LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Os pretendentes, de Horácio Nunes
Texto-fonte:
Horácio Nunes Pires, Bastidores. Teatro original,
Florianópolis: Gabinete Tipográfico Catarinense, 1898.
OS PRETENDENTES
Comédia original em 1 ato
Personagens
Anselmo – corcunda 60 anos
Malaquias – caolho 60 anos
Macário – doente dos calos 60 anos
Tibério 30 anos
João 25 anos
Luíza 18 anos
ATUALIDADE
ATO ÚNICO
Sala decente. Sofá, cadeiras de braços, cadeiras simples, aparadores, vasos com flores, lampiões. – Janela à direita alta. – Portas laterais e ao fundo. – É dia. – Ao subir o pano, Luíza, à janela, olha para fora.
CENA I
LUÍZA
Já lá está o maldito a me fazer sinais com o lenço. (descendo.) Quando não é aquele que vai postar-se à esquina para namorar-me, é o outro... e o outro! Um sempre há de estar lá espetado para me incomodar e obrigar-me a sair da janela! Três estafermos, que antes cuidassem em pôr-se bem com Deus, do que estarem com pretensões a namorados!.. (indo à janela.) Ainda! (fazendo uma careta.) Toma, toleirão! (descendo.) Antes de ontem fiz uma figa a um, ontem mostrei o sapato ao outro, e agora fiz uma careta ao terceiro! (indo à janela.) Lá vai outra careta!.. (faz caretas.)
CENA II
Luíza e João
JOÃO. (entrando da esquerda baixa.)
Oh! prima, a quem é que estás fazendo caretas?..
LUÍZA. (descendo.)
Ora, a quem há de ser? A um dos três!..
JOÃO. (á janela.)
Ah! lá está ele tomando uma pitada. É o taverneiro da outra rua.
LUÍZA
É um idiota!
JOÃO. (intencional.)
Dizem que tem dinheiro...
LUÍZA
Não sei. Feio como um ouriço é que ele é. Fique o primo sabendo que eu não quero casar-me por dinheiro, quero casar-me por amor. Entende?
JOÃO
Ah! sim? Mas o dinheiro?
LUÍZA. O dinheiro... o dinheiro não dá felicidade, sr. meu primo.
JOÃO. Lá isso é verdade. Aqui estou eu, que ando quase sempre à divina, e no entretanto considero-me o homem mais feliz do mundo.
LUÍZA. E acredita que podias ser ainda mais, se visses um palmo adiante do nariz... um palmo só.
JOÃO. Ambições, não tenho...
LUÍZA. Mesmo nenhuma?
JOÃO. Nenhuma, absolutamente.
LUÍZA. (intencionalmente.) Nem ao menos pensas em casar-te?
JOÃO. Ora, casar-me! Para quê? Olha, prima, com franqueza: a maior tolice que um homem pode fazer é casar-se. Eu, felizmente, parece que fui vacinado contra o casamento, e creio que nunca hei de cair em tal asneira...
LUÍZA. Oh! primo, asneira é o que estás aí a dizer!
JOÃO. (sentando-se no sofá.)
Mas como?
LUÍZA. O casamento! É a melhor coisa que se tem inventado!
JOÃO. Para as mulheres, não duvido.
LUÍZA. E para os homens também (com intenção, sentando-se ao lado de João.) Unirem-se dois corações que se amam... Estarem sempre juntinhas assim duas almas que se adoram... (tomando-lhe as mãos.) Viverem sempre com as mãos enlaçadas assim como duas pessoas que se idolatram...
JOÃO. (à parte.)
Oh! srs., o que quererá ela comigo?
LUÍZA. Pois tudo isto não é tão agradável... tão doce?...
JOÃO. Oh! prima, e enquanto os dois corações estão juntinhos, enquanto as duas almas estão unidas, enquanto as duas mãos estão enlaçadas... o que é que se come?..
LUÍZA. Ora! que pergunta!
JOÃO. (erguendo-se.)
Enfim, tudo isso pode ser muito agradável e muito doce... mas para quem gosta dessas pieguices. Para mim não serve.
LUÍZA. (à parte.)
Estúpido! Mas hei de vencê-lo!
JOÃO. (à janela.)
Oh! prima, olha: lá está o outro agora.
LUÍZA. É o sapateiro da esquina. Foi àquele que eu mostrei o sapato. (outro tom.) Mas por que é que o primo é tão inimigo do casamento?
JOÃO. Sou inimigo do casamento, em primeiro lugar, por causa... do casamento, e em segundo, por causa da sogra.
LUÍZA. E quando a mulher já não tem mãe... como eu?
JOÃO. Ah! quando a mulher já não tem mãe... é porque a mãe morreu!
LUÍZA. (à parte.)
Tolo!
JOÃO. E depois, as despesas que se fazem!.. E os filhos!.. Um berreiro infernal! Este, a fungar para um lado, com o nariz a pingar; aquele, todo besuntado, a esfregar-se nas nossas calças; aquele outro, a espernear como um diabinho dentro de uma pia de água benta; a mulher a exigir um chapéu ou um vestido, quando o marido não tem muitas vezes dez tostões no bolso para ir ao mercado!... Um aborrecimento!.. (à janela.) Oh! prima, já lá está o outro.
LUÍZA. (olhando.)
