Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Ditos e feitos, de Horácio Nunes


Texto-fonte:

Horácio Nunes Pires, Bastidores. Teatro original,

Florianópolis: Gabinete Tipográfico Catarinense, 1898.

DITOS E FEITOS

Personagens

Major Anacleto da Trindade                45 anos

Pantaleão Peroba                              50 anos

Juca                                               25 anos

Serafim                                          35 anos

Antônio                                           30 anos

Romualdo                                        20 anos

Quincas                                           28 anos

José Caolho (personagem mudo)         40 anos

Manduca                                         18 anos

Rosalina                                          17 anos

Rita                                                60 anos

Convidados — Rapazes

AÇÃO — NA ROÇA — 1881

ATO I

O CANDIDATO

Sala da roça, simples, mas bem arranjada. — Ao fundo e à esquerda, portas. — À direita, no primeiro plano, uma janela; no segundo plano, uma porta — Entre a porta e a janela, um aparador com espelho e dois vasos com flores. — À esquerda, entre portas, outro aparador com vasos e um lampião com o competente “abat-jour”. — Sofá e cadeiras. — Junto do sofá uma cadeira de braços; ao lado oposto da cena, outra cadeira igual. — É dia.

CENA I

Juca e Rosalina

(Juca, sentado no sofá, lê um livro. — Rosalina, que principia a cantar, dentro, termina a última parte em cena, entrando pela esquerda alta. — Apenas começa o canto, Juca fecha o livro e fica como embevecido.)

ROSALINA

(N. 1)

Amor! amor!

O amor é riso, é canto,

aurora, aroma flor,

o mais divino encanto,

o jubilo maior!

Amor! amor!

Amor! amor!

O sol das alegrias,

da vida o são calor,

o céu das harmonias,

o riso, o canto, a flor!

amor! amor!

Alma que vive sem ter amores,

sem ter os gozos da uma paixão,

é fria e triste — bem como as flores

já desfolhadas — no pó do chão!

Amor afasta todas as dores,

mata as tristezas da solidão,

traz dos prazeres as puras flores,

enche de galas o coração!

Amor! amor!

O amor é riso, é canto,

aurora, aroma, flor,

o mais divino encanto,

o jubilo maior!

Amor! amor!

Amor! amor!

O sol das alegrias,

da vida o são calor,

o céu das harmonias,

o riso, o canto, a flor!

Amor! amor!

JUCA. (tomando-lhe as mãos, com ardor.) Rosalina!

ROSALINA; Achas bonita a minha canção de amor?

JUCA. Acho-a divina... divina como tu!

ROSALINA. (coquete.) Obrigada. Lisonjeiro... como sempre!

JUCA.

(N. 2. Recitativo.)

Tu não és mulher, não! — Esplêndido composto

de perfumes sutis e pétalas de rosas,

de alvoradas de maio e luz de céus de agosto,

dos ardores do sol e pérolas custosas.

Um dia apareceste, e as lúcidas auroras,

as pérolas do mal e os célicos perfumes,

o sol, o céu, a luz, as vibrações sonoras,

curvaram-se a teus pés, — frementes de ciúmes...

Do teu berço gazil — conjunto primoroso

de suspiros de amor e azul vago do espaço, -

surgiste, como surge um astro vaporoso

de nuvens d’ouro e luz no lúcido regaço.

Cresceste, como cresce a flor púrpura e bela,

cheia de amor e seiva e seduções e festa,

somo cresce com a treva o brilho de uma estrela,

como cresce com a noite a sombra da floresta...

Tu não és mulher, não! — Esplêndido composto

de perfumes sutis e pétalas de rosas,

de alvoradas de maio e luz de céus de agosto,

dos ardores do sol e pérolas custosas.

ROSALINA. (fitando-o, como que receosa.) Sabes?... Há momentos em que tenho medo de ti!

JUCA. (sorrindo.) Por quê?

ROSALINA. Porque, quando me falas, como agora, há tanto ardor nas tuas palavras, tanto brilho nos teus olhos, tanta veemência na tua voz, que te transfiguras, que deixas de ser um homem, para ser uma visão de sonho, uma idealidade produzida pela febre, um ser encantado, que me atrai, que me deslumbra, que me leva nas asas douradas de um desejo sem limites a terras maravilhosas, cheias de sol, de flores, de canções extraordinárias, de amores suavíssimos, que não nos é dado gozar na terra!... Por que é que me olhar assim e me falas com tamanho ardor?

JUCA. Porque tenho os olhos cheios da tua beleza e o coração cheio da tua imagem... Quando te contemplo assim, parece-me que estou sonhando... parece-me que a minha alma desprende-se de tudo quanto é terreno, que voa às regiões infinitas e que adeja serenamente nos espaços translúcidos de uma felicidade suprema!

ROSALINA. (sentando-se no sofá e tomando o livro que Juca deixara.) Ainda há pouco, li isso mesmo...

JUCA. Onde?

ROSALINA. Nos teus olhos... e neste livro.

JUCA. (sentando-se na cadeira junto do sofá.) Já houve quem afirmasse que os poetas não dizem o que sentem; que nas suas estrofes, mesmo as mais inspiradas, as mais sublimes, não é o coração que fala, não é a alma que canta, mas unicamente a ambição do renome, o desejo da glória...

ROSALINA. E não é?

JUCA. Não. Caluniaram os pobres cisnes que, mesmo agonizantes, cantam, como canta o cisne moribundo das ribas do (?), o amor, a saudade, as tristezas, as próprias agonias, que hão de um dia matá-los.

ROSALINA. Ah!

JUCA. (tomando o livro.) Se a verdade já foi alguma vez dita na terra, ela está aqui neste livro, inteiramente divina na sua pureza celestial. A poesia é a mais perfeita e a mais ampla expressão do sentimento. Tentem embora sufocá-la, tentem destruí-la para sempre os materialistas que tudo encaram pelo lado mau, ela triunfará sempre de todos os ataques, porque anima-a o sopro divino, porque vem do céu toda a sua força... Já um grande homem disse que a poesia formulada e medida, — a poesia em verso, — não tardaria a desaparecer. Esse homem foi Eugenio Pelletan. E outro homem — um poeta — respondeu: — “Eu sento-me pacífico à beira da corrente dos destinos; contemplo o que me passa por diante, e com o que ainda lá vem de longe não me altero. Se eu for vivo quando já se não fizerem versos, deitar-me-ei no loureiral dos cisnes que foram e consolar-me-ei facilmente ouvindo-lhes os cantares — milagrosos cantares — cujos ecos, em lugar de esmorecerem com o tempo e com a distância, se reforçam e se eternizam”. — Esse poeta foi Antônio Feliciano de Castilho.

ROSALINA. Conheço. Já li os “Ciúmes do Bardo.” (Recita.)

“Mulher pura e fiel não há nem houve

Raça infame de víboras dolosas,

Pudesse uma só não contê-las todas

E o piloto fosse eu”... Ingrato e sem piedade para com as mulheres!

JUCA. Se ele não te conhecia! Uma só vez que te ouvisse, estou certo que o seu modo de pensar e de sentir sofreria uma transformação completa.

ROSALINA. Por quê?

JUCA. Porque havia de amar-te, amar-te louca, perdidamente como eu te amo!

ROSALINA. Mas disseste há pouco que a poesia é a mais perfeita e a mais ampla expressão do sentimento, e que se a verdade já foi alguma vez dita na terra, ela está neste livro...

JUCA. Sim...

ROSALINA. Mas quando escreveste este livro, não me conhecias, nunca me tinhas visto talvez...

JUCA. E o que prova isso?

ROSALINA. Prova que hoje estás aqui, a meu lado, que és meu noivo, quase meu marido, e que no entretanto todos estes versos foram escritos para outra, cuja imagem enchia-te então a alma, inspirando-te com a sua beleza e os seus encantos...

JUCA. Estás enganada, minha querida.

ROSALINA. O amor que me tens jurado não é o primeiro amor da tua vida...

JUCA. Ainda um engano. És o meu primeiro amor, posso jurar-te. Nunca senti o meu coração palpitar por mulher alguma, como palpita por ti, nunca a minha alma recolheu-se estática na contemplação de outra mulher, como, muda, mas ardente, contempla os teus encantos.

ROSALINA. (sorrindo.) Poesia!

JUCA. Sim: poesia, porque a poesia é a verdade, e eu estou dizendo a verdade. O poeta, minha querida, é um ser privilegiado, extraordinário. A sua vida é um sonho que não tem fim. Vive entre os homens, e não os vê; atravessa as multidões, e não lhes ouve o tumulto... O seu pensamento paira, além, nos espaços, voa em todas as direções, adeja no infinito do idealismo, em demanda de uma visão encantada... Como todos os poetas, criei na minha imaginação ardente, na minha alma sonhadora, no meu coração de moço, uma mulher para o meu amor, a quem eu consagrasse todo o meu sentir, todo o meu pensar, todas as minhas paixões... uma mulher bela, meiga, carinhosa, que me compreendesse e que me amasse também... Nos bailes, nos teatros, nos passeios, nas igrejas, fitava todas as mulheres, procurava ler-lhes nos olhos, no rosto, um sinal, um traço, que me dissesse: — “Eu sou a realidade do teu sonho, sou a encarnação da tua visão: — ama-me!” — Mas aqueles olhos nada me diziam, aquelas fisionomias passavam ante o meu olhar frios e mudos como o mármore, e o meu coração continuava a palpitar, — calmo e sereno como antes...

ROSALINA. Peregrino, não em busca da terra santa, mas de uma quimera, — viveste viúvo de um amor verdadeiro, até que vieste encontrar-me aqui... (Rindo.) É poético!

JUCA. Encontrei-te, e encontrei em ti a realização do meu ideal, a corporização do meu sonho... Amei-te!

ROSALINA. (em tom de dúvida.) E assim fica provado que a poesia é — a expressão da verdade?

JUCA. Sem dúvida. Se eu, para escrever estes versos, idealizei uma mulher, se tu és a encarnação viva, palpitante, bela do meu ideal, este livro foi escrito para ti, porque foste tu que me inspiraste...

ROSALINA. (rindo.) A conclusão pode ser lógica; mas...

JUCA. Não duvides. És o meu primeiro amor. Acredita que, se por uma fatalidade qualquer, se uma desgraça inesperada viesse a quebrar os laços que nos unem, o meu sofrimento seria tão grande, como é grande a minha paixão por ti...

ROSALINA. Deixe estar, meu senhor. Deus é bom e não permitirá que suceda essa desgraça... Como já disse uma vez, e, com fraqueza, repito, fui volúvel, fui caprichosa, fui, às vezes, leviana mesmo... Mas a tua presença transformou-me completamente... Hoje, se me amas, não plantaste em canteiro estéreo as rosas do teu amor. Amo-te também, amo-te e tenho orgulho deste amor, que é para mim a maior, a única felicidade da minha vida...

JUCA. Oh! fala! A tua voz fala-me ao coração como uma harmonia dulcíssima... como uma música do céu!... Fala! fala sempre!

CENA II

Os mesmos e Major

MAJOR. (consigo.) Para deputado geral — Panta... não, Pantaleão, não... Anacleto da Trindade — major da invicta guarda nacional.

ROSALINA. Então, papai, como passou a noite?... Deitou-se tão tarde...

MAJOR. Deus te abençoe... Bom dia “seu” Juca. Como vai isso?

JUCA. Perfeitamente. Nem podia deixar de assim ser desde que foi aqui que vim encontrar a felicidade.

MAJOR. Pois sim... compreendo... Mas eu já não posso dizer o mesmo. Em primeiro lugar, a cabala para a minha eleição tem-me dado água pela barba; depois, a ausência do Pantaleão tem-me feito pensar seriamente... Três dias para ir à cidade buscar os epitáfios!...

ROSALINA. Talvez que os cartões não estejam prontos...

MAJOR. É uma razão, é. Mas o diabo é estar a escola fechada há três dias... sobretudo agora, que o Pantaleão tem dois alunos... O inspetor das escolas, o Zé Caolho, pode dar uma parte contra o Pantaleão, e fazê-lo passar um mau bocado...

JUCA. Não tenha receio, major. Quem faz os ofícios do Zé Caolho é o Pantaleão, porque o inspetor mal e mal assina o nome com quatro pernas de aranha. Já vê, pois, que o Pantaleão está garantido... E a propósito do Zé Caolho, informe-me de uma coisa: o homem é mudo?

MAJOR. Não. Por quê?

JUCA. Porque desde que aqui estou ainda não o ouvi dizer uma única palavra. Para cumprimentar, sim, é um “barra” tão “barra” como o Pantaleão para fazer discursos...

MAJOR. Não é mudo, não. É acanhado. Diante de gente não abre o bico, nem que o rachem de meio a meio... Mas é muito atencioso, muito cortês.

ROSALINA. E muito aborrecido com os seus cumprimentos.

MAJOR. Pois não sei mesmo a que atribuir esta demora do Pantaleão. Para dizer que o rapaz está doente... Mas si tivesse adoecido, escrevia-me logo... Ouvi dizer que estava aberto o recrutamento... Ora, não me fossem catrafilar o Pantaleão para soldado!

JUCA. Ora, qual! O pantaleão já não está em idade de ser soldado.

ROSALINA. É muito velho já, papai. Não tenha cuidado. O que pode suceder é o senhor Pantaleão arder de paixão por alguma moça da cidade... E ele que é tão sensível!

MAJOR. Pode muito bem ser assim. Por que não?... O Pantaleão é velhusco, mas ainda tem sangue no olho, ainda se entusiasma à vista de uma moça bonita! Houve tempo em que pensei que aquilo era bananeira que já tinha dado cacho; mas depois que o vi formalizar-se pela filha do Zé Caolho e por ti, convenci-me de que nas veias daquele mariola ainda corre sangue...

JUCA. Debaixo dos gelos há vulcões...

MAJOR. Mas é infeliz nos amores... Coitado! Pois não merece aquele caiporismo... Instruído, talentoso, elegante, profundo mesmo... O meu amigo, que já o conhece, sabe-lhe a força. A minha opinião a respeito dele é inabalável: — o Pantaleão é um poço!

JUCA. De que, major?

MAJOR. (admirado.) De quê?... Ora, essa! É um poço de “saberância”! Convença-se, “seu” Juca! o Pantaleão, em outra parte, ia longe, ia muito longe... Mas meteu-se aqui, a ensinar rapazes, quando os tem, e a dormir, quando não tem rapazes para ensinar, perdendo-se assim um homem extraordinário!

ROSALINA. É exato, papai. O senhor Pantaleão dorme mais do que ensina, porque há meses em que não vai à escola um só aluno.

JUCA. Um dia destes, passei pela escola, e lá o vi... adivinham fazendo o que...

MAJOR. À janela, aquecendo-se ao sol, como um lagarto. É o costume dele.

JUCA. Nada. Vi-o armado com uma cana, a matar traçar nas paredes. Quanto a alunos, se fosse preciso fazer uma cataplasma de um aluno do Pantaleão para um doente... o doente morria por falta de remédio.

MAJOR. Tem agora dois alunos: o filho do João Pelota e o sobrinho da Rita Barbada, o Manduca. Ouvi dizer que também vai entrar o afilhado do Manoel Carocha... Diz o Pantaleão que o sobrinho da Rita é um talento!...

JUCA. Um poço, major, um poço!

MAJOR. Nada... Há de ser mais tarde, se não abandonar os estudos com o Pantaleão.

ROSALINA. Mas já podia ser também um poço... não tão grande como o senhor Pantaleão, mas... um pocinho!

JUCA. É exato: um pocinho!

MAJOR. O “seu” Juca sabe que o Pantaleão tem obrigação de ensinar somente primeiras letras aos rapazes; mas verificando que o rapazola...

ROSALINA. (rindo.) É um pocinho...

MAJOR. Ora bolas! Não me cortes o discurso!... Como ia dizendo: verificando que o rapazola é um talento, principiou a ensinar-lhe história e geografia...

JUCA. E ele que sabe história como gente!

MAJOR. E sabe, lá isso sabe... Diz ele que o pequeno é uma coisa admirável!... que aprende com a mesma facilidade com que um burro carrega uma carga de laranjas!

JUCA. (rindo.) Bravo!

ROSALINA. (ao mesmo tempo.) Muito bem!

MAJOR. Por que é que vocês riem-se?

ROSALINA. Pela bonita comparação do senhor Pantaleão.

MAJOR. Está tão entusiasmado o homem, que pretende levar brevemente o Manduca à cidade para apresentá-lo ao diretor geral como raridade... (Incomodado.) E no entretanto, a tia, a Rita Barbada — uma estúpida, um animal de saias — quer tirar o rapaz da escola do Pantaleão para mandá-lo aprender a tocar gaita!... Ora, “seu” Juca, isto é uma miséria! Um rapaz que ainda pode vir a fazer um figurão na política!...

ROSALINA. Oh! papai, pois aquele amarelo pode fazer figura nenhuma!

MAJOR. Essa é boa! Tu não entendes d’isto, rapariga... Mete-te com os teus livros de verso e de histórias da carochinha, e deixa a política para nós... Pois, mesmo assim amarelo, pode fazer um figurão, sim, senhora, se souber ser velhaco... Eu, que aqui estou, meu amigo, fui feito alferes da invicta guarda nacional pelos conservadores, tenente pelos liberais, capitão pelos conservadores e major pelos liberais... Entretanto, não vai pensar que tenho vivido a mudar de partido. Nada! Firme como uma rocha: governista sempre!

JUCA. Sim, hem?... Mas confesso que não posso compreender...

MAJOR. Oh! homem de Deus! Fui sempre governista convicto! Os governos mudavam, é verdade, com a subida dos partidos; mas eu não mudava: era sempre do governo!

JUCA. Ah! compreendo agora. Eram os governos que viravam casaca...

MAJOR. Mas eu — firme, sempre firme como uma estaca!

JUCA. Mas como é hoje oposicionista?

MAJOR. Eu lhe conto. Um dia, já aborrecido de ser major, pedi ao partido que então dominava que me arranjasse o posto de coronel comandante superior. Responderam-me os chefes da capital que sentiam muito não poder servir-me, porque já estavam comprometidos com outro que tinha incontestáveis direitos ao lugar... Zanguei-me, e quis ir para o “Jornal do Comércio” dizer meia dúzia de desaforos; mas o Pantaleão, a quem tinha encarregado de escrever a descompostura, lembrou-me outro meio: — “Seja oposicionista, major” — disse-me ele. Aceitei o conselho, que me economizou pelo menos dois mil réis do anúncio no “Jornal”, e...

JUCA. E fez-se oposicionista?

MAJOR. É verdade. (Indo ao fundo.) E o demônio do Pantaleão, que não aparece! Esta demora já me vai dando cuidado... Preciso distribuir sem perda de tempo os epitáfios... (Consigo.) — “Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da invicta guarda nacional.”- (Outro tom.) Ah! meu futuro genro, vou fazer um papelão!

JUCA. E conta com o triunfo na eleição?

MAJOR. Se conto! Segundo os cálculos do Pantaleão, — e o Pantaleão em cálculos é um...

ROSALINA. (que desde o começo da cena tem ido sentar-se no sofá, a ler.) É um poço, papai.

MAJOR. É exato, é um poço... Pois — segundo os cálculos do Pantaleão, — devo vencer por força.

JUCA. Mas, major, compreende perfeitamente que estando eu para fazer parte de sua família, devo interessar-me pelos seus negócios, e, sobretudo, pelo seu nome...

MAJOR. Certamente, não há dúvida.

JUCA. Pois, na minha opinião, o major deve desistir da sua candidatura.

MAJOR. (recuando.) Desistir? (Assoando-se com força.) Desistir!

JUCA. Sem dúvida, porque mais vale uma retirada honrada do que uma derrota.

MAJOR. (tornando a assoar-se.) Uma derrota!

JUCA. Com franqueza, major: o resultado da sua eleição é uma derrota. Não vá atrás das presas do senhor Pantaleão, e desiste enquanto é tempo.

MAJOR. (zangado.) Ora, meu amigo... ora... ora, bola! Então pensa que eu nasci ontem!... (Passeando.) Desistir! Nunca!... Em primeiro lugar, seria um fiasco... em segundo lugar, a despesa dos epitáfios está feita, e não é tão pequena!

JUCA. Mas major, atenda...

ROSALINA. (indo a ele.) Mas, papai, ouça...

MAJOR. (sempre zangado.) Uma eleição tão bem encaminhada!... Se o Pantaleão não tivesse levado os apontamentos, eu lhe provava que aquilo é — pá — pu — terra, que são favas contadas!... Forte teima!...

ROSALINA. Está bom, papai... Não se incomode...

JUCA. (à parte.) Não há meio de dissuadi-lo. É uma mania!

