Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

 Poemas inéditos, de Araújo Figueredo


Texto-fonte:

Sueli T. M. Mazurana (org.), Do occaso ao caso:

poemas inéditos de Araújo Figueredo,

Orleans,SC: edição do autor, 2010.

ÍNDICE

A alma

A amizade

Abriram-se os lírios brancos

Abro a janela

A calandra do sonho

A escada de Jacó

A fome, a pungente fome...

Agora, vejam...

Ah! Quantos corações...

Almas amigas

Almas penadas

A luz daquela estrela

A maior saudade

Ambas

À minha pátria

À minha terra

Amor efêmero

A morte

Amparado

Ana, o que hei de fazer

Ânsia

Ânsia II

Ansiedade

Ao partir

Aos astros

A partida

As almas

À sombra do olmeiro

Assim foram trabalhando

As três cruzes

As tuas mãos

As tuas mãos II

A suprema linguagem

Atravessando uma florida estância

A tua voz (a calandra do sonho)

Aves do sonho

À Zarina

Batizado

Beleza

Belos campos em flor!

Bem-aventurado

Bendita terra!

Bíblico

Bravos

Cânticos

Caravela (caravana) do destino (história triste)

Carlos de Faria

Carne

Casamento infeliz

Casa pintada

Cheguei

Ciúme

Clécia

Coisas passadas

Condenado

Contraste

Coração de Jesus

Coroa de espinhos

Deixa morrer

De joelhos

De manhã

De onde vens, minha amada...

Depois de morta

Desdêmona

Desejo

De volta ao mar

Dia de festa

Disse minha alma

Dois seios

E essa cabeça altiva...

E eu, de tão longe

Em cada face

Em romaria

Era tão pequenina...

Ergui minha alma

És a segunda flor

Espádua

Esperança

Essas falanges

Eu conheci um cão

Eu te quero...

Eu te saúdo

Felizes

Fonte de pranto

Gente antiga

Golpes de aço

Hora do ocaso

Ingratidão

Irmãs de caridade

Irmãs de caridade II

Ironia

João

Lá se foi a minha infância

Lenda antiga

Leves traços

Logo assim que nasceu...

Madalena

Manhã de noivado

Manhã num sítio

Maria de Nazaré

Maria Concepta

Mas andarás na terra?

Mistérios

Muitas vezes

Mulheres

Na armação

Na casa de Clécia

Na hora extrema

Na novena

Praia

Naquela estrela

Nas praias

Na vida praieira

Nesta da vida trágica jornada

Neste lugar agreste

Ninguém nos versos deste livro busque

Ninguém viu

No campo

Noivado na morte

Noiva saudosa

No mar dos sonhos

No sítio

Nossa Senhora, um dia...

No velho engenho

Novenas em maio

Num Álbum

Nunca fora bonita

Nunca mais

Nunca sorriu!

Ó campos de mentrasto!

O capoeira

O coração e a estrela

Olhar...

O meu patrono...

Ora, quem vive aqui

Os meus filhos

Os primeiros versos

Ossadas

Pai

Para as mães aflitas

Para o Tibúrcio de Freitas

Perdoar...

Perto de ti

Plantei

Por quem rezas assim?

Por que não hei de então...

Porto desejado

Portos de abrigo

Por uma noite assim

Praias da minha terra

Presidindo a festa

Presságios

Primavera

Purezas

Quando...

Quando cheguei

Quando ela morreu

Que jornada tristíssima

Que mais queres do mundo?

Quem se despede de casa

Quem sonha...

Que pelo lindo azul

Recordar...

Reencarnada

Reminiscências

Resignada

Rio das mágoas

Rústico

Salve, Rainha!

São Vicente de Paulo

Saudade

Saudoso

Seios

Seios II

Seja

Sempre a pensar em ti

Sempre em caleidoscópio

Sempre revejo uma reminiscência

Se por lá, no azul...

Simbólico

Smyrna

Sofro

Sonetilhos

Soneto

Sonhando

Só que esteja deitado

Sorris?

Subia do seu olhar

Subi cantando

Subindo a estrada

Supremo conforto

Tarde de roseirais floridos

Tarde espiritual

Tarde, o dia declina

Tercetos

Teve uns cabelos tão sedosos...

Tibúrcio de Freitas

Timóteo Maia

Tínheis os corações

Tomé

Transfiguração

Tulipa do azul

Usura benfazeja

Vai pela estrada afora

Vamos...

Veio a tarde

Velas

Velhinhos

Vem

Vinde o perfume das flores

Vindo da pesca

Visão

Vi tudo mudado

Voo de ave

Vou partir

Fragmentos

Canta

... do, por te haver esquecido

Foi ele

Luar

Maria Sulamita

Nunca te vi

Quando nos morre um filho

Vim trazer-te, senhora...

 

A alma

A alma, a sublime essência delicada,

Dos sonhos pela eterna correnteza,

Veste dos astros toda a luz sagrada

E toda a doce e emocional pureza...

No Empíreo, a alma feliz, santificada,

É como a Águia branca, de imortal beleza,

Tanto ao romper da clara madrugada,

Como da noite na brumal tristeza.

Mas, Águia feita, se subiu no Empíreo,

Impeliu-a das ânsias o martírio;

Fê-la ir o martírio a essas alturas...

Depois de vê-la andar pelos caminhos

Coroada de trágicos espinhos,

Soluçando e chorando desventuras...

 

A amizade

Essa é mais do que o amor, na eternidade,

De um cristalino e venturoso laço

Indo da terra à curva azul do espaço

E lá ficando toda claridade...

E o amor é a rosa em plena alacridade

Mas que fenece, cheia de cansaço,

À chuva, ao gelo, ou então sob o mormaço,

E até da tarde sob a suavidade.

Um aroma, porém, se perpetua;

Fica no espaço azul, nele flutua,

Transfigurado num clarão sublime.

Eis a amizade, o misterioso aroma,

Que das almas santíssimas assoma

E aos pés de Deus, entre canções, se exime.

 

Abriram-se os lírios brancos

Abriram-se os lírios brancos

E os rosais, sob o arvoredo;

E pelos seus verdes flancos

Canta alegre o passaredo.

E os rios correndo francos

Do alto, penedo a penedo,

Vão ao mar, pelos barrancos,

Cantando o treno mais ledo...

Tudo isso é como uma festa

Naquela ermida modesta

Da tarde ao sublime encanto.

É que, num caixão bordado,

Vai o meu filho, deitado,

Para a paz do Campo Santo.

 

Abro a janela

Abro a janela e a porta. A luz do sol faísca

Numa rubra efusão de berilos diluídos

Onde estivera, há pouco, a mais bela odalisca

Do oriente, a lavar seus cabelos brunidos.

À luz do sol a praia é uma casa mourisca

Com mirantes azuis, circulando-a, floridos.

E esse barco a correr recorda uma ave arisca,

Que se afasta da terra. E aqui, pelo comprido

Caminho que a esmeralda encantadora arrasta

Vejo um rio a tremer no verdor que se alastra,

E um perfume sutil de roseiras encerra...

E através desse rio, e através do oceano,

Contemplativamente olho o sol, todo ufano,

A fecundar, seguido, o cetim da terra.

 

A calandra do sonho[1]

Graças aos Céus! Voltei à nossa velha casa,

Que é o ninho aberto em flor dos nossos lindos filhos.

Maria, andei com frio, e hoje o calor me abrasa...

Pelas trevas andei, e hoje só vejo brilhos...

Sinto o calor que vem do teu seio, dessa casa,

E os brilhos que ora vejo, encontrei-os nos trilhos

Da mais robusta fé, que as dúvidas arrasa,

E das dúvidas quebra os rústicos cadilhos.

E essa, que ora me abraça, a velha Catarina,

Foi ela quem contou ao certo a minha sina,

Quando me disse que eu bem cedo voltaria.

E voltei, minha flor, porque de onde se achava

Todo o meu coração tristemente escutava

A calandra do sonho, a cantar noite e dia.

 

A escada de Jacó

Ei-la erguida entre a Terra e o Céu; ei-la aprumada

Sob a irradiação dos astros benfazejos,

Pela qual quer subir a minha alma exilada,­­

E os pássaros febris dos meus grandes desejos...

Ei-la erguida, a sublime e misteriosa Escada,

Que é um primor de beleza e benditos lampejos.

Vai do sopé da Mágoa à Região sonhada,

Onde não há temor de profundos arquejos...

Mas que ilusão, a minha! Em meio do deserto

Da vida, como eu sinto o coração aberto

Às miragens do Sonho! A Escada de Jacó,

Não a vejo senão quando me vem à mente

Uma triste cidade em cuja porta, crente,

Olhava para o Céu a alma simples de Jó.

(Florianópolis, setembro de 1922)

 

A fome, a pungente fome...

A fome, a pungente fome,

Que fará das nossas bocas?

Trará venenos, um nome?

E onde iremos, almas loucas?

E a peste virá, bramindo?

Loba de eternas vinganças.

Pobres dos que estão florindo,

Pobres das pobres crianças!

E a guerra virá? Mas esta

Vida é toda eterna guerra.

Há tempo traja a funesta

Mortalha do mal – a Terra!

Há tempo que o ódio avassala

As nossas almas. Bem vede!

Como um tigre de Bengala

É negro o ódio – e tem sede

Mas os astros não fervilham

Com sua luz de alegria,

Eles que no azul gravitam

Toda a noite e todo o dia.

E não permitais que seja

De tão tristes desenganos

O ano que perto alveja

Não seja como os meus anos.

 

Agora, vejam...[2]

Agora, vejam como a rapariga passa

Tão bem, tão satisfeita, alegre, toda risos,

Com o formoso olhar resplendente de graça,

E à boca, a tilintar, uma porção de guizos.

Nenhum medo, nenhum, a incomoda e embaraça.

E os dois seios lhe são delicados narcisos

De seiva virginal. Com modos de ricaça

Ei-la no campo em flor, sem passos indecisos.

É que vive com ela e ela sente, extremosa

A alma feita verão, dulcíssima e piedosa

Daquele a quem beijava os pés, e que hoje em dia

Anda a dizer-lhe ao ouvido as coisas mais bonitas,

Encontradas no azul das plagas infinitas,

Onde tudo floresce e canta de alegria.

 

Ah! quantos corações...[3]

Ah! Quantos corações como os rochedos

São assim tão frios e tão duros!

Todos ao chão por séculos seguros

Penetrados de aspérrimos segredos!

Corações que ficaram nos degredos,

Abandonados nos pauís escuros

Como espectro da treva dos monturos

Trinambolescos pássaros, tredos...

Ah! quantos corações, de abismo em abismo

Passam por esse eterno transformismo

E mudos, mudos sepultados ficam.

Mas um dia virá talvez, quem sabe,

Essa mudez dos corações se acabe,

Pois todos sob o céu se purificam.

 

Almas amigas

(Para o Doutor Hercílio Luz)

Almas que vos achais, neste momento, aliadas

Nas mesmas emoções e mesmas alegrias,

Estendei vosso olhar às compridas estradas

Que vão desta cidade às simples freguesias...

Nelas encontrareis irmãs alvoroçadas,

Num sublime festim de cores e harmonias,

A dizer-vos, febris, que se veem banhadas

De um brilho perenal como se fossem dias.

E quando a noite vier, quando a noite serena

Sobre a terra descer, com pólen de açucena

Que no campo e no mar tão linda se retrata,

Olhareis, no prazer que em vós seguido tomba,

Num coração humano a carinhosa Pomba

Cuja cabeça o luar ungiu de óleos de prata!

(28/07/1922)

 

Almas penadas

Almas penadas são aquelas que no mundo

Passam sem alcançar o estio dos carinhos.

Abandonadas são a um báratro profundo

Sangrando as mãos e os pés nas pontas dos espinhos.

Vagueiam pela praia, e vão do mar ao fundo,

Ou vagam sem cansar pelos longos caminhos.

Não receiam do mar o clamor iracundo,

Nem receiam do campo os arbustos dormindo.

Tomando-o com pavor, os rapazes da aldeia,

Fulja embora o cristal da linda lua cheia,

Às novenas não vão, nem suas namoradas...

Só que nunca deixei de andar às horas altas

Para te ver, pois eu faço parte das maltas

Dessas almas fatais, dessas almas penadas.

 

A luz daquela estrela

A luz daquela estrela me deleita

Dá-me clarões que nunca mais se apagam!

Mas de que elementos seria feita

Aquela estrela, entre as dores que negam

Água aos seus?

Os elementos dessa estrela linda

São os da mesma essência, que não finda

Daquela tudo foi feito, e será feito,

Por Deus.

Agita-se-me o peito

Quando vejo essa estrela

Maravilhosa, bela...

Ah! tenho o seu clarão, o seu belo clarão

Vejo a sua alma, o mais, decerto vejo

Igual ao meu coração.

 

A maior saudade

Fitando a aurora azul do longínquo horizonte

Nas linhas do oceano, ei-lo sobre um rochedo.

Prende a palma da mão a nostálgica fronte

E parece rever todo um fatal segredo...

Quantas recordações o seu olhar insonte

Encerra! Vejam só como esse olhar, a medo

Estremece... Estremece! É o fundo de uma fonte

Sob a copa sombria e densa do arvoredo.

Pobre do velho João, que do Congo partira

Há cem anos, ou mais! Quanto o preto suspira,

As lembranças dos seus dias de mocidade!

E quando os olhos fecha, e quando nisso pensa

Perpassa-lhe pela alma uma saudade imensa.

E a da pátria talvez seja a maior saudade.

 

Ambas

Tarde de evocações... Uma garça alvadia

Contempla, pensativa, a planura do mar

Que parece-lhe encher os olhos da erradia

Claridade de algum mistério do luar...

Vejo-a assim, e me vem à ideia o amargo dia

De Setembro, em que vi, a cismar, a cismar

Na esperança que é sempre uma ave fugidia,

Aquela que viera ao mundo para amar...

Penso na tua noiva. Ela também passava

A contemplar, de tarde, o espelho onde fitava,

De uma tuberculose o destroço inclemente.

E ela via no espelho o mar das suas mágoas

Como, neste momento, a garça vê, nas águas,

A sua alma talvez torturada e descrente.

 

À minha pátria

I

Eras tu, noutro tempo, um cacique, um Tupã,

Um bugre finalmente. E eras café e fumo.

Se a manhã te surgia, essa triste manhã

Não te dava senão atrasos, em consumo.

Não era, nesse tempo, a tua alma pagã

Senão um barco ao léu das correntes sem rumo.

No entanto, agora, é uma mulher louçã,

Das glórias imortais no perene resumo.

E que transformação! Há um século gozavas

A tanga, arcos e flechas; e por onde passavas

No fumo e no café só o progresso vias...

Que progresso era o teu! Na Liga das Nações

Se ainda fosses Tupã, quantas desilusões,

Quanto olhar cabisbaixo e quantas ironias!

II

Ó minha pátria! Ó minha pátria! Ó pátria amada!

De joelhos em terra, e olhos fitos no espaço,

Eu te saúdo e te beijo e te afago e te abraço

Como quem beija e afaga e abraça a namorada...

És a mulher sublime a quem mais amo. Alada

Vive em redor de ti, num fervoroso laço,

A minha alma febril, porque no teu regaço

Ela dormiu, na infância e dorme, iluminada.

De joelhos em terra, assim, desta maneira,

É teu o meu amor. E a minha vida inteira

É tua unicamente. E o meu peito é um braseiro

De esperanças e fé, porque te vejo agora

Transformada em mulher, com sorrisos de aurora,

Sob o eterno esplendor dos braços do Cruzeiro.

 

À minha terra

Ao despertar das estrelas

Eu abro as minhas janelas

E fico horas a cismar

Na minha terra, no sul,

Em cujas praias o mar

É verde, e às vezes azul.

Na minha terra querida

Sempre bela e florescida,

Como na infância brinquei.

Com as conchinhas da praia,

À hora que o sol desmaia

Entre brilhos, que nem sei!

É a minha terra saudosa

Trajada de cor de rosa,

E, muitos seres, de cores

De vários jasmins trajada,

A minha terra adorada,

A terra dos meus amores!

Da brisa sinto, nas aras,

O rumor das suas casas,

Quando a luz do sol rebrilha.

E eu vejo como ninguém

A alegria que me vem

Dos encantos dessa Ilha.

E eu lá deixei, entre flores,

Lá deixei os meus amores

As morenas do sertão;

As simpáticas morenas

Que me cobriam de penas

As asas do coração.

E eu lá deixei Mariquinhas,

Como a tinta de escrever,

A domadora dos peitos,

Fazendo-os até morrer.

Ah! Quanta saudade eu tenho

De um velho e sombrio engenho!

Nele trovei muitas trovas

Às raparigas faceiras,

Às raparigas mais novas,

Às almas alvissareiras.

Era aí que eu me julgava,

Quando o dia declinava,

O mais feliz dos rapazes,

Pois até me parecia

Que em redor de mim havia

O carinho dos torcazes.

Ao despertar das estrelas

Eu abro as minhas janelas,

E fico horas a cismar

Na minha terra, no sul,

Em cujas praias o mar

É verde, e às vezes azul.

 

Amor efêmero

Florescia Janeiro

Mês de calor, mas um dourado mês...

Quando te vi pela primeira vez

E que brilhou-me o teu olhar primeiro!

Dentro em minha alma então

Senti um não sei o que fosse

De grande amor... um sentimento doce

que me partiu em dois o coração!...

 

A morte

A morte é preta;

Dela ninguém escapa,

Nem o bispo, nem o rei, nem o papa.

Mas hei de escapar eu.

Pego um vintém

Compro uma panela,

Meto-me dentro dela,

Tapo-a muito bem,

E a morte ao passar por ela,

Diz: aqui não mora ninguém

Passem vocês

Muito bem.

 

Amparado

Amparado nos teus braços latescentes

Sigo, tranquilamente sossegado,

Por este vale de paixões ardentes,

Mais que as ondas de um mar bravio, irado

Sigo, sigo olvidando as inclementes

Dores, porque nos teus braços amparado

Meu coração é todo florescentes

Vinhas, num verde e fecundo prado.

Sou, certamente, bem feliz na vida,

Pois quanta gente por aí, perdida

Vive, tão só, nas ânsias, nos cansaços

Sem ter quem lhe agasalhe o peito aflito

Num punhado de cal, ou de granito...

E quanto mais na rósea cruz de uns braços!

 

Ana, o que hei de fazer[4]

"Ana, o que hei de fazer para fugir do medo

Que me sacode o dia inteiro, a noite inteira,

Dentro da minha casa, ou à sombra do arvoredo,

E mesmo à luz do sol cantando na lareira?

Ouço à concha do ouvido a toada de um segredo

Horrível, como a de uma alada feiticeira.

Talvez a voz da morte a chamar-me ao degredo

Da cova, nesse chão sem luz meiga e fagueira."

Ora, deves beijar, Maria, os pés gelados

De um defunto qualquer, que eles te levarão

Todo o medo brutal, e viverás contente...

E, nessa mesma tarde azul, de tons magoados,

Ajoelhada, Maria, ao lado de um caixão,

Os hirtos pés do amante osculava, fremente...

 

Ânsia

Camaradas, ao remo! O vento é fraco! A vela

Bate. Por que passar a noite nessas águas?

Vocês devem saber o perigo das fráguas,

E não há nem sequer o clarão de uma estrela.

Camaradas, ao remo. As rondas da procela

Têm vozes no mar grosso, a leste da Ilha. Trago-as

Sempre no pensamento. Ai, delas tenho mágoas,

Pois eu já naufraguei aos pés do Cambirela.

É igual à de vocês a ânsia que eu tenho na alma.

Mas nem eu, nem vocês temos nesta hora calma,

Nenhum no coração uma alegria sente.

Luiz, a tua amada é a flor das raparigas;

E a tua, Antonio, a rima alegre das cantigas...

Mas eu deixei em casa um filhinho doente.

 

Ânsia II

Ânsia que não se apaga,

Ânsia infinita,

Essa que, como um grande mar me alaga,

E em turbilhões fantásticos me agita!

Vivo nessa ânsia,

Há séculos talvez;

E cada vez

Mais cheio de tormentos,

Como se eu fosse pelo espaço afora

Levado, e atormentado

Pelas asas dos ventos.

Abrem-se os roseirais diáfanos da aurora,

E se desfolham, ou somem-se no espaço,

E eu a ansiar, sempre a ansiar

Bem como,

Em trêmulo assomo,

A asa de um pobre passarinho aflito,

A voar... a voar

Por sobre o mar

Infinito!

E o dia irrompe, com o sol bendito,

Tendo antes ressurgido a Estrela d'Alva,

Num campo azul, e às vezes cor de malva.

Entre franjas

Da cor da casca oleosa das laranjas...

E eu a ansiar... a ansiar,

Nessa tortura, nessa ânsia

De vencer a distância...

O dia chega, e enquanto vai rolando,

Engolfado na luz maravilhosa,

De uma sublime pedraria

De ouriversaria,

Eis-me ainda ansiando

Mas sem um raio de alegria!

É que eu sou triste

Como quem assiste,

Das janelas de um cárcere, passar

A esposa casta, o filho casto, e a ave

Cantadeira, a voar

....................................

E assim, durante

O dia

Vivo ansiante... ansiante

Vivo ansiando...

Depois, a tarde desce,

Nuns seixos de saudade,

Numa concentração espiritual,

E eis-me, agora, ajoelhado, numa prece,

A qual, diante da minha ansiedade

Nem parece

Efluvial;

Mas antes a expressão de um egoísmo

Que mora dentro do meu coração,

Neste profundo abismo,

De vencer a distância...

E como, de um momento

Para outro, no excelso firmamento,

De veludo de hortênsia

Longe a florescência

Das rútilas estrelas,

Continuo na ânsia

De vencer a distância,

E fico louco para vê-las

De perto, de bem perto,

Cada uma como um lindo porto aberto.

É que eu procuro, aflito de ansiedade,

Já morto de cansaço

Nuns roixos de saudade,

No Arquipélago de ouro das Antilhas

Do espaço,

As minhas filhas!...

 

Ansiedade

Que ansiedade eu sinto! Ah! Que imensa ansiedade

De viver não sei aonde, em que lugar no mundo;

Mas contigo ao meu lado, a ouvir a suavidade

Da tua voz, e a ver o teu olhar profundo...

Em que lugar, não sei! Fosse mesmo num canto

De alva praia do mar, no meio dos rochedos,

E eu ali ficaria a contar teus segredos,

A fruir teu amor feliz e sacrossanto.

Em que lugar não sei! Fosse dentro das ondas

Convulsionadas desse oceano inclemente...

Ali mesmo eu teria, em continuadas rondas

Em redor da tua alma, uma vida atraente.

E fosse mesmo num deserto, num deserto

Sem árvores, sem água e trigo sazonado,

Todo o meu coração estaria, ao teu lado,

Recordando de fato um lindo céu aberto.

E fosse mesmo, fosse embaixo de uma pedra,

Onde o verme rasteja, e foge à luz do dia,

Junto ao teu coração que tantos sonhos medra,

Eu estaria bem, flamando de alegria.

E fosse num covil de feras indomáveis,

Eu nessa escuridão, nesse covil de feras,

Teria, e tu também, as carnes invioláveis

Sob o doce clarão das tuas primaveras.

Em que lugar, não sei! Fosse mesmo entre espinhos,

Numa estrada sem fim, ou num medonho atalho,

Onde nunca se visse uma gota de orvalho

Nem se ouvissem cantar os próprios passarinhos.

Nessa estrada eu teria a suprema ventura

De te ver cada vez mais bela, entre os meus braços,

Sem sentir, nem de leve, a mínima tortura

Na epiderme dos pés, de tão serenos passos.

E se um dia te visse entre blocos de gelo,

Que pudessem matar-me, eu não me esquivaria

De morrer, de morrer, pois então morreria

Sob a noite aromal dos teus lindos cabelos.

E se eu morrer te visse, as pálpebras fechando

Às ilusões do mundo, ao desceres ao chão,

Junto ao teu coração piedoso, doce e brando

Desceria, por certo, um outro coração.

E se uma vez no Espaço a tua alma rufiasse

As asas, e quisesse a este mundo voltar,

A minha, meu amor, custasse o que custasse,

Voltaria também para sofrer e amar.

 

Ao partir[5]

Envolvi-a nos meus braços febricitantes...

Beijei-lhe dessa boca a romã sazonada,

E parti. (Como dói às almas dos amantes

Uma separação assim precipitada!)

Damascos de sol posto! E as montanhas, distantes,

Eram azuis. E a praia, alvadia, lavada,

Tinha da lua nova os contornos brilhantes:

Era uma lua em curva, pelo tempo desenhada.

E num barco, por sobre as vagas buliçosas

Parti. (Quanta amargura! ai lágrimas custosas!)

Fui em busca não sei de que plagas ignotas.

Em alto mar, porém, ao resplendor dos astros,

Cruzaram-se no topo alteroso dos mastros

Os seus lenços de amor, nas asas das gaivotas!

 

Aos astros

Astros! Quando eu deixar este mundo, que desça

A vossa luz serena, esse manto piedoso

Sobre e neve que já me embranquece a cabeça,

E este meu coração profundamente ansioso.

Que a vossa luz divina em minha alma floresça,

Como um belo rosal de abril, e um céu ditoso

Por esse azul afora; e do mundo me esqueça,

Fecho os olhos ao mundo, no viver duvidoso...

