea

nem Cumea

nam faram tal ardideza.

Porque sua sequidade

é de sorte

que nunca, senam per morte,

mudará sa calidade.

E pera se regar bem,

primeiro despenderei

e secarei

toda quanta aagua aqui vem!

E ainda nam m' atrevo

a regá-lo

e, se quiser bem aguá-lo,

nam farei cá o que devo.

Antes ele fique seco

que dar maa conta de mim

e, enfim,

serei julgado por peco.

Porque sempre ouvi falar

cá e laa

que o que natura daa

ninguem o pode negar.

Ele tem seca naçam

de seu seco natural,

pelo qual

nam ha i ja redençam.

— Assim que vos despedis

de trazê-lo,

doutra parte eu ponho selo

a isso que concrudis.

Porque depois que naci

outra tam seca pessoa,

sendo booa,

nunca nesta terra vi!

Fim e concrusam.

E assi que concrudindo,

nunca pude achar maneira

pera que sua sequeira

se fosse deminuindo.

Porem dizem cá ũ dito,

bem me deveis d' entender,

que se acha em escrito,

que, quando virmos sol fito,

qu' esperemos por chover.

800

D' ANRIQUE DA MOTA A ŨU
SEU AMIGO EM REPOSTA DE ŨA
CARTA QUE LHE MANDOU, EM
QUE LHE CONTAVA ŨA VI‑
SAM QUE VIRA E PEDIA
CONSELHO E DECRARA‑
ÇAM DA DITA VISAM.

Descriçam do tempo.

A madre que começava

derramar seus lavradores

a filha de novas frores

o mundo ja visitava

e Neptuno derramava

seus tesouros.

Sobre cristãos, sobre mouros,       

Febo seus cabelos louros

reservava

e sem graça se mostrava.

O qual ia repousando

na casa do animal,

que co rabo fere mal

e da boca é mui brando.

Neste tempo era quando

me foi dado

ũ escrito mui çarrado,

que me deu muito cuidado,

em cuidando

no que nele vou achando.

E depois de o ter lido,

fiquei todo sem prazer

por nam poder entender

seu estilo mui sobido.

E assi entrestecido

me parti,

na qual ida me temi

de m' acontecer assi,

como hei lido,

que Homero foi perdido.

E com tam gram desatino,

prossegui por minha via,

Ramusia tomei por guia

como fez El-Rei Cadino.

E achei-me tam mofino

caminhante,

que quanto mais vou avante

me acho tam inorante

de contino,

muito mais que um menino.

E ia tam tresportado

que nam via ceo nem terra,

a mim mesmo dava guerra

co este novo cuidado.

Porqu' ia tam enlevado

em cuidar

que sem caminho achar

me foi Furtuna levar

a um prado

d' humanos desabitado.

O qual todo se cerrava

d' ũa serra per tal arte,

tam alta de cada parte

que as nuveens traspassava.

Na qual serra vi qu' andava

montesina

muita fera salvagina

e toda ave de rapina

se criava

naquesta selva tam brava!

E eu vendo que errei

o caminho da pousada

comecei buscar entrada

por sair per u entrei.

E depois que trabalhei

em buscá-lo

sem poder jamais achá-lo,

de ter aas como Dedalo

desejei,

quando cercado m' achei.

E des que nam achei meio

pera sair da montanha,

bradava com grande sanha

mesturada com receo.

Porem o carro febeo

caminhando

me foi toda luz tirando,

em tais trevas me leixando

como Orfeo,

quando do Inferno veo.

E depois que me cercou

a sombra de Tesifone,

fiquei mais triste que Prone,

quando seu filho matou.

Porque des que s' apartou

a luz do dia,

fogio de mim alegria

e por minha companhia

me ficou

temor, que m' acompanhou.

E com quanto mal dobrado

atequi passei tam duro,

com receo do futuro

m' esquecia do passado.

Porque me vi mui cercado

de bestigos,

de minha vida imigos,

e eu por fogir perigos

foi forçado

em ũa arvor ser trepado.

E depois dali passar

gram parte da noite escura,

maldisse minha ventura

que m' ali veo portar.

E comecei de rogar

a Cupido

qu' alomie meu sentido

e pera que fui trazido

a tal lugar

me quisesse decrarar.

E eu que nam acabava

meu rogo tam paciente

quando vi supitamente

um craror que me cercava.

E no meio dele estava

poderoso

um moço cego, fremoso,

ora ledo ora cuidoso

se mostrva

e tinha aas com que voava.

E trazia por sinal

de suas obras secretas

um coldre com muitas setas

e um arco mui real.

E a quem é mais leal

a seu mandado,

esse vive mais penado,

esse tem tanto cuidado

que mais val

fogir do seu arraial.

E aqueles que feria

com seus furiosos tiros

fazia-lhe dar sospiros,

sem cansar noite nem dia.

E vi que tanto podia

seu poder

que nam presta defender,

nem o humano saber

nam sabia

resestir sua perfia.

E eu com alteraçam,

que tinha do grande medo,

falei um pouco mais cedo

do que mandava rezam.

E disse com torvaçam:

— Oo senhor,

se tu es o deos d' Amor,

livra, livra de tal dor

meu coraçam,

que nam moira de paixam!

O qual logo respondeo:

— Eu sam o grande Cupido,

eu fui amado e temido

de quanta gente naceo!

E quem me nam conheceo

nem amou,

poucas cousas acabou,

nunca galante andou

nem viveo

quem sem amores morreo.

E eu posso dar cuidados,

eu dou pena e eu groria,

por mim alcançam vitoria

os constantes namorados.

E os que sam mais honrados

e servidos,

se quero, sam abatidos,

e por contrairo queridos

e amados

os tristes desesperados.

E assi que em meu poder

é a chave dos amores

e por tanto os amadores

me devem obedecer.

Devem-me reconhecer

obediencia,

pois minha grande excelencia,

por mais alta priminencia,

tem poder

pera dar dor e prazer.

E porque tu invocaste

minha grande magestade

com tam humilde vontade,

grande graça percalçaste.

Mas nam cuides qu' escapaste

da gram pena

que te meu saber ordena,

mas daquesta mais pequena

te livraste,

quando meu nome chamaste.

E dirás a teu amigo

que nam cure de cuidar

na visam que vio passar,

que o pôs em gram perigo.

Porque aquele bestigo

qu' ele via,

que as carnes lhe comia,

será grande alegria

que consigo

logrará como te digo.

E tanto qu' isto falou

ũa nuvem o cobrio

e assi se transluzio

que os olhos me cegou.

E des que se apartou

sem no ver,

trabalhei por me decer

e achei-me, sem saber

quem me levou,

nesta terra ond' estou.

Fim.

Agora, senhor, olhai

estoutra visam que vi

e entenderês aqui

vosso feito como vai.

Mas de mim vos afirmai

que soo a vista

me dá tam forte conquista

que nam sei quem lhe resista

nem se sai

minha dor por dizer ai.

801

D' ANRIQUE DA MOTA A DOM JOAM
DE NORONHA E A DOM SANCHO SEU
IRMÃO, PORQUE SE FORAM CON‑
FESSAR A SAM BERNALDI NA ME‑
TADE DO VERÃO, LEVANDO
CONSIGO O VIGAIRO D' OVI‑
DOS, QUE É MUITO GORDO.
E VIERAM JANTAR A Ũ
LUGAR QUE CHAMAM OS
GIRALDOS E NOM ACHA‑
RAM VINHO PERA BEBER.

No Verão ir confessar

na força dos dias grandes,

nam ha i bancos de Frandes

pera tanto arrecear.

O frade mui devagar

assentado a seu prazer,

a cegarrega a cantar,

entam estar e suar

isto é mais que morrer.

Portanto foi ordenado

o confessar no Inverno,

porqu' o mor mal do Inferno

é ser muito encalmado.

Ante ser escomungado,

que ir confessar por calma,

que açaz é gram pecado

ser o corpo maltratado

com pouco proveito d' alma.

Ora ponhamos que jaa

seja feita confissam

com mui grande contriçam,

como creo que seraa.

Vejamos quem poderaa

comprir agora pendença,

a qual é cousa tam maa

que se n' alma vida daa,

no corpo causa doença.

É ũa cousa mui sãa

pera os corrutos aares

nos dias caniculares

o beber pela menhãa

Atouguia ou Lourinhãa.

Quem nam tiver, Caparica

sobre pera ou maçãa

e o al é cousa vãa,

em salvo está quem repica.

E se disser o contrairo

esse frade por ventura,

dizei-lhe qu' assi se cura

o padre do campanairo.

Porque tem um bibiairo

em que reza sem perigo

muito mais que no rosairo,

nam digais qu' ee o vigairo,

porqu' eu, senhor, nam no digo.

Nem eu certo nam diria

do senhor vigairo nada

nem da sua imbiguada,

porque m' escomungaria.

Mas, porem, eu juraria

na saia de Sam Bernaldo

que ja ele rezaria

um responso que dizia:

Libera me do Giraldo!

In die illa tremenda,

quando for o ceo movido

e o vinho falecido,

que nam achem quem no venda

nem fiado nem aa tenda,

nem per força nem per rogo.

Domine michi defenda

de tam aspera emmenda,

ante me julgue per fogo.

Açaz gram pendença era

a que fez vossa mercê

querer beber sem ter quê!

Ooh que pendença tam fera!

Sempre ouvi que nesta era

é perigo ter barriga

e eu vi na Primavera

e no curso da espera

qu' haviens de ter fadiga.

Vierom do Oriente

tres Reis Magos que sabeis

e vós fostes todos tres

muito gordos em Ponente.

O frade muito contente

na sua cela mui fria

e vós per calma mui quente!

Eu m' espanto certamente

sairdes daquele dia!

Fim.

Ora ja vos confessastes,

guardai-vos de jejũuar,

qu' assaz vos deve abastar

ó suor que laa suastes.

Porque dou-lhe que contastes

mais pecados do que eram,

eu m' afirmo que pagastes

n' afronta que lá passastes

a pendença que vos deram.

802

TROVAS D' ANRIQUE DA MOTA A
ŨA MULA MUITO MAGRA E VELHA,
QUE VIO ESTAR NO BOMBARRAL,
À PORTA DE DOM DIOGO, FILHO
DO MARQUÊS, E ERA DE DOM
ANRIQUE, SEU IRMÃO, QUE
IA EM ROMARIA A NOSSA
SENHORA DE NAZARE‑
TE E LEVAVA NELA
UM SEU AMO.

— Donde sois, senhora mula,

qu' assi stais desmazalada?

Vós no pecado da gula

nam devês de ser culpada.

Segundo estais dilicada,

juraria

que sereis acustumada

a comer pouca cevada

cada dia.

Vós por vossa grã magreira

nam devês ter dor de baço,

ja devês deixar o paço,

pois vos dam tam má conteira.

Qu' eu nam sinto quem vos queira,

porem sei,

quando foi d' Alfarroubeira,

qu' andaveis na dianteira

cos d' El-Rei.

Dessa vossa guarniçam

bem sei que vos contentais,

doutra parte é razam,

pois que tem tantos metais:

ouro, prata, estanho e mais,

tem verniz,

latam, cobre nam deixais,

parecês i ond' estais

ũa boiz.

Se fordes a Nazaree,

ali é vosso fartar:

ooh que gram duçura é

area e agua do mar!

Se vos Deos bem ajudar

nesta jornada,

quero-vos profetizar

que havês lá de ficar

estirada.

Vós parecês um diabo

se nam quanto sois mais fea,

por mais que bulais co rabo

havês de ter bem maa cea.

Tendes feiçam de lamprea

na longura,

da barriga pouco chea.

Oh Jesu que má estrea,

que trestura!

A Mula.

— Abofee bem vos meteis

sem saber com quem falais

e demais se vós cuidais

que falais com quem soeis,

vós de mim zombar querês!

Assaz de mal

que fui do senhor Marquês

e ja reis vi morrer tres

em Portugal.

— O que dizeis é assi?

Dizei, assi vos Deos farte.

— No tempo d' El-Rei Duarte

vos afirmo que naci.

E ja quatro reis servi

portugueses

e com quanto mal sofri

nunca de casa sahi

dos Marqueses.

— Pois com quem viveis agora

que vos tem tam maltratada?

— Traz-m' ũ homem emprestada

de quem seja cedo fora.

— Nam me direis onde mora?

— Se ousasse...,

mas traz ũa tal espora

queria lá na maa hora,

se falasse.

— No tempo dos caramelos

que comês, que Deos vos valha?

— Ũa quarta de farelos,

ũa jueira de palha.

— Nam comês outra bitalha?

assi gozedes.

— Nam como mais nimigalha!

— Dar-vos-á fome batalha

j' ora vedes.

— Ora bem, e no beber

assi vos poem provisam?

— Quant' a disso farta sam,

nam ha i al que dizer.

Se me dessem de comer

dessa maneira,

bem podia gorda ser,

nam me viria morrer

de lazeira!

— Tendelos ossos mui altos

e a carne mui somida,

andais bem fora dos saltos,

sois de quadris bem fornida!

— Por i verês vós a vida

que eu passo,

e por ser mais destroida,

vou com ũ homem nesta ida

mui escasso.

— Ora bem, esse voss' amo

nam direis como se chama?

— É o amo qu' eu desamo,

que a mim bem pouco ama.

Nam hei-de calar sa fama,

que m' esfole,

mas s' agora houvesse lama,

se lh' eu nam fezesse a cama

na mais mole.

Gomez Anriquez.

— Oh Jesu, que má visonha!

Oh que cousa tam disforme!

Tem no pescoço conforme

com garganta de cegonha!

Donde é tal carantonha

de tais geitos?

— Sam da casa de Noronha

e nam hei-d' haver vergonha

de meus feitos.

Porque, vedes-me aqui,

eu vos juro de verdade

que pormeti virgindade

e estou tal qual naci.

Em meu bom tempo servi

quanto pude

e, depois que envelheci,

nunca mais bem recebi

nem saude.

O Amo que ia nela.

— Que diabo lhe quereis

a esta triste coitada?

— Diz que nam come cevada

e que vós que lha tolheis!

— Quero, pois qu' isso dizeis,

que saibais

que a come cada mes...

— Cada mes? Ha vinta tres

que ma nam dais!

Anrique da Mota.

Porque partido houvestes

a mula que foi das boas,

aforada em tres pessoas,

oh qu' aramaa cá viestes!

Nunca foro me dissestes

de tal sorte!

Mas pois vós isso fezestes,

eu me faço logo prestes

pera morte.

O Amo.

— Estais ora mui em finta

e estais trocendo o rosto.

— Mas bradam todos convosco

por me terdes tam faminta!

— Deveis lançar ũa finta

em Alcoentre

pera lhe encher a cinta,

fico-vos que mais nam sinta

dor de ventre.

Fala o Amo com Anrique da
Mota.

Se soubesseis como anda,

ficariês espantado!

— Sei que anda, mal pecado,

nam mui farta de vianda...

Parece longa varanda

de taverna,

trave longa, muito panda,

zambuco que se nam manda

nem governa.

Fala o Amo com a mula,
quando se ja queriam ir.

— Toda a jente se vai jaa,

vamo-nos d' aqui emboora!

— Mas que vamos na má hora

que comigo andará.

— Andai rijo e ver-vos-aa

esta jente!

— Nunca Deos tal quereraa!

Quem me dá vida tam maa,

que o contente.

Quanto mais que eu nam posso

fazer isso que quereis,

porqu' o meu mal e vosso

tod' é meu, como sabeis.

O que ando é que me pês

e com paixam

des que em mim vos colhês,

cuidais que sam ũ arnes

de Milam.

O Amo.

— Andai, andai, nam vos torçais,

qu' olham todos pera nós!

— Oxala rissem de vós

tanto atá que vos deçais!

— Aguardai, pois que palrais,

coçar-vos-ei,

e vós, dona, respingais!

— Se me vós assovelais,

que farei?

Despidimento da Mula, em se
partindo.

— Senhores do Bombarral,

vou-me com vossa mercê,

tanta mercê me fazê

que vos lembrês de meu mal.

E a cousa principal

que a Deos peçais

qu' esta fome tam jeral,

que anda em Portugal,

nam dure mais.

Que se eu sam mal provida,

quando a terra é abastada,

que farei quando a cevada

a quarenta é vendida?

S' eu escapo desta ida

com tal cura,

hei-de buscar ũa ermida

onde faça outra vida

mais segura.

Dali a dias, indo Anrique da
Mota ter a Alcoentre, onde Dom
Anrique estava, achou a Mula,
que lhe deu conta de todo o
que se passara na jornada da
romaria, onde fora, de
que ja era tornada.

— Folgo bem de vos achar

senhor meu, naquesta terra,

pera vos contar a guerra

que me dá nam mastigar.

Se quiserdes escuitar,

contar-vos-ei

meu intrinsico penar,

minha gram dor e pesar

que passei!

Partimos naquele dia

que nos vós vistes partir,

todos via muito rir,

senam eu que nam podia:

que nam pousa alegria

nem prazer

na tripa muito vazia,

porque todo bem se cria

de comer.

E fomos ter no Arelho

onde lá esses senhores

e todos seus servidores,

todos eram d' ũu conselho:

linguado, perdiz, coelho

e, enfim,

muito branco e vermelho,

e eu em ũ palheiro velho

por roim!

Pois lá em Selir do Porto

— que terra de fideputa! ―

de cevada mui enxuta,

carecida de conforto,

suei sangue ali no horto

com paixam!

Meu esforço ali foi morto,

porem foi o grande torto

sem razam.

Que vos juro de verdade,

que como fomos chegados,

todos foram apousentados

senam eu! Que gram maldade,

nam haverem piadade

de meu mal

e de minha hetiguidade,

senam só Lopo d' Andrade

que me val!

O qual me deu por pousada

ũa casa muito fria,

de vianda mui vazia,

mui varrida e mui aguada.

E selada e enfreada

me deixaram

e a porta bem fechada,

sem me dar de comer nada

se tornaram.

Fiquei assi passeando,

chorando minhas fadigas,

em minhas obras antigas

como ja quase sonhando.

Muitas vezes sospirando

por comer!

Os galos todos cantando

e eu triste, arrenegando,

sem prazer.

Senam quando ei-lo vem

qu' ũa quarta d' ũa quarta

de farelos, que mal farta

quem taam grande fome tem.

Mas eu disse: — Nam combem

d' engeitar

este tam pequeno bem,

porque nam fique aquem

de cear.

Fomo-nos Alfeiziram

onde ha infindo sal,

nam levei eu dali al

senam dor de coraçam.

Dali a Famalicam

nam tardámos

— que nome de maldiçam! ―

que nem cevada nem pam

nam achámos!

E dali a Pederneira

levei ũ bom suadoiro,

mas eu nam levava coiro

no lombo nem na cilheira.

Levava mui gram peteira

na barriga,

muita fome, gram lazeira

e cheguei desta maneira

com fadiga.

Bem disse o sabedor:

Hoje mal e pior craas!

Se eu mal passei atras,

ali foi muito pior:

d' area lá meu senhor

fartar-me manda.

Ela tem mui gentil cor,

mas dai ò demo o sabor

da vianda!

Tomámos outra jornada

lá caminho d' Alcobaça,

eu levava pouca graça,

porqu' ia mui esfaimada.

Ali fui atormentada

nesta via

e na cruz marteirada

com a sela bem lograda,

que corria.

Fiquei muito descansada,

quando me vi no moesteiro,

em poder do estribeiro,

de poder deste tirada.

E fiquei mui espantada

quando vi

cevada ja debulhada

ante mim apresentada,

que comi!

Tive muitas alegrias

os dias que ali passei,

nam sei quando taes tres dias

em meus dias passarei!

Gram saudade tomei

na partida

e partindo comecei:

— Oh quam pouco que logrei

esta vida!

Assi triste lamentando

me parti e sem prazer,

outros mil males passando

que nam sam pera dizer.

As Caldas viemos ter,

sem tardar

perguntei por mais saber:

— Estas aguas têm poder

de m' engordar?

E disseram-me: — Si, tem.

Porem logo sem detença:

— Quem nelas entrar, convem

que faça mui gram pendença.

— Bem me praz desta convença,

pois é tal,

mas esta minha doença

é faminta pestenença

mui mortal.