MAJOR. Querem que lhes diga uma coisa? Vão passear, e deixem-me cá com a minha eleição! A minha eleição não é da conta de ninguém!...

JUCA. Faça o que entender. Cumpri um dever de amizade sincera, aconselhando-o. Não quis aceitar o meu conselho. É o mesmo. Lavo as minhas mãos. Se lhe suceder uma infelicidade, — o que é certo, — não poderá dizer que não houve quem lhe abrisse os olhos... Com licença... Aceito o seu conselho: — vou passear. (Sai.)

CENA III

Major e Rosalina

ROSALINA. (que tem indo à janela, desce, afagando o pai.) Papaizinho...

MAJOR. (suspendendo o passeio, zangado.) O que temos ainda?

ROSALINA. Desista, papai, desista...

MAJOR. Ora, já se viu uma birra igual! Parece que estão todos resolvidos a incomodar-me!...

ROSALINA. Mas, papai, lembre-se que os cálculos do senhor Pantaleão podem falhar...

MAJOR. Falharem os cálculos do Pantaleão... do Pantaleão Peroba!... do primeiro calculista do mundo!...

ROSALINA. Lembre-se que os votantes com quem o papai conta podem votar no outro candidato, no candidato do governo, e que o papai não obtenha voto nenhum... Que vergonha será, meu papaizinho!

MAJOR. Ora, que espiga! que espiga!

ROSALINA. Ainda se o papai fosse apresentado pelo governo, podíamos estar descansados, porque tenho ouvido dizer que os candidatos do governo ganham sempre, embora percam... Mas não é... Vai arriscar-se em um jogo, cujas probabilidades são todas contra si...

MAJOR. Oh! senhores, que espiga!... Estou quase rebentando! De repente, rebento!... Pois se o Pantaleão garante, e quando o Pantaleão garante, duvidar da sua palavra é o mesmo que duvidar da infalibilidade do papa!... As afirmações do Pantaleão são sentenças!... “Magister dixit”... diz ele!...

ROSALINA. Ainda é tempo, papai... Diga que não quer ser mais deputado... que resolveu desistir... que não quer incomodar-se...

MAJOR. (furioso.) Oh! rapariga!

ROSALINA. Papaizinho!

MAJOR. Já! Pire-se pra dentro!

ROSALINA. Papai!

MAJOR. Pra dentro! pra dentro!... (Passeando.) Estou danado! estou furioso! Estou possesso!... (Parando.) A primeira vez que me vieres com essas cantigas de desistência da minha eleição, arrumo-te um puxão de orelhas tão bonito, que te arranco os dois abanos!... Salta pra dentro, já!...

ROSALINA. (à parte.) Não há meio de convencê-lo! (Sai.)

CENA IV

MAJOR. (passeando.) Desistir!... Mas é muito boa!... Este meu genro, se não é idiota, é... é... besta!... Bem queria eu que a Rosalina casasse com o Pantaleão. Aquilo, sim, é que é um homem!... (Outro tom, parando.) “Para deputado geral — Anacleto Pantaleão da guarda nacional Peroba da Trindade...” Não, não é isto...

CENA V

Major e Serafim

SERAFIM. (aparecendo à porta, receoso.) Pronto, “sô manjor”.

MAJOR. Venha cá.

SERAFIM. (encostando à porta, mordendo a aba do chapéu.) Estou bem, “sô manjor”... (À parte.) “Exe”!

MAJOR. Entre, homem; não tenha medo. Não mandei chamá-lo para ir-lhe ao pelego, mas para sermos bons amigos. O que lá vai — lá vai. Você foi um pouco atrevido, foi; mas perdôo-lhe, tomando em consideração a sua estupidez... Vamos: não tenha medo, e entre.

SERAFIM. (como acima.) Estou bem, “sô manjor”... (À parte.) “Exe”!

MAJOR. Mau! mau! Principia você como da outra vez. Se lhe disse que não quero esmurrá-lo, conquanto tenha razões de sobre para isso... Mas sou bom homem, e não guardo raiva a ninguém... Desça e sente-se. Vamos!

SERAFIM. (como acima.) “Exe”! O “sô manjor” está me enganando. Quer que eu entre pra me pegar à unha... Mas eu não sou “ova”!...

MAJOR. Ora, que diabo de homem! Oh! Serafim, você é maluco? Se eu quisesse meter-lhe o “tira-teimas”, já tinha tido muitas ocasiões de fazê-lo...

SERAFIM. Mas o “sô manjor” não me agarra, não?

MAJOR. Não agarro, não; descanse.

SERAFIM. “Mas porém,” palavrinha?

MAJOR. (incomodado.) Palavrinha, sim.

SERAFIM. (receoso, descendo pelo lado oposto ao em que está o major.) Ora, vamos a ver se o “sô manjor” tem palavra...

MAJOR. (à parte.) É um animal esta besta! Mas como preciso do voto... (Muito amável.) Sente-se, Serafim, sente-se... Olhe que eu sou seu amigo... De cá o seu chapéu... (Toma-lhe, depois de uma pequena resistência, e atira-o no chão, para o fundo.) Então, meu amigo, tome uma cadeira...

SERAFIM. (à parte.) Ou este canalha precisa de mim, ou quer me fazer alguma bandalheira!

MAJOR. (pondo-lhe as mãos nos ombros.) Sem cerimônia... a casa é sua... Sem cerimônia... sem cerimônia...

SERAFIM. (obrigado pela pressão das mãos do major, cai sentado no chão.) Ai! ai! “sô manjor”!

MAJOR. (levantando-o.) Oh! meu amigo... Desculpe... Mas a culpa foi sua... (Leva-o para uma cadeira.) Agora, sim. Abanque-se.

SERAFIM. (apalpando o assento, senta-se na beira da cadeira.) Puxa palmada levei eu!...

MAJOR. (sentando-se.) Agora tratemos do nosso negócio. Como o amigo Serafim não ignora, a eleição está nos batendo à porta, e vai ser uma eleição danadinha... vai haver um reboliço dos meus pecados.

SERAFIM. É, “sô manjor”, a “inleição” está chegando. (À parte.) Eu não disse? O cachorro precisa de mim!

MAJOR. Eu sou candidato, como sabe...

SERAFIM. Sei, sei...

MAJOR. O meu amigo é votante, — e um bom votante, diga-se a verdade. — E como eu: — firme como uma rocha em suas opiniões políticas...

SERAFIM. (à parte.) Ora o bobo!

MAJOR. A minha eleição, segundo as contas do Pantaleão, está ganha. Entretanto, como o seguro morreu de velho, não quero deixar de trabalhar para o maior brilhantismo do meu triunfo. (Tira do bolso dois enormes cigarros de palha e oferece um.) Experimente o meu fumo. Serafim, experimente o meu fumo. Afianço-lhe que é bom.

SERAFIM. (aceitando.) Obrigado, “sô manjor”. (Risca um fósforo, acende o cigarro e saboreia uma fumaça.) Puxa papa-terra bom!

MAJOR. (depois de acender o cigarro.) Quer uma pingazinha, Serafim?... Nada de acanhamento...

SERAFIM. Os pois, “sô manjor”, os pois...

MAJOR. Pois quando lhe apetecer, peça.

SERAFIM. Pois o seu fumo é um veludo, “sô manjor”...

MAJOR. Hei de dar-lhe um pedaço... Mas, como ia dizendo, a minha eleição está garantida e o governo vai desta vez levar um rombaço do diabo... (Pausa.) Estou certo que o amigo ainda não se comprometeu com ninguém...

SERAFIM. (à parte.) É agora! (Alto.) Já, “sô manjor”, já me “compremeti”. O “se” Zé Caolho me falou “trás antonte” pra eu votar com ele, e eu disse que sim.

MAJOR. Oh! Serafim! mas que asneira fez você! Por que não veio falar comigo, homem de Deus?...

SERAFIM. (tirando uma fumaça.) Eu não sabia, “sô manjor”... (À parte.) Hei de passar-te o pé, cara de todos os bichos!

MAJOR. Mas, diga-me: o meu amigo não se compromete de graça, sim... quero dizer... firme, como é, em suas opiniões políticas, não podia comprometer-se de graça...

SERAFIM. De graça? (Cruzando a perna e tirando uma grande fumaça.) “Exe”! O “sô” Zé Caolho queria que eu fosse de graça; “mas porém”, eu que não sou burro, sacudi as orelhas e fui andando. Ele, “antão”, vendo que não arranjava nada assim, deu um berro por mim, e eu voltei... (Tira uma fumaça.) “Antão” ele “prispiou” a contar-me umas histórias, a me dizer que eu fazia mal, que o “arrecrutamento” estava aberto, e que o governo não era de brincadeiras...

MAJOR. Que patife é o tal Zé Caolho! que canalha, hem, Serafim? E aquele traste a mostrar-se muito meu amigo! E depois?

SERAFIM. Os pois, “prispiou” a me meter medo, a falar na praça, no xadrez, na cadeia...

MAJOR. (passeando, zangado.) Ah! canalha!... E depois? e depois?

SERAFIM. Os pois?... (Fumando.) Mais nada.

MAJOR. Não. Houve por força mais alguma coisa. Não se acanhe, Serafim, diga.

SERAFIM. Pois “antão”, lá vai. Os pois, vendo que a coisa não pegava, meteu-me na mão...

MAJOR. O que foi que ele lhe meteu na mão, Serafim?

SERAFIM. Duas “pelegas” de dois.

MAJOR. Ah! sovina! Animar-se a dar quatro mil réis! (Passeando.) Então o Zé Caolho comprou-lhe a consciência por quatro mil réis!

SERAFIM. A consciência, não, “sô manjor”... O voto...

MAJOR. É a mesma coisa. Pois, meu amigo, eu sou mais generoso do que o Zé Caolho: dou-lhe cinco mil e quinhentos...

SERAFIM. Mas se eu não posso, “sô manjor”... se seu já vendi a fazendo ao “sô” Zé...

MAJOR. Homem, isso não quer dizer nada. Vende a mim também.

SERAFIM. “Mas porém”, como?

MAJOR. Ora, como! Você é tolo, Serafim!

SERAFIM. (tirando uma grande fumaça e soprando-a para o ar.) Tolo! “exe”!

MAJOR. Nada mais simples; guarde os quatro mil réis do Caolho, receba os meus cinco mil e quinhentos e vote comigo. Isto é um negócio como outro qualquer... (Pausa.) Então, está dito, hem?

SERAFIM. Mas, “sô manjor”, e se o outro descobre a bandalheira?

MAJOR. Mas isto não é bandalheira, Serafim! É até uma coisa muita natural. Há muitos votantes de opiniões firmes e convicções inabaláveis, como você, que procedem da mesma forma: votam em todos os partidos, recebem dinheiro de todos os lados e vendem a consciência por qualquer preço... E, depois, o Caolho não pode descobrir...

SERAFIM. “Mas porém”...

MAJOR. Olhe: você recebe a chapa dele e a minha; mete a dele no bolso do paletó e a minha no bolso da calça, e vai para e igreja. Enquanto espera pela sua vez, vai mostrando a todos a do Zé Caolho. Quando a mesa gritar pelo seu nome, você mete a outra vez a do Zé no bolso do paletó, tira disfarçadamente a minha do bolso da calça, e zás! dentro da urna com ela... E aí está tudo arranjado.

SERAFIM. Pois está dito. Venham os cinco e quinhas, “sô manjor”.

MAJOR. Já?... (À parte.) O animal aceitava até dois mil réis!

SERAFIM. Pois “antão”! Negócios, negócios, amigos à parte. O “sô manjor” mesmo disse que isto era um negócio.

MAJOR. Tem razão, tem... (À parte.) O tratante vendia o voto até por quatro patacas! (Dando dinheiro.) Tome lá... Mas cuidado... não vá enganar-me, não vá roer-me a corda, entende, Serafim?

SERAFIM. (guardando o dinheiro.) Oh! “sô manjor”! Era preciso que eu fosse um canalha!...

MAJOR. (à parte.) E ainda julga que é um homem de bem, o patife!

SERAFIM. Obrigada, “sô manjor”. Descanse, que o meu votinho é seu... (À parte.) Se não aparecer outro que me dê seis “min” réis, voto com o Zé Caolho!

MAJOR. Logo ou amanhã hei de falar com os outros rapazes. Estou certo que todos eles hão de seguir os passos do Serafim...

SERAFIM. Eu também falo com eles, “sô manjor”.

MAJOR. Também? (Abraçando-o.) Oh! amigo Serafim!

SERAFIM. Ai! que me quebra a espinha! Ai!...

MAJOR. Pois vá, meu amigo, vá conversar com os outros, o Antônio, o Quincas, o Romualdinho...

SERAFIM. (à parte.) Eu vou, mas é convida a rapaziada pra uma bisca a vintém na venda do Piolho... (Alto.) Já vou... Até logo... Viva o “sô manjor”!... (À parte apanhando chapéu.) “Exe”! (Sai.)

CENA VI

MAJOR. Mais cinco mil e quinhentos para corda do sino!... E por falar em sino: esta demora do Pantaleão já está me assustando. Embora minha candidatura esteja correndo normalmente, qualquer coisa me assusta... E no entretanto, não tenho razão, porque estou aqui, estou na câmara dos deputados, estando na câmara dos deputados, estou no senado; estando no senado, estou na pasta da guerra!... Ah! que tapona no Zé Caolho!... Tenho vontade de rir, de cantar, de dançar!... A minha pele parece que é pequena para conter-me!... Deputado! senador! ministro!... Que papelão! que papelão!... Já hei de levar d’aqui o meu primeiro discurso escrito pelo Pantaleão. Há de ser coisa de encher o olho... pois não! O Pantaleão tem dedo e tem talento... Mas que alegria! que alegria!... (Dança, cantarolando.)

PANTALEÃO. (ao longe.) Oh! major! major!

MAJOR. (prestando atenção.) Hem?... Parece que me chamaram...

PANTALEÃO. (mais perto.) Oh! major! major!

MAJOR. (alegre.) É o Pantaleão! Finalmente! Chegou o Pantaleão! (Corre ao fundo.)

CENA VII

Major e Pantaleão

PANTALEÃO. (precipitando com um embrulho na mão e com grande entusiasmo.)

(N. 3)

Eis-me cá! eis-me cá!

O grande Pantaleão

cá está! cá está!...

trazendo aqui a eleição,

a eleição,

a eleição

do maior Anacleto da Trindade,

a sapiente, esdrúxula entidade

da freguesia

das Três pessoas!

Os cartões! os cartões! os cartões

de visita

aqui ‘stão;

ilustre senhor

deputado major!

MAJOR. (abraçando-o.) Meu amado Pantaleão! sábio dos sábios, rei da sabedoria! A tua demora, preclaro e dileto amigo, já estava me dando cruéis receios. Julguei que tivesses adoecido, que te tivessem recrutado para soldado... Ah! Pantaleão, quando se ama como eu te amo... sim, porque tu és o meu braço direito, o meu braço esquerdo, a minha perna esquerda, a minha perna direita, e sobretudo — a minha cabeça!

PANTALEÃO. (senta-se no sofá, deixa o embrulho ao lado, e passa o lenço pela fronte.) Ah! major, não me foi possível vir mais cedo. Em primeiro lugar, fui à tipografia, pelos cartões...

MAJOR. Epitáfios, Pantaleão, epitáfios.

PANTALEÃO. Chego e faço a encomenda — “Quando ficam prontos?” — perguntei! — “Daqui a três dias.” — respondeu-me o dono da quitanda. — “Três dias! — exclamei — Nada; é muito tempo; quero-os para amanhã sem falta.” — “Pois bem, amanhã estarão prontos; venha amanhã.” — Quando dei o letreiro, o sujeito olhou para mim, depois de o ler, e fez assim uma cara de quem quer dar uma risada. Encalistrei a princípio; mas levantei-me em seguida, tomei uma posição majestosa e perguntei: — “Por que é que o senhor ri-se?” — Quem me mandou fazer tal pergunta? O maldito levou as mãos à barriga, e teve um frouxo...

MAJOR. (admirado.) Um frouxo?

PANTALEÃO. De riso, major, de riso. Perdi a tramontana. Enterrei o chapéu até ao pescoço, agarrei o letreiro e embarafustei para a porta; mas o danado, ainda gago de riso, pegou-me pelo cangote, gritando: — “Não se incomode... Vou explicar-lhe o motivo porque estou rindo”... –

MAJOR. E explicou?

PANTALEÃO. Explicou. Disse-me ele que aqui há tempos atrás... (Assoa-se.)

MAJOR. (impaciente.) Adiante, adiante. Guarda o nariz para depois.

PANTALEÃO. Tinha feito uns cartões com um letreiro quase igual, e que o resultado foi o candidato ganhar...

MAJOR. O quê? o quê?

PANTALEÃO. Uma derrota, major, uma derrota.

MAJOR. (dando um pulo.) Oh! diabo!

PANTALEÃO. Mas não se aflija. O nosso caso é outro, e o seu triunfo é infalível como a lua nova.

MAJOR. (rindo.) He! He! He!

PANTALEÃO. Bom. Mas a minha demora não foi somente por causa dos cartões... foi também por causa do sino...

MAJOR. Do sino?

PANTALEÃO. Refleti que o major fazia um papelão se oferecesse um sino novo à nossa igreja, e pus-me à procura do sino...

MAJOR. Oh! Pantaleão, você é um gênio! Mas, um sino deve custar carinho...

PANTALEÃO. Nem por isso. Achei um quase de graça, em segunda mão. E que sino, major! que sino! Quatro palmos de boca e badalo deste tamanho! (Mostra o tamanho com as mãos.) Hei de repicá-lo no dia do seu triunfo! Tem umas vezes de anjo!... Parece a menina Rosalina quando canta, ou o Juca...

MAJOR. Não me fale na Rosalina, Pantaleão! não me fale no Juca!

PANTALEÃO. (admirado.) Então, por quê?... (À parte.) Dar-se-á o caso que durante a minha ausência os dois pombinhos... É duro de roer, é, e o major tem razão para estar escamado...

MAJOR. Pois os desgraçados não queriam ainda há pouco que eu desistisse da minha candidatura, Pantaleão?

PANTALEÃO. (dando um salto.) O que me diz, homem?

MAJOR. E teimara... Mas pus-me teso e não desisti.

PANTALEÃO. Perfeitamente. Uma candidatura tão bem aceita, com tantas probabilidades de um triunfo esplêndido! (Outro tom.) Quer que lhe diga uma coisa, major? A menina Rosalina e o Juca que vão dormir, se estão com sono! Desistir! Nunca, major!

MAJOR. (trágico.) Nunca! nunca! nunca!

PANTALEÃO. O sino vem aí atrás. Amanhã ou depois havemos de colocá-lo e atirar fora o sino velho, aquela vergonha sem beiços! Agora, major, vou mostrar-lhe os cartões. (Abre o embrulho, desatando vagarosamente os cordões que o atam.)

MAJOR. (consigo.) Para deputado geral — Anacleto Pantaleão... não, não é isto...

PANTALEÃO. (dando um cartão.) Veja isto, major, veja isto, e diga-me se é possível ser derrotado quem se apresenta candidato com semelhante luxo!

MAJOR. Mas, Pantaleão, o outro foi...

PANTALEÃO. Ora! O outro foi; mas o major não há de ser... Digo-lhe eu! Veja...

MAJOR. (lendo com dificuldade.) “Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da...” (Outro tom, zangado.) Está errado, Pantaleão, está errado!

PANTALEÃO. Não é possível, major. Leia bem.

MAJOR. Oh! Pantaleão, basta que eu diga que está errado, para estar errado! Então eu não sei ler? (Lê com dificuldade.) “Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da guarda nacional”.

PANTALEÃO. (triunfante.) E então?

MAJOR. E então? Onde é que está aqui a palavra — “invicta” -, Pantaleão?

PANTALEÃO. (vencido.) Desculpe, major. Escapuliu-me involuntariamente...

MAJOR. Pois não devia ter escapulido. Você devia ter mais consideração pela minha pessoa! Esta foi mesmo uma dos diabos! E eu que fazia questão da palavra — “invicta”?

PANTALEÃO. Oh! major, que todas as dificuldades fossem como essa. Eu escreverei em todos os cartões a palavra — “invicta” — e está salva a pátria!

MAJOR. Mas o Pantaleão tem uma letra medonha e vai borrar os papelinhos que estão tão limpos...

PANTALEÃO. Então peça ao Juca que escreva.

MAJOR. (contemplando um momento o cartão.) Mas, Pantaleão, a palavra — “invicta” — é indispensável?

PANTALEÃO. Não, major. É perfeitamente dispensável. Até a minha opinião é que essa palavra aí constitui um pleonasmo.

MAJOR. O que é isso, Pantaleão?