É o alfaiate. São três patetas que vivem a incomodar-me todo o dia!
JOÃO. Por que é que a prima não casa com eles, já que é tão apologista do casamento?
LUÍZA. Com todos os três?
JOÃO. Não. Com um de cada vez...
LUÍZA. Como?
JOÃO. Eu me explico. Todos os três são velhos e pouco podem demorar-se cá pelo mundo. A prima casa primeiro com o alfaiate. O bruto, mais dia, apanha uma gastrite ou uma febre escarlatina, e bate a bota para o – aqui jaz – Casa em seguida com o sapateiro; mas o sapateiro é atacado de uma coqueluche, e lá se vai também para o – orai por ele. – Casa, finalmente, com o taverneiro, e o taverneiro apanha um ataque de bichas, indo descansar a ossada na – terra te seja leve. –
LUÍZA. E depois?
JOÃO. Depois... depois, ficavas viúva de três maridos...
LUÍZA. Só?
JOÃO. E o que mais querias?
LUÍZA. Queria mais alguma coisa...
JOÃO. O quê?
LUÍZA. Queria chamar-te tolo, idiota, simplório e bruto.
JOÃO. Oh! prima!
LUÍZA. E estúpido também!...
JOÃO. Mas isso... é duro!
LUÍZA. Tens olhos, e não vês; tens ouvidos, e não ouves; tens cabeça, e não compreendes!
JOÃO. Mas ver, ouvir, compreender... o quê?
LUÍZA. (subindo.)
Não sei! (voltando-se da porta.) Tolo! tolo! tolo! (sai.)
CENA III
JOÃO. (um momento depois de ter Luíza saído.)
Oh! srs.!.. esta minha prima, se não está com o juízo a arder, parece... (descendo.) Mas o que queria ela que eu compreendesse? Eu, para decifrar charadas, sempre fui tapado como uma porta! (senta-se.) Perguntar-me se não penso no casamento!.. Casar-me! Eu!.. Não foi sem motivo que um rei inventou o adágio: — “Por muitas vezes a mulher varia, e nela é muito louco quem confia.” — Esse rei foi Francisco I; e um rei que pede a todo mundo que não se fie nas mulheres, não tem nada de tolo!... (pausa, acendendo um cigarro.) Na maior parte, são muito meigas, muito carinhosas, muito doces, muito cheias de apertinhos de mão e de olhares languidos, enquanto não pilham os pratinhos... Mas depois que os agarram... Jesus! Que gritarias!.. que descomposturas! que inferneiras!.. (pausa.) Algumas continuam a ser o que foram em solteiras... mas essas são poucas, e não trazem letreiro... (pausa.) Ora, dá-se maior tolice do que estarem um marmanjo e uma moça horas inteiras, defronte um do outro, a sorrirem-se, a olharem-se, a apertarem-se as mãos de um modo perigoso, a dizerem baixinho: — “Ai! querida da minha alma, tu és a minha vida!” — E ela: — “Ai! amado do meu coração, tu és a minha alma!” — E em seguida um olhar mais terno, um sorriso mais perigoso e um aperto de mão mais nervoso e atrevido!.. Chamam a isto namoro, — mas eu chamo ofício de malandros! – Nada! Eu quero as coisas mais positivas, mais reais...
CENA IV
João e Anselmo
ANSELMO. (da porta.)
Dá licença, menina?
JOÃO. (olhando em roda.)
Menina! Dar-se-á o caso que a menina seja eu?...
ANSELMO.
Ah! queira desculpar... Eu pensava...
JOÃO. (subindo.)
Oh! seu aquele, está desculpado. Deseja alguma coisa?
ANSELMO.
Está em casa o Sr. Tibério?
JOÃO.
O tio Tibério não está, não, Sr.; mas está minha prima. Talvez o Sr. prefira falar com minha prima, não é verdade?..
ANSELMO. (vergonhoso.)
Parece que o Sr. desconfia de alguma coisa...
JOÃO.
Não desconfio, não. Tenho certeza.
ANSELMO. (vergonhoso.)
Certeza?
JOÃO.
Mas sente-se e conversemos. (sentam-se.)
ANSELMO.
Ah! meu sr., se V. S. sabe do que ha, se conhece o estado atribulado do meu pobre coração!..
JOÃO.
Uma paixão; hem?
ANSELMO.
Estou doidinho pela filha do Tibério... Que moça, meu amigo! que pintura! que estampa! que olhos! que boca! que nariz! que braços! que mão! que pé!. O pé sobretudo... aquilo não é pé!
JOÃO. É mão?
ANSELMO.
Não; é pé mesmo. Mas que delicadeza! que mimo! que encanto! Um pezinho d'est’ tamanho!.. (mostra.) Olhe: eu tenho uma sapataria que me dá uns cobres bem regulares... Pois venho pôr os cobres e a sapataria aos pé da Luizinha!
JOÃO.
Mas veja o que faz...
ANSELMO.
O demônio da rapariga pôs-me maluco de uma vez! Não durmo, não como, não bato sola, não prego uma tomba, que o diabinho não me esteja sempre diante dos olhos! Às vezes fico tão cego, que não vejo um dedo adiante do nariz...
JOÃO.
Depois do jantar?
ANSELMO.
