Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

O anjo do lar, de Horácio Nunes


Texto-fonte:

Horácio Nunes Pires, Bastidores. Teatro original,

Florianópolis: Gabinete Tipográfico Catarinense, 1898.

O ANJO DO LAR

Drama original em 2 atos

Este drama foi, em 1881, escrito a pedido da então pequenita atriz Julieta dos Santos.

(Segundo Altino Flores, em 1883 foi entregue, pelo próprio autor, no “Teatro Santa Isabel”, da antiga cidade do Desterro, à atrizinha Francisca Julieta dos Santos, em cena aberta, em a noite do espetáculo em benefício dela: 5ª feira, 18 de janeiro de 1883. (Veja-se o JORNAL DO COMÉRCIO, do Desterro, dessa época).

Duas palavras

Este pequeno drama foi severamente recebido, alegando-se em prol dessa severidade:

1º. — ser impossível que uma criança de 10 anos, por muito viva, por muito talentosa que seja, emita uma linguagem como a de que se serve a minha heroína.

2º. — Ser o papel de Jorge uma monstruosidade inadmissível.

De acordo, quanto ao primeiro ponto. A linguagem é realmente, demasiado elevada para uma criança. Mas quando criei o papel de Júlia, não o fiz para que o considerassem como um modelo de naturalidade. Foi unicamente para pôr à prova o talento genial da atrizinha para quem o destinava, tornando-o de difícil execução, não só quanto à parte literária como também quanto à dramática.

No que diz respeito ao segundo ponto, foram injustos os críticos. Inúmeros exemplos de requintada perversidade, ora consequente do amor, ora do ódio, ora da ambição, são, quase diariamente, noticiados pela imprensa. Ora, se são admitidas essas monstruosidades na vida real, porque não havia eu de transplantar uma delas para a vida fictícia do teatro? Mães que abandonam a prole, pais que estrangulam os filhos, irmãos que violentam as irmãs, homens que assassinam, compelidos pelo ódio ou pela ambição do ouro — de tais monstros muitas e muitas vezes têm-se se ocupado os jornais. Jorge, pois, é uma monstruosidade, mas não inadmissível. Além disso, Jorge não ama Maria: o seu fim — único, exclusivo, — é apossar-se da sua fortuna. Maria, completamente iludida, aceita-o, mas com a condição — sine qua non — de passarem todos os seus haveres a pertencer à filha. Júlia, pois, torna-se um obstáculo à realização dos mais íntimos desejos de Jorge, cujo caráter mal está plenamente definido desde a cena VI do 1º ato. Jorge que dinheiro, precisa de dinheiro, de muito dinheiro, e, para obtê-lo, tanta afastar o obstáculo que se lhe antepõe, mostrando-se, porém, sempre extremamente carinhoso, carinhosamente delicado, para não atrair suspeitas.

O doutor Castro, — digo-o com orgulho, — é um tipo bem delineado sem falha, justo, cheio de razão, amigo verdadeiro.

Maria é um caráter natural. Viúva aos vinte e cinco anos, em plena mocidade, em pleno vigor dos sentidos e das aspirações, iludida pelas palavras de Jorge, entrega-se, tendo, porém, antes o maternal cuidado de garantir o futuro da filha, garantia essa que, — como muitas vezes sucede, — foi justamente a causa de todo o mal.

Lúcia, finalmente, é a criada dedicada à casa onde vive. Viu nascer Júlia, e dedica-lhe todos os tesouros de bondade do seu coração, todos os afetos de sua alma.

O único ponto, pois, vulnerável do meu trabalho, é a linguagem de JÚLIA. Esse, porém, fica claramente explicado.

Personagens

Júlia 10 anos

Maria 25 anos

Lúcia 20 anos

Doutor Castro 50 anos

Jorge da Silva 40 anos

Dois criados

ATO I

Sala rica. Portas ao fundo e à esquerda. À direita, no primeiro plano, uma janela, no segundo plano, uma porta. A porta do primeiro plano da esquerda está fechada.

CENA I

MARIA. (sentada no sofá, em atitude meditativa.)

Amar-me-á tanto este homem? Não serão uma mentira estes extremos de amor que tantas vezes me tem mostrado?... Tenho escarnecido tanto dele; tenho-lhe revelado tanta indiferença, tanto desprezo mesmo, que se não fosse verdadeiro o seu amor, nunca mais tentaria comover-me.. E quem me assegura que a sua paixão não é pelo meu ouro, pela minha opulência?... Às vezes está quase a partir-me dos lábios a palavra que resolverá esta luta que dura há tantos meses... mas lembro-me que posso ser enganada, e tenho medo... não por mim, mas por minha filha... A pobre criança é quem mais havia de sofrer... talvez maus tratos... talvez a miséria um dia... quem sabe?... Fui feliz no primeiro matrimônio; mas sê-lo-ei no segundo? (pausa.) Hoje vou submetê-lo à última prova, à prova mais dolorosa. Se triunfar dela, então não tenho mais nada a recear... Entregar-me hei... (toca um tímpano.)

CENA II

Maria e Lúcia

LÚCIA

Determina alguma coisa, minha Sra.?

MARIA

Lúcia, manda servir o almoço.

LÚCIA

Mas...

MARIA

O que há?

LÚCIA

O Sr. Jorge está há mais de uma hora na sala de espera...

MARIA. (sorrindo levemente.)

Já?... Pois manda-o embora.

LÚCIA

Ele declarou que não sairá sem falar à Sra.

MARIA

Não me deixa descansada um momento!... Que entre.

LÚCIA

Sim, minha Sra. (sai. Jorge entra.)

CENA III

Maria e Jorge

MARIA

O Sr. é... inconveniente...

JORGE. (indo a ela e querendo beijar-lhe a mão.)

Maria...

MARIA. (erguendo-se.)

Saia! (à parte.) Resistira?

JORGE

Mas...

MARIA

Se vem à minha casa para fazer loucuras, previno-o de que não estou resolvida a suportá-lo.

JORGE

Mas para que essa frieza? Não vê que a amo tanto?

MARIA

Mas eu não o amo.

JORGE

A Sra. é cruel.. Que mais é preciso que eu faça para provar-lhe o meu amor?..

MARIA

E o que tem feito o Sr.?

JORGE

Veja: era moço, e estou velho...

MARIA. (dando uma risada.)

Deveras?

JORGE

Por que ri-se?

MARIA

Por nada. O Sr. é de uma ingenuidade única... Pois ignora que se envelhece à proporção que os anos passam?... Olhe: eu hoje tenho vinte e cinco anos; mas daqui a vinte e cinco anos terei cinquenta, e estarei velha, não é verdade?... (olhando-o fixamente.) E se quiser continuar a ser sempre moça, serei forçada a pintar os cabelos, a carminar-me a...

JORGE

Mas...

MARIA

Diga-me, meu caro Sr.: não acha ridículo um velho apaixonado?

JORGE. (contendo-se a custo.)

Se eu fora velho diria: — acho sublime!

MARIA

Mas como não é velho...

JORGE

Digo que não sei...

MARIA

Com que modo me fala! Dir-se-ia que o ofendi...

JORGE

Em quê?

MARIA

Ora, em que!.. No seu amor próprio de... moço!

JORGE

Maria, para que há de martirizar-me assim!.. Creia que a amo... Olhe que o escravo revolta-se um dia contra o jugo que o oprime, e...

MARIA

Ameaça-me?... Na sua idade, creia, não lhe fica bem essa linguagem...

JORGE

Oh! é de mais!.. Adeus!.. (sai.)

MARIA. (dando uma risada.)

Boa viagem!

CENA IV

MARIA

Se me ama, como diz, voltará. Custa-me a feri-lo assim, tanto, porque o amo também.. Mas em primeiro lugar está minha filha, a minha querida Júlia...

CENA V

Maria e Júlia

JÚLIA. (com um ramo de flores, entrando a correr.)

Mamã!.. Mamã!..

MARIA

Estou aqui, minha filha.

JÚLIA

Dá-me um abraço bem apertado e um beijo bem grande, anda... (reparando.) Mas estás triste?

MARIA

Não... Triste, por quê?...

JÚLIA

Estavas te lembrando do papá, não é verdade?... Ele era tão bom! Todas as noites sonho com ele... Vejo-o sorrir-se para mim, acariciar-me com o olhar... Mas quando estendo os braços para apertá-lo ao coração, a sua imagem some-se, para aparecer mais longe, dizendo-me adeus com a mão e com os olhos rasos de lágrimas... Às vezes, acordo-me em sobressalto, chorando também.. Mamã, onde está o papá?..