PANTALEÃO. É uma figura, major, uma figura chinesa... (Declamando.) Invicta guarda nacional! Ora! Basta dizer guarda nacional — para estar subentendido que é invicta... sobretudo a nossa!

MAJOR. Lá isso é exato. Pois fica abolida a palavra — “invicta” -, Pantaleão!

CENA VIII

Os mesmos e Serafim

SERAFIM. “Sô manjor”, já falei “ca” rapaziada.

MAJOR. Você é um — “quera”, — Serafim! E eles querem?

SERAFIM. Ora, se querem! (Baixo.) Mas cada um quer três paus, menos nem um x.

MAJOR. (à parte.) Isto é o diabo! A coisa já me vai entrando muito pelos cobres... Mas, que remédio!... (Baixo.) E quantos são?

SERAFIM. É o Quincas, o Antônio, o Romualdo e o Zé.

MAJOR. (à parte.) Upa! Três vezes quatro... (Contando pelos dedos sempre à parte.) Doze mil réis!... Desta vez fico em mangas de camisa!... (Baixo, dando dinheiro.) Tome lá; mas olho vivo com os “mecos”... Que não vão me fazer alguma...

SERAFIM. Agora, “exe”! Ficam por minha conta... (À parte.) Cinco e quinhas com mais quatro e mais doze — vinte e um e quinhentão! Vou comprar um chapéu novo e uns sapatos envernizados! (Alto.) Ah! “sô manjor”, que dia vai ser o da sua “inleição”!... que festança! que pagode! E viva o “sô manjor”!

PANTALEÃO. (que tem estado, desde a entrada de Serafim a contemplar um cartão e a gesticular, levanta-se como impelido por uma mola.) Viva!

MAJOR. (que desde a sua última fala, passeia; resmoneando e a contar pelos dedos, ao mesmo tempo.) Viva!

SERAFIM. Viva o “sô Espantaleão”!

MAJOR. Viva!

PANTALEÃO. (ao mesmo tempo, agitando o lenço.) Viva! viva! Viva eu!

SERAFIM. E eu também!

PANTALEÃO

(N. 4)

Ai! que dia!

MAJOR (falado)

Mas que dia!

SERAFIM

Este dia...

PANTALEÃO

Da eleição!

MAJOR (falado)

Que triunfo!

SERAFIM (à parte)

Já ‘stou rico!

PANTALEÃO

Que glória!

MAJOR (falado)

Pantaleão

PANTALEÃO

Que rumor na freguesia!

que festas! que barulhão!

SERAFIM (à parte)

Já tenho os cobres no bolso...

MAJOR (falado)

Meu rico Pantaleão!

TODOS

Ai! que dia! mas que dia

este dia da eleição!

que rumor na freguesia!

que festas! que barulhão!

ai! que dia! mas que dia,

este dia da eleição!

CENA IX

Os mesmos, Rosalina, Juca, Quincas, Antônio e Romualdo

ROSALINA. Que cantoria é esta, papai?

PANTALEÃO. Nada, menina. Estamos festejando antecipadamente o triunfo do papai!

JUCA. (à parte.) Que idiotas!

QUINCAS. (baixo a Serafim.) Escorregou?

ANTÔNIO. (idem, ao mesmo tempo.) Escorregou?

ROMUALDO. (idem, ao mesmo tempo.) Escorregou?

SERAFIM. (baixo.) Caluda! Temos cobre... Dez “tustas” pra cada um.

ROMUALDO. (baixo.) É pouco... Ai! ai!

QUINCAS. (baixo, espirrando e limpando o nariz nos dedos.) Atchi! Eu quero mais.

ANTÔNIO. (baixo.) E eu também.

SERAFIM. (baixo.) Ele disse que amanhã dá mais. Por hoje, só dez “tustas”.

PANTALEÃO. (indo ao grupo, baixo.) Oh! rapazes, vocês vão salvar-me de um grande aperto. O diretor geral comunicou-me que depois de amanhã vem visitar a escola. Como vocês sabem, eu só tenho dois alunos — o filho do João Pelota e o sobrinho da Rita Barbada. Ora, será uma vergonha para mim que o diretor encontre somente dois tramanzolas na escola. O que eu quero é que vocês e mais alguns amigos, no dia em que o homem chegar, façam-me o favor de ir servir de meus alunos por uma ou duas horas. Lá o serem já taludes e meio barbados, não quer dizer nada...

JUCA. (que tem estado a conversar com o major e Rosalina, rindo.) O que é isso, senhor Pantaleão?...

PANTALEÃO. (tomando-o à parte.) O que quer, meu amigo? É o único meio que tenho de salvar quase trinta anos de bons e reais serviços.

JUCA. Está bom, está bom.

PANTALEÃO. Mas escute... (conversam.)

SERAFIM. (à parte, muito satisfeito.) Tenho cobre...

PANTALEÃO. (indo ao grupo dos rapazes.) O que resolvera?

SERAFIM. (baixo.) O “sô Espantaleão” dá um “quinhentão” a cada um?

PANTALEÃO. (baixo.) Dou... Que remédio! (À parte.) É o diabo! Mas se não fizer um sacrifício, estou apertado...

SERAFIM. Viva o “sô Espantaleão”!

JUCA. Então, major, insiste?

ROSALINA. Papai...

MAJOR. Ora, não me amolem! (Aos outros.) Meus amigos, viva o deputado Anacleto da Trindade!

TODOS. Viva!

JUCA. Meu sogro...

ROSALINA. Papaizinho...

PANTALEÃO. (tomando o major à parte.) Duro com eles, major, duro com eles! Não desista!

MAJOR. Nunca! (Solene.) É uma questão de honra! Hei de trabalhar sem descanso, e hei de triunfar! Meus amigos, tenhamos coragem uma vez e vençamos o inimigo que quer suplantar-me nesta eleição!

CORO

(N. 5)

Sejamos, pois, valentes,

pra triunfar

dos inimigos que querem

nos suplantar

nesta eleição,

nesta eleição,

e que, traidores nos ferem

com a traição, com a traição!

(Tanto nos viva como no coro Rosalina e Juca não entram.)

FIM DO 1º ATO

ATO II

A ESCOLA

Sala caiada, mas suja de borrões de tinta em vários pontos das paredes. — Uma mesa pequena, ordinária. — Duas classes velhas. — Quatro cadeiras velhas. — Um quadro negro com um pedaço de giz no rebordo e uma esponja amarrada com um barbante. — Sobre a mesa, uma campainha grande, livros velhos, papéis, canetas e um tinteiro de barro. — Encostada à mesa, ou sobre ela, uma cauda de foguete. — É dia.

CENA I

PANTALEÃO. (sentado, com os braços sobre a mesa, servindo-lhe de travesseiro, ressona. — Sonhando.) Silêncio, meninos... não façam barulho... (Ronca.) Olha essa lição, João Pelota... (Ronca.) Napoleão I foi o último bispo do Rio de Janeiro... e Napoleão III foi o primeiro subdelegado da freguesia da Lagoa... (Ronca.) Limpa esse nariz, João Pelota... Não sejas porco, rapaz! A porcaria é uma virtude... menos no nariz!... (Ronca.) A nossa freguesia está situada tão perto do polo norte, que qualquer um de nós, estendendo a mão, pode tocar... (Ressonando, estende a mão, pega uma campainha e toca com força. — Acorda, sobressaltado, vai a cair da carteira, mas segura-se à mesa, deixando ir ao chão a campainha e olhando admirado para todos os lados. — Pausa.) Parece que estive a dormir. Parece, não: é certo que passei por uma soneca. (Levanta-se e apanha a campainha, que coloca na mesa.) E o casa é que o diretor geral podia apanhar-me com o focinho na botija... Focinho — é um modo de dizer, porque focinho têm os porcos irracionais... os racionais, como eu, têm nariz! (Tomando a cauda do foguete e sentando-se.) Hoje vou ter um triunfo! O Manduca, o sobrinho da Rita Barbada, vai por o diretor de boca aberta!... Se eu já não sei o que hei de ensinar-lhe de história e geografia... O rapaz decora como um papagaio, e o que lhe entra... fica! (Indo à porta.) Mas o diabo é que já devem ser nove horas, e a rapaziada não aparece... (Desce.) Estão talvez por aí a jogar os cunhos ou o pião, mas hão de vir... (Senta-se. Pausa.) Mas que logro, e que ideia a minha de arranjar alunos a cinco tostões cada um!... É puxadinho, é; mas, afinal, quem paga é o major; porque pedi-lhe uns cobres para a compra de votos... Não compro os votos, e pago aos rapazes... (Erguendo-se.) Se eu não tivesse recebido a comunicação da visita do diretor estava frito! O homem apresentava-se aqui, e só encontrava na escola a mim, as traças e as moscas, as traças, sobretudo, porque as traças andam aqui as pencas! (Reparando para a parede.) Lá vai uma subindo... (Dando com a cauda do foguete.) Anda, sem vergonha! Então isto aqui é nosso!... (Reparando.) Olha outra... uma... duas... três... quatro... Chi!... (Dando com o foguete a torto e a direito.) Não é à toa, que os livros e os papéis estão numa desgraça! (Sentando-se.) Mas, como ia dizendo: depois de cinco ou seis meses de uma ausência absoluta de frequência, matricularam-se — à força das minhas choradeiras — o filho do João Pelota e o sobrinho da Rita Barbada, — o Manduca, um talento! Entretanto, eu não podia apresentar ao diretor dois alunos somente, quando o regulamento exige que o mínimo da frequência seja dez... Para salvar-me do apuro, comprei o Serafim, o Romualdo e mais alguns para virem hoje fazer número. Lá o terem já algumas barbicas, não quer dizer nada, porque assim como nasceu aqui há tempos uma criança com orelhas de burro... — e por sinal que toda a freguesia disse que era o meu retrato... podiam eles também ter nascido barbados... Isto é da natureza! (Afugentando uma mosca.) Sai-te, diabo! Moscas e traças, traçar e moscas, — eis o que tenho aqui com fartura! (Reparando para a parede.) Lá vai outra... (Dando com a frecha nas paredes.) Se eu tivesse alunos, como tenho traças, estava bem aviado! (Continuando a bater com a frecha.) Fora! fora! fora! (Descendo, alegre.) Mas o logro ao diretor! Esta é exatamente como a história dos cartões de visita: — só lembraria ao diabo ou aos franceses... E o direto há de engolir a coisa sem achar uma espinha!... (Põe a frecha no ombro, à guisa de espingarda.)

(N. 6)

Ai! que logro! que trapaça!

que pedacinho de truz!

que pagode! que chalaça!

que velhacada! Jesus!

Com certeza — tenho graça:

num momento — catrapus:

o Peroba a perna passa

no visitante! Jesus!

Que troça! que troça!

que grande chalaça!

que logro! que logro!

que graça! que graça!

CENA II

Pantaleão e Rita

RITA. (da porta, falando cantando.) Oh! “sô Espantaleão”?...

PANTALEÃO. (sem olhar, à parte.) É a Rita Barbada — a tia do Manduquinha... Esta mulher é pior do que um catarro crônico!

RITA. (da porta.) Oh! “Sô Espantaleão”?...

PANTALEÃO. (à parte.) Já sei. Vem com a ladainha do costume. Quer tirar o sobrinho da escola para mandá-lo aprender a tocar gaita. É uma besta esta mulher!

RITA. (gritando.) Oh! “sô Espantaleão”?... Está surdo, “home”?

PANTALEÃO. (à parte.) Se eu pudesse transformar-se em mosca ou traça, era uma pechincha!... (Reparando para a parede.) Lá vai outra... (Começa de novo a bater com a frecha na parede e a gritar.) Saia! Já d’aqui pra fora, lambisgoia! Xô, carocha!

RITA. (segurando-o por trás, pelos ombros, e sacudindo-o.) Oh! “home” do diabo, “vancê” está maluco!

PANTALEÃO. (fingindo-se admirado de a ver.) Ah! é a “sinhá” Rita?... Era por causa das traças... Aqui há muita traça...

RITA. Cara de traça me parece “vancê”, “sô Espantaleão”! Há um bandão de tempo que estou “le” chamando, e “vancê”... muita... fingindo que não “oivia, sô marreco”!

PANTALEÃO. (à parte.) Marreco! Ainda se me chamasse galo, vá lá; mas marreco!... (Alto.) Não ouvi, tia Rita.

RITA. Tia, não; veja lá como fala! Tia é negra velha!

PANTALEÃO. (à parte.) É preciso levá-la por bem, se não, lá se me vai o Manduquinha pela água abaixo... (Alto.) Está bom, está bom... não se zangue, D. Ritinha... Nem sabe a alegria que tenho quando a vejo aparecer cá em casa... Ora, a D. Ritinha!... (À parte.) É um homem de saias... um perfeito homem de saias!

RITA. Pois, “sô Espantaleão”, eu vim cá...

PANTALEÃO. Mas sente-se, D. Ritinha... Ora, a D. Ritinha de pé!... (Dando uma cadeira.) Sente-se.

RITA. (sentando-se.) “Brigada”.

PANTALEÃO. A D. Ritinha!... A senhora quando vem cá é o mesmo que o sol me entrando pela porta... porque a senhora é um sol... Quem a vir, não acredita... mas ó: basta que eu diga que é...

RITA. Pois, “sô Espantaleão”...

PANTALEÃO. (à parte.) Sou até capaz de pedi-la em casamento, para que ela não leve o rapaz! (Alto, com atitude de galã.) Ah! D. Ritinha, se soubesse...

RITA. (à parte, desconfiada.) Este “home” não está “bão” hoje, não... (Alto.) Pois, “sô Espantaleão”...

PANTALEÃO. Se soubesse, D. Ritinha!... Mas é sempre assim... é sempre assim... A senhora não sabe... Se soubesse...

RITA. (desconfiada.) O que, “home”?

PANTALEÃO. Não sabe... Está visto que não sabe... E sofra um homem... e passe dias em claro e noites sem comer e... Ah! D. Ritinha! D. Ritinha! A senhora é uma ingrata!...

RITA. (à parte.) Coitadinho! Parece que está meio virado da bola!

PANTALEÃO. É uma ingrata, sim... uma grande ingrata! Pois não compreendeu ainda... (À parte.) Que purgante!... (Alto.) Não adivinhou... (À parte.) Já estou com o estômago como se tivesse tomado um litro de jalapa!... Mas o Manduquinha fica na escola, fica... (Alto.) Ainda não verificou...

RITA. (desconfiada.) Mas o que, “home”? Que “diacho”!

PANTALEÃO. Ah! coração de gelo! ah! alma de esterco! Não! alma de esterco, não!... (À parte.) Estou quase vomitando, mas o Manduquinha fica!

RITA. (à parte, desconfiada.) Ficou maluco, ficou... Aquele juizinho não está “bão”...

PANTALEÃO. (dramático.) Não compreendes os grandes sentimentos, os amores loucos, as enormes paixões que inspira com a sua beleza!... (À parte, querendo vomitar.) Vomito, decididamente, vomito!

RITA. (admirada.) “Hâim”?... Que é que “vancê” está dizendo?...

PANTALEÃO. (caindo de joelhos.) Digo... digo que te amo!... que morro por ti!... (À parte.) O Manduca fica...

RITA. (levantando-se assustada e recuando.) “Zesus”!... Chegue pra lá “home”!... Que coisa!

PANTALEÃO. (tomando-lhe a mão.) Ritinha da minha alma!

RITA. (recuando.) “Vancê” está doido, “home”!... “Vancê” não está “bão”, não... “Ué”!

PANTALEÃO. Mas eu te amo!...

RITA. (pasma.) Ama! (Outro tom.) Oh! “sô Espantaleão, vancê” não tem “vregonha”?

PANTALEÃO. Mas, Ritinha, o amor nunca teve vergonha, e eu amo-a... amo-a doidamente!

RITA. Ora, já se viu pra o que deu o diacho do velho! (Afastando-se.) Chegue pra lá, “home”!...

PANTALEÃO. Vem cá, minha Vênus... meu sol... minha lua... meu cometa de cauda... (Que abraçá-la.)

RITA. (afastando-se.) “Zesus”! Santa Maria!... Este “home” comeu cobra!

PANTALEÃO. (seguindo-o.) Quero casar contigo, Ritinha!

RITA. (parando, admirada.) Ca...

PANTALEÃO. Casar!

RITA. Oh! “home, vancê” está xingando a gente!

PANTALEÃO. Por quê?

RITA. Porquê... porquê... (Com um grande suspiro, virando os olhos para Pantaleão.) Ai! ai!

PANTALEÃO. Por que suspiras, minha pomba rola?...

RITA. Mas o “sô Espantaleão” não está maluco, não?

PANTALEÃO. Maluco! Ora, essa! Estou mas é furioso por si, Ritinha... (À parte, querendo vomitar.) Parece que tomei jalapa!

RITA. Mas “qué memo casá” comigo?

PANTALEÃO. Pois não: é o meu maior desejo... Ah! Ritinha, do nosso casamento depende... (À parte.) Depende que o Manduquinha fique na escola até amanhã... (Alto.) Ritinha, você acha-me bonito?

RITA. “Home”, eu não sei “pregá” mentira. “Vancê” é feio como a “gueixa” do Zé Caolho!

PANTALEÃO. (empertigando-se, zangado.) Oh! mulher, essas coisas pensam-se, mas não se dizem! Feio como a “gueixa” do Zé Caolho! Olha a franqueza!

RITA. Mas, “memo” assim, eu casava com “vancê”.

PANTALEÃO. (alegre.) Casava? Pois está dito. Com franqueza: a Rita parece mais um camaleão do que uma mulher... mas eu adoro-a mesmo assim. Então somos noivinhos, heim? (À parte.) Eu bem disse que o Manduca ficava. Amanhã digo à velha que estava brincando; e mando-a à fava! Ora, a coruja!

RITA. E quando há de “sê” o “casóro”?

PANTALEÃO. Veremos isso depois... (À parte.) Que pressa!

RITA. Quanto mais depressa, “mió”; se “fô amanhã”, bem “bão”.

PANTALEÃO. (À parte.) E esta! (Alto.) Amanhã, não; para a semana...

RITA. Chi! Leva muito tempo!... Eu quero já, já!

PANTALEÃO. (à parte.) Ora, o diabo da lesma! (Alto.) Já, já, não é possível, Ritinha... mas depois de amanhã, sem falta.

RITA. (batendo palmas.) Está dito! “Dispois” de “aminhã”!

PANTALEÃO. Agora, que o nosso casamento está assentado de pedra e cal, e que só aguardamos, — com uma impaciência fácil de compreender, atentes o verdor dos nossos anos e os nossos encantos pessoais, — o momento psicológico da nossa feliz união, diga-me, adorada Ritinha, o que veio fazer ao humilde tugúrio d’esse pobre pastor arcádico...

RITA. Eu vim pra “tirá” o Manduca da escola...

PANTALEÃO. Mas, para quê? O Manduca é um talento... No pouco tempo que o tenho cá, já sabe tanto como eu! Aquele rapaz, com mais um ano de escola, vai longe...

RITA. “A mode” que é assim... Porém eu queria que ele aprendesse...

PANTALEÃO. A tocar gaita, já sei.

RITA. Pra “ganhá” dinheiro nos “fandango”...

PANTALEÃO. Mas tocar gaita não é uma profissão... É um divertimento; mas não é uma profissão. Deixe o pequeno comigo, deixe-o, e verá que coisa sai d’ali...

RITA. Pois sim... Mas eu queria que ele aprendesse...

PANTALEÃO. A tocar gaita? Pois que aprenda, mas nas horas vagas, sem prejuízo das lições.

RITA. Pois “antão”... (Revirando os olhos para Pantaleão.) Ai! ai! O Manduca fica... Eu queria que ele aprendesse...

PANTALEÃO. A tocar gaita, já sei...

RITA. É. Porém “vancê qué” que fique, eu deixo “ficá”... (Estendendo a mão.) “Antão”, até loguinho, “mô” noivo... Logo vá “tomá” um caneco de café lá em casa, sim?...

PANTALEÃO. Vou, vou. Pois então! Um caneco de café, em amável palestra com a minha Ritinha... (À parte.) É um vomitório de poaia!

RITA. “Antão”, vai?

PANTALEÃO. Vou, vou... (Apertando-lhe a mão.) Até logo, minha noivinha. (À parte.) Pôr um óculo!

RITA. Adeus, “mô” anjo!

PANTALEÃO. Adeus, minha “anja”!

RITA. (da porta.) Adeus, “mô” cachorrinho! (Envia beijos.)

PANTALEÃO. Adeus, minha gatinha! (Envia beijos, — Rita sai.)