Fecho os olhos, assim... Mas, ó astros benditos,

Eu poderei viver sem lágrimas, sem gritos,

Sem ânsias, sem tortura, e sem ouvir quem brade,

Por anos de pesar, por anos de tortura,

Sinto o coração na triste noite escura,

Na atra desolação eterna da saudade?

 

A partida

(A I. O.)

Ó meu amor, ó meu amor, partes

Tu vais partir, e agora

Como minha alma há de viver, se a vida

Que me conforta, levas mar afora

Como uma essência, uma ilusão perdida?

 

As almas

Dos astros nos eternos resplendores,

Todas vestidas de ideais purezas,

Como nos campos as formosas flores,

Que são o encanto de toda natureza;

Da glória excelsa nas celestes cores,

Triunfalmente cheias de grandeza;

Purificadas nas imensas dores,

Limpas do imenso charco da vileza;

Todas, todas, assim, as nossas almas

Serenamente irão pelas caladas

Regiões de um sonho feito claridade

Pombos de asas soltas, imaculado,

Se desceram dos astros, emigrados

Regressarão batidos de saudade.

 

À sombra do olmeiro

À sombra amiga desse olmeiro, certo dia,

Eu te encontrei: o sol, entre franjas doiradas,

Para trás da montanha esplêndido descia,

E eram todas cristais as ondas e as estradas.

Numa ramada em flor, que doce melodia!

Rimava um sabiá suavíssimas baladas

Junto do ninho. E tu, ouvindo o que eu dizia,

Falaste-me do amor nas praias sossegadas.

E o que eu te disse, flor querida? O que eu te disse

Para corresponder à gárrula meiguice

Do teu seio, do teu olhar, dos teus cuidados?

Psiu! que alguém nos ouve... À sombra desse olmeiro,

Tivemos nós um sonho alegre e alvissareiro

E, dentro desse sonho, os braços enlaçados...

 

Assim foram trabalhando

Assim foram trabalhando

Esses pobres africanos

— Uns contra a dor blasfemando,

Outros dóceis, meigos, lhanos...

Vendo-os na luta eu dizia:

— Triste de quem deixa o lar

Onde viu a luz do dia,

E vem num outro morar.

Sem ter quem lhe dê consolo,

Sem ter quem lhe dê um ai;

De uma fera vendo o colo

E, num verdugo, o seu pai!

Afeiçoei-me aos escravos,

E eles me queriam bem,

Sem os mais leves agravos

Do tamanho de um vintém.

Dentre eles, porém, havia

Um por mim mais estimado

E esse, ao raiar de um dia,

Viu-se de todo aleijado.

De altas pernas de borrelhos,

Passou a andar, desde então,

(Coitadinho!) De joelhos

Fosse quente ou frio o chão.

E envelheceu nessa prova,

Ficou toucado de neve...

Mas que alma sempre nova;

Inefável, doce e leve!

— De joelhos corro o mundo,

Ajojado à escravatura...

Não há tormento mais fundo

Não há noite mais escura.

— Mas Jesus seja louvado

Diante da minha dor;

E eu me veja abençoado,

E também o meu senhor.

— Eu perdoo-o, satisfeito,

Do fundo do coração...

E que ele, por meu respeito,

Jamais seja escravo, não!

- Que aberto o céu lhe seja

Num puríssimo clarão;

E ele dentro do céu veja

Os três lírios do perdão,

Que tantas foram as chagas

Dos pés e mãos de Jesus

Que após três horas pressagas

Morreu por nós numa cruz.

 

As três cruzes

I

A primeira enterrei-a à beira de um caminho

Que o sol cobria de ouro, e prata, e pedraria.

Pela manhã, por ela errava a sinfonia

Dos ares no aconchego amoroso do ninho.

À tarde, a luz doce, plena, macia,

Era-lhe seguidamente um gozo de carinho...

Os perfumes sutis levíssimos havia

Em redor dessa carne - tão branca como o linho.

E quando a noite vinha aberta em resplendor

Como o manto que cobre a Senhora do Bem

Nessa cruz toda uma eterna flamância

Via-lhe a gente no alto - ao fulgir de um diamante

Os versos imortais que são todo o poema

Da alma maravilhosa e bendita da infância.

 

As tuas mãos

As tuas mãos são todas arminuras

De carinhos, de afagos, de bondade,

Tão leves e tão brancas e tão puras,

E têm das rosas toda a suavidade.

Que sejam as tuas mãos, nas amarguras

Da minha vida, o pão da caridade;

E, tênues e assim brancas, e assim puras,

Sejam bênçãos de luz, na imensidade.

E sejam asas de pomba sobre o peito

De quem tanto soluça, deste jeito,

De quem tanto padece – asas de pomba,

Mas que sirvam, pronolas e fagueiras,

Para serem as minhas enfermeiras

Sem a prisão das mãos de Santa Comba.

 

As tuas mãos II

Beijo seguido as tuas mãos formosas,

E procuro fechá-las com carinho,

Porque nas tuas mãos eu acho o ninho

Para as minhas torturas voluptuosas.

Só nessas mãos mais brancas do que as rosas,

Ou muito mais do que o próprio arminho,

Sinto, como embriagado de um bom vinho,

As sensações do amor miraculosas.

Beijo-as seguido, porque nelas vejo

O bendito segredo de um desejo

Que a sete chaves guardo no meu peito.

As tuas mãos, nos últimos escolhos

Da minha vida, fecharão meus olhos;

E eu morrerei sorrindo, e satisfeito.

 

A suprema linguagem

(Para a alma de Margarida Lopes de Almeida)

A rosa branca, ou jalde, ou cor de sangue, fala,

E fala suavemente o lírio da campina;

E o perfume sutil, que à doce luz se exala

Dessas flores ideais, também fala, em surdina...

E a água fresca da fonte, esquiva e cristalina,

Também fala, amorosa. E fala a luz de opala

Da lua, e a luz do sol, dulcíssima e divina,

Que nos topázios, rubis e berilos se iguala...

E fala a vaga azul do mar, quando sereno;

E a esmeralda do campo é toda um belo treno;

E é uma ânsia de amor, falando, em noites calmas,

Cada estrela a luzir na cerúlea paisagem...

Mas tudo isso não tem a suprema linguagem

Da alma de Margarida, ao pé das nossas almas.

(Florianópolis, 21/03/1923)

 

Atravessando uma florida estância

Atravessando uma florida estância

Na qual a luz fulgente

Exuberante cai

E exubera o vinhedo

Com muitos cachos dependurados

E quase todos sazonados,

E espalhados

Na água fresca e corrente

À sombra do arvoredo...

Olhando-me, compreendia

A louçania, dos meus verdes anos,

Sem compreender que houvesse, neste mundo,

Almas, feridas de um profundo

Tormento roixo como as violetas.

 

A tua voz (a calandra do sonho)[6]

Graças aos Céus! Voltei à nossa velha casa

Que é o ninho aberto em flor dos nossos lindos filhos.

Maria, andei com frio, e hoje o calor me abrasa;

Pelas trevas andei; e hoje só vejo brilhos...

O calor que ora sinto é o teu seio, é a tua asa,

E os brilhos que ora vejo, encontrei-os nos trilhos

Da mais robusta fé, que as dúvidas arrasa,

E das dúvidas quebra os rústicos cadilhos.

E essa, que ora me abraça, a velha Catarina,

Foi ela quem contou ao certo a minha sina,

Quando me disse que eu bem cedo voltaria.

E voltei, meu amor, porque onde eu me encontrava

Todo o meu coração tristemente escutava

A tua voz saudosa, ó meiga cotovia!

 

Aves do sonho

Aves do sono, encantadoras aves,

Aconchegos de linho, encantadores,

Que em vossas asas de esquisitas cores

Subam para o alto os meus suspiros graves...

Aves de adejos leves e suaves

Imigradas da terra de áureas flores,

Levai-me as mágoas e as sinistras dores

Pelas mais altas e vistosas naves.

Pelas naves caladas das montanhas

Levai-me as mágoas rústicas, estranhas

Que eu já não posso dentro da alma tê-las...

E as minhas mágoas que germinem risos,

Aves do sonho, encantadores guizos

Da luz velada e branca das estrelas.

 

À Zarina

Amoroso, recordo a hora em que voaste,

Asas rufiando, asas ruflando, ó cotovia!

Pelos campos em flor, e nas vagas tremia

A cor em cujos tons as asas mergulhaste.

Hoje sonhas no céu, como jamais sonhaste,

Pois se não fosse assim, tua alma, noite e dia,

Tão vivas emoções à minha não daria...

E vens trazer ao campo o que dele levaste.

E vens toda de branco; e cercam-te as redomas

Cristalinas da altura, estuantes de aromas.

Retorna à casa amiga a leve imagem tua,

Retorna no clarão bendito dos espaços,

E vem meiga, e vem bela; e abrindo no ar os braços,

Como as velas de luz da gôndola da lua.

 

Batizado

Vibrem desse luar os bandolins de prata,

E as harpas de ouro fino, e as flautas de canela

E o seu fluídico som, que em clarões desata,

Que ande em cada sol, que ande em cada estrela.

Vibrem mais, ainda mais as cítaras misteriosas

E os violinos azuis dos espaços serenos,

Que às vezes quando há luz transformados em rosas

Lembram o linho alvoral dos mantos dos Helenos.

Vibrem, Comunhão bendita dos Altares,

Os Salmos de Davi, que o mundo enchem de encantos

Como de encantos enche as campinas e os mares

O puríssimo Azul, que é o caminho dos Santos.

Nos campos tudo quanto em lírios for nascido

É aroma sacudido das corolas que fale

À luz desse luar docemente diluído

Que não há sonho esplendente que iguale.

Dos pomares que dão os mais bonitos frutos

Como jambos da cor dessas nossas patrícias;

E pitangas lembrando os lábios impolutos

Das crianças gentis que dormem nas carícias...

Dos pomares que dão uvas que amadurecem

Logo que canta o Estio, e com ele as cigarras

Que a cantar, a cantar ternamente parecem

Trazer dentro de si muitas manhãs bizarras...

Dos pomares que dão polpudos ananases,

E cujas febris e dúlcidas laranjas

Que inundam de prazer o peito dos torcazes

E de alegria imensa as cabanas e as granjas...

E dessas fontes que fertilizam campinas

Enchendo-as de frescura e músicas supremas

Como não há na luz das rimas cristalinas

De todas as canções de todos os poemas.

Do divino chilrar dos lindos gaturamos

Que chegam quando Maio enfloresce os caminhos

E sonham muito mais, talvez, do que sonhamos,

Porque sonham cantando, e leves como arminhos.

Tudo vibre em meu Verso, e tudo nele exprima

O que de casto e bom, o que de Azul e de astros,

O que de aroma e sons pelos Ares rima

O sacrário do sol ou a Lua de alabastros...

Tudo vibre em meu Verso, e tudo nele seja

Damascos de manhãs douradas, ondiflavas,

Porque assim o quer, e contente o deseja

Esta minha alma verde e aromal como as malvas.

O que minha alma quer, alma de beduíno

Que atravessa esta vida até nela ofuscar-se,

É de uns versos fazer um colar diamantino

E oferecê-lo a Mimi, que vem de batizar-se.

A essa cuja fronte é por mim abençoada,

Todas as vezes que lhe entrego um livro aberto,

Onde o seu doce olhar vê sempre uma alvorada,

Onde o seu coração vê sempre um sonho perto...

E não podia ter momento mais preciso

Esta minha alma, não! Este momento asado

Para de cada verso arrancar um sorriso,

Porque afinal eu sei que é um Batizado!

 

Beleza

Eu te amo, oceano ruidoso,

Em teu brusco e medonho bramar;

Eu te amo, à luz alva da lua,

Espumante na rocha a quebrar.

Eu te amo, na fresca manhã,

Sussurrante na praia a morrer;

Eu te amo, sereno do ocaso,

Quando o sol em ti vai se esconder.

Eu te amo, ó céu puro de anil,

Alvas nuvens de rubro bordado:

Eu te amo, tremendo ao bulcão,

Atro, fero, de raios pejado.

Quando a brisa murmura nos ramos,

Eu te amo, floresta viçosa,

Quando a folha tremula de manso,

Eu te amo, florzinha mimosa.

Mas a flor, o céu puro, a floresta,

Nem o mar com seu triste gemer;

Com amor não me pagou amor;

Só com ais podem ais responder.

E o teu rosto, Beleza, gentil

Tem a meiga inocência da flor,

A candura e pureza do céu

É fagueiro, seduz... tem amor.

 

Belos campos em flor!

Belos campos em flor! Cheirosos jasmineiros!

Campos de verde seara! E a água pura, dos riachos,

Abertos em cristal, em misteriosos fachos,

Com a brisa a cantar nas harpas dos olmeiros.

Na harmonia da luz, desde a praia aos oiteiros,

Onde o rude aldeão já descansou os sachos

Floresce a vinha verde e se cobre de cachos

Rica messe para encher celeiros e celeiros.

Mas antes dessa messe aromal, de bons vinhos,

Transbordar de emoção as casas e os caminhos,

Creio já ter gozado, alegre e satisfeito,

Não um vinho da cor da seiva do pecado.

Antes, o vinho azul do teu olhar amado,

Que é o orvalho da manhã na aridez do meu peito.

 

Bem-aventurado

Ora, que as tuas orações benditas

Que as tuas orações, quando morreres,

Serão vistas por ti, em caracteres

De ouro, no Livro Azul das bem escritas.

Descem anjos das plagas infinitas,

Descem da Aurora pelos rosicleres,

Para colher, muito melhor que Ceres

A sementeira de orações contritas...

Cá pela terra é semeado o trigo,

E esse trigo nos dá o pão amigo,

Se o sol de orvalho e viva luz o banha...

Mas nesse azul as orações que oramos,

Muito melhores do que o trigo, achamos,

Banhadas de uma luz mais viva e estranha!

 

Bendita terra!

Bendita terra! Terra encantadora! Terra

Que na glauca esmeralda e na safira, encerra

Surtos de maravilha!

És a terra ufanosa, desde o campo onde floresce

Em ouro a seara, até ao mar que resplandece

Nas alfaias

Das praias

Desta Ilha!

Bendita terra! Terra amada! Oásis de flores

No deserto da vida, onde se bebe a água

Fresca, a água cristal, a água que mata as dores

Das ânsias e da mágoa!

Terra que eu sempre amei apesar dos cansaços,

Em cuja praia, em frente, onde há sedas de trevo,

Às vezes ajoelhado

E concentrado

Escrevo.

Como venho te dar o calor dos meus braços

E o coração, todo o coração, iluminado

Na alegria que freme alucinadamente

Pela glória que vens de sentir num repente!

Terra, encanto de um sonho! Ó Canaã bendita!

que tens por sobre ti a abóbada infinita,

Enflorada de sois, de primorosos astros,

Como eu te quero bem! Como nós te queremos

Cada vez mais sublime e mais rica, e mais bela!

És a moça que sai a uma humilde capela,

Para rezar em contas de áureos brilhos.

Meiga, casta e divina

Como a luz magnífica do dia,

És a Santa Catarina

De Alexandria!

Da nossa alma os enastros

Fulgem aos teus pés, como os astros

De florações de prata e de cristais.

..........................................

Bendita a terra dos nossos pais!

Bendita a terra em que nascemos!

Bendita a terra dos nossos filhos!

 

Bíblico

Tanto resplandecia a sua vida, tanto,

Como no Espaço o sol resplandecia,

A vida de José, do Bom, do Santo,

Do idolatrado Esposo de Maria.

Em torno de José havia o encanto

Da luz, da cor, do aroma e sinfonia;

E tecido de paz, que lindo o manto,

Para cobrir a quem de ânsias morria.

Toda essa vida recordava um salmo

De ramos de oliveira, sobre as águas

Do dilúvio, baixando palmo a palmo...

E dos aflitos as profundas mágoas,

Ele, o rude operário, humilde e calmo,

Aparelhava, como as próprias tábuas.

 

Bravos

(Ao Grupo 12 de Agosto, recitada na noite de 7 de Setembro, no teatro Santa Isabel)

Sanguínea mocidade,

a flor da caridade

que dentro em vós rebenta heroica e palpitante

neste momento brilha assim como no espaço

do legendário sol, o colossal diamante

sempre farto de luz e forte como o aço.

Em vossa fronte rola

o resplendor da Esmola

que cai de vossa mão sem luva de pelica

bem como cai o doce orvalho imaculado

de um largo céu azul profundo iluminado

que à terra dá vigor, que as plantas purifica.

Dentro em vossa alma explose

a máscula nevrose

de um puro coração banhado de esplendores

onde se aninha o amor mais franco e mais sereno

donde se vê brotar uma porção de flores,

como as do coração do antigo Nazareno.

São varonis compêndios

de amor esses incêndios

que rompem simplesmente o vosso enorme peito

quando lançais um pão à boca da miséria,

quando lançais o casto olhar em sois desfeito

para a doce amplidão da plaga azul, etérea.

São místicas estrofes

de madrigais — são cofres

de pérolas gentis e músicas suaves

essas cintilações do vosso amor, tão grandes,

tão francas, tão febris – que voam como as aves

muito além, muito além do píncaro dos Andes.

São virginais ofertas,

esplêndidas cobertas

dum sadio vigor que as almas extasia,

as frases que entornais do peito – esses poemas

feitos da imensa luz puríssima do dia,

que cintilam melhor que os rútilos diademas.

É mesmo assim que deve

tão branca como a neve

a vossa consciência abrir-se em grandes rosas,

ou como estranhos sois nas dúlcidas esperas,

ou como borbotões de cismas fulgurosas

num meigo reflorir de eternas primaveras.

Seja sempre tão lindo

assim o amor infindo

do vosso peito nobre imaculada – seja

sempre muito viril, de eterna claridade,

a alma que se nutre em vós e que despeja

relâmpagos de aurora em toda imensidade.

A esmola que se lança

calma, tranquila e mansa

é a mais radiosa flor das almas – flor nascida

numa estranha manhã de um brilho nunca visto

flor pura e virginal feita da luz querida

duma gota sutil das lágrimas de Cristo.

É flor que nunca morre

e o perfume que escorre

é como de um Altar o incenso – é como a prece

dos nobres corações ingênuos das crianças

olhando para o céu, que sempre lhes parece

aberto – a derramar cascatas de esperanças.

É mesmo assim que as frontes

de vós, como horizontes,

devem se reflorir, – é mesmo assim que a gente

imitando Jesus pregado em duros cravos,

a consciência lava em sol resplandecente,

numa doida explosão de palpitantes – Bravos!

 

Cânticos

1

Ondas do mar

Saudoso e amigo,

Vinde cantar

Hoje, comigo,

Ondas do mar,

Saudoso e amigo.

2

Aves marinhas,

Ó gaivotas,

Cantai mansinhas

Como as devotas,

Aves marinhas,

Ó gaivotas!

3

Aves das matas,

Dessas florestas,

Dai-me as sonatas

Das vossas festas,

Aves das matas,

Dessas florestas.

4

Rosais em flor,

Dessas estradas,

Que a vossa cor

Cante baladas,

Rosais em flor,

Dessas estradas...

5

Vales e montes,

Verdes e azuis,

Cantai insontes,

Na branca luz,

Vales e montes,

Verdes e azuis.

6

Rios, ribeiros.

Resplandecentes,

Sob os salgueiros

Cantai, frementes,

Rios, ribeiros,

Resplandecentes.

7

Sombras amigas,

Dos arvoredos,

Rimai cantigas,

De almos segredos,

Sombras amigas

Dos arvoredos.

8

Brisas fagueiras,

Doces afagos,

Cantai, ligeiras,

Junto dos lagos,

Brisas fagueiras,

Doces afagos.

9

Loiras abelhas

Errai... errai...

Se sois centelhas

De sol, cantai,

Loiras abelhas,

Errai... errai...

10

Meigas crianças,

Pássaros lindos,

Cantai esperanças,

Cantos infindos.

Meigas crianças,

Pássaros lindos,

11

Moças formosas

De olhos castanhos,

De olhos estranhos,

Cantai, graciosas,

Moças formosas

De olhos castanhos.

12

Cantai, ó moços

De olhos celestes,

Todas as vossas

Rimas campestres,

Cantai, ó moços

De olhos celestes,

13

Moças, mocinhas

De olhos tão pretos

Quais andorinhas,

Rimai sonetos,

Moças, mocinhas

De olhos tão pretos.

14

Ó moças de olhos

Da cor das águas.

Longe de escolhos,

Cantai, sem mágoas,

Ó moças de olhos

Da cor das águas.

15

Cantai, olhares,

Luz dos topázios.

Divinizados

Pelos Parstrázios,

Cantai, olhares,

Luz dos topázios.

16

Esposas santas,

Mães heroínas,

De tantas, tantas

Ânsias divinas,

Cantai, ó santas

Mães heroínas.

17

Formosas filhas

Das nossas terras,

Das verdes ilhas,

Vales e serras,

Cantai, ó filhas

Das nossas ilhas.

18

Sol das alturas,

Do céu bendito,

Dai-me doçuras,

Sol do infinito,

Sol das alturas

Do céu bendito.

19

Lua formosa,

Cela redonda,

Cantai, saudosa,

Ó Gioconda

Lua formosa,

Cela redonda.

20

Cantai, também,

Meus camaradas,

Cantai por quem,

Trajando vestes

Chamalotadas

E de ouro fosco,

E de cristal,

Será convosco

No mesmo ideal,

No mesmo sonho

Claro e risonho;

Na mesma glória

Bendita e flórea

E em que então,

por toda a eternidade

Entre festivas palmas

Gravado ficará

nas asas da saudade

E na luz, e no som,

e no aroma, e nas

Almas.

 

Caravela (caravana) do destino (história triste)[7]

I

Florença fez-se a moça mais formosa,

A mais formosa Flor do lugarejo.

Entretanto, podendo ser vaidosa

Era modesta e humilde, de sobejo.

Quando a tarde descia, cor de rosa,

Ei-la do sol ao efluvial bafejo

Junto à porta a cantar, maravilhosa,

De coração alegre e benfazejo.

Era nessa hora que eu buscava vê-la

Como quem busca protetora estrela

Como quem busca as linhas de um caminho.

Nessa hora, que feliz contentamento!

Acabava-se todo o sofrimento

Sob o veludo azul do seu carinho.

II

Fez-se da aldeia a moça mais formosa,

A mais formosa flor do lugarejo.

Do seu olhar a clara luz maviosa

Tinha um contínuo e límpido lampejo.

Quando a tarde descia, luminosa,

O sol lhe dava nessa luz um beijo.

O sol beijava aquela luz gloriosa,

Enchendo-a do seu íntimo desejo.

Luz desses olhos meigos e castanhos,

Toda alastrava de clarões estranhos

Os lugarejos, onde a gente a visse.

Era, como no vidro das janelas,

A luz de duas rútilas estrelas

Num céu que, de açucenas, se cobrisse.

III

Eram da cor da casca do pinhão

As pupilas dos olhos dessa moça.

Ao vê-las todo o poviléu da roça

Ficava louco, e cheio de paixão.

Iguais, assim, banhados de um clarão,

Só as pupilas místicas da Nossa

Senhora, cujo amor almas adoça,

Na luminosa Estrada do Perdão.

Olhos, refúgios de amargura e sonhos,

Ora tão tristes como os mais tristonhos

Lutos da lua sobre o frio mar,

Mas enchiam-se às vezes de meiguice,

Como se em cada qual a gente ouvisse

Uma calandra lépida cantar.

IV

Quando cantava, que suavidade

Se espalhava em redor! Quanta harmonia!

Recordava a festiva cotovia

Num ramo verde, em plena liberdade.

E era às vezes de tanta alacridade

A sua voz, que no raiar do dia

Parecia uma avena, e parecia

Num engenho, bem longe da cidade.

Com tantas e tão sãs delicadezas,

A sua voz enchia de surpresas

Todas as almas sempre que a escutavam.

Pois estas, entre violas e atabales,

Para alívio dos seus profundos males,

A sua voz puríssima imitavam.

V

Da sua boca, que suavidade

Se espalhava em redor! Que melodia,

Quando Florença pelas praias ia

A cantar, a cantar, em liberdade.

Cheia de tanto enlevo e alacridade,

A sua voz, ao clarear do dia,

Uma arena silvestre parecia,

Que vibrasse distante da cidade.

Com tão leves e sãs delicadezas,

A sua voz enchia de surpresas

Os corações que, céleres, a ouviam.

E muitos, entre violas e atabales,

Esqueciam-se até dos próprios males,

Pois nessa voz seus lindos fados viam...

VI

Que macios e límpidos cabelos,

Que eterna noite de veludo lindo,

Sob a qual não havia pesadelos,

E sim uns sonhos mágicos, florindo.

Em caracóis tão leves, em novelos,

Ei-los nas sensações todos se abrindo

Vinha gente de longe, para vê-los,

Os fortes gozos do prazer sentindo.

E ao vê-los essa gente procurava

Sentir-lhes a mornura, que igualava

À das asas frementes da andorinha.

E para lhes gozar todo o perfume

Quantas, mordidas embora de ciúme

Pelas estradas pressurosas vinham.

VII

As suas faces eram purpureadas

Como as papoulas, quando o mês de Abril

Canta de Flora as límpidas baladas,

Sob o rico esplendor de um céu de anil.