Depois do jantar? E antes também... (mostrando um dedo.) Olhe: vê esta mancha preta aqui na cabeça do dedo? A desgraça sucedeu-me à semana passada. Eu estava pregando um salto no sapato de um freguês. De repente lembrei-me dela... lembrei-me que ela podia estar naquele momento conversando com algum namorado. Senti o sangue subir-me à cabeça... descarrego uma martelada e quase esborracho o dedo! Calcule a dor!
JOÃO.
Calculo, pois então! Estou certo que quando o sr. apresentar esse dedo à minha prima como uma prova do seu amor, ela é capaz de cair-lhe nos braços...
ANSELMO. (erguendo-se.)
O que me diz?... Cair-me nos braços aquele corpinho de anjo!.. Que paraíso!
JOÃO.
Sim, hem?
ANSELMO.
Olhe: aqui entre nós, que ninguém nos ouve... Eu já tenho a minha idadezinha... os meus sessenta, é verdade... Mas não estou muito sovado e posso casar-me sem fazer figura triste. Tenho ainda o sangue rijo, meu amigo!.. E que vão rondar-me a porta os pintalegretes... que vão!
JOÃO.
Mas por que é que o sr. não procura uma sra. de certa idade... ou menos de idade... incerta?..
ANSELMO.
O quê?... Pois eu estou para isso!.. Aturar uma velha que masque, que tome tabaco... um hipopótamo ganho que esteja noite e dia a seringar-me os ouvidos, a dizer-me... (voz fanhosa.) — “Oh! Anselmo, vai-te embora... não me incomodes... não te metas em cavalarias altas.” —
JOÃO. (à parte.)
Uma confissão completa!
ANSELMO.
Além disso, a minha paixão é pela Luizinha... Se eu não casar-me com ela...
JOÃO.
Pois, meu Sr., vou chamar a Luizinha.
ANSELMO.
Chame... chame... Mas deixe-nos sós, sim?..
JOÃO.
Não há dúvida. A Luizinha não corre o menor perigo ficando só com o Sr.
ANSELMO. (apertando-lhe a mão.)
Obrigado meu amigo!
JOÃO. (à parte, saindo.)
Espera aí, rinoceronte! (sai.)
CENA V
ANSELMO. (esfregando as mãos.)
Só em pensar que vou vê-la, que vou falar-lhe, fico tão nervoso, que até tenho medo que me dê um ataque! Deus de minha alma!.. Se ela quiser, mando deitar duas dúzias de rojões e tomo uma carraspana de ficar de papo ao sol!.. (à porta por onde João saiu.) Ai! Luizinha! Luizinha!.. Se tu soubesses que aqui bem perto de ti há um coração que bate como uma aneurisma.. voarias logo aos braços deste namorado, que arde, que pega fogo, que é devorado pela chama ardente de uma paixão sem fim!. Luizinha da minha alma, vem a meus braços, anjo adorado, estrela da minha vida!..
CENA VI
Anselmo e Tibério
TIBÉRIO. (que momentos antes tem aparecido ao fundo e parado, admirado, à parte.)
Que diabo é isto?. Terei eu malucos em casa?..
ANSELMO. (sem ver Tibério, continuando a declamação.)
Passarinho do meu coração, rolinha da minha alma, corre a meus braços, voa para mim...
TIBÉRIO. (descendo sutilmente e pondo-lhe a mão no ombro.)
Oh! meu caro amigo, o que faz aqui?
ANSELMO. (que tem os braços estendidos para a porta, como quem vai falar, voltando-se.)
Ai!
TIBÉRIO.
Olha! O Anselmo!..
ANSELMO.
Eu mesmo, com todos os ossos.
TIBÉRIO.
Mas o que estás fazendo aqui? Que macaquices eram aquelas que fazias ali à porta?..
ANSELMO. (levando-o para o sofá.)
Vem cá. Senta-te aqui e conversemos. (sentam-se.)
TIBÉRIO.
Queres conversar? Pois conversemos.
ANSELMO.
Tu me conheces, não?
TIBÉRIO. Perfeitamente.
ANSELMO.
Sabes se sou um homem arranjado, bem procedido e que não tenho notas...
TIBÉRIO.
Na polícia? Não tens não. Sei isso muito bem.
ANSELMO.
A minha corcunda é tão pequena, que nem nela se repara...
TIBÉRIO.
É pequena, é; pode até passar por uma malinha de viagem que trazes aí às costas.
ANSELMO.
Já vês que isto não constitui um defeito, e que posso julgar-me um homem perfeito...
TIBÉRIO.
É bonito!
ANSELMO.
Obrigado. Não me fazes favor dizendo isso... Tenho umas economias que podem andar por uns dez contos. Nunca quis casar-me, porque, com franqueza, nunca encontrei uma moça que me agradasse e que compreendesse os meus sentimentos. Tive uma vez, uma namorada e estava, pelas duas, pelas três, a levá-la à igreja; mas, uma bela noite, a “tipa” fugiu com um pandilha, destruindo todos os meus projetos matrimoniais. Fiquei tão desnorteado com isso, que nunca mais olhei para mulher alguma, até que conheci... (Fica como que envergonhado e passa o lenço pelo rosto.)
TIBÉRIO.
Quem? quem?
ANSELMO.
A tua filha.
TIBÉRIO. (erguendo-se.)
A Luizinha!.. Pois tu!..
ANSELMO. (obrigando-o a sentar-se.)