É ũa dor de tristura

que faz aos mais honrados

dar sospiros mui dobrados

se os toca per ventura.

Que nam ha i dor tam dura

de sofrer

a vivente criatura

como ver-se em apertura

de comer.

Esta faz muitas vilezas

onde nam valem castigos,

esta faz mil fortalezas

dar em poder dos inmigos.

Esta faz muitos amigos

se perderem,

os presentes e antigos

se poseram em mil perigos

por comerem.

Assi qu' à dor, que m' asseita,

Hipocras e Galeano

dam em contra de seu dano

ũa mui gentil receita.

E dizem qu' ha-de ser feita

per est' arte:

de farelos satisfeita,

cevada bem escolheita,

que me farte.

Se haveis por confissam

açaz sam de confessada

eu nam como ja cevada,

isto porque ma nom dam!

E tomo por devaçam

jejũar,

pois quant' a por contriçam

assaz d' enfadada sam

de chorar.

Eu estando concertada

pera entrar ja nos banhos,

foram meus males tamanhos

que fui logo enfreada.

E ali foi apartada

a companhia:

cada parte foi tornada

com seu senhor à pousada,

que soia.

A Mula a Dom Diogo,
quando ia.

— Vossa Senhoria vai

caminho do Bombarral,

resesti, senhor, meu mal,

pois que fui de vosso pai.

E convosco me levai

que eu m' irei

ou, senhor, m' encomendai

a vosso irmão, senam cuidai

que morrerei.

E dizê-lhe com rigor

que mande curar de mim,

nam deseje minha fim,

pois que fui tal servidor.

Olhai bem o grand' amor

que me tinha

vosso padre, meu senhor,

que somente seu favor

me mantinha.

Olhai bem quanto serviço

fiz na idade passada,

nam queira tomar por viço

ver-me morrer esfaimada.

Ũ alqueire de cevada,

que é ũ vento,

com farelos mesturada,

com pouco mais quase nada

me contento.

Dom Diogo.

— Bem é isso que pedis,

meu irmão o saberá,

servi vós como servis,

que tudo se bem fará.

— Ó senhor, qu' esquecerá,

logo se diga

ante que daqui se vaa,

que depois nam lembrará

minha fadiga.

Todos teveram folgança,

senhor meu, neste caminho,

cevada, pam, carne, vinho,

tudo foi em abastança.

Todos andam em bonança,

sem tromenta,

senam eu sem esperança,

qu' esta fome por herança,

m' atormenta.

Dom Diogo.

— Nam digais isso, maa hora,

pois que eu sei o contrairo,

se eu todos bem repairo,

como ficais vós de fora?

— Nam digo mais por agora,

porqu' ee feio,

mas pois isto se inora

mandai vós fazer demora

e sabei-o.

Dom Diogo.

— Nam sei como ser podia

nam comerdes vós cevada,

pois vos era ordenada

bem tres quartas cada dia.

— Certo eu bem folgaria

e convem

saber vossa senhoria

o certo  desta porfia,

mas é bem.

Dom Diogo ao seu Veador.

— Dizei, Bastiam da Costa,

vós que sabeis a verdade,

dai aqui vossa reposta:

Quem faria tal maldade?

— O senhor, é vaidade,

nam vos menta,

nam lhe des autoridade,

que ja passa da idade

dos setenta!

— Vós quereis atabucar-me

que nam ouse de falar?

Vós bem me podeis matar,

mas eu nam hei-de calar!

E vós cuidais d' enganar-me

neste vale?

— Mas vós querês defamar-me,

nam queirais vós assanhar-me

que eu fale.

— Porem vós tomais solaz

e em mim nam entra riso.

— Ó senhor, que nam tem siso,

diz aquisso que lhe praz.

— Ora isso nam me faz

nenhũ agravo.

— Preguntai a quem me traz

e sabei bem onde jaz

este cravo.

Dom Diogo ao Amo.

— Dizei, amo, pois lograis

esta triste descarnada,

nam lhe vistes dar cevada?

— Ó senhor, nam na creais!

Que depois que cá andais

nam ha fome:

tres quartas lhe dam e mais!

— Bem, e vós força m' achais

de quem come?

Dom Diogo ao Veador.       

— Dizei a quem entregais

a raçam e saber-s'-aa

a cevada que lhe dais.

— Ao amo que i estaa!

— Dizei, amo, vinde caa,

é assi?

— Assi foi, é e será

e ela nam o negará,

que eu lha vi.

— Dizei: Vistes-me gostar

a cevada que dizeis?

— Nam, mas sei, e vós sabeis,

que vo-la mandava dar.

— Senhor, se de mim

s' achar que foi comida,

fazei-me vós desselar,

mandai-m' a sela quebrar

e a brida!

Dom Diogo.

— Ora eu nam tenho culpa

na má vida que passastes,

a verdade me desculpa

a qual vós espermentastes.

— Senhor, vós bem vos mostrastes

verdadeiro

e a quem m' encomendastes

bem comprio o que mandastes

per inteiro.

Porem toda a culpa tem

este moço que me cura:

a cevada bem precura

mas ele guarda-a mui bem.

Sabe Deos quam mal me vem

esta lazeira,

mas fazê-lo me convem,

porque nam acho ninguem

que me queira.

Senhor, hei-de conhecer,

pois a verdade se crê,

a muito grande mercê

que me folgastes fazer.

Porem eu posso dizer         

que passei

oito dias sem comer,

mantendo-me no prazer

que levei.

Acaba a Mula de contar a
Anrique da Mota todo o que
passou e dá fim e concrusam.

E depois destas razões

todos fomos apartados,

senam eu que de paixões

nam no fui, por meus pecados!

Aqui ando com cuidados

sem deporte,

u meus dias mal logrados

seram sempre lastimados

até morte!

803

ANRIQUE DA MOTA A VASCO ABUL,
PORQUE ANDANDO ŨA MOÇA BAI‑
LANDO EM ALANQUER DEU-LHE,
ZOMBANDO, ŨA CADEA D' OURO
E DEPOIS A MOÇA NAM LHA
QUIS TORNAR E ANDARAM
SOBRE ISSO EM DEMANDA.
E VEO VASCO ABUL FALAR
SOBRE ISSO À RAINHA,
ESTANDO EM ALMA‑
DA, E AHI LHE FEZ
ESTAS TROVAS.

— Que buscais cá nesta terra

com tal sul,

meu senhor Vasco Abul?

— Cá m' ordenam ũa guerra.

— Seram isso mexericos?

— Nam sejais vós tal com' eu,

mas sam ũs senhores ricos,

que per bicos

me querem levar o meu!

— Trazeis algũa demanda   

ou que é?

— Nam no sei, por minha fee!

Mal viva quem me cá manda!

— Vós andais esmorecido,

eu nam sei que vós haveis!

— É ũu caso tam sobido

que dovido

se o vós entendereis!

— Nam cureis de duvidar

e dizee-mo!

— Nam no digo, porque temo

que ham-de mim de zombar.

— Que caso pod' esse ser

em que tanto sopesais?

— Eu vo-lo quero dizer,

pera ver

o conselho que me dais.

Fui lá muito na maa hora

nesta era!

Em hora que nam devera

vi bailar ũa senhora.

— Sei que foram isso brigas...

— Mas cuido que sam pecados!

Bem mereço eu mil figas

e fadigas,

pois que perco meus cruzados!

— Furtaram-vos lá dinheiro?

— Mas tomaram

e per geito m' assacaram,

que fiz outrem meu herdeiro.

— Quant' a isso folgaria

de saber como passou.

— É a mais alta perfia

e zombaria

que nunca ninguem cuidou!

Ũa gentil bailadeira

d' Alanquer,

fremosa, gentil molher,

me chofrou desta maneira:

por me nam parecer fea,

vendo-a bailar ũ dia,

lhe mandei por boa estrea

ũa cadea,

qu' eu no pescoço trazia.

Depois, quando a quisera

recolher,

quiseram-me fazer crer

que eu por sua lha dera!

— E vós ficais di honrado,

nam deveis dizer i al,

que o homem bem criado,

namorado,

o bom é ser liberal.

Bailava balho vilam

ou mourisca?

— Mas chamo-lh' eu carraquisca,

mais viva que tardiam!

Eu nam sei quem me venceo

pera tomar tal trabalho!

— Calai-vos, que mais perdeo,

pois morreo,

Sam Joham per ũ soo balho!

E que percais cinquenta

boons cruzados,

ũu homem dos mais honrados

nestas cousas s' espermenta!

— Vós falaes bem do arnes

e nam curais de vesti-lo...

— Fazei vós o que fazês

e ficarês

autor de novo estilo.

— E vós lá no Bombarral

assi dais?

— Nós nom somos liberais,

somos jente bestial...

Mas vós deveis de folgar

de serdes nisto devasso,

por de vós fama ficar

e enlhear

quem diz que vós soes escasso.

— Nam quero vosso conselho

nem mo deis,

pois que sei e vós sabeis

que sei mais por ser mais velho.

— Oh, calai-vos, ganhai fama,

usai liberalidade,

e quiça se vos nom ama

essa dama

amar-vos-á de verdade.

E também fazeis serviço

enfinito

ao Senhor Sant' Isprito,

que é cousa de gram viço

e ganhais o Paraiso.

Pois é orfãa a senhora,

tomai, senhor, est' aviso,

pois é siso

e ir-vos-eis muito emboora.

E i levar boa vida

a vossa casa,

qu' isto é vergonha rasa,

avareza conhecida.

Pois que soes bom cavaleiro

e vindes de nobre jente,

nam vos façais tisoureiro

do dinheiro

e dai sempre nobremente.

Vesti-vos de gentileza,

que Deos vos valha,

e rapai-vos aa navalha

que vos veja Sua Alteza.

Fazei mui alegre rosto,

guarnecei-vos de retrós

e, pois soes tam bem desposto,

levai gosto

em falarem cá de vós.

— Ataes-me por tal maneira

que me pesa

e nam posso achar defesa

que preste, posto que queira.

A verdade nam me val,

por escasso m' apregoo

e quem me faz liberal,

por meu mal,

certo nunca lhe perdoo!

Fim em vilancete.

Pois destes tam levemente

este colar,

nam vos deve de lembrar.

O colar que ja foi vosso,

que é de quem nam é vossa,

buscai quem vos nisso possa

conselhar, pois eu nam posso.

E pois o tam bem fizestes

em o dar,

nam vos deve de lembrar.

Todos vós outros, senhores,

que sabeis aqueste feito,

sede meus ajudadores,

receba de vós favores

com que supra meu defeito.

Ajuda de Mestre Gil.

O tempo tem poder tal,

que faz do servo isento,

faz liberal avarento,

do avarento liberal.

E pois vosso natural

de guardar mudou em dar,

nam vos deve de lembrar.

Agostinho Giram.

Com o colar que cuidastes

de prender, ficastes preso,

e compraste-lo per peso

e sem peso o entregastes.

E pois que tam bem obrastes

em o dar,

nam vos deve de lembrar.

Afonso Fernandez Montarroio.

O galante que s' encarna

em amores e em dar

nam se deve mais coçar

nem menos deve ter sarna.

Pois ficais desta encarna

descarnado, sem colar,

nam vos deve de lembrar.

Joam Alvarez, secretareo.

Todo homem qu' é escasso,

se lhe vem aa fantesia

dará mais em ũ soo dia

que em cent'anos ũ devasso.

E pois destes sem compasso

este colar,

nam vos deve de lembrar.

Diogo de Lemos.

Alexandre foi louvado,

porque foi mui liberal

e vós, se fizerdes al,

podereis ser mui tachado.

E pois ja o tendes dado,

dai ò demo este colar,

nam vos deve de lembrar.

Diogo Gonçalvez.

Mui galante vos mostrais,

bem rapado, sem carepa,

e crede, senhor, que peca

quem vos diz que vós arraes.

E pois vossa alma ganhais

em o dar,

nam vos deve de lembrar.

Tomé Toscano.

O dinheiro da igreja

naquisto s' ha-de gastar:

criar orfãas e casar,

porque Deos servido seja!

E pois que Deos vos deseja

de salvar,

nam vos deve de lembrar.

Bastiam da Costa, cantor.

Andais ledo em grã guisa

como quem veo da Mina,

galante, cheo de frisa,

com vossa gentil devisa

de cruz vermelha, mui fina.

E pois ja se determina

que percais este colar,

nam vos deve de lembrar.

Fernam Diaz.

Destas novas que vam caa

folgo por ser voss' amigo

e quem diz que soes mindigo

ja nunca mais o dirá.

E portanto, senhor, ja

nam cuideis neste colar

nem vos deve de lembrar.

Por Branc' Alvarez, cristaleira.

Porque sei que sois dureiro

em sair de vós mercês,

deveis andar prazenteiro

por terdes o mealheiro

pregado como sabeis.

E pois mester me nam haveis,

quero-vos aconselhar:

nam vos lembre este colar.

Embargos d' Anrique da Mota
pera se nom entregar o colar
a Vasco Abul, feitos à
Rainha Dona Lianor.

Senhora:

Bem posso eu com razam,

por ser dos orfãaos juiz,

aceitar a tal auçam,

o direito assi o diz

nas Sergas d' Esprandiam.

E também por nam cuidar

nos meus beens, que se me perdem,

pois ando tam devagar

quero, Senhora, ordenar

qu' esta orfãa nam deserdem.

E diz e provar entende

esta orfãa ou menor

que ela bem se defende

e qu' este seu servidor

o seu nunca mal despende.

E é homem mui sesudo,

e posto que seja seco,

esteve ja no estudo

e entende assi em tudo

que nam perde o seu de peco.

Item entende provar,

se nom for ano bissexto,

que quem tem bem pode dar,

assi o diz outro texto

na Conquista d' Ultramar.

E no parrafo segundo

doutra caronica nova,

diz que El-Rei Sagismundo,

que é ja no outro mundo,

que faz muito à nossa prova.

E assi quer provar mais

que El-Rei de Fez é mouro

e que antre os metaes

val mais este colar d' ouro

que de ferro dous quintais.

E tambem, Senhora, quer

per testemunhas provar,

que é foral d' Alanquer,

que quem colar d' ouro der

nam no possa mais tomar.

Item quer provar tambem

que ela quer a cadea

e que contra ela vem

o Doutor Pero Correa,

primo de Matusalem.

Mas Vossa Alteza lhe mande,

pois que parece paul,

que algũs dias cá ande

e o direito demande

por parte de Vasc' Abul.

E assi mais quer provar,

per muitos homens honrados,

qu' ele lhe deu o colar

por cinquenta cruzados,

sem ũ soo grãao lhe minguar.

E logo ao entregar

mingou ũ cruzado e meo,

o qual lhe deve pagar,

pois que logo ao pesar

o peso certo nom veio.

E por menos sospeiçam,

por testemunhas lhe dou

ũ paje do Gram Soldam,

qu' a esta terra chegou

em tempo d' El-Rei Ispam.

E tambem ũ boticairo

que se chama Janes Breca,

que ora vive no Cairo,

e ũ mouro qu' ee vigairo

dentro na casa de Meca.

Item o Dalfim de França

e El-Rei de Tremecem

e Joham Pirez de Bragança,

Jan Espera Deos tambem

sabe muito desta dança.

E damos tambem Elias,

que sabe bem deste feito,

e o profeta Jeremias

e aquele que Hurias

fez matar d' amor sogeito.

E pera mais brevidades

ũ homem nos preguntai,

qu' está nas Sete Cidades

e também damos dous frades,

qu' estam em Monte Sinai.

Porqu' estes conhecer tem

dos liberais e avaros

e nomeamos tambem

ũs dous parentes de Sem,

que vivem nos Montes Craros.

E por esta inquiriçam

do que queremos provar

haver mester dilaçam,

Vossa Alteza a mande dar,

segundo que for razam.

E por nam haver enganos

no que está tam provado

e ninguem receber danos,

mandai-nos dar sessent' anos

que é termo razoado.

E porqu' isto se navegue

por ũ caminho mui santo,

a cadea se entregue

a est' orfãa entretanto

e o seu nom se lhe negue.

E pera maior firmeza

nomeamos a fiança,

se o manda Voss' Alteza:

o tesouro de Veneza

qu' ee açaz em abastança.

Fim.

E por isto se seguir

e haver fim por meu azo,

Voss' Alteza mande-m' ir

e, acabado este prazo,

poderei cá acudir.

E poder-s'-am concrudir

estas demandas injustas

e protestamos das custas

e repricar, se comprir.

O parecer de Gil Vicente neste
processo de Vasco Abul à
Rainha Dona Lianor.

Senhora:

Voss' Alteza me perdoe,

eu acho muito danado

este feito processado

em que manda que razoe.

Vai a cura tam errada,

vai o feito tam perdido,

vai tam fora da estrada

que a moça condenada

Vasc' Abul fica vencido.

O principio do cimento

assegura a fortaleza,

se o cume tem fraqueza

gerou-se no fundamento.

É errada a qualidade

deste caso na primeira,

vem a tanta variedade,

que na fim e na metade

tem os pés por cabeceira.

Este dar moveo amor,

porqu' amor gera franqueza

no ventre da escaceza,

por mostrar quanto é senhor.

Pois s' o caso é namorado,

fundado todo em amores,

o autor foi enframado

e ò que deu, dado ou nom dado,

convêm outros julgadores.

Quem mete Bartolo aqui

nem os doutores legistas

nem os quatro Avangelistas?

Mas os namorados si!

Mande, mande Voss' Alteza

este processo o Arelhano,

vereis com quanta graveza

busca leis de gentileza

no lindo estilo romano.

Ele deve ser juiz

e se apelaçam querês,

apelem par' ò Marquês,

procurem Pero Moniz.

Pera qu' ee qui responder,

pera qu' era processar,

pera qu' ee qui proceder,

pois nam é nem pode ser

que se possa aqui julgar?

Vejo tanta deferença,

vai a causa tam remota

que os embargos do Mota

vam primeiro qu' a sentença.

E Mestre Antonio tambem

vem com texto que topou,

textos vam e textos vem

e este caso mais convem

a quem menos estudou.

Assi qu' ee meu parecer

e estou certeficado

que o feito vai errado

e nam deve proceder.

Porque, com' ee dito ja,

isto é caso d' amor,

rompa-s' o que feito está,

se quer que nam digam lá

que nom sabem cá d' açor.

Fim.

Leve o caso Dom Diogo

Coutinho por relator,

porqu' El-Rei nosso Senhor

o fará despachar logo.

E virá de lá, Senhora,

ũ processo tam fermoso,

Vasc' Abul ir-s'-á emboora,

sofra-se, pois se namora

e logo quer ser esposo.

Reeprica d' Anrique da Mota
a estas razões de
Gil Vicente.

A quem Deos tem ordenado

algũ bem ou pormetido

entam lhe é outorgado,

quando mais desesperado,

por ser mais agardecido.

E portanto estaa sabido

por Deos vir esta reposta,

porque certo nam dovido,

segundo o mar é erguido,

este colar ir à costa.

Em tomardes Arelhano

por juiz daqueste feito,

procurastes vosso dano,

porem eu vos desengano

que vos é muito sospeito.

Que por comprir o preceito

desta lei dos amadores,

de quem ele é sogeito,

se nam tevermos direito

haa-nos de fazer favores.

Pois ja muito mais errastes

em pedirdes o Marquês,

per vós mesmo vos matastes,

o colar nos confirmastes,

pois que tal juiz querês.

E como vós nom sabês,

pois passou em vossos dias,

qu' este senhor que dizês

é Mancias portugues

e inda mais que Mancias.

Nom sabeis quantos milhares

tem despesos de cruzados,

quantas joias e colares,

quantos ricos alamares

por amores tem gastados,

sem mais serem demandados

nenhũs destes despendidos,

porque antre os namorados

nam é erro serem dados

e é erro ser pididos.

Pois tambem se procurar    

esse galante Moniz,

qu' ò deemo vai o colar,

porque s' ham-de concertar

o precurador co juiz.

Entam verês o que diz

ama d' El-Rei sobre nós:

eu direi que nam no fiz,

vós dirês que sam biliz,

eu direi que o soies vós.

Vós falaes por nossa parte

e contra vós estudaes,

olhai por quam sotil arte

sua graça Deos reparte

pera que nam vos percaes.