Embora pelos zéfiros beijadas,

Jamais boca as beijava, dentre as mil

Que beijá-las queriam, assaltadas

De um desejo tirânico, febril.

E quantas vezes as festivas aves

Em torneios alígeros, suaves

Vinham para beijá-las, e as beijavam...

Viam nelas a flor da romãzeira,

Ou os frutos sanguíneos da aroeira,

Que elas, as aves, cedo debicavam.

VIII

Que lindo e que galante, o seu pescoço,

Por novo Fídias na arte modelado.

Tinha das hastes novas o balouço,

O mesmo movimento delicado.

Quando vinha da praia do mar-grosso,

Vinha das águas verdes encharcado.

Para vê-lo fugia ao calabouço

Das mágoas, o mais triste condenado...

Dele em redor (como em redor da torre

De uma capela, quando a tarde morre,

Voam insetos), voavam os desejos.

Voavam doidamente insetos louros

Rutilantes abelhas e besouros:

A transfiguração de alados beijos.

IX

Eram-lhe os seios dois limões guardados

Nas rendas brancas da camisa, ocultos

Aos olhares profanos, e aos tumultos

Dos frementes desejos depravados...

Ou lembravam dois pombos aninhados,

Muito mansos, fugidos aos insultos

Dos ventos frios, que não rendem cultos,

Pois são hereges e desenfreados...

Mas houve quem, ao vê-los, me dissesse:

— Os seios dela, eu os comparo à messe

Do trigo louro, e à do melhor azeite;

E são um vinho claro, que não arde;

E são favos de abelhas; e, mais tarde,

Serão uns rios de bendito leite.

X

Braços robustos, braços vigorosos;

Para servirem dos mais fortes laços,

Esses braços robustos, esses braços,

Esses febris tentáculos nervosos;

Esses grandes amparos amorosos.

Para todas as ânsias e cansaços,

De quem na vida, vacilando os passos

Encontra atalhos negros, escabrosos;

Os seus braços nervosos e robustos,

Sem receios, sem medos e sem sustos,

Sempre, sempre lutavam, de tal sorte,

Que eram lembrados, tanto na folgança

Como nas lutas da desesperança

Também nas próprias emoções da morte.

XI

Dos cadilhos nas leves urdiduras

De fios de algodão, para tecidos,

Os seus dedos rosados e compridos

Possuíam das magnólias as brancuras.

Não eram dedos, eram formosuras

De luares de junho, florescidos

De maravilhas, pelos céus perdidos

No azul sacramentado das alturas.

Nos delicados fusos de canela,

Da roca acelerada, os dedos dela

Que graças tinham, quando trabalhavam!

Dedos de perfeição! Que maravilhas!

Por esses campos e por essas trilhas,

Dedos belos assim não se encontravam!

XII

Vendo-lhe os pés calçados em tamancos

Quantas vezes chamei, pelos caminhos,

Pelos bruscos atalhos e barrancos

Contra essa areia atroz, e os crus espinhos.

Mas os seus leves pés andavam francos

Nos atalhos, devesas e caminhos...

Que pés de fada! Que casal de brancos

E delicados, meigos cordeirinhos!

E dançavam tão bem na viva roda

Do sarrabulho nos festins da moda

Nas belas farinhadas e novenas...

Hoje esses pés seriam bem calçados

Em sapatos de cravos perfumados

Com fitas de jasmins e de açucenas.

XIII

Ventre macio como os veludilhos

Era o seu ventre. Que ideal beleza!

Seria o ninho armado, com certeza,

Para a fecundação de lindos filhos.

Pelas noites saudosas, de áureos brilhos,

Cheias de astros de límpida pureza

Ei-lo das danças pela correnteza,

Da tirana aos festivos estribilhos.

Ventre redondo! Delicado pomo,

Rosado como a flor do cardamomo,

Era para espalhar polens de flor,

Por este triste e desolado mundo,

Para que se tornasse mais fecundo

De almas e corações cheios de amor.

XIV

Sem saber o que são esses amores,

Essas funestas tentações de instante,

Pois vivia tão simples como as flores

Que o sol colora e beija acariciaste;

Sem saber o que são os dissabores;

E o que é dado sentir ao peito amante,

No triste pranto, que só vem das flores,

Amargo, amargo, atroz, febricitante...

Ei-la no entanto, e pela vez primeira,

Encontrando ao redor de uma fogueira,

Por São João uns olhos que a tentavam.

Quis, a princípio, lhe fugir ao fogo,

Mas não pôde fugir, e desde logo,

Os seus olhos os dele procuravam...

XV

Fitou dos olhos do Luiz a chama

E a sua alma tremeu... tremeu-lhe o peito.

E o pobre coração tremeu-lhe, afeito

Já, nesse instante, ao amor que tudo inflama

E desse amor celeremente a fama

Correu de boca em boca de tal jeito

Que todo o povo viu florido um leito,

E um véu branco, de noiva, sobre a cama.

Era um rapaz bonito e corpulento,

Formas de atleta e beiço penugento;

Braços robustos, negro olhar profundo.

Mas, para o amor daquela rapariga

Na gíria do lugar era uma espiga

Igual às muitas que andam pelo mundo.

XVI

— Não te deixes levar, que a boniteza;

Que uns olhos lindos; que uma boca assim;

Que umas palavras doces não põem mesa.

Nem servem para restos de festim.

Que a tua alma se lembre da certeza

De ser guardada, com sagrado fim,

Pelo eterno sacrário de marfim

Da alma virgem do filho da Teresa.

Isso de abrires dessa forma o peito

A esse rapaz do norte, não tem jeito,

Pois tu não lhe conheces a maldade.

Eram esses os límpidos conselhos

Que uma amiga lhe dava, de joelhos,

Osculando-lhe a mão, com caridade.

XVII

E a Rita, as cartas estendendo,

(Era a sortista de maior clientela)

Lhe disse: "Filha, a tua linda estrela,

Vai, entre nuvens, desaparecendo...

Não posso compreender, não compreendo

Como uma moça tão modesta e bela,

Possa a uma alma querer, sem conhecê-la;

Vá para uma alma, doida assim, correndo"...

E estendendo de novo as vinte cartas:

"Se casares, Florença, vê: não partas

Com esse moço, pois terás,voltando,

A alma rosada de amarguras, tantas

Como essas urzes, venenosas plantas

Que no caminho vão nos espinhando."

XVIII

Mas se casaram, numa tarde. O céu

De tão lindo que estava, parecia

Um terno, um leve, um delicado véu

Que sobre o mar e o campo se estendia.

Das ondas nem sequer sobre o escarcéu

Uma rosa de espuma aparecia

Tudo quieto: o mar, o campo e o céu

Só para vê-los, cheios de alegria.

Feliz entre os felizes, sobre a terra,

Ninguém um sonho mais formoso encerra;

Assim falava aos moços e aos rapazes,

Aquela que, pela simplicidade,

Buscava neste mundo a f'licidade

Sem se lembrar das ilusões falazes.

XIX

Que sonho mais dourado e mais formoso,

Como um dia de sol de primavera,

Neste mundo tão triste e tenebroso,

O coração de uma mulher espera?

Que sonho mais álacre ao venturoso

Peito de uma mulher na vida impera?

Que doura a vida da mulher, no gozo

Que as mágoas soluçantes dilacera?

O coração de uma mulher, na vida,

Espera um outro, que lhe dê guarida,

Toda a doçura, todo o sol feliz.

E o coração da rapariga andara

À procura da rórida seara...

E julgou encontrá-la no Luiz.

XX

A princípio, porém, naqueles seios

Quantos beijos febris! Na boca de ambos

Que torneios de beijos, que torneios,

Lembrando abelhas nos morenos jambos.

Os dois, na praia, pródigos de anseios,

Como soltavam leves ditirambos!

E nas rodas da dança, aos galanteios,

Como dançavam, sem pisares bambos!

Ela, tão linda que fazia gosto,

Com duas rosas cândidas no rosto;

E ele, tão forte como os próprios mouros.

Ela, o triunfo perenal da sala;

De boca rubra, e dentes cor de opala,

E ele, tão lindo, de cabelos louros!

XXI

Meses depois, no lugarejo inteiro,

Desde as fraldas do verde Cambirela

Ao mar azul, e ao último ribeiro,

Com aroeiras lhe fazendo umbela...

Meses depois, no lugarejo inteiro

Quanta desgraça! Só falavam nela,

Em Florença, coitada, e no traiçoeiro,

Nesse que a recebera, na capela.

Quanta ilusão desfeita, e quanto sonho

Por água abaixo, como num tristonho

Rio, os troncos das árvores, cortados!

Quantas lágrimas quentes derramadas,

E quantas noites trágicas, passadas

Da insônia sob os ais despedaçados!

XXII

Porém, segui-lo, que contentamento,

Para cumprir o seu fiel destino.

E por um dia, como um sol a pino,

Numa eclosão de luz no firmamento;

Um barco fez-se ao mar, e fez-se ao vento,

De bujarrona aberta, o alvo latino...

E o dia, cada vez mais cristalino,

Mais cheio de ideal florescimento.

No entanto a alma branca, de Florença,

Era inundada de total descrença,

Pois talvez não voltasse ao pátrio lar;

À terra amiga, e aos braços benfazejos

Dos que, entre soluços e mil beijos,

Ficaram tristemente a soluçar.

XXIII

À meia noite, quando o frio corta

Os pés, as mãos, o rosto, e enche a cabeça

Da gente, de uma névoa branca e espessa,

É que Florença ao Luiz abria a porta.

E chegado do jogo, a essa hora morta

Em que do espaço a solidão começa

A se unir à dos campos, e atravessa

As praias, onde o mar ânsias suporta...

Ei-lo o rapaz e às vezes embriagado

Em blasfêmias horríveis, revoltado

Contra a mulher, e contra os céus azuis.

Mas quando ele dormia, a rapariga,

Sempre tão boa, tão leal amiga,

Orava de mãos postas a Jesus.

XXIV

Só, neste mundo, de alma atribulada,

Sem um carinho feito de doçura,

Ei-la do mundo na medonha estrada,

Perto, talvez, da fria sepultura.

Vem-lhe ao cismar a sombra desolada

Da indescritível Rua da Amargura,

Por onde passa, e sente-se varada

Pelos punhais de lâmina segura.

As esperanças da alma lhe fugiram

E, pouco a pouco, todas se sumiram

Pelos mares dos tédios e das ânsias

Bem como certos pássaros se somem

Quando os invernos brancos os consomem,

Levando-os às mais trágicas distâncias.

XXV

Longe da casa que era como um ninho

Dependurado entre festões de malva,

Em cima de um barranco, no caminho,

De onde se via a linda Estrela d'Alva;

Longe da casa, e longe do carinho

Do amor materno, o grande amor que salva

Ei-la da vida no areal daninho,

Onde a saudade tanta dor escalva.

E o doce e meigo e santo amor materno,

E aquele olhar dulcíssimo, paterno,

Enfim, o olhar piedoso da família;

Tudo isso ela lembrava. E muitas noites,

Eram-lhe essas lembranças uns açoites

De vendavais na Torre da Vigília.

XXVI

Que profundas angústias, que pesares,

Que soluções e ais, ela sentia

Na hora calada e triste em que morria

A tarde azul, por cima dos palmares.

Lembrava os verdes, flóridos lugares

Por onde, em plena mocidade, havia

Gozado todo o bem, toda a alegria,

E as ondas verdes dos saudosos mares.

Lembrava, pesarosa, os espinheiros

Onde chilravam céleres coleiros;

E das fontes tranquilas se lembrava,

Porque nelas deixara a sua imagem

Sob o crivo dourado da ramagem

Como a da lua que por lá rolava.

XXVII

A quem contar as suas mágoas, quando

Elas vinham bater, num fundo enredo,

Sobre o seu peito o coração, clamando,

Como as ondas do mar, sobre os rochedos?

"Se eu fosse um leve pássaro, voando,

Por sobre o mar, sem vacilar de medo,

Bem certo, ó minha mãe, de vez em quando

Dar-te-ia saber o meu segredo."

Florença assim pensava, e assim dizia,

Cheia de amarga e funda nostalgia;

E, das plagas tristíssimas, remotas

Para amainar o seu viver cruel,

Quando não tinha folhas de papel

Escrevia nas asas das gaivotas.

XXVIII

Lá longe o viço auroreal perdera

E as rosas orvalhadas da saúde,

Numa tortura e acérrima canseira

Num labutar profundamente rude.

Mas voltando ao lugar onde nascera

E onde passara a sua juventude,

Talvez, agora, a sua vida inteira,

Em nova vida de rosais se mude.

É que a Virgem Senhora dos Aflitos,

Não deixa de escutar os ais e os gritos,

Nem de enxugar o pranto cristalino

De quem soluça, de quem geme e chora,

Mas vai serena, pela vida afora,

Na eterna Caravana do Destino.

 

Carlos de Faria[8]

Quando eu por esse mundo caminhava

Toda a minha alma abria-se no brilho

Do olhar de quem, chamando-me de filho,

Tantas cousas bonitas me contava.

Mas eu tudo isso rindo desprezava

Ignorando que fosse o mundo um trilho.

De urros e cardos – hórrido empecilho

Como o que a minha alma empecilhava...

E tonto andei, continuadamente tonto...

Mas afinal o que me entontecia

Se não a dor que a todos vai minando?

Ah! meus amigos, isto que vos conto

Só a alma dum poeta acaricia...

Errei no mundo, mas errei sonhando.

 

Carne

A Carne auroreal e florescente

Dos teus seios bicudos, retesados,

Tem a harmonia do cristal dos prados

Numa clara manhã de sol fulgente.

Carne formosa, tentadora e quente

Estonteante de aromas delicados,

Lembra a casca dos frutos sazonados

E um capitoso vinho do Oriente.

Outra não há mais aromal, por certo,

Alegre como um pássaro no Estio

Cantando à sombra de um pomar aberto.

Carne de branda maciez de malva

Mais bela do que sobre o azul dum rio

O diamante de luz da Estrela d'Alva.

 

Casamento infeliz

Casamento infeliz, o do Pedro Serrano!

Entretanto ninguém, na velha freguesia,

Deixou de sentir na alma uma grande alegria

Quando o Pedro casou, há pouco mais de um ano!

Mas, como em derredor de todo ser humano

Mora a desilusão, já nesse mesmo dia

Esse pobre rapaz negras mágoas sentia:

Outro lhe dava à vida um feral desengano.

E era tão puro o amor desse rapaz! Nesses campos,

Pelos dias de sol, ou à luz dos pirilampos,

Ei-lo cheio de força, a lutar... a lutar...

“Trabalhar e vencer”, dizia, a toda gente...

Mas não pôde vencer a mulher indemente

Só porque nunca quis morar longe do mar!

 

Casa pintada

Casa pintada de branco

Junto à beira de um barranco.

Portas abertas ao mar

Que ali vive a soluçar...

Telhados com trepadeiras,

E sombras de laranjeiras.

E um rio, ao longo, a cantar,

E um coração a chorar.

Era pintada de branco

A sua casa. E da porta,

Subia a gente um barranco,

De onde olhando a estrada torta,

Olhava também o mar

Que vivia a soluçar.

Lá longe o mar soluçava

Como um coração saudoso;

E aqui um rio cantava

Sobre um leito pedregoso.

 

Cheguei

Cheguei para te ver unicamente. Vim

Porque onde eu me via era tudo tão triste

Como a sombra que existe, eternamente existe

No lugar onde Abel foi morto por Caim.

O ambiente, em redor, e por cima de mim,

Era negro e augural, como tu nunca viste

Igual, num cemitério, ou quando a lua assiste

A tormenta, num mar fantástico, e sem fim.

Desespero, o da ausência! E mais que desespero!

Mas afinal cheguei; e, de joelhos, espero

Beijar-te a boca, as mãos, os olhos, o pescoço,

Os seios de veludo, o sedoso cabelo;

E os pequeninos pés, em tamancos de aurelo

Tudo o que anda a cheirar à espuma do mar grosso.

 

Ciúme

Verão. Céu cristalino. Abro a porta e as janelas,

E vejo o rio em curva, os campos, e os penhascos.

As nuvens da manhã recordam bambinelas;

E nas linhas da serra há sedas e damascos.

Vicejam na baixada as flores amarelas

Do extenso algodoal, e os cheirosos verbascos...

Balouçam docemente as pequeninas velas;

As canoas de pesca, os alígeros cascos.

Lindo o quadro que vejo à sombra de um salgueiro:

Dorme de mãos em cruz sobre o peito trigueiro

Um rapaz que passara a noite, na emboscada...

Mas para lhe abafar o brusco pesadelo

Uma mulher lhe estende ao peito o áureo cabelo

E lhe beija, a chorar, a boca torturada.

 

Clécia

Todo horizonte escuro, e as montanhas escuras...

Mantos de escuridão vêm do espaço caindo...

E os astros de cristal onde estarão luzindo?

Seriam para sempre extintos nas alturas?

Onde estarão também, de límpidas alvuras,

As garças dos mangais? Foram todas fugindo,

Porque o mar está como um leão, rugindo,

Ou lembra um coração a chorar amarguras.

Tremo de medo. A fé na minha alma se apaga...

Esta noite medonha, aflitiva e pressaga,

Leva-me o sonho em flor num caixão mortuário.

Mas entro de repente, em sua casa, e vejo,

Da candeia de folha ao mortiço lampejo,

Clécia a rezar por mim nas contas de um rosário.

 

Coisas passadas

Morenos, dessa cor dos frutos dos jambeiros,

Os teus seios, Maria, ardiam de uberdade...

Vê-los era um prazer, à sombra dos olmeiros

Que os viam, nesse tempo, em plena liberdade.

Numa linda manhã, chifrada de coleiros,

Porque Março chegara, em festas de saudade,

Tive-os nas minhas mãos, mas fugiram ligeiros,

Receosos talvez, cheios de castidade...

Mas para minorar desses seios o estio

Na tua boca havia a água fresca de um rio,

A água da minha vida, a matar-me os desejos.

Ando agora a lembrar essas cousas passadas,

Por essas praias, junto ao mar, pelas estradas,

Pelos campos em flor pelos rios e brejos...

 

Condenado

Condenado a correr praias desertas,

De uma profunda solidão selada,

Ei-lo que vai, palmas das mãos abertas

Ao fustigar medonho da ventada

Ei-lo que vai por todas as incertas

Praias das ânsias, na cruel jornada.

Onde não há manhãs desfeitas

Nem dia azul, nem noite estrelejada.

E irá seguindo pelas praias frias,

Durante as noites e durante dias,

Sem nunca descansar, um só momento,

Enquanto houver, ao longo dessas praias

Joelhos que rezem, como os Mayas

A pequenina esmola de um tormento.

 

Contraste

(Para o Luiz Pires)

Judith, a ave que tinha as asas cor do linho

E nos olhos a luz imortal da meiguice,

Não queria morrer sem que o teu caminho

Por sobre o luar, por sobre o teu peito caísse.

Na Via-Láctea em flor, no estrelado caminho

Feliz seria só depois que te sentisse

O peito junto do seu como um ninho,

Ou só depois que os teus olhos piedosos visse.

Como Nossa Senhora ouviu-a, a suprema piedade,

Com suas mãos surgiu-lhe a última vontade

E deixou-a ir, como uma garça sobre as águas.

Abriu-se então no azul augusto lírio na haste

Uma porta de luar... Mas no mundo, que contraste

Teu coração chora um mar de eternas lágrimas.

(Março, 1908)

 

Coração de Jesus

Divino o vosso coração! Divino

Em resumo de todos os dulçores!

Um misterioso vaso cristalino

Feito de sol, para guardar as flores!...

É no entanto, Jesus! meigo Rabino!

Verbo do Amor! Consolação das dores,

Viste-o vazando sangue purpurino

Viste-o coberto de cruéis horrores!...

E Ele ainda vive nesse mesmo anseio

Pois da água um veio sempre foi um veio

Como um clarão da luz sempre um clarão.

Todo Ele assim, Rabino, me parece...

E desse vosso coração nos desce

A água eterna das fontes do Perdão!...

 

Coroa de espinhos

Talvez vocês não saibam, meus filhinhos,

Quem me coroou de aspérrimos espinhos...

Quem a minha cabeça fatigada

De tantos golpes fez martirizada.

Quem circundou-ma de tormentos tantos,

Sem se lembrar dos rios dos meus prantos.

Quem circundou-ma assim, e fê-la exangue,

Esgotando-lhe o manancial do sangue.

Quem cada vez, desoladoramente,

Mais ma circunda de uma dor pungente

De tanta dor, profundamente forte,

De tanta dor igual à da ânsia da Morte.

De tanta dor que eu mesmo nem sei como

Domo-a por vezes, num febril assomo...

E ao seu peso há tempos que procuro

Um caminho onde pise mais seguro...

Onde pise mais firme os pés chagados,

Que outrora foram limpos e rosados...

Pois vezes há, meus extremados filhos,

Que estes meus pés, ao procurar os trilhos

Do frio chão aspérrimo, parecem

Que esse tão frio chão na dor esquecem...

Vacilo então e, trêmulo, convulso,

Sem a força menor, menor impulso,

Caio bem como (a tua mãe há visto)

Caio nas Ruas da Amargura, Cristo.

Dir-se-ia o mundo me fugir às plantas

Dos pés. E tem acontecido tantas

Vezes isso que ora a vocês todos conto

Que eu já nem sei onde encontrar um ponto

Onde possa pisar sem que me veja

Como o viver que o vento espanadeja...

Outras vezes, meus filhos, adormeço

Porque na dor a própria dor esqueço...

Adormeço nas asas do tormento,

Mas o meu sonho é feito de atro vento...

De um vento igual ao que há nos Pampas,

Que faz das casas funerárias campas...

E se acontece vir-me à ideia um sonho,

Esse não é senão um caos medonho...

E minha alma por esse caos se embrenha,

Sem que outra alma ampará-la venha...

Só, pela solidão, só pelo espaço,

De tantas léguas ver sente o cansaço...

De quem por muitos séculos andasse

E jamais visse a paz, que procurasse...

Ou a de quem tivesse o atro destino

De ser forçado a andar como um beduíno

Por um deserto que, amaldiçoado,

Fechasse um mar de lágrimas formado.

Ou a de quem, para ter do Amor a teia

Tivesse de contar os grãos de areia;

Ou então tivesse de esperar que o oceano

Tranquilamente lhe contasse, ufano,

A quantidade de ais e de soluços

Dos que, de joelhos curvos, ou de bruços,

Foram tragados pelas suas vagas

Desde as primeiras luas aziagas.

Em que lhe foi mandado que matasse

Ais e soluços e que os não contasse...

Ah! minha alma por esse caos se embrenha

Sem que uma outra alma ampará-la venha.

No entanto eu tenho, do meu peito perto,

Um ninho de almas docemente aberto...

Um ninho de almas piedosas, meigas,

Como as aves que voam pelas veigas.

E elas são vocês, almas amadas,

Pelo clarão do amor iluminadas.

E a alma da tua mãe, que é a minha eleita

Aos seus afagos virginais me aceita.

A alma da tua mãe resplende tanto

Que é a lua com que enxugo o pranto.

A alma da tua mãe é o Asilo branco

Da Fé, em cujo altar eu rezo, franco...

A alma da tua mãe resplende em flores,

E lembra o altar da Virgem Mãe das Dores...

 

Deixa morrer

Que ela morra assim calma, assim doce e tranquila,

Nessa doçura igual à alma das ovelhas.

Olha como fechou-se essa linda pupila,

E essa boca onde havia o favo das abelhas.

Deixa morrer, assim, quem no peito de argila

Teve um vinho melhor que o vinho das botelhas,

Pois o vinho do amor nos sonhos se destila

Sob o amaino feliz, benfazejo, das telhas.

Ela falou no filho... E ele vive, por certo,

Nesta hora, a trabalhar num caminho deserto

Lá longe, a trabalhar, da manhã ao sol posto.

Deixa que morra assim tranquila, essa velhinha,

Pois que sem mais tardar, talvez logo, à tardinha,

Tenha o seu filho alguém a lhe enxugar o rosto.

 

De joelhos

Jesus! Jesus! Imaculado Fruto

Dos vinhedos do Amor, Fruto aromado,

Desce aos astros letais do meu pecado.

Ampara-me, Jesus casto, impoluto!

Pois Tu sabes o quanto choro e luto,

Pois Tu sabes o quanto atormentado

Vivo, e o quanto do peito a dor prostrado

Todas as mágoas tristemente escuto!

Jesus coroado de cruéis espinhos!

Jesus que andando só por vis caminhos

Desce bem como um vaso de fragrâncias,

Desce o teu olhar de amor eterno

Sobre minha alma, que atravessa o inferno

No carrilhão fantástico das ânsias!

 

De manhã

Uma grega doirada em cima da montanha...

Cinco horas da manhã. Na limpidez do céu

Uma nuvem recorda a urdidura de um véu,

Para os ombros cobrir de uma visão estranha.

E apressado desci, de machado e gadanho,

Às minhas vinhas. Uso um rústico chapéu,

Indústria que esse povo, o velho povo ilhéu

Amanhava feliz, e ainda agora amanha.

Olhem quem vai passando ali, junto da praia!

Sem resguardar os pés, sem resguardar a saia,

Nem os seios febris, num capote sem mangas.

E agora como o seu olhar tornou-se lindo!

E como a sua boca em flor abriu-se, rindo,

Num sangue que recorda a tinta das pitangas!

 

De onde vens, minha amada...