Mas senta-te, homem, senta-te... Pois eu, sim. Por que não?... Vi a tua filha, e fiquei logo pelo beiço.
TIBÉRIO.
E depois?
ANSELMO.
Depois... venho pedir-te a sua mão...
TIBÉRIO. (erguendo-se.)
Oh! Anselmo, tu estás idiotando?
ANSELMO. (levantando-se.)
Oh! Tibério, idiotando por quê?
TIBÉRIO.
Pois tu, um jarreta, que já tens o beiço caído!..
ANSELMO.
Disseste há pouco que me conhecias, mas está provado que não me conheces. Fica sabendo que ainda tenho sangue nas veias!.. Beiço caído! De beiço caído estás tu, que enviuvaste há dez anos e não tornaste a casar!
TIBÉRIO.
Não te zangues, homem. Retiro a expressão.
ANSELMO.
Então... retira também o jarreta.
TIBÉRIO.
Fica também retirado o jarreta.
ANSELMO.
Muito bem.
TIBÉRIO.
E agora?..
ANSELMO.
Dás-me ou não me dás a mão da tua filha?
TIBÉRIO.
Anselmo, não posso dar-te uma resposta imediata. Bem sabes que não tenho o direito de violentar as inclinações da rapariga. Se fosse da minha mão que se tratasse...
ANSELMO.
Ora! Podes guardar a tua mão no bolso!..
TIBÉRIO.
É preciso consultá-la. Quem nos diz que ela já não tem o coração preso os bigodes de algum rapaz?..
ANSELMO. (recuando.)
Hem?... Ah! Tibério, se tal houver, acredita-me, juro por esta luz que nos alumia, que sou capaz de cortar em fatias o coração do pintalegrete e comê-lo cru...
TIBÉRIO.
Sem pirão, Anselmo?
ANSELMO.
Não zombes, Tibério! não zombes!..
TIBÉRIO.
Modera-te, homem, modera-te. O que eu disse não é mais do que uma simples suposição. Consultarei minha filha e empregarei todos os esforços para conseguir dela uma resposta favorável...
ANSELMO.
Ah! Tibério, se tu soubesses.
TIBÉRIO.
Bem, bem... (mostrando a porta da direita baixa.) Entra para o meu gabinete e distrai-te vendo os bonecos de um livro que lá tenho, enquanto consulto a pequena. Anda, vai.
ANSELMO.
Tibério, lembra-te que coloquei-me sob a tua proteção, e que só tu podes evitar uma enorme desgraça.
TIBÉRIO.
Lembro-me, lembro-me... Mas vai...
ANSELMO. (saindo.)
Ai! Luizinha! Luizinha!..
CENA VII
TIBÉRIO.
O diabo, depois de velho, fez-se ermitão. O Anselmo, depois de velho, fez-se namorado. E isto é mal... Naquela idade, uma paixão recolhida, é morte certa!.. Eu sei que a rapariga vai receber esta noticia com uma gargalhada... mas não quero que o Anselmo diga que não transmiti o seu pedido. Vou chamá-la. (sobe, mas volta, pensativo.) Mas isto é o demônio! Se ela aceitar a proposta do Anselmo, fica destruído o meu projeto de casá-la com o João, que, embora inimigo do casamento, conheço como as palmas das minhas mãos, e sei que – usurário como é – não deitará o meu rico dinheirinho pela janela fora... (fica pensativo.)
CENA VIII
Tibério e Malaquias
MALAQUIAS. (da porta.)
Está em casa o Tibério Canela?
TIBÉRIO. (voltando-se.)
O Malaquias! (subindo.) A esta hora, é novidade... Negocio grave, hem?
MALAQUIAS. (apertando-lhe a mão, muito cansado.)
É. Negocio sério, tão sério.
TIBÉRIO.
Que eu não me rio, descansa. Mas senta-te. Estás com a careca pingando... (sentam-se.)
MALAQUIAS. Eu...
TIBÉRIO.
Mas toma fôlego!.. Da maneira que estás, se eu te tapasse a boca, era uma vez um homem...
MALAQUIAS. (sempre cansado.)
Estou cansado, estou. Apressei um pouco o passo, e o resultado foi este...
TIBÉRIO.
Pois descansa, homem... Quando se cansa como um jumento como tu, o remédio é descansar.
MALAQUIAS. (depois de descansar e de limpar a careca com o lenço.)
Pois, meu querido Tibério, vais saber o motivo que me traz aqui. Sabes que fui casado duas vezes. A primeira vez tive por mulher uma jararaca e por sogra uma surucucu... Quando uma gritava, já a outra queria torcer-me o pescoço! Dois diabos de saias! Se eu não tivesse olho vivo e não tratasse logo de pôr-me ao fresco, matavam-me, esfolavam-me e punham-me ao fumeiro, como linguiça. Felizmente, morreram. Deu-lhes a bexiga de lixa, e lá se foram ambas para o inferno. No dia em que saíram os enterros, não deitei foguetes por causa da vizinhança.
TIBÉRIO.
É exato, é. Mas nem sempre o teu olho vivo te serviu de muito, porque... sim... não sei se me entendes... (faz o festo de quem dá pancadas.) Os teus casacos que o digam...
MALAQUIAS. (envergonhado, procurando disfarçar.)
Calúnias, meu amigo... calúnias... As coisas nunca chegaram a tanto... Somente duas vezes...