Esta nao que navegaes

por parte de Vasc' Abul

medo hei que a percaes,

pois a agulha que levaes

vos faz ja do norte, sul.

Tendes vento por d' avante

e ha i grande baixia

e nam ha nenhũ galante

que de vós se nom espante

navegardes por tal via.

Tomai, tomai outra via,

acordai ja deste sono,

porque toda esta porfia

por razam s' acabaria

em dar o seu a seu dono.

Ũa gram defesa sento

que Vasc' Abul pode dar,

porqu' eu farei juramento

que nunca seu pensamento

foi de dar este colar.

E assi nam deve gozar

dos privilegios d' amor

e pois isto foi zombar,

o seu lhe devem tornar

sem lhe dar outro favor.

Fim.

E tanto que lhe for dado,

nam seja aqui mais ouvido,

seja daqui degradado,

nam se chame namorado,

pois d' amor nam foi vencido.

Mas eu certo nam dovido

por isto que se cá fez

qu' ele nam seja atrevido

em praça nem escondido

a emprestá-lo outra vez.

804

DE BERNARDIM RIBEIRO A ŨA
SENHORA QUE SE VISTIO

D' AMARELO.

Tequi me pud' enganar,

mas agora que podeis

trazêla cor do pesar

pera mim soo a trazeis.

Qu' a dor do desesperar

é tanto mal de sofrer,

que nam é pera passar

quanto mais pera trazer.

Mas isto vai daquel' arte,

quando s' antre montes brada:

o tom é em ũa parte,

em outro é a pancada.

Assi foi qu' a minha dor

mostrou em vós o sinal,

porqu' ao menos na cor

vos lembrasseis do meu mal.

805

CANTIGA SUA À SENHORA
MARIA QUARESMA.

Ũs esperam a Quaresma

pera se nela salvar,

eu perdi-me nela mesma

pera nunca me cobrar.

Mas com esta perda tal

eu m' hei por mui bem guanhado,

porque o milhor de meu mal

estaa todo no cuidado.

Os que cuidam qu' a Quaresma

nam é pera condenar,

se a virem ela mesma,

mal se poderam salvar.

806

OUTRA SUA.

Antre tamanhas mudanças

que cousa terei segura?

Duvidosas esperanças,

tam certa desaventura.

Venham estes desenganos

do meu longo engano e vam

que ja o tempo e os annos

outros cuidados me dam.

Ja nam sou pera mudanças,

mais quero ũa dor segura,

vá crêlas vãas esperanças

quem nam sabe o qu' aventura.

807

ESPARÇA SUA A ŨAS SOSPEITAS.

Sospeitas, veedes-m' aqui,

levai-m' onde desejais,

quanto pude vos sofri,

j' agora nam posso mais.

Sabe Deos bem com' eu vou,

mas nam pod' aqui ser al,

que ja de triste nam sou

por mim nem polo meu mal.

808

OUTRA ESPARÇA SUA.

D' esperança em esperança

pouco a pouco me levou

grand' engano ou confiança,

que me tam longe leixou.

Se m' isto tomara outrora,

cuidara de ver-lhe fim,

mas qu' hei-de cuidar j' agora

sem esperança e sem mim?

809

OUTRA ESPARÇA SUA.

Chegou a tanto meu mal

que nam sei estar sem ele

e fujo dond' ha i al

como se fugisse dele.

Mas vendo-me em tal estado

que me vou craro matar,

nam quero mais que cuidar

por ver s' enfado ũ cuidado

que me nam pod' enfadar.

810

VILANCETE SEU.

Antre mim mesmo e mim

nam sei que s' alevantou

que tam meu imigo sou.

Ũs tempos com grand' engano

vivi eu mesmo comigo,

agora no mor perigo

se me descobre o mor dano.

Caro custa ũ desengano

e pois m' este nam matou

quam caro que me custou.

De mim me sou feito alheo,

antr' o cuidado e cuidado

estaa ũ mal derramado,

que por mal grande me veo.

Nova dor, novo receo

foi este que me tomou,

assi me tem, assi estou.

811

OUTRO SEU.

Com quantas cousas perdi

ainda me consolara,

se m' esperança ficara.

Mas parece que sabia

desaventura ou mudança

se me ficass' esperança

o bem que me ficaria.

Tornou-se-m' em noite o dia

qu' em tanto bem m' outrogara,

qu' ò menos eu m' enganara.

Tudo me desemparou,

desemparado de mim,

cuidado que nam tem fim

este soo me nam leixou,

a vid' ainda me leixara,

se m' ela assi nam ficara.

Fui tanto tempo enganado

quanto comprio a meus danos,

agora vam-s' os enganos

que compria a meu cuidado.

Tudo do qu' era é mudado,

se m' eu tambem soo mudara

quantas magoas qu' atalhara!

812

OUTRO SEU.

Esperança minha, is-vos,

nam sei se vos verei mais,

pois tam triste me leixais.

Noutro tempo ũa partida,

qu' eu nam quisera fazer,

me magoou minha vida

enquanto eu nela viver.

Desta ja que posso crer,

que pois qu' assi me leixais

é pera nam tornar mais.

Após tamanha mudança

ou desaventura minha,

onde vós m' is esperança,

vá-se todo o mais qu' eu tinha.

Perca-s' assi tam nasinha

tudo, pois que nam olhais

quam tarde e mal me leixais.

813

OUTRO SEU.

Cuidado tam mal cuidado,

quando m' haveis de leixar

pera tanto nam cuidar?

Com meu mal vos sofreria,  

s' antes da vida perder

cuidais ainda de ver

algũa hora d' ũ dia.

Mas tudo o qu' eu mais queria

ja se foi pera ũ lugar

donde nam pode tornar.

Foram bem-aventurados,

nam conheceram mudança

os que na mor esperança

foram da vida levados.

Nam tiveram os cuidados

que se nam podem cuidar

e muito menos leixar.

Esta a vida que foi minha

tal que vê-la é crueldade,

ũ modo de piedade

seria matar-m' asinha.

De quant' esperança eu tinha

nam pude ũa soo salvar

e vivo e hei-de cuidar.

814

DE MANUEL DE GOIOS AO CONDE
DO VIMIOSO, EM QUE LHE DÁ
CONTA DO QUE PASSOU COM
SEUS AMORES DESPOIS
QUE O LEIXOU DE
VER.

Em vos dar conta de mim

nam erro, mas faço bem,

pois nam deve haver ninguem

que vo-la nam dê de si.

Ora ouvi,

que mil cousas achareis

com que e de que rireis.

E será cousa primeira,

de que quero que se ria,

achar ninguem que a queira

nem sirva Dona Maria.

Que seria

se achou inda tambem

a quem nam fizesse bem?

E pois que ja comecei

querer-vos, senhor, dizer

tudo quanto cá passei,

des que vos leixei de ver,

e escreve

quero tambem nestas novas

minhas cantigas e trovas.

Logo como fui chegado

trouve-m' assi refecido

nas palavras desatado,

nas mostranças recolhido.

Esquecido

me vi dela o outro dia,

que soube que a servia.

Nam passou cousa que diga

despois que me decrarei,

senam soo esta cantiga

que lhe fiz e lhe mandei,

em que mostrei

quam triste vida me dava

e quam pouco lhe lembrava:

Cantiga.

S' algũu hora vos lembrasse

o que faz vossa lembrança,

terieis mais temperança

com quem na de vós tomasse.

Nam vos desejo moor parte

deste mal que me fazeis

senam soo que vos lembreis

que de mim nunca se parte.

E se de vós alcançasse

esta bem-aventurança,

podia ter esperança

qu' algũu hora vos pesasse.

Nam cuideis que me prestava

bem servir nem mal trovar,

que tudo me desprezava

por me mais desesperar.

Quis-lhe mostrar

nesta cantiga mudança

e fiquei em mais bonança.

Cantiga.

Nam sei porque conheci

quem m' assi desconheceo,

que despois que me venceo

nam se lembra se naci.

Nam vos soube conhecer,

pois me tam mal conhecestes,

soube-me milhor perder

do que vós a mim perdestes.

Eu sam o que me venci

e vós quem me conheceo,

pois em fim nam me perdeo

e eu perdi-me a mim.

Cessou sua maa vontade

de quem era desprezado,

mas tomou ũa amizade

que me deu novo cuidado:

um pinchado

que se quis nela salvar

como em tavoa no mar.

Enquanto m' a mim renderam

os ceumes dest' amigo,

dava queixas sem castigo

dos males que me fizeram.

Des que puseram

a vergonha a ũa parte,

vinguei-me, senhor, dest' arte:

O seu comer aguardei

e a mesa alevantada,

esta trova lhe lancei

a todas enderençada.

Tam gabada

foi a trova que ficaram

que nunca se mais falaram:

Senhoras:

Antre vós ha ũa dama

que faz secretos favores

a quem é doudo d' amores

por outra, que o desama

por outros competidores.

E com tudo isto cuida

que o tem certo na mam

e ele trá-la mais cornuda

do qu' eu sam.

Despois d' ũ gram mes passar

em mui crua desavença,

tornámos travar pendença

nos modos e a tratar.

E acabar:

eu lhe fiz satisfaçam,

ela a mim ou si ou nam.

Foi de mim bem refiada

nũa tarde que a vi,

sem eu quedar na pousada

de que gram prazer senti.

Foi-se dali

e fiquei com tanta dor

como aqui digo, senhor:

Vilancete.

Quando recebem folgança

meus olhos culpados sam

no mal de meu coraçam.

Vejo soo em vos olhar

minha vida descansada,

como acaba de passar

fico em pena dobrada,

porque fica na lembrança

de vos ver tal empressam,

que me doi o coraçam.

Um dia me desprezou

ũa mui grande mesura,

nunca vistes tal trestura

qual comigo entam ficou!

Mas tornou

como vio esta cantiga

digo-a por mal que diga:

Cantiga.

Por mais mal que me façais

nunca leixar-me fareis

d' esperar té qu' acabeis.

Nam creais que é em mim   

leixar o mal que tomei;

que me mostre minha fim,

partir-me dele nam sei.

Isto nam mo agradeçais,

porque inda que me pês,

senhora, vós o fareis.

Por cousas que nam têm nome

nós viemos a romper,

vossa mercê daqui tome

o qu' isto podia ser.

Foi dizer

mal de mim a ũa amiga,

fiz-lh' entam esta cantiga:

Cantiga.

Porque nam tendes desculpa

no mal que me tendes feito,

andais buscando respeito

pera me dar vossa culpa.

Eu a tenho e sam culpado,

mas sabeis, senhora, em quê,

em servir vossa mercê

sobre tam desenganado.

Em mim nam ha outra culpa

no mal que me tendes feito,

ser-vos-ia mais proveito

buscardes outra desculpa.

Pelo qu' aqui nam direi

por me dar mais disso qu' ela,

esta, senhor, lhe mandei

çarrada de mim chancela.

Fez burrela

de tudo o que lh' escrevi

e muito maior de mim.

Vilancete.

Ja quisestes que quisesse

por meu bem todo meu mal

e agora quereis al.

Ja vos vi nam vos pesar     

co que mostrais que vos pesa,

no que me pondes defesa

me destes muito lugar.

Se querieis que soubesse

que fazieis de vós al,

é mui mal, mas menos mal.

Pus-me logo a escrever

esta pera lhe mandar

senam soo por lhe mostrar

que me queria perder.

Nam me quis crer

e fez grande zombaria

d' eu dizer o que dezia.

Vilancete.

Quem m' a mim deu esta vida,

se a nam quer pera si,

porque a tira de mi?

Faça dela o que quiser,

que em fim ha-de perdê-la,

como a eu nam tiver

nam teraa mais parte nela.

Quem me tira desta vida

e a mim fora de mi

nam estaa muito em si.

Mandei-lh' esta da pousada,

du nam sai nem sairá

até que lhe nam ouvirá

sua culpa desculpada.

Ençarrada

esteve sem se vestir

tee lho eu mandar pedir.

Cantiga e fim.

Trabalhais por me perder,

folgais de me destroir,

nam vos posso mais sofrer

nem vos quero mais servir.

Muito ha ja que leixei

de leixar este cuidado,

mil cousas vos perdoei

como homem namorado.

Nam nas posso mais sofrer

nem vos quero mais servir,

escusarei de vos ver

polas tanto nam sentir.

815

DE MANUEL DE GOIOS SENDO
DESAVINDO E QUERENDO-SE
TORNAR AVIR.

Ya me sigue la porfia

qu' en mi porfió o deseo

con que yo dantes seguia

el dolor en que me veo.

Lo qu' escogi por mejor

m' ha sido más adversario,

quien tomé por valedor

m' ha salido por contrario.

Y porqu' el bevir danhoso

quedase con más enganho,

salióme más peligroso

el remedio que mi danho.

Temi vuestra crueldad,

quise foir al morir,

mas quien vio vuestra beldad

jamas le puede fuir.

En dexar de vos servir

no dexé vuestro servicio,

mas dexé el beneficio

que deviera recebir.

Ni dexé mi gran tristura

con el tal apartamiento,

ni jamas vuestra figura

s' apartó del pensamiento.

El que perdió lh' esperança

y queda con su dolor

no puede fazer mudança

sino de mal en pior.

Pues tal fizo la primera

segun mi pena crecida,

verés en esta postrera

ser postrera de la vida.

Fim.

Si hoviere diferencia

de quien es el más culpado,

juzgues' en vuestra presencia,

quedando yo condenado.

Mas s' a vos no vos desculpa

echar sobre mi el cargo,

quered por vuestro descargo

revelarme desta culpa

Sobrescrito que vinha nestas
trovas.

Estas copras vos diram

quanto ja fui namorado

e de muito desamado

quis negar minha paixam

por me ver desesperado;

e fengi que desamava

quem me sempre desamou.

Por verdes se me prestou

o remedio que tomava

a conta disso vos dou.

816

OUTRAS SUAS, SENDO DESAVINDO.

Cantiga.

De si mesma me vingou

quem, por mais perda me dar,

ordenou de lhe ficar

quanta comigo ficou.

Eu perdi nam me perder

qu' ee gram perda pera mim,

muito mais perdeo em fim

quem tal perda me quis ver.

Porque ja desesperou        

de me mais desesperar,

e em lugar de me matar

da morte me segurou.

Mas ter a morte perdida

nam me tira de perigo,

pois quem é de si imigo

mais se recea da vida.

A quem com ela ficou,

quando da morte gostar,

se pode bem preguntar

qual delas mais o matou.

Nam sei quem vida deseja

se recea de perde-la,

pera quem nam gosta dela

nam ha cousa mais sobeja.

Nunca a ninguem desejou

que a nam visse minguar,

eu a quis de mim tirar

e entam me sobejou.

Fim.

Quando meu mal começava,

eu me vi tam acabado

que fui bem desenganado

que convosco m' enganava.

E sabês que m' enganou

querer-vos desenganar,

que vos nam pode leixar

quem por vós tudo leixou.

Trovas suas d' ajuda.

Nam sei quem vida deseja

se recea de perdê-la,

pera quem nam gosta dela

nam ha cousa tam sobeja.

Nunca a ninguem desejou

que a nam visse minguar,

eu a quis de mim tirar

e entam me sobejou.

Fim.

Quando meu mal começava,

eu me vi tam acabado

que fui bem desenganado

que convosco m' enganava.

E sabeis que m' enganou

querer-vos desenganar,

que vos nam pode leixar

quem tudo por vós leixou.

817

OUTRA SUA, ESTANDO DESAVINDO.

Dizei-me se me perdi,

saberei se me perdestes,

porque nam no sei de mi

com quanto mal me fizestes.

Se sou em vossa vontade

perdido como mostrais,

perca-se minha verdade,

que nam posso perder mais.

Ja nam tenho mais em mi,

tudo al vós mo perdestes,

sem saber se me perdi

com quanto mal me fizeste.

818

CANTIGA SUA A ŨAS DAMAS
QUE LHE PREGUNTARAM POR‑
QUE TRABALHAVA NINGUEM
POR ENGANOS.

Trabalho por m' enganar,

porque sam desenganado,

qu' hei primeiro d' acabar

que s' acabe meu cuidado.

Escolho por menos dano

o que me fez maior mal,

quanto mais me desengano

menos posso fazer al.

Culpe-me quem me culpar,

hajam-me por enganado,

que eu sam mais obrigado

a vos ver caa me salvar.

819

VILANCETE SEU.

Pois vos nam posso acabar,

meus males, acabar-m'-eis

e acabareis.

Nam vos desejo dar fim,

mas consento em ma dardes,

porque, quando m' acabardes,

acabeis tambem em mim.

Nam quero sem vós ficar

nem que vós sem mim fiqueis,

que nam posso nem podeis.

820

TROVA DE MANUEL DE GOIOS,
D' AJUDA A ŨA CANTIGA DE
LUIS DA SILVEIRA.

Senhora, que m' agraveis,

descanso neste cuidado,

porque sam desenganado,

que a quem mais mal fazeis

é milhor aventurado.

E que vós a outro fim

me tireis de meu sentido,

o qu' a outros traz perdido

é remedio pera mim.

821

DE FRANCISCO DE SOUSA,
AQUEIXANDO-SE DA REZAM
E VONTADE.

A vontade e a rezam

ambas vejo contra mim,

a vontade é enfim

a que segue openiam.

A rezam nam me abasta,

posto que seja sobeja,

ond' a vontade deseja

em chegando tudo gasta.

Nam tenho a mim por amigo,

tenho ambos por contrairos

e, s' antr' eles haa desvairos,

eu sam o moor meu imigo.

De todas suas querelas

sam seu juiz e vogado

e do que é por mim julgado

fico eu com todas elas.

Quisera tudo deixar

e achei que nam podia,

porque de mim me devia

primeiramente guardar.

E ficou-m' assi dobrado

o desejo contra mim,

que desejo minha fim

por ser fora de cuidado.

Mil vezes quero cuidar

se darei culpa à ventura

e acho que é grande cura

ja nam se poder curar.

Tais novidades acodem

de novidades tam novas

que descanso, porqu' em trovas

escritas ja ser nam podem.

Estou nũa fantesia,

se mo alguem nam desdissesse,

descanso se me viesse

para mim nam no queria.

Ando tam envolto em mal

haa tantos dias e annos,

que seriam novos danos

o querer cuidar em al.

Assi que pois tanto monta,

nesta me deixem viver,

porque viver e morrer

tudo tenho nũa conta.

Ũa segurança tem

esta vida de milhor,

que nam pode ser pior,

qu' ee pera mim grande bem.

Se quero cuidar na vida,

acho-me tam alcançado

doutro cuidado passado,

que a deixo por perdida.

E se m' ela aqui deixasse

nas voltas desta mudança,

dar-m'-ia mais esperança

do qu' ela de mim levasse.

Que s' algum morto queria

tornar cá ou lhe convem,

eu certo m' afirmo bem

que ja cá nam tornaria.

Que mal posso lá passar,

por muito mais mal que veja,

que muito pior nam seja

achando o qu' hei-de deixar.

Fim.

E porem nisto concrudo

que sam tam afeiçoado

eeste meu triste cuidado

que deixo por ele tudo.

E que m' ele faça mal

nisto soo m' afirmarei:

que jamais o deixarei

nem quero cuidar em al.

822

CANTIGA DE FRANCISCO
DE SOUSA.

Tirai-vos fora sospiros,

dai lugar ò coraçam,

que chore sua paixam.

Dai tempo, dai-lhe poder,

porque juntos nam moirrais,

que da maneira qu' estais

é impossivel viver.

Porque me deveis de crer

qu' ee grande consolaçam

lagrimas oo coraçam.

823

OUTRA SUA.

Acho que me deu Deos tudo

para mais meu padecer:

os olhos pera vos ver,

coraçam para sofrer

e lingua para ser mudo.

Olhos com que vos olhasse,

coraçam que consentisse,

lingua que me condenasse,

mas nam ja que me salvasse

de quantos males sentisse.

Assi que me deu Deos tudo

para mais meu padecer:

os olhos para vos ver,

coraçam para sofrer

e lingua para ser mudo.

824

OUTRA SUA.

Ja os dias que viver

nam terei mais que pedir,

porque soo com vos servir

me soube satisfazer.