De onde vens, minha amada, a estas horas mortas

Sob um frio que gela as montanhas e o mar,

Por onde erra, diluído em óleos, o luar

Que contemplo através das janelas e portas?

Nesse frio, por certo, as carnes brancas cortas;

E tens toda parada a luz do próprio Mar;

E o próprio coração parado, sem pulsar,

Ó minha doce amada, a estas horas mortas.

Venho da sombra espessa e eterna do cipreste,

Trajando da saudade as mortalhas, as vestes;

Pois num ninho moro a centenas de luas.

À espera de subir às regiões do Espaço

Somente, ó meu amor, na curva do teu braço

Morno e febril, mãos unidas às tuas.

 

Depois de morta

Essa que o povo vê surgir da luz branca

Que a noite estende sobre o mar e sobre o campo,

Numa luz de santelmo, ou luz de pirilampo,

Uma história talvez dentro da alma resuma.

Vê-se-lhe o resplendor das vestes cor de rosa,

Quando ela se incorpora... Ergue-se-lhe o rosto lampo,

E um lírio todo azul, entre os galhos de um grampo,

Na sua trança de ouro ei-lo surgido, em suma.

Quem será, quem será essa visão de encanto,

Que tantas graças tem? Desconheço-a. No entanto

O povo sabe e afirma, anda sempre a afirmar

Ser com toda a certeza a noiva do Paulino,

Que morreu de paixão, ao saber do destino

Desse velho rapaz, na pesca, no alto mar.

 

Desdêmona

Foste tu, minha flor, minha filha querida,

A primeira a cantar junto de nossa vida.

A Primeira que em sol ofereceu-nos como

De um divino Missal o simbólico tomo.

O teu primeiro olhar foi a nossa alegria

E mais nada houve de mais lindo naquele dia.

Se fosse sempre assim, como um mar de doçuras,

Onde nunca passasse o vento das torturas...

Onde nunca brotasse a flor sanguinolenta

Das árvores da Dor que tanto fel sementa.

Das árvores da Dor, das árvores do tédio

Para cujo veneno ainda não há remédio...

E urdíamos na alma o teu belo futuro

Por enquanto nas mãos do Criador seguro.

E diríamos um ao outro, entre fortes beijos,

Que belo é a gente colher o fruto dos desejos!

Mas sob os nossos pés um negro mar bramia:

A pobreza cruel e a sua melancolia...

Mas foste, desse Mar, a sereia encantada

Em cuja lenda andava a nossa alma embalada.

 

Desejo

Quem tivesse essa vida, assim, doce e serena,

Ou cheia dos clarins vermelhos da alvorada,

Por esse céu azul, que é todo uma açucena

Sobre o mar, sobre o campo e a montanhas voltada!

Vida de quem tocasse uma saudosa avena,

E ao rebanho chamasse a ovelha desgarrada,

Precavendo-a do lobo, e das garras da hiena...

Pois muitas feras há pelas sombras da estrada.

E Raquel bem seria a minha companheira,

Na abençoada paz dessa vida fagueira,

Sem os pesos do tédio, e o vinagre da mágoa.

Mas seria feliz, assim, a minha vida,

Deste mundo fatal na estrada indefinida?

E os meus olhos que são eternas fontes de água?

 

De volta ao mar

I

De volta do mar grosso as canoas de pesca

Vêm dobrando o costão, todas a quatro remos.

Ei-las agora, junto à praia branca e fresca,

Onde a espuma nos dá rosas e crisantemos...

Que vida encantadora, alegre, pitoresca!

E que emoções iguais lá na cidade temos?

Lá nossa vida é toda uma aflição dantesca

Velados de amargura os próprios sonhos vemos.

Aqui, no mês de Maio, azul, transparescente,

Nesse trabalho rude a alma se vê contente;

Não há nenhum só que de pesar se queixe.

E a luz de ouro do sol, sobre cada canoa

Paira como um tendal – É Jesus que abençoa,

E Pedro, sem ser visto, as transborda de peixe!

II

Noite de junho. O frio é vidro em pó coçando

As mãos dos que da praia, estendidos na areia,

Estão tranquilamente o café esperando

De um rancho em cuja porta um clarão bruxoleia.

Outros já da canoa as velas vão soltando...

Não há tempo a perder, que à luz da lua cheia

O vento sul que sopra as ondas vai rolando...

E cada coração de pescador anseia!

Todos, todos ao mar, satisfeitos, felizes!

Sem sentirem do mal as profundas raízes!

Apenas da saudade envolvidas nas mágoas.

Mas que saudade doce a dessas almas francas.

Sob as velas em cruz, as grandes velas brancas

Da canoa que lembra uma ave à flor das águas.

III

Noivos! Que lindo par de todos invejado!

Ela de cor trigueira e ele da mesma cor,

O olhar da Hortência tinha um resplendor sagrado

E o de Luís possuía um igual resplendor.

E se casaram sob um céu iluminado,

Por uma tarde que lembrava uma flor...

Houve uma grande festa em todo o povoado:

Cantigas originais, recordações de amor!

E à noite, na enseada, à luz branca dos astros,

Dos bancos a floresta ondulante dos mastros

Enchera-se também dessa imensa alegria!

Mas um ano depois (oh! triste realidade)

Hortência era na praia a visão da saudade...

E o corpo do Luís, em que praia estaria?!

 

Dia de festa

(Para o Dr. Adolfo Konder)

Quem faz anos assim, cantando de alegria,

Vê, ao redor de si, todo o esplendor de um dia original

Rarefeito em sons divinos

De alados bandolins;

De alados citaredos;

De alados violinos;

De aladas barcarolas,

Em ritinantes cordas de violas

E de segredos;

De asas de harpas de cristal,

Tudo a flutuar... tudo flutuando,

De vez em quando,

Pelos verdes cetins

Dos arvoredos,

E ao correr das montanhas

Estranhas,

Da nossa boa terra sonhadora,

Com Santa Catarina a rodar... a rodar

A misteriosa dobadoura

Dos alvos linhos do seu sonhar,

À beira-mar... à beira-mar.

E quem os faz, neste dia,

Rodeado de alegria,

Da sua própria alma, e das almas amigas,

Num rubro encantamento de cantigas,

Ilumina-se como o vão de uma janela

Que dá para a amplidão de um mar... E em cada vela

Parda, à luz da manhã mais rutilante e bela,

Vê a flâmula de uma abençoada

Cruzada

Que, feliz, voltará

Como voltam, cheias de ufania,

E de satisfação,

As da Rainha de Sabá,

Abarrotadas de suavíssimos perfumes

E de pedras da cor do olhar dos vagalumes;

E de papos de sangue estuante de tucano,

E de arco-íris de penas de pavão

E de madeiras preciosas;

E de orquídeas maravilhosas,

De tudo isso, afinal, para, de ano a ano,

Ser dado de presente a Salomão.

Ilumina-se. Vive. Goza. Dir-se-ia

Encontrar-se, também, num lugar alto,

Num cimo muito alto,

Longe, longe do asfalto

E daí abranger, como abrange,

(E ninguém o constrange)

O campo imenso, trabalhado

Lavrado, cultivado

E atravessado

Pelas veias de prata liquescente,

E esplendente,

Dos grandes rios;

E abrange, como abrange, com cuidado,

Os esses das estradas

Cheias dos murmúrios

Das Caravanas do Ideal, que descem,

Vindas do norte e sul, com os bandeirantes

Da eterna Comunhão dos sonhos palpitantes.

................................

Depois, essa alma moça e encantadora, desce;

E, entre glórias, caminha

Em direção de um lar que Jesus abençoa,

E aí vê, ajoelhada,

Uma santa velhinha

Humildemente boa

Como se fosse a meiga e suave ovelhinha

Que há muitos anos vive abraçada... abraçada

À alma branca e precursora de João.

Então,

Nesse sublime e sagrado ambiente,

Onde o amor é um lírio que floresce

Essa alma moça sente

A vida lhe sorrindo;

E vai o peito abrindo,

Como se abre a porta augusta de uma igreja;

E por ele espaneja

Eterna, eterna,

A asa toda caminho efluviante e azul,

De ave exul

De bênção materna.

E ao vê-la abençoada,

Iluminada

Os seus amigos lembram-se de dar,

Aos pobres da cidade,

Um pedaço de pão,

Comprado

Com o dinheiro recusado

Para uma grande festa

Singular.

Mas, estende-se a luz, clara e fagueira

De uma linda manhã alvissareira.

Ambos esvoaçam pelo ar chilreando

De vez em quando...

E cada um traz ao bico um ramo de oliveira.

E não deixa, entretanto, de haver festa

Desde os campos de longe às ruas da cidade.

Oferenda

Seja sempre de Deus toda essa alma modesta,

Vestida do que há de branco na piedade

Que tantas asas tem!

E seja nossa, também.

(16/02/1927)

 

Disse minha alma

Disse minha alma um dia ao punhado de terra

Que lhe serve de ninho há uns decênios de anos

"— Espera que eu vou ver, na paz que a noite encerra,

Como dormem por certo os corações humanos".

E minha alma voou, e como um pássaro erra

Do casebre do aldeão à casa dos tiranos.

E o que viu? Uma luta feroz... a guerra... a guerra...

E as mesmas ilusões, os mesmos desenganos.

Nem quando a noite é alta os corações descansam

Pois deles em redor, como fantasmas dançam

Os sonhos... E quem sonha anda na mesma estrada

Do tormento, da dor, do anseio, da loucura,

E se a bendita paz na outra vida procura,

Sem encontrá-la volta à mesma luta azada.

 

Dois seios

Dois seios, como dois limões cheirosos,

Num pomar cor de rosa, sempre ocultos

Aos olhares profanos, e aos tumultos

Dos desejos febris, voluptuosos...

De dois pombos também, os veludosos

Seios de Hortência, davam-nos os vultos

Até os velhos lhes rendiam cultos

De carinhos e afagos jubilosos.

Houve quem, ao beijá-los, me dissesse:

— Não há na terra mais doirada messe.

Esses mais são trigo e são azeite,

São água e vinho, um vinho que não arde

E são favos de abelhas, e, mais tarde,

Serão dois rios túmidos de leite.

 

E essa cabeça altiva...

E essa cabeça altiva ainda estará coroada

De pontaços cruéis de trágicos espinhos?

E nessa boca rubra ainda terás guardada

Uma gota de fel, invés de claros vinhos?

Santo Estevão lendário em cujo peito medra

O símbolo da fé, da crença e do heroísmo,

Alguém ainda te nega, ainda te lança pedra,

Neste mundo cruel, que é um verdadeiro abismo?

E negam-te o fulgor dos sentimentos vivos,

E as alucinações na Rua da Amargura?

Não corrias, fremente, aos míseros cativos

Que tinham na epiderme a mesma noite escura?

Não viveste no Amor, que as almas levanta,

Que as almas santifica e as transforma nos seres

Puros, celestiais? Nessa Cruzada Santa

Não amaste a criança, os homens e as mulheres?

Amavas a criança, apaixonadamente,

Amavas de tal jeito e tal contentamento,

Que os teus olhos, assim, ao vê-la, de repente

Eram todas clarões de almo florescimento...

Não amaste, emotivo, os homens do trabalho

Do pão de cada dia – os rudes operários

Que ocultam (sabe-o Deus) uma gota de orvalho

Apenas, na surdez dos feitos solitários?

E as mulheres, então? Como por todas tinhas

Uma veneração que nunca se acabava!

Ao vê-las, deste mundo entre as plantas daninhas

A tua alma, ajoelhada, ante seus pés, orava...

Não lhes deste da pena as rubras energias,

A força necessária, e o valor nunca visto

Quando cheio de fé e crença, as defendias,

Como, na Galileia, o próprio Jesus Cristo?

Moravas num casebre, à beira de uma fonte,

Em cujo lavadouro, a tua mãe, lavando,

Tirava com a lavra a negrura da fronte,

De joelhos em terra, e às vezes, soluçando...

E o teu pai, num telhado, ei-lo já com cem anos!

Continuava a ser o pedreiro Guilherme...

Mas nunca se queixou dos frios desenganos,

Nem de ter, como tu, a noite na epiderme.

A noite da epiderme! A noite sem estrelas!

Mas, através do escuro, as estrelas não brilham

Por essas regiões fantásticas e belas

Que a ideia não alcança? Então por onde trilham

Os sonhos da nossa alma, e a nossa própria alma,

E o nosso grande amor, para sempre bendito?

Apenas sobre a terra onde andamos sem calma

E quem nega de Deus as Casas do infinito?

Uma esposa encontraste: — Ei-la na tua tenda,

Nessa ramada em flor, nessa linda lareira,

Como a mais preciosa e bendita oferenda

Para transfigurar a tua vida inteira.

E vieram depois, para o amaino das telhas

Dessa tenda feliz, cheia de tantos brilhos,

Os virgens corações dos teus queridos filhos,

Tão mansos e tão bons como as próprias ovelhas.

Dessa tenda fizeste o mais rico santuário

Da alegria, do amor, da paz, da fé, da crença

Das ânsias e da Glória — um misto extraordinário

E transformaste em sol a tua mágoa imensa.

E ao teu próprio inimigo abriste o largo peito,

Como quem, de manhã, abre as janelas francas

Aos perfumes e à luz, e fica satisfeito,

A olhar o campo em flor, o mar e as praias brancas.

Mas, a Morte chegou, e à cova fria, fria...

O teu corpo desceu às provas do destino

Dela surgiu, no entanto, a luz clara de um dia

Era a ressurreição de um pássaro divino.

E subiste... subiste... em procura dos sonhos

Que sonhavas no amor e nos próprios tormentos...

E foi quando te viste em plenos céus risonhos,

Na infinda floração dos altos firmamentos.

Logo, na triste cor que envolvia o teu rosto,

Que era noite fatal, para provas, no mundo,

Não havia razão para tanto desgosto

Na alma de tanta gente, e um desprezo profundo.

Outra gente, porém, sentia-se contente,

De alma cheia de sol, de músicas e flores,

Quando via do teu olhar a luz dolente,

E escutava tua alma a lhe contar as dores...

E as dores, na tua alma, era asas felizes,

Por cima desse mar, e por cima dos montes,

Que tinham toda a seiva estuante das raízes

Duas árvores em flor junto às águas das fontes.

Torturam-te a alma as lágrimas amargas,

As lágrimas de fel de envenenado mosto,

Mas, sem vacilações, ias por essas largas

Estradas, sempre rindo, e sem rugas no rosto.

Outra gente, outra gente alegre, e satisfeita,

Te amava, te queria, e contigo sonhava...

Nas searas do Bem, que abundante colheita!

Parecias Jesus, quando na terra andava...

E por seres, assim, tão bom, meu grande amigo,

Encontraste na terra os braços amorosos

De uma bela mulher que quis viver contigo,

E viver para o amor e para os céus ditosos.

Hoje, a tua alma branca, a tua alma formosa,

A tua alma feliz, a tua alma louçã,

Desce das regiões de luz maravilhosa,

Com o mesmo esplendor da Estrela da Manhã.

II

Bem-vindo sejas tu, ó meu saudoso amigo!

Bem-vindo sejas tu, das regiões celestes...

Deu-te Jesus, que andou neste mundo contigo,

O símbolo da Glória, e puríssimas vestes...

É que na terra foste um levita abençoado

No tugúrio da dor, no deserto das ânsias

E por isso subiste, assim, glorificado,

E jamais te perdeste, além, pelas distâncias...

Eu nesta hora te vejo. Ah! todos nós te vemos,

Porque nos corações dos que te querem tanto,

O teu nome renasce, e é como os crisantemos

Numa festa cristã florindo aos pés de um santo.

O teu nome renasce, e cada vez mais lindo,

Em derredor de nós, a cada hora que chega.

De dia, é todo um sol que entre cristais vai rindo

E à noite bem parece a floração de Vega!

O teu nome renasce entre glórias benditas,

Porque da dor te viste ao calor das fornalhas,

Que te secaram bem as lágrimas aflitas,

E te vestiram bem de trágicas mortalhas.

Mas, como após um dia outro dia aparece,

Às vezes muito mais repleto de verdade,

Eis a razão porque, agora, resplandece

O teu nome que a Glória encheu de claridades.

Eis a razão porque, das paragens do Norte,

Às paragens do Sul, nossa alma estremecida

Bem parece te ouvir cantar na paz da morte,

Como cantar te ouvira, entre as lutas da vida.

III

Estas são, da minha alma, as palavras amigas,

E são as deste povo, em cujo peito, oculto,

Para sempre estará, entre as louras espigas

Do Amor que nunca morre, o esplendor do teu Vulto.

 

E eu, de tão longe

E eu, de tão longe, ficarei cismando,

Nesses teus lindos olhos, rasos d'água...

E tu, querida, pelo mar chorando,

Mais me encherás o coração de mágoa!

Ah! quando sobre o azul das ondas fores

Olhando para trás, continuamente

Hás de na alma sentir os amargores

De uma saudade atroz, impenitente...

Se não partisses, flor, ah, se não fosses,

Como eu veria a Luz da Glória perto:

Porque, longe dos teus olhares doces,

Não vivo: a Ausência é o meu túmulo aberto

Sem teu amor, sem teus afagos, santa,

Eu deixo de existir, caio na Treva,

Porque tu és o sol que me alevanta,

Que o meu ideal para o futuro leva!

Tu deves compreender que nós, poetas,

Temos no peito uma paixão enorme;

Que o nosso coração, como os atletas,

Vive lutando, porque nunca dorme:

Vive lutando pelo Amor, que desce

Do azul do céu, lá desse azul profundo,

O amor que nos redoira e nos floresce

O rei, gênio do Bem, a alma do mundo

No entanto hoje meu peito foge à luta

Porque tu vais partir, ó luz querida,

Tu que és da terra a flor mais impoluta

Tu, que és o sol – vida da minha vida.

(Laguna, setembro de 1888).

 

Em cada face[9]

Em cada face

Uma vivace

Papoula havia

Toda orvalhada

Da luz dourada

De um claro dia.

Uma carinha

Engraçadinha

Ei-la no rosto,

De lado a lado,

No sazonado

Fruto de Agosto!

Graça lhe dava

Quando ele, indo,

Cantarolava.

Bem crescidinho

Fez-se roceiro,

E no caminho,

De quando em quando,

Cantarolava...

Cantarolando

Ia deixando

Na paz dos vales,

Pelas escarpas,

Ais de atabales,

Gemidos de harpas.

Livre dos tombos,

Caçava pombos

Pelas coivaras;

E nas florestas

Ardendo em festas,

Caçava araras.

De manhã cedo

Vagava ledo,

Numa canoa;

E quantas vezes

Guiava as rezes

Para a lagoa.

Do carro à frente

Sempre imponente,

Chamava os bois,

E pelo barro

Ouvia o carro

Chiar depois...

E no terraço

A mãe ao vê-lo,

Erguia o braço

Para prendê-lo,

Porque no mundo

Só ele havia

Na poesia

Do amor profundo...

E meditava

Se acaso a norte

Um dia viesse

E lhe trouxesse

Uma mortalha,

Das que espalha

No mundo inteiro,

Dentro da mesma,

Corpo de lesma

Ela seria,

Porque ninguém

Cismar podia

No grande bem

Que ela nutria

Por esse filho.

Mas veio a morte

Faca de corte,

E o lindo brilho

Do olhar do filho

Querido, amado,

Ei-lo cortado

De uma maneira

Traiçoeira...

E então a alma

Da mãe, sem calma,

Sem um sossego

Viu-se no pego

Dos sofrimentos;

E os seus lamentos

Negros, estranhos

Eram tamanhos

Dos próprios ventos.

E aquela pobre

Mãe tão tristinha,

Ajoelhada sobre

O frio chão,

Como quem sonha

Parece estar:

Olhos fechados,

Amortalhados

Na compaixão

De um triste luar...

Luar funéreo

Que ao cemitério

Profundo desce

Como uma prece.

E como eu tenho

A convicção

Da alma voar

Para a Mansão

Celestial,

Na ocasião

Em que a morte,

Faca de corte

Nos corta a vida

Indefinida,

Material;

Como eu tenho

Toda a certeza

Que amor igual

Ao maternal

Não há no mundo;

Por isso venho,

Nossa Senhora,

Pedir, nesta hora,

O almo consolo

Que no teu colo

É ninho eterno;

E nos teus lábios

Doces ressábios

De áureo falerno;

E nos teus olhos,

Luz infinita

Para os escolhos;

E em tua mão

A direção

Que necessito,

No mundo vão,

O coração.

Vai até lá

Ao Campo Santo,

E com o teu manto

Enxuga o pranto

Dessa infeliz

Que não me quis

Ouvir dizer

Que toda a gente

Por mais vivace

No mundo nasce

Para morrer.

E reviver...

 

Em romaria

Vamos, vamos ouvir-lhe a palavra divina,

Que mais do que uma fonte os campos fertiliza!

Da sua boca em flor de aurora purpurina

Tudo o que sai encanta, embriaga, aromatiza!

E o seu olhar possui a chama cristalina,

A chama dessa luz que o nosso olhar divisa!

E que sincero amor, mais que o ouro da mina

Muitas vezes subido, o seu olhar desliza!

Sobe a Montanha então um turbilhão de gente;

E dentre ele Jesus surge, resplandecente...

E em verdade lhe sai da boca aberta em flor

Tudo o que encanta, embriaga e aromatiza o sonho

No qual seu próprio olhar meigamente tristonho

É a suprema expressão do verdadeiro Amor!

(São José, 1903)

 

Era tão pequenina...

Era tão pequenina que de um lírio

Fiz-lhe o lindo caixão onde deitei-a

E aí ficou, à doce luz de um círio

Muito mais branco do que a lua cheia.

Na alma não tive o mais sutil delírio,

Porque a nossa filhinha, essa teteia,

Não sofrera das mágoas o martírio;

Nem lhe passara o mundo pela ideia.

Lótus gelado desse azul viera...

Entretanto os clarões da primavera

Os verdes campos de rosais enchiam.

Fora feliz a nossa filha... E quando

Fui enterrá-la, os pássaros, em bando,

Isso que eu digo, céleres, diziam!...

 

Ergui minha alma[10]

Ergui minha alma aos páramos celestes

E fui galgando as límpidas estrelas

Que, cada vez, de perto, são mais belas,

Como tulipas de argentinas vestes...

E vós, mulheres, que no amor me destes

Todas as forças — e que, nesta hora, delas

Em derredor andais, a percorrê-las

Ao meu encontro com saudades viestes...

Senti-me bem, nesse solar ouvindo

As nossas almas que se iam abrindo

Em harpas de ouro da mais rica gema...

Mas tive que voltar, saudoso e triste,

Porque no mundo uma mulher existe

Para fechar-me os olhos na hora extrema.

 

És a segunda flor

És a segunda flor simbólica dos Sonhos

Do nosso grande Amor, vinda através do Espaço

Lá desse azul dos céus meigamente risonhos.

Da tua Mãe no doce, aromado regaço,

Eras de uma ternura e flacidez de talo

De açucena arrancada há pouco no terraço...

Que corpo tão gentil! Ah! Com que compará-lo?

Nunca houve por certo uma haste mais franzina,

Ele abria desejo à gente de tricá-lo...

E se te visse um leão, quando eras pequenina,

De fera rude e atroz à pomba passaria

Do teu místico olhar à luz casta e divina.

E o que faria a hiena? A hiena o que faria,

Se te visse chorar, ó mina filha amada?!

Por certo, minha filha, amamentar-te-ia.

E era já um nevoeiro a nossa longa estrada!

Pela nossa alma adentro o tédio nos cavava

Todas as ilusões de uma graça sonhada!

À nossa mesa o pão minguava, escasseava

E eis toda a nossa dor, todo o nosso tormento.

 

Espádua

Nesse de rendas brancas da Saxônia

largo e claro decote em curva, a tua

Espádua entorna o aroma da begônia,

numa alvura eucarística de Lua.

Nem a espuma sutil do Mar de Irônia

lembra essa Espádua lirial que, nua,

trazes para tormento e para insônia

dos olhos que perseguem-te na rua.

Espadual! Rosa branca aveludada,

mais casta do que a ovelha imaculada,

abres em mim um desespero rubro...

Um desespero de morder-te como

se fosses, látea Espádua, um doce pomo

quente, inflamando no esplendor de Outubro.

 

Esperança

Como chegou feliz! Como chegou cantando

Como uma ave na luz dulcíssima! Chegou

Da capela do morro, onde esteve rezando

E onde à Nossa Senhora uma vela entregou.

Como chegou feliz, da alma branca vazando

A graça que no olhar de Maria encontrou

No momento em que o seu coração meigo e brando

Do rosário da esperança as contas desfiou!...

Chegou à velha casa onde morava, e disse,

Toda cheia de paz, de sorriso e meiguice:

— Filho, a tua saúde há de prestes voltar...

E, seis dias depois, o Pedro, da enxada,

Já saía, ao raiar da roxa madrugada

De um lindo mês de Maio, à pesca no alto mar.

 

Essas falanges

Essas Falanges, de que mão serão?

Pelo anel que ainda existe e ora vejo

Rolando junto delas, pelo chão,

Dizer-te a dona nem sequer desejo.

Mas se não te falar toda a razão,

Esse da alma puríssimo lampejo,

Essas falanges que agora estão

Dos vermes entre lúbrico cortejo...

Essas falanges são de quem um dia

Jamais pensava em vê-las desse jeito

No mais nojento e solitário leito.