CENA III

PANTALEÃO. (dando uma risada.) Ora, o diabo da velha!... Pois a carocha não está pensando que o casamento é sério!... (Pausa.) E se quando eu lhe disser que aquilo era troça, ela lembrar-se de fazer aí um barulho dos meus pecados! É muito capaz de pôr-se a gritar que eu sou um perverso, um desalmado, um sedutor! Aquilo é um homem de saias, um brutamonte! Antes dez purgantes e uma má hora de morte, do que um casamento com aquela ratazana!... Por minha causa, não deixará ela de enterrar-se vestida de branco! (Outro tom.) Nada! É preciso procurar um meio de terminar o negócio sem escândalo, porque se ela fizer escândalo, estou perdido... O Zé Caolho dá uma parte, e rua “me fecit”! (Indo matar traças com a frecha.) Ora, o diabo da velha!... Que espiga!... (Afugentando uma mosca.) Oh! maldita!... (Perseguindo a mosca.) Espera, que não me escapas... espera! (Vai matar a mosca e dá com a mão no rosto. Encolhendo-se.) Ai! que foi mesmo no olho com toda a força!... (Esfrega os olhos. — Pausa.) E os rapazes que não aparecem... Ora, não vão aqueles canalhas fazer-me alguma tratantada! São muito capazes de deixar-me a ver navios, porque todos eles são uns patifes de marca!... O Romualdinho, por exemplo... O Romualdinho é um monturo de maus costumes. Quem não o conhece, que o compre... (Vai matar traças.)

CENA IV

Pantaleão e Manduca

MANDUCA. (com um livro velho debaixo do braço.) Bom dia, “sô professô”.

PANTALEÃO. (sem deixar as traças.) Bom dia, Manduca. Por que é que se demorou tanto hoje?

MANDUCA. Eu estava aprendendo...

PANTALEÃO. A tocar gaita, já sei. Toque de noite, Manduquinha, toque de noite, que não faz mal; mas de dia, nunca! O dia é para as lições da escola. Sabe o menino que vou apresentá-lo hoje ao diretor?

MANDUCA. Ao “diretô”?

PANTALEÃO. Sim. O menino vai hoje fazer um examezinho de história e geografia, para pôr o homem de boca aberta. Mas não se acanhe, Manduquinha. Quando eu fizer a pergunta, responda logo sem hesitar, ferindo bem os rr e os ss das palavras...

MANDUCA. Eu “há de falá direto”, sim, “senhô”... (Senta-se na classe e abre o livro.)

PANTALEÃO. Manduquinha, leia um pouco o seu Manual de Achilles Monteverde... (Pronuncia com — x — o — ch de Achilles.)

MANDUCA. (lendo com custo.) “A palavra “zigreja” segundo a “linguage” comum, é o “memo” que o “lugá” ou “edifiço” destinado ao “curto” divino; porém, na sua “acepição” mais “gerá”, é uma “sociadade” estabelecida por “Zisus” Cristo, a “qua”, governada por certa “otoridade”, e “especiamente” pelo “papa”...

PANTALEÃO. (matando traças.) Papá, não, Manduquinha: papa...

MANDUCA. (lendo.) “Papa ou sumo pontífice”... (Carrega na penúltima sílaba da palavra — pontífice.)

PANTALEÃO. Pontífice, menino, pontífice... (Indo à porta.) O menino já lê como o major Anacleto, e no entretanto, ainda nem alferes o fizeram! (Falando para fora.) Olá! Então passa de largo? Também preciso do senhor hoje. Entre um bocadinho.

CENA V

Os mesmos e Juca

JUCA. (apertando-lhe a mão.) Como passou? (Descem.)

PANTALEÃO. Assim, assim... Sabe o meu amigo que é hoje o grande dia da visita do diretor?

JUCA. Mas onde estão os alunos que contratou para hoje?

PANTALEÃO. (atrapalhado.) Não sei... A ausência deles já está me dando pensão.

JUCA. Pois sei eu. Estão na encruzilhada, na venda do Chico Piolho, jogando a bisca...

PANTALEÃO. Na venda do Chico Piolho? Isto é uma imoralidade, meu amigo, é um desaforo! Se fosse verdadeiramente meus alunos, eu sei o que fazia: rachava-os a bolos e...

JUCA. Mas como não são seus alunos, não os racha... Deixe-os lá, senhor Pantaleão, deixe-os lá... (Outro tom.) Sabe que foi uma felicidade para mim encontrar hoje a escola aberta e o senhor na escola?... Temos um negócio de suma importância...

MANDUCA. (lendo.) “O sumo pontífice”...

PANTALEÃO. Um negócio!... Sentemo-nos. Manduca, vá continuando a ler, mas baixinho, para não nos atrapalhar o negócio... (A Juca.) Sentemo-nos. (Sentam-se.) Estão às suas ordens.

JUCA. É incontestável — e tenho muitas vezes notado — que o senhor Pantaleão exerce uma influência ilimitada sobre meu futuro sogro...

PANTALEÃO. (vaidoso.) Qual! Não é tanto assim...

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

PANTALEÃO. Mais baixo, Manduquinha, mais baixo. (A Juca.) O major tem a delicadeza de ouvir-me sempre em todas as questões e de seguir os meus conselhos...

JUCA. Nada de modéstias, senhor Pantaleão. Meu sogro não dá um espirro nem outra qualquer coisa, sem consultá-lo primeiramente. O senhor é o seu “fac totum”...

PANTALEÃO. (à parte.) Fac totum! Que bonita palavra! Não sei o que significa, mas hei de aproveitá-la!

JUCA. Para o major, o senhor Pantaleão é o mesmo que um cachorro para um cego... salva a comparação do cachorro. O senhor leva-o para onde quer e faz dele o que lhe parece...

PANTALEÃO. (vaidoso.) Não é tanto assim, não é tanto assim, não, senhor... (À parte.) Fac totum!

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

PANTALEÃO. Mais baixo, Manduquinha, mais baixo.

JUCA. Pois, senhor Pantaleão, venho fazer-lhe um pedido, e espero que o senhor não deixará de pôr em campo toda a sua influência para satisfazê-lo...

PANTALEÃO. De que se trata, meu amigo?

JUCA. Trata-se da eleição.

PANTALEÃO. Da eleição?... Dar-se-á o caso que o meu amigo também queira ser candidato?

JUCA. (sorrindo.) Nada... Ainda tenho bastante juízo para querer fazer papéis tristes... (Outro tom.) O senhor não ignora que, para que um candidato adverso ao governo, triunfe em uma eleição, é indispensável que possua muitos e fortíssimos elementos, que tenha um nome feito, que disponha de vasta influência e que tenha fortuna para gastar...

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

PANTALEÃO. Mais baixo, menino, mais baixo... Oh Manduquinha, guarda a língua no bolso!... (A Juca.) E então?

JUCA. Ora, meu sogro não está em tais condições. O seu nome é conhecido somente aqui na freguesia, a sua influência estende-se apenas sobre meia dúzia de votantes e a sua fortuna é demasiado modesta. Assim, pois, a sua candidatura é uma cartada muito perigosa e a sua derrota é tão certa, como é certo que o Serafim e os outros foram contratados pelo senhor a cinco tostões cada um, para virem hoje fazer de seus alunos...

PANTALEÃO. (atrapalhado.) Mas, meu caro amigo...

JUCA. É preciso, pois, que o senhor — que é um Evangelho para o maior — faça com que ele desista, sem perda de tempo, das suas pretensões, evitando, assim, a vergonha de uma derrota...

PANTALEÃO. (erguendo-se.) Nunca, meu amigo! Nunca!

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

PANTALEÃO. (zangado.) Oh! Manduquinha, já te disse que metesse a língua no bolso!

JUCA. (erguendo-se, calmo.) Nunca?... Por quê?

PANTALEÃO. Porque é tão certo que o major vencerá, como é certo que eu namorava a Rosalina, e que o senhor passou-me o pé e vai casar com ela!

JUCA. (sorrindo.) Mas, senhor Pantaleão...

PANTALEÃO. É inútil insistirmos neste ponto. O major não desiste e há de triunfar. Quem lhe diz sou eu, e quando eu digo, digo. O negócio está perfeitamente dirigido. Pelos meus cálculos — e os meus cálculos são infalíveis como o papa...

MANDUCA. (lendo.) “O papa ou sumo pontífice”...

PANTALEÃO. Cala a boca, Manduca! Oh! (A Juca.) Pelos meus cálculos, o major vai ter toda a votação, com discrepância apenas de três votantes, que não tiveram vergonha de vender as consciências ao governo, um para ser subdelegado, o para ser escrivão do juiz de paz e o terceiro para ser inspetor de quarteirão. O mais é carga cerrada. Há de ver.

JUCA. Mas, senhor Pantaleão, compreenda que o major não pode ser eleito somente com a votação da freguesia...

PANTALEÃO. Já escrevi para todos os pontos da província e as respostas que tenho recebido são muito animadoras. Ouça isto. (Tira do bolso uma carta muito amarrotada e abre-a.) Ouça lá.

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

PANTALEÃO. Oh! Manduca, quem é que lê, és tu ou sou eu? Guarda a língua no bolso, já te disse duas vezes! (Lê.) “Ilustre senhor Pantaleão Peroba Ferrabrás de Alexandria”... (A Juca.) Ilustre! Veja bem! (Lê.) “Nunca tinha ouvido falar no seu grande nome e fiquei sabendo que V. S. existia ao ler a sua carta”... (A Juca.) Grande nome! Vá tomando nota! (Lê.) “A apresentação do senhor major Anacleto da Trindade, a quem ninguém aqui também conhece, é uma ideia luminosa e digna de uma cabeça como a sua”... (A Juca.) Vá tomando nota” — ideia luminosa e digna de uma cabeça como a minha! (Lê.) “Pode ficar certo que todos os votantes deste município, tanto liberais como conservadores, irão às urnas. — Sempre às suas ordens & & — Laguna & & — (Guardando a carta.) E como esta, tenho recebido muitas outras...

JUCA. (à parte.) Mas este homem é um idiota! Pois não compreende que aquela carta é um ridículo!

PANTALEÃO. Agora vou mostrar-lhe a circular que dirigi às influências políticas das localidades. (Procura, na mesa, entre os papéis e os livros, e tira um pedaço de papel amarelo de embrulhão.)

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

PANTALEÃO. (zangado.) Manduca! Manduquinha! Se não quiseres guardar a língua no bolso, mete-a onde te parecer, mas cala-te! (Lê.) “Ilmo. Sr. — A salvação da pátria e da lavoura da mandioca e da cana depende de muito juízo e de um bom deputado. O major Anacleto da Trindade, sumidade política desta localidade, reúne todas as condições para ser um representante de primeira qualidade. Apresento-o, pois, aos sufrágios dos votantes d’esse município, que, votando n’ele, votarão num sábio, num talento, numa ilustração extraordinária, num grande homem, finalmente. Posso afirmar isso tudo, porque estou na altura de julgar. O programa do major é o mais patriótico possível: — abolição de impostos pequenos e criação de outros maiores; aumento de cento por cento sobre o subsídio dos deputados; propaganda sobre o plantio da batata inglesa em larga escala, e outras medidas de vasto interesse político e social. Esperando que V. S. não deixará de acolher sob as asas arcangélicas da sua proteção uma tão bela candidatura, subscrevo-me & &. — (Dobrando o papel.) E então?... Em vista d’isto, o que diz o meu amigo?

JUCA. Mas, apesar de tudo, o senhor deve...

PANTALEÃO. Basta, meu amigo, basta. Nem mais uma palavra a respeito. Em negócios eleitorais sei o que faço, e — desculpe a franqueza, — o meu amigo não sabe o que diz. O major não há de desistir e há de ganhar, tão certo...

JUCA. Como é certo que o senhor é o homem mais teimoso de toda a freguesia. Fique desde já sabendo, senhor Pantaleão: se o major for derrotado, a responsabilidade é sua...

PANTALEÃO. Minha?

JUCA. Sem dúvida. Quem foi que meteu o major em camisa de onze varas?... Adeus, senhor Pantaleão. Divirta-se com os seus alunos a cinco tostões cada um... (Sobe.)

PANTALEÃO. (encalistrado.) Já ainda agora o senhor falou em alunos a cinco tostões cada um... Não compreendo o seu pensamento... Explique-se...

JUCA. O senhor sabe perfeitamente o que quero dizer.

PANTALEÃO. Mas, meu amigo...

JUCA. Pergunte ao Serafim e ao Romualdinho... (Sai.)

PANTALEÃO. Mas, venha cá, homem de Deus! venha cá! (Sobe.)

CENA VI

Pantaleão e Manduca

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

PANTALEÃO. (descendo.) Cala-te, Manduca! Mete essa língua no... bolso da calça, mas não me incomodes!

MANDUCA. (lendo.) “O sumo pontífice”...

PANTALEÃO. (gritando.) Cala-te, diabo!

MANDUCA. (pulando, com cara de choro.) “Zisus”, sô mestre!...

PANTALEÃO. (animando-o.) Está bom... não chores... (Dando dinheiro.) Toma dois vinténs para amendoim...

MANDUCA. (guardando o dinheiro.) “Brigado”!

PANTALEÃO. (descendo.) É uma aplicação extraordinária a deste menino... Quando se agarra aos livros, é isto: fica cego, surdo e mudo!... E lê bem, lê como gente!... (Outro tom.) Oh! Manduquinha, dá um pulo ali à venda do Chico Piolho e diz aos rapazes que deixem a bisca e que venham. O diretor não tarde por aí, e não quero que me apanhe descalço... Anda, vai, meu lindinho, meu querubim virado do avesso...

MANDUCA. Vou num corcovo, “sô professô”... (À parte.) Vou “comprá” uma rosca de “porvio”... (Sai.)

CENA VII

PANTALEÃO. (sentando-se, depois de uma pausa.) Vai ser um momento solene este! Um exame de história e geografia! Ah! “seu” Pantaleão, você é um “quera”! (Outro tom.) E a Rita Barbada não está pensando que o casamento é sério! Ora, a tartaruga da velha!... A Rita deve ficar bonita mas é vestida de branco, depois de morta!... Se eu ia casar-me com aquela caninana!... (Pausa.) Desejo e tenho necessidade de contrair matrimônio... mas há de ser com uma menina de quinze anos, gordinha e espevitada... A Rosalina estava a calhar, mas não quis, e não sabe o que perdeu... Mas hei de achar outra que queira... Em último recurso, irei procurar na cidade...

(N. 7)

Olá! olé! olá!

ajuda Deus a quem trabalha,

e no céu se (?)

casamento e mortalha!

A Rosalina certo verá,

em poucos dias,

em poucos dias,

ai! que alegrão!

com moça bela, gentil, formosa,

como uma rosa,

cheia de graças

e de negaças,

casado o grande cidadão,

glória, ufania,

sol, alegria

da freguesia,

bem casadinho com um peixão,

o cidadão

Pantaleão

Pantaleão!

(Sentando-se.) Há aqui uma rapariga que me agrada bastante... mas também não quer casar comigo, porque tem um namorado... É a filha do Zé Caolho. Ele é um estúpido, que não fala para não dizer asneiras... Mas a filha, a Margarida, é um pedaço de mulher! Aquilo era um arranjo para mim!

CENA VIII

Pantaleão, Serafim, Antônio, Quincas, Romualdo, Manduca e mais alguns Rapazes

(Cada um traz um livro velho debaixo do braço. — Serafim entra adiante, comandando a troça.)

SERAFIM. (à porta.) A um de fundo, rapazes, a um de fundo! (Colocam-se a um de fundo.) Marcha!

TODOS. (desfilam em redor da cena e terminam o coro em linha, defronte de Pantaleão.)

(N. 8)

SERAFIM

Viva a troça! que pagode!

marche, marche pra lição,

vamos dar vivas e vivas

ao nosso Pantaleão!

CORO

Viv’ a alegria

do coração,

e viva o mestre

Pantaleão!

SERAFIM

Marche, marche, que são horas

de dar a nossa lição,

e ficar despertado

o nosso Pantaleão!

CORO

Viv’ a alegria

do coração

e viva o mestre

Pantaleão!

SERAFIM. (parando, com os outros em linha, defronte de Pantaleão.) Viva o “sô Espantaleão”!

TODOS. Viva!

SERAFIM. Apresentar, armas! (Apresentam os livros a Pantaleão.) Descansar, armas! (Metem os livros debaixo do braço.)

PANTALEÃO. (que tem assistido a tudo, pasmo, de boca aberta e com a frecha no ombro, à guisa de espingarda.) Obrigado, rapazes! obrigado, meu povo!... (Pausa.) Meus amigos, meus ilustres amigos, meus caríssimos amigos! Esta manifestação de consideração e admiração à ilustração do grande cidadão Pantaleão, põe-me o coração numa palpitação em que não posso ter mão!

SERAFIM. Bonito! parece verso!

ROMUALDO. (suspirando.) Muito bom! Ai! ai!

MANDUCA. Se eu “sabesse”, tinha trazido a gaita...

ANTÔNIO. “Quá”, gaita, nem “quá” carapuça, “lambisome”!

QUINCAS. (espirrando.) Atchi! (Limpa o nariz nos dedos e passa-os na cara de Manduca.)

MANDUCA. Sai pra lá, “porcão”! “Sô” mestre, o “sô” “Antonho” está me chamando “lambisome”, e o “sô” Quinca está me sujando a cara de ranho!

ANTÔNIO. Olha que eu te quebro a focinheira!

QUINCAS. E eu te arrebento as ventas!

SERAFIM. Rapaziada, marche! Viva o “sô Espantaleão”!

TODOS. Viva! (Desfilam outra vez a um de fundo e rodeiam a cena. — À proporção que desfilam, vão atirando os chapéus no chão, no mesmo lugar. — Findo o coro, sentam-se nas classes, pela seguinte forma: — na primeira classe — Serafim, Manduca, Antônio, Romualdo e Quincas; na segunda classe — outros rapazes.)

(N. 9) (Música de n. 8)

Marche, marche, que são horas

de dar a nossa lição,

a ficar desapertado

o nosso Pantaleão!

CORO

Viv’ a alegria

do coração,

e viva o mestre

Pantaleão!

PANTALEÃO. (depois de estarem todos sentados.) Ilustres  concidadãos! Quando o imperador Carlos “Magano” e o marechal duque de Saldanha encontraram-se nos campos do Rio Grande do Sul, defendendo a religião maometana, as gloriosas tropas dos dois valentes cabos de guerra não fizeram certamente aos seus grandes comandantes uma manifestação tão expressiva como a que acaba de ter lugar... Carlos V em Maratona... — bem não recebeu tantas provas de estima e apreço; Cleópatra, na república Argentina, idem idem; Napoleão III, na China, a mesma coisa; o duque de Caxias, na Ásia Menor, duas espinhas!... Sim, ilustres concidadãos: esta manifestação tem para mim uma dupla significação: — a primeira, é que todos vocês compreendem o meu alto mérito, e a segunda é que os meus cobres já produziram antecipadamente efeito na bodega do Piolho!...

TODOS. (lendo alto.) B-a-bá: passa pra cá; b-e-bé: vai pra Bagé; b-i-bi: salta pra li; b-o-bó: vai-te tu só; b-u-bu: curucucu!

SERAFIM. (imitando voz de galo.) Ki-ki-ri-ki!

ROMUALDO. (imitando cabra.) Mé... mé... mé!...

ANTÔNIO. (fingindo porco.) Rom... rom... rom!...

QUINCAS. (fingindo rato.) Huim... huim... huim!...

MANDUCA. (imitando foguete.) Chi... chi... chi... tá! tá! tó!

PANTALEÃO. Oh! meninos, isto aqui é escola; não é exposição de animais irracionais. Não confundam!

TODOS. (lendo alto.) B-a-bá; b-e-bé; b-i-bi; b-o-bó; b-u-bu!

ANTÔNIO. (empurrando Romualdo.) Chega-te pra lá!

ROMUALDO. (dando-lhe com o livro na cara.) Toma!

ANTÔNIO. (erguendo-se e armando dois socos.) Oh! canalha!

PANTALEÃO. Oh! rapazes, contenham-se. O diretor estoura por aí adentro de repente, e vocês comprometem-me. Contenham-se.

MANDUCA. (lendo.) “A palavra “zigreja”, segundo”...

SERAFIM. (segurando Manduca pelo nariz e sacudindo-o.) Oh! amarelo, vai buscar a tua gaita!

TODOS. A gaita! a gaita! “que saia”!

MANDUCA. (esfregando o nariz.) “Sô” mestre, o “sô Sarafim” está me puxando a penca!

PANTALEÃO. Por favor, senhor Serafim, deixe tranquilo o nariz do menino.

SERAFIM. Ora, nariz! Uma cabeça de inhame que tens aí no meio da cara! (Medindo-o de alto a baixo.) Amarelo! Feições de porco do mato! (Gritando.) Amarelo! amarelo!

PANTALEÃO. Por favor, meus amigos! O diretor entra-me de repente, e se ouve esta inferneira, é capaz de fazer-me alguma... Não me comprometam!...