Satisfiz minha vontade

para toda minha vida,

pois vê-la por vós perdida

nam hei dela saudade.

Nem jamais sei al querer

nem desejar nem pedir,

porque soo com vos servir

me soube satisfazer.

825

TROVAS SUAS A ESTE
VILANCETE:

Abaix' esta serra,

verei minha terra.

Oo montes erguidos,

deixai-vos cahir,

deixai-vos somir

e ser destroidos,

pois males sentidos

me dam tanta guerra

por ver minha terra!

Ribeiras do mar,

que tendes mudanças,

as minhas lembranças

deixai-as pssar;

deixai-mas tornar

dar novas da terra,

que daa tanta guerra!

Cabo.

O sol escurece,

a noite se vem,

meus olhos, meu bem

ja nam aparece.

Mais cedo anoitece

aaquem desta serra

que na minha terra.

826

TROVA SU' A AFONSO D' ALBO‑
QUERQUE EM GOA, PORQUE
LHE MANDOU PEDIR ŨA
ESCRAVA POR Ũ JU‑
DEU MUITO FEO.

Senhor, eu estou cortado

de nam saber responder,

porque fiquei embaçado

do rosto e do recado

de quem mo veo trazer.

Porem laa mando enfim

essa que me nam magoa,

Deos vos dei poder em Goa

e a mim leve a Lixboa,

polo nam terdes em mim.

827

OUTRA SUA A ŨA FREIRA, QUE
SEM NA CONHECER LHE MAN‑
DOU Ũ ESCRITO, POR UM
MOÇO SEU E ELA NAM
SE ASSINOU.

Senhora, um moço meu

me deu um escrito tal

sem lembrança nem sinal

do nome de quem lho deu!

Eu o vi muito bem visto,

mas nam li dele rezam,

porqu' ando mao cortesão

das damas de Jesu Cristo.

828

PREGUNTA DE PERO DA SILVA.

Quem deseja d' acabar

vida triste tam coitada,

que via deve tomar

ou qual outra desejar

com qu' esta desesperada

nam lhe possa mais lembrar?

O remedio que teraa

quem se vê sem nenhum ter,

vossa mercê mo deraa

e crendo que me faraa

nisto a mor que pode ser,

o negar-mo escusaraa.

Reposta de Francisco de Sousa
polos consoantes.

Servi quem m' ha-de matar,

se quereis ver acabada

vida tam maa de deixar,

porqu' ela pode mudar

todalas outras em nada

a quem se dela acordar.

Porque quem na vir veraa

tam grande seu merecer,

que de si s' esqueceraa

e de mim se lembraraa,

quando me vir padecer,

porque sei que me creraa.

829

FRANCISCO DE SOUSA A PERO DA
SILVA POR Ũ MOÇO QUE LHE
DEU PERA LHE ENSINAR
UM CAMINHO.

O vosso gram guiador,

que comigo veio caa,

certefico-vos, senhor,

qu' era o moor desviador

que podera vir de laa.

Caminho muito sabido

é a ele tam estranho,

que, por Deos, eu fiquei manho

em ver que moço tamanho

era tam mal entendido!

830

CANTIGA DE FRANCISCO
DE SOUSA.

Senhora, ja nam entendo   

que vida possa viver,

pois que nego, nam vos vendo,

quanto descubro em vos ver.

Encobri quam desigual

sobejo bem vos queria,

por me nam quererdes mal

me calava e consentia.

Pois que ja certo vou crendo

que me nam posso valer,

quero mais dizer morrendo

que calando padecer.

831

TROVAS DE FRANCISCO DE SOUSA.

Meus males vam-se acabando

por muito craros sinais,

quanto mais ando atalhando

pera me matarem mais

atalhos andam buscando.

Sem porquê e sem razam

se levantam contra mim

cegos desta openiam:

qu' em me dar tam triste fim

estaa sua salvaçam.

Conformei tanto a vontade

co este cego desejo,

que se peço piedade

outra ja dele nam vejo

senam negar-m' a verdade.

Deixo-m' andar aguardando

o tempo que tudo cura,

comigo dessimulando

e minha desaventura

vem-no logo provincando.

Buscam cem mil novidades

fingidas d' ũa feiçam,

que sendo todas maldades

trazem tal cor e razam

que se julgam por verdades.

Isto hei-de padecer

com tamanho sofrimento

qual nunca se vio sofrer,

porque neste certo que sento       

mal se poderá dizer.

Assi vivo nesta vida

tam morto que nam sam vivo!

Ó minha vida perdida,

porque sam eu tam cativo

de quem ma tem destroida?

Mas que me presta queixar,

pois assi quero viver

com quem me nam quer matar

nem me quer deixar morrer

para mais m' atormentar?

Em tal estremo estou

que tudo perdoaria,

se nesta volta que vou

podesse viver um dia

livre de quem me deixou.

E torno logo a cuidar,

qu' ainda qu' isto quisesse,

se o podia acabar

comigo, mas que podesse,

nam no quero maginar.

Doi-me tanto o coraçam

cuidar que pod' isto ser,

que tomo por salvaçam

saber que mo faz dizer

ver-me com tanta afriçam.

Porqu' a muito grande dor

a quem é atormentado

fá-lo fazer malfeitor,

de sem culpa condenado,

de fiel qu' ee roubador.

Assi por minha ventura

sam eu no mal que padeço

que com sobeja tristura,

vendo que nam no mereço,

busco remedio sem cura.

Ando coma quem é cego,

pregunto por donde irei,

o que sinto nam no nego

para ver s' acertarei

ond' a Furtuna põe prego.

Fim.

Se nam visse mais mudanças

nestas me satisfaria

sem outras vãas esperanças,

porque sei que soo ũ dia

nam dam seguras fianças.

Neste mal me deixem jaa

minhas fortunas viver,

porqu' ele s' acabará

ou me deixará morrer,

qu' ee o mor bem que ele daa.

832

OUTRAS SUAS EM Ũ CAMINHO.

Os lugares em qu' andei

convosco ledo e oufano,

nesta tristeza os busquei,

mas o que neles achei

foi a meu dano moor dano.

Comecei-lh' a preguntar

que fora daquela grorea

qu' ali me viram passar.

Responderam sem falar

qu' estava na memoria.

— Em qual memoria — pregunto

― pode tal lembrança ser?

Responderam: — Tudo junto,

o propio e o transunto

na vossa podereis ver.

Na reposta que senti

vi meu mal camanho era,

vi o que logo me vi,

partir deles e de mi

para donde nam quisera.

Comecei de caminhar

ũ caminho povoado

por ũ mui craro lumar,

que me fazia parar

a cada passo pasmado.

Pus os olhos nas estrelas

por nam ver donde andava,

olhando por todas elas

lagrimas, tristes querelas

escuro tudo tornava.

Com lembranças ledas, tristes,

vim assim fantesiando

fantesias que nam vistes,

sentidos que nam sentistes

como nos vinham matando.

Mas quem soubera morrer

a tal tempo e tal hora

para nam tornar a ver

vida tam maa de sofrer

com' esta triste d' agora!

Oo vida de minha vida,

oo triste groria passada,

oo memoria estrestecida,

pois sois tam desconhecida

para que me lembrais nada?

Esquecei vossas lembranças,

deixai-me viver assi

sem vossas vãas esperanças,

porque com vossas mudanças

vivo sem vós e sem mim.

Cantiga e fim.

Lembranças nam persigais

a quem ja nam tem poder

mais que quanto vós lhe dais

para sospiros e ais,

para chorar e gemer.

Ooh minha triste memoria,

ooh minha dor nam fengida!

Se lembrar fosse vitorea

a quem dariês mais groria

ca quem dais tam triste vida?

Mas estas lembranças tais

deviês ja d' esquecer,

que, se lembram, acordais

os meus sospiros e ais

e meu chorar e gemer.

833

CANTIGA SUA.

Lembranças, nam me deixeis

com quanto m' atormentais,

confesso que me matais

e quero que me mateis.

Quero vossa companhia,

quero mais vossos enganos

qu' hei por vida de mil anos

viver convosco soo ũ dia.

Por isso nam me culpeis,

que antes ser quero mais

morto do que me lembrais

ca vivo do qu' esqueceis.

834

CANTIGA SUA.

Meus males, que me quereis?

Meu coraçam, que cuidais?

Sentidos, que desejais?

Olhos, porque nam olhais

o dano que me fazeis?

A triste vida que vivo

de que nunca sam isento,

cuidado, grande tormento

nam vos dê contentamento

nem ver-me sempre cativo.

Deixai-me, nam me mateis

com quantos nojos me dais,

nam folgueis co que folgais,

olhos, porque nunca mais

nenhũ descanso tereis.

De Francisco de Sousa a Garcia
de Resende com estas trovas
atras escritas.

Laa vos mando treladadas

as que me podem lembrar,

as quaes podeis emmendar,

pois as mando por erradas.

Fica-me deste cuidado

contentamento,

que tenho rependimento

de tempo tam mal gastado.

835

DE DOM RODRIGO LOBO AAS DA

MAS, PORQUE FIZERAM ŨU ROL

DOS HOMENS QUE HAVIA

PARA CASAR CORTESÃAOS

E ACHARAM SESSENTA

E ANTRE ELES IAM

ALGŨS QUE PAS‑

SAVAM DOS

SESSENTA.

Temos ja sabido cá  

que pondes laa em ementa

os que passam de sessenta.

Tomastes cuidado certo,

pois nam é de muita dura,

qu' eles têm a morte perto

e vós vida mais segura.

Quem tevera tal ventura

qu' entrara lá na ementa

e fora jaa de setenta!

836

DE GARCIA DE RESENDE, ESTANDO
EL-REI EM ALMEIRIM, A MANUEL DE
GOIOS QU' ESTAVA POR CAPITAM
NA MINA E LHE MANDOU PEDIR

QUE LHE ESCREVESSE NO­-

VAS DA CORTE, AS QUAES

LHE MANDA.

Mandais-me de lá pedir

que de cá vos mande novas,

e eu soo por vos servir

vos quis fazer estas trovas

que vos mataram de rir.

É nisto vereis, senhor,

se é vosso servidor

quem foi tomar tal cuidado,

estando tam desviado

de cuidar qu' ee trovador.

E pois que tenho perdido

a vergonha e o saber,

soo por voos serdes servido

deveis-me d' agradecer

acupar nisto o sentido.

Que certo nam me lembrei,

quando estas comecei,

se fazia mal nem bem

nem oulhe nelas ninguem,

pois eu nelas nam oulhei.

Por nam cair em certeza

nam hei, senhor, de dizer

cousa que toque em Veneza,

mas novas de Su' Alteza,

que folgareis de saber:

Qu' estaa sam, a Deos louvores

tem consigo mil senhores,

os quaes estam aforrados,

andam mui pouco aguardados

e grandes aguardadores.

Vai mil vezes montear

e caçar com pouca gente

e andam nisto tam quente

algũs que badalejar

vemos mil vezes o dente,

nam de frio natural,

mas d' humido redical

que jaa neles é gastado

por muito tempo passado,

que passaram bem ou mal.

Estaa jaa certo na mãao,

o dia que vai caçar,

haver à noite serão

e nam podeis laa cuidar

os galantes qu' eele vãao.

S' acerta de nam haver

serãao, é por entender

em despachos e conselho,

que m' espanto nam ser velho

quem tanto tem que fazer!

E esta vida que tem

teraa tee Abril passado

e no outro mes que vem

dizem qu' ee determinado

o Veram em Santarem.

Nam tomeis disto penhor,

pois que bem sabeis, senhor,

o que posso alcançar

nem quero mais decrarar

a tam bom entendedor.

Estaa tambem de saude

a Rainha nossa Senhora,

em quem crece ameude

cada dia e cada hora

muita enfinda vertude.

Por este caminho vãao

seus filhos e assi stam

sobretudo tam galantes

que tal Principe e Ifantes

nunca foram nem seram!

As novas de grande peso

nam esperareis de mim,

pois sabeis que é defeso

quem estaa em Almeirim

dizer com que seja preso.

Estou fora de falar

nelas e quero contar

as com que sei que folgais

e s' aqui nam toco mais

pond' a culpa a nam ousar.

As damas que cá ficaram,

quando daqui vos partistes,

algũas delas casaram

e vivem por isso tristes

e outras se contentaram.

Das casadas vos darei

esta nova, porque sei

que o haveis laa d' ouvir,

porqu' ee cousa para rir

o que vos d' ũa direi.

A que sabeis que casou,

que diz qu' ee mal maridada,

o dia que s' ençarrou

ũa grande bofetada

a seu esposo pegou!

Vede bem o que faria

ou se lhe responderia

o marido a consoante.

Dizem que di em diante

lhe gastou a cortesia.

Dona Camila casou

com Joam Roiz de Saa,

no outro dia a levou,

nisto muitas cousas haa

de que vos conta nam dou.

Convidou as damas todas,

ũ dia ante das vodas,

Dom Martinho a gentar,

houv' ahi tal que casar

desejou mais qu' aves gordas...

Têm por cousa mui sabida

muitos qu' estaa concertado

casar Dona Margarida

de Mendoça cum privado,

de qu' haa muito qu' ee servida.

Dona Guiomar de Meneses

estaa fora ha oito meses

do paço, nũ moesteiro.

Nunca mais houve terreiro

nem no bailar antremeses.

Ũa de sangue real,

que se criou em Castela

sendo nossa natural,

nam anda ninguem co ela

nem casa em Portugal.

Faz mesuras de cabeça,

nam acha quem lhe mereça

mesura doutra feiçam

senam primo com irmão

ou outrem que o pareça.

Filhas do Conde Prior

sam duas aqui entradas,

nam têm inda servidor

e ũa delas, ousadas,

qu' ee disto merecedor,

gentil molher, despejada.

Da outra nam digo nada,

vaa no conto das que calo,

que de muitas vos nam falo

que nam quedam na pousada.

D' Anriquez Dona Maria

bem deveis laa de saber

que nam é jaa quem soia,

nam digo no parecer,

porque crece cada dia.

Nam traz nenhũ servidor,

porqu' ee de tanto primor

que ninguem a nam contenta

nem é de todo isenta,

que o nam consent' amor.

Dona Joana de Mendoça,

que deixastes à partida

ũa muito gentil moça,

nam é cousa desta vida,

que mat' oos homens per força.

Creceo tanto em fermosura,

em manhas, desenvoltura,

graça, saber, discriçam,

que nam sinto coraçam

a que nam dê maa ventura.

A outra sua igual

no nome e na idade

sabei que em Portugal

gentileza de verdade

nunca se vio outra tal.

Pois a nam posso louvar,

quero vo-la nomear:

Dona Joana Manuel,

mais que o Anjo Gabriel,

tem tudo para gabar.

As duas favorecidas,

Calataiud, Figueiroo,

de serem cá mal servidas

perdei disso bem o doo,

qu' estam longe d' esquecidas:

Figueiroo é no seram

de cantigas, de tençam,

mais servida que ninguem

de tres que cantam mui bem,

nisto sabereis quem sam...

Ha poucos dias qu' entrou

ũa gram Dona Mecia

da Silveira, qu' apanhou

logo nesse mesmo dia

esses galantes qu' achou.

E conto logo primeiro

a Francisco de Biveiro,

qu' anda forçando as paredes

e leixou baldo e redes

por passear no terreiro.

A outra Dona Maria

de Meneses, que cá vistes,

tem tanta galantaria

que daa mil cuidados tristes

a quem nos dar nam devia.

E aquesta mesma via

Tavora Dona Mecia

leva com seus servidores,

aos quaes faz sem favores

mil despreços cada dia.

Doutra fermosa molher,

que laa naceo nũa ilha,

nam digo mais senam ser

muito grande maravilha

quem na vir nam se perder.

Nesta quero acabar

e começai d' escuitar

novas doutra qualidade,

nas quaes certo na verdade

vos nam quisera tocar:

El-Rei de Fez ajuntou

mais jente que da primeira

e sobr' Arzila tornou,

mas achou-se de maneira

que logo d' i apildou.

E vai tam rijo coçado,

que creo qu' escarmentado

ficará daquesta vez:

nunca mais entrou em Fez,

anda fora, degradado.

Dom Francisco no lugar

era entam e bem no quente,

por isto quero passar,

mas de quam honrada gente

levou vos quero contar.

Esta soo cousa nam calo:

cinquenta de cavalo

tev' oito meses consigo

e o al qu' aqui nam digo

é muito mais que o que falo.

Nuno Fernandez daqui

vai cedo por capitam

por dous anos a Çafi

e quinhentas lanças vam

co ele, segundo ouvi.

Houv' isto com aderentes,

algũs ficam descontentes

por nam serem escolhidos

para isso nem ouvidos,

cuidando qu' andavam quentes.

Os senhores de Castela,

qu' andavam cá desterrados

por ũa justa querela,

sam de todo perdoados,

tornam-s' agora par' ela.

Vieram-se despedir,

fez-lhe El-Rei ao partir

honra, mercê e favor,

os quaes diz que vam, senhor,

bem prestes par' oo servir.

Ũ homem chegou aqui

que vio do mundo gram parte

e as novas que lh' ouvi

conta-as e di-las d' ũ arte

que parecem ser assi.

E por mui certo contou

que o Viso-Rei tomou

ũa muito grossa armada,

em qu' oito mil à espada

trouxe e dous reis cativou.

Destes senhores privados

de que novas desejais,

qu' aqui nam vam nomeados,

bem sabeis quaes sam os mais

escolhidos e chamados.

Estam todos mui honrados,

nas rendas avantejados,

nas mercês e nos favores,

algũs deles têm amores

e outros outros cuidados.

Fala em geral.

As damas nunca parecem,

os galantes poucos sam,

cousas de prazer esquecem,

os negoceos vêm e vam,

nunca minguam, sempre crecem.

Nam ha ja nenhũ folgar

nem manhas eixercitar,

é tanto o requerimento

que ninguem nam traz o tento

senam em querer medrar.

Mil pessoas achareis

menos das que cá leixastes,

doutras vos espantareis,

porque vê-las nam cuidastes

da maneira que vereis!

Ũs acabam, outros vêm

e ũs têm, outros nam têm

e os mais polo geeral

folgam muito d' ouvir mal

e pouco de dizer bem.

Se cá soes bem ensinado,

cada feira valeis menos,

e, se mal, sois estranhado

dous dias e logo vemos

ficardes mais estimado.

E vai isto de maneira

que na capela cadeira

d' espaldas têm escudeiros

e consentem-lh' os porteiros

estarem na dianteira.

Anda tudo tam danado

que o que menos merece

se mostra mais agravado,

e d' homens que nam conhece

é El-Rei emportunado.

E estes, que Deos padeça,

ham-de cobrir a cabeça

perant' ele no seram

e soo por isso laa vam,

sem haver quem os conheça.

Boons e maos todos ja trazem

os rabos alevantados,

em lobas frisadas jazem,

capuzes apestanados

pola ponta do pee trazem.

Contas e lenços lavrados

e da sala namorados,

e nunca dizem de quem,

e pousando em Santarem

sam assi afidalgados.

Quem for muito comedido

e quem for josteficado

nam será muito valido;

quem for desavergonhado

seraa com todos cabido.

Nam ha homens de primor

nem quem sirva por amor

senam por ter e mandar,

nem ha quem queira lembrar

o proveito do senhor.

Quem tem renda quer poupar

e quem gasta bem o seu

nam no podem comportar,

ham-no logo por sandeu

e qu' ee siso entesourar.

Os velhos sam namorados,

os mancebos acupados,

os casados sam solteiros,

os fracos sam mui guerreiros

e os clerigos casados.

Ha cá poucas amizades

e grandes competimentos,

custumam pouco verdades,

servem-se muito de ventos

e cousas de vaidades.

Nam lembra a ninguem rezam

senam soo encher a mam

e passe por u poder,

nem creais que bem fazer

faz ninguem, se El-Rei nam.

E se quer ir ter Veram

algũ cabo ou invernar

e d' algũs toma a tençam,

cada ũu o quer levar

para onde tem seu pam,

pois nisto nam tem respeito

senam soo a seu proveito.

Vede bem qu' aconselhar

faram num bom pelejar

ou em outro grande feito!