E esse anel de tão linda pedraria,

Ninguém o quis, nem mesmo a própria terra,

Porque ele muitas lágrimas encerra.

 

Eu conheci um cão

Eu conheci um cão na nossa aldeia,

Que se julgava o mais altivo cão.

Mas uivava, raivoso, à lua cheia

E andava às moscas pelo frio chão.

Tinha por certo sangue azul na veia

Tal do seu porte a excelsa distinção!

Mas não deixava de roer, à ceia,

Todos os ossos da mais vil ração.

Não tinha dono, era vadio, e quando

Por ele alguém passava, ei-lo rosnando

Ironicamente ao longo das estradas...

Assim o orgulho se nos aparece,

Nessa altivez de cão que não se esquece

De uivar à lua e de roer ossadas!

 

Eu te quero...[11]

Eu te quero na curva amorosa dos braços,

Junto do coração, e que possas ouvi-lo,

Quer do momento em que dele é um passar tranquilo,

Ou um batalhador curvado de cansaços...

Vacilantes, embora eu já sinta os meus passos,

Vacilante não sinto o peito, para uni-lo

Ao teu peito, no qual vive o amor no sigilo

Da amizade que é eterna através dos espaços...

Viveremos assim, nesta nesga de terra

Neste lindo lugar que as carícias encerra

Da luz que é um monte de ouro ao longo dos caminhos.

E para o longe então ficará toda a sorte

De mixarias cruéis... e teremos na morte

A paz que é sempre dada aos humildes velhinhos.

 

Felizes

Foge à cidade, e vem morar comigo, aqui,

Neste rancho que o sol enche de claridade,

Onde sempre vivi, onde sempre vivi

Cheio de amor e paz, e rósea mocidade.

Onde vivi, e vivo, e hei de viver... Quem há de

Tirar-me deste lar tão bom? Eu nunca vi

Moradia melhor, nem mesmo na cidade;

Nem noutra, como agora, a alma feliz senti.

Ora, nós dois assim unidos, abraçados,

Longe das coisas vãs teremos bem fechados

Os olhos, da miséria aos trágicos misteres...

Viveremos no bem, sem os cruéis apodos

E eu dos homens serei o mais feliz de todos,

E tu, a mais feliz de todas as mulheres.

 

Fonte de pranto

Suzana, há quanto tempo humildemente lavas

Nas pedras desta fonte. És uma pobre viúva.

E para teres pão, lavas ao sol e à chuva,

Tu que o lótus do amor ao peito acariciavas.

Moça, pelas manhãs azuis, quanto cantavas!

Eras linda e feliz. Frescas doçuras de uva

Tinhas na boca rubra. E o teu corpo, da luva

Possuía a maciez. Como, assim, encantavas!

Mas, foi-se a tua linda e álacre mocidade,

No torvelinho atroz da augural tempestade

Que atirou teu marido aos profundos abrolhos...

Velha, vives agora a lutar nesta fonte

Que eu não sei se descia das entranhas do monte

Ou se formada foi do pranto dos teus olhos.

 

Eu te saúdo

Eu te saúdo, ó mar, ó grande torturador!

A ti, que desse peito os segredos e as queixas

Pelas praias rolar seguidamente deixas,

E as desse coração profundo, misterioso

Sob o luar velado, o luar tenebroso

Ao qual, nesta hora, tu friamente te enfeixas

Vim às tuas juntar, numa sede de endexas

As ânsias do meu peito aflito inditoso.

É que no mundo atroz, para sempre inclemente,

Um outro coração veio, a que sabia, crente,

Minhas ânsias ouvir, de um modo singular.

E para aqui chegar, venci longos desertos

Pregado à cruz do Amor, com os braços abertos

Numa dor misteriosa igual à tua, ó Mar.

 

Gente antiga

Ninguém ria dos que, alquebrados, velhinhos,

De ombros cheios de peso, e trêmulas passadas,

Erram por essa praia, e por esses caminhos,

Desde o flavo raiar da álacre madrugada.

Eles já foram como os meigos passarinhos:

Já rimaram da vida a festiva balada,

E tiveram no sonho os mais cheirosos ninhos,

Nos verdes olivais de uma esperança alada...

Essa gente, porém, pelo caminho afora,

Com o peito aflitivo e acabrunhado, agora

Evoca, humildemente, os dias benfazejos

Da mocidade azul que gozara, sorrindo

Ao mar; sorrindo ao sol, sorrindo ao luar tão lindo,

Sorrindo à paz, sorrindo ao amor, sorrindo aos beijos.

 

Golpes de aço

Por um dia febril – o sol, raios profundos,

Dardeja pelo olhar flamíramo de brasa,

Por sobre os tetos bons, humílimos, das casas,

Esses pequenos mundos.

Escalda de calor! –As árvores possantes

Parecem já encostar as copas luxuriantes

À cálida pressão do espaço que, abafado,

Os corpos amolece – em tom brusco e pesado.

A hercúlea natura, a fonte dos assombros,

Pressente pelo dorso enormes contorções.

Ao calor que lhe queima as selas, pelos lombos

Das montanhas – tremendo em largas convulsões.

Parece que o Equador

Dilui-se todo em chamas rubras de calor!

Estamos na fornada – a um lado da esplanada,

Pelo eito, as vibrações metálicas da enxada,

Varadas pela dor, de fome estrangulados

Estão a trabalhar os panos, os forçados

Da torpe escravidão. – Na fronte, no semblante

Gravaram-lhe a ferro as cóleras de Dante.

Conservam o ar feroz do lobo e do jaguar

Que não conhece a luz nem sabe o que é pensar!

 

Hora do ocaso

Hora do ocaso. Como a tarde desce

Em delicado manto azul, de seda!

Mas tudo muda: agora é a labareda

Do sol; depois o escuro, que parece

Uma mortalha sobre a loira messe

Dos campos. Veio a noite. Ao alto envereda

A lua branca, a lua que se aquece

Dos roseirais dos astros na alameda.

Faz-se um silêncio em toda a natureza

E eu me vejo nos vales da tristeza,

Completamente só. Mas de um momento

Para outro te escuto a voz querida...

É ela que me vem doirar a vida,

Dando-me à alma o verdadeiro alento.

 

Ingratidão

Apenas uma vela à cabeceira, – e apenas

Um lençol por mortalha. – E o seu corpo estirado

Na esteira em pleno chão, jazia abandonado

Sem rosas, sem jasmins, sem lírios, sem verbenas!

Brancas, as suas mãos! E brancas, as melenas

Que lhe caiam sobre o coração parado

E o seu olhar azul, para sempre fechado

Na morte que nivela os homens e as hienas!...

E o Pedro ali ficou, nessa tarde vivace,

Além da hora marcada, à espera que o levasse

À sepultura, a paz que muito peito aspira.

E como então ninguém na casa aparecia,

Para à cova levar, naquela freguesia,

Quem tanta gente pobre à cova conduzira!

Irmãs de caridade

Vê-las é ter na ideia a encantadora imagem

Das místicas visões dos mistérios do Empíreo!

Pois só elas, meu Deus, sabem ler o martírio

Que vai pela nossa alma, em maldita voragem!...

De mãos brancas assim, como de uma ramagem

De laranjeira a flor, ou como a flor do lírio,

Ei-las nos hospitais que a tíbia luz do círio

Do augúreo olhar da Morte enche de atra miragem.

Tristes os hospitais! Ilhas de ânsias e mágoas!

Ilhas à flor de um mar de tenebrosas águas!

Ilhas do tédio roxo e da amarga ansiedade!

Ilhas que muito mais isoladas seriam

E mais gritos de dor para sempre teriam

Se não fosse passar por elas a Piedade!...

(São José, 1903)

 

Irmãs de caridade II

De mãos brancas assim, brancas ânforas puras

De aromas para a unção das almas infelizes

De cujas chagas ruins, ou fundas cicatrizes

Sobe e rebenta em fel o anseio das torturas!...

De mãos brancas assim, cheias de iluminuras,

Cheias do que há do Amor nos fúlgidos matizes;

Plantas que em nossa dor cruzam fundas raízes

Para enchê-la de seiva e enchê-la de doçuras!...

De mãos de hóstias do luar assim são todas elas!

Encantadoramente e eternamente belas!

Almas virgens guardadas em cítaras eolas

Do Amor por sobre o mar que essas Ilhas alaga,

Que essas Ilhas em fel morde, de vaga em vaga...

Mas por onde Elas vão coroadas de magnólias!...

(São José, 1903)

 

Ironia

Que a paz dos altos céus estrelados te venha

A alma aflita buscar, é o meu maior desejo...

A alma dentro da qual a mágoa se desenha

Como na escuridão a nódoa de um lampejo.

Trezentos e sessenta e seis degraus da Penha

São os dias por ti sempre contados. Vejo

Sem pão a tua mesa, e o teu fogão sem lenha,

Enquanto muitos pães no mundo há de sobejo.

Desde o dia em que o mar, que é sempre austero e forte,

Chamou o teu marido aos mistérios da morte,

Tua vida tem sido uma eterna invernia...

E que responde o mar, quando triste lhe falas?

"Nada, nada responde". E quando então te calas?

"Sacode ao meu silêncio as vozes da ironia."

 

João

Não sei se tinhas do viver apenas

Um momento no mundo, pois nasceste,

E sem que visses as manhãs serenas,

Na mesma hora trágica morreste.

Mas para que ao mundo então vieste?

Para que baixaste e de profundas penas

O nosso pobre coração encheste,

Tu que devias vir tocando avenas?

Não era o nosso coração o aprisco

Que desejavas, ó pastor amado?

Não vinhas pastorar, livre de riscos?

Pelos caminhos bruscos e barrancos;

Não vinhas pastorar, ao sol doirado,

Do nosso amor os cordeirinhos brancos?

 

Lara

Lara veio em Julho. E que frio fazia!

Lá fora, o mar rugindo, ao vento que gelava.

Mas como em nossa casa ainda um fogão havia,

Ei-la dormindo. E ria. Eu creio que sonhava.

Lá fora o mar e o vento. E ela, a nossa alegria,

Continuava a dormir, e a rir continuava.

E sonhando, por certo, o que no sonho via?

— O Anjo meigo da morte, esse anjo que a fitava?

E continuou a ter sonhos misteriosos...

Mas sempre rindo. Um dia entretanto, os formosos

Olhos da minha filha, eram todos palores...

Uma lágrima veio! E Ela, no último leito,

De branco e azul vestida, a espada em pleno peito,

Nossa filha lembrava a Senhora das Dores!

 

Lá se foi a minha infância

Lá se foi a minha infância

Num caixãozinho dourado

Cheia de toda a fragrância

Do mar, do rio, do prado.

Foi-se há anos... Que distância!

Se conto-a, fico cansado,

Fico axiante, cheio de ânsia

E me julgo abandonado.

E por que nela pensar

Se já foi a se enterrar,

Fria, fria, fria, morta?

Penso nela, com carinho

Quando passa um caixãozinho

Em frente da minha porta.

 

Lenda antiga

Por uma simples rixa, uma simples loucura,

Ei-lo o pobre do Lúcio apunhalado a fundo

Na quebrada da praia. A noite estava escura;

Era da cor do tédio a vastidão do mundo.

No triste e frio chão, na areienta planura,

Junto ao mar soluçante, o grande mar profundo,

Batera o corpo dessa adorável criatura;

O corpo ainda robusto, ainda forte e fecundo.

E alguns dias depois, umas almas piedosas

Fincaram uma cruz enfeitada de rosas,

No lugar em que fora o inerme corpo ao chão.

Mas só passam por lá, agora, os destemidos;

Vendo uns braços de mãe, docemente estendidos,

Na atitude sublime e santa do perdão.

 

Leves traços

(Num passeio à Lagoa - Soneto ao amigo e poeta Carlos de Faria)

Volvendo meus olhos à imensidão

Contemplo um manto azul e constelado.

Olhando-me, vejo que estou num prado

À beira do oceano em solidão!

E pouco a pouco surge dentre as brumas

A lua com encantada palidez!

Faceiras juritis com placidez

Quase roçam as asas nas esteiras

Ao longe... além dum bosque tão florido,

Nas águas da Lagoa sublimada

Ao ouvir cantar uns velhos pescadores,

Junto a lira ao peito empobrecido

Arrojo-me a cantar da pátria amada

Os páramos gentis dum céu de amores.

(Desterro, 15/12/1883)

 

Logo assim que nasceu...

Logo assim que nasceu, cobri-lhe o berço

De papoulas, de rosas e boninas...

Pelas telhas as aves, em surdinas,

Tinham no aroma o coração imerso.

Sorrindo, dei-lhe a música de um verso,

A mais divina dentre as mais divinas.

Que brancuras as suas mãos franzinas,

Como a das velas no esplendor de um terço!

Vejo, porém, que os olhos do meu filho

Têm dos meus olhos o velado brilho:

Ambos são rios de revoltas águas.

Mas se o rapaz chegar ao ponto de homem,

Não o consumam, como me consomem

Os vendavais tristíssimos das mágoas.

 

Madalena

A encantadora filha de Magdala,

Maria Madalena, meu amor,

Que tinha os dentes brancos como a opala,

E em cada olhar um místico esplendor...

E flor na boca, que um perfume exala;

E ainda um rosal, o mais sublime, em flor.

Dentro do peito, que em clarões estala...

E ainda mais flores nos rosais da dor.

Esse seria o nome recordado

Da nossa filha, se do nosso lado

Não tivesse partido, esse almo misto,

Para o mesmo lugar de onde baixara...

E se ficasse, quanta luz preclara

Para nos redimir, em Jesus Cristo!

 

Manhã de noivado

Manhã formosa, de céu casto

Manhã de unções sacramentais

Desde o espaço azul e vasto

Ao mar e aos campos virginais

Que manhã bela,

Aberta em lírio, fulgente umbela

Manhã de aromas de alvas rosas

E lírios alvos e violetas;

E íris de estrelas misteriosas

Nas asas tênues das borboletas!

Manhã de Nossa Senhora

Manhã mística e sonora!

Manhã bizarra de trinados

De aves gentis, alvissareiras;

Pelos outeiros, pelos prados

Verdes, de verdes laranjeiras.

Manhã de Nossa Senhora,

Manhã mística e sonora!

Manhã de mar sereno e brando

Nas curvas praias alvadias,

Hinos de amor salmodeando

Belas canções esmeraldinas.

Manhã de Nossa Senhora

Por todo esse mar afora.

Ias comigo, ó minha amada,

Urna de afetos e de carinhos;

Ias comigo por essa estrada

Que é de sorrisos e espinhos

Cantava, alegre, a passarada

Na plumagem dos ninhos.

Junto ao teu colo florescente

Levava eu a alma vazada

De aroma casta e sol fulgente

E de gorjeios, por essa estrada...

Nunca houve, por certo, um par

De tantos olhos enfeitiçar!

A luz me enchia a urna do peito

De encantadores devaneios,

No afago morno desse leito

Aberto em flor entre os teus seios.

E eu nessa luz me engolfava

E alegremente sonhava

Sobre minha alma a sinfonia

Das tuas asas multicores

Baixava em ondas de alegria,

Como as abelhas sobre as flores.

Sinfonia das quimeras.

 

Manhã num sítio

Maio. Manhã num sítio. Ao longo das estradas

Estendem-se na relva as lágrimas do orvalho.

E já no morro estão, no rústico trabalho,

Os rapazes da aldeia. Há um tinir de enxadas.

Para as fornalhas que, nas belas farinhadas,

Hão de encher-se de brasa, abate-se o carvalho.

Nas estacas do pasto abre clarões o malho,

E há flocos de algodão nas verdes esplanadas.

No terreiro, ao redor dos engenhos antigos

Ruminam docemente os gordos bois amigos,

Deitados sobre a salsa e sobre as alfavacas.

E enquanto se prepara a sebe para o carro

Cheira o café, na mesa, em canjirões de barro

E se retira o apojo aos úberes das vacas.

 

Maria de Nazaré

As criancinhas são, da natureza,

As delicadas flores, mais perfeitas...

Umas são rosas de ideal beleza,

Outras, jasmins, papoulas ou violetas.

Ao mundo veio a de maior grandeza

Da luz do sol, nas límpidas facetas.

Rosa de Jericó, era a princesa

E eram, na luz, iguais as borboletas...

E esta que está para nascer, querida,

Se for mulher terá o nome d'Ela,

E se for homem, lhe darei, na vida,

Junto de um rio, o nome de um Rabino:

Mulher, será no mundo a nossa Estrela;

Homem, terá na Cruz o seu destino.

 

Maria Concepta[12]

Tens a meiga compleição das rosas,

E é como as rosas puras, ou como a neve

Que desce das alturas misteriosas

Flutuosamente de luz...

Tem das garças de Maio as opulências

Dos contornos bizarros, quando Maio

Abre do prado as ricas florescências

Junto ao mar verde-gaio.

Há seis meses que entrou na nossa tenda

Por uma noite em que o luar cantava...

Entrou, talvez, como uma visão de lenda

Que a luz as flores soltava.

E trouxe à boca que recorda um cravo

Todo o pólen bendito que nos ares

Rola e se inflama num luzeiro flavo

E desce aos campos e aos mares.

E nos olhos nos trouxe, das esferas,

Os riachos do Amor, que por lá correm

Feitos de sonhos e da primavera

Dessas cousas que não morrem.

Mas de tudo que a nossa filha trouxe,

De tudo quanto existe lá por cima,

Foi o nome lirial, sagrado e doce

Mais que a mais branca Rima.

E esse nome que é todo de perfumes,

E se reveste dos mais alvos linhos,

Esplende como os fulgurosos lumes

E embriaga como os vinhos!

E ele veio matar-nos a saudade

Cruenta, amarga, fúnebre, infinita;

Que nos deixava, em plena crueldade,

Maria Sulamita!

 

Mas andarás na terra?

Mas andarás na terra? Em que lugar? Por onde?

Na terra em que pisaste os teus pés nos espinhos,

Pelos campos cruéis, pelos negros caminhos,

Sem que haja ninguém que as tuas ânsias sonde?

Pela terra andarás?... Meu amigo, responde,

Pois quero te escutar a clara voz de arminhos,

Macia como a pluma aromada dos ninhos,

E como a fresquidão da fonte que se esconde...

Basta! Sei onde estás! Tu andas lá por cima,

Mergulhado na luz que dá asas à rima

E faz dos corações abençoadas liras.

Por isso, quando vens, quando desces, te vejo

Num Arco da Aliança, amigo e benfazejo,

Todo feito do pó das rútilas safiras...

 

Mistérios

Ninguém compreende bem os mistérios do mar.

Ora eu, por uma tarde em flor, que era um encanto,

Fui vê-lo do costão para ouvi-lo tocar

Harpas e bandolins, num místico quebranto.

Vinha a noite se abrindo em lírios, e o luar

Estendia-se como um óleo puro e santo.

Que festa! Mas havia, entre as ondas do mar,

Um soluço, um gemido e acres gotas de pranto.

Assim no mundo é todo o coração humano:

Ora canta, feliz; ora, no desengano,

Geme e chora e soluça, amarguradamente...

Não sabe quando está satisfeito, nem quando

As torturas lhe vão os segredos minando

Pelos tempos em fora, indefinidamente.

 

Muitas vezes

Tranquilo, sossegado, a fitar a brancura

Que aveluda, na tarde, o verde jasmineiro,

Recorda com saudade a mística doçura

De um seio que lhe fora o melhor companheiro.

E a sua alma que, outrora, era toda mornura

Do penugento ninho, ou fremente braseiro

(E agora fria está), ainda guarda a ventura

De sentir, a evocá-la, um delicioso cheiro...

Ainda sente, feliz, da mulher feiticeira,

Que encontrara e beijara, ali mesmo, no prado,

Do alto enlevo do amor na bendita lareira,

O cheiro dos jasmins do lindo seio amado

Sobre cujo calor seu corpo adormecera

Muitas vezes, sem tê-lo, entanto, maculado!

 

Mulheres

Mulheres! Como são as mulheres! Na infância

Vede-as cheias de afago, emotivos carinhos

Pelas monas de pano, em perene constância

Ora em casa, na sala, ora pelos caminhos.

Na puberdade, vede em cada qual uma ânsia.

Voam como no campo os meigos passarinhos.

E quando moças vão, de distância em distância,

Correndo atrás do Amor, que lhes dá os bons vinhos...

E uma vez neste mundo, e no sonho embriagadas,

Ei-las junto de nós, companheiras amadas,

Heroínas da dor nos austeros cadilhos.

Ah! para sempre santo o ventre das mulheres.

De onde saem para a vida, encarnados, os seres

Que mais queremos bem, porque são nossos filhos.

Na armação

O meu avô materno arpoava baleias

E as conduzia para a Armação da Piedade.

E quando ele chegava, o povo das aldeias

Ia vê-lo, e lhe dava abraços de amizade.

Que festas ao luar, e ao brilho das candeias

Dançava-se na praia alvíssima, à vontade,

Como quem dança em casa. E as almas eram cheias

Dos vinhos da alegria e da felicidade.

Mas na velha Armação, agora, nada existe,

Desse tempo feliz, senão na alma bem triste

De um pobre velho cego, a lembrança alvadia,

De haver tido paixão por umas raparigas

Que ao saírem do mar, à noite, entre cantigas,

Pareciam visões vestidas de ardentia.

 

Na casa de Clécia[13]

Todo o horizonte escuro, e as montanhas escuras...

Mantos de escuridão vêm do espaço caindo...

E os astros de cristal aonde estarão luzindo?

Seriam para sempre extintos nas alturas?

Aonde estarão também de límpidas alvuras

As garças dos mangues? Todas foram fugindo,

Porque o mar está como um leão, rugindo,

Ou lembra um coração a chorar amarguras.

Tremo de medo. A fé no meu peito se apaga...

Essa noite medonha, aflitiva e pressaga

Leva-me o sonho em flor num caixão mortuário.

Mas entro de repente em sua casa, e vejo,

Da candeia de folha ao mortiço lampejo,

Clécia a rezar por mim nas contas de um rosário.

 

Na hora extrema

O mestre carpinteiro está quase morrendo

No seu rancho de palha. Ai! pobre do velhinho!

Setenta anos já fez. E viveu percorrendo

Das negras ilusões o infindável caminho.

E agora, à luz do sol que se vai distendendo

Pelas praias e campo, existe um burburinho

De povo humilde e bom. E o povo vai correndo

Para a morte assistir do seu melhor amigo.

Numa lancha que dobra a ponta da enseada

De vela branca ao vento, uma vela tufada,

O senhor vigário chega. E entre preces em coro

Que enchem de graça e paz toda essa tarde bela

E as almas dos fiéis, na encantadora umbela

Como uma flor do céu abre as pétalas de ouro.

 

Na novena

Novena na capela. E quantas raparigas

Correm pelo Rincão. E as rosas vão-se abrindo...

E logo à noite então, que piedosas cantigas

À Senhora do Monte, e ao seu Filho tão lindo.

Abracemo-nos, pois, almas francas e amigas,

E sigamos também, que a luz que vem caindo,

É a luz da nossa fé, que nos deixa as espigas

Do amor, trigo que vai em nossa alma florindo.

Olha, que profusão de velas enfeitadas

Nesses braços febris! Olha, quantas braçadas

De rosas e jasmins! E quanta palma, aos milhares!

Sim, unidos os dois, a essa novena iremos

E uma prece de amor aos céus elevaremos

Para que não nos mate a inveja dos maus olhares.

 

Praia[14]

Que lindo estava o azul da tarde imaculada

Que o mês de Maio abria entre as rútilas franjas!

E que laranjal coberto de laranjas,

E que chios de carro ao longo dessa estrada.

Que perene trabalho, em plena farinhada,

Na abastança do solo e das extensas granjas.

E tu, ó meu amor, que tão meiga te arranjas,

Como estavas bonita, e toda perfumada!

Nessa tarde não sei que deslumbres de vida

Eu senti do teu lado, ó alma estremecida,

Principalmente quando as tuas mãos nas minhas

Se aninhavam febris, durante o tempo inteiro

Em que estivéssemos nós sentados no terreiro,

E, na praia a brincar, as nossas três filhinhas.

 

Naquela estrela

Naquela estrela que lá vês, em cima

E cujo brilho bate à tua janela

E os teus sonhos dulcíssimos anima.

Naquela branca e luminosa estrela

É que eu vivi, e tu viveste, unidos,

Na mesma luz acariciante e bela.

Ambos os nossos corações ungidos

Do mesmo ideal, dos mesmos sentimentos

Sonharam laços nunca enfraquecidos.

Eram teus os meus leves pensamentos,

E os teus os meus, em comunhão sagrada,

Longe dos vendavais, longe dos ventos;

Longe dessa tristíssima nortada

De desgraças morais, de dissabores

De ânsias da mesma desolante estrada.

A nossa vida rebentava em flores;

E era tão cheia de trigais maduros,

E de céus tão cobertos de fulgores;

Era distante dos pauís escuros;

Era longe das plagas da miséria

Que neste mundo forma-se em monturos.

Nessa Estrela da curva Azul, etérea,

Os nossos peitos não sentiam mágoa,

Nem pensavam nos vícios da matéria...

 

Nas praias

Nas praias, ao luar tão claro como o azeite

Dos verdes olivais da Espanha, ou como o vinho

Das parras de Ergadit, que sublime deleite

No coração dos dois, pelo mesmo caminho!