TIBÉRIO.
Tira o petiço da chuva, Malaquias... Olha que foram mais de duas vezes...
MALAQUIAS.
Passados dois anos, casei-me outra vez...
TIBÉRIO.
Tinhas sido tão feliz da primeira...
MALAQUIAS.
Nada... A mesma coisa. Uma mulher que era uma surucucu e uma sogra...
TIBÉRIO.
Que era uma jararaca.
MALAQUIAS.
A-q-u-i. E a minha desgraça ainda foi maior do que da primeira vez, porque a minha segunda mulher, além de ser assanhada como uma cobra, era feia como uma minhoca e dez anos mais velha do que eu!
TIBÉRIO.
Misericórdia!...
MALAQUIAS.
Veio uma epidemia de febre amarela, e zás! a mulher foi a primeira vítima!
TIBÉRIO.
Deitaste foguetes?
MALAQUIAS.
Não, ainda por causa da vizinhança.
TIBÉRIO.
E a sogra?
MALAQUIAS.
Mandei-a plantar batatas. Não quis mais casar-me, e há quinze anos que me conservo no respeitável estado de viúvo sem filhos. (pausa.) há dias, estando parado ali à esquina, olhei casualmente para este lado e vi tua filha...
TIBÉRIO. (à parte.)
Mais um namorado! Já tinha cá um corcunda, agora tenho um caolho! (alto.) Viste então a pequena, hein? E que tal a achas?
MALAQUIAS. (com entusiasmo.)
Esplêndida! deliciosa!
TIBÉRIO.
Mas com que entusiasmo dizes isso!...
MALAQUIAS.
Esqueci tudo: as minhas duas mulheres, as minhas duas sogras, a vida de cachorro que as quatro me fizeram passar, e disse com os meus botões: — Feliz o mortal que obtiver aquele bom bocado! que vida! que paraíso! que céu aberto! — E vim procurar-te
TIBÉRIO.
Então queres casar com a pequena, não?
MALAQUIAS.
É o meu maior desejo, a minha única ambição...
TIBÉRIO. (coçando a cabeça.)
Mas isto é o diabo!
MALAQUIAS.
Por quê? Por acaso sou algum perdulário, algum libertino? Sou ainda rijo e tenho patacos... Se é por causa do meu olho... Olha que eu vejo mais por um olho só do que tu por dois...
TIBÉRIO.
Não é isso... É que...
MALAQUIAS.
O quê?
TIBÉRIO.
É que já tenho cá um pedido igual, e ainda não consultei a pequena...
MALAQUIAS. (agitado.)
Outro pretendente!.. Ah! malvado! bandido!
TIBÉRIO
Calma, homem, calma...
MALAQUIAS
Quem é ele?... Quero trincar-lhe os fígados!.. (passeia.)
TIBÉRIO. (à parte.)
Ai! Anselmo! se eu digo que és tu, ficas com a corcunda num pastel! (alto.) Vem cá, Malaquias...
MALAQUIAS
Quero trincar-lhe os fígados, já disse!
TIBÉRIO
Oh! homem, mete essa língua onde quiseres, mas atende-me...
MALAQUIAS
Tibério, manda esse pretendente ao diabo, e promete-me que hás de defender a minha causa!
TIBÉRIO
Prometo, prometo tudo; mas não te alteres.
MALAQUIAS
Estou calmo. Tua filha há de fazer o que tu quiseres.
TIBÉRIO
Muito bem. Agora vai para o meu gabinete, enquanto consulto a pequena. Palestra com o Anselmo, que lá está vendo as figuras de um livro.
MALAQUIAS. (irritado.)
Tibério, o outro pretendente será o Anselmo?
TIBÉRIO
Qual, homem! O Anselmo não pensa nessas coisas. É bananeira que já deu cacho.
MALAQUIAS
Garantes que não é ele?
TIBÉRIO
Garanto. Que diabo! Vai, anda, e deixa a tua pretensão por minha conta.
MALAQUIAS
Vê lá o que fazes...
TIBÉRIO
Descansa em mim. Prometo advogar a tua causa da melhor forma possível. (empurra-o para o gabinete.)
MALAQUIAS
Diz a pequena que eu, a minha taverna e os meus patacos, tudo será dela... Não te esqueças.
TIBÉRIO. (empurrando-o.)
Vai sossegado.
MALAQUIAS
Toma cuidado. (sai, direita baixa.)
CENA IX
TIBÉRIO. (descendo.)
E esta! Se isto não é uma praga que me caio em casa, parece! Ora! estas tartarugas ainda com ideias de casamento!.. Pois eu vou dar a pequena a qualquer destes idiotas, para fazer a desgraça da rapariga!.. (pausa.) Tudo tem os seus termos e as suas exigências. Os moços devem casar-se com as moças e os velhos com as velhas. É a ordem natural das coisas. (outro tom.) Um velho casa com uma moça. Que grande poesia, hem?... Estar a pobrezinha condenada a ver todos os dias a cara encarquilhada do marido, a mandá-lo a cada instante limpar os pingos do rapé que lhe caem do nariz, a ouvi-lo arrastar os pés e a fazer barulho com a sua bronquite crônica e ainda em cima sujeita à linguinha do povo, que olha para a mocidade da mulher, para a velhice do marido, ri-se à socapa e resmunga com os seus botões... (pausa.) Uma velha casa com um rapaz. O rapaz vive na rua para não ver a carranca da mulher, mete-se na pandega e engana a costela, que o ameaça de chinelo e passa-lhe descomposturas de arrepiar os cabelos!.. (outro tom.) Nada! Velhos com velhas, moços com moças!