Cabo.

Porque sei qu' esperareis

que vos dê novas de mim,

vos dou estas qu' ouvireis:

qu' estou sam em Almeirim

da sorte qu' aqui vereis.

Nunca mais sahi daqui

ũa hora nem parti

de servir e d' aguardar

e acerca do medrar

tal m' estou qual me naci.

837

RIMANCE.

Tiempo bueno, tiempo bueno,

¿quien te me lhevó de mi?

Qu' en acordarme de ti

todo plazer m' es ajeno.

Fue tiempo y horas ufanas

em que mis dias gozaron,

mas en elhas se sembraron

la simiente de mis canas.

¿Quien no lhora lo passado

viendo qual va lo presente?

¿Quien busca más acidente

de lo qu' el tiempo l' ha dado?

Yo me vi ser bien amado,

mi deseo em alta cima.

Contemplar em tal estado

la memorea me lastima.

Y pues todo m' es ausente,

no sé qual estremo escoja.

Bien y mal todo m' anoja,

mezquino de quien lo siente.

Grosa de Garcia de Resende
a este rimance.

Los tiempos atras passados,

que fuessen mal despendidos,

siempre seran deseados

y por muy buenos contados

los d' aora por perdidos.

Yo de mil nembranças lheno

d' una hora que te vi

sospiro siempre por ti:

tiempo bueno, tiempo bueno,

¿quien te me lhevó de mi?

¿Quien m' apartoo del prazer

y descanso que tenia?

¿Quien causa mi padecer

si no verte fenecer

cada hora e cada dia?

Corres muy suelto, sin freno,

tan rezio passas por mi,

por te ver ir tanto peno

qu' en acordarme de ti

todo plazer m' es ajeno.

Nembrança no da logar

a poder bevir contento,

haze mi pena doblar,

quando pienso qu' el holgar

passoo más presto que vento.

Dos mil esperanças vanas

que mis ojos descansaron

ya como sombra passaron,

fue tiempo  y horas ufanas

em que mis dias gozaron.

¿Que se hizo mi tristura

que me solia alegrar,

quando maas me vi penar?

¿Que fue daquelha ventura

qu' el bien solia doblar?

Ya todas en mi moraron

y me fueron mui humanas,

buenas enquanto duraron,

mas en elhas se sembraron

la simiente de mis canas.

No quedó sino memoria

para maas me lastimar,

todo mi plazer y gloria

es ansi como istoria

que a outrem vi contar.

¿Quien puede ser consolado,

siendo desto tan ausente?

¿Quien bive sino penado?

¿Quien no lhora lo passado

viendo qual va lo presente?

No sé quien pueda bevir

con tantos moodos de males,

que menos es el morir

que de contino sofrir

passiones tan desiguales.

Pues es tan conveniente

declinar qualquier estado,

merece dolor doblado

quien busca maas acidente

de lo qu' el tiempo l' ha dado.

Porque yo todo passee,

todo sé quan poco dura,

bien y mal esprimentee

y lo maas cierto que halhee

fue la fim ser de tristura.

Yo me vi con gran cuidado

d' una passion muy soblima,

yo me vi desesperado,

yo me vi ser bien amado,

mi desseo en alta cima.

Esto muy poco duroo

y quedóme mal que harte,

el descanso que me dió

tan aina se perdió

que del no supo más parte.

Es dolor continuado,

passion que no tiene istima,

cuando niembra el bien passado

contemplar em tal estado

la memoria me lastima.

Ca no es maas la nembrança

nel triste que tiene amor

del tiempo de bien andança

que matar elh' esperança

y abivar el dolor.

El parecer excelente,

la bondad que sobrepoja

ante mis ojos se antoja,

y pues todo m' es ausente

no sé qual estremo escoja.

Cabo.

La muerte no la desseo

por tal descanso no ver,

ni la vida que posseo

no la queria ni creo

que nadia quiera tener.

Todo de mi se despoja,      

de todo soy desplazente

e con nada paciente,

bien y mal todo m' anoja,

mizquino de quien lo siente.

838

DE GARCIA DE RESENDE A RUI DE
FIGUEREDO, O POTAS, QUE LHE
MANDOU PREGUNTAR SE PODE‑
RIA POUSAR COM ELE EM
ALMEIRIM, EM QUE LHE
MANDA DIZER COMO A
POUSADA ESTÁ E DA
MANEIRA QUE ELE
HA-DE VIR.

Tenho as casas despejadas,

podeis vir quando quiserdes,

de reposteiros armadas

e camas mui concertadas

para vós e quem trouxerdes.

Sotãaos frios no Veram,

no Inverno temperados;

se nam vindes cortesam,

haveis de ser apodados

vós e o vosso vilam.

Por serdes bem recebido,

trazei no alforge pato

com pescoço mui comprido,

que faça mais aparato

que ũ papa revestido.

Trareis chocas em tabardo,

inda que seja em Agosto,

vilão vestido de pardo,

por virdes mais alpavardo

nam trareis touca no rosto.

S' achardes cidra, cidram,

peras ou figos orjaeis,

marmelos, uvas, melam,

tanto que nam possa mais

carregareis o vilam.

Destarte vireis sem pejo

e sereis bem recolhido,

mas inda bem nam decido

me parece que vos vejo

d' antemão serdes corrido...

Trareis em cima da seela

ũ manto mal riatado,

bedem velho emprestado

e nos alforges paneela

acupada com pescado.

Vinde à brida sem retrancas,

qu' ee bom trajo de caminho,

e que tenhas pernas mancas

trareis menino nas ancas

a que chamareis sobrinho.

Trazei mais diante voos

trouxa com vestido feito,

por nam fazerdes cá moos,

seraa todo deste jeito

e andareis como noos:

loba d' Ipre pespontada,

mangas d' Usteda ou solia,

beeca curta e engraxada,

barba d' ũ dia rapada

e de dous meses trosquia.

Brozegui largo, amarelo,

com çapatos de veado

e barretinho singelo,

pola borda ja çafado,

de feiçam de cugumelo,

negro, velho, com traçado;

e menino com sombreiro,

ramal de contas lançado

ò pescoço e mal calçado,

que saibam qu' ee d' escudeiro.

Ũ par de luvas de lam

trazei por amor de mim,

porqu' ee cousa muito sam

par' oos frios d' Almeirim,

à noite e pola menham.

Se vindes desta maneira

folgaram cá de vos ver,

mandar-m'-eis logo dizer,

em chegando à Bandeira,

para vos ir receber.

S' a guarda quiser saber

quem soes, dizei que rendeiro;

se pousada oferecer,

vós oferecei dinheiro

por vos deixarem decer.

Dizei que vem detras arca

e besta com pam e vinho

e panos de lam e linho.

S' o rocim nam é de marca,

guardar-vos-ei do meirinho.

Os que vos virem diram,

vendo logo vosso jeito,

que pareceis fradegam

fora d' havito, em meijam,

co topete jaa desfeito.

Pareceis lecenceado,

que foi ouvidor nas Ilhas,

ou fisico namorado

e cristam novo engraxado,

que tem quintam em Cacilhas.

Marrano, alcoviteiro,

gram conhecedor de vinhos,

ambrador, manco caxeiro

e clerigo feiticeiro,

que vende boons purgaminhos.

Tambem fostes ja livreiro,

roim encadernador,

e n' alfandega siseiro

e soes fora escudeiro

e em casa borlador.

Estudante sem saber,

bacharel de boa casta

qu' ensina moços a ler,

clerigo que por comer

espancou sua madrasta.

Moordomo de confraria

que tem chocalho à porta

e sempre galinhas cria

ou charamelam d' Hongria

casado com puta torta.

Por nam estranhardes nada

e ser tudo coma o vosso,

com pertenças a pousada,

senam s' eu nada nam posso,

vos terei aparelhada.

Porque, senhor, como fora

e no paço tenho a cama,

para vós farei agora

cama tal que cada hora

desejeis nela ũa dama.

Para acrecentar desejo

tereis almadraque velho,

manta nova d' Alentejo

que vos dê polo artelho,

porque o mais seraa sobejo;

chumaço desenfronhado

e com seu lençol cubeerto,

novo, grosso, mal lavado,

de pulgas acompanhado

para estardes mais esperto.

Mantẽes curtos, mal curados,

mesa de tres pees redonda,

pichel, bacios vidrados,

brancos e verdes, quebrados,

para vós isto avonda.

E estareis assentado

nũ tanho de Santarem.

Por vos tudo saber bem

o coopo seraa quebrado

e albarrada tambem.

E por vos nam apalpar

a terra com o comer,

hei-vos tambem d' ordenar

que nam vos ham mais de dar

que o que laa soeis de ter.

Que mudança de lugares

muda muito a compreisam

e se mudam os manjares,

vêm as doenças a pares

e tard' ou nunca se vam.

Perdizes, capões, galinhas,

frangãaos, rolas e vitelas,

passarinhos d' esparrelas,

pasteis, tortas, escudelas

sam viandas mui daninhas.

Laparos, patos, cevados,

cabritos e escahidas,

lombos de porcos, veados,

pavos, faisães, bons pescados

encurtam muito as vidas.

Tereis, senhor, ò jentar

vaca magra sem toucinho,

com seu quartilho de vinho

com que possais jarrear

e nam me chamar mezquinho.

A cea, da vaca fria,

rabam, queijo e salada,

é comer que o corpo cria:

o mais é velhacaria

e fazenda mal gastada.

Cabo.

E pois isto tendes certo,

vinde muito descansado

e destarte atabiado,

porque quem vos vir ò perto

caia logo d' abalado.

Tudo isto que vos digo

e muito mais achareis

e nestas me nam obrigo,

pois sabeis que sam amigo,

o moor que nunca tereis.

839

VILANCETE DE GARCIA DE
RESENDE, A QUE TAMBEM
FEZ O SOM.

Minha vida,

pois esperança nam tem,

nam na deseje ninguem.

Se souberam

meus olhos, quando vos viram,

o mal qu' havia de ser,

nam poderam

consentir nem consentiram

ver-m' assi logo perder.

Padecer

é meu e nam de ninguem,

sem desejar nenhũ bem.

Quem quiser

nam ser mal-aventurado

nem ter sempre triste vida

ha mester,

como se vir com cuidado,

que lhe dê logo sahida,

que perdida

é a vida que o tem,

sem esperar nenhũ bem.

Digo isto,

porque logo nũ momento

perdi toda a esperança.

Tenho visto

perder muito em pouco tempo

e ganhar desconfiança.

Oh lembrança,

nam me vos tire ninguem,

que jaa nom quer' outro bem.

Cabo.

Porque sei

que tudo ha-d' acabar

contrairo do que s' espera,

bradarei

que se guardem d' esperar,

porqu' esperar desespera.

Se me dera

este conselho alguem,

quiçaa me guardara bem.

840

GARCIA DE RESENDE A ESTE
MOTO D' ŨA SENHORA:

Nesta vida e depois dela.

Pois m' assi soube perder

e por tam justa querela,

vede como pode ser

que leixe de vos querer

nesta vida e depois dela.

Terei onde quer que for

a fee com que vos servi,

lembrar-m'-aa soo que vos vi

e nam vosso desamor.

Que m' isto lance a perder,

tenho tam justa querela

que ja hei sempre de ser

vosso, enquanto viver

nesta vida e depois dela.

841

PREGUNTA D' ŨA MOLHER A
GARCIA DE RESENDE, COM
QUE LHE FOI BEM E ES‑
TAVAM DESAVINDOS.

Pregunto-vos por amor      

ond' estaa e faz desvio,

se amor ou desamor

em balança é our' e fio.

Porque ambos hei passado,

cada ũ tem sua vena,

por vós seja decrarado

qual daa moor prazer ou pena.

Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.

Eu me vi jaa com favor

e depois triste perdi-o,

fiquei com gram desfavor

e do bem passado, frio.

Nam pode ser comparado

o descanso co a pena,

porqu' o bem vem com cuidado

e o mal mais mal ordena.

842

OUTRA SUA.

Quando homem tem prazer,

entam lhe vai alembrar

que o poderaa perder

por s' a vontade mudar

de quem no tem em poder.

E o mal é sempre mais

e daa sempre maior dor,

doobra sospiros mortais

a quem vê o desamor,

senhora, que lhe mostrais.

843

CANTIGA SUA.

Senhora, pois minha vida

tendes em vosso poder,

por serdes dela servida

nam queirais que destruida

possa ser.

Isto nam por me pesar

de morrer, se vós quereis,

que milhor m' ee acabar

que soportar

quantos males me fazeis.

Mas soo por serdes servida

de mim, enquanto viver,

vos peço que minha vida

nam queirais que destruida

possa ser.

844

DE GARCIA DE RESENDE, ESTANDO
EM EVORA, AO CONDE DO VIMIOSO
QUE SE PARTIO DI PARA A CORTE,
SOBRE NEGOCEOS DO PAI.

Rifam.

Meu senhor, des que partistes,

nam vivo nem vivem caa

nem creo que viveis laa.

Nós com vossa saudade

temos vida sem prazer

e vós laa em requerer

mil negoceos da Trindade

nam podeis ledo viver.

Assi andamos mui tristes,

nós por nam vos vermos caa

e vós por andardes laa.

Cá nam ha andar na praça

nem curral à sesta-feira

nem queremos ter maneira

de fazermos fazer graça

ò Mendez da cabeleira.

Olhai bem se nunca vistes

tanta mingua fazer caa

nenhũ homem qu' ande laa.

Nem haver e desejar,

nem prazer ũa soo hora

nem menos com quem falar,

nem novas para contar,

nem digo mais por agora.

Soomente qu' andamos tristes

todos quantos somos caa

por vós, senhor, serdes laa.

Cabo.

Havei doo de nossa vida,

mandai-nos, senhor, dizer

se esta vossa partida

com nos virdes cedo ver

ha-de ser restetuida,

senam todos quantos vistes

tristes, por irdes de caa,

nos vereis mui cedo laa.

845

GARCIA DE RESENDE A ESTE
MOTO D' ŨA SENHORA:

Descansaron mis ojos

y nunca mi coraçon.

Di plazer a mis enojos

em veros e a mi pasion

y descansaron mis ojos

y nunca mi coraçon.

En veros, senhora mia,

los ojos tomam plazer,

por no ser como queria

el coraçon alegria

nunca yo le vi tener.

Assi quitoo mis enojos

vuestra vista de passion

y descansaron mis ojos

y nunca mi coraçon.

846

VILANCETE.

¿Que haré yo sim ventura,

pues perdi

em veros a vos y a mi?

Trovas de Garcia de Resende
a este vilancete.

Los sospiros y cuidados

que mi vida por vos siente

me dexan harto contente

en seren por vos causados.

Y no quiero más holgura,

pues perdi

em veros a vos y a mi.

No queria más vitoria

que poder yo mereceros,

lhegaros a la memoria

que perdi a mi por veros.

Seria buena ventura

para mi

lembraros que me perdi.

847

PERGUNTA DE GARCIA DE RESENDE
A JOAM DA SILVEIRA.

Pois que sois d' amor ferido

e sabeis sua paixam,

nom deveis ser esquecido

de mim, que mais que perdido

ando com muita rezam.

Querei-me, senhor, dizer

o remedio que terei

a poder-me defender,

que me nam façam perder

estas cousas que direi.

Pergunta.

Sam mui vencido d' amores

onde me nam aproveita,

nunca recebo favores,

mas antes mil desfavores

meu querer de si engeita.

Eu, se a quero esqueecer,

sento meu mal ser dobrado,

se faço pola nam ver,

ee-me pior que morrer

sofrer tam grande cuidado.

Reposta de Joam da Silveira
polos consoantes.

Nam podeis ser bem servido

no cuidado que me dam

estas vossas, qu' eu envido

que por ser nelas metido

me falece o coraçam.

Mas que nam tenha saber

eu, senhor, responderei

soo por vos obedecer,

mas nam jaa por eu querer

meter-me no que nam sei.

Reposta.      

Por remedio destas dores

contemprai com' ee sojeita,

deixai modos d' amadores,

pois que com penas maiores

do que vós tendes vos deita.

Nom na vejais, por fazer

e comprir o seu mandado,

nem cureis de a cometer,

mas ante deixai de ser

de todo seu namorado.

Pregunta de Joam da Silveira
a Garcia de Resende.

Eu, senhor, quando envidei,

nom nego ser com gram medo,

mas como determinei

logo ess' hora protestei

de vos preguntar mui cedo:

ver de supito molher

fora d' amores e quedo

em qu' estaa seu logo ser

me mandai, senhor, dizer

se quereis que seja ledo.

Resposta de Garcia de Resende
polos consoantes.

Medi laa se nam fiquei,

de ravidar nam m' arredo,

pois servir-vos comecei,

a mãao toda tomarei

se me derdes ũ soo dedo.

Nam soub' amores reger

Alexandre, o de Macedo,

nem outros de moor poder,

porqu' as cousas de querer

nam sam per leis nem degredo.

848

OUTRA DE GARCIA DE RESENDE
A JOAM DA SILVEIRA.

Meu senhor, para saber

a cousa que dovidamos,

é necessario que hajamos

de quem mais sabe aprender.

A vós, que sois acabado,

por mercê quero pedir

que como bom namorado

o que tenho dovidado

queirais, senhor, descobrir.

Pergunta.

Vemos homeens namorados,

mui galantes e perfeitos,

serem d' amores sogeitos,

das damas pouco prezados.

E outros que sabem menos

e de menos merecer,

por esperiencia temos

que lhe vai melhor sabemos.

Em qu' estaa isto assi ser?

Reposta de Joam da Silveira
polos consoantes.

Nom tem nenhum entender

de todos quantos cuidamos

qu' algũa cousa trovamos

para gabar vos poder.

Por isso deste cuidado,

senhor meu, quero fogir,

que quanto mais apartado

sois de ser de mi louvado

tanto é mais vos servir.

Reposta.

Os tais homeens desamados

podem ser por mil respeitos,

por nom seguir tais proveitos

como os menos confiados.

Os quaes certo todos cremos

elas muito mais querer,

ca dos maiores que vemos,

o que todos entendemos

querem mais secretas ser.

849

DE GARCIA DE RESENDE A Ũ
SEU AMIGO, EM QUE LHE
DAA CONTA DE SUA VIDA.

Inda que me nam peçais

a conta de minha vida,

quero, senhor, que saibais

s' ee bem ou mal despendida.

Digo qu' estou de saude,

a Deos louvores!

E que tenho ameude

desfavores

D' ũa soo molher que tem

minha vida em seu poder.

E porqu' isto sabe bem,

nenhũ bem me quer fazer

e traz-me tam enleado

que nam sei

se me dura este cuidado,

que farei...

E por vos dar verdadeira

conta e desenganada,

sabei que nam é casada

nem veuva nem é freira.

E por ela tam perdido

ando eu

que nam é meu meu sentido,

mas é seu.

Ando sempre acupado

a lhe fazer a vontade

e nam tenh' outro cuidado

maior que este, na verdade,

E quando cuido qu' acerto

a meu ver,

entam estou mais incerto

do que quer.

Se em janela ou à porta

aparece per terceira,

olha-me de tal maneira

qu' a vista logo me corta,

para ja nam poder ver

nem desejar

outra cousa que prazer

me possa dar.

Certefico-vos, senhor,

que mil vezes m' acontece

dar-me nam na ver tal dor

que a vida m' avorrece.

E s' algũ hora desejo

de viver,

é na hora que a vejo

aparecer.

Mil vezes, com desfavores

que me faz, quero provar

se poderei ter amores

em algum outro lugar.

E quanto mais apartado

estou dela,

tanto é mais meu cuidado

sempre nela.

Porque tem bem conhecido

o grande bem que lhe quero,

me daa cuidado crecido

para ver se desespero.

Por me nam satisfazer

o que mereço,

deseja de me perder

e lh' avorreço.

S' algũ hora me escuita

e lhe falo, ha-de fazer,

que se levo paixam muita,

muita mais torno a trazer.

Nam me daa contentamento

seu cuidado,

nisto traz o pensamento

acupado.

Nam tenh' outro passatempo

melhor que ir passear

polo campo e ordenar

cem mil cuidados de vento.

Enquanto lá ando, espero

algũ prazer,

como venho, desespero

de o ter.