O seio de Valésia era o frescor do leite

De uma cabra montês, e o seu colo era o ninho

Plumaroso, a deixar entre as heras de enfeite

De um telhado, onde houvesse um meigo passarinho.

E a sua boca tinha a frescura dos favos

Transbordados de mel, quando nos dias flavos ,

Muito limpos e azuis, com riachos em coro,

E vagas soluçando os seus grandes segredos,

Abre-se em plena praia, das curvas dos rochedos,

Dos esguios ipês a florescência de ouro.

 

Na vida praieira

Não me sinto feliz se a rir te me apresentas

Dessa maneira, assim vestida, assim trajando

Saia de rico preço, e essas fitas cinzentas

Num chapéu que parece pássaro agoirando...

Nutro, às vezes, por ti, maneiras turbulentas,

Ideias infernais, principalmente quando

Vejo que dentro da alma a vaidade acalentas,

E andas as ilusões tristíssimas gozando.

Uma saia de chita azul, que linda saia!

E, no branco areal fulgíssimo da praia,

Os teus pés a pisar as ondas irrequietas...

Na vida junto do mar, nessa vida praieira,

Serias mais do que a Gata Borralheira,

Com tulipas de sol nas lindas tranças pretas.

 

Nesta da vida trágica jornada

Nesta da vida trágica jornada;

Neste caminho atroz, nesta corrente

De rio negro, e neste mar fremente,

Por um luar de luz triste e velada.

Nesta luta fatal, de dor gritada

Neste eterno rugir de ânsia inclemente;

Nesta profunda aspiração, que a gente

No tédio amargo esconde, alucinada.

Que tudo isso eu teria o inferno aberto

Se o teu coração, do meu tão perto,

Amorosamente não dissesse

O quanto vale à vida o sofrimento

Quando ajoelhados, em qualquer momento,

Aos céus erguermos o clarão da prece.

 

Neste lugar agreste

Neste lugar agreste é que toda a florida

Mocidade passei. E que rimas maviosas

Soltei nos bandoleios do amor.

Nesta querida Terra cantei o sol e as estrelas formosas.

Cantei, por essa praia em fora, a indefinida

Beleza singular das almas alterosas.

E, portanto, cantei tua alma estremecida,

Mais cheia de frescor do que as próprias rosas.

Eras humilde e boa, e plena de alegria...

E a calandra do sonho, a cantar noite e dia,

Nos teus olhos pousava. E eu me punha a cismar

Nos olivais em flor da nossa mocidade,

Que eles nunca, jamais morram de saudade...

Mas tudo se acabou como a espuma no mar...

 

Ninguém nos versos deste livro busque

Ninguém nos versos deste livro busque

Encontrar qualquer coisa que corusque.

Qualquer coisa que brilhe, vibre e cante

Como a luz misteriosa do diamante.

Ou qualquer coisa que possua as cores

Divinamente cândida das flores.

Nem busque da Arte os sólidos caprichos

Como no Templo os bizantinos nichos.

Nem veja neles o rendilhamento

Da Arte nos sacrossantos paramentos.

Quando, de peito afoito, vai o Artista

Das imortais belezas à conquista.

Quando, de alma banhada de esperança

O Artista augusto toda a glória alcança.

Quando Ele, como um rei da antiguidade

É todo força e excelsa majestade.

Quando o Artista, vencendo as nuvens, passa

Por sobre o mundo, resplendendo em graça.

Ninguém busque encontrar nestes meus versos

Segredos de arte, em ondas de ouro imersos.

 

Ninguém viu

Ninguém viu... ninguém viu... Porém é certo

Que para o Empíreo, nesse instante aberto

Do seu olhar tão límpido, tão lindo

Uma ave de asas tênues foi subindo...

Uma ave de asas tênues como a neve

Que dos longes das alturas cai de leve...

Cai como pluma cristalina, cai

E vestindo de luar os campos vai.

A ave que no seu peito em flor tecera

Um ninho azul do azul da primavera

Que tecera, em seu peito, um ninho brando

Com os sonhos que sempre ia sonhando.

De sonhos castos como os lírios castos

Que florescem, no estio, pelos pastos.

A ave do amor, o ser da vida, a alma

Essa subiu, — do seu olhar, apenas calma

Subiu do seu olhar, na última hora,

E pela mão da Morte, espaço em fora,

Entrou no Empíreo, pela estrada flórea

Toda coroada dos mistais da glória.

 

No campo

(A Múcio Teixeira)

Vão chegando do banho as raparigas

do campo, essas simpáticas morenas,

numa conversação doida, de amigas,

frescas e virgens como as açucenas.

Do verde milharal pelas espigas

voam lindas abelhas e falenas,

no ar puro, de abril, bilram cantigas

as avezinhas loiras e serenas.

Ergue-se o sol do tálamo das ondas,

vitalizando as extensosas mondas

enchendo tudo de alegria rara.

E pela estrada verdurosa desce

um rude carro, que a cantar parece

uma estranha, fantástica cigarra.

 

Noivado na morte[15]

(Para o Aníbal Pires)

Quando Judite gelou na Morte, certo

Que para o Empíreo, que se tinha aberto

Do seu olhar tão límpido, tão lindo

Uma ave subiu, as asas sacudindo...

Uma ave de asas diáfanas e puras

Como as da luz errando nas alturas,

Uma ave meiga, que no amor tecera

Um ninho azul do azul da primavera,

Cheio de aromas, músicas e flores

E dos mais misteriosos esplendores.

Um ninho como o que nos arvoredos

São tecidos de afetos e segredos.

Tecidos que, à luz da madrugada,

Tecem em lírios de pólen de ouro a estrada

A ave sublime, o ser da vida - a alma

Da tua irmã subiu ao azul com calma.

 

Noiva saudosa

Recordava, chorando, a profunda tristeza

De uma tarde invernal. Recordava a partida

Do noivo, belo noivo, alma afeita à beleza

Do amor que em si resume a floração da vida.

E, nessa hora, também, a própria natureza

Lhe fazia lembrar uma noiva, vestida

De roxo, para a morte. E nutria a certeza

De lhe morrer a fé, de vê-la ressequida...

É que viera, há pouco, a passos apressados,

Da casa da sortista, onde lhe foram dados

Agouros sobre o fim da partida de um barco.

E ela me disse, aflita, ansiosa, soluçando:

— Eis a razão porque, nesse barco, pensando,

Os meus olhos azuis de lágrimas encharco.

 

No mar dos sonhos

No mar dos sonhos não se via mágoa,

Nem tinhas tu, nem eu, morta a esperança,

Nem nossos olhos eram rasos d'água.

Sempre havia em redor de nós bonança

De lagos de cristal, e lindas fontes,

Sob a curva do Arco da Aliança.

Que doçura de vida entre dois montes:

Entre o monte da fé e o da certeza,

De cujo cimo viam-se horizontes

Que se alargavam, cheios de pureza,

Todos abertos como portas de ouro,

Da imensa catedral da natureza.

Na nossa casa os pássaros, em coro,

Vinham cantar, vinham cantar, bem cedo,

Como cantam as moedas de um tesouro.

Não vivíamos, antes, num degredo,

Num lugar para sempre abandonado,

Como as almas fechadas num segredo

Tu me falavas sempre e sempre, amado,

Na certeza das almas que se abraçam;

E eu te falava, no paú sonhado

Por essas almas que no amor se enlaçam,

E docemente vão, da terra, ao Empíreo

Da terra ao espaço alegremente passam

Sem angústias fatais, e sem martírio.

 

No sítio

(A Santos Lostada)

Era a nossa casinha à beira de uma estrada,

Com janelas de vidro abertas para a horta,

E avistava-se ao longe, assim ao pé da porta,

O morro e todo o mar e à praia mais nevada.

Ouvia-se cantar a linda passarada

Como a esperança ideal que o coração conforta,

E o sol iluminava o lago que além corta,

O bosque e vai descendo a grimpa, na baixada.

E quando a aurora abria o lírio resplandente

Do seio, e coloria as longas aquarelas,

Subia-nos a alma ao céu que na luz se perde

E as nuvens de ouro e prata e chumbo, no Oriente

Pareciam de um palco as lindas bambinelas...

Na natureza, então, uma plateia verde!...

 

Nossa senhora, um dia...

Nossa Senhora, um dia, ao ser chamada, veio

Lá de cima do céu recamado de flores,

Ouvir o teu clamor, dentre os fortes clamores

O mais forte que estava a te possuir o seio.

Veio vindo, desceu, sem o menor receio

Da lonjura que dista entre a terra e os fulgores

Das estrelas... Desceu, apiedada das dores

Da tua alma, lhe deu todo o seu grande anseio.

Nossa Senhora é mãe, de todas a mais piedosa!

E por isso desceu a escada luminosa,

Veio cheia de graça, e entrou na tua porta

Para te dar a paz no sonho que tiveste

Com ela vindo assim, dessa mansão celeste

Onde com ela viste a tua filha morta...

 

No velho engenho[16]

(Para um amigo)

Sabes de onde te escrevo este simples soneto?

Escrevo-te do mesmo engenho onde Maria,

Pela primeira vez, sentiu todo o seu peito

Nos afagos febris da mais pura alegria.

Nas eiras, lá por fora, era um cristal desfeito

O claríssimo luar. E a neve que caía

Recordava a cortina alvíssima de um leito

No laranjal em flor. E que frio fazia!

Deves, pois, te lembrar desse engenho, por certo:

Na farinhada, em junho, era um céu todo aberto

Nos encantos da paz, que a tudo estende um brilho.

Moços vinham dançar, após o árduo trabalho;

E, no forno de cobre, ao calor do borralho,

Faziam ternamente uns lenços de polvilho.

 

Novenas em maio[17]

Hoje não rezarás senão longe da terra

Que tantas ilusões tristíssimas encerra.

Fechei então os olhos

Aos rústicos escolhos

Do mundo, e as mãos cruzei sobre o peito gelado,

Que não pulsava mais, e deixei-me ficar

Desse jeito deitado...

Mas eu via, através das pálpebras, eu via

Uma linda mulher vestida de junquilho

E coberta de um manto azul chamalotado

De fulva pedraria...

E a sua voz de alegre cotovia,

Banhada de meiguice,

A sua voz me disse:

Vem comigo, meu filho.

Senti que do meu peito um pássaro voava

Leve, leve, sutil, terníssimo, lembrando

A fluídica espiral do perfume das rosas

Que se caem são desfolhadas

Pela estrada por onde o pássaro voava,

Sacudindo na luz as asas silenciosas.

E fui. Abriu-se, então, uma porta, e por ela Entrei.

Que contente alegria

A gente goza ao entrar numa festiva estrela.

 

Num Álbum

Este Álbum – teu tesouro –

Templo de luz, que encerra

Das flores o Troféu,

Tem duas portas de ouro:

— Uma – abre para a terra

— Outra – abre para o Céu!

(Desterro, novembro de 1885)

 

Nunca fora bonita

Nunca fora bonita, nem graciosa

Nos olhares azuis, e nos meneios

Das ancas, nem na virgem flor dos seios

Nem nos gomos da boca cor de rosa.

Nem jamais, nos serões, na quadra ansiosa

Do inverno, em que há mais horas de recreios

Ela teve, na esfolha dos centeios

Quem lhe desse uma frase esperançosa.

Vendo-se ao espelho, tudo compreendia:

— Era feia demais... Mas não sofria;

Antes gozava o que lhe dava a sorte...

Entretanto, no dia em que morrera,

Era uma linda flor de laranjeira

Sob as asas diáfanas da morte.

 

Nunca mais

Manhã! Preces de amor na ermida de um salgueiro,

Na alva praia tranquila. Amarguradamente

Arfava-te de anseio o róseo peito inteiro

E era um fruto pisado a tua boca ardente.

E quando o barco fez-se ao mar, sob o nevoeiro

Que envolvia o pontal da praia, alvinitente,

Clécia, o teu coração, de alegre e feiticeiro,

Transfigurado foi numa sombra inclemente.

Para longe partia aquele que deixava

A tua alma infeliz, que tanto se lembrava

Do destino fatal de outros queridos noivos,

Os quais nunca! jamais! das paragens do norte

Voltaram! Nunca mais! Senão na própria morte,

Ou vencendo um mar de ciprestes e goivos!

 

Nunca sorriu!

Nunca sorriu! Jamais na sua boca

Essa graça do sol de uma alma um dia

Alou, como a adorada e linda e louca

Borboleta da rosa que inebria.

E a sua voz era sinistra e rouca

Como a da água descendo a penedia.

Pouca importância dava às outras, pouca,

Numa suprema e gélida ironia.

Nunca sorriu! Nunca sorriu! Jamais

Mas também nunca teve aflitos ais.

Soluços, gritos de emoção ardente.

No entanto, agora, pelo cemitério,

Ei-la a rir, sempre a rir, no atro mistério

Dos que riem de si, seguidamente.

 

Ó campos de mentrasto!

Ó campos de mentrasto! Ó campos de verbenas!

Ó caminhos que a luz meiga do sol bafeja!

Lindas tardes azuis, altas noites amenas

Aragem que do sul as verdes ondas beija!

Ó aves que aos beirais das casas, tão serenas

Descem, cheias de amor! E esse luar que alveja

As praias, e esse pó de prata das falenas...

E tudo o que no campo a minha alma deseja.

Tudo isso me ilumina a esperança suprema

Em ter um bem estar, até na hora extrema...

E não será feliz quem morre na pureza

Duma praia tão linda? E por que não? Um dia

Hei de contar-te então toda a minha alegria,

E tu me contarás toda a tua tristeza!...

 

O capoeira

Dançava-se um fandango em casa do Paulino,

E para que o João não viesse perturbá-lo,

Botou-se de alcateia, à luz da lua a pino,

O crioulo Joaquim, montado num cavalo.

Mas na volta da estrada ouviu um desatino

De palavras brutais como o som que um badalo

Bruscamente produz no côncavo de um sino,

E voltou o rapaz, com gritos de afogá-lo...

— Ó Paulino! Ó Paulino! O João lá vem vindo!

Credos! Lá vem o João, certamente brandindo

O facão que pelo ar um cabelo cortava...

Houve então um clamor fantástico de medo,

À chegada do João, que ao longo do arvoredo

A cabeça fremente e os braços, agitava...

 

O coração e a estrela

Dizia o coração à estrela do infinito:

Treme de inveja, ó luz, que o teu poder invado!

Pois se brilha em teu seio um mundo iluminado

Dentro de mim resplende um grande amor bendito!

Como um órfão sem lar, um triste réu prescrito,

Vives tu no silêncio, ó astro abandonado!

Ao passo que feliz, risonho e enamorado,

Eu vivo para alguém! Eu para alguém palpito!

E cada instante sinto o olhar sereno dela

Encher-me de uma luz mais límpida e mais bela

Do que essa com que Deus o seio iluminou-te...

Mas tu, que tens além do etéreo brilho teu?

— Eu tenho a liberdade!... (a estrela respondeu

Sumindo-se no abismo esplêndido da noite...)

 

Olhar...

I

(À Margarida)

Aquele olhar que me lançaste um dia,

Por uma tarde, à luz crepuscular,

A cândida e suavíssima harmonia

Para onde foi, daquele doce olhar?!

A tarde pouco a pouco esmaecia

Entre neblinas, lenta, devagar;

Uma ave no horizonte se sumia

Numa saudade como a prece no ar...

Sobre as ondas um barco velejava

Na agonia do sol que se afundava

No ocaso como um coração que amou!

Tudo eu recordo claramente agora!

Mas ah! aquele doce olhar de outrora,

Aquele doce olhar, que fim levou?!

II

Aquele doce olhar, que fim levou

Que em vão que sempre em vão hoje o procuro

Vendo tudo ao redor tão vago e escuro

Que já nem mesmo sei por onde estou?

Desde que aquele doce olhar voou

Como um pássaro azul por um céu puro

Que eu os trilhos não sei do meu futuro,

E nunca mais meu coração cantou.

Tudo em torno de mim, saudoso e triste,

Numa grande saudade e imensa dor,

Como um deserto, para sempre existe!...

E se ainda às vezes vem-me ao peito em flor

Uma alegria que jamais sentiste,

É tudo desse olhar e desse amor!

III

O teu olhar perdeu-se nas estrelas!

Que eu é ver esses astros primorosos

Brancas visões de mundos nebulosos

E me deslumbro só de apercebê-las.

É certo que eu não sei compreendê-las,

Nem dizer os segredos fabulosos

Dessas estrelas pelos céus radiosos,

Nem assim qual te vejo eu posso vê-las.

Mas sinto bem, embora as não entenda

Que o teu olhar na misteriosa lenda

Das estrelas finíssimas dardeja...

Que mesmo assim estando longe, o certo

É que esse olhar de mim sempre está perto,

Por muito longe que eu de ti me veja!

IV

Por muito longe que eu de ti me veja

Sempre o meu coração voa e procura,

Deseja e adora e carinhoso beija

A tua peregrina formosura.

Tu não o vês, nem sentes que ele adeja

Junto à tua alma virginal e pura,

Nem que quando ansioso te deseja

E não te vê, só vê a noite escura.

Para o teu coração, talvez que tudo

Que sente une outro coração que adora

Tenha a frieza de um sepulcro mudo.

No entanto eu que ao sentir-te sinto a aurora

Sorrir-me nos teus olhos de veludo,

Recordo sempre aquele olhar de outrora...

 

O meu patrono...[18]

Neste momento

O lindo nome

Do meu Patrono

Não dorme o sono

Do esquecimento,

Nem o consome

O isolamento

Da terra fria

Da sepultura,

Que todo o dia,

E a noite toda

É noite escura

Na qual o verme

Tem na epiderme

Do nosso rosto

A sua boda

De melhor gosto.

Almas cansadas,

Amortalhadas

Em vis mortalhas

De pessimismo

No fundo abismo

Que as dilacera.

E, para eu vê-lo,

Não cavo a terra,

Que só encerra

O pesadelo

Das almas vãs,

Das almas falhas,

Sem as manhãs

Da primavera;

A sua infância

Fora um rosal

(Sem outro igual)

Sob a flamância

Dos céus formosos,

Dos céus ditosos

De astros lembrando

Tendas de abrigo,

Com pó de trigo

Que uma peneira

O peneirasse

Por sobre a esteira

Do mar divino,

Que é maravilha

Na nossa Ilha

De alvos caminhos

Com laranjais

Cheios de ninhos

De sabiás.

Em pequenino

Ele sabia

E compreendia

Os Evangelhos,

Quando ajoelhava

E então rezava

Junto aos joelhos

Da mãe querida,

Da qual tivera

A primavera

Mais florescida,

Sob os afagos

De uns olhos magos,

E dos ressábios

Do mel dourado

Do amor sagrado

Do ser amado.

E, assim, cresceu

Fez-se taludo,

E compreendeu

Que, tudo, tudo

No mundo é vão

Sem a instrução

Que é astro em meio

Da cerração,

Nesses caminhos

Por onde andamos

Quase sozinhos,

Pisando espinhos;

Ou pelos vales

Tredos, sombrios;

Pelas montanhas

Longas, estranhas,

Ao pé dos rios

Cheios de males,

Cheios de gritos,

Prantos convulsos:

Ranger de dentes,

Quebrados pulsos,

Quebrados braços,

Grandes cansaços,

Dores latentes;

Ou pelo mar,

À flor das ondas

Que fazem rondas

A soluçar,

Em luta insana

Nas praias tristes

Da vida humana.

E o astro em meio

Da cerração,

Sublime veio

E o coração

Lhe foi abrindo;

Abriu-se lindo,

Diante dos olhos

Desse menino

Que assim foi vindo

Sem os escolhos

De um mau destino.

Ei-lo na Escola

Pedindo esmola,

A luz que encanta,

Que a alma alevanta,

Que a treva escalva,

Numa pureza

Numa beleza

De Estrela d'Alva.

Vede-o contente,

Vede-o feliz.

E o Mestre diz:

A toda gente:

— Dos meus meninos

É o que mais sabe,

Talvez acabe

Ao som dos sinos,

Ao som dos hinos

Proclamadores

Dos vencedores.

E assim foi vindo,

Até que um dia,

Cedro florindo,

Todo alegria,

Homem tornou-se

E compreendeu

Que, para a vida

Lhe ser mais doce

Lutar devia,

De espaço a espaço,

Como um soldado

Erguendo o braço

Contra o inimigo

Desesperado.

E homem feito,

Pôs-se a lutar,

Afoito o peito

Como o do mar,

Que no rochedo

Bate sem medo

Velando as ânsias

Pelas distâncias

As mais sombrias,

As mais pesadas,

Convulsionadas

De ventanias

Vertiginosas.

Amando a terra

Que o viu nascer,

E, agora, encerra,

A florescer

O corpo seu,

Ei-lo lhe dando

O coração,

Sereno e brando

Como um clarão

Que vem do Céu

Vestido à malva,

Na ocasião

Em que aparece

E resplandece

A Estrela d'Alva.

Fez-se ao trabalho

O mais correto.

Como arquiteto

Buscou o malho,

Buscou o esquadro,

Pá e compasso,

Tudo isso, tudo

Que robustece

E fortalece

O nosso braço,

O braço humano,

De dia a dia,

De mês a mês,

De ano a ano,

Com energia,

Com altivez.

E, assim, vencendo,

Ei-lo colhendo,

Para a sua alma,

A branca palma

Dos lutadores,

Dos vencedores

Glorificados

E coroados

De verde louro,

Em tronos de ouro.

Pegou da pena

E fez-se um bravo,

Matando a hiena

Do fero agravo.

E discutia

Como ninguém;

E combatia

Mais do que cem,

Como Sanção.

P'ra dar exemplo

Entrou no Templo

Da Abolição,

Para ajudar

A subjugar

A escravidão.

Fez do cativo

O seu irmão,

E pelas ruas

Lhe dava a mão,

Sempre festivo

Como o verão;

De alma bizarra

Como a cigarra;

De olhos tão lindos

Quais céus infindos,

De onde brotava

E se alastrava

A florescência

Da inteligência.

Na quietude

Da sua casa,

Ardendo em brasa,

Todo saúde,

Todo vigores

Fazia versos

Encantadores,

Os mais cheirosos,

Deliciosos,

De tons diversos

Que como as flores,

Por esses campos

Verdes e lampos;

Pelas estradas

Embalsamadas,

E pelas praias

De áureas alfaias

Como os altares,

E pelos lares,

Como se abrindo

Ao sol luzindo.

Alma de poeta,

Filigranava

Rimas ideais,

Espirituais!

Que madrigais,

Que redondilhas

Ele rimava

Por essas ilhas

Que o mar oscula

Quando tremula

Nas suas águas

Cheias de mágoas,

A branca lua,

Ofélia nua!

Que sentimentos

E que emoções,

Na asa dos ventos,

Quando ele dava

Às raparigas

Essas cantigas,

Essas canções!

E as raparigas,

Suas amigas

Como o queriam

Nos seus segredos.

Nos seus enredos

Nos seus anseios,

No palpitar

E gorjear

Dos róseos seios!

Ah! nessa quadra,

Nos tempos idos,

Tempos queridos,

Que nunca mais

Hão de voltar,

Os madrigais

E as redondilhas

Que ele rimava

Junto das tendas

Dos pescadores,

Junto das granjas

Dos lavradores;

Os madrigais

E as redondilhas

Originais,

Que ele rimava,

Eram tão leves

Bem como as rendas

Dessas rendeiras

Que à sombra amiga

Das laranjeiras

Trabalham rindo,

Cantando, e ouvindo

Cantar, audazes,

Os seus rapazes,

Os pescadores,

Os lavradores,

Os trovadores

Dos seus amores!

Olhos? Cantou-os

Formosamente

Cantou as bocas

Dos namorados;

Das moças loucas

Pelo poeta,

Alma seleta,

Alma festiva,

Alma emotiva,

Alma sem mágoa,

Tão boa e doce

Como se fosse

Um copo d'água!

Seios!? Cantou-os

Divinamente;

E docemente

Cantou os belos,

Leves cabelos

Das raparigas,

Que usam figas

Pra o mau-olhado

Das velhas feias

Que, nas aldeias

De lado a lado,

Vivem clamando,

Vivem rezando

Contra o noivado

Que é tão bonito,

Que é campo em flor

Por onde o Amor

Canta, bendito!

A sua prosa

Tinha a cadência

Maravilhosa

E a resplandência

Das ondas, quando,

Batidas pelas

Asas de arminho

De um vento brando

Sob o carinho

De alvas estrelas

Era castiça,

Era inteiriça

Como os metais.

Dava aos jornais

Toda a grandeza,

Toda a beleza

De um rico estilo

Feito a berilo,

Feito à safira,

Feito à esmeralda,

Feito à ametista

Nuns rendilhados

De mãos de artista.

No jornalismo,

Que pena ingente!

E que heroísmo

De combatente!

Atormentava,

Aniquilava

A hidra maldita

Do despotismo,

Talvez inscrita

Para matar

A terra amada,

De tantas rosas

Prodigiosas;

De tantas giestas

Virgens, modestas;

De margaridas

Enternecidas;

De tantas aves

Tão cantadeiras

Por sobre as naves

Das laranjeiras,

De tantos riachos

Lembrando fachos,

Do amanhecer;

Ao entardecer

De um meigo luar

Beijando o mar,

Na praia em fila

Onde cintila

A pedraria

Da maresia!