MARIA

Está no céu , minha filha, para onde vão os justos e os bons.

JÚLIA

Como deve ser bonito o céu, mamã!... A pátria dos anjos e das harmonias, da infinita pureza e dos cânticos divinas, das flores que nunca murcham e dos perfumes infindos, das luzes que nunca expiram e dos eternos sorrisos!.. Como deve ser bonito o céu!.. Às vezes tenho desejos de morrer para ir ver o papá no céu!..

MARIA

Morrer!.. Não digas isso, filha! E não tinhas pena de deixar-me aqui, não tinhas saudades de mim?..

JÚLIA

Mas tu morrerias também e iriamos juntas... Com que alegria nos abraçaria o papá!.. há tanto tempo que não nos vê, que já deve estar com muitas saudades. E o céu não é melhor do que a terra?... As flores da terra murcham ao mais fraco raio do sol; as luzes extinguem-se ao menor sopro da brisa; os perfumes evaporam-se como aparecem; as harmonias expiram no meio dos soluços; os cânticos de alegria orvalham-se de lágrimas... Venho do jardim. As flores estão todas abertas e os perfumes chegaram a entontecer-me... Mas daqui à pouco, o sol desfolhará as flores e a brisa levará todos os perfumes... O que fica sendo o nosso jardim?... Um cemitério juncado dos cadáveres das flores, respirando a tristeza da morta. O céu é melhor, mamãe...

MARIA

É, filha; mas não há quem queira morrer...

JÚLIA

Não entristeças outra vez... Trouxe do jardim este ramo de flores para oferecer-te... A Lúcia disse-me que fazias anos hoje. Quantos anos, mamã?

MARIA

Vinte e cinco, minha filha.

JÚLIA

Vinte e cinco! Mas então tu és muito mais velha do que eu!

MARIA. (sorrindo.)

Sou. Se não fosse muito mais velha do que tu, não podia ser a tua mamã...

JÚLIA

Ora; aí está! E não queres ir para o céu, tu, que tantas vezes me tens dito que no céu não se envelhece!

MARIA

Mas...

JÚLIA

Olha: — lá, os nossos cabelos flutuariam, coroados de flores, às brisas odorosas; tu cantarias as melodias do amor que me tens. Os teus olhos teriam mais brilho e mais beleza. Lá ajoelhada a teus pés, como o crente fervoroso aos pés da imagem de Cristo, eu te adormeceria ao som dos meus hinos, e, velando o teu sono puro, sonharia contigo. Lá, as estrelas iriam depor-nos aos pés as puras oferendas do seu melancólico brilho; os vergóis se abateriam para formar macio tapete a nossa passagem; as brisas sonorosas beijariam, embalsamando-os, os nossos cabelos; as flores se debruçariam nas hastes débeis para depositarem em nossos lábios os puríssimos ósculos do amor puríssimo; os anjos nos acompanhariam em triunfo, entoando os seus mais suaves cantares...

MARIA. (abraçando-a e beijando-a ternamente.)

Júlia!..

JÚLIA

Mas tu choras?... Por quê? Não chores mais, que o mundo não merece essas lágrimas... Tu disseste que o céu é a nossa pátria... Enxuga as tuas lágrimas, e olha para o céu; enxuga os teus olhos, para que possam neles refletir-se os tesouros de bondade da tua alma; enxuga os teus olhos, mamã, e abracemo-nos, para ascendermos ao céu — a nossa pátria! Como seria bonito!.. Com as nossas frontes circundadas pela luz ofuscadora da felicidade, com os olhos vibrantes das alegrias intimas e puríssimas d’alma, com os lábios descerrados pelo sorriso perfumado de um sonho de alegria, — seria tão bom nos erguermos nas azas da brisa no paraíso das ignotas felicidades, à pátria azul dos sonhos loiros — ao céu!.. Lá encontraríamos o papá... Coitado!.. Como ele deve estar com saudades de nós!.. Tu não querias vê-lo?

MARIA

Para quê?

JÚLIA

Para quê? É bem verdade que de certo tempo a esta parte não choraste mais por ele, não me falaste mais no seu nome... Por que, mamã?..

MARIA

Porque o mundo é assim, minha filha... Ai! de nós se a saudade fosse eterna!.. Tudo tem um fim...

JÚLIA

Mas como é que eu choro ainda?... Como é que ainda tenho tantas saudades? Lembro-me tão bem! Os passarinhos cantavam no jardim, espanejando-se aos primeiros raios do sol que despontava; as rosas abriam as suas pétalas purpúreas, cobertas das lágrimas cristalinas do orvalho; as brancas açucenas desabrochavam tímidas, como que receosas de entrarem em concorrência com as rosas; a brisa suspirava por entre as flores, como que murmurando uma cantiga de saudades... Eu brincava no caramanchão, conversando com as flores, que se abriam, com o sol, que despontava doirado e alegre, com a brisa, que passava suspirando... De repente, ouço um grito, um grito tão agudo, tão doloroso, que senti o meu coração comprimir-se e os meus joelhos vergaram-se.. Fiquei um momento hirta... Aquele grito fez-me tanto mal!.. Fiz um esforço e corri para casa... (escondendo a fronte no seio de Maria.) Ah! mamã!...

MARIA. (chorando.)

Cala-te, filha!.. Para que recordar as nossas dores passadas?...

JÚLIA

Tu estavas sentada nesta cadeira, com o rosto oculto nas mãos, e soluçavas tanto, que me despedaçaste o coração... — “Por que choras?” — perguntei-te. Não me respondeste. Abraçaste-me em silêncio, e apontaste para o quarto do papá. Cheguei à porta e vi... e vi... Ah! quando me lembro d’isto, tenho medo de enlouquecer!.. Vi um padre ajoelhado aos pés do leito, rezando com voz trêmula e os olhos úmidos... vi o doutor, com o rosto pálido e contraído, segurando uma vela na mão lívida de meu pai, que parecia olhar-me com os seus olhos vítreos e sem movimento.. sorrir-me com os seus lábios brancos e mudos... Dei um grito e corri para ele... O padre ergueu-se dos pés do leito e o doutor disse: — “Está morto!” — Morto!.. O meu bom papá estava morto!.. Senti como se alguma coisa se me despedaçasse no peito... os olhos fecharam-se... e caí... Ah! mamã.. como custam estas recordações!..

MARIA

Basta, filha!.. basta!..

JÚLIA

Oito dias depois, perguntei-te pelo papá. — “Está no céu ...” — me respondeste, chorando. Vestiste-me de preto e ensinaste-me a rezar pela sua alma. Daí em diante fui todos os dias orar perto do leito em que meu pai expirou... Às vezes parece-me vê-lo erguer-se... dirigir-se para mim, apertar-me nos braços e cobrir-me de beijos e de lágrimas... Mamã, como é triste não se ter pai!

MARIA

E se eu te desse outro papá, Júlia? Querias?

JÚLIA

Outro papá!.. Como!.. Tu podes?

MARIA

Posso, minha filha.

JÚLIA

E esse papá que queres dar-me será tão bom como o outro?

MARIA

Há de ser, porque não poderá deixar de amar-te, de querer-te muito.

JÚLIA

E quem é ele?

MARIA

Depois saberás.

JÚLIA

E por que não me dizes já.. (abraçando-a.) A mamã bem sabe que eu sei guardar segredos...

MARIA

Não. Depois. Vamos almoçar.

JÚLIA

E as flores? (tomando o ramo, que está sobre uma cadeira.) Quero colocá-las no vaso, bem defronte de ti, sim?..

MARIA. (beijando-a.) Sim, minha filha.

JÚLIA

Vamos. (saem. a cena fica vazia um momento.)

CENA VI

JORGE. (aparecendo à porta.)

Ninguém... (entra.) Hei de convencê-la, porque assim é preciso. Esta mulher é a minha salvação: preciso da sua fortuna, e hei de tê-la... Não a amo, porque nunca amei mulher alguma... O amor é uma tolice... Não é do amor que se vive, mas do prazer... e como não há prazer sem dinheiro, eu venho procurar o dinheiro aqui. Tenho representado soberbamente o meu papel. Ela está quase convencida de que ardo em um Vesúvio de amor, e há de entregar-se... Mais dia ou menos dia, tudo isto será meu... tudo... Serei o homem mais feliz do mundo!.. (outro tom.) E mais feliz seria, se não fosse essa criança... Júlia é uma nuvem no meu céu ... É bem verdade que basta um sopro para desfazer uma nuvem do tamanho dela... Mas tratemos primeiro de atrair a viúva, que tempo não faltará para nos ocuparmos da filha... Esta mulher é terrível. Se não fora a minha coragem, há muito teria sido batido vergonhosamente... Supõe que todos a iludem, e dúvida de todos... Mas os fortes também são vencidos... Um pouco mais de perseverança, e o inimigo entregará as armas... Se dentro de um mês não estiver casado, fico perdido... É preciso, pois, que isto tenha um fim e mais breve possível...