Nem tenho conversaçam

com parente nem amigo,

ando na minha paixam

falando sempre comigo.

Desejo nam ver ninguem,

pois nam vejo

quem é meu mal e meu bem

e meu desejo.

Ja me mil vezes quiseram

amigos aconselhar,

mas de quanto me disseram

nam lhes quis nada tomar.

Nem lhe dav' outra rezam

nem mais desculpa

senam: quem me daa paixam

me tira a culpa.

É por quem isto padeço

de tanto merecimento

que sentir o mal que sento

é o mais que lhe mereço.

Nem queria mais prazer

à minha vida

que folgar ela de ser

disso servida.

Por estas cousas que disse

deveis vós, senhor, cuidar

se poderia contar

outras moores, se vos visse.

Quem tem tanto qu' escrever

e que falar,

muito mais deve sofrer

se quer calar.

Cabo.

Por saberdes minhas dores,

vos quis esta conta dar

como a quem ja mal d' amores

tem feito desesperar,

e por ver se podereis

remedear

minha vida, que vereis

pouco durar.

850

CANTIGA SUA.

Minha vida é de tal sorte

qu' o moor remedio que sento

é saber que co a morte

darei fim ò pensamento.

Com sospirar e gemer

tristezas, nojos, paixam,

juntos em meu coraçam

vivo soo polos sofrer.

Jaa nam ha quem me conforte

meu mal e grande tormento,

senam lembrança da morte

que daa fim ò pensamento.

851

GROSA SUA A ESTE MOTO QUE
LHE MANDOU ŨA MOLHER,
ESTANDO MUITO MAL
CO ELA.

Moto.

Tanto mal que desespero.

Esperei, jaa nam espero

de mais vos servir, senhora,

pois me fazeis cada hora

tanto mal que desespero.

Pois sei certo que folgais,

quando mais mal me fazeis,

e que nunca descansais,

senam quando me mostrais

quam pouco bem me quereis.

Servir-vos mais nam espero,

pois meu viver empeora

com me fazerdes, senhora,

tanto mal que desespero.

852

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Meus olhos, lembre-vos eu.

Pois é mais vosso que meu,

senhora, meu coraçam,

pois vosso cativo sam,

meus olhos, lembre-vos eu.

Lembre-vos minha tristeza

que jamais nunca me deixa,

lembre-vos com quanta queixa

se queixa minha firmeza.

Lembre-vos que nam é meu

o meu triste coraçam,

pois tendes tanta rezam

meus olhos, lembre-vos eu.

853

DE GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER QUE CONFESSAVA QUE
LHE QUERIA BEM, SEM FA‑
ZER POR ELE NADA.

Senhora, pois confessais

que grande bem me quereis

e que de mim vos lembrais

e que com meu bem folgais

e de meu mal vos doeis,

querei-me, meu bem, dizer,

pois que obras nunca vejo

para isto de vós crer,

como poderei viver,

pois meu mal é tam sobejo.

Sobejo com muitas dores,

que por vós sempre padeço,

e continos desfavores,

sem nunca dardes favores

a mim, que tanto mereço.

Nam digo que me fizesseis

quanto bem era rezam,

senam soo que vos doesseis

de meus males e me desseis

dalgũ deles gualardam.

Por gualardam haveria,

se soubesse qu' esperaveis

de me fazer algũ dia

tam leedo que fantesia

tomasse que vos lembraveis

de mim, qu' em ter esperança

m' haveria por ditoso,

se tevesse confiança

que meu servir, sem mudança,

me seria proveitoso.

Mas viver sempre tam fora

d' esperar daquisto ser

me faz que cuido, senhora,

cada dia e cada hora

que folgais de me perder.

E com este tal cuidar

s' acrecenta minha pena

e nam posso repousar,

quando me vai alembrar

que por vós meu mal s' ordena.

Que se triste s' ordenara

por outrem meu padecer

a quem tanto nam amara

como a vós, nam me penara

ver-me mil vezes morrer.

Mas de quem tem tal rezam

para me remedear

como vós, meu coraçam,

e me deita em perdiçam,

rezam é de m' agravar.

De quem me posso doer,

de quem me posso agravar,

se ninguem nam tem poder

para leedo me fazer

nem para meu mal dobrar,

senam vós de quem conheço

nam ser bem o vosso bem

para mim, pois que padeço

ũ mal, que nunca o começo

nem o cabo vio ninguem.

Que se fosse de verdade

vosso bem como dizeis,

mudarieis a vontade

para haverdes piadade

de quanto mal me fazeis.

Mas cuidai que quem bem quer

nam no pode encobrir

por muito mais que souber,

que nas obras que fizer

s' haa logo de descobrir.

Assi, vós, minha senhora,

nam tendes rezam que dar

para ser de culpa fora,

pois vós soo sois causadora

de meu mal sempre dobrar.

E tendo vós soo poder

de descansar meu desejo,

nam quereis nunca fazer

como possa leedo ser

e fazeis-me o mal que vejo.

Cabo.

E pois que tendes sabido

aquestas cousas que digo,

folgo ser por vós perdido.

Se fosse favorecido

quem poderia comigo?

Senhora de minha vida,

doa-vos meu padecer,

pois que jaa sempre querida

haveis de ser e servida

de mim, enquanto viver.

854

GARCIA DE RESENDE A ESTE
MOTO QUE LHE MANDOU
ESTA MOLHER:

Milhor fee que gualardam.

Que causeis meu padecer,

que dobreis minha paixam,

que me lanceis a perder,

contudo sempr' hei-de ter

milhor fee que gualardam.

Que viva com gram cuidado

mais triste que a tristeza,

que seja mais desamado,

nam hei-de ser apartado

de sofrer vossa crueza.

Que nunca tenha prazer,

que sempre tenha paixam,

que folgueis de me perder,

nam hei-de deixar de ter

melhor fee que gualardam.

855

GARCIA DE RESENDE A ŨA MOLHER,
QUE VEO ESTAR ŨS DIAS COM Ũ
DOENTE POR QUEM FAZIA MIL
DEVOÇÕES E DISSE-LHE A
ELE QUE AO OUTRO DIA
SE HAVIA D' IR.

Senhora:

Ouvi-vos ontem dizer         

qu' estaveis para vos ir:

quero-vos fazer saber

que fazeis em o fazer

cousa que s' haa-de sentir

muito de nós, os enfermos,

que saude recebemos

com vossa conversaçam.

E se aquisto nam temos,

tristes de nós que faremos

senam morrer de paixam?

Se verdade é tal nova,

dobrar-se-am nossas dores,

mandai-nos fazer a cova,

pois vos is da Porta Nova

à Rua dos Mercadores.

Oh que gram mal, na verdade,

nom quererdes piadade

haver de quem é rezam!

Se nam mudais a vontade,

crede que com saudade

nos lançais em perdiçam.

Para que quereis rezar

nem fazerdes devações?

Que obra podeis obrar,

que seja mais de louvar,

que tirardes mil paixões

a quem nunca noite e dia

ũa hora d' alegria

poderaa ter sem vos ver,

a quem ensandeceria

e com nojo morreria

fora do vosso poder?

Cabo.

Se logo nam revogais

a sentença nũ momento,

ouvireis fazer sinais

que fazem polos mortais

e depois o sahimento.

Rezareis mil orações

polos nossos corações,

que vós fizestes morrer

com muitas trebulações     

e grandissimas paixões,

que nam podeeram sofrer.

856

CANTIGA SUA.

Folgo bem, pois que conheço

que folgais de dar paixam

a mim, que nam vos mereço,

por quantos males padeço,

dardes-m' este gualardam.

Que sempre viva penado

co este conhecimento,

fica-me contentamento

em saber que tal tormento

me dais sem ser eu culpado.

Porque soo o que padeço

é tanto que com rezam

me deveis, e vos mereço,

dardes a meu bem começo

e fim a tanta paixam.

857

CANTIGA SUA, DESAVINDO-SE

D' ŨA MOLHER.

Pois tanto prazer levais

em me fazer sempre mal,

errarei se fizer al

senam o que desejais.

Desejais nam vos servir

e folgais de me perder,

desejais nunca me ver

e muito mais nam m' ouvir

senam cantar e tanger.

E pois isto confessais,

inda que me venha mal,

errarei se fizer al

senam o que desejais.

858

CANTIGA SUA EM ŨA PARTIDA.

Los mis ojos toda hora

nunca cessaran lhorando

hasta que torne, senhora,

donde parto sospirando.

No cessaran de lhorar        

partida tan sin plazer,

dolor que no tiene par

seren lexos de mirar

vuestro gentil parecer.

¡Oh quanto mejor les fuera,

quando parti sospirando,

perder la vida nũ hora

por no bivieron lhorando!

859

GROSA SUA A ESTE MOTO
D' ŨA SENHORA.

Ja nunca seraa mudado.

Mil vezes meu coraçam

me tem dito e afirmado

qu' inda que lhe deis paixam

ja nunca seraa mudado.

Porqu' ee tanto sem medida.

o grande bem que vos quer,

que por vós serdes servida

mil vezes perdera a vida,

sem se nunca arrepender.

Quem disto nam tem paixam,

que lhe deis sempre cuidado,

que o mateis sem rezam,

ja nunca seraa mudado.

860

GROSA SUA A ESTE MOTO:

Cada dia e cada hora.

Vossa pouca fee, senhora,

e vossa gram crueldade

me matam sem piadade

cada dia e cada hora.

Porque s' algũa firmeza

tivesseis no coraçam,

nam me darieis paixam

nem sempre mal e tristeza.

Mas o nam crerdes, senhora,

que vos quero de verdade,

vos faz mudar a vontade

cada dia e cada hora.

861

TROVAS QUE GARCIA DE RESENDE
FEZ À MORTE DE DONA INES DE CAS‑
TRO, QUE EL-REI DOM AFONSO, O
QUARTO DE PORTUGAL, MATOU
EM COIMBRA, POR O PRINCIPE
DOM PEDRO, SEU FILHO, A
TER COMO MULHER E POLO
BEM QUE LHE QUERIA NAM
QUERIA CASAR, ENDE‑
RENÇADAS ÀS DAMAS.

Senhoras, s' algum senhor

vos quiser bem ou servir,

quem tomar tal servidor

eu lhe quero descobrir

o gualardam do amor.

Por sua mercê saber

o que deve de fazer,

vej' o que fez esta dama,

que de si vos daraa fama,

s' estas trovas quereis ler.

Fala Dona Ines.

— Qual seraa o coraçam

tam cru e sem piadade,

que lhe nam cause paixam

ũa tam gram crueldade

e morte tam sem rezam?

Triste de mim, inocente,

que por ter muito fervente

lealdade, fee, amor

ò Princepe, meu senhor,

me mataram cruamente!

A minha desaventura,

nam contente d' acabar-me,

por me dar maior tristura

me foi pôr em tant' altura

para d' alto derribar-me.

Que, se me matara alguem

antes de ter tanto bem,

em tais chamas nam ardera,

pai, filhos nam conhecera

nem me chorara ninguem.

Eu era moça, menina,

per nome Dona Ines

de Crasto e de tal doutrina

e vertudes qu' era dina

de meu mal ser ò revés.

Vivia sem me lembrar

que paixam podia dar

nem dá-la ninguem a mim.

Foi-m' o Princepe olhar

por seu nojo e minha fim!

Começou-m' a desejar,

trabalhou por me servir,

Fortuna foi ordenar

dous corações conformar

a ũa vontade vir.

Conheceo-me, conheci-o,

quis-me bem e eu a ele,

perdeo-me, tambem perdi-o,

nunca tee morte foi frio

o bem que triste pus nele.

Dei-lhe minha liberdade,

nam senti perda de fama,

pus nele minha verdade,

quis fazer sua vontade

sendo mui fremosa dama.

Por m' estas obras pagar

nunca jamais quis casar,

polo qual aconselhado

foi El-Rei qu' era forçado,

polo seu, de me matar.

Estava mui acatada

como princesa servida,

em meos paços mui honrada,

de tudo mui abastada,

de meu senhor mui querida.

Estando mui de vagar,

bem fora de tal cuidar,

em Coimbra d' assessego,

polos campos de Mondego

cavaleiros vi somar.

Como as cousas qu' ham-de ser

logo dam no coraçam,

comecei entresticer

e comigo soo dizer:

— Estes homeens donde iram?

E tanto que preguntei,       

soube logo que era El-Rei.

Quando o vi tam apressado,

meu coraçam trespassado

foi que nunca mais falei!

E quando vi que decia,

sahi à porta da sala;

devinhando o que queria

com gram choro e cortesia

lhe fiz ũa triste fala.

Meus filhos pus derredor

de mim, com gram homildade,

mui cortada de temor

lhe disse: — Havei , Senhor,

desta triste piadade!

Nam possa mais a paixam

que o que deveis fazer,

metei nisso bem a mam,

qu' ee de fraco coraçam

sem porquê matar molher.

Quanto mais a mim, que dam

culpa, nam sendo rezam,

por ser mãi dos inocentes

qu' ante vós estam presentes,

os quaes vossos netos sam.

E têm tam pouca idade,

que, se nam forem criados

de mim, soo com saudade

e sua gram orfindade

morreram desemparados.

Olhe bem quanta crueza

faraa nisto Voss' Alteza

e tambem, Senhor, olhai,

pois do Princepe sois pai,

nam lhe deis tanta tristeza.

Lembre-vos o grand' amor

que me vosso filho tem

e que sentiraa gram dor

morrer-lhe tal servidor

por lhe querer grande bem.

Que s' algũ erro fizera,

fora bem que padecera

e qu' estes filhos ficaram

orfãaos, tristes, e buscaram

quem deles paixam houvera.

Mas pois eu nunca errei

e sempre mereci mais,

deveis, poderoso Rei,

nam quebrantar vossa lei,

que, se moiro, quebrantais.

Usai mais de piadade

que de rigor nem vontade,

havei doo, Senhor, de mim,

nam me deis tam triste fim,

pois que nunca fiz maldade.

El-Rei, vendo como estava,

houve de mim compaixam

e vio o que nam oulhava:

qu' eu a ele nam errava

nem fizera traiçam.

E vendo quam de verdade

tive amor e lealdade

oo Princepe cuja sam,

pôde mais a piadade

que a determinaçam.

Que se m' ele defendera

qu' a seu filho nam amasse

e lh' eu nam obedecera,

entam com rezam podera

dar-m' a moorte qu' ordenasse.

Mas vendo que nenhũ hora

des que naci ategora

nunca nisso me falou,

quando se disto lembrou,

foi-se pola porta fora,

Com seu rosto lagrimoso,

co proposito mudado,

muito triste, mui cuidoso,

como rei mui piadoso,

mui cristam e esforçado.

Ũ daqueles que trazia

consigo na companhia,

cavaleiro desalmado,

detras dele mui irado

estas palavras dezia:

— Senhor, vossa piadade

é dina de reprender,

pois que sem necessidade

mudaram vossa vontade

lagrimas d' ũa molher!

E quereis qu' abarregado,

com filhos como casado

estê, Senhor, vosso filho!

De vós mais me maravilho

que dele qu' ee namorado!

Se a logo nam matais,

nam sereis nunca temido

nem faram o que mandais,

pois tam cedo vos mudais

do conselho qu' era havido.

Olhai quam justa querela

tendes, pois por amor dela

vosso filho quer estar

sem casar e nos quer dar

muita guerra com Castela.

Com sua morte escusareis

muitas mortes, muitos danos;

vós, Senhor, descansareis

e a vós e a nós dareis

paz para duzentos anos.

O Princepe casaraa,

filhos de bençam teraa,

seraa fora de pecado,

qu' agora seja anojado,

amenhã lh' esqueceraa.

E ouvindo seu dizer,

El-Rei ficou mui torvado

por se em tais estremos ver

e que havia de fazer

ou ũ ou outro forçado.

Desejava dar-me vida

por lhe nam ter merecida

a morte nem nenhũ mal,

sentia pena mortal

por ter feito tal partida.

E vendo que se lhe dava

a ele tod' eesta culpa

e que tanto o apertava,

disse aaquele que bradava:

— Minha tençam me desculpa.

Se o vós quereis fazer,

fazei-o sem mo dizer,

qu' eu nisso nam mando nada,

nem vejo eessa coitada

por que deva de morrer.

Fim.  

Dous cavaleiros irosos,

que tais palavras lh' ouviram,

mui crus e nam piadosos,

perversos, desamorosos,

contra mim rijo se viram.

Com as espadas na mam

m' atravessam o coraçam,

a confissam me tolheram.

Este é o gualardam

que meus amores me deram!

Garcia de Resende às damas.

Senhoras, nam hajais medo,

nam receeis fazer bem,

tende o coraçam mui quedo

e vossas mercês veram, cedo

quam grandes beens do bem vem.

Nam torvem vosso sentido

as cousas qu' haveis ouvido,

o porqu' ee lei de deos d' amor:

bem, vertude nem primor

nunca jamais ser perdido.

Por verdes o gualardam

que do amor recebeo,

porque por ele morreo,

nestas trovas saberam

o que guanhou ou perdeo:

nam perdeo senam a vida,

que podeera ser perdida

sem na ninguem conhecer,

e guanhou por bem querer

ser sua morte tam sentida.

Guanhou mais que sendo dantes

nom mais que fermosa dama,

serem seus filhos ifantes,

seus amores abastantes

de deixarem tanta fama.

Outra moor honra direi:

como o Princepe foi rei,

sem tardar, mas mui asinha,

a fez alçar por rainha,

sendo morta o fez por lei.

Os principais reis d' Espanha

de Portugal e Castela

e Emperador d' Alemanha,

olhai, que honra tamanha,

que todos decendem dela.

Rei de Napoles tambem,

Duque de Bregonha, a quem

todo França medo havia

e em campo El-Rei vencia,

todos estes dela vem.

Por verdes como vingou

a morte que lh' ordenaram,

como foi rei trabalhou

e fez tanto que tomou

aqueles que a mataram.

A ũ fez espedaçar

e ò outro fez tirar

por detras o coraçam.

Pois amor daa gualardam,

nam deixe ninguem d' amar!

Cabo.

Em todos seus testamentos

a decrarou por molher

e por s' isto melhor crer

fez dous ricos moimentos

em qu' ambos vereis jazer:

rei, rainha, coroados,

mui juntos, nam apartados,

no cruzeiro d' Alcobaça.

Quem poder fazer bem faça,

pois por bem se dam tais grados.

862

GARCIA DE RESENDE, INDO PARA RO
MA, VEO A MALHORCA COM GRANDES
TORMENTAS E VIO ŨA GENTIL DAMA,
QUE CHAMAVAM DONA ESPERANÇA
E ANDAVA VESTIDA DE DOO. E
FEZ-LHE ESTE VILANCETE E
MANDOU-LHO, ENTOADO
TAMBEM PER ELE.

¿Que me quieres, Esperança?

¿Aqui me vienes buscar

por me más desesperar?

Pensava que me tenias      

del todo ya olvidado

y aqui diste a mis dias

sobre males mal dobrado.

Seraa triste mi nembrança,

pues te halhé sin te buscar

para más desesperar.

De mi vida descontento,

de mis tierras apartado,

por la mar del pensamiento

em las ondas del cuidado,

com tormentas d' olvidança

me fiziste aqui portar,

por más me desesperar.

Las velas de mi querer,

rotas por te no mirar

contra razon fui dobrar

el cabo de padecer.

Pairando mucha dudança,

em las aguas de lhorar

te halhé por más penar.

Cabo.

Luego vi que mi tristura

havia más de crecer,

pues vi tu linda fegura

por mi mal luto traer.

Como te vi, Esperança,

vi que m' havias de dar

sobre pesares pesar.

863

GARCIA DE REESENDE AO SECRETA
RIO QUE LHE DISSE, PORQUE TANGEO
E CANTOU MUITO BEM, QUE LHE DA‑
RIA DOUS PARES DE PERDIZES PERA
O PAPO E PERA AS MÃOS DOUS PA‑
RES DE LUVAS E QUE MANDASSE
A SUA CASA POR TUDO. E MAN‑
DOU COM ESTA COPRA.

A voz é para pedir   

e as mãos para tomar,

vós, senhor, sois para dar

mil cousas afora rir.