TODOS. (lendo alto.) C–a-ca; c-e-cé; c-i-ci; c-o-có; c-u-cu...

PANTALEÃO. Agora, sim. Juizinho... Meus amigos, quando aparecer o diretor ou o inspetor das escolas, não se esqueçam de levantar-se e cantar o verso que eu ensinei. Lembram-se ainda?

SERAFIM. Ora, “s’alembramos”! Quer ver? Rapaziada, levantar! (Todos levantam-se.)

PANTALEÃO. Basta. Guardem isso para a ocasião própria.

SERAFIM. Rapaziada, sentar! (Todos sentam-se.)

TODOS. (lendo alto.) D-a-dá; d-e-dé; d-i-di; d-o-dó; d-u-du...

PANTALEÃO. (que tem ido à porta.) Ah! vem o inspetor. Sentido! Também vem o Juca e o major Anacleto. (Vai recebê-los.)

CENA IX

Os mesmos, Caolho, Juca e Major

SERAFIM. Rapaziada, levantar! (Todos levantam-se.) Preparar goelas! (Todos tossem.) Um! dois! três! (Serafim canta.)

(N. 10)

Vivam as visitas

que vêm, — isto consola, -

trazer mil alegrias

aqui à nossa escola!

CORO

À nossa escola,

à nossa escola,

à nossa escola!

SERAFIM

Vivam as visitas

que vêm dar luz à bola

de todos os rapazes

d’aqui da nossa escola!

CORO

À nossa escola,

à nossa escola,

à nossa escola!

PANTALEÃO. Muito bem! Admirável! (Às visitas.) Mas desçam, desçam, meus senhores. (Leva-os para as cadeiras.) Sentem-se... (Sentam-se.) Creiam que tenho tido dois grandes dias na minha vida: este e... a noite em que nasci! (Durante o resto da cena os rapazes fazem caretas uns aos outros, ameaçam-se com murros etc.)

JUCA. (sorrindo.) É natural.

CAOLHO. (cumprimenta.)

MAJOR. Pois viemos ver o seu portento, Pantaleão.

PANTALEÃO. (mostrando Manduca.) Está ali. É o sobrinho da Rita Barbada, o Manduca Barbado.

JUCA. (fazendo óculo com a mão e olhando para Manduca.) Mas é justamente o que eu não vejo...

PANTALEÃO. O quê?

JUCA. Barbas no Manduca.

PANTALEÃO. Não tem ainda, mas hão de vir com o tempo. Agora só esperarmos o diretor. Apenas ele chegue...

CAOLHO. (cumprimenta, tira do bolso um ofício e entrega a Pantaleão. — Volta-se para os rapazes e cumprimenta-os.)

PANTALEÃO. Temos ofício! O senhor inspetor permite? (Abre o ofício.)

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. (lendo.) “Diretor Geral & & — Não me sendo possível ir hoje, como desejava, visitar a escola do sexo masculino dessa freguesia, recomendo a Vmcê que vá a mesma escola e que verifique o grau de adiantamento dessa incumbência. — Deus Guarda a Vmcê. — Senhor Inspetor das escolas & &” — (Dobra o ofício e restitui a Caolho.) Inteirado, senhor inspetor, inteirado, perfeitamente inteirado.

CAOLHO. (guardando o ofício, cumprimenta.)

PANTALEÃO. Podemos então começar os trabalhos. O senhor inspetor, inteligente e ilustrado como é, sabe que nas escolas de primeiras letras, os professores só ensinam primeiras letras. Entretanto, tenho um aluno, o Manduca Barbado, que vou apresentar como um gênio em história e geografia... Dá licença que principio por ele, não?

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. Menino Manduca, queira ter a bondade de ir para a lousa.

MANDUCA. Sim, “sinhô” (Vai ao quadro negro.)

PANTALEÃO. Os senhores vão ver. É uma coisa extraordinária!

MAJOR. Vamos ver, vamos ver...

JUCA. Aquela cor amarela indica alguma coisa...

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. Manduca, risque o mundo aí no quadro.

MANDUCA. (fazendo um quadrado a giz.) Pronto.

JUCA. O mundo quadrado! (À parte.) Ora, bolas!

MAJOR. Muito bem! Perfeitamente!

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. Estão vendo? É uma águia! Diga-me, Manduca: onde está aí a China?

MANDUCA. (fazendo um sinal dentro do quadrado.) Aqui.

MAJOR. Admirável! Posso gabar-me de que já vi a China!

JUCA. (comprimindo o riso.) Estupendo!

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. E a França onde está, Manduca?

MANDUCA. (fazendo outro sinal ao lado do primeiro.) Aqui.

MAJOR. Mas isto é maravilhoso! maravilhoso!

JUCA. (comprimindo o riso.) É milagroso até!

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. (vaidoso.) Manduca, marque aí o lugar onde está a nossa freguesia.

MANDUCA. (fazendo um sinal entre os dois primeiros.) Aqui.

JUCA. (comprimindo o riso.) Sim, senhor: entre a França e a China!

MAJOR. É extraordinário! é extraordinário!

JUCA. O menino é realmente uma águia... amarela!

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. (vaidoso.) Faz honra cá à pessoa, faz... (Outro tom.) Manduca, é a terra que anda ou é o sol?

MANDUCA. É o sol.

JUCA. Mas é esplêndido!

MAJOR. Não é só esplêndido; é milagroso também! Que cabeça de rapaz!

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. Vão ouvir agora uma definição de arromba! (A Manduca.) Mas por que é que é o sol que anda e não a terra? (Aos outros.) Atenção!

MANDUCA. Porque se fosse a terra “c’andasse, se fazia-se” uma casa hoje, e “aminhã” estava no chão; porque os “home” e as “muié” havia de “aminhecê” de cabeça “pra riba” e “anoitecê” de cabeça “pra” baixo, porquê...

PANTALEÃO. Muito bem! Perfeitamente!

JUCA. Soberbo! Uma definição de mestre!

MAJOR. De mestre, sim, senhor! É milagroso!

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. Manduca, qual é o rio maior do mundo?

MANDUCA. É o “corgo” dos “fundo” do “sô” Chico Piolho.

MAJOR. Cada vez a melhor!

JUCA. É inconcebível! Parece até embruxamento!

CAOLHO. (cumprimenta e dá um grande espirro.)

TODOS. Dominus vobiscum!

JUCA. (à parte.) Ora, graças a Deus, que já disse alguma coisa!

CAOLHO. (cumprimenta para todos os lados, limpando o nariz aos dedos.)

PANTALEÃO. Passemos agora à história. Vão ouvi-lo também. Responde com uma prontidão de cavalo parelheiro! (Outro tom.) Manduca, quem foi o primeiro imperador da África?

MANDUCA. Foi Luiz XV, rei de França.

PANTALEÃO. E a primeira rainha da China?

MANDUCA. Foi Santa Filomena.

MAJOR. Maravilhoso! maravilhoso!

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. Querem que prossiga?

JUCA. Não é preciso. O menino dá coisa. As suas respostas são tão claras, que é um gosto ouvi-lo!

PANTALEÃO. (vaidoso.) Faz honra cá à pessoa, faz... (A Caolho.) O senhor inspetor está satisfeito, não?

CAOLHO. (cumprimenta.)

PANTALEÃO. Desejam ouvir um trecho de leitura?

JUCA. Dispensamos. Se o Manduquinha estiver adiantado em leitura, como está em história e geografia... faz honra à sua pessoa!

PANTALEÃO. (a Caolho.) Agora, senhor inspetor, na comunicação que fizer à diretoria não deixe de falar nos meus esforços e na minha dedicação pelo ensino...

CAOLHO. (cumprimenta.)

JUCA. (à parte.) É boa! Pois se é o próprio Pantaleão quem faz os ofícios para o Caolho assinar de cruz!

PANTALEÃO. Pois a coisa é assim, meu caro major... (Conversa com o Caolho e o Major.)

JUCA. (indo à classe e batendo no ombro de Manduca.) Estude, Manduquinha, estude, que, com a instrução que vai tendo, há de acabar no hospício de Pedro II!

PANTALEÃO. Podem levantar-se, meninos.

SERAFIM. Oh! “sô Espantaleão”! (Pantaleão sobe. — Fazendo sinal de dinheiro, sem que os outros vejam.) Passe pra cá...

PANTALEÃO. (com disfarce, dando dinheiro.) Tome lá... Reparta com os outros.

SERAFIM. (metendo o livro debaixo do braço, depois de guardar o dinheiro.) Viva o “sô Espantaleão”!

TODOS. (metendo os livros debaixo do braço.) Viva!

PANTALEÃO. Meninos, agora um cumprimento aos nossos ilustres hóspedes. Vamos!

SERAFIM. Rapaziada, chega à forma! (Todos, com os livros debaixo do braço, formam linha ao fundo.) Apresentar armas! (Apresentam os livros.) Descansar, armas! (Metem os livros debaixo do braço.)

MAJOR. Meus senhores, estou realmente encantado. O nosso ilustre Pantaleão Peroba Ferrabrás de Alexandria acaba de provar com o simpático e lindo menino Manduca Barbado o quanto é dedicado ao seu emprego e o quanto é profundo em todos os conhecimentos humanos! O grande Pantaleão Peroba Ferrabrás de Alexandria tem um nome respeitável...

JUCA. Muito respeitável até!

MAJOR. (continuando.) E não é só uma glória nossa, meus caríssimos e fiéis ouvintes... é uma glória de todo mundo, é uma glória universal, é uma glória... é uma glória... (Atrapalha-se e tosse.)

PANTALEÃO. Major, você é verdadeiramente a deusa Vênus, a deusa da justiça!

JUCA. Assim como a deusa Têmis é a deusa da formosura!

SERAFIM. Rapaziada, marche, marche! (Desfilam todos a um de fundo, rodeando a cena. À proporção que passam pelo lugar onde deixaram os chapéus, apanham-nos e os põem na cabeça, continuando a marcha; — Serafim canta.)

(N. 11) (Música de n. 8)

Marche, marche, que já demos,

que já demos a lição,

e ficou desapertado

o nosso Pantaleão!

CORO

Viv’ a alegria

do coração,

e viva o mestre

Pantaleão!

(Os alunos saem. Os convidados saem logo também. O coro é repetido até cair o pano. — Pantaleão vai sair, mas esbarra-se com Rita, e foge por outra porta. — Rita segue-o.)

FIM DO 2º ATO

ATO III

A DERROTA

A mesma vista do primeiro ato. É dia.

CENA I

Romualdo e Quincas

ROMUALDO. (entrando de costas, pela esquerda, a chorar.) Ham! ham! ham!

QUINCAS. (entrando de costas, pela direita, a chorar.) Ham! ham! ham!

ROMUALDO. (voltando-se e encarando Quincas, que também se volta.) Oh! Quincas, não “m’arremedes”!

QUINCAS. (encarando-o.) És tu que estás “m’arremedando”, Romualdo!

ROMUALDO. (dando-lhe as costas, a chorar.) Ham! ham! ham!

QUINCAS. (dando-lhe as costas, a chorar.) Ham! ham! ham!

ROMUALDO. (voltando-se.) Oh! Quincas, por que é que estás chorando?... Ai! ai!

QUINCAS. (voltando-se.) Ai! Romualdinho, é por causa d’ela! E tu, Romualdinho, por que é que estás chorando? Atchi! (limpa o nariz nos dedos.)

ROMUALDO. É por causa d’ela, Quincas!

QUINCAS. (dando as costas, a chorar.) Ham! ham! ham!... Ai! Romualdinho!

ROMUALDO. (dando as costas, a chorar.) Ham! ham! ham! Ai! Quinquinhas!

QUINCAS. (voltando-se.) Sabes?... Já estive com uma corda no pescoço para enforcar-me...

ROMUALDO. “Zesus”! E por que é que não te enforcaste, Quincas?...

QUINCAS. Porque tive medo, Romualdinho!

ROMUALDO. E eu já estive por um “triste” a me atirar no poço...

QUINCAS. Credo! E por que é que não te atiraste, Romualdo?

ROMUALDO. Porque o poço é muito fundo e a água estava muito fria, Quincas! (Chorando.) Ham! ham! ham!

QUINCAS. (chorando.) Ham! ham! ham! (Abraçam-se, a chorar, a fazer — ai! ai! — a espirrar.)

(N. 12)

ROMUALDO

Aquela ingrata,

que lá se vai

co’ pisa-flores...

(Suspirando) Ai! ai!

QUINCAS

Eu não sei mesmo

que sinto em mim,

creio que morro

(Espirrando) Atchim!

ROMUALDO

Para a cidade

ela se vai...

morro de dores...

(Suspirando) Ai! ai!

QUINCAS

Lá vai a ingrata...

triste de mim...

meu Deus! eu morro...

(Espirrando) Atchim!

AMBOS

ROMUALDO

Ai! que tristeza

n’alma me vai!...

adeus, “cachopa”...

(Suspirando) Ai! ai!

QUINCAS

Mulher ingrata

não vi assim...

adeus, oh! Rosa...

(Espirrando) Atchim!

(abraçam-se a chorar com grande rumor.)

ROMUALDO. Oh! Quincas, vamos nos matar?

QUINCAS. Não, Romualdinho... É perigoso...

ROMUALDO. Mas o que havemos de fazer, Quincas?

QUINCAS. Chorar, Romualdo... chorar...

ROMUALDO. Então choremos, Quincas! (Choram.)

QUINCAS. Romualdinho?

ROMUALDO. Quinquinhas...

QUINCAS. Abandonemos esta casa... vamos chorar no mato, longe d’aqui, para que ela não veja as nossas lágrimas...

ROMUALDO. Vamos, Quincas... A ingrata ainda era capaz de rir-se e fazer pagode de nós com o pisa-flores...

QUINCAS. (subindo, abraçado com Romualdo.) Ai Romualdinho do meu coração!

ROMUALDO. Ai! Quincas da minha alma!

QUINCAS. (voltando.) Oh! Romualdo, tenho uma ideia!

ROMUALDO. Ai! ai! Pois tu tens ideias?

QUINCAS. Tenho, sim... A Rosalina casa-se amanhã, não é?

ROMUALDO. É...

QUINCAS. Pois matemos o Juca hoje!

ROMUALDO. (recuando.) Matar? “Zesus”! E a cadeia?...

QUINCAS. (esfriando.) É verdade... Mas o que havemos de fazer?

ROMUALDO. Chorar, Quincas, chorar!...

QUINCAS. Então choremos... (Subindo, abraçando com Romualdo.) Ai! Romualdinho!... Ham! ham! ham!

ROMUALDO. “Zesus”! Quinquinhas! ham! ham! ham!

CENA II

Os mesmos e Antônio

ANTÔNIO. (chorando.) Ah! rapazes, que desgraça! Amanhã ela casa-se, vai-se embora pra cidade, e nos deixa só cá com as nossas “sodades”!

ROMUALDO. Desprezar, a nós, os rapazes mais bonitos da freguesia!

QUINCAS. Rapazes elegantes e atirados como nós, que se fossemos pra cidade havíamos de pintar o Simão e o Calunga com as moças!

ANTÔNIO. Quem “havera” dizer? (Ameaçando com os punhos cerrados.) Ah! Juca de uma figa!

ROMUALDO. (ao mesmo tempo, com o mesmo gesto.) Ah! Juca de uma figa!

ANTÔNIO. “Mas porém”,  o que resolvem vocês? Sim, porque isto não pode ficar assim... Precisamos tirar uma desforra. Eu tenho uma ideia!

ROMUALDO. Ai! ai! Que todos hoje têm ideias! O Quincas já teve uma “indagurinha”, agora tu tens outra...  Só eu não tenho nenhuma... Sinto o coração tão apertado! “Zesus”!

QUINCAS. Não é só o coração, não; há de ser o cós das calças também!

ROMUALDO. (a Antônio.) Mas que ideia é a tua, menino?

ANTÔNIO. Já não é uma ideia só; agora são duas.

ROMUALDO. Ai! ai! Com a do Quincas, três, e uma que ainda não tive, mas que hei de ter, quatro...

QUINCAS. Qual é a primeira?

ANTÔNIO. (misterioso, levando os dois à boca de cena.) A primeira é matar o Juca.

QUINCAS. Ora! Essa é minha!

ROMUALDO. Ai! ai! Eu não me meto n’isso... Eu, que não tenho “corage” de matar uma barata!

ANTÔNIO. Sai daí, maricas! Mas tens coragem pra outras coisas que deviam valer-te uma sova!

ROMUALDO. (grimpando.) Antonico!

ANTÔNIO. (chegando-se.) “Haim”?... O que é?...

ROMUALDO. (encolhendo-se.) “Zesus”!

QUINCAS. Oh! Antonico, deixa o Romualdinho...

ANTÔNIO. (a Romualdo.) Cara de morcego! (Dá-lhe as costas.)

ROMUALDO. (à parte.) Feições de mico!

QUINCAS. A tua ideia de matar o Juca, não é tua, é minha, mas não serve por causa da cadeia.

ANTÔNIO. E você tem medo da cadeia?

ROMUALDO. Ai! ai! A cadeia não foi feita pra os cachorros...

ANTÔNIO. Nem pra os medrosos como tu!

QUINCAS. Ora, deixa-te de prosas, Antônio!... Atchi! Bem sabes que eu te conheço... Aposto que se o sujeito aparecesse aqui agora, tu disparavas por aí afora, como se levasses o diabo dentro da barriga!... Passemos à outra ideia.

ANTÔNIO. A outra ideia é roer a corda ao major.

ROMUALDO. Ai! ai! “Mas porém”, como?

ANTÔNIO. A eleição é hoje, e ele conta com os nossos votos. Pois vamos votar no outro para pô-lo danado...

QUINCAS. A ideia não é má. Mas isso não impede que a Rosalina case com o “pachola”...

ANTÔNIO. Não impede; mas o moleque fica furioso, e...

ROMUALDO. “Mas porém”, ela casa-se! (Abraçando Quincas, a chorar.) Ai! Quincas! Quincas!

QUINCAS. (chorando.) Ai! Romualdo! Romualdo!

ANTÔNIO. Mas o que é que vocês arranjam com essa berraria, não me dirão?

QUINCAS. E é amanhã que ela vai... Ah! quem dera que a noite de hoje fosse do tamanho de um ano inteiro!

ROMUALDO. De dois, Quinquinhas, de dois...

ANTÔNIO. Então que fosse do tamanho de três!

ROMUALDO. O Pantaleão disse que um dia um homem mandou parar a lua...

QUINCAS. Foi o sol, Romualdo.

ROMUALDO. O sol?... Tens certeza disso?

ANTÔNIO. Foi, foi o sol.

ROMUALDO. Se eu pudesse fazer o mesmo... não mandava parar o sol, não; mandava mas era parar todos os relógios pra nunca anoitecer hoje!

ANTÔNIO. Tu és besta! Embora parasses todos os relógios, haverá de anoitecer por força.

ROMUALDO. Há de ser isso, Antônio... Ai! ai!... Tenho andado numas agonias, meninos, que já nem sei o que digo... Se vocês não ficarem desta vez sem o Romualdinho, nunca mais!...

QUINCAS. Eu digo o mesmo...

ANTÔNIO. E eu também! (Trágico.) Ah! Rosalina! Rosalina! Não sei o que me tem impedido de cometer um crime!...

ROMUALDO. (encolhendo-se.) “Zesus”, menino!

ANTÔNIO. Ainda ontem à noite, vinha eu perto da igreja, pensando nas nossas mágoas e com os olhos rasos d’água... aflito estava que não via um palmo adiante do nariz...

ROMUALDO. Vinha da venda do Piolho?

ANTÔNIO. Como sabes?

ROMUALDO. Ai! ai! Dissestes que não vias um palmo adiante do nariz, e eu vi logo que não podias vir senão da venda do Piolho.

ANTÔNIO. O que é que queres dizer na tua?... Parece que pensas que eu saí da venda do Chico vendo sol à meia noite... Tu andas brincando comigo, Romualdo. Toma sentido!... De repente, quanto menos esperares, dou-te uma sova, que te mando pra o meio do inferno!

QUINCAS. Ora, que hás de andar sempre de ponta com o Romualdinho e a querer esmurrar o coitadinho! Mas, olha que perdes o teu tempo! No dia em que tocares com um dedo, — vê bem, — com um dedo só, no Romualdinho, enterro-te uma faca até o cabo!

ANTÔNIO. (recuando.) Oh! Quincas, aí estás tu como da outra vez, quando eu quis dar um cascudos neste maricas! Que diabo de homem!

QUINCAS. Isso! Chegamos ao ponto. E justamente por ser ele um maricas — que até tem medo de uma aranha — que te fazes um valentão com ele! Por que é que nunca ameaças a mim e ao “Sarafim”?...