CENA VII

Jorge e Júlia

JÚLIA. (com o ramo.)

Ah! estava aqui?

JORGE

Cheguei há pouco, minha menina. Para quem são essas flores?

JÚLIA

Estas flores são da mamã. Colhi-as esta manhã para oferecer-lhe.

JORGE

Ah!

JÚLIA

A mamãe faz anos hoje, e bem vê que...

JORGE

Ah! a mamã faz anos hoje?

JÚLIA

Faz. A Lúcia disse-me, e eu, não tendo outra coisa para oferecer-lhe como lembrança, dei-lhe este ramo. Acha bonito?

JORGE

É lindíssimo... mas não tanto como a menina...

JÚLIA. (sorrindo.)

Deveras?

JORGE

Sem dúvida. O seu rostinho mimoso tem mais frescura do que essas açucenas, e os seus lábios nacarados mais perfume do que essas rosas... A menina é um anjo... Ama muito a sua mamã?..

JÚLIA

Por certo. Qual é a filha que não ama sua mãe?... Se o amor filial não fosse espontâneo, seria um dever. Além disso, a minha mamã é tão boa, faz-me tantos mimos, que, embora eu tentasse, não poderia deixar de amá-la.

JORGE

E quem lhe ensinou essas coisas, minha menina?

JÚLIA

Ninguém. Digo o que o meu coração sente. Estas coisas não se aprendem: nascem conosco.

JORGE

E se a sua mamã, em vez de enchê-la de mimos e de caricias, tratasse mal a menina?..

JÚLIA

O que faria?... Amava-a da mesma maneira, porque, boa ou má, não deixaria nunca de ser minha mãe.

JORGE

A menina fala como um anjo. E o seu papá?... Ainda se lembra dele?

JÚLIA. (entristecendo.)

Lembro-me... e rezo sempre a Deus pela sua alma.

JORGE

Onde?

JÚLIA. (mostrando a porta que está fechada.)

Ali...

JORGE. (indo à porta.)

Aqui?

JÚLIA. (tomando a porta.)

Não se aproxime...

JORGE

Por quê?..

JÚLIA

Este quarto é sagrado. Foi aqui que meu pai exalou o derradeiro suspiro, foi aqui que eu derramei as primeiras lágrimas da orfandade, foi aqui que eu chorei pela primeira vez... (abrindo a porta.) Olhe: — foi naquele leito que ele expirou. O padre, um velho, que também já morreu, estava ali, e joelhos, rezando com voz trêmula, mais pela comoção do que pela idade... à cabeceira estava o doutor. Vi duas lágrimas lentas e grandes deslizarem pelo rosto cadavérico de meu pai... o seu olhar turvar-se... os seus lábios contraírem-se em um suspiro doloroso... O doutor, sem me ver, disse ao padre: — “Está morto!...” — (fechando a porta, e limpando os olhos.) Já vê que este quarto é sagrado para mim... Aqui ninguém entra além de mim e de minha mãe...

JORGE

O seu papá amava-a muito também?..

JÚLIA

Muito!

JORGE

E se a sua mamã lhe desse outro pai?..

JÚLIA

E então?..

JORGE

Amá-lo-ia muito?..

JÚLIA

Não sei... talvez... mas não tanto como ao outro...

JORGE

E se esse papá fosse eu?

JÚLIA

O senhor?..

JORGE

Sim; não queria ser minha filha?

JÚLIA

Para quê?

JORGE

Eu havia de ser muito seu amiguinho... Dar-lhe-ia os mesmos mimos, as mesmas carícias que seu pai lhe dava...

JÚLIA

Deveras?

JORGE

Sem dúvida.. Queria?...

JÚLIA

Talvez...

JORGE

Mas a sua mamã não quer...

JÚLIA

Por quê?

JORGE

Não sei. Pergunte-lho... Não, não lhe pergunte nada... Diga-lhe antes: — “Mamã, o senhor Jorge é muito meu amiguinho e ama-te muito... Peço-te que consintas que ele seja meu pai...”

JÚLIA

E se ela disser que não?

JORGE

Diga-lhe ainda: — “Ele prometeu ser para mim tão bom como foi meu pai... prometeu amar-me tanto como se eu fosse sua filha. Eu quero que ele seja meu pai, sim mamã? Ele tem sofrido tanto por tua causa, tem sido tão infeliz pelo amor que te tem que é justo que lhe dês essa felicidade... “ -

JÚLIA

Só isso?

JORGE

Só. E se a menina conseguir isso, eu não serei somente seu pai, pai carinhoso, cheio de afeto e de amor... Serei também seu escravo...

JÚLIA

Escravo?... Não! Será meu pai... Olhe... parece-me que já o amo...

JORGE

Já?... (beijando-a.) Minha filha!

JÚLIA

Oh era com essa ternura que meu pai também me chamava... Era com esse afeto que ele também me beijava... (abraçando-o.) Amo-te, papá!... amo-te!..

JORGE. (à parte.)

Primeiro triunfo! Hei de vencer sempre!

CENA VIII

Os mesmos e o Doutor

DOUTOR

Pode-se entrar?

JÚLIA. (indo ao doutor.)

Oh! é o Sr. doutor!.. Seja bem-vindo. Por que é que há tanto tempo não vem cá? Eu devia ficar mal com o Sr...

DOUTOR. (depois de cumprimentar friamente a Jorge.)

O que queres, minha gazelinha?... Tive tantos afazeres, que não me sobrou tempo para vir ver-te...

JÚLIA

Sim?

DOUTOR

Estavas com saudades?

JÚLIA

Muitas. Mas o Sr. é um ingrato: não faz caso das pessoas que o estimam. Estou tão zangada, que de repente...

DOUTOR

O que fazes?

JÚLIA

Dou-lhe um abraço.

DOUTOR

Pois venha ele, e um beijo também, para ser completa a reconciliação. (abraça-a e beija-a.)

JÚLIA

É assim que eu me vingo de quem me ofende.

DOUTOR

E vingas-te... como se vingam os anjos!

JÚLIA

É assim que os anjos se vingam?

DOUTOR

É. A vingança deles é o perdão. Pensa sempre assim, minha filha, e hás de ser feliz.

CENA IX

Os mesmos e Lúcia

LÚCIA

Ah! está cá, Sr. doutor? Ia mandar chamá-lo. (vendo Jorge, à parte.) Sempre este homem!

DOUTOR

Para quê?

LÚCIA

A senhora precisa muito falar-lhe, e por isso...

DOUTOR

Está ela doente, Júlia?

JÚLIA

Não, senhor.

DOUTOR

Melhor. Prefiro ser chamado pelos que gozam perfeita saúde.

JÚLIA

Mas quer ser chamado somente pelos que gozam saúde?

DOUTOR

Porque é prova de que a humanidade não sofre.

LÚCIA

O Sr. doutor quer ter a bondade de entrar?

DOUTOR

Vamos. (sai. — Lúcia segue-o.)

CENA X

Jorge e Júlia

JÚLIA

Sabe que estive quase dizendo ao doutor que ia ter outro papá?

JORGE

Faria mal se o dissesse.

JÚLIA

Por quê?

JORGE

Porque não convém que o doutor saiba por ora. Esse homem aborrece-me. Reparou? Durante o tempo que aqui esteve não me dirigiu uma única palavra... (tomando o chapéu.) Vou retirar-me.

JÚLIA

Não espera então pela mamã?..

JORGE

Não. Voltarei depois. A sua mamã está agora em conferência com o doutor, e não pode atender-me.

JÚLIA

Então volte, sim?..

JORGE

Sim; daqui à pouco. A minha filha não se esqueça do meu pedido. Lembra-se ainda?...

JÚLIA

Lembro-me. Vá descansado, que a mamã há de querer. Ela faz sempre o que eu peço. Mas o senhor não há de entrar nunca naquele quarto...

JORGE

Entrarei, JÚLIA.

JÚLIA

Entrará? Então...

JORGE

Mas para rezar contigo pelo teu papá.

JÚLIA

O senhor rezará também?