CENA X
Tibério e Macário
MACÁRIO. (da porta.)
Pode-se entrar?
TIBÉRIO
Oh! amigo Macário, sem cerimônia. Esta casa é nossa.
MACÁRIO. (descendo, a manquejar.)
Ai! meus calos!”. Vamos ter vento sul. Quando está para cair vento sul, vivo num interno! Os calos dão-me fuziladas, que me fazem ver sol à meia noite!... É um inferno! (gemendo.) Ai! ai!
TIBÉRIO
Abanca-te e descansa os pés. Se tomar banho todas as noites, podes tirar os sapatos, que não me incomodas. Queres uns chinelos?
MACÁRIO (sentando-se.)
Nada, não... Ai! que fuziladas!..
TIBÉRIO
Mas tira os sapatos, homem...
MACÁRIO. (encolhendo-se.)
Jesus! Que martírio!
TIBÉRIO
Pois descalça-te, Macário.
MACÁRIO
Não, não... (gemendo.) Que fuziladas! que fuziladas!
TIBÉRIO
Homem, com essa teima fazes acreditar que...
MACÁRIO
O quê?
TIBÉRIO
Que não lavas os pés!
MACÁRIO
Tibério, eu sou um homem limpo! Mudo roupa todos os sábados e lavo-me...
TIBÉRIO
Duas vezes por ano?
MACÁRIO
Lavo-me todos os dias...
TIBÉRIO
Pois então tira os sapatos, anda, tira os sapatos.
MACÁRIO
Já te disse que não tiro! Oh! Tibério, olha que és teimoso como um burro!
TIBÉRIO
E tu como um homem que se lava todos os dias. Enfim, não insisto mais. Faze o que quiseres.
MACÁRIO. (estendendo o pé.)
Ah! que alívio... Quando ando um pedaço, fico numa desgraça; mas também sento-me, e no fim de cinco minutos nada sinto...
TIBÉRIO
Já é uma consolação. E o que fazer para os calos?
MACÁRIO
Nada. Não há nada que me faça bem.
TIBÉRIO
Nem mesmo a água?
MACÁRIO
Qual água! Água para quê?
TIBÉRIO. (à parte.)
Confessou! (alto.) Mas então, que grande motivo te trouxe cá... Com este sol que está torrando a gente?
MACÁRIO
Um grande motivo.
TIBÉRIO. (à parte.)
Ai! ai! ai! Será outro pretendente? (alto.) Um grande motivo, hem?... (dando-lhe uma palmada na barriga.) Ah! maganão!
MACÁRIO. (dando um pulo e batendo com o pé na cadeira.)
Jesus!.. (começa a andar, manquejando e a torcer-se de dores.) Ai! ai! ai!
TIBÉRIO. (seguindo-o.)
Desculpa, homem... Olha que não foi por querer. Se eu soubesse que esborrachavas o teu melhor calo, não te teria dado a palmada! Oh! Macário, senta-te aqui, anda... Isso passa... Dói um bocado, mas passa... (obrigado a sentar-se.) Mas também, quem tem uns pés como os teus, quando sai, não os leva para a rua! Que diabo!
MACÁRIO
Já vai passando... Pucha dor!.. Uma facada não custa tanto!.. (limpando o suor.) Uf!
TIBÉRIO
Que alívio, hem?..
MACÁRIO
É... é o diabo!
TIBÉRIO
Tudo é assim: dói, mas passa. O diabo seria se doesse e não passasse. Queres tirar o sapato?
MACÁRIO
Tratemos do meu negocio.
TIBÉRIO
Do teu grande negocio. Vamos lá! (senta-se.)
MACÁRIO
Meu amigo, tenho sessenta anos de idade, quinze contos em boa moeda, uma loja de alfaiate, duas casas, um filho natural, órfão de pai e mãe, e uma dúzia de calos que me trazem tonto... Amo tua filha, e quero casar-me com ela...
TIBÉRIO. (erguendo-se.)
Pois tu também, Macário?
MACÁRIO
Eu também? Então há outro pretendente?
TIBÉRIO
Não há outro, meu amigo; há outros.
MACÁRIO. (erguendo-se.)
O que me dizes?
TIBÉRIO
Digo-te a verdade; mas não te aflijas. De todos eles, és tu o que mais me convém. Talvez não acredites, mas deves ser um marido às direitas. Influirei em teu favor no ânimo da pequena, e ela há de concordar comigo. Olha, Macário, quase que posso dizer-te: — considera-te casado com a Luizinha! —
MACÁRIO
Ah! Tibério, já não sinto os malditos calos! Dá-me um abraço. (abraça-o.) As minhas casas, a minha loja, os meus quinze contos, os meus calos... tudo está à disposição de tua filha, tudo lhe pertence!
TIBÉRIO
Ela aceitará tudo, descansa; menos os calos. Os calos é que ela não aceita, nem à mão de Deus Padre! Tenho certeza.
MACÁRIO. (abraçando-o.)
Tibério, meu querido sogro!