ANTÔNIO. Ora, porquê!... Porque...

QUINCAS. Porque tens medo, confessa. Tu não vales nada... És um prosa, um porco, que só tens língua! Deixa-te de lambanças, e não andes amolando o Romualdinho. Quem ofender o Romualdo, comigo se tem de haver. E eu não aturo desaforos, fica sabendo!...

ANTÔNIO. (com arreganho.) Ora!

QUINCAS. (arregaçando as mangas e avançando.) Ora! Ora, o quê?... (Segurando-o pelo peito da camisa.) Fala, anda, fala, que eu quero fazer-te engolir a língua!

ROMUALDO. (segurando-se a Quincas.) Oh! Quinquinhas da minha alma! Não brigues, pelo amor de Deus!

ANTÔNIO. (tremendo.) Que diabo de homem! Oh! Quincas... olha que eu estou brincando...

QUINCAS. Não estás brincando, não; estás com medo! (Dá-lhe um boléu e larga-o.)

ANTÔNIO. Pois sim... seja como quiseres... Mas tens um gênio danado!

ROMUALDO. Ai! ai! Mas desta maneira não podemos concordar em coisa nenhuma... nem o Antônio pode continuar a história que estava contando...

ANTÔNIO. Aquela em que não vias um palmo adiante do nariz quando saíste da venda do Piolho!...

CENA III

Os mesmos, Major e Pantaleão

PANTALEÃO. (com um lápis e lendo uma tira de papel.) Dois... e um — três... e seis — nove... e cinco — quatorze... (Senta-se no sofá, lendo sempre.)

MAJOR. (consigo.) Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da... (Vendo o grupo.) Oh! rapazes, pois vocês ainda estão aqui? Vão para a igreja... Já tem cada um a sua chapa?

QUINCAS. Não, “sô manjor”... Nós votamos em V. S., mas é preciso que V. S... sim... quero dizer...

MAJOR. Dizer o que, homem?

QUINCAS. Sim... quero dizer que V.S. bem podia...

MAJOR. (como que impaciente.) O quê? o quê?...

QUINCAS. Sim... quero dizer...

ANTÔNIO. Oh! estafermo! Põe isso pra fora de uma vez! (Ao major.) Ele quer dizer que V.S. bem podia chegar mais uns cobrinhos...

ROMUALDO. Ai! ai! O “sô manjor” deu muito pouco...

MAJOR. Dei pouco?... Como! Pois vocês tão persuadidos que cada um vale mais de três mil réis?...

ANTÔNIO. Três “min” réis! Como é lá isso, “sô manjor”?

MAJOR. Entendi-me com o Serafim para falar-lhes, e ele disse-me que cada um de vocês exigia três mil réis para votar comigo. Entreguei-lhe logo os cobres e...

OS TRÊS. (olhando-se pasmos.) Três “min” réis!

MAJOR. Sim. Três mil réis, nem mais, nem menos. Foi puxadinho, mas cuspi-os logo, porque o Serafim disse-me que vocês queriam o dinheiro adiantado...

OS TRÊS. (como acima.) Três “min” réis!

MAJOR. (já zangado.) Sim! Pois então! Três mil réis! três mil réis! três mil réis!

ANTÔNIO. Ai! que o cachorro nos passou a perna! Sabe quanto deu ele a cada um de nós, “sô manjor”? Dez  “tustas”!

MAJOR. (recuando.) Três patacas e dois vinténs!... Mas então o Serafim é um gatuno!

PANTALEÃO. (sem deixar de olhar a tira de papel.) No dia do exame, eu também dei ao Serafim cinco tostões para cada um de vocês.

QUINCAS. Cinco “tustas”! Uma pataca e nove vinténs! Mas ele não nos deu coisa nenhuma!

ROMUALDO. Ai! ai! Não é à toa que ele ontem à noite estava na venda do Chico Piolho, dizendo que tinha tirado a sorte grande!

ANTÔNIO. Olha que ladrão! Rapazes, vamos procurá-lo!

QUINCAS. Pra quê?... Se ele te fizer uma careta, te corres.

ANTÔNIO. Nada! Aquele patife precisa uma lição... Vamos procurá-lo, e se ele não vomitar os cobres, vintém por vintém, rachamo-lo de meio a meio! Vamos, rapazes!

QUINCAS. Aí principias tu com as prosas outra vez! Sai d’aí, porcalhão! Tu tens “corage” de rachar ninguém!

ANTÔNIO. Pois, vamos lá, e eu mostrarei! (Sai.)

MAJOR. Acomodem-se, rapazes. A hora da votação está chegando, e se vocês foram à cata do sem vergonha, podem deixar de votar. Depois da eleição, agarrem o meco e metam-se o pau!

ANTÔNIO. (descendo.) É isso mesmo. O melhor é guardar pra depois.

QUINCAS. Tu não ias agora, e não vais depois... Deixa-te de histórias!

MAJOR. (distribuindo envelopes, que tira do bolso.) Tomem lá as chapas e vão já para a igreja. Quanto aos cobres, descansem. Eu farei com que o Serafim entregue tudo.

ROMUALDO. Ai! ai! “Mas porém” o “sô manjor” podia chegar mais uns níqueis... Eu que precisava agora tanto de um quinhentão!

PANTALEÃO. Oh! Romualdo, pois além de todos os vícios que já tens, deste também agora em ambicioso?

ROMUALDO. (fazendo um momo e revirando os olhos.) Vícios, “sô” Pantaleão?... Vícios, eu?... Ai! ai!

PANTALEÃO. Não lhe dê nada, major. Você não conhece o Romualdinho como eu... Isto é uma joia! (Segreda ao ouvido do major.)

MAJOR. (que não ouve o segredo.) Hem?

PANTALEÃO. Não ouviu? (Segreda outra vez.)

MAJOR. (admiradíssimo.)  O que está dizendo, homem?

PANTALEÃO. É o que lhe digo. (Pondo o dedo indicador no olho direito.) Com estes que a terra há de comer.

MAJOR. E eu que nunca pensei!... Pois o Romualdo!... (Erguendo os olhos e as mãos ao céu.) Oh! mundo! mundo!

ROMUALDO. Ai! ai! O que é, “sô manjor”?

MAJOR. Nada... nada! (À parte, olhando de esguelha para Romualdo.) O que tu precisas não é dinheiro, não; é um bom vergalho no lombo, cachorro!

ANTÔNIO. (que tem estado a conferenciar com Quincas.) “Antão”, o “sô manjor” não dá mais nada?

MAJOR. Não, meu amigos. Já dei até demais. Não posso.

QUINCAS. Pois “antão”, recebe o dinheiro do “Sarafim” e guarde, porque nós não votamos. (Sobe.)

ANTÔNIO. Sim, positivamente, não votamos. (Sobe.)

ROMUALDO. Ai! ai! Eu também não voto. (Sobe.)

PANTALEÃO. (agarrando o major, baixo.) Dê mais uns cobres, major, dê... Não podemos perder estes três votos.

MAJOR. (baixo.) Mas, Pantaleão, tenho gasto um “ror” de dinheiro!

PANTALEÃO. Dê, major, dê... (Chamando.) Oh! rapazes, venham cá... (Os três descem.) O major vai dar-lhe mais alguma coisa, não porque precise dos votos de vocês, mas porque não quer que o chamem de sovina...

MAJOR. (incomodado.) Vamos lá: chega uma pataca para cada um?

ROMUALDO. Ai! ai! É pouco, “sô manjor”...

MAJOR. Cala a boca, maricas!

QUINCAS. Um quinhentão, “sô manjor”, um quinhentão!

ANTÔNIO. (baixo.) Oh! diabo, pede mais! (Alto.) O “sô manjor” obriga o “Sarafim” a vomitar os três paus de cada um e nos dá agora mais três “min” réis pra nós três...

MAJOR. (recuando.) O quê?...

PANTALEÃO. (baixo.) Dê, major, dê

ANTÔNIO. Senão, não votamos.

PANTALEÃO. (baixo.) Um rasgo de heroísmo, major! Dê os três mil réis.

MAJOR. (à parte.) Desta maneira, não me deixam somente em mangas de camisa, como eu pensava... Deixam-me nu!

PANTALEÃO. (baixo.) Não regateie, major, não regateie...

MAJOR. (baixo.) Mas, Pantaleão, desta maneira, deixam-me nu... deixam-me nu!

PANTALEÃO. (baixo.) Depois de eleito, recuperará tudo... Dê os cobres.

MAJOR. (baixo.) Mas são precisos estes três votos?

PANTALEÃO. (baixo.) Precisos, não; mas quantos mais, melhor.

MAJOR. (à parte.) Fico nu, fico! A maldita eleição leva-me até as ceroulas! (Indo ao grupo e dando dinheiro a cada um.) Tomem, mas não me venham mais para cá com histórias, porque não lhes dou nem mais um x! (Vai para Pantaleão.)

QUINCAS. (baixo.) Agora, rapazes, vamos ao Zé Caolho. Se o bicho der dois paus a cada um, votamos com ele... Atchi!

ANTÔNIO. (baixo.) Eu cá, por mim, só voto com quem me der seis “pelegas”!

ROMUALDO. (baixo.) O meu votinho não vai por menos de cinco “min” réis... Ai! ai!

QUINCAS. (baixo.) Vamos ao Caolho. Se ele não quiser dar o que pedirmos, vamos jogar a bisca na venda do Chico.

ANTÔNIO. Pois vamos. (Sobem os três.)

MAJOR. (que tem estado a discutir calorosamente com o Pantaleão.) Já vão para a igreja?

PANTALEÃO. Não se demorem no caminho.

QUINCAS. Vamos direitinhos... (À parte.) Pra venda do Chico!

PANTALEÃO. Ouçam cá, rapazes. Vejam o que fazem. A honra de vocês está vendida ao major... Cuidado, não vão fazer papel triste.

MAJOR. Sim. Tenham consciência, ao menos na ocasião de votar.

QUINCAS. Dê por onde der, havemos de votar no “sô manjor”... (À parte.) Se o Caolho não der mais!

ANTÔNIO. Nós somos homens de bem, e não fazemos bandalheiras.

ROMUALDO. Ai! ai! Eu sou um rapaz honrado!

PANTALEÃO. Oh! Romualdinho, o melhor é calares-te. Quando quiseres vender o teu peixe, vai pra outra freguesia...

ROMUALDO. (fazendo um momo.) “Zesus”!

MAJOR. Vão para a igreja, rapazes, vão.

QUINCAS. Vamos. (Saem os três.)

CENA IV

Major e Pantaleão

MAJOR. (sentando-se, abatido.) Jesus! Quando me vir na câmara dos deputados, ainda pensarei que estou sonhando!

PANTALEÃO. (mostrando a tira de papel.) Aqui está o meu cálculo, major. Em vista das castas que recebi dos diversos pontos da província, e que lhe mostrei, não podemos duvidar da nossa vitória...

MAJOR. Mas então para que mandou dar mais dinheiro àquela súcia que saiu agora d’aqui?

PANTALEÃO. (atrapalhado.) Deixemos isso... O que lá vai, lá vai... (Outro tom.) O major podia ter-se apresentado somente pelo primeiro distrito; mas procedeu bem, seguindo o meu conselho e apresentando-se também pelo segundo. Se falhar o primeiro, sai pelo segundo; se falhar o segundo...

MAJOR. Oh! Pantaleão, e se falharem os dois?... Sinto-me sobre brasas... o coração parece saltar-me pela boca... tenho a cabeça pesada... creio até que estou com febre! Esta incerteza é um martírio! O pior calo, a pior dor de estômago não são comparáveis a isto!... Nunca pensei que um futuro deputado sofresse tanto!

PANTALEÃO. Mas que desanimo é esse, major?... Seja homem! Se a sua candidatura perigasse, vá lá que estivesse assim... mas uma candidatura garantida!

MAJOR. (com desanimo.) Mas, Pantaleão, se me falham os dois distritos?...

PANTALEÃO. (hesitando.) Se lhe falharem os dois distritos... o major não sai deputado por nenhum... (Resoluto.) Mas não falham! Aqui está o cálculo... (Mostra a tira de papel.) Um triunfo infalível! Acredite, major, já o estou vendo eleito, já o estou vendo na câmara, já o estou vendo subir à tribuna, já o estou ouvindo engatilhar o primeiro discurso!...

MAJOR. (mais animado.) E por falar n’isso: vá tratando de escrever o primeiro discurso para eu ter tempo de decorar. Quero coisa boa! Um palavreado graúdo cheio de figuras chinesas!

PANTALEÃO. (rindo.) Já lhe tenho dito muitas vezes que ninguém me apanha descalço, meu amigo! (Afasta-se do major, tira do bolso um maço de tiras de papel e mostra-as com ar triunfante.) Veja!

MAJOR. O que é isso?

PANTALEÃO. O que é isto?... Adivinhe.

MAJOR. São apontamentos da escola...

PANTALEÃO. Pois não! Apontamentos da escola!

MAJOR. É a relação dos votantes...

PANTALEÃO. Qual relação, nem qual carapuça, major!

MAJOR. É... é a conta dos epitáfios...

PANTALEÃO. (sacudindo as tiras.) É o seu primeiro discurso!

MAJOR. (contente.) O meu primeiro discurso!... Ah! Pantaleão, você vale o que pesa em moedas de dois vinténs do tempo antigo!... Vamos lá. Leia um pedaço para eu ouvir.

PANTALEÃO. Isto é um monumento, major! Há um mês que trabalho dia e noite — diurna e noturnamente — na construção deste monumento... mas posso gabar-me de que está coisa boa! Fiz isto com um mimo, um carinho, um amor e uma dedicação iguais à dedicação, ao amor, ao carinho e ao mimo de uma mãe por um filho! Sim, porque eu posso considerar-me mãe desta criança! Dei à luz depois de um mês de laborioso trabalho, lavei-a nas águas lustrais do meu talento, penteei-a com o pente de ouro da minha ilustração e amamentei-a com o leite virginal do meu gênio...

MAJOR. Mas leia, Pantaleão, leia...

PANTALEÃO. Trabalhei como um burro, mas este discurso há de ser transcrito em todos os jornais da Europa, Ásia, África, América e Oceania!

MAJOR. Mas leia, Pantaleão, leia...

PANTALEÃO. O mundo civilizado, desde a terra dos esquimós até a nossa freguesia, há de ficar pasmo, de boca aberta e olhos arregalados ante a profunda ciência e os vastíssimos conhecimentos aqui revelados... Emilio Castellar, o próprio Emilio Castellar, duvido que seja capaz de escrever uma coisa igual!

MAJOR. Mas leia, Pantaleão, leia...

PANTALEÃO. No dia em que o major proferir este discurso, em todas as casas da corte não ficará um gato! Todos correrão para ouvi-lo... E se mandar publicar editais com o prazo de três dias... então... até da China há de ir gente à Câmara!

MAJOR. (zangado.) Com mil raios! Leia, Pantaleão!

PANTALEÃO. (desdobrando as tiras.) Atenção, major! (Vai precipitar a ler, mas suspende-se.) Major, devo em primeiro lugar preveni-lo, para evitar arrependimentos futuros, que o senhor vai defender o comunismo.

MAJOR. Mas, Pantaleão, como posso eu defender gente que não conheço?... Pois eu lá sei que crimes cometeu esse sujeito, para defendê-lo! E se depois condenam o homem a galés perpétuas “por toda a vida” e multa correspondente ao dobro do tempo? Responda agora!

PANTALEÃO. (com profunda comiseração.) Oh! major, mas o comunismo não é um homem: — é uma ideia!...

MAJOR. É boa! Por que é que não disse logo?

PANTALEÃO. Atenda, major, atenda! (Tosse, assoa-se forte e lê enfaticamente.) — “Senhor presidente! — Da cratera do meu peito — me sobem à boca, em chamas, — as lavas deste discurso — em mil tremebundos dramas!”

MAJOR. Isso é verso, Pantaleão?

PANTALEÃO. Não, major. (Mostra o papel.) Olhe: o papel está escrito de cabo a rabo. Mas a linguagem é tão elevada, que quem a ouvir pensará que estou lendo versos. Atenção, major! (Lê como acima.) “Eu sou um canhão, senhor presidente! A minha palavra é granada, o meu entusiasmo é metralha, o meu patriotismo é lanterneta, o meu coração é Krupp, o meu cérebro é Manulicher!...”

MAJOR. (aplaudindo.) Bravo! bravo! Não há fortaleza nem encouraçado que resista a uma linguagem d’estas!

PANTALEÃO. (lendo como acima.) “Desde o papa Luiz XVI até ao rei da França Leão XIII, nunca apareceu um homem da minha altura intelectual. Senhor presidente, o mundo vai mal, vai mesmo pessimamente. Para endireitá-lo, o que é preciso fazer?... Destruí-lo, arrasá-lo, pô-lo em pedaços, para fazer-se outro em melhores condições... Pois arrasemos o mundo, senhor presidente!”

MAJOR. (entusiasmado.) Sim! sim! Arrasemos o mundo!

PANTALEÃO. (lendo como acima.) “E depois de termos feito outro mundo, estabeleçamos o comunismo, que é a melhor coisa conhecida! Todos teremos os mesmos direitos: V. Ex. pode entrar em minha casa e vestir a minha fatiota para ir ver a namorada; eu posso entrar na casa de V. Ex. e (?) todo o dinheiro que encontrar para metê-lo na pandega! Tudo é comum: os sapatos, a roupa, o chapéu, o dinheiro, e até as pontas de um cigarro! Os meus ilustres colegas serão uns quadrúpedes, se não quiserem o comunismo!”

MAJOR. (entusiasmado.) Sim! Estabeleçamos o comunismo... das pontas do cigarro!

PANTALEÃO. (ponto as tiras em cima do sofá.) E assim encho trinta tiras de papel! Ah! O major há de sair da câmara em triunfo!

MAJOR. Ah! Pantaleão, que dia! que dia!

PANTALEÃO. Que dia, major! (Dão nove horas, dentro.)

MAJOR. Nova horas! Vamos para a igreja, Pantaleão.

PANTALEÃO. Vá indo, major. O seu nome é o primeiro chamado. Vou por em ordem as tiras do seu discurso, e já o sigo.

MAJOR. Então, avie-se. Olho vivo! Até já. (Sobe.)

PANTALEÃO. Até já, major.

MAJOR. (Voltando-se da porta.) Não te demores, Pantaleão... (Sai.)

CENA V

PANTALEÃO. (depois de uma pausa, durante a qual junta as tiras do discurso e guarda-as no bolso.) Estou metido num torniquete!... Não tenho remédio senão roer a corda ao major e votar no candidato do governo... (Tirando uma carta do bolso.) Em vista desta maldita carta, que hoje recebi, se não votar com o governo, perco decididamente os meus vinte e tantos anos de bons serviços... (Lê.) “Senhor Pantaleão Peroba. — Acabam de comunicar-me que Vmcê cabala fortemente contra o nosso candidato, e que tem chegado até a meter medo aos votantes, ameaçando-os com a cadeia se não votarem no major Anacleto, dizendo alto e em bom som que a situação está podre e que não tarde a cair, isto é, — a levar o diabo, na sua gíria. Se a situação está podre ou não, isso não é do (?). O caminho que Vmcê vai seguindo é mau. Já ontem (?) se aqui da sua demissão; mas eu impedi que ela fosse levada a efeito, declarando que Vmcê votaria conosco. Assim, pois, ou Vmcê vota com o governo hoje, ou está amanhã no meio da rua. — Seu criado & & — Postscriptum. — Inclusa remeto-lhe a chapa com que Vmcê deve votar.” — (Guarda a carta. — Pausa.) É esta! E aqui está ao que no Brasil, em pleno ano de 1881, se chama liberdade de consciência e eleição livre!... Está fresca a tal liberdade de consciência! (Pausa.) E agora?... (Pausa.) Agora... agora... voto com o governo! O major que tenha paciência... Se até dentro da carta já vinha a chapa! Voto com o governo! (Pausa.) Mas como hei de escapar-me do major?... (Passeando.) Isto é o diabo!... (Batendo na frente.) Achei! Finjo uma dor de barriga, e meto-me na cama! (Pausa.) Mas assim também não voto com o governo, e os termos da carta são bem claros: — ou vota com o governo, ou olho da rua! — (Resoluto.) Ora, dê por onde der! Voto com o governo!

(N. 13)

Nada, nada, isto não serve,

e pra não viver inferno,

mando o major à tabua,

e vou votar no governo!

(Sobe, para sair, mas esbarra-se com Manduca — Roda nos calcanhares e desce — À parte.) O que quererá este malandro?

CENA VI

Pantaleão e Manduca

MANDUCA. (com uma gaita de foles debaixo do braço.) “Sô Espantaleão”, a tia Rita manda “dizê” que hoje vá lá “tomá” café...