JORGE

Sem dúvida. Ajoelhar-me-ei a teu lado, unirei as mãos como tu, e juntos pediremos a Deus por ele, sim?...

JÚLIA

Sim. Dê-me um abraço...

JORGE. (abraçando-a.)

Faça com que a sua mamã me ame...

JÚLIA

Hei de fazer.

JORGE

Até logo.. (à parte.) Representei otimamente o meu papel de bom pai!.. (sai.)

CENA XI

JÚLIA. (pensativa.)

Mas se a mamã não quiser?... O que hei de eu fazer para convencê-la? Como hei de provar-lhe que o Sr. Jorge gosta muito dela, e que me ama como se eu fosse sua filha?... (outro tom.) Ora! Ela há de querer... porque eu quero. Há de prometer-lhe muitos abraços, muitos beijos e muitas flores... E por falar em flores: não me esqueci deste pobre ramo?... (toma o ramo que deixara no sofá.) Não entristeçam, minha flores.. Vou pô-las em um vaso bem bonito e com bastante agua, para que não murchem.. Eu não quero que murchem... fiquem sabendo... Vamos lá. (sai.)

CENA XII

Maria e Doutor

MARIA

Onde está ele?..

DOUTOR

Provavelmente, já se retirou. Achou que a demora foi demasiada e...

MARIA

O doutor conhece esse homem?..

DOUTOR

De vida apenas.

MARIA

E por informações?

DOUTOR

Quase tanto como de vista.

MARIA

E o que se diz dele?

DOUTOR

Que eu saiba, pouco.

MARIA

Posso saber?

DOUTOR

A Sra. interessa-se muito por ele?

MARIA

Não. Desejo simplesmente saber com quem trato. Esse homem vem à minha casa e...

DOUTOR

E ama-a...

MARIA

A mim?

DOUTOR

Por certo que não há de ser à menina Júlia, que tem apenas dez anos!..

MARIA

Doutor!

DOUTOR

Quer que lhe diga como sei isto, não?

MARIA

Peço-lhe.

DOUTOR

Pois bem: foi ele mesmo quem revelou o segredo. Estávamos conversando quatro ou cinco amigos. Ele chegou. Depois de me apresentarem, a palestra tornou-se geral e falou-se de mulheres...

MARIA. (sorrindo.) Pois o doutor!...

DOUTOR

Eu também... Pois então! A velhice não exclui o sentimento do belo. Conheci um homem de setenta anos que passava os dias encostado à esquina de uma rua, contemplando uma moça. Um ano durou essa contemplação muda. Um dia, a moça casou-se...

MARIA

Com o velho?

DOUTOR

Não. Com um moço.

MARIA

E o velho?

DOUTOR

Quinze dias depois era conduzido por meia duzinha de amigos...

MARIA

Para onde?

DOUTOR

Para o cemitério. Morrera de paixão...

MARIA

Era poeta?

DOUTOR

Não. Era comendador de uma ordem qualquer...

MARIA

Admira.

DOUTOR

Não admira tal. Se fosse poeta, embora com setenta anos, não teria deixado que a moça casasse com outro... Mas voltemos ao nosso homem. Apenas principiamos a falar de mulheres, o Sr. Jorge tornou-se triste. Perguntaram-lhe a razão, e calou-se. Instaram, e...

MARIA

E...

DOUTOR

E disse tudo.

MARIA

Mas o que disse ele?

DOUTOR

Ora!.. Disse que a amava... que estava louco pela senhora... que...

MARIA

E depois?

DOUTOR

Mais nada. A Sra. ama-o?

MARIA

Talvez, doutor.

DOUTOR

No amor não há talvez, minha Sra. Ama-se ou não se ama. Ama-o?

MARIA

Sim... amo-o... mas...

DOUTOR

O quê?

MARIA

Queria consultá-lo. O doutor é um amigo velho da casa, um homem experimentado e sisudo. Fale-me com franqueza: faço bem em tornar a casar-me?

DOUTOR

Não sei. Consulte o seu coração. Se ele disser — sim, — sim; se disser –não, — não, e está tudo acabado. A senhora tem bastante experiência do mundo para pedir conselhos a quem quer que seja.

MARIA

Mas o coração engana tantas vezes...

DOUTOR

Engana; mas quando não somos nós enganados?

MARIA

E se o doutor estivesse no meu lugar, o que faria?

DOUTOR

Eu?... Não me casava.

MARIA

Por quê?

DOUTOR

Porque sabia o que tinha e ignorava o que havia de ter. Sabe o adagio: — “mais vale um pássaro na mão do que dois voando...” — A Sra. é rica, independente e respeitada. Para que há de abandonar esta tranquilidade, esta calma ininterrompida em que vive, pelo que não conhece, pelo ignoto?... A Sra. foi feliz no seu primeiro casamento. Sê-lo-á no segundo?..

MARIA

Essa pergunta já fiz a mim própria...

DOUTOR

E o que lhe respondeu o coração?

MARIA

Nada... Calou-se.

DOUTOR

Calou-se, porque o problema é insolúvel. O casamento é como a loteria. Compramos o bilhete, muitas vezes com sacrifício. Nesse pedaço de papel concentramos todas as nossas esperanças, todos os nossos pensamentos. Formamos mil castelos, edificamos palácios, compramos carruagens, temos lacaios, damos bailes, adquirimos um titulo de nobreza, sustentamos, enfim, um aparato esplêndido. E à força de pensarmos nestas coisas, convencemo-nos de que já as possuímos e habituamo-nos a elas. Um dia, anda a roda. Nós lá estamos, com o coração palpitante, os olhos fixos, as narinas dilatadas, o corpo trêmulo... De repente, a um simples movimento daquelas rodas de que está pendente a nossa fortuna, desmoronam-se os palácios; as carruagens, os bailes, os títulos, os lacaios, a opulência — tudo desaparece em um momento. Tudo aquilo não foi mais do que um sonho... Onde julgávamos achar a felicidade, fomos encontrar um desengano cruel, um desengano muitas vezes fatal. O casamento é assim...

MARIA

Mas então ninguém se casaria!

DOUTOR

Perdão... Pela mesma razão, ninguém compraria bilhetes da loteria, e todo o mundo os compra. Nem todos tiram bilhete branco. Eu falei unicamente dos que perdem. Há muitos que ganham. Mas tanto uns como outros, atiram-se ao desconhecido. Aqueles erram o alvo, estes acertam: — é a felicidade de cada um.

MARIA

Mas o que me aconselha?

DOUTOR

Já lhe disse: — consulte o seu coração. A Sra. vai comprar um bilhete da loteria. Desejo de toda a minha alma que tire a sorte grande.

MARIA

Então incomodei-o inutilmente, doutor.

DOUTOR

Pelo contrário: deu-me um prazer lembrando só de mim. Sinto não poder dar-lhe um conselho, porque um conselho é coisa muito melindrosa... Se fosse uma receita...

MARIA

Obrigada.

DOUTOR

Eu, no seu caso, não me casaria. É unicamente o que posso dizer. Mas a Sra. tem muito juízo, e fará o que o seu são juízo lhe ditar. (tomando o chapéu.) Adeus, minha Sra. Peço-lhe que dê um abraço na menina JÚLIA... um abraço de verdadeiro amigo.

MARIA

Adeus, doutor. Apareça. O Sr. tem-se tornado ultimamente quase invisível.. Quem sabe se pretende casar-se também?..

DOUTOR

Nada. Minha mulher, que Deus tenha em sua santa floria, era um anjo, e os anjos não abundam. Neste vale de lágrimas em que vegetamos, tenho notado que há mais demônios do que anjos. Além de que, nunca gostei de jogar na loteria. E creio que se todos pensassem como eu, não veríamos tantas infelicidades. Até amanhã. (sai.)

CENA XIII

MARIA. (pensativa, depois de pausa.)

Quem sabe?... quem pode desvendar os arcanos do futuro? Amo-o... ele ama-me... Pois a felicidade do casamento não provém da reciprocidade de sentimentos, do mútuo amor?... Diz-me o coração que serei feliz... que nada devo recear... Tentemos...

CENA XIV

Maria e Lúcia

LÚCIA

Minha Sra., está aí outra vez o Sr. Jorge, que insiste para falar-lhe.

MARIA

Ah! Que entre. (Lúcia sai.)

CENA XV

Maria e Jorge

JORGE

Maria...

MARIA

Ah! eu sabia que havia de voltar... Então, fica à porta?..

JORGE

Maria, peço-lhe que me ouça.. (desce.)

MARIA

Em que tom me diz isso! Quem o ouvisse, julgá-lo-ia um Othelo no momento em que...