No jornalismo,

Que pena ingente!

E que heroísmo

De combatente!

Que polemista

De larga vista!

Mas nunca teve,

Mesmo de leve,

Para o inimigo

Feral castigo,

Negra tortura,

Funda amargura

Punhal em riste

Que é cousa triste,

Porque o irmão

Matar não deve

O coração

De um outro. Não!

Suas palavras

(Quando faladas)

Lembravam lavras

As mais douradas

Por sobre as quais

O sol cantasse

Dos seus encantos,

Os belos cantos

Tão virginais

Dos seus violinos

Adamantinos;

Das suas harpas,

Seus atabales,

Pelas escarpas,

Montes e vales.

E era tão puro,

O seu olhar,

Como o luar

Esse óleo branco

Que escorre franco,

E faz lembrar

O que, na unção,

Na hora extrema,

Enche de crença,

E fé imensa

O coração

De um pobre monge;

Que vai pra longe,

Alma cansada,

Assim... assim...

Numa jornada

Que não tem fim.

Suas pupilas

Azuis, tranquilas

Meigas, serenas,

Cor de açucenas,

Também nos davam

Vinhos de Samos,

Que embriagavam

Profundamente

Como se a gente,

Cheia de graças

Sempre os tivesse,

Sempre os bebesse

Em lindas taças.

Os seus cabelos

Sempre em novelos

Até o pescoço,

Lembravam musgos

Num alvoroço

De ventania.

E eram da cor

Dos grãos de trigo,

Quando, em sazão,

O ceifador

Lhe estende a mão

E o leva à mó

Que o moi sem dó,

Sem compaixão,

Sem lhe escutar

A grande dor

A dor da morte.

Medonha sorte!

Alto, talhado,

Passos serenos

Dos nazarenos,

Ei-lo aprumado

Como um soldado

Da antiguidade.

Que majestade

No seu pisar,

Pela cidade.

Pelas aldeias

Pelas taperas

Por onde andava

E procurava

As almas boas

Dos lavradores

E pescadores

Que soltam loas,

E rimam flores

Com seus amores,

E rimam ninhos

Com passarinhos,

E seios francos

Com lírios brancos,

E tranças pretas

Com borboletas,

E tranças louras

Com dobadouras

De seda em rama

Que a luz inflama

Com muitos beijos;

Muitos desejos,

Muitos sorrisos,

Que vão-se abrindo

Em paraísos

No amor infindo.

Que simpatia

Por ele havia!

Quanta doçura

Na criatura

Que hoje é meu guia,

Que hoje me banha

De luz estranha,

De tanta graça

Como a que passa

Suavemente,

Do céu do Oriente

Ao céu do Poente,

No amor do sol,

No amor da estrela,

Nesse crisol

De luz tão bela.

Homem já feito

(Que nobre sina!)

Ei-lo Doutor

Em Medicina,

Tendo no peito

A rósea flor

De um grande amor,

Sem esquivanças,

Pelas crianças,

As aves mansas,

Que batem asas

Nas nossas casas.

Ei-lo a curar

As pobrezinhas,

Com santidade,

Com piedade,

Com humildade,

Como bem poucos.

Ouvidos moucos

Nunca Ele os teve,

Mesmo de leve,

Para as crianças,

As esperanças

Da nossa vida,

Na indefinida

Desolação

Dos desenganos

Sobre-humanos.

E as criancinhas,

As avezinhas

Das nossas casas,

Batiam, então,

Com emoção,

De novo, as asas.

Quanta alegria

Na alma dos pais,

Durante o dia,

Durante a noite,

Longe do açoite

Dos vendavais!

E, para os Céus,

Solar de Deus,

Como subiam,

Frementes iam

As orações

Dos corações

Reconhecidos.

Num pobre leito,

Um pai se achava,

Entre gemidos,

Agonizava,

Quase esqueleto,

Num abandono,

E o meu Patrono

Lá ia vê-lo.

Cheio de amor,

Sereno e belo,

E parecia

Nosso Senhor,

Quando dizia

Ao irmão doente:

— Implora a Deus

Que está nos Céus

Azuis, serenos,

E Ele será

O teu Doutor,

Salvar-te-á

Desses terrenos

Desolamentos

De sofrimentos.

E a paz voltava

Ao pobre pai

Numa saúde

De juventude,

Como a que cai,

Virgem, louçã,

De uma manhã

De Abril em flor,

Todo esplendor.

E a mãe aflita,

Na dor imensa

De uma doença,

A alma bendita

Do meu Patrono

Jamais deixava

Uma visita

De proteção.

Fugia ao sono,

A noite inteira,

À cabeceira

Do triste leito,

É que em seu peito

O coração

Pulsava cheio

De adoração,

De grande anseio

Por quem no mundo,

Junto dos filhos,

Desses cadilhos

Do amor profundo,

Acalentava

A verde esperança

De, sem tardança,

Vê-los sorrindo,

Almas se abrindo

Como um trigal,

Numa festança

Original.

Quando pra um velho

Iam chamá-lo,

Ei-lo a cavalo,

Ou mesmo a pé.

Cheio de fé

Galgava as ruas,

Galgava as fontes,

Galgava as pontes,

Pisando as puas

Dos espinheiros,

E, sobranceiros,

Os seus olhares

Eram doçuras,

Eram frescuras

De nenúfares.

O rico e o pobre

Ele atendia,

E parecia

Que, da alma nobre,

No céu soltava

O som, o dobre

De um sino em prece

Quando entardece

Um dia em flor,

E vai no andor,

Em procissão,

Nossa Senhora

Da Conceição,

Que o povo adora

Com devoção.

Na hora que o sino

Tão cristalino,

Faz – Blim-de-Blim,

E a sua voz

Corre veloz

Por esse espaço

Que não tem fim.

Nas pandemias

Ele, clemente,

Salvava a gente,

Por essas ruas,

Tristes, sombrias,

Onde as charruas

Da morte andavam

E procuravam

Os que morriam,

Os que deixavam

Na terra, as flores

Dos seus amores,

Os seus desejos

No sol dos beijos.

Por esse tempo,

Junto do Rola

Alma querida

Que ainda consola

Os infelizes

Com as raízes

Da sua esmola:

Por esse tempo,

Quadra de outono,

O meu Patrono

Não se esquivava

De ouvir chamados

A qualquer hora,

Com mil cuidados

Tudo acalmava;

Num bom carinho

Enchia tudo

De asas de arminho,

E do veludo

Das suas penas

Transfiguradas

Em açucenas

Aljofaradas.

Por esse tempo,

Nesta cidade

Só existia

Calamidade:

Ruas veladas

E desprezadas:

Casas tristonhas

Como as cegonhas;

Com lampiões

Para os serões,

Quando soprava

O vento-sul,

E vinha a chuva

Se despencando,

Negra, lembrando

Véus de viúva.

Cidade exul,

Quase em ruína,

Onde à noitinha,

Em cada esquina

Sem lampião,

Eram queimados

Ou espalhados

Pás de alcatrão,

De sul a norte,

Para que a morte

Se afugentasse

Com seus horrores,

Com suas dores,

Com sua peste;

Fosse pra leste

Para o arcabouço

Desse mar-grosso;

E lá ficasse,

Lá se acabasse.

Metia medo

Esta cidade,

Mas não ficava

Em abandono,

Quando chamava

O meu Patrono

Pra socorrê-la.

No entanto nunca,

Quer aos ricaços,

Nos seus terraços

Iluminados;

Nem na espelunca

Aos pobrezinhos

Abandonados,

Abria os braços

O meu Patrono

Para pedir

O seu salário,

O pão do dia,

Tão necessário

A quem corria

Sem descansar,

Ora a chorar,

Ora a sorrir.

É que em sua alma

Santificada,

Na luz sagrada

Que o Amor espalma,

A Caridade

Surgia em brotos

De augustos lótus

De castidade.

Pra todos tinha

Sorriso amável,

Vinho inefável

Da melhor vinha;

Favo aromado

De mel de abelhas;

Leite apojado

A umas ovelhas;

Água na mata.

Numa cascata

Rumurejante,

Matando a sede

Ao viajante;

Trigo moído

Numa toalha

Pra quem trabalha

Quase vencido;

Mantos de pena

Para a nudez

Dos desvalidos;

Braços abertos

À viuvez,

E aos orfãozinhos;

Toques de avena

Para os perdidos

Pelos caminhos,

Pelos desertos,

Pelas montanhas,

Pelas divisas,

Bruscas, estranhas,

E pelas praias

Abandonadas,

Tristes, veladas,

Onde soluça

E se debruça

O mar — aquele

Que arrasta, impele

Às amarguras

Os corações

Das criaturas.

Pra todos tinha

Essas grandezas,

Essas belezas,

Essas alfaias

De adoração

Sincera, franca

Na mesa branca

Da comunhão.

Muitos velhinhos

Desta cidade,

Que têm saudade

Do meu Patrono,

Muitos virão

Em seu abono,

Muitos dirão

O que Ele foi

Na mocidade,

E na velhice,

Em que a meiguice

Do seu olhar,

Do seu falar,

Do seu tratar,

Do seu amar,

Do seu chorar,

Formava um misto

De crença e fé,

Talvez só visto,

Cheio de luz,

No Bom Jesus

De Nazaré.

Eu, pelo menos,

Nos meus terrenos

Desolamentos,

De sofrimentos,

Nunca o esqueci;

Porque foi Ele

Que um dia vi

Me dar alentos,

Me dar cuidados,

À cabeceira

De um pobre leito

Onde a doença

Me aniquilava.

E me chamava,

Profunda, intensa,

Aos Sete Palmos

Da sepultura.

Era eu menino

Muito franzino,

E os olhos almos

Do meu Patrono

Me deram sono;

E comecei,

Logo, a sonhar

Com coisas belas,

Com as estrelas,

Com o luar,

Com as manhãs,

Flavas, louçãs,

E os gaturamos

Nos verdes ramos

Dos laranjais

Tão virginais;

Com as gaiolas,

Com os bodoques

Dos rapazolas;

Com as caçadas

Às lindas rolas

Pelas estradas

Das nossas Ilhas,

As maravilhas

Deste Brasil

Que um céu de anil

De ouro pesponta,

E em cada um astro

Cor de alabastro

Tem uma conta,

Como um rosário

Extraordinário!

Por isso sinto

Grande alegria

De, no recinto

Desta suntuosa

Academia,

Onde sou eu

Lâmpada triste,

Falar sincero

Do meu Patrono,

E no que existe

Dentro de mim,

Porque venero,

De coração,

A tradição

Dessa alma justa,

Nobre e robusta,

Toda bondade,

A qual, no entanto,

Numa das ruas

Desta cidade,

Em velha casa,

Deixou as duas

Filhas queridas,

Estremecidas,

Quase sem brasa,

Quase sem pão,

Sem vinho e água,

Cheias de mágoa,

De quando em quando.

Mas... vão passando,

As pobrezinhas,

As coitadinhas,

Sob as centelhas,

Sob o clarão

Do céu bendito,

Céu infinito.

.....................................

São as ovelhas

De São João!

 

Ora, quem vive aqui

Ora, quem vive aqui, neste recanto, sente

O coração na mais pura felicidade.

Por isso vim morar bem junto desta gente,

Para sentir-lhe a vida, em plena liberdade.

O trabalho não mata; apenas é torrente

De água fresca. E os rosais do amor com virgindade

Florescidos estão, no orvalho reluzente...

Até nos velhos há rosais de mocidade.

Como são de encantar as vagas marulhosas

Do mar, na praia em curva, - e essas maravilhosas

Laranjeiras, e a flor da ramagem do ipê.

Humilde como sou, viverei satisfeito,

De calça arregaçada, e blusa aberta ao peito,

No aconchego feliz de um rancho de sapé.

 

Os meus filhos

Os meus filhos, o que são

Da vida na negra estrada?

— São as cordas da adorada,

Harpa do coração.

Os meus filhos, os meus filhos,

O que são essas criaturas?

— São os mais fortes cadilhos

Dos sonhos nas urdiduras.

O que fazem os seus olhos

Quando voltados para mim?

— Iluminam-te os abrolhos

De um mar revolto, sem fim.

Mas dos seus olhos tão lindos

A luz que encanto é que tem?

— Tem o encanto dos infindos

Céus de onde luar te vem.

E nessa luz que alegria

Zumbe, zumbe a cada instante?

— Zumbe a flora litania

Da Estrela d'Alva brilhante.

Quem me embriaga de vinhos

Quem de vinhos me embriaga?

— Os olhos dos teus filhinhos

Cuja luz mundos pressaga.

E o que me dão os seus lábios,

Esses seus lábios em flor?

— Dão-te os dúlcidos ressábios

Do mais divino licor.

E quando os beijo, o que sinto

Com tanta frescura d'água?

— Um licor três vezes tinto

Num sol sem mancha e sem mágoa

O que a alma me ilumina

Quando me vejo no escuro?

— O riso de luz divina

Que à sua boca anda seguro.

Ah! quem me apaga a tristeza

Na qual sinto a alma a chorar?

 

Os primeiros versos

Os versos que escrevi na jornada da infância

Ah! se eu os pudesse ler! Os primeiros que eu fiz

Tinham toda a frescura e a divina fragrância

Do pólen virginal da meiga flor-de-lis.

Por esse tempo a minha alma não tinha a ânsia

Que hoje tem. Nesse tempo eu era tão feliz

Como quem vai, ao sol, por uma verde estância

De floridos trigais, sem males na raiz.

Os versos que então fiz, por mim te foram lidos

Ó minha mãe querida; e por ti escondidos

Sob as asas dos teus cuidados amorosos...

E os levaste para esse céu impoluto,

Serão eles os que neste momento escuto,

Asas ruflando como uns pássaros saudosos?

 

Ossadas

Ei-la, a ossada do meu cavalo. Ei-la rolando

No campo, ao sol glorioso, e ao luar o mais belo.

Era um lindo animal, de aveludado pelo

Esse do qual estou os dotes recordando.

Comigo, em plena tarde, ele, de vez em quando

Passeava garboso. Era um encanto vê-lo

A marchar, a marchar por essa praia e pelo

Caminho do sertão. E às vezes, galopando,

Ei-lo a me conduzir à casa de Rosanalva

Sobre esteiras de giesta, e de cheirosa malva,

Onde eu ficava até o vir da madrugada.

Como foste feliz, meu cavalo tordilho!

Cobre-te a ossada branca o lindo céu, de um brilho,

E eu terei num buraco a minha pobre ossada...

 

Pai

Testemunha ocular, vira o filho brandindo

Uma adaga lavada em sangue, e em pleno chão

Um corpo escultural, exuberante, lindo,

De uma mulher que tinha em chaga o coração.

"Foge" (disse-lhe o pai). E a rude porta abrindo,

Na maior aventura e maior aflição,

Nas quais aos poucos ia atrozmente caindo,

Disse de novo ao filho: — "Anda, busca o sertão".

Outro dia, porém, comparece em juízo

O desolado pai, para dar o preciso

Testemunho do fato... Então frio, suspeito,

Sentiu passar-lhe na alma uma ideia sublime:

Se dissesse a verdade, era provar o crime...

E, com a mesma adaga, atravessou o peito.

 

Para as mães aflitas[19]

Não devemos chorar pelas crianças,

Por essas meigas ovelhinhas mansas,

Quando a morte as chamar,

Porque elas têm um Pastor para guiá-las,

E um lindo Aprisco Azul para ampará-las

Numa terra longínqua, onde o luar

É uma eterna árvore espiritual,

Sem outra igual.

E esse belo Pastor

Faz, da haste das açucenas,

As formosas avenas

De onde sai a rolar a voz do seu amor;

E faz, dos lírios agrestes,

Puros, imaculados, as suas vestes;

E os seus sapatos bordados,

Faz, dos tropos de luz, em massarocas

Nos céleres fusos das rocas

Tocadas pelas mãos da eterna Fiandeira

Do destino dos seus filhos amados

A qual vive sentada

No alto de uma torre

Talhada numa enorme turmalina;

Numa casa dourada,

De onde se avista o mar da Palestina

E a terra inteira.

E esse belo Pastor

Possui no olhar doçuras de água fresca

De dois lagos azuis marginados de opalas;

E quando fala, as suas falas

Transformam a ânsia dantesca

Em pequeninos grãos de areia

Tão pequeninos que, na vida, a gente

Nem os sente.

É Jesus, o Pastor que pastoreia,

Pelos campos do mundo, essas crianças,

Essas queridas ovelhinhas mansas

Que a morte leva no seu regaço

Para soltá-las no Espaço

Entre montanhas:

De nuvens estranhas;

E nos vales de alabastros,

Entre as curvas harmônicas dos astros,

E pelos caminhos abertos,

E para sempre cobertos,

De orvalho de pedraria,

E afagos dos olivais

Que dão sombra amorosa aos nossos ais,

Noite e dia,

Isso das pobres mães aflitas não querê-las

Mortas, quando elas descem das estrelas,

E para lá desejam ir,

Podem bem lhes trazer ao coração

(Esse pesado egoísmo)

Uma profunda perturbação:

Porta que se abre para um abismo.

Ora, a minha mãe, (a quem Deus já levou)

Muitas lágrimas tristes derramou

Por uma filhinha

De quem ela dizia:

Esta minha filhinha é uma meiga ovelhinha

Que o divino Pastor me deu para criar

Com o bendito azeite

Da minha mansidão;

E com o meu sangue transformado em leite,

No vale ebúrneo do meu coração;

E com a luz do luar,

Meiga e serena, do meu olhar;

E com o mel purificado

Do meu amor sagrado.

Mas, quando ela morreu, essa meiga ovelhinha,

Ao vê-la, minha mãe, cobriu-se de tristeza;

E daí não passava de uma hora sem chorá-la,

Pois perdera a certeza

De poder encontrá-la

O belo Pastor tocador de avenas

Feitas da haste das açucenas.

Uma feita, porém, em que mais soluçava

De saudade cruel, minha mãe assombrou-se

Diante de um olhar fulgentíssimo e doce...

É que então acabava

De ver uma ovelhinha a seus pés, debruçada,

Como a pedir um manto quente,

Que amparasse o seu frio inclemente,

E fizesse cessar toda a água corrente

Que lhe cobria o dorso, e o corpo inteiro;

Pois ela nem podia andar e nem saltar,

E havia se transviado, em meio de um ribeiro,

De onde saíra assim, assim toda molhada

E surda, e cega e muda, e tonta, e fatigada.

Na doçura, porém, do seu olhar tão santo

Havia

Uma cousa que dizia:

— Faze que cesse, mãe, o teu amargo pranto,

Do qual vivo encharcada!

 

Para o Tibúrcio de Freitas[20]

Pelos ares em fora, ao luar,

Abre-me a porta, que eu desejo entrar

E alegremente falar.

Venho de percorrer distâncias misteriosas

Pra te falar das rosas,

Dos lírios, das papoulas, das verbenas,

Dos cravos, das magnólias e açucenas,

Dos jasmins, bogaris e margaridas.

As campinas da terra estão floridas

De tal maneira que dá gosto vê-las.

Flores por toda parte, às mil,

Pois é chegado o lindo mês de abril

As flores? Quem pudesse compreendê-las

Nos mistérios dos seus inefáveis aromas?

As flores são redomas,

Ou ânforas sagradas,

Que ao clarão dos caminhos

Trazem guardadas

As almas brancas dos passarinhos.

Abre-me a porta que eu desejo entrar

E alegremente te contar

Tudo o que ouvi nos flóreos espinheiros:

— Fremem na ramaria os guizos dos coleiros.

No florido beiral das minhas telhas,

Ao surgir da manhã ou quando a tarde desce

A cantoria dos canários d'ouro,

Ao ouvi-la, me parece

Vinda da luz do sol.

Atende-me: As abelhas

Produzem tanto mel, tão doce e loiro,

Que é a fartura nas granjas...

E já estão cheirosas as laranjas!

Dos cristalinos riachos

Dos rios e dos mares,

Que à luz da lua nos parecem fachos,

Ouvirás as fanfarras...

Só não te falo, cheio de pesares,

Só não te falo, agora, das cigarras,

Porque no mês de Abril, pelas florestas,

(Estejam estas

Embora em festas)

Não há quem possa ouvi-las

Nem te falo dos meigos sabiás

Que emudeceram pelos matagais.

Abre-me a porta que eu desejo entrar

E tristemente te falar

De umas almas tranquilas

Tuas amigas

Trigo de luz e amor, de sagradas espigas...

Por elas fui encarregado

De te trazer por essa imensidade,

Uns lenços de saudade!

E o olhar do meu amigo, até então

Banhado

De um divino clarão,

Entristeceu-se como por encanto

Seus meigos olhos destilam pranto

Em vez de luz,

Como os benditos olhos de Jesus.

E a sua boca que ainda uma mágoa encerra

Falou-me assim, desta maneira:

— Eu passo a vida inteira

A recordar a terra...

E tu, meu grande irmão, quando voltares,

Saudades minhas levarás às flores,

Às aves, às abelhas e a essas águas

Dos riachos, dos rios e dos mares

Que eu, para ouvi-las,

Rompo seguidamente a ondulação dos ares...

E se existem na terra almas tranquilas,

Dirás a todas elas:

— Deixem a terra e subam pras estrelas!

(Coqueiros, 09/04/1919)

 

Perdoar...

Perdoar! Perdoar! Que sublime expressão!

Que palavra de amor! Que símbolo divino

No segredo onde está guardado o coração,

E no segredo azul desse céu cristalino!

Perdoar, perdoar, sem a menor paixão,

Sem olhos de saloio a medir o destino...

Perdoar ao que inveja, ao que esconde a traição,

E ao que busca matar como um vil assassino.

Perdoar, perdoar, será todo o dilema

Da tua alma louçã, ouro de excelsa gema,

Vinda para sofrer e se purificar...

E quando, em certo dia, ascenderes ao espaço,

Levarás teu irmão na curva do teu braço,

Para que ele possa ver como é bom perdoar.

 

Perto de ti

Venho de atravessar um deserto medonho,

De uma triste aridez de pedras e calor...

Atravessei-o sob as impressões de um sonho

De verdadeiro anseio e verdadeiro horror.

Este peito que ao teu olhar descubro e exponho.

Este peito no qual escondo um grande amor,

Invadido que foi por um luar tristonho

Recordando da morte o gélido palor.

Venho de ver na sombra a minha alma metida,

Quando ela ia, no entanto, em busca de outra vida...

Mas que sombra fatal eu nessa viagem vi!

E aonde terei, agora, o amparo desejado

Se não, ó minha flor, no teu seio aromado,

Se não no teu olhar, se não perto de ti?!

 

Plantei

Plantei, quando era moço, um broto de figueira

À beira de um caminho.

E hoje a figueira dá a qualquer alma viajeira

Uma sombra e um carinho.

E plantei, com cuidado, um galho de videira

Num terreiro mansinho;

A planta cresceu, tornou-se alvissareira

E no estio dá vinho.

E hei plantado também, durante a minha vida,

Uma série indefinida

De flores, desde o inverno ao rútilo verão.

E tudo tem florido, ao lindo sol aberto...

Só não floriu, é certo,

Nem florirá no campo, este meu coração.

 

Por quem rezas assim?

Por quem rezas assim? Perguntas-me, querida...

Quando voltados tenho os olhos ao Infinito.

— Rezo, querida,

Pela tua vida.

Eu sei que tens o coração aflito

Cansado de chorar.

Agora mesmo ao luar

Que sobre o mar

É todo prata diluída

Volto os olhos ao Azul e rezo humildemente.

E conheces a ermida

Resplandecente,

A mais bonita do lugar,

Onde a minha alma vai quase sempre rezar?

É ela a tua

Alma que agora está cheia da luz do luar

Deste Maio tão lindo,

Que em flores vai-se abrindo

Pelos longos caminhos

Perfumados

E orvalhados...

Tudo parece estar coberto de alvos linhos!

Que linda torre de marfim

Essa ermidinha tem! É o teu belo pescoço!

E eu que não sou moço

Nunca vi outra assim!...

 

Por que não hei de então...

Por que não hei de então voltar os olhos

Para esse azul esplêndido, tão puro,

Quando entre pedras, ásperos escolhos

Sinto o meu pobre coração seguro?

A minha mocidade, entre refolhos

Passou cantando; mas o meu futuro

Já não é a velhice? olhando abrolhos

Não viverei talvez um frio escuro?

Por isso os olhos a esse azul levanto

Porque só ele enxugará o pranto

Duma saudade que em meu peito existe.

De uma negra agudíssima saudade

Pelos dias de sol a mocidade

Que, ao ver-me triste, se apagou, tão triste!

 

Porto desejado[21]

Tudo neste lugar agreste é puro e santo,

De maneira que eu julgo achar, na própria terra

A verdadeira paz, que não conhece o pranto.

E não sabe o que é dor, a grande dor que aterra.

Toda a minha alma aberta, entre emoções, encerra

A luz, o aroma e o som, num mágico quebranto,

Desde as praias do mar às florestas da selva...

Mas choro, e anseio e gemo e soluço, no entanto.

É que não fujo à dor, antes busco senti-la.

Porque na dor eu vejo a luz meiga e tranquila

Do áureo olhar de um farol no azul imaculado.

E os barcos dos meus sonhos hão de seguir, com velas

Pandas... Hão de seguir, rumo às brancas estrelas

E terei noutro mar o porto desejado.