PANTALEÃO. (zangado.) Hoje não posso... não posso...

MANDUCA. Ela “qué” também “falá” do casamento.

PANTALEÃO. Que casamento, rapaz?

MANDUCA. “Ué”! O casamento dela com “vancê”!

PANTALEÃO. Oh! Manduca, a tua tia está doida?

MANDUCA. Doida?... Ela está doida, “mas porém” é pra “casá” com “vancê”... está “memo” doidinha!

PANTALEÃO. (à parte.) Olha a lambisgoia! (Alto.) Manduca, vai dizer à tua tia que não me amole, que cuida das galinhas e dos porquinhos, e que se esqueça de casamento, porque há mais de quarenta anos que o casamento esqueceu-se dela!

MANDUCA. E “vancê pra” que foi “pedi” ela em “casóro”?

PANTALEÃO. Ora, deixe-me! Eu nem sei como foi aquilo... Eu estava idiota, doido varrido, porque deves compreender que só um doido varrido podia pedir a Rita barbada em casamento!

MANDUCA. (zangado.) Oh! “sô Espantaleão”, isso é desaforo!... A tia Rita é uma “muié” de bem...

PANTALEÃO. N’aquela idade, qualquer mulher é santa!

MANDUCA. É uma “muié” de bem... “Vancê” é que não tem “vregonha”!

PANTALEÃO. Oh! cachorro!

MANDUCA. (gritando.) Não tem “vregonha”! Si “vancê” tivesse “vregonha”, não fazia a “bandaiera” de “pedi” ela em casamento por pagode!

PANTALEÃO. Manduca!

MANDUCA. (agitando a gaita.) “Mas porém”, eu hei de “ensiná” a “vancê, sô” patife!... (Outro tom.) E a tia Rita que estava tão contente e que andou “espaiando” que ia “casá” com “vancê”!

PANTALEÃO. Quem a mandou ser linguaruda? Ora, a velha!

MANDUCA. “Veia”! Oh! “sô Espantaleão”, eu “le” corto a língua!... E corto, “pra vancê” não “andá” pedindo as “moça” em “casóro, pra” não “casá os pois”... “Mas porém”, deixe “está”... Eu indo pra cidade...

PANTALEÃO. Queres que te diga uma coisa, Manduca?... Vai te catar, e a tua tia que vá também se catar! Ora, a saracura da velha!... (Sai correndo.)

MANDUCA. (segurando-o a gritar e a tocar gaita.) Oh! “sô” pandorga!... Espera, cachorro!... (A cena fica vazia um momento.)

CENA VII

SERAFIM. (pensativo; para um momento ao entrar, olha para todos os lados e desce.) Amanhã... É amanhã que ela se casa!... Quem “havera” de dizer “ca” Rosalina não casa comigo, pra casar com outro!... (Pausa.) Não preguei o olho toda a santa noite, pensando nela!... Nunca senti tanta pulga e tanto mosquito! De vez em quando... (Fingindo que morde.) Ham! Uma pulga do tamanho de um boi, em cima do coração, a me chupar o tutano!... Depois... (Imitando um mosquito.) Fuim... fuim... fuim... Um mosquito maior do que um “bizerro” a me fazer comichão na ponta do nariz!... Virava-me pra todos os lados, pra direita, pra esquerda, de pança pra baixo, de pança “pra riba”... e nada! O sono não chegou... (Pausa.) E tudo por causa d’ela... Agora é que eu sei o amor que lhe tinha! (Pausa.) Ainda estou aqui sem almoço, e creio que ficarei também sem jantar! Sinto uma bola na goela, que não me deixa engolir o “cuspe”, quanto mais o pirão! (Pausa. Com voz de choro.) Ah! Rosalina! Rosalina! Nem tu sabes as desgraças que vais fazer com este casamento... Mas casa-te, casa-te! Que importa que deixes aqui um coração machucado, uma alma amarrotada, se vais te “adivertir” na cidade! Ingrata! ingrata! ingrata!...

(N. 14)

Menina dos olhos negros

e de falar adorado,

tu nem sabes quanto sofre

este triste desgraçado!

Do meu coração no meio

plantei um cravo amarelo:

o cravo nasceu formoso,

que era mesmo um gosto vê-lo!

Esse cravo primoroso

era o meu amor “cachopa”,

que agora, por ti, chorando,

em pranto todo se ensopa!

Agora ficou sozinho,

e tu vais para a cidade...

mas dentro de pouco tempo

há de matar-me a “sodade”!

Eu sei... eu sei que não fico muito tempo neste mundo... Se eu soubesse que não doía muito, metia... mas era uma faca ao coração, e acabava com isto de uma vez! (Pondo a mão no peito.) Ai! coração aflito... não batas com tanta força, que me fazes dor de cabeça!... Deixa que ela vá, que se “adivirta”, que seja feliz... embora tu fiques aqui morrendo de “sodades”!

(N. 15)

Ai! que tristezas no peito!

que mágoas no coração!

somente na sepultura

estas dores fim terão!

Esta dor que me esborracha,

ninguém, ninguém saberá!...

ela vai para a cidade,

eu fico triste... só cá!

(Olhando.) Lá vem ela... Como é bonita! Mal comparando, parece uma santa!... (Ameaçando com a mão fechada.) Ingrata! ingrata! ingrata!... Vou me esconder! (Esconde-se atrás do sofá.)

CENA VIII

Serafim e Rosalina

(N. 16)

ROSALINA

Está chegando, está chegando

o grande dia

do meu enlace, do meu enlace

ai! que alegria!

Sinto no peito

vivo calor...

minh’alma canta:

- amor! amo! –

Para a cidade, para a cidade

vou de partida,

pra ter com o Juca, pra ter com o Juca

formosa vida!

Sinto no peito

vivo calor...

minh’alma canta:

- amor! amor! –

SERAFIM. (à parte, encolhendo-se, para não ser visto.) Como está alegre!

ROSALINA. (sentando-se no sofá.) Consegui, enfim, a realização do meu maior desejo: casar com um moço da cidade...

SERAFIM. (à parte.) O que diz ela!

ROSALINA. Aqui há bons rapazes... mas são todos uns brutos que só sabem dizer tolices...

SERAFIM. (à parte.) Mau! mau! mau!

ROSALINA. Com o Juca a coisa muda de figura. O Juca é um marido perfeito...

SERAFIM. (à parte.) Mau! mau! mau!

ROSALINA. O Serafim, por exemplo: pode ser muito bom rapaz... mas é um brutamonte, um língua de trapos.

SERAFIM. (à parte.) Hem?... Pior! pior!

ROSALINA. Ora, uma moça educada como eu não vai certamente sujeitar-se toda a vida a um tolo como o Serafim.

SERAFIM. (que se tem levantando por trás do sofá, gritando-lhe ao ouvido, furioso.) Tola é ela, ouviu?

ROSALINA. (tapando os ouvidos e correndo para o outro lado.) Ai!

SERAFIM. (com voz chorosa, tomando cena.) Pois casa-te com o outro, “cachopa” de uma figa... casa-te... e deixa o tolo... Vai pra cidade... anda... vai com o teu Juca... e quando te forem dizer que eu morri... podes dizer logo: — “Foi por minha causa!” — Mas não chores por mim, não... porque ninguém chora quando morre um tolo!...

ROSALINA. (voltando-se.) Mas, Serafim...

SERAFIM. (no mesmo tom.) Não chores, não... Canta antes, como cantava “indagurinha”, e vai dizer ao teu marido, ao teu belo Juca: — “Sabes quem morreu? Foi o tolo do “Sarafim”! (Tira uma faca do bolso.)

ROSALINA. (recuando e cobrindo o rosto com as mãos.) Jesus!

SERAFIM. (no mesmo tom.) Não tenhas medo de que eu te meta o ferro, não... Esta faca é pra mim, ouviste? Hei de enterrá-la até o coração... e “os pois... os pois”... (Chorando baixo.) “Os pois”... os outros só têm o trabalho de me carregar e de me atirar dentro do buraco do coveiro! Adeus!... Casa com o Juca... casa... e sê feliz! (Sobe, chorando.)

ROSALINA. (comovida.) Mas, Serafim...

SERAFIM. (voltando-se, a limpar os olhos.) Adeus!... Adeus! (Sai, soluçando.)

CENA IX

ROSALINA. Tenho pena... E se ele mata-se?... (Pausa.) Não se mata, não. O Serafim não tem coragem para isso. Mas que mania! Querer por força que eu case com ele! (Ao espelho.) Ora! O Serafim que se deixe de tolices!...

(N. 17)

Se o casamento é destino,

que não se pode quebrar,

com o meu Juca de certo,

é meu destino casar!

Ao lado d’ele, cantando,

numa alegria sem par,

hei de eterna felicidade

eternamente gozar!

CENA X

Rosalina e Major

MAJOR. (furioso.) Cem mil raios! com um milhão de demônios!

ROSALINA. (indo a ele.) O que é, papai?

MAJOR. Com trezentas maçarocas de milho! com seiscentas raízes de mandioca! com cem quarteirões de laranjas!

ROSALINA. (seguindo-o.) Mas o que é, papai?

MAJOR. Deixa-me, rapariga! Não me desesperes ainda mais!... (Passeando.) Ah! que se eu soubesse que havia de suceder-me isto!... Se eu adivinhasse!...

ROSALINA. Mas por que está tão zangado, papai?

MAJOR. (passeando.) Desaforo!... pouca vergonha!... bandalheira!... Quem me mandou ir atrás das cantigas do maluco do Pantaleão e da palavra de meia dúzia de patifes, que o que queriam era chupar-me os cobres?... Ah! mas hei de vingar-me! Canalhas!... Enganaram-me até a última hora!...

ROSALINA. (à parte.) Está realizada a profecia do Juca. Lá se foi a eleição!

MAJOR. (passeando.) Ah! mas eu queria ser Deus por dois minutos somente! Havia de fazer cair tantos raios sobre essa súcia de patifes, que não ficaria um para remédio!... E o meu rico dinheirinho, o meu rico dinheirinho, que tanto me custou a ganhar!... e a vergonha!... e o fiasco!... (Indo à porta e ameaçando para fora.) Ah! bandidos!... ah! a corja de ladrões...

ROSALINA. Acalme-se, papai... Tenha paciência...

MAJOR. (passeando.) Paciência!... A paciência é boa para as bestas!... (Outro tom.) Quando eu contava com a votação toda, com um triunfo completo; quando já me preparava para principiar a decorar o discurso do Pantaleão; quando já me via levado em charola pelas ruas da sorte e cantando em prosa e verso por todo mundo... obter um único voto... e esse mesmo... o meu!... De modo que se eu tivesse ficado em casa, nem mesmo o meu voto teria!... Agora o Pantaleão que meta no... que meta no fogo o seu discurso!...

ROSALINA. O Juca bem o preveniu. Por que não seguiu o seu conselho?

MAJOR. Tens razão... Mas, o que queres?... O Pantaleão garantia-me a coisa... dizia que era infalível a minha eleição... chegou a escrever o primeiro discurso que eu havia de proferir na câmara dos deputados!... Acreditei, e deixei-me embalar como uma criança de mama!... No entretanto, até o canalha do Pantaleão vai votar no candidato do governo!... Mas o cachorro há de vir para cá!... Mas hei de pô-lo... hei de pô-lo... Cá o espero...

ROSALINA. Não lhe diga uma palavra, papai... O que é preciso agora é fazer esquecer tudo. Venda o sítio e vá morar conosco na cidade. Fica livre do Pantaleão, e não se incomoda mais...

MAJOR. É o que vou fazer sem perda de tempo. Não posso mais viver aqui! Não posso! não posso!...

CENA XI

Os mesmos, Juca, Pantaleão, Serafim, Romualdo, Quincas, Antônio e Manduca

JUCA. Aceite os meus pêsames, major. Se tivesse ouvido a minha opinião, não passaria pelo fiasco de uma derrota e pelo dissabor de se ver atraiçoado pelos que se diziam seus amigos.

MAJOR. Oh! Pantaleão! Pois até você, homem... você votar contra mim!

PANTALEÃO. (encalistrado.) O que quer, major?... Se eu não votasse no governo, estava no olho da rua... Fui ameaçado, major, fui ameaçado!... Ainda aqui tenho a carta!... (Mostra a carta.)

JUCA. (tomando o centro da cena.) Foi ameaçado?... É sempre assim! Que importa o direito de pensamento?... que importa a liberdade de consciência?... Seja tudo calcado aos pés, seja tudo despedaço pela mão de ferro da prepotência, contanto que das ruínas da honra e do brio do povo — saia vitorioso um nome qualquer, que era ontem inteiramente desconhecido, que é hoje endeusado pelos (?) do poder, e que será amanhã apedrejado pelos mesmos que o elevaram, fazendo como os abissínios, que adoram o sol que nasce e que insultam o sol que declina!... E quando a voz da consciência nacional tenta erguer-se para anatematizar os seus carrascos aí está a garra terrível da violência para sufocá-la, para estrangulá-la ao primeiro grito!... E depois, na tribuna e na imprensa, nas praças e nas esquinas, apregoam os arautos da corrupção, os assassinos da dignidade nacional — da dignidade do povo — que a liberdade de consciência é um fato; que o direito de pensamento é uma realidade! Mas, um dia, no coração entusiasta, no grande coração do povo — de onde ressaltam, como chispas incandescentes, as enormes revoluções que esmagam; e as sublimes evoluções que elevam; n’esse mar gigante, que incessantemente tumultua, batido incessantemente pelos vendavais das opiniões desencontradas, dos opostos anelos, dos desejos heterogêneos, há de surgir — como surge do meio das nuvens convulsionadas das noites de tempestade o olhar luminoso e puro de uma estrela perdida — o clarão deslumbrante de uma reação poderosa, extraordinária, tremenda, para a conquista da liberdade de consciência e do direito de pensamento!

MAJOR. (aos rapazes.) E vocês, súcia de...

QUINCAS. Atchi!... O “sô” subdelegado berrou que nos mandava “arrecurutar”, se nós não déssemos o voto a ele... nós ficamos com medo, e...

ROMUALDO. Ai! ai! O “sô” subdelegado gritou tanto! “Zesus”! Eu fiquei logo a tremer e fui recebendo a chapa...

SERAFIM. Eu não votei porque não quis!

QUINCAS. (a Serafim.) E vai te calando! Lá fora hás de vomitar todo o cobre que o “sô manjor” e o “sô Espantaleão” te deram pra repartires conosco.

ANTÔNIO. (a Serafim.) Gatuno!

ROMUALDO. (ao mesmo tempo.) Gatuno!

MANDUCA. (baixo.) “Sô Espantaleão”, a tia Rita manda “dizê”...

PANTALEÃO. (afastando-se.) Ora, vai pro diabo que te leve!

MAJOR. Mas que gente! que amigos! que companheiros! que súcia!...

JUCA. Resigne-se, meu sogro. O que está feito, não tem mais remédio.

MAJOR. Ah! meu amigo, se eu tivesse tomado os seus conselhos...

JUCA. Mas não tomou, e aí está o seu prejuízo.

PANTALEÃO. (choroso.) Oh! major, você não fica com raiva de mim?... Eu fui ameaçado, major!

MAJOR. (choroso.) Fizeste mal, Pantaleão, mas não te tenho gana. Em ti falou mais alto a barriga do que a consciência... mas sou teu amigo! (Abraçam-se e desandam a chorar.)

JUCA. Mas o que é isso, meus senhores! Não vale a pena derramar lágrimas... Coração à larga!

MAJOR. (aos rapazes.) Rapazes, vocês procederam como uns canalhas; mas sejam felizes com os cobres que lhes dei. É a primeira e última vez que me apresento candidato. Estou despedido da política e retiro-me à vida privada.

ANTÔNIO. Oh! “sô manjor”, e o dinheiro que o “Sarafim” embolsou?

MAJOR. Isso não é comigo; é com ele.

QUINCAS. Ah! é com ele!

ANTÔNIO. Então, espera lá... Avança, rapaziada! (Arregaçam as mangas os três e avançam.)

SERAFIM. (tranquilamente, tira a faca do bolso e mostra-lhes.) Cuidado, rapazes! (Os três recuam e conversam calorosamente, enquanto Rosalina canta.)

(N.18)

ROSALINA

Esqueçamos, cantando, as tristezas

da derrota na grande eleição,

e contentes,

sorridentes,

saltitantes, felizes, gostosos,

aos formosos,

primorosos

grandes rasgos de bom coração,

olvidemos,

perdoemos

a traição,

a traição,

a traição!

CORO

Esqueçamos, cantando, as tristezas

da derrota na grande eleição,

e contentes,

& & &

FIM DO 3º ATO

ATO IV

OS NOIVOS

A mesma sala do 1º ato. Capas de “crochet” nas cadeiras e no sofá. Flores em profusão. Cortinas nas portas e janela, apanhadas com laços de fita. Sobre o sofá, um véu e uma grinalda de noiva. — É dia.

CENA I

Major, Pantaleão, Juca, Rosalina, Serafim, Romualdo, Quincas, Antônio, Manduca, José Caolho e Convidados

CORO

Viva a alegria

no grande dia

deste himeneu!

que risos, flores,

cantos, amores

desçam do céu!

Que os anjos lindos

coros infindos

de fé gentil,

entoem belos,

cheios de anelos,

no céu de anil!

Todos os gozos,

os mais formosos,

de mais ardor,

venham, em bandos,

serenos brandos,

par’ este amor!

MAJOR. Ah! meus amigos, sinto-me tão alegre, tão feliz que esqueço tudo, a minha eleição, a minha derrota, os meus trabalhos perdidos, o meu dinheiro deitado fora! (Mostrando Rosalina e Juca.) Vejam, admirem aquele par! Que maior felicidade pode ambicionar um pai do que ver seus filhos felizes?... E a minha filha é feliz, não és, Rosalina?

ROSALINA. Sim, meu querido pai; muito feliz!

JUCA. E eu então! Como o mergulhador que vai ao desconhecido fundo dos mares acariciar aos maravilhosos e encantados palácios das Nereides a esplêndida pérola que se irisa de mil cintilações ardentes aos raios acariciadores do sol — eu, mergulhador dos mares do belo, encontrei também no fundos silenciosos desta solidão a pérola sedutora dos meus amores, a mulher dos meus sonhos, a realização do meu ideal! (Tomando a mão de Rosalina.) Rosalina, em nome do Cristo, que contemplou e abençoou a nossa união, eu, mais uma vez, juro que arrastarei todos os sacrifícios, que vencerei todas as contrariedades, para fazer-te feliz! No meu grande amor, na minha enorme dedicação por ti — encontrarei a força, a coragem, o heroísmo para lutar contra tudo e para de tudo triunfar! E quando tiver conseguido o meu mais íntimo desejo, a minha ambição mais sagrada — a tua felicidade, — julgar-me-ei generosamente recompensado se vir em teus olhos cintilar a dulcíssima alegria da tua formosa alma, se vir em teus lábios (?) um sorriso meigo do teu amor por mim!

ROSALINA. Meu amigo, Deus abençoou o nosso amor e sinto que minha mãe sorri-se no céu e abençoa-nos também. A felicidade não é uma palavra vã. O jubilo que me enche o coração, a alegra que me banha a alma — não são uma mentira, não são um sonho, que se dissipa ao romper da aurora! Hão de durar sempre, sempre — até o derradeiro dia da minha vida!... Amo-te! amo-te!

PANTALEÃO. Meus amigos, não venho fazer uma preleção de história; venho simplesmente dizer o que sinto, venho, em poucas palavras, exprimir o pensamento que me anima neste momento. Ambos são moços e belos, ambos são generosos e bons, ambos amam-se com a mesma reciprocidade, com o mesmo encanto, com a mesma paixão. Hão de ser felizes, porque a felicidade do lar não consiste na riqueza, no luxo, nas grandezas e nas vaidades: — consiste no amor verdadeiro e na consciência pura!

JUCA. Obrigado, senhor Pantaleão: as suas palavras ficam-nos gravadas na memória e no coração!

MAJOR. (abraçando Pantaleão.) Obrigado, meu amigo, obrigado!

SERAFIM. (que tem estado a conferenciar com os companheiros, adiantando-se, timidamente.) Senhor Juca, menina Rosalina... agora, que já estão casados e que vão em breve deixar a freguesia... consintam que eu diga a verdade...

ROSALINA. (comovida.) Diga, Serafim...

SERAFIM. (timidamente.) Todos nós a amávamos, menina... todos, mas Deus determinou outra coisa... e nós não nos queixamos... porque bem sabemos que não a merecíamos... (Pausa.) Menina Rosalina... não em nome do nosso amor... mas da nossa amizade... eu e eles... oferecemos-lhe... no dia do seu casamento... como uma lembrança... este modesto ramo de flores... e pedimos-lhe... que nos perdoe qualquer ofensa... que de nós tenha recebido... (Oferece o ramo que tem na mão e abaixa a cabeça, extremamente comovido.)