JORGE

Não graceje! oh! não graceje!

MARIA

Por quê?

JORGE

Porque o que tenho a dizer-lhe é muito sério.

MARIA

E o que tem a dizer-me?

JORGE

Ouça

MARIA

Não é preciso, porque eu sei tão bem como o Sr. Acedo aos seus desejos.

JORGE. (alegre.) Acede!

MARIA

Mas com uma condição: a minha fortuna pertence à minha filha. O Sr. não poderá tocar em um real. Na escritura há de ser mencionada esta clausula.

JORGE

Aceito... porque não é a sua riqueza que eu amo... (à parte.) Depois veremos!

MARIA

Aceita!...

JORGE

Eu não ambiciono o seu ouro nem a sua opulência.. ambiciono o seu amor, unicamente o seu amor...

MARIA. (estendendo-lhe a mão.)

Ah! bem me dizia o coração!... Amo-o!

JORGE. (beijando-lhe a mão.)

Maria!... (à parte.) Triunfei, finalmente!...

CENA XVI

Os mesmos e Júlia

JÚLIA. (entrando a correr.)

Mamã! mamã!..

MARIA

Vem cá, minha filha... Abraça o teu papá.

JÚLIA. (a Jorge.)

Então a mamã quis?

JORGE. (abraçando-a.)

Quis, minha filha, quis!

JÚLIA

Dá-me um beijo, papá!.. (Jorge beija-a, Maria, sorrindo, contempla o quadro.)

Fim do 1º ato

ATO II

A mesma vista do primeiro ato

CENA I

Júlia e Lúcia

LÚCIA. (conduzindo Júlia, vagarosamente, pela mão.)

Devagar, minha menina, devagar...

JÚLIA. (pálida, magra e com olheiras.)

Canso tanto, Lúcia!.. Às vezes, parece-me que vou morrer... Ah! senta-me nesta cadeira... (Lúcia senta-a.) Não sei que mal fiz a Deus, para sofrer tanto assim.. (olhando para das flores de um vaso.) Minhas pobres flores.. meu formoso jardim, onde eu ia conversar com os passarinhos, que cantavam alegres... com as rosas, que desabrochavam sorrindo e cobertas de orvalho.., com o sol, que despontava doirado, banhado com a sua luz brilhante as arvores floridas.

LÚCIA

Sossegue, meu amor; descanse...

JÚLIA

Às vezes começo a pensar e sinto como que o coração me dizer: — “Despede-te do sol, das flores, dos passarinhos, dos teus brincos infantis, porque não os verás mais” -

LÚCIA

Menina, para que pensar essas coisas? A menina há de ficar boa, há de ir muitas vezes ainda ao seu jardim, para conversar com o sol, com as flores e com os passarinhos.. Verá.

JÚLIA

Não... sinto que não. Se já nem forças tenho para caminhar!.. Lúcia, leva-me à janela... Muito impertinente me tenho tornado... Mas tem paciência, sim. Não é por minha vontade...

LÚCIA. (amparando-a.)

Vamos, minha menina...

JÚLIA

És tão boa, Lúcia!..

LÚCIA

Cumpro o meu dever. Além de que a menina é quase minha filha. Vi-a nascer, vi-a crescer, e acalentei-a nos meus braços. Se eu tivesse uma filha, estou certa que não a amaria mais do que amo a menina...

JÚLIA

Obrigada, Lúcia...

LÚCIA

Depois, a menina tratou-me sempre com tanto carinho, com tanto amor, que eu não faço mais do que pagar uma divida de gratidão.

JÚLIA. (encostando-se à janela.)

Ah! pensei que não chegasse...

LÚCIA

Olhe para o seu jardim, e veja como está bonito.

JÚLIA

Como está lindo!.. como está cheio de sol e de perfumes!.. Como as trepadeiras se alastram em festões floridos nas grades do caramanchão!.. Olha, Lúcia: era ali, por traz daquelas roseiras... lembras-te? que eu me escondia para te assustar quando passavas... Naquele banco, a mamã sentava-se, à tardinha, para me ver correr por entre as flores, em perseguição das borboletas... Naquele canto... Oh! como eu tenho saudades desse tempo!.. Então eu brincava... era feliz... Hoje... Ah! lá chegou a mamã... sentou-se no banco... Mas o que terá ela?... Passa o lenço pelos olhos... oculta o rosto nas mãos.. Chora... Mas por quê?..

LÚCIA

Engana-se, minha menina: a sua mamã não está chorando...

JÚLIA

Está, Lúcia. Eu bem vejo.

LÚCIA

Porque não se senta, minha filha? Já deve estar cansada. Quer que a leve ao colo?...

JÚLIA

Não... Dá me a tua mão... Muito te aborreço.. não é?..

LÚCIA. (beijando-a.)

Aborrecer-me!.. Se eu tenho tanto prazer em servi-la!

JÚLIA. (sentando-se.)

Quando vem a mamã?..

LÚCIA

Quer que vá chamá-la?..

JÚLIA

Não. Deixa-a descansar. Tenho-lhe dado tanto trabalho, que é bem que descanse um momento... Senta-te, Lúcia... Tu também deves estar cansada.

LÚCIA

Não estou, não, meu anjo.

JÚLIA

Onde está o papá?... Hoje ainda não veio abraçar-me...

LÚCIA

Saiu muito cedo e não quis acordar a menina, que estava passando por um sono. Daqui à pouco estará aí.

JÚLIA

Ele é tão bom... Não é, Lúcia?..

LÚCIA

É, minha filha, mas...

JÚLIA

O quê?..

LÚCIA

Quer que lhe fale com franqueza?... Não gosto dele.

JÚLIA

Por quê?..

LÚCIA

Porque... porque... nem eu sei porque... Mas desde a primeira vez que o vi, antipatizei com ele.

JÚLIA

Não te trata ele bem?

LÚCIA

Tratar-me melhor seria impossível. Mas há pessoas que agradam ou desagradam à primeira vista. E a primeira impressão que o seu papá me causou foi desagradável.

JÚLIA

E eu amo-o tanto!..

LÚCIA

Mais do que ao outro?

JÚLIA

Mais, não... É verdade: ainda não rezei hoje por ele... Leva-me, Lúcia, sim?..

LÚCIA

Rezará logo mais... amanhã, quando estiver melhor, não é?

JÚLIA

Não; quero rezar. Vamos.

LÚCIA

Já que assim quer... (leva Júlia à porta do quarto.)

JÚLIA. (querendo abrir a porta.)

Estou tão fraca, que já nem forças tenho para abrir uma porta... Abre, sim, Lúcia?... (Lúcia abre.) Agora, ajuda-me a ajoelhar.. (Lúcia ajuda-a.) Meu pobre pai! (unindo as mãos.) Meu Deus! Pai de todas as criaturas, vós que perdoastes aos vossos assassinos, vós que sofrestes todos os martírios para a nossa salvação, vós, que derramastes o vosso sangue para a remissão dos nossos pecados, vós que sois bom e misericordioso, perdoai a meu pai todas as culpas que neste mundo cometesse e tende-o no seio da vossa divina glória... (ocultando o rosto nas mãos.) Lembro-me tanto dele!.. tanto!.. Oh! se eu pudesse ir abraçá-lo no céu !.. Era a maior alegria que Deus podia dar-me!..

LÚCIA

Não diga isso, meu anjo...

JÚLIA

Se eu morresse, não sofreria mais...

LÚCIA

Mas a menina disse que não sente dor alguma...

JÚLIA

E não sinto... mas diz-me o coração que morro... Quero levantar-me, Lúcia... Ajuda-me... (Lúcia levanta-a.) Adeus, meu pai!.. Até amanhã!.. Lúcia, fecha esta porta, sim?... (Lúcia fecha a porta e leva Júlia para a cadeira.)

LÚCIA

E não se sente melhor hoje?

JÚLIA

Não. A fraqueza é a mesma.

LÚCIA

Quer um biscoitinho?...

JÚLIA

Obrigada.

LÚCIA

E o seu remédio?... Quer tomá-lo?..

JÚLIA

Logo. Quero tomá-lo pela mão do papá... Ele fica tão aflito quando vê que o remédio não produz efeito! Já reparaste?..

LÚCIA

Ainda não. Por que não vai deitar-se um instantinho?... Vai, sim?... Faça-me a vontade...

JÚLIA

Para quê?

LÚCIA

Para descansar... Vamos.

JÚLIA

Pois vamos...

LÚCIA. (conduzindo-a.)

E há de dormir também...