TIBÉRIO
Bem. Agora vai para o meu gabinete esperar a resposta. Lá estão o Malaquias e o Anselmo vendo bonecos em um livro. Palestrem à vontade. Vou comunicar à pequena a tua proposta.
MACÁRIO. (subindo.)
Jesus! Casado com a Luizinha! (parando e erguendo o pé.) Ai! que fuzilada!
TIBÉRIO
O que é?
MACÁRIO. (entrando no gabinete.)
Nada... Ai! ai!
CENA XI
TIBÉRIO. Oh! srs.!... que mal fiz eu a Deus, para ser tão perseguido?... Parece que um bicho ruim mordeu esta velhada toda e a fez perder o juízo! Pois a Luizinha quer lá estes cagados para maridos! (chamando.) Luizinha! oh! Luizinha! (descendo.) Isto é tempo perdido. A pequena não quer, nem eu tão pouco. Assentei que ela havia de casar com o João, e há de casar... (pausa.) Mas vejam para o que estão dando os velhos agora! (voltando-se para a porta do gabinete.) Ah! súcia de bestas! O que vocês precisam bem sei eu! É uma sova de pau para criarem juízo!..
CENA XII
Tibério e Luíza
LUÍZA
O papai chamou-me?
TIBÉRIO
Chamei, sim, chamei... Senta-te aqui. (mostra o sofá.) Temos de conversar seriamente.
LUÍZA. (sentando-se.)
Sou toda ouvidos.
TIBÉRIO. (sentando-se.)
Menina, sabes para que vem a mulher ao mundo?
LUÍZA
Sei.
TIBÉRIO
Então dize lá para que é.
LUÍZA
A mulher vem ao mundo, como o homem, para estar no mundo.
TIBÉRIO
Sim, sra... E para casar-se também.
LUÍZA
Sem dúvida. Sobretudo para casar-se, porque a mulher que não se casa...
TIBÉRIO
Fica solteira, é certo. E, vamos e venhamos, deve ser aborrecido para uma moça... aborrecido e incomodo...
LUÍZA
Muito aborrecido. Eu, pelo menos, não tenho vocação para freira.
TIBÉRIO
E fazes muito bem. Justamente por conhecer que o teu temperamento não dá para tia, foi que te chamei para apresentar-te três propostas.
LUÍZA
Logo três?
TIBÉRIO
Mas eu não te constranjo. Podes aceitá-las ou não.
LUÍZA
Muito bem. Vamos então por partes. A primeira proposta?
TIBÉRIO
É o Anselmo. Sapateiro, bom partido; uma corcunda que parece uma mala de viagem. Serve-te?
LUÍZA
Não. Não vou viajar e não preciso de malas. A segunda?
TIBÉRIO
O Malaquias. Taverneiro, excelente partido; um olho de menos e uma canseira de mais. Serve-te?
LUÍZA
Não. Não quero ouvir todas as noites um batalhão de pintos a me gritar ao lado nem ter um marido com um olho só. A terceira?
TIBÉRIO
É o Macário... o Macarinho, sabes? Alfaiate, ótimo partido; sofre horrivelmente dos calos e tem horror à água. Serve-te?
LUÍZA
Não. Não quero ter o lenço continuamente ensopado em desinfetantes.
TIBÉRIO
E então?
LUÍZA
Quando o papai falou-me em três propostas, desconfiei logo desses três tolos, que revezam-se ali à esquina para me fazerem sinais telegráficos com os lenços de rapé e obrigarem-me a sair da janela. Quero casar-me, estou mesmo louca por isso, mas nunca com nenhum desses defuntos! há um rapaz de quem eu gosto, mas que não quer casar-se.
TIBÉRIO
Já sei. É o João.
LUÍZA
É o João, sim. Ainda há pouco declarou-me que nunca se casaria, porque o casamento é uma tolice. Têm sido em vão os meus esforços para chamá-lo a outras ideias.
TIBÉRIO
Deixa isso por minha conta. Se for preciso, meto-me no meio de vocês dois e arranjo tudo. O João é teu marido... Podes desde já considerá-lo como tal... mas dentro de certos limites, bem entendido... Mas voltemos aos teus pretendentes. Estão todos três ali no gabinete, à espera da tua resposta.
MALAQUIAS. (dentro.)
É impossível! O sr. é um tratante!
ANSELMO. (dentro.)
E o sr. é um canalha!
MACÁRIO. (dentro.)
São todos dois uns patifes!
LUÍZA. (erguendo-se.)
O que é isto, papai?
TIBÉRIO
Ai! ai! ai! São os teus pretendentes
ANSELMO. (dentro.)
Desaforo!
MACÁRIO. (dentro.)
Pouca vergonha!
MALAQUIAS. (dentro.)
Eu levo tudo a murro! (rumor, dentro, de cadeiras atiradas, tropel, etc. Macário, Anselmo e Malaquias entram furiosos, lutando Luíza, à vista do grupo, senta-se tranquilamente no sofá.)
CENA XIII
Tibério, Luíza, Macário, Anselmo, Malaquias e João
TIBÉRIO
Mas o que é isso, meus velhos?... Acalmem-se...
LUÍZA. (rindo-se.)
Deixe-os, papai.
MACÁRIO
Sr. Tibério, por que não me disse que estavam lá dentro estes dois bigorrilhas? (levantando o pé.) Ai! meus calos!