O riso nam mo mandeis,

porque jaa cá tenho muito,

o al mandai e dareis

de bo' arvore bom fruito.

De Pedr' Alvarez Marreca
a Garcia de Resende,
sobre esta trova.

A voz é para ouvir,

as mãos sam para tocar,

o ventre para esperar

pola hora do parir.

O rostro para estar

à porta de boticairo

em panela ou alguidar,

com sabam azul do Cairo.

Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.

Galga magra de ganir,

fisico que quer preegar,

cabra morta d' espirrar,

judeu d' Alcacer Quebir.

Corretor sem cavalgar,

clerigo gram lapidairo

e confrade do rosairo

preso por adevinhar.

864

DE JOAM RODRIGUEZ DE SAA
A GARCIA DE RESENDE.

Vós nesse vosso buraco,

de qu' estais muito contente,

pareceis o ladram Caco

ou giofre do gram dente.

Pareceis usso empalado,

touro cevado em lameiro

ou paio mui recheado,

dependurado em fumeiro.

Garcia de Resende a Joam Rodri‑
guez de Saa polos consoantes.

Galante trazido em saco,

mandado cá em presente,

pareceis catelam fraco

que foi d' amores doente;

valenceano molhado

e cabrito com sombreiro

ou cristos desensoado,

que dança a som de pandeiro.

Outra de Joam Rodriguez de Saa
polos consoantes.

Embaixador do Valaco

d' el-rei d' Hongria parente,

atabaque de deos Baco,

almofreixe de semente,

charamelam alporcado,

gram palheiro todo inteiro

e o certo sol tendeiro

a que fostes apodado.

Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes.

Pareceis frangam velhaco

e bacharel d' oriente

e cerva com olho zarco

ou galga com dor de dente;

aragoes refinado,

doce, galante sergueiro,

castelhano perfumeiro,

musico acairelado.

865

ALVARO DE SOUSA, PAJE DA LANÇA
D' EL-REI, E RUI DE MELO, ALCAIDE‑
-MOOR D' ELVAS, E ALVARO BAR‑
RETO E FRANCISCO DA CUNHA E
FRANCISCO HOMEM, ESTRIBEIRO‑
-MOOR D' EL-REI, E MANUEL
CORREA, ESTANDO JUNTOS
NŨA POSADA EM ALME‑
RIM, MANDARAM ESTES
MOTOS A GARCIA
DE RESENDE.

Senhor, pedimos a vossa mercê

que veja estes motos e por aqui

vereis quam pipa sois.

À senhora dona bandouva peço,
por mercê, que me responda:

Pareceis-me almofreixe

prima mudado no ar.

Ao senhor arco das velhas,

que sam os feixes d' alagar

dos braços, peço, por mercê,
que me responda:

Pareceis atabaque felpudo,

que vai polo virote.

Ao senhor viso-rei das enxundas
peço, por mercê, que me
responda:

Pareceis bufo embaçado

que luitou em eira.

Ao senhor trilhoada d' embigos
peço, por mercê, que me
responda:

Pareceis tonel passareiro.

Reposta de Garcia de Resende
a todos estes senhores, por
comprir seu mandado.

A Alvaro de Sousa, paje da
lança.

Cristam novo, page velho,

filho d' abade ou doutor,

doce mais que ũ cantor,

morto ò paao como coelho.

Galante de moesteiro,

douda andrina d' andadura,

castelhano sem fressura,

cristos molhado em ribeiro.

A Rui de Melo,
alcaide-mor

Meu senhor alcaide-mor,

dizei-me s' ee isto graça,

convosco nam sei que faça,

porque m' acho sem sabor.

Eu dissera algũa cousa

por vos nam irdes em vam

e porem deitai a mãao

desta d' Alvaro de Sousa,

vosso primo com irmãao.

A Alvaro Barreto.

Galante godo meci,

e doutra parte badana,

pareceis Madril Mangana,

qu' ensina a bailar aqui.

Nessa vossa fremosura

quem acharaa que dizer,

pois soes doce para ver

e todo al é pintura.

A Francisco da Cunha.

A meu senhor bacharel

com irmãa ama no paço,

pulga doente do baço,

capelanzinho d' anel,

pareceis gozo adaiam

com dous dedos de latim

e podengo escrivam,

que vende tinta roim

em Almeirim.

A Manuel Correa.

Senhor galante, listrado

como manta d' Alentejo,

doutrem doente vos vejo

de qu' andais barbialçado.

Fostes cá trazido d' Ilha

como libree que nam filha

e em novo foi ardido,

pareceis galan valido

del tiniente de Sevilha.

A Francisc' Homem,

estribeiro-moor.

Sindeiram valenceano

a qu' as tripas rugem muito,

pareceis judeu sem fruito,

grande enxerto deste ano.

Fostes nacido em paul

e criado em lezira,

calçado de toda vira,

com gram balandram azul.

866

DE GARCIA DE RESENDE A JOAM
FOGAÇA, QUE LHE NAM QUERIA
MANDAR TROVAS SUAS.

Se cuidais que defender

acrecenta mais desejo,

nam s' haa nisto d' entender,

que ha-de ser

no que jaa fazeis com pejo.

Por isso sem mais tardar

m' haveis, senhor, de mandar

vossas trovas, quantas sam,

e se nam

guardai-vos do meu trovar,

que daa cos homeens no cham.

Reposta de Joam Fogaça.

Senhor, nam tenho lembrança

de cousa que ja fizesse

mais do que se faz em França,

porque, se o eu soubesse,

di-lo-ia sem tardança.

Ò gram comendador-moor

me lembra ũa que fiz,

a qual diz.

867

DE GARCIA DE RESENDE AO CONDE
PRIOR, MORDOMO-MOOR, COM ŨA
CERTIDAM DE RUI DE FIGUEIRE‑
DO, DO ORDENADO QUE HOUVE,
QUANDO FOI A ROMA, PERA
LHE DAREM A MORADIA
DO TEMPO QUE LAA
MAIS ANDOU.

Filhos do embaixador,        

Garcia de Saa e eu

e rei d' armas Portugal,

a todos El-Rei nos deu

ũ ordenado, senhor,

e inda mal.

Nem mais nem menos ũ dia

do que a eles fostes dar

me ha, Vossa Senhoria,

de despachar.

Reposta do Conde
polos consoantes
.

Vós sois mui gram trovador,

senhor, e amigo meu

e galante natural.

E porem queria eu

ver d' El-Rei nosso Senhor

ũ sinal

para haverdes moradia,

porqu' eu nam posso mandar

por esta soo portaria,

sem errar.

868

DE GARCIA DE RESENDE A JORGE
DE VASCONCELOS, PORQUE NAM
QUERIA ESCREVER ŨAS
TROVAS SUAS.

Neste mundo a moor vitoria

que se daa nem pode ter

qualquer pessoa

é ficar dela memoria.

Ora deixai d' escrever

cousa boa!

E olhai que os antigos

davam ò deemo as vidas

soo porque falassem neles,

e nós, por sermos imigos

de nós, temos esquecidas

mil cousas moores qu' as deles!

869

DE GARCIA DE RESENDE A BRAS
DA COSTA COM ŨU JUSTO,
POLO ACRECENTAMENTO
DE CAVALEIRO.

Polo qu' eu fiz pecador,      

padeç' agora esse justo,

laa vo-lo mando, senhor,

se lhe nam tendes amor

far-vos-á parte do custo.

E em pago do marteiro

qu' a minha bolsa sentio,

m' assentai por cavaleiro,

pois o sam mui verdadeiro

de Cristos que nos remio.

Reposta de Bras da Costa.

Eu vos mando ũa nova,

que seja d' homem rebusto

e tambem por ter bom custo,

que folguei mais com o justo

que co a trova.

E ũa cousa vos digo,

pois que tanto a corte sigo,
compre ter pessoa leda

e quer d' amigo quer de inmigo

eu folgo com a moeda.

870

GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER, QUE LHE DAVA
ŨA CULPA.

Senhora, deveis cuidar,

pois vos Deos fez tam fermosa,

que nam foi por nos matar,

mas por culpas perdoar

e ser muito piadosa.

Olhai bem que vos mereço,

por camanho bem vos quero,

mais descanso do qu' espero,

menos mal do que padeço.

E se vos isto lembrar,

nam sereis despiadosa

para quem podeis matar,

mas sereis no perdoar

como soes em ser fermosa

871

TROVA SUA A DIOGO DE MELO,

QUE PARTIA PERA ALCOBAÇA

E HAVIA-LHE DE TRAZER DE

LAA Ũ CANCIONEIRO D' Ũ

ABADE QUE CHAMAM

FREI MARTINHO.

Decorai polo caminho,

té chegardes ò moesteiro,

qu' ha-de vir o cancioneiro

do abade Frei Martinho.

E s' esperardes de vir

sem mo mandardes trazer,

podeis crer

que quem tinheis em poder

para sempre vos servir

olhos que o viram ir...

872

GARCIA DE RESENDE A ŨA
MOLHER QUE DISSE QUE ELE
RIA MUITO.

Tem-me tam morto o cuidado,

que me faz jaa nam sentir,

e de muito trasportado

em vez de chorar vou rir.

Que se meu mal me lembrar

como me lembrais, meu bem,

meu prazer será chorar,

pois tam fora de cuidar

estaa em mim quem me tem.

E pois sam tam trasportado

que jaa nam tenho sentir,

quem me vir folgar ou rir

crea qu' ee de mor cuidado.

873

OUTRA SUA, DECRARANDO-SE
COM ŨA MOLHER.

Nam hei por vida a passada,

pois passou sem vos servir,

hei por boa a qu' ha-de vir,

pois vo-la jaa tenho dada.

E nam cuideis qu' ee d' agora

este mudar de viver,

que foi sempre e ha-de ser

serdes vós minha senhora.

Mas andou assi calada

minha vida em vos servir,

enquanto pôde fengir:

j' agora nam pode nada.

874

TROVAS SUAS A ESTE VILANCETE:

Mira, gentil dama,

el tu servidor

como está tam triste

com tanto dolor.

Mira que mereço

no ser desamado

ni tan olvidado,

pues tanto padeço.

Y pues con dolor

mi vida te lhama,

mira, gentil dama,

el tu servidor.

Pues tu hermosura

causó mi dolor,

mira mi tristura

y tu disfavor.

No trates peor

el que más te ama,

mira, gentil dama,

el tu servidor.

875

CANTIGA SUA.

Vivo jaa desesperado,

de viver nunca contente,

porque quem me daa cuidado

nam no sente.

De mim nam tem sentimento

nem daa que tenha paixam,

antes tem contentamento

em m' agravar sem rezam.

Assi triste afortunado,

da vida sam descontente,

porque quem me daa cuidado

nam no sente.

876

GARCIA DE RESENDE A ŨA

MOLHER, A QUE DISSERAM

QUE ELE QUERIA BEM A
OUTRA.

Senhora, nam é rezam

que por dito de ninguem

nam queirais quem vos quer bem.

Mas é bem que conheçais

quem por vós é mais perdido

e se vos tem bem servido

nam no desfavoreçais;

e tambem que nam creais

senam que quem vos vir bem

nunca mais veraa ninguem.

877

TROVAS SUAS A ESTE VILANCETE:

S' hay alguna neste mundo

que yo ame más que a vos,

mal me lo demande Dios.

E pois que tendes sabido

qu' em mim nam cabe mudança,

senhora, dai-m' esperança

e seja de mais perdido.

Que se nunca arrependido

fui de me perder por vós,

mal me lo demande Dios.

Outra sua.

Tenho jaa esta firmeza

tam firme no coraçam

que me nam daa jaa paixam

ter por vós sempre tristeza.

Se desfavor nem crueza

me pod' apartar de vós,

mal me lo demande Dios.

878

DE GARCIA DE RESENDE A RUI
DE FIGUEIREDO POTAS, ESTAN‑
DO DETREMINADO PERA SE
METER FRADE.

Pois trocais a liberdade      

por viver sempre sojeito,

sem haverdes saudade

dos amigos de verdade

vossos sem nenhũ respeito;

s' estais, senhor, de partida

para entrar em nova vida,

tomai isto que vos digo,

como d' um vosso amigo

grande, fora de medida.

Se determinais vestir

havito com seu cordam,

nam haveis nunca de rir

no moesteiro nem bolir,

qu' ee sinal de devaçam.

Diornal e breviairo,

contas pretas e rosairo

trazei de cote na mam,

sem rezardes oraçam

a santo do calandairo.

S' i houver deceprinar,

i com grande devaçam,

e depois da casa estar

às escuras, açoutar

rijo, mas seja no cham.

Ameude sospirar,

que todos possam cuidar

qu' ee de muito marteirado.

Assi estareis poupado

sem vos da regra tirar.

Haveis sempre de mostrar

que andais mui mal desposto

por do coro escapar,

qu' ee gram trabalho rezar

a quem nisso nam tem gosto.

E à mesa gejumhar,

que façais todos pasmar!

Mas tereis em vossa cela

mantimento sempre nela

com que possais jarrear.

Tereis nela putarram

que seja do vosso geito;

se bater o guardiam

à porta, dar-lhe de mam

para debaixo do leito.

Se vos achar suarento

dizei que vosso elamento

é estar dessa maneira:

esta regra é verdadeira

e o al tudo é vento.

Tereis de sô o colcham

jibam e calças de malha,

casco, luvas, burquelam,

punhal e espadarram,

chuça e ũa navalha,

escada de corda boa,

que suba e deça a pessoa

segura de nam quebrar;

cabeleira nam errar

para cobrir a coroa.

Como s' a lũa poser,

sahireis desse fadairo

vestido como faz mester,

porque entam haveis de ler

polo vosso calandairo.

Por segurar o caminho,

sede amigo do meirinho

e do alcaide tambem,

que nam queiram por ninguem

tomar-vos no vosso ninho.

Pobreza e castidade

e tambem obediencia

dareis à comonidade,

mas nam tereis caridade,

verdade nem paciencia.

Trabalhai muito por ir

de cas em cas a pedir

cos olhos postos por terra,

porque assi se faz a guerra

melhor que com bom servir.

Para melhor vos salvar

sede mui mexeriqueiro,

d' ũs e doutros mormurar

e o guardiam louvar

em tudo mui por inteiro.

Falai manso e devagar

e s' houverdes de rezar

seja alto e de maa mente

e fazei-vos mui ciente

por molheres confessar.

Se vos mandarem cavar,

aguar arvores ou varrer,

ser forneiro ou cozinhar,

ou os havitos lavar,

começai logo gemer

e dizei: — Padre, eu sam

de tam fraca compreissam

que nam digo trabalhar,

mas, s' um pouco m' abaixar,

cahirei morto no cham.

Cabo.

Isto podereis fazer,

mas o bom que a vida tem

nam no haveis vós de sofrer;

por isso, antes de ser

frade, conselhai-vos bem:

porque quanto bem merece

pola vida que padece

o bom frade vertuoso,

tanto o mao relegioso

torna atras e desmerece.

879

TROVAS QUE AFONSO VALENTE
FEZ EM TOMAR A GARCIA DE RE‑
SENDE, SEM LHAS MANDAR.

Pareceis-me lũa cris,

primo com irmão de bruto,

pareceis roxo bauto

doente de prioris;

sacabuxa, irmão de Jaques,

muito farto de bordões

e tanje tudo com traques,

homem que faz almadraques

ou seirões.

Albergue de frorentins        

que se pagam de cidram,

homem farto de coxins,

recheados de cotam.

Pareceis devinhaçam,

pareceis ũa façanha,

tapeceiro do soldam,

quer gigante rebordam

como castanha.

Dizem que tangeis laud

e tocais bem os bemoles

e pousais em retrapoles

abaixo de gamaud.

Se tangeis por bequadrado,

enflamado como chama,

pareceis odre apojado

como mama.

Tendes cousas mui agudas,

Anrique Homem por tal via

e caís ambos num dia

como Sam Simam e Judas.

Fostes feito em Bozeima

e criado em Trapisonda,

soes tremelegua na onda

composto todo de freima.

Pareceis de sul sospiro,

bandouva de toda vira,

pareceis quartao que tira

e por fundo faz o tiro.

Pareceis alam que ladra

sobre farto sonorento,

pareceis cabo d' esquadra

de tres mil odres de vento.

Ou soes vaso ou atambor

nalguas bochechas do sul

ou tanho comendador

nado, feito no paul.

Pareceis grande meloa

de parto no mes d' Agosto,

arreboles de sol posto,

gram larada de boroa.

Pareceis canicolar

de todo ano bissesto

e soes o mesmo teisto

do plurar.

E tambem soes sengular

na massa feiçam de cuba

ou gram bebado d' estuba,

nua posta ao luar.

Pareceis mui grande rol

de grifos mui esfaimados,

albarda, molher de prol,

muito chea de bordados;

guia de dança d' espadas,

gram malassada d' estopas,

guia de dança de copas

todas cheas, arrasadas.

Nam digo mais por agora,

porque s' agrava o tinteiro,

por vos morrer o praceiro,

que era prior crasteiro

de Sam Vicente de Fora;

senam que soes enfenito

para dar prazer e rir

e protesto, se comprir,

repricar e dar no fito.

Pareceis ũ pouco o farto

pregador da vida eterna,

grega bebada de parto

antre cubas em taverna.

Bentas sejam de Balam

as fadas que vos fadaram,

as tetas que vos criaram,

qu' assi vos empetrinaram

para momo no seram,

Onde todos bem veram

vossa groria, vossa fama,

e caber-vos-á por dama

ũa saca d' algodam

e por tocha ũ gram tiçam.

Pareceis, segum m' esforça

esta em que vos enforco,

farmenga que tanje em çorça,

laude com pee de porco.

Soes alteroso da banha

mais que urca dos castelos,

urca digo d' Alemanha,

ou fazeis prova d' aranha

sobre farto de farelos.

Por nam dar polos cabelos,

quero logo dizer tudo,

pareceis tecelam mudo

em choco sobre novelos.

E porque melhor vos louve

de louvor mui soverano,

pareceis homem morciano

como couve.

E por dar melhor d' agudo

e vos nam maçar do coto,

agudo todo no boto,

tambem tocais de tronchudo.

Pareceis-me segum maço

nas esporas mui sofrido,

pareceis mui gram inchaço

que naceo a esse paço

de sobraço

de que anda mal sentido.

Pareceis de Lombardia,

posto que sejais de Grecia,

pareceis lioa neicia,

criada na ucharia.

Pareceis mais de setenta

cousas posto em gibam

e caís no horizam

d' ũ gram fardo de pimenta;

monje çujo d' Alcobaça,

patriarca de Veneza,

pareceis de Su' Alteza

ancho porteiro de maça.

Gram lavoira se vos perde,

porque vai em tal ensejo

vosso cu de verde a verde

como o Tejo.

Is cobrindo toda a ponte,

as leziras nom desfaço,

os lombos de monte a monte

sem parecer espinhaço.

Pareceis moura alfenada     

qu' adevinha pola mão,

pareceis bufa calada

do levante no Verão.

Detras de Sam Nicolao

em alto graao,

vos vi eu nũa alta dança

com essa pança mui atento

e o som era de vento

e a mudança.

Vi-vos na feira d' Enves

a tanger mui grandes trombas

e vi-vos ler d' ũ conves

de cadeira a duas bombas.

Gram Sam Joam barba d' ouro,

barraxa, senhor da serra,

pareceis filho de touro

e de faca d' Ingraterra.

Nem soes carne nem soes pexe,

menos proveito nem dano,

senam mala ou almofreixe

de sobrano.

Soes o numero de cento

sem minguar ũ soo ceitil,

soes b grego tamboril

da crasta deste convento.

Todas estas cousas sam,

nam queirais al entender,

senam qu' aperteis a mam

ao comer,

porque vos is a perder.

Tirai-vos de tanto vicio,

ilhargas, banhas d' atum,

fazendo algũ exercicio

pola menham em jejum.

E quando fordes gentar

carrilhos frescos d' empada,

será vosso começar

em vara d' Irlanda assada.

E depois no acabar,

por vacuar

a freima todo no fundo,

ũa posperna do mundo

comereis para atestar.

E por cear leevemente

pera entrardes em feiçam,

ũ berneo cozido quente

comereis alto seram.