JÚLIA

Se puder...

LÚCIA

Fique bem quietinha, que há de poder.. (saem.)

CENA II

MARIA. (entra pelo fundo, abatida e triste. Senta-se. Pausa.)

Há um mês que sofre aquela pobre criança... Vai desaparecendo aos poucos, como uma luz quase a apagar-se.. Era o sorriso, a alegria, o sol que iluminava esta casa... Hoje está tudo triste e silencioso como um túmulo. já não se ouve a sua voz suave, a sua risada argentina.. Oh! só quem é mãe é que pode julgar o que eu sinto!.. Todos os recursos têm sido inúteis... A moléstia progride, caminha a passos de gigante, e a minha filha há de morrer!.. Morrer!.. E eu hei de perder o meu maior, o meu único tesouro!.. Daria tudo quanto possuo para salvá-la... tudo!.. Perdê-la... vê-la morta... fria.. com os lábios cerrados... os olhos vítreos... a face de mármore.. chamá-la, abraçá-la, beijá-la... e ela ficar muda... fria... de mármore!.. Ah! (oculta o rosto nas mãos, sufocada em soluços.)

CENA III

Maria e o Doutor

DOUTOR. (da porta, à parte.)

Pobre mãe!.. (descendo.) Bom dia, minha Sra.

MARIA. (indo a ele e tomando-lhe as mãos.)

Ah! finalmente, doutor!.. Não sabe com que ânsia o esperava... Vamos, vamos vê-la...

DOUTOR

Piorou?

MARIA

É a mesma coisa: aquela fraqueza, aquele abatimento... Diga-me, doutor: tem esperança?

DOUTOR

Eu... tenho... e a Sra. deve tê-la também... O que seria das almas que sofrem, dos corações que choram, se ela não viesse derramas nas ulceras d’alma, nas chagas gotejantes do coração o balsamo sacrossanto dos seus sorrisos divinos?

MARIA

Ah! doutor, que bem me fazem as suas palavras!.. Creio e espero...

DOUTOR

Por que não faz uma viagem?

MARIA

Seria útil?..

DOUTOR

As viagens são sempre o remédio salutar ministrado pela natureza, quando a medicina confessa-se fraca...

MARIA

Mas então... a sua ciência julga-se importante para vencer o mal?... Então... a moléstia de minha filha é incurável?..

DOUTOR

Perdão! Eu não disse isso... Se as viagens fazem bem aos enfermos no ultimo período, mais vantagem devem oferecer àqueles cujo estado não é ainda desesperador. Sua filha está neste ultimo caso. As viagens são sempre uteis a todas as moléstias, que físicas, que morais. A mudança de ares, novas paisagens que se oferecem à vista, novos hábitos, diferentes usos, são sempre o melhor remédio. As dores mais fundas, os mais fundos sofrimentos, os mais dolorosos desgostos, insensivelmente desaparecem com a mudança de um país para outro. Peça a seu marido, e vão viajar. Se quiserem, acompanhá-los hei.

MARIA

Doutor, parece que o Sr. me ilude... Minha filha está condenada.

DOUTOR

Ainda não.

MARIA

Dá-me a sua palavra?..

DOUTOR. (à parte.)

Há ocasiões em que a mentira é uma virtude... (alto.) Dou, minha Sra., dou a minha palavra.

MARIA

Obrigada, doutor, muito obrigada!

DOUTOR

Vamos ver a nossa doentinha.

MARIA

Vamos. (acompanha o doutor até a porta. O doutor sai. Fica encostada ao umbral, olhando para dentro.)

CENA IV

MARIA

Contrai os supercílios... sacode a cabeça... desanima... (desce, comprimindo a fronte com as mãos.) Oh! meu Deus! meu Deus! a minha filha não se salva!.. (cai, soluçando em uma cadeira.)

CENA V

Maria e Doutor

DOUTOR. (entrando, à parte.)

É inacreditável: não posso compreender aquela moléstia...

MARIA. (indo a ele.)

Então, doutor?

DOUTOR

Está adormecida agora..

MARIA

Viu-a?

DOUTOR

Vi.

MARIA. (cada vez mais ansiosa, com voz trêmula.)

Examinou-a?

DOUTOR

Examinei.

MARIA

E ainda tem esperança?

DOUTOR

Tenho.

MARIA

O senhor ilude-me.

DOUTOR

Como?

MARIA

Eu olhava-o daquela porta e vi todos os seus movimentos. É inútil constranger-se por mais tempo. Diga a verdade, a verdade inteira.

DOUTOR

Aquela moléstia é incompreensível, e confessa que todos os esforços por mim feitos até agora têm sido infrutíferos. Ela não sofre, não sente a menor dor, e, no entanto, vai se consumindo aos poucos. É extraordinária aquela enfermidade...

MARIA

Como?

DOUTOR

Há trinta anos que exerço a medicina e tenho tratado milhares de enfermos, mas é a primeira vez que isto veio. (senta-se à mesa. Enquanto escreve a receita.) Torno a aconselhar-lhe as viagens. Vá viajar. Tenho esperança que a menina Júlia se restabelecerá. (dando a Maria a receita.) Aqui está. Mande imediatamente à botica. (depois de uma pausa, como que se lembrando.) É verdade: quem é que dá o remédio à sua filha?

MARIA

É meu marido.

DOUTOR

Só ele?

MARIA

Só. Não quer que outrem faça esse serviço.

DOUTOR. (admirado.)

Deveras!

MARIA

Meu marido tem um coração de ouro, doutor. Ama essa criança como se ela fosse sua filha. O doutor não calcula quanto a moléstia de Júlia tem-no feito sofrer...

DOUTOR

Uma solicitude tamanha!..

MARIA

Admira-o?

DOUTOR

Bastante... Olhe, minha Sra.: conheço um veneno que produz os mesmos sintomas que apresenta a enfermidade de sua filha...

MARIA

O que quer dizer, doutor?

DOUTOR

Nada.

MARIA. (como assaltada de uma ideia.)

Pois meu marido?...

DOUTOR

Seu marido, minha Sra., é padrasto de sua filha, e sua filha é talvez um estorvo aos seus planos... Não é a primeira vez que penso n’isto...

MARIA. (altiva.)

Senhor!

DOUTOR

Não se ofenda. Eu não faço mais do que expender uma ideia que me incomoda há uns poucos de dias. Se estou em erro, Deus me perdoará o juízo temerário; se acerto...

MARIA. (dando-lhe as costas.)

Nunca pensei que o doutor fosse... um caluniador!

DOUTOR

Obrigado, minha Sra. Tenho cinquenta anos, e é a primeira vez que me insultam. (tomando o chapéu.) Adeus, minha Sra. Amanhã, se não julgar conveniente fechar as suas portas a um caluniador, voltarei. Amo muito essa pobre criança, e quero lutar até vencer ou sucumbir. Até amanhã. (sai.)

CENA VI

MARIA. (acompanha o doutor, depois vai à porta do quarto de Júlia e para um momento a olhar para dentro. Descendo.)

E se fosse verdade?... Se esse homem tenta assassinar minha filha, para apoderar-se da minha fortuna?... Mas se isto é assim... é uma monstruosidade... é uma coisa horrível! Então não me ama... simula aquele afeto todo para iludir-me... (pausa.) Mas parece-me impossível.. O doutor terá razões, que eu ignoro, para detestar meu marido, e vinga-se assim. (pausa.) Espioná-lo... seguir-lhe os passos... acompanhá-lo como a sua sombra.. Não, não farei isto... É uma infâmia!.. (pausa.) Mas se tudo é real?... Se ele, como de fato, está assassinando minha filha?... Oh! esta dúvida é atroz!..

CENA VII

Maria e Lúcia

LÚCIA. (saindo do quarto de Júlia.)

Minha Sra.

MARIA

Ah! ia chamar-te. (dando a receita.)Manda imediatamente esta receita à botica e volta cá. Anda... vai... A menina...

LÚCIA

Continua adormecida.

MARIA

Está sossegada?

LÚCIA

Não muito.

MARIA

Vai.

LÚCIA

Sim, minha Sra. (sai.)

CENA VIII

MARIA

Vou dizer-lhe tudo. Quero ouvir a sua opinião. Jorge trata-a bem, e ela não tem motivos para aborrecê-lo. Deve ser sincera...

CENA IX

Maria e Lúcia

LÚCIA

Aqui estou, minha Sra.

MARIA

Gostas do teu amo?

LÚCIA

Por que me faz essa pergunta?

MARIA

Gostas?