MALAQUIAS. (muito cansado.)
Por que não me disse que era este jarreta que estava lá dentro? (mostra Anselmo.)
ANSELMO
Por que não me disse que o gabinete estava vazio?
TIBÉRIO
Mas venham cá. O que é que vocês querem?... Casar com minha filha, não é verdade?
OS TRÊS. (ao mesmo tempo.)
Sem dúvida!
TIBÉRIO
Pois aí está. Ela que decida.
OS TRÊS. (ao mesmo tempo.)
Menina...
LUÍZA. (rindo.)
Decidam os Srs.
MACÁRIO
Então é comigo!
ANSELMO. (empurrando-o.)
Arreda, porco! É comigo!
MALAQUIAS. (empurrando Anselmo.)
É comigo, suas bestas!
ANSELMO
Pois veremos! (atracam-se os três outra vez. – Tibério e Luíza riem-se.)
JOÃO. (que tem entrado no principio da cena e ficado de parte a observar.)
Para que estes três velhotes estejam a esmurrar-se por causa de um casamento, é porque a coisa é boa. Quero também experimentar. (indo a Luíza.) Oh! prima, você quer casar comigo?
LUÍZA. (contente.)
Oh! primo, aqui está a minha mão.
JOÃO. (beija-lhe a mão e volta-se para os três, que continuam a fazer gestos de ameaça uns aos outros.)
Eu também sou pretendente. Vamos lá, seus velhotes, juizinho e olho da rua!
OS TRÊS. (avançando para João.)
Patife!
TIBÉRIO
Meus amigos, contenham-se. Não há motivo para tamanho barulho.
OS TRÊS. (a Luíza, ao mesmo tempo.)
A menina casa comigo?
LUÍZA
Esperem, meus srs. Meu pai transmitiu-me as suas propostas e eu ia dar a minha decisão, quando os srs. irromperam do gabinete, fazendo um barulho pouco próprio de homens de certa idade...
MACÁRIO
Foi este corcunda que teve a sem vergonha de dizer que ia casar com a menina!
ANSELMO
Disse, sim, porque pisei os calos deste estafermo, e ele chamou-me logo de burro!
MALAQUIAS
E eu levei tudo a soco, porque entendo que é comigo que a menina deve casar!
LUÍZA
Muito bem. Vou resolver a questão da melhor forma possível. O Sr. Anselmo não quer que eu case nem com o Sr. Macário nem com o Sr. Malaquias, não é verdade?
ANSELMO
Não quero, e não quero!
LUÍZA
O Sr. Macário não quer que eu case nem com o Sr. Malaquias nem com o Sr. Anselmo, não é certo?
MACÁRIO
Boa dúvida! O preferido devo ser eu!
LUÍZA
O Sr. Malaquias não quer que eu case nem com o Sr. Anselmo nem com o Sr. Macário, não é assim?
MALAQUIAS
Por certo! Sou eu que...
LUÍZA
Pois, como nenhum dos três quer que eu case, e não querendo eu ficar solteira, caso-me...
OS TRÊS. (ao mesmo tempo.)
Com quem?..
LUÍZA. (dando a mão a João.)
Com meu primo!
OS TRÊS
Oh! (ficam a olhar uns para os outros.)
JOÃO
Aceito, priminha, aceito. Se me der mal, não casarei segunda vez!
TIBÉRIO
Bravo! Acredite, João, que te dou uma excelente mulher.
JOÃO
E não me dá sogra, o que é melhor ainda. Obrigado, meu tio!
OS TRÊS. (ao mesmo tempo.)
E nós o que fazemos aqui?
JOÃO
Era justamente o que eu ia perguntar-lhes.
OS TRÊS. (avançando para João.)
Bigorrilhas!
JOÃO
Cuidado, meus velhos, cuidado!
LUÍZA
Meus srs., ficam convidados para tomar uma taça de champanhe no dia do meu casamento com meu primo, que não tem calos, nem corcunda e nem um olho furado.
TIBÉRIO
Vão, meus amigos, e peçam a Deus que lhes dê juízo, que é coisa que vocês não têm. Casem-se com três velhas e deixam a pequena casar com o rapaz. Olhem: o casamento deve ser assim: — velhos com velhas, moços com moças... – para não ser ninguém enganado!
OS TRÊS. (ao mesmo tempo.)
Mas, Tibério!..
TIBÉRIO
Vão passear, vão... e não chorem.
OS TRÊS. (ao mesmo tempo, com os punhos cerrados, avançando, em linha, para João.)
O sr. é...
LUÍZA. (rindo.)
O meu querido noivo!
OS TRÊS. (subindo, ao mesmo tempo.)
Um canalha!
JOÃO
Oh! hipopótamos!
TIBÉRIO
Oh! Macário, quando te resolveres a tomar mais de um banho por ano, passa-me telegrama, ouviste?... Oh! amigo Anselmo, toma cuidado com a giga... não te vá ela passar de malinha de viagem a barril de quinto! E tu, Malaquias, toma um xarope qualquer para a canseira e manda fazer um olho de vidro!.. E boa viagem!.. (os três, que têm parado à porta, voltam-se, ameaçam ainda com socos e saem aos empurrões. – Tibério cai em uma cadeira, às gargalhadas. João beija a mão de Luíza. – Desce o pano.)
FIM