ROSALINA. (tomando o ramo.) Aceito, Serafim! Obrigada!

SERAFIM. (mostrando Juca.) E ele... ele consente?...

ROSALINA. (a Juca.) Meu amigo, posso aceitar?

JUCA. (abraçando Serafim.) Aí tens a resposta! Serafim, neste abraço leal vai o meu reconhecimento a todos, vai a todos a minha gratidão!

SERAFIM. Obrigado! (Depois de um esforço, aos companheiros.) Rapazes, haja alegria! Vivam os noivos:

TODOS. Vivam!

JUCA

(N. 20) — Recitativo

Se foi aqui que a dita, a divinal ventura,

o sorriso, o prazer, a luz eu encontrei;

se foi aqui que a crença, ampla, serena e pura,

- a crença que avigora a vida, forte, — achei;

se aqui foi que a minh’alma abriu-se à luz divina,

à luz vitalizante e sã do casto amor;

se aqui foi que da vida, — olente e peregrina,

alegre e festival, — eu vim achar a flor;

se aqui foi que meu peito — ardente, apaixonado –

veio um peito encontrar cheio de amor por mim,

se aqui foi que o sorriso alegre e perfumado

da ventura do lar, veio afagar-me, — assim:

- eu não posso partir, sem vos deixar, no instante

da minha despedida, em (?) emoção,

provas do meu afeto, — um raio cintilante

da minha verdadeira e eterna gratidão!

PANTALEÃO. Meu amigo, pelo povo da freguesia, aceito e agradeço a sua despedida.

JUCA. Que é tão sincera, como é sincero e profundo o pesar que sinto ao separar-me de todos...

PANTALEÃO. Sabemos...

(N. 21)

ROSALINA

Adeus, montanhas, adeus, valados,

adeus, oh! serras onde vivi;

adeus, serenos, formosos prados,

adeus, oh! fontes onde me vi!

Vou separar-me de vós! Quem sabe

o que o destino de mim fará?...

Na mente humana fraca não cabe

ler no futuro... ninguém lerá!

Tenho esperança de ser ditosa,

tenho esperança de ser feliz...

diz-me a sua alma cavalheirosa,

seu belo gênio também o diz!

Levo de todos uma lembrança,

uma saudosa recordação:

- nas tempestades ou na bonança,

há de lembrar-vos meu coração!

E quando, um dia, no fim da vida,

fechar os olhos, pra sempre, enfim,

lembrai o dia desta partida...

lembrai a morta... chorai por mim!

CORO

Que doce ventura — risonha, infinita,

serena, bendita

de gozos gentis,

brilhante matize de flores seus dias,

de sãs alegrias,

de risos gasis!

MAJOR. E quando partem?

JUCA. Apenas chegue a carruagem que mandei vir para levar-nos.

PANTALEÃO. (aos rapazes.) Então, rapazes, ainda há tempo. Vão jantar e estejam de volta dentro em dez minutos para acompanharmos os noivos até a encruzilhada.

SERAFIM. (aos outros.) Vamos jantar! vamos jantar!

MANDUCA. (a Pantaleão.) “Sô Espantaleão”m na “vorta” eu posso “trazê” a minha gaitinha?... Eu já sei “tocá” o Bitu e a Canaverde... Serve “pra acompanhá” os “noivo”...

PANTALEÃO. Ora, Manduca, tu és tolo! Deixa a gaitinha e vem sozinho. (Baixo.) Olha, de caminho diz à tua tia que aquele negócio de casamento era uma brincadeira: que já que cheguei solteiro aos cinquenta, não quero casar-me mais... com ela...

ROMUALDO. (olhando para Rosalina.) Ai! ai!

QUINCAS. (olhando para Rosalina.) Atchi!

ANTÔNIO. Oh! rapazes, vamos jantar! Com a fome que tenho sou capaz de comer a freguesia toda!

ROMUALDO. Oh! Antonico, a mim é que tu não comes!... Ai! ai!

(N. 22)

CORO DOS RAPAZES

Vamos, vamos, rapazes, avante,

e afoguemos no peito a aflição,

vamos, vamos comer, sem demora,

carne seca, toucinho e feijão!

(Enquanto cantam desfilam a um de fundo, dirigidos por Serafim. — Saem.)

CAOLHO. (cumprimenta para todos os lados e sai.)

MAJOR. Pantaleão, uma pingazinha do meu vinho para matar as mágoas. Tenho um vinhozinho novo, puro, perfeitamente puro!

PANTALEÃO. Vamos prová-lo, major. (À parte.) Se o vinhozinho puro for tão puro como o outro... é cachaça pura!

MAJOR. Adiante, Pantaleão, adiante. (Saem. — Os convidados seguem-nos, a um gesto do major.)

CENA II

Rosalina e Juca

JUCA. (que tem ido sentar-se ao lado de Rosalina, que está no sofá, pensativa.) Por que estás triste?

ROSALINA. (colocando no pé de si, no sofá, o ramo que tem conservado na mão.) Sim... Estou triste...

JUCA. Mas não te julgas feliz?

ROSALINA. Muito feliz até!

JUCA. E então? Supões que o meu amor esfrie, que eu deixe de amar-te um dia?

ROSALINA. Quem sabe?

JUCA. Como?

ROSALINA. Tudo é possível no mundo. A natureza é caprichosa, e, dia a dia, vai tudo passando por uma transformação — insensível a princípio, vaga depois, e clara finalmente... O imortal poeta de Marília disse uma vez

“Minha bela Marília, tudo passa...

a sorte deste mundo é mal segura”...

JUCA. Mas isso, minha querida, é duvidar de mim, dos meus sentimentos...

ROSALINA. Não. Amo-te e creio em ti. Mas há momentos em que uma tristeza vaga, indefinida nos invade o coração, e faz-nos ter ideias extravagantes, que nunca julgamos que nos ferissem a imaginação. O pensamento de separar-me de meu pai, de deixar esta casa, onde nasci e onde minha mãe morreu, beijando-me, enluta-me o coração... Sei que o teu amor por mim não tem limites, e que esse amor é uma garantia do meu futuro e da minha felicidade... mas...

JUCA. Rosalina!

ROSALINA. Não tomes a mal as minhas palavras... Mas deves compreender que uma transformação tão completa como esta que acaba de dar-se na minha vida, há de forçosamente produzir a meditação... (Levanta-se.)

JUCA. Sei... (Levando-a à boca da cena.) Mas, vamos... não te entregues à tristeza, não te abandones a essa cisma, que me faz mal. O futuro é de Deus, e Deus há de permitir que sejamos felizes, completamente felizes... Vamos, Rosalina... lembra-te da tua canção de amor, e canta-a mais uma vez. Ela será o doce talismã do nosso amor, o elo de ouro da nossa mútua paixão... (Recordando a poesia.) Lembra-te...

“O amor é riso, é canto,

aurora, aroma, flor...”

(N. 23) (Música do n. 1)

ROSALINA

Amor! amor!

o amor é riso, é canto,

aurora, aroma, flor,

o mais divino encanto,

o jubilo maior!

Amor! amor!

Amor! amor!

o sol das alegrias,

da vida o são calor,

o céu das harmonias,

o riso, o canto, a flor!

Amor! amor!

JUCA. Vês?... O amor é o riso da ventura, o canto da alegria, a aurora da alma, o aroma da pureza, a flor divina do maior sentimento inspirado pelo céu! O amor é o sol dourado dos júbilos, o calor vitalizante do coração, o céu das harmonias arrebatadoras!... E esse amor, eu sinto-o aqui, no meu coração, que palpita junto do teu, na minha alma, que é tua, que te adora no êxtase mudo de uma paixão eterna!... Longe, pois, as tristezas, minha bem amada, as meditações, as saudades!

ROSALINA. Sim... tens razão... És meu, unicamente meu! O que posso eu mais ambicionar?... (Alegre.) Olha, estou alegre... rio... canto... nado num oceano de luz, de júbilos, de rosas e de amor!...

JUCA. Ah! assim é que eu quero ver-te sempre!

ROSALINA. Juca, é uma puerilidade o que vou dizer-te... não te rias... mas queria despedir-me das minhas flores, dos meus canteiros, do meu jardinzinho, onde tantas horas felizes e descuidosas passei...

JUCA. Pois vamos, minha querida, vamos... (Saem de mãos dadas, conversando.)

CENA III

PANTALEÃO. (zangado.) E a tartaruga da velha!... Ora, que espiga! Pois a maldita não está quase a armar um escândalo! (Outro tom.) Bem feito, “seu” Pantaleão, bem feito! Quem o mandou procurar sarna pra se coçar! Deixasse que a Barbada tirasse o barbado da escola e não se pusesse com história!... (Outro tom.) Se não foi o diabo que me soprou a declaração que fiz àquela cara de pergaminho!... Foi o diabo, foi: pois quem mais havia de ser? (Outro tom.) Pois a estúpida não manda o sobrinho dizer-me que eu sou um perverso, um mau homem, um assassino, um... Mau homem! assassino! Eu, que nunca matei ninguém, fora as traças da escola!

(N. 24)

Que não me atazane a velha,

que não me seja gaiteira,

que não venha com lambanças,

porque senão... faço asneira!

Sou bem capaz de agarrá-la...

é — aqui, que ninguém nos ouve, -

passo-lhe a corda ao pescoço

e enforco-a... num pé de couve!

CENA IV

Pantaleão e Manduca

MANDUCA. “Sô Espantaleão”, a tia Rita manda “dizê”...

PANTALEÃO. Ora, vai pro inferno com a tua tia! Que espiga!

MANDUCA. Mas ela manda “dizê”...

PANTALEÃO. De mazelas estás tu cheio! Ouviste, gafanhoto?

MANDUCA. Mas ela manda “dizê”...

PANTALEÃO. Já sei o que ela manda dizer... Já o disseste ainda agora, e eu não estou para ouvir a mesma ladainha a cada instante!

MANDUCA. Mas agora é outra coisa. Ela manda “dizê”...

PANTALEÃO. Oh! filho espúrio de Satanás!... mete a língua na bainha, e deixa-me sossegado!

MANDUCA. Mas ela manda “dizê”...

PANTALEÃO. Oh! senhores! Este crocodilo é capaz de fazer Santo Antônio matar um homem! Que praga!

MANDUCA. Mas ela manda “dizê”...

PANTALEÃO. Oh! “sô” Manduca Barbado, sobrinho da Rita Barbada e filho do Diabo Barbado... fique sabendo que eu não caso com a (?) da sua tia, porque ela é uma jaguatirica, um gato do mato, um porco espinho, uma ladraia, uma bruxa, uma carocha, uma minhoca, uma arca de Noé de todos os bichos feios!... Ora, aí está!

MANDUCA. “Hem”! Diga outra vez, diga, “sô”... “sô”... cara de “lambisome”!...

PANTALEÃO. (contendo-se.) Manduca, vai-te embora... vai-te catar... A tua tia comigo está frita! Só um jumento pode casar com ela!... Se me incomodar muito, mando recrutá-la e sento-lhe praça! Aquilo é um suados de sabugueiro, um vomitória de jalapa e um purgante de óleo de rícino... tudo junto!...

MANDUCA. Oh! cabeça de mamão! Bem disse a tia Rita que “vancê” é um “canaia”!

PANTALEÃO. (furioso.) Um canalha!

MANDUCA. (subindo.) Um “canaia”! um “canaia”! um “canaia”! (Voltando-se da porta.) Um “canaia”! (Sai.)

CENA V

PANTALEÃO. Um canalha! Mas isto é o diabo! Desta maneira, a maldita velha é capaz de perseguir-me até depois de morta!... Mas, que mania! Uma múmia de quase setenta anos com entusiasmos de casamento, como qualquer moça! (Outro tom.) Estou vendo que não tenho remédio senão tirar um mês de licença e ir para cidade, roer os feijões do Juca! (Passeando.) E não há uma epidemia que rape aquele diabo e o leve lá bem para o fundo das caldeiras do inferno! Não caso, positivamente, com ela não caso!...

(N. 25)

Não caso, não caso,

não quero casar,

não quero, não quero

purgante tomar!

Não caso, não caso,

não quero casar,

e a velha danada

que vá se catar!

CENA VI

Pantaleão e Major

MAJOR. (choroso.) Oh! Pantaleão! Pantaleão!... E lá se vai a Rosalina, Pantaleão!... a menina Rosalina da Trindade, Pantaleão!... a filha do major Anacleto “duas aspinhas”, Pantaleão!... Ah! Pantaleão... tenho o coração do tamanho de uma melancia!...

PANTALEÃO. Animo, major! ânimo!! Com a breca! A menina Rosalina não vai pra cova! Ao contrário, vai gozar a bela vida da cidade.

MAJOR. Mas eu estou triste, Pantaleão, triste como um caixão de defunto da câmara municipal!...

PANTALEÃO. O que é que é da câmara municipal, major: o caixão ou o defunto?

MAJOR. O caixão, está claro, Pantaleão!

PANTALEÃO. Pois eu pensei que era o defunto!

MAJOR. Tenho uma vontade de chorar, que é uma coisa por demais...

PANTALEÃO. Ah! major, sabe quem é que tem a culpa dessa tristeza?... É a própria Rosalina... Se ela tivesse aceitado a minha mão, não iria para a cidade, e passaríamos aqui uma vidinha de anjos, sim, de anjos, porque debaixo dessa careca, major, há fogo, há chamas, há um Etna, há um Vesúvio, há um Hecla em perpétua ebulição!... Nas minhas veias não é sangue que corre: é chumbo derretido!

MAJOR. (meio desconfiado, afastando-se.) Chega-te pra lá, Pantaleão!... (À parte.) E que tal!... Em que perigo estou eu metido!

PANTALEÃO. É o que lhe digo, major: a culpa é d’ela...

MAJOR. Mas Deus não quis, Pantaleão... Paciência.

PANTALEÃO. É do que precisam os cegos... e nós também!

MAJOR. (abraçando-o, a chorar.) Pantaleão!

PANTALEÃO. (a chorar.) Major! (Ficam abraçados, à boca da cena, a chorar, com os lenços nos olhos.)

CENA VII

Os mesmos, Serafim, Quincas, Antônio e Romualdo

Serafim. (que vem na frente, volta-se, fazendo sinal para os outros.) Olhem como eles choram!

OS OUTROS. (formando em linha, ao fundo.) É verdade!

ROMUALDO. (esfregando os olhos.) Eu já estou me derretendo!... Ai! ai!

QUINCAS. (esfregando os olhos.) Atchi! Eu também!

SERAFIM. (esfregando os olhos.) Pois não estou quase berrando!

ANTÔNIO. (esfregando os olhos.) Até eu!

MAJOR. (chorando alto.) Pantaleão da minha alma!

PANTALEÃO. (chorando alto.) Major do meu coração!

AMBOS. (chorando.) Ham! ham! ham!

OS OUTROS. (em linha, ao fundo, chorando.) Ham! ham! ham!

MAJOR. (subindo.) Ah! rapazes, ela vai-se embora!

TODOS. Vai-se embora!

MAJOR. A Rosalina!

TODOS. A Rosalina!

MAJOR. A nossa filha!

TODOS. A nossa filha!

MAJOR. (abraçando Pantaleão.) Ah! Pantaleão amado!

PANTALEÃO. (abraçando o major.) Ah! querido Anacleto!

AMBOS. (chorando.) Ham! ham! ham!

OS OUTROS. (chorando.) Ham! ham! ham!

MAJOR. (caindo numa cadeira.) Pantaleão... ampara-me... eu morro!... (Esperneando.) Hu! hu! hu! (Todos o rodeiam.)

PANTALEÃO. Serafim, vai lá dentro e traz...

SERAFIM. Água da “Clonha”?

PANTALEÃO. Não, homem; isso não serve de nada... Uma garrafa de vinho... Depressa! (Descendo.) Desconfio que o homem há pouco afogou demais as mágoas... E dizem que a mordedura do cão cura-se com o pelo do próprio cão!... (A Serafim.) Oh! estafermo, ainda estás aí?

SERAFIM. Vou numa disparada. (Sai e volta logo com uma garrafa, cujo conteúdo vem saboreando.)

PANTALEÃO. (tomando a garrafa.) Dá cá, dá cá!

MAJOR. (esperneando.) Hu! hu! hu!

SERAFIM. (estalando a língua.) É bom que dói?

PANTALEÃO. O major não está bom, rapazes... (Mete o gargalo da garrafa na boca do major.) Beba, major, beba a garrafa toda, se puder! Isto é remédio santo! É como a sua receita da folha de peri-peroba com azeite!

MAJOR. (bebe, depois abre os olhos e começa a estalar a língua no céu da boca e a lamber os beiços.) Remédio santo! remédio santo!

PANTALEÃO. (que logo após ter o major bebido, vai para um canto e bebe também.) É santo, major, é... (Bebe.) Eu também estava me sentindo aflito... (Bebe.) Mas já estou melhor... (Volta a garrafa de boca para baixo.) Acabou-se a receita! Agora ninguém mais terá tremeliques! (Deita a garrafa pela janela e volta ao major.)

MAJOR. (levantando-se.) Onde está a Rosalina?

PANTALEÃO. Há de andar por aí por algum canto, conversando com o marido... É natural... O meu prazer é não ser eu que...

ROMUALDO. Ai! ai! Eu sei onde ela está...

SERAFIM. Onde é?

ANTÔNIO. Desembucha, “alimal”!

QUINCAS. Diz lá... Atchi!

ROMUALDO. Ai! ai! Estava no caminho do “corgo” conversando “cô sô” Juca... (Encolhendo-se.) “Zesus”! E como estavam agarradinhos!

MAJOR. (abraçando Pantaleão.) Ah! Pantaleão!

PANTALEÃO. Cuidado, major... não vá ter outro ataque... A receita acabou-se.

ROMUALDO. (abraçado com Quincas.) Ai! ai!

QUINCAS. Atchi!

ANTÔNIO. (abraçado com Serafim.) Ai! “cachopa”!... “cachopa”!

SERAFIM. Que “sodade”!

TODOS. (desatando a chorar.) Ham! ham! ham!

PANTALEÃO. (com o lenço nos olhos, sobe, encontra o Caolho e abraça-o, pensando ser Rosalina.) Ai! menina Rosalina!

CENA VIII

Os mesmos e Caolho

CAOLHO. (dá um boléu em Pantaleão e desce, cumprimentando para todos os lados.)

ROMUALDO. (dando um enorme suspiro.) Ai! ai!

QUINCAS. (grande espirro.) Atchi! Viva o “sô” Zé!

CAOLHO. (cumprimentando para todos os lados.)

PANTALEÃO. (envergonhado.) Desculpe, senhor inspetor... Estou tão comovido...

CAOLHO. (cumprimenta para todos os lados. — Estalos de chicote e rumor de carro, fora.)

CENA IX

Os mesmos, Juca, Rosalina, Manduca, Convidados

JUCA. Meus amigos, acaba de chegar a carruagem que tem de nos conduzir para a cidade. Mais uma vez, com muito reconhecimento, agradeço o bom acolhimento que me dispensaram, ficando todos certos da minha gratidão e da minha simpatia. (Abraçando o major.) Adeus, meu sogro. A cidade é perto, e todos os dias por ir ver-nos. Neste abraço que lhe dou, despeço-me de si e de todos os nossos amigos.

ROSALINA. (dando uma carteira.) Meu pai, aqui tem esta carteira. Peço-lhe que em lembrança minha distribua pelos pobres da freguesia o dinheiro que ela contém. Sou feliz, e quero que todos abençoem a minha felicidade!

MAJOR. (abraçando-a, comovido.) Filha!... (Sentimento geral.)

ROSALINA. (comovida.) Adeus, meus amigos! Não pensam que a cidade me fará esquecê-los. Hei de lembrar-me sempre de todos, e espero que todos se lembrem também de mim!... (Vai no sofá buscar o ramo de flores, e desce.)

(N. 26)

No momento da partida,

sinto minh’alma ferida,

e o meu coração chorar!

Se vou ter a felicidade,

levo comigo a saudade,

a tristeza de os deixar!

Que gozem horas benditas,

mas que no meio das ditas,

das ditas que vêm dos céus,

a ventura peregrina

implorem pra Rosalina

ai! adeus! adeus! adeus!

CORO

Que gozem horas benditas,

que tenham ditas, mil ditas,

as ditas que vêm dos céus!

que a ventura peregrina

te acompanhe, Rosalina...

ai! adeus! adeus! adeus!

Rosalina abraça o pai e sobe. — Juca segue-a. — Os outros dispõem-se a acompanhá-los. — Cai o pano.

FIM