E deveis-vos de guardar

de saltar e andar contento,

porque vos pode quebrar

a linha do franzimento.

E depois de bem comprida

esta receita que digo,

ficarei tam vosso amigo

como sam de minha vida,

mas nam ja para calar

o que sinto dessa graça

que tendes de fateiraça

com qu' estou par' estalar.

Cabo.

Quanto mais contempro, cuido

em vossa feiçam e talho,

pareceis-me santo entruido

de parto d' ũ gram chocalho.

Pareceis por aravia

grande covãao de vesugos

e tambem por algemia

asaado de confraria

posto em saia de verdugos.

Reposta de Garcia de Resende
polos consoantes a todas estas
trovas d' Afonso Valente, que
foi achar sem lhas ele man‑
dar. E vam fora da ordem
por conseguir as suas.

Honrado gozo petis,

redondo podengo curto,

fizestes trovas a furto

aas quaes responder vos quis.

Gato pintado em paarques

antre ussos e liõoes,

piam mui folam em xaques,

bebedinho que daa baques

e rezõoes.

Pusestes-vos nos polins     

para vos erguer do cham,

barril que veo dos chins,

coco, bala ou malatam;

soberbo benafaçam,

bacharelzinho d' Idanha

que caça com perdigam,

muito longe d' alemam

e d' Alemanha.

O que soube o Talamud

vos levantaria os foles;

soes feitor de cagaroles,

caimbador de Calecud.

Mulato desorelhado,

que traz para forno rama,

e de muito carregado

jaz na lama.

Tabaliam de tres mudas,

tregeitador de Roxia,

bombardeirinho d' Hungria,

sotil em cousas meudas;

mui rebinchado Çoleima,

que foi çoqueiro de ronda,

cousinha muito redonda

que per si mesmo se queima.

Quisestes dar vosso giro

em trovas por meter vira,

juis de pôr de mentira,

gaiteiro de tiroliro.

Quem vos bem oulhar em quadra,

veraa baixo fundamento,

tereis certo negra ladra,

solorgiam do convento.

Pareceis precurador

que viveo com Vasco Abul

e doudete ambrador

com lobeta aberta azul;

doutor çuro sem pessoa

como bacoro desposto,

de que eu nam tenho gosto

para dizer cousa boa.

Homenzinho de folar 

antre passaros mal feito,

pereceis malhãao no geito

e rebolar;

almotacee de Tomar,

vossa fantesia aduba

e é rezam qu' assi suba

quem trabalha por medrar.

Sobre rolda d' Almourol,

cos pees gotosos inchados,

fazeis de noite forol

òs coelhos e veados;

e dais em Tancos pousadas,

remais os batés das popas

e ahi vos tornais sopas

vós e outros com canadas.

Brigoso juiz de fora,

em saber gram malhadeiro,

fisico alcoviteiro,

pareceis honrado odreiro,

homem de cabo de nora.

Vós trazeis algũ esprito

que vos faz tanto bolir,

marrano, que quer pedir

com maas trovas per escrito.

Pareceis curto lagarto,

pintor manco d' ũa perna

e piparote ou quarto,

tinteiro, frasco ou lanterna;

desessegado trotam

em que nunca cavalgaram,

frade que de noit' acharam

e com putam amalharam

em trajos de refiam.

Creleguete gorriam

que com dia busca a cama

e com furia derrama

pichel de vinho no cham

por se fazer rebolam;

gajeiro que vai à orça,

que eu com couces emborco,

tereis latada de norça,

beocos de velho orco.

Gram ouriço de castanha,

moordomo de cogumelos,

pareceis pero d' Espanha,

homenzinho de patranha

de maa feiçam e maos pelos;

siseiro dos cotoselos,

presumis de mui agudo,

confeiteiro rebuludo,

sotil mestre d' abrir selos.

Por mui espantado m' houve

do trovar palenceano,

mas por serdes moucho oufão

me aprouve.

Preegador mui sedeudo

qu' alega sempr' o Ezcoto

e feiticeiro coloto

ou porteiro do estudo.

Malhadeirinho madraço

como cachorro ardido,

vendeirinho, gram tarraço,

prior que faz o rechaço

sobre chumaço,

cristam novo antremetido;

pucarinha de judia

em que tem roim especia

leelo que chamam Lucrecia,

odrete de malvasia.

Gozo morto em tormenta

ou redondo brebegam,

mal desposto foliam

em que todo povo atenta.

Em trovar nam tendes graça,

quereis tocar agudeza,

mas a vossa sotileza

é na taverna ou na praça.

Tod' eesta voss' obra feede

a lee-la, segundo vejo,

siseiro tomando em rede,

bucarejo.

Se vos oulho por defronte,

pareceis mui curto maço

ou gram caldeiram de fonte

e piloto do adarço.

Cangrejo que nam val nada

e quer soster presunçam,

pichel de mea canada,

bilhada, bola ou bulham;

jogral qu' anda em estaao

com berimbaao,

frade doudinho de França

por gram velhaco isento,

qu' a taverna é seu convento

per herança.

Rebolo qu' and' oo revés,

criareis em casa pombas,

odre volto do enves

com pegamaços e rombas;

escaravelho ou bisouro,

qu' em cousas çujas aferra,

pareceis sirgueiro mouro

que sabe pouco da guerra.

Pareceis pequeno feixe

ou roim trouxa de pano

e tecelam de Condeixe

marrano;

lecenceado sem tento

que presume de sotil,

sabereis pulhas cem mil,

trovais çujo e caçurrento.

Rabicurto sancristam,

qu' ensina moços a ler,

e ourivez beberram

que quer ser

alquemista sem saber;

eu vos acho maao endicio

em cuidardes que sois um

em trovar e noutro oficio

e em tudo sois nenhum.

Homenzinho polegar

que com más graças enfada,

judeu qu' ensina a dançar,

pardal com capa e espada.

D' arremedar e trovar

sois em Tomar

outro Roupeiro segundo

e cuidais que sois profundo,

nam tendo mais que palrar.

Pareceis ganso ipotente

ou cerceado tostam,

vereador de Benavente

e rendeiro de carvam.

Bem vos poder' eu matar

soo de puro corrimento

se nam fora por estar

em moores cousas atento.

Homem de curta medida,

recheado como figo,

potezinho que tem trigo

caagado tosam à brida,

trombeta do Lumiar

tam redondo como chaça

e pineu com grande maça

que se quer cũ grou matar.

Cabo.

Aljubeiro quartaludo

mais redondo que ũ alho,

falais, trovais, fazeis tudo

e em fim sois ũ bugalho;

juiz de caldeiraria,

qu' ensina a bailar texugos,

maçam que foi d' agomia

e mestre de geometria

ou batifolha de Burgos.

Trova sua a Afonso Valente,
no cabo destas.

Como gozo sorrateiro

cuidastes que por rasteiro

vos nam podia acertar;

ora olhai ess' apodar

e vereis se sam certeiro.

E quem fez tam mao pesar

de vós, estando em Tomar,

sem errar ũ consoante,

se vos tevera diante,

nunca podera acabar,

e guardar de mais trovar

d' hoje avante.

880

ESTAS QUARENTA E OITO

TROVAS FEZ GARCIA DE RESENDE,

POR MANDADO D' EL-REI NOSSO

SENHOR, PARA Ũ JOGO DE CARTAS

SE JUGAR NO SERAM DESTA

MANEIRA: EM CADA CARTA SUA

TROVA ESCRITA E SAM VINTE E

QUATRO DE DAMAS E VINTE E

QUATRO D' HOMEENS, S.: DOZE DE

LOUVOR E DOZE DE DESLOUVOR. E

BARALHADAS TODAS, HAM-DE TI-

­RAR ŨA CARTA EM NOME DE

FOÃA OU FOÃO E ENTAM LÊ-LA

ALTO. E QUEM ACERTAR O LOUVOR

IRAA BEM E QUEM TOMAR A DE

MAL RIRAM DELE. COMEÇAM LO-

­GO OS LOUVORES DAS DAMAS, OS

QUAES FEZ TODOS AA SENHORA

DONA JOANA DE MENDOÇA.

Nam sei que possa dizer

por vós que seja louvor,

que se tam ousado for,

perderei o entender.

Quando quero começar,

é cousa que nam tem cabo,

antes me quero calar

que cuidarem que vos gabo.

Fermosura tam sobeja

vos deu Deos cá antre nós

que nam sei quem vos bem veja

que se nam perca por vós.

Que nos deis sempre cuidado,

que nos mateis cada hora,

antes de vós desamado

qu' amado doutra senhora.

Pois sois sem comparaçam

de todas quantas naceram,

os que por vós se perderam

bem se perdem com rezam.

E pois nunca vimos tal       

nem creo que vio ninguem,

que façais a todos mal,

eu digo que fazeis bem.

Tendes tanta gentileza,

tanto aar na fala e rir,

que quem vos, senhora, vir,

nunca sentiraa tristeza.

Fostes no mundo nacida

com graças tam escolhidas

que soo por vos ter servida

daria duas mil vidas.

Vossas grandes perfeições,

manhas e desenvolturas

tiram todalas tristuras

que acham nos corações.

Vossas penas sam prazer,

vossos cuidados vitoria,

vosso mal é bem fazer

e vosso esquecer memoria.

Quem vos nam vio nam tem vida,

quem vos nam servio, senhora,

pode contar por perdida

toda sa vida teegora.

E quem vir tal fermosura

seja certo qu' ha-de ter,

enquanto viver, tristura,

juntos pesar e prazer.

Do que vós tendes de mais

podeis dar a todas parte

e em vós ficar que farte,

sem falecer o que dais.

Que todas queiram tomar

manhas, graça e parecer

de vós, nam pode minguar

quanto nelas mais crecer.

Dama de tal fermosura,

dama de tal merecer,

o que vive sem vos ver

nam teve boa ventura.

Para qu' ee vida sem vós?

Nem se pode chamar vida!

E se nam foreis nacida,

porque naceramos nós?

Quem vio nunca tal senhora,

quem vio nunca tal molher,

que poode dar, se quiser,

a morte e vida num hora?

Certo nam dirá ninguem

que se vio tal criatura

nem que tal desenvoltura

donzela teve nem tem!

Sois tam linda, tam airosa,

que muitos matais por fama,

ante vós nenhũa dama

nam se chamará fermosa,

porque quantas damas sam

juntas soo nũa fegura

nam teraa comparaçam

ante vossa fermosura.

Se no mundo se perdesse

quanto se pode cuidar,

tudo vós podereis dar

sem que nada falecesse,

porque o qu' em vós sobeja

é tanto qu' abastaria

a mil mundos e teria

cada ũa o que deseja.

Cabo.

Em saber e descriçam

em vertudes e bondade

e em toda perfeiçam,

tendes primor na verdade.

Sois tambem mui piadosa,

amiga de todo bem,

sobretudo a mais fermosa

do qu' ouvio nem vio ninguem.

De deslouvor das damas.

Vós nam sois muito manhosa

nem matais ninguem d' amores,

sois mais fea que fermosa,

tendes poucos servidores.

E o que tam enganado

for que lhe pareçais bem,

ha mester desenganado

de vós mesma ou d' alguem.

Na dança sois muito atada,

no bailo pouco geitosa,

em passear desairosa,

em falar desengraçada.

Sois ũ pouco ja taluda

de tempo pera casar

e nam sois muito aguda

em escrever nem falar.

Pois que por galantaria

nunca haveis de ser condessa,

o meu conselho seria

trabalhar por abadessa:

servireis Nosso Senhor,

tereis certo de comer,

se quiserdes servidor

nam haa laa de falecer.

Pareceis mal em janela,

em serãao muito pior,

sois mais fria e sem sabor

do que nunca vi donzela.

Vós fareis bem d' ensinar

as damas moças a ler,

nam a vestir nem falar,

pois o nam sabeis fazer.

Vós nam sois para senhora

nem menos para terceira,

se me crerdes desd' agora

pareceis jaa mal solteira.

E pois manhas para dama

nam tendes nem parecer,

casai-vos e pode ser

que ainda sereis ama.

Se d' alguem por amizade

vós fosseis desenganada

e vos falasse a verdade,

estarieis na pousada.

Para vós nam é serãao,

dança nem bailo mourisco,

em fea pondes o risco

mais alto que quantas sãao.

Em falar sois enxabida

e em rir desengraçada,

sois mui pouco antremetida,

em responder mui pejada.

Sois tambem desensoada

para dançar tordiam,

quiçá, se foreis vezada,

bailareis bailo vilam.

Nam vos acho nenhũ jeito

para nos matar d' amores,

o corpo nam é bem feito,

as manhas sam sensabores.

Nam sois das mais estimadas

nem menos das mais sabidas,

que muitas sam as chamadas

e poucas as escolhidas.

Nos, senhora, perdoai,

se mal digo, se mal faço

em dizer que vosso pai

fez mal trazer-vos oo paço.

Antes fora bom conselho

meter-vos no Salvador

ou casar-vos cũu doutor,

ainda que fora velho.

Falais com pedras na mão

como que fosseis fermosa

e sois mui presuntuosa

sobre ter maa condiçam.

Nam sois muito bem desposta

nem pareceis muito bem,

se convosco fala alguem,

a todos dais maa reposta.

Senhora, de meu conselho

por viverdes descansada

guardai-vos de ter espelho

nem vos entre na pousada;

que se virdes o que vemos,

direis que temos rezam

de rirmos e de dizermos

que tendes mui maa feiçam.

Cabo.

Sois muito maa de servir

e sois sempre ravinhosa,

nam quereis ver nem ouvir,

tambem tocais de raivosa;

sois soberba, sois infinta,

sois muito forte molher.

S' eu tomar papel e tinta

muito mais hei-d' escrever.

Louvor dos homens.

Sam tam gentil cortesãao,

que s' as cãas me nam vieram,

as damas todas souberam

que dou mate a quantos sãao.

Nam curo de vaidade,

pico-me de gracioso

tambem de falar verdade,

às vezes sam comichoso.

Sam mui negoceador,

falo sempre aa poridade,

tenho muita gravidade,

logo pareço senhor.

Sam sesudo e avisado

e sam gram vesitador

d' oficiaes ou privado,

tambem de qualquer doutor.

Sam mui brando e temperado

e por meus amigos faço,

ando mui acompanhado

da pousada tee ò paço.

A todos respondo bem,

sam gram motejador

e estaa-me bem bedem,

nam sendo cavalgador.

Antre todos cortesãaos

mand' enxergar e ouvir,

sei bem as damas servir,

bulo sempre co as mãaos.

Sam sotil, brando e delgado,

mais universal que todos

e sobr' isso tam honrado

que dou tres figas òs godos.

Sam mui solto no falar,

falo tudo quanto quero,

nam me daa nada de dar

más repostas e ser fero.

Sou na dança mui airoso

e bom musico tambem

e tambem sam gracioso,

mas é à custa d' alguem.

Que me vós vejais calar,

eu trago muito boom jogo,

ando tam perto do fogo

que m' hei nele de queimar.

E por ser muito descreto

me fazem tantos favores,

vai-me sempre bem d' amores,

porque me têm por secreto.

Eu sam mui antremetido

com as damas e senhores

e com todos mui valido

e ando sempre d' amores.

Trago as damas em revolta,

nam me sabem entender

e aa qu' ee mais desenvolta

eessa dou mais que fazer.

Eu sam mui gentil galante

d' idade par' o conselho

e que seja um pouco velho

sam nos amores costante.

E sam mui bom caçador

de toda sorte de caça,

sei bem rir a ũa graça,

sobr' isso bom dançador.

Sam bem desposto e fremoso

e que seja ũ pouco frio

sam em tudo mui manhoso

e em mim muito confio.

Sam das damas servidor,

em muitas cousas sabido,

danço bem, sam trovador

e mais sam muito provido.

Eu prezo-me d' escrever

e dar conselho nũus motos,

sei bem cantar e tanjer,

algũs sam em mim devotos.

E sam prezado das damas,

estimado dos senhores

e com todos meus favores

nam lhe tiro suas famas.

Eu sam muito d' estimar

e assi sam estimado,

porque sei bem apodar

e tambem ser apodado.

Eu sam muito gracioso,

despejado no terreiro,

quero-me fazer pomposo,

nunca falo eescudeiro.

Cabo.

Eu sei bem falar trocado

e dar d' olho oos derredor,

presumo d' andar dobrado,

falo cousas de primor.

Sam destarte zombador

e nam m' acode ninguem,

sam lonje de sensabor,

folgo de parecer bem.

De deslouvor.

Vós nam no tomeis por vós,

mas vós sois tam desairoso

que fareis de qualquer de nós

de sem sabor, gracioso.

De mula e de cavalo

no terreiro e no serãao

sois tam fora de feiçãao

qu' eu ja nam posso calá-lo.

Vós m' entendeis bem, senhor,

quando vestis a lobeta,

que pareceis provisor,

cavalgador da gineta.

Sois um pouco desazado

e nam muito desenvolto,

em manhas nam muito solto,

em dar que rir avezado.

Vossos dias jaa passaram,

logo pareceis passado,

sois das damas enjeitado

e nunca vos enjeitaram.

Sois mais pai que servidor,  

sois mais avô que galante,

por isso des hoje avante

deixai as damas, senhor.

Vós andais arrapiado,

nam sabemos s' ee de frio,

e sois jaa tam engelhado

qu' aas damas fazeis fastio.

Se o causa Almeirim

ou estes frios d' agora,

por mercê, crede-m' a mim,

nam enfadeis a senhora.

Que mostreis ser confiado,

nós outros sabemos bem

o qu' ha-de ter ou que tem

o galante namorado.

Sois ũ pouco repinchado,

bom para ver em jubam

e pareceis fradegam,

s' estais desatabiado.

Galante brasfamador

tendes feiçam de varrão,

tam lonje de sensabor

coma perto de malhãao.

Quem isto tomar por si

ha-de ser homem de paço

e jaa eu vejo d' aqui

alguem posto em embaraço.

Porque vindes oo serãao,

porque vos meteis na dança,

pois que pera cortesãao

andais mui longe de França?

Sois mui frio e sem sabor

e sabeis-vos mal vestir,

entam quereis presumir

de galante e dançador.

Vós sois longo e destripado

bem pera folgar de ver,

pareceis grou espantado,

bode morto por comer.

Se vos vier ter aa mão

esta carta por acerto,

quer esteis longe quer perto,

todos vos conhecerãao.

Galante sem se vestir,

namorado sem ter dama,

desavir, tornar a avir,

ele se ama e desama.

Sem ninguem, luita consigo,

ele caae, ele se aalça,

quem olhar isto que digo

veraa de que pee se calça.

Que vos eu pareça assi

nam vou laa nem faço mingua,

que nam solte muito a lingua,

outros piores ha aqui.

Eu nam sei porque nam sam

no paço muito valido,

pois que sam curto e corrido

e tenho gram presunçam.

Vós sois muito enfadonho

e falais sempre de siso

e amostrais-vos medonho

por nos tolherdes o riso.

Mando-vos eu meter medo,

mando-vos arenguear,

qu' haveis d' haver tard' ou cedo

que cous' ee desgravizar.

Cabo.

Vós andais amarlotado,

que sejais muito sabido,

e andeis atabiado,

andais sempre entanguido.

Haveis mester enxugado

ao sol e muito quente

ou muito bem apodado

por dar desprazer aa gente.

DEO GRACIAS.

Acabou-se de empremir o Cancioneiro Geeral, com previlegio do muito alto e muito poderoso Rei Dom Manuel nosso Senhor. Que nenhũa pessoa o possa empremir nem trova que nele vaa, sob pena de dozentos cruzados e mais perder todolos volumes que fizer. Nem menos o poderam trazer de fora do reino a vender, ahinda que lá fosse feito, sô a mesma pena atras escrita. Foi ordenado e emendado por Garcia de Reesende, fidalgo da casa d' El-Rei nosso Senhor e escrivam da fazenda do Principe. Começou-se em Almeirim e acabou-se na muito nobre e sempre leal cidade de Lixboa, per Hermam de Campos, alemam, bombardeiro d' El-Rei nosso Senhor e empremidor, aos XXVIII dias de Setembro da era de Nosso Senhor Jesu Cristo de mil e quinhentos e XVI anos.