LÚCIA

Quer que lhe fale com franqueza?

MARIA

Sim; fala.

LÚCIA

Não gosto.

MARIA

Mas ele trata-te bem...

LÚCIA

É verdade, mas aquela delicadeza é uma mentira.. Seu marido, minha Sra., não pode ser bom...

MARIA

Mas deves ter uma razão para dizer isso...

LÚCIA

Tenho a instintiva antipatia que lhe voto.

MARIA

Mas o coração também se engana...

LÚCIA

Os olhos, segundo dizem todos, são o espelho da alma.. Pois bem: o olhar do Sr. Jorge não é bom. Tem olhar de louco ou de...

MARIA

Ou de assassino, não?

LÚCIA

De assassino?..

MARIA

De assassino, sim.

LÚCIA

Mas assassino.. de quem?

MARIA

Da menina Júlia.

LÚCIA

O que diz, minha Sra?..

MARIA

É uma ideia do doutor...

LÚCIA

Oh! mas isso é demais!.. Aborreço-o, é verdade, mas não o julgo capaz de tanto...

MARIA

Nem eu. Mas é forçoso sairmos desta dúvida. É preciso que o espiemos e que nunca lhe demos a conhecer nossa desconfiança.

LÚCIA

A pobre menina!..

MARIA

Espiemo-lo. Pode ser uma loucura do doutor... mas também pode ser verdade...

LÚCIA

Serei incansável, minha Sra. (ouvem-se passos fora.)

MARIA

Silêncio!

CENA X

As mesmas e Jorge

JORGE. (beijando Maria na fronte.)

Bom dia, minha querida.

MARIA. (sorrindo.) Bom dia.

JORGE

Sabes que partimos amanhã?

MARIA

Para onde? (Lúcia vai dispor as flores dos vasos, no fundo.)

JORGE

Para a fazenda de um amigo. Lembrei-me que a mudança de ares deve fazer bem à nossa querida filhinha, e para restabelecê-la empregarei todos os esforços.

MARIA

Tens muito amor a essa menina, Jorge?

JORGE

Por certo, minha querida. Não estou eu fazendo as vezes de seu pai?... Depois, ela é tão galante, tão mimosa, que não se pode vê-la, sem amá-la. O doutor já esteve cá?

MARIA

Já.

JORGE

E o que disse?

MARIA

Aconselhou-me que viajasse.

JORGE

Aí está: tive a mesma ideia. E para onde queres ir?

MARIA

Para onde for da tua vontade.

JORGE

Partiremos amanhã. Tenho fé em Deus que com esta mudança a nossa querida menina há de restabelecer-se.

MARIA

E eu também...

JORGE

Vamos vê-la, sim?... (entram no quarto de Júlia.)

CENA XI

LÚCIA. (descendo.)

Ah! o doutor disse isso!.. Deve ser verdade, e eu acredito que o seja... A primeira vez que vi este homem, tive um sentimento de repulsão, de aborrecimento... Mas hei de espiá-lo, e ai! dele! Então, mata-se, assim, aos poucos, lentamente, uma pobre criança inofensiva, e não se há de pagar esse crime!.. minha ama não quis nunca atender ao doutor... Quantas vezes lhe disse ele: — “Eu, no seu lugar não me casava!” — Ela, porém, cerrava os ouvidos à voz da razão, para escutar somente a voz do seu amor. O resultado foi este: a tristeza e as lágrimas... Mas veremos!.. (vai receber o medicamento que um criado traz. coloca o vidro em um dos aparadores. para um instante à porta do quarto de Júlia, sacode a cabeça com desânimo e sai, enxugando as lágrimas.)

CENA XII

Jorge, Maria e Júlia

JORGE. (conduzindo Júlia pela mão, carinhosamente.)

Sofres muito, minha querida filhinha?

JÚLIA

Não, papá. Não sinto dores... É esta fraqueza que me mata...

JORGE

Tem paciência, filha. Hás de ficar boa. (senta-a.)

JÚLIA

Ah! se eu ficasse boa!.. Tu querias ver-me boa outra vez.. não é verdade, papá?

JORGE

Se queria!... Não és tu a alegria desta casa, a minha felicidade, a ventura de tua mãe, o anjo adorado do nosso lar?..

JÚLIA

Chega-te para aqui, mamã... Por que ficas tão longe de mim?... Dá-me um beijo... (olhando para o quarto, cuja porta está fechada, e dando um grito sufocado.) Ah!

MARIA

O que é, filha?..

JÚLIA

Ali... não vês?... encostado àquela porta... olhando para mim com os olhos vítreos e pasmos?... Ah! é ele, mamã... é ele...

MARIA

Ele quem, filha?..

JÚLIA

Vens buscar-me, papá?... Estavas com muitas saudades da tua filhinha?... Pois vamos... vamos... Ergamo-nos nas azas da brisa... em um raio do sol... no perfume das flores... Vamos... E lá, no céu , rodeados de anjos, e as doces melodias de peregrinos cantares... eu adorarei contigo a grandeza de Deus... tu serás feliz com o meu amor... e nós cantaremos sempre... sempre... sempre...

MARIA. (aflita.)

Júlia! Júlia!

JORGE. (à parte.)

Começa o delírio...

JÚLIA

Vamos, papá... Eu quero ir contigo... Mas... e a mamã... há de ficar aqui, sozinha, sem a sua filhinha?... Eu era tão feliz!.. Aos doces afagos de meus pais, eu via correr a minha vida serena e bela, e nunca uma lagrima veio velar o brilho dos meus olhos... Tu morreste, papá... Por ti senti a primeira dor.. sufocou-me o primeiro soluço... derramei a primeira lagrima... Oh! meu Deus!.. quanto custa vermos morrer aqueles que amamos, que nos amam, que nos enchem de beijos e de caricias!.. Mamã... mamã...

MARIA

O que é, minha filha?..

JÚLIA

Tu me deixas ir com o papá?... Não choras por mim, não?... Eu, lá do céu , acompanharei os teus passos, velarei por ti e pedirei a Deus que te dê todas as felicidades...

MARIA

Não digas isso, filha, que me rasgas o coração!..

JÚLIA

Então como há de ser?... Se eu for, tu choras... se eu ficar, o papá chora também... Como há de ser, mamã?..

MARIA

O papá não chora... Ele está em um lugar onde nunca se chora, minha filha...

JÚLIA

Eu sei... Como deve ser bonito o céu , mamã!..

MARIA. (à parte.)

Oh! isto corta o coração... Não é possível que este homem...

JORGE. (à Maria.)

Minha querida, deixa-me só com ela. Tu não podes assistir a isto... Vai. Eu velarei por ti e por mim.

JÚLIA

Então a mamã vai-se embora?..

JORGE

Ela já volta, minha filha. Vai mandar chamar o doutor. Tem paciência um momento, sim?..

JÚLIA

Ah! vai mandar chamar o doutor... há tanto tempo que ele não vem cá..

MARIA

Enganas-te. Ainda há pouco esteve aqui...

JÚLIA

E como é que eu não o vi?..

MARIA

Estavas dormindo.

JÚLIA

Ah! lembro-me agora... Estava adormecida... Sonhava com meu pai...

MARIA. (à parte.)

Sempre esta ideia!

JÚLIA

Ele estava encostado à cabeceira da minha cama. Olhava para mim e sorria-se... mas com um sorriso tão triste.. tão triste que me cortava o coração... De repente, uma harmonia suavíssima, uma harmonia como só podem ter os cânticos dos anjos, fez ouvir por cima da minha cabeça... Olhei... O teto do quarto tinha desaparecido... as cortinas do meu leito estavam rôtas.. Vi o céu abrir-se.. Em um raio de sol desceram todos os anjos do paraíso... Quem pudesse ter azas como os anjos, mamã! Aproximaram-se de mim... beijaram-me e começaram a cantar... Meu pai perguntou-me: — “Queres ir com eles?” — E eu respondi: — “Quero, papá, quero!” — Então aquela infinidade de anjos estendeu as azas douradas... meu pai suspendeu-me ao colo e depôs-me sobre elas... Os anjos subiram, cantando... Eu olhava para baixo e dizia-te adeus, mamã... Depois, foste desaparecendo, desaparecendo... até que não pude mais ver-te. Entramos no céu ... Quanta luz!.. quantas flores! quantos perfumes!.. Deus abraçou-me, a Virgem deu-me um beijo e Jesus disse-me: — “O lar dos anjos é o céu ; o teu lar é aqui, meu anjo!”

MARIA. (que tem ouvido com grande aflição.)

Basta, filha! basta!.. Isso foi um sonhos. Esquece-o... Quem estava debruçado à cabeceira do teu leito não era teu pai...

JÚLIA

Quem era então?..

MARIA

Era o doutor, que vinha ver-te, porque é muito teu amigo...

JÚLIA

Ah! era ele! E como me achou?

MARIA

Melhor, muito melhor. Disse que dentro em poucos dias estarias boa.

JÚLIA

Boa?

MARIA

Sim; boa.

JÚLIA

Para cantar... para brincar no jardim... para correr por entre as flores... para conversar com os passarinhos... para apanhar borboletas...

MARIA

Sim, para tudo isso...

JÚLIA

Estou tão fraca, mamã!...

MARIA

Pois descansa. Tens falado tanto, que deves estar cansada. Queres que vá buscar-te flores?..

JÚLIA

Sim... vai... Traze-me rosas.. só rosas... Não me tragas goivos nem saudades, mamã... Ah! pergunta aos passarinhos se têm tido saudades de mim... Perguntas?..

MARIA

Pergunto, sim.

JÚLIA

Eles eram tão meus amiguinhos!..

MARIA. (beijando-a.)

Até já, minha filha.

JÚLIA

Até já, mamã... Não te demores muito, não?...

MARIA

Não. Volto já.

JÚLIA

Não te esqueças que eu quero somente rosas... rosas...

MARIA

Sim; trago-te somente rosas. (sai.)

CENA XIII

Jorge e Júlia

JORGE

Não queres deitar-te?..

JÚLIA

Não. Prefiro estar aqui... Leva-me à janela, sim?... Quero ver a mamã no jardim...

JORGE. (conduzindo-a.)

Vamos... (Júlia encosta-se à janela. — Maria aparece à porta do quarto de Júlia, onde fica de observação.)

JÚLIA

Mas onde está ela?... Não a vejo...

JORGE

Está talvez do outro lado... Disseste-lhe que querias somente rosas, e provavelmente foi colhê-las no canteiro da esquerda, onde elas estão mais bonitas...

MARIA. (à parte, à porta.)

Este homem não pode ser criminoso...

JÚLIA

Ah! lá está Lúcia... Vês, papá?..

JORGE

Vejo.

JÚLIA

Está também colhendo flores... Então todos colhem flores para mim?

JORGE

Não. Aquelas são para os vasos. As tuas é a mamã quem as traz.

JÚLIA

Olha, papá... naquela arvore...

JORGE

O quê?

JÚLIA

Dois passarinhos... não vês?

JORGE

Vejo, minha filha, vejo.

JÚLIA

E como cantam! como estão alegres!

JORGE

É porque são felizes.

JÚLIA

Quem sabe se me viram aqui, papá?..

JORGE

Talvez, minha filha.

JÚLIA. (agitando a mão.)

Adeus, meus amiguinhos!.. adeus!..

JORGE. (beijando-a.)

Meu anjo!

MARIA. (à parte.)

É impossível! É um crime suspeitar dele!

JÚLIA. (chamando.)

Lúcia... não apanhes tanto sol, que te faz mal... Dize à mamã que venha para casa...

JORGE. (à parte.)

Às vezes tenho pena, mas é necessário..

JÚLIA

Ainda me queres muito, papá?..

JORGE

Quero, minha filha... quero-te mais do que nunca.

JÚLIA

Eu também te quero tanto!

JORGE

Vamos tomar o nosso remédio?..

JÚLIA

Amarga tanto, papá!

JORGE

Mas é para teu bem. (leva-a para o sofá.)

MARIA. (à parte.)

Chega o momento... Mas é impossível!

JORGE. (indo à mesa onde Lúcia deixou o frasco.)

Ah! temos remédio novo! Talvez este tenha melhor gosto, minha filha.

JÚLIA

Ah! é outro?... Se esse me fizesse bem...

JORGE. (enquanto tira do bolso um vidrinho e despeja alguma gotas do liquido nele contido em uma colher que está sobre a mesa.)

Há de fazer... Tenho esperança... (acaba de encher a colher com o remédio do frasco e desce, deixando o vidrinho no aparador.) Toma, minha filha. Estou certo que este remédio te restituirá a saúde...

CENA XIV

Os mesmos e Maria

MARIA. (no momento em que Jorge aproxima a colher dos lábios de Júlia, Maria, que lhe tem acompanhado todos os movimentos com extrema ansiedade, precipita-se e segura-lhe bruscamente no braço.)

Assassino!...

JORGE. (recuando de chofre.)

Ah! (encaram-se um momento.)

JÚLIA

Mamã...

MARIA. (com cólera concentrada.)

Envenenava-a! envenenava-a!.. Mas então o que é o Sr.?... Nesse peito não palpita um coração? essa alma está tão corrompida, que não se confrangia ante tamanho crime?... E o Sr. matava-a, covardemente, miseravelmente, sem que sequer tivesse um momento de compaixão! Ah! e eu amei-o! amei-o!

JÚLIA

Mamã, mamã..

JORGE

A senhora não dirá uma palavra! Deixe-me sair!..

MARIA. (inteiramente fora de si.)

Não sairá! (toma-lhe a passagem.)

JÚLIA

Mamã.. mamã..

JORGE. (segurando Maria pelos pulsos, raivoso.)

Deixe-me sair!.. deixe-me sair!

MARIA. (lutando.)

Há de sair, mas passando por cima do meu cadáver!.. Vamos!.. Mais um crime!.. mate-me!.. O Sr. sabe matar!..

JORGE

Maria!

JÚLIA

Mamã... onde estás... Já não te vejo...

MARIA

Oh! eu enlouqueço!.. Socorro! socorro! (consegue fugir às mãos de Jorge, e vai cair de joelhos perto da Júlia, a quem recebe nos braços. — Jorge vai sair, mas encontra-se com o doutor e recua.)

CENA XV

Os mesmos e o Doutor

DOUTOR. (à porta.) O que é isto?

MARIA

Acuda, doutor!.. Minha filha morre.. morre envenenada!

DOUTOR

Ah! (a Jorge.) Eu bem suspeitava!.. O senhor é um miserável!

JORGE

Senhor!

DOUTOR. (chamando.)

José! Pedro!

JORGE. (atirando-se.)

Oh! quero passar! hei de passar!..

DOUTOR. (repelindo-o.)

Mas não passará assim!.. É um miserável, repito!.. Para que se introduziu no seio desta família?... Para, — impelido pela ambição, pela loucura do ouro, — vir lançar aqui as lágrimas, as agonias e a morte!.. E depois de consumar o mais hediondo dos crimes, queria sair, franca e livremente, para talvez ir mais adiante cometer crimes novos!.. Oh! não! Os martírios que aquele pobre anjo tem sofrido pedem vingança, e o Sr. há de expiá-los, para exemplo à sociedade e às mães de família, que, inconscientes como aquela, sacrificam a sua felicidade e o futuro de seus filhos a uma paixão cega, a uma louca vaidade talvez!..

JORGE. (aniquilado.)

Senhor!

DOUTOR. (aos criados que entram.)

Levem este homem daqui, e tenham-no em guarda. Se tentar fugir, matem-no! (os criados olham-se, admirados.)

JORGE. (à parte.)

Estou perdido!

DOUTOR. (aos criados.)

Então! segurem-no!

JORGE

Não se aproximem! não se aproximem!

DOUTOR

Segurem-no! Este homem é o assassino da menina Júlia!.. (os criados avançam e seguram Jorge, que vai debatendo-se até desaparecer.)

CENA XVI

Júlia, Maria e Doutor

DOUTOR. (que tem ido até à porta, desce a dirige-se ao grupo formado por Maria e Júlia.)

Minha senhora!.. minha senhora!

JÚLIA. (com voz fraquíssima.)

Mamã... mamã... já não te vejo... Onde está o papá?... Cheguem-se todos... para perto de mim... Chamem Lúcia... Sinto que vou morrer... morrer, mamã... morrer...

MARIA. (com um grito de supremo desespero.)

Ah!

DOUTOR

Coragem, minha Sra.! coragem!

MARIA

Salve-a, doutor! salve-a!

JÚLIA

Mamã... mamã... abraça-me... Quero morrer... morrer nos teus braços... Meu Deus! Ah! (deixa pender a cabeça sobre o ombro de Maria.)

CENA XVII

Os mesmos e Lúcia

LÚCIA

Senhora! senhora!

DOUTOR

Silêncio!... (mostrando Júlia.)Está morta!.. (Lúcia recua trêmula, olhando para o grupo.)

                        

FIM