 

Portos de abrigo

Vejo uma vela ao mar, e mais outra aparece

E outra vela lá vai garbosamente, ao vento.

E como o sol desta tarde, em brasas as aquece!

E como todas vão, num lindo movimento!

E quando as vejo assim viajando, me parece

Encontrar em cada uma o azul do firmamento

Que a esperança lhes dá; e bom, as adormece

E elas vão-se a correr na eflúvia asa do vento.

E brame a lestada, ou corra o aceite da bonança.

As velas sobre o mar são todas esperança,

E buscam dos faróis todo o clarão amigo.

E assim buscam também, as nossas próprias ânsias,

Nos segredos da morte, as longínquas distâncias

Onde há faróis de amor, calmos portos de abrigo.

 

Por uma noite assim[22]

Por uma noite assim, de prata diluída

Num longe azul de hortênsia,

Tal a cor sacrossanta da Clemência

Que do Alto desce

Às angústias fatais da nossa vida

Quando desfiamos as contas do rosário

Extraordinário

Da nossa prece...

Por uma noite assim,

De uma maciez de fúlgido cetim

Eu me lembro de ti, eu me lembro dos teus

Braços enlaçados nos meus

E desses olhos límpidos, castanhos;

E desses seios túmidos, estranhos

Na cor e nos desejos;

E me lembro, também, da música dos beijos

Da tua boca unida à minha boca ardente

Dessa música de ouro

Em coro,

Na orvalhada corola

De uma rosa de maio,

De uma rosa onde se evola

Uma essência sutil, maravilhosa...

E a lua que ora surge, e que flutua,

Entre nuvens de pluma de algodão,

É a mesmíssima lua

Com o seu branco clarão,

Que nos ungia de óleos sacrossantos

A alma e o coração,

E nos fazia orar.

 

Praias da minha terra

Praias da minha terra, eu vos quero, e vos amo.

Desde o tempo da infância em flor, em que me via

Pelo nosso areal, onde a flava ardentia

Lembrava, de ouro e prata, um contínuo recamo.

E veio a mocidade, e em mil sonhos me inflamo

No vosso claro encanto , e na vossa poesia.

No mar que vos banhava eu contente corria,

E em vossas curvas tive a presteza de um gamo.

E agora, na velhice, em que triste me vejo,

Dai ao meu coração o amparo benfazejo,

E a verdadeira paz que me dê gozo e calma.

E na morte, quem sabe? ainda andarei na vossa

Água sagrada, um dia, acompanhando Nossa

Senhora, que será madrinha da minha alma.

 

Presidindo a festa

Haja o sutil e doce aroma das violetas

Nuns roixos de saudade, e o do sangue das rosas

Transfigurado em mel, e o das amplas colheitas

Dos parreirais de Chipre, em taças luminosas...

Haja o rumor febril das meigas borboletas

De antenas de ouro; e haja, a luz, das primorosas

Aves, a sinfonia, ou as cantigas inquietas,

E o contínuo ofegar de asas maravilhosas.

E haja, neste momento, aqui, uma alma branca,

Uma alma doce, uma alma linda, uma alma franca,

Revoando, ou parada, em êxtase profundo.

A alma de Cruz e Sousa, escapa da floresta

Dos astros, para ver e presidir a festa

Que, nesta terra em flor, faremos ao Edmundo.

 

Presságios

Erram pelo ar não sei que presságios de morte!

Que sombras de amargura e que pressentimento.

Por que soluça assim, desta maneira, o vento?

Que tristezas cruéis nas lufadas do Norte?

Não há quem dentro da alma um temor suporte,

Parece haver chegado o supremo momento

Do mais negro e augural e fundo desalento,

Transformando em pavor a benfazeja sorte.

Todos na praia estão: rapazes e crianças,

Mulheres e homens sãos, mas vazios de esperanças

Pois um barco no mar em fúria se sumia...

— Pobre do Bastião! As vagas o consomem!

Tanta gente na praia, e como morre um homem!

É o que uma pobre mãe, a chorar, repetia!

 

Primavera

Vão-se purpurando as bandas do Poente.

É primavera. Um ar olímpico, dormente,

Entra pelos pulmões, em ondas de perfume,

E rasga a atmosfera o trêmulo cardume

Das borboletas. Canta alegre a passarada

Em bandos pelo Azul. A luz sanguidourada

Do sol vibra sutil nos píncaros da serra!

Há um concerto de amor por sobre toda a terra.

Os homens do Trabalho, os bravos lavradores

Descansam, vendo o sol nos últimos fulgores.

A ventania vai por uma das escarpas

Rumorejando o som de uma surdina de harpas.

 

Purezas

Purezas há nos lírios, nos junquilhos,

Nas rosas brancas, e nas correntezas

Das fontes de cristal, de eternos brilhos;

Mananciais de límpidas purezas...

Purezas há nos verdurosos trilhos

Dos caminhos, dos vales, das veredas

E na canção das aves... Mas, nos filhos,

Nos nossos filhos ainda há mais purezas.

Basta ver-lhes um pai as mãos pequenas

Quando elas, postas para o céu, serenas

Rezam por nós saudosas litanias...

Rezam por nós à Mãe dos Pecadores,

Que desce ao mundo a recolher as dores

Que foram sonhos nas caveiras frias.

 

Quando...[23]

Quando te sentes loucamente aflito,

Pelas cruzes da dor atormentado,

Tremes, porque te lembras do Infinito

No qual te vês de todo abandonado.

Quando te julgas só, como um maldito,

Do olhar à luz santíssima vedado

Sentes no coração o inferno escrito,

E aos pés o inferno, e o inferno lado a lado...

Quando vertendo lágrimas, soluças

E ao chão, bem como às vagas te debruças

Nesse via-crucis da tortura,

Perdes até a crença, a fé e tudo,

Porque o Infinito te parece mudo

Às ânsias imortais das criaturas.

 

Quando cheguei

Logo assim que cheguei, disseste-me, sorrindo:

— Vem ver como está bela a nossa casa branca.

E fui. O roseiral ia aos poucos subindo

À sala de jantar, pela janela franca.

Mais adiante o leito. Era um ninho tão lindo!

Nenhuma ave talvez, nos trevos da barranca

Tivesse um ninho igual. E a tua alma me arranca

As dúvidas de fel, que me vinham cobrindo...

E descemos à praia, alegres e felizes,

Dessa manhã florida aos rútilos matizes,

De ouro flavo do sol entre as sedas e as franjas.

Muitas horas então ficamos nessa praia.

E quanto que te enchi o regaço da saia

De morangos febris e cheirosas laranjas!

 

Quando ela morreu

A música! Que bela, a música! Parece

Que seu eu fosse aprendê-la, um vibrante desejo

Em cada nota, em cada acorde, em cada harpejo,

A minha alma teria, entre eflúvios de prece.

A música me embala em sonhos, me adormece,

Enche o meu coração de um viver benfazejo...

Subo ao céu, na harmonia, e todo o céu me aquece;

E, na música, até os próprios astros vejo.

No entanto em seu olhar uns cânticos havia

De uma doce e suave e alada melodia

Que eu me punha a cismar horas, horas inteiras

Mais doces, mais sutis, mais cheios de poesia

Percebidos por mim, humildemente, quando,

Valésia em flor me mostrava algo me martirizando.

 

Que jornada tristíssima

Que jornada tristíssima de dias...

Sem sol; de um céu de chumbo vergastado

De chuva forte, e frio de invernias;

E mar de praias úmidas, irado...

As árvores se arrastam às urgias

Do vento sul, que brame no explanado.

E caem dos alterosos penedios

Nuvens da cor cinzenta do lamado.

Mas, no meio de tudo isso apareço

Cada vez mais feliz. É que me aqueço

Com o perfume que em meu lenço trago

Das suas mãos febris, e do seu peito,

E das carícias mornas do seu leito,

Sem os venenos tenebrosos de lago!...

 

Que mais queres do mundo?

Que mais queres do mundo? — Uma vida mais santa?

Mais cheia de doçura e de recolhimento?

Olha, Maria, como a vida aqui nos canta

Em derredor do olhar, e em nosso pensamento!...

Vemos ao derredor a luz que se alevanta

Como uma ave a espalmar todo esse firmamento.

E toda ela, Maria, o preceito transplanta

E dá aos corações a força, e o movimento...

E em nosso pensamento essa vida palpita,

E cresce à proporção do amor que nos agita

E produz em nós dois toda a glória que medra

Nos que sabem se amar, como nós nos amamos,

Seja ao abrigar do sol, do qual nos inflamamos

Ou, no mesmo destino, à sombra de uma pedra.

 

Quem se despede de casa

Quem se despede de casa

E avança por esse mar,

Do fundo da alma transvasa

Muito pranto, sem cessar,

Quem se despede de casa...

Vai de olhos tristes, molhados,

E a boca molhada em fel,

Como a boca dos soldados

Diante da guerra cruel

Vai de olhos tristes, molhados...

Vai, com vagarosos passos,

E olhar cravado no chão,

Sem poder erguer os braços,

Do céu ao largo clarão;

Vai, com vagarosos passos.

Vai, como um ébrio, subindo

Uma ladeira sem fim,

Ora aprumado, ou caindo

Dessa forma... assim... assim...

Vai, como um ébrio, subindo...

Bem sente o peito fechado

Às alegrias do sol,

E fica, às vezes, parado

Como o inseto no aranhol,

Bem sente o peito fechado.

Pela cabeça lhe passam,

Tristemente, coisas tais

Como as que bem se entrelaçam

Nas urdiduras dos ais,

Pela cabeça lhe passam.

A luz do dia, a mais linda,

A mais formosa, lhe dá

À alma a tristeza infinda

De quem na mortalha está...

A luz do dia, a mais linda.

E nos fulgores do Empíreo,

Nas estrelas do alto céu,

Em cada uma vê um círio;

E no azul, funéreo véu;

E nos fulgores do Empíreo...

Ao ver da lua o recorte

De sinistra foice nua,

Põe-se a recordar a morte,

E amedrontado recua,

Ao ver da lua o recorte.

Olha as vagas e os escolhos,

E em cada um a cova vê.

Mas fecha, depois, os olhos...

Ah! Certamente porque

Olha as vagas e os escolhos.

Recorda então, tristemente,

A terra que atrás ficou,

Onde ele, alegre e fremente,

A mocidade passou.

Recorda então, tristemente...

Ao deixar a sua herdade,

Se ouviu soluços de alguém,

Que merencória saudade

Dentro do peito ele tem,

Ao deixar a sua herdade!...

Mas quem tem fé e tem crença,

E bandeiras de esperança,

Vai, rompendo a terra imensa;

E sem perda nem tardança,

Um florido e amplo abrigo

Encontra, num porto amigo,

Onde há rosas derramadas

Muitas rosas derramadas,

E de onde há de então voltar

Feliz, pelo mesmo mar,

Com rosas no coração,

Ó Virgem da Conceição!

 

Quem sonha...[24]

Quem sonha desta forma, olhos semicerrados

Como as ogivas dum convento, à beira-mar,

Com certeza revive os seus dias passados,

E deixa-os docemente entre gozos passar...

E tu sonhas, assim. Passam por ti doirados

Dias de claro sol, e noites brancas de luar...

E os mares em bonança, ou então convulsionados,

Todos eles te dão um contínuo sonhar.

Mas o sonho melhor é esse que ora tua

Alma antiga revive, à luz meiga da lua,

Prendada de que, nas noites mais belas,

Ó velho pescador, rotineiro das ondas,

Muitas vezes passaste, em vigílias e rondas

Junto do peitoral de umas lindas janelas...

 

Que pelo lindo azul

Que pelo lindo azul desta tarde festiva

Suba a tua alma ao sol, e aí fique a cantar

Como canta na mata a meiga patativa

Cuja alma também voa, asas leves, sem par.

É que a tua alma foi, neste mundo, cativa

Das carícias do bem, do amor e do sonhar.

Por isso ela estará, toda alegre e emotiva

Nas paragens do céu, nesse eterno Solar.

E que de lá nos venha, ó meu saudoso amigo,

O que alcançarás, de vinho e pão de trigo,

Para nosso consolo e divino alimento.

Paire a tua alma, pois, aos pés do Deus clemente,

Festiva, emocional, sublime, resplandente

Como um clarão de amor, de paz e sentimento.

 

Recordar...

Tanto tempo passado, e não me sai da mente,

A vida do Manoel Gonçalves. Ainda tenho

Vivas recordações do seu modesto engenho

Sempre aberto e festivo ao coração da gente.

Velho, a sua cabeça era prata luzente;

Mas o seu corpo, forte, rijo como um lenho

Era neste lugar a sua casa... Venho

De novo recordar essa vida atraente.

De novo recordar o tempo que lá vai

Que lá vai já tão longe, em que o meu velho pai

Vinha, comigo, à noite, às labutas da pesca,

E esperava o compadre, o amigo dedicado,

Que chegasse do mar tranquilo, sossegado,

Para levar à casa uma tainha fresca.

 

Reencarnada

Tantas crianças agasalhadas

E ela tão rota, pelas estradas!

Cabelos de ouro, faces de arminho,

Numa esperteza de passarinho...

Olhos de opala com ametistas:

— Pedras preciosas, para conquistas...

Boca de rosa, cheia de aljofre;

De marfim caro custoso cofre.

Mãos tão cheirosas e tão pequenas

Como, dos campos, as açucenas.

Pés bem rosados, rosados como

As palmas virgens do cardamomo.

Um tipo lindo, todo atraente

Que atrai ao sonho a alma da gente.

No entanto vai pelas estradas,

Com roupas velhas, esfarrapadas.

Cobre-lhe os ombros um negro manto

Que, abandonado, se achava a um canto.

Pela tarrafa do seu vestido,

Vê-se-lhe o corpo emurchecido.

E a chuva rola, se precipita,

Pelo arvoredo que o vento agita,

Vergando-o à lama de barro e areia

Da qual a vila ficou bem cheia.

Mas vai confiante, nada descrente,

Essa alma casta, de luz albente.

É que do fundo dessa alma branca,

Uma esperança por certo arranca

Todas as ânsias ali metidas,

Todas as mágoas ali contidas.

Deixando em casa, sua avozinha

Morta de fome, a coitadinha,

Vai certamente, pedir esmola,

E pra trazê-la leva a sacola...

E tu, que a contemplas, da tua porta,

Vendo-lhe a sorte que a alma lhe corta;

Vendo-lhe o anseio tão soluçante,

Não te incomodas, nem, nesse instante,

Lanças-lhe às mãos que a chuva orvalha,

Lanças-lhe às mãos uma migalha

Do que é demais nas tuas granjas:

Do trigo ouro que tanto esbanjas,

Quando, quem sabe? num tempo ido,

Há vinte anos houvesse sido,

Essa criatura, que a estrada trilha,

E pede esmola, a tua filha;

Aquela filha dos teus cuidados

Que ornamentavas com mil brocados.

De ardentes beijos, frementes beijos,

Que a unção bendita dos teus desejos

Tinha de orná-la de diademas

De ricas prendas, custosas gemas,

E vê-la gloriosa, nessa riqueza,

Transfigurada numa princesa!

Mas, a pequena que a chuva orvalha,

Nem sabe disso! Nem a migalha

Que lhe negaste, sabe-o por certo.

Sabe-o, entretanto, o céu aberto,

Que lá de cima vê tudo quanto

No mundo é riso, ou triste pranto.

 

Reminiscências

Entre as reminiscências do caminho,

Em derredor de mim, eu sempre via

Uma luz com brandícias de carinho,

Clara e formosa, e cheia de alegria.

E um perfume de flor de rosmaninho

Perfume azul e verde que inebria,

Vinha de um vale branco como o linho

Corado ao sol de um turquesino dia.

E a luz, e esse perfume, e essa brancura,

Tudo isso eu via quando me lembrava

De que nos separava um campo vasto...

E tudo isso em saudades soluçava...

Era a luz dos teus olhos, ó criatura!

E, dos teus seios, o perfume casto.

 

Resignada

Meiga que estás, Maria! És por certo a ternura

Transfigurada numa imagem Atenal!

Fitas do verde mar a infinita planura

Que se cobre de branco e lembra um roseiral.

Ruge o vento do sul. É um leão que murmura

Fortes imprecações de imponderável mal

Mas continuas tu na mesma compostura

Sem lançares do mar um trágico sinal.

Busca da alma sorver um triste pensamento:

— Há de acalmar-se o mar, há de acalmar-se o vento...

O meu noivo é o melhor barqueiro do lugar.

Mas uma hora passou, e outras horas passaram.

Ai! Quantos corações junto ao dela choraram...

Só não chorou o vento e não chorou o mar!

 

Rio das mágoas

Vi, depois de aflitivas caminhadas,

Pelos desertos lúgubres da morte,

Junto de um grande rio, debruçadas

Todas as almas recordando a sorte...

Eram do mundo as almas, emigradas

Umas idas do sul, outras do norte,

E de outras tantas infernais estradas,

Das paixões no tantálico recorte...

E a todas perguntei o que faziam

Ali, assim... de bruços; e o que elas viam

Na transparência de cristal das águas...

E todas, todas, tristes, me disseram:

— Das almas que no mundo se perderam,

É este o Rio das profundas mágoas.

 

Rústico

Brame por sobre as árvores o vento,

Com rajadas fantásticas, estranhas;

E a chuva cai de um céu cor de cimento

Pelo lado de dentro das montanhas.

Do engenho no terreiro lamacento

Trazendo à cinta fúlgidos gadanhos,

Arruma o carro um negro corpulento,

Dos bois fugindo às conhecidas manhas...

Outro ceva-se à roda da almanjarra,

Rangendo aos solavancos do novilho,

Em cujo gacho a canga rude agarra...

Lindas moças de olências de junquilho,

E a boca alegre como uma cigarra

Fazem no forno lenços de polvilho.

 

Salve, Rainha!

Salve, Rainha! Mãe de Misericórdia!

Plena de paz, de Amor e de Concórdia!

Salve, Rainha! Mística doçura!

Esperança de toda criatura!

Salve, Rainha, dentre as mais Rainhas!

Açucena brotando dentre as vinhas!

A vós bradamos, desta horrível treva.

Nós, os degredados filhos de Eva.

Nós, os filhos do desgraçado Tédio,

Dessa doença que não tem remédio.

Nós, os tentados pelos Satanazes

que de todos os crimes são capazes.

A vós, Rainha, aflitos suspiramos,

suspiramos, gememos e choramos...

Choramos todos nesse escuro vale,

que outro não há que pelo Espaço o iguale.

Neste vale de lágrimas soturnas

como se rebentasse de outras furnas...

Neste vale de lágrimas tão cruas,

como se viessem de sinistras luas...

Eia, pois, ó Rainha, advogada

da nossa vida lôbrega isolada...

Os vossos olhos misericordiosos

que se abram sobre os nossos, lacrimosos.

A nós volvei os vossos meigos olhos:

Claros farois nos míseros escolhos.

A nós volvei três fontes de piedade;

tais fontes de doçura e claridade.

A nós volvei tais fontes cristalinas,

de aromas esquisitos e divinos.

E depois nos mostrai neste desterro

de tão longos desertos feitos de erro;

E nos mostrai, depois de tudo isto,

ao vosso amado Filho, Jesus Cristo

A esse do nosso Amor excelso Fruto,

meigo, casto, suavíssimo, impoluto.

A esse que o vosso seio, em lírios, trouxe,

Ó clemente! ó piedosa! ó sempre doce!

Sempre doce e ideal! Virgem Maria!

Origem da sagrada luz do dia.

Rogai por nós, ó Santa Mãe de Deus!

Rogai a esse que governa os Céus!

 

São Vicente de Paulo

(A Bento Cabral)

A alma de Vicente é mais fresca que as fontes

Que dão água a quem vai com sede pela estrada,

Depois de haver corrido a aspereza dos montes,

Depois de haver vencido uma longa jornada!

E de seus olhos bons, espirituais, insontes,

Corre um vinho melhor que o da uva arrancada

Aos pâmpanos do sol no azul dos horizontes,

Quando Ceres se acorda à luz da madrugada.

E Vicente percorre os campos e as cidades,

De coração flamante a todas as bondades

Chamando ao seu amor as crianças mendigas.

E as crianças, Senhor, como gostam de vê-lo!

Ah! mesmo São Vicente é tão meigo e tão belo!

E está porque ele tem tantas almas amigas!...

 

Saudade

Vibrando o meu olhar fundo, magoado

Por sobre a vastidão da nossa vida,

Vejo tão longe o nosso azul passado,

Urna de amor nas ilusões partidas.

E como o céu é límpido e estrelado,

Quanta alegria ouvi pela avenida

Prismática do Tempo, e que comprida

Noite em meu peito, ninho abandonado!

Ah! saudade! és o eterno silforama

Dos tempos idos, tu és gelo e és chama

Para quem deixa a vida para trás.

Sim! a recordação fere... e consola,

Porque traz sempre uma pequena esmola

Da luz que foi e que não volta mais!

 

Saudoso

Saudoso, sem te ver, e de novo gozar

Os aromas sutis dos teus seios morenos,

E ouvir, neste casebre, aqui, à beira mar,

Da tua boca fresca os suavíssimos trenos.

Nas léguas de distância, eu me punha a cismar

No entanto desta praia, e nos dias amenos

Que passei, minha prenda, à luz do teu olhar,

Tão bela como a luz dos pássaros serenos.

E o teu casebre é o mesmo: alvo ninho aromado

Com floridos rosais na curva do telhado,

E canários trinando à sombra do arvoredo.

Que lindo o teu casebre, onde nos encontramos

Pela primeira vez e, felizes, sonhamos

Junto do altar em flor o primeiro segredo!...

 

Seios

Tremem-lhe os seios, dessa forma. Ambos

Os seus morenos e cheirosos seios.

Da cor morena dos morenos jambos,

Tremem, tremem nos mais fortes anseios.

Não lhes faço motivos ditirambos

Vagas canções, em mórbidos enleios.

Antes lhes dou, embora a passos bambos,

Dos olhos os mais santos galanteios.

Prefiro vê-los mais, do que senti-los,

Para que eles fiquem doces e tranquilos,

Para que eles fiquem nessa mansidão,

De forma tal que eu possa no da esquerda,

Das ilusões na resoluta perda,

Pelos meus ais ouvir bater um coração.

 

Seios II

Aveludados Seios de Jacinto,

Castos no sangue e na arvorai brancura,

De uma epiderme empenujada e pura,

Sob um leve cabelo, de ouro tinto...

Seios formosos, gêmeos nos quais sinto

Perfume de baunilha ao sol madura,

Seios que dão-me a virginal doçura

De um raríssimo vinho de Corinto.

Seios de opala, com botões de rosa

Quero-vos sobre a minha boca ardente,

Como frutos de polpa cetinosa...

Seios febris, de sangue novo e quente,

De uma pureza branca e religiosa

De Eucaristia num Altar do Oriente.

 

Seja

Seja, Maria, a única que as minhas

Ânsias rubras apague, nesta vida.

Seja a tua alma branca, dentre as vinhas

Do amor, a luz bendita, a luz querida...

Tua alma alegre como as andorinhas

Por uma tarde de rosais florida,

Da minha afaste as lágrimas daninhas

Vendo-as eu muito longe, em despedida...

Seja a tua alma a flâmula sagrada

Da paz eterna, pelo Amor sonhada,

Continuamente em festa, alvissareira.

Seja a formosa e encantadora pomba

Que sobre as águas de um dilúvio tomba

Trazendo ao bico um ramo de oliveira.

 

Sempre a pensar em ti

Sempre a pensar em ti, sempre voltado,

Para onde estás, para onde vivo, creio,

Sentir, mesmo de longe, o perfumado

Calor do vale do teu róseo seio...

Sempre a pensar em ti, horas, parado

Fico, como se visse, num anseio,

O teu formoso olhar, sempre lembrado,

Que outrora vinha me bater em cheio...

E se me deito para ter descanso,

Só, minha flor, alegremente o alcanço,

Se te chamo e me escutas, e apareces.

Como ainda ontem, perto do meu pobre leito,

E as mãos colocas no meu triste peito,

Para ouvir, por certo, as minhas preces.

 

Sempre em caleidoscópio

Sempre em caleidoscópio as manhãs outoniças

Em que eu te via, amor, no eterno murmurejo

Das árvores em flor, onde as meigas cuícas

Chilravam como tu, num álacre solfejo!

De Missal de marfim, ias sorrindo às missas.

E expunhas a gemer o teu maior desejo,

Porque, pelos caminhos, em continuadas liças

Eu vivia contigo, e te furtava um beijo.

Depois... naquela tarde! a canoa singrava

As ondas, nos levando. Eu, à popa, remava,

Que tarde! O céu cobria as montanhas, de franjas

De ouro e prata, e cristais e topázios vermelhos...

E chegando à Ilha, ouvi os teus conselhos,

Fomos ambos chupar morangos e laranjas.

 

Sempre revejo uma reminiscência

Sempre revejo uma reminiscência

Do que fui noutros séculos passados,

Em que a minha tristíssima existência

Era coroada de meus pecados.

Nos segredos do espelho da consciência,

Revejo os dias trágicos, contados

Hoje, a força de grande penitência,

E os trago sempre e sempre, desolados...

Revejo a tudo, tudo, num momento,

Se os olhos fecho, e ouvir o pensamento,

Às moradas por onde eu transitava.

Mas quando os olhos abro, que alegria!

Vejo em teus olhos límpidos, Maria,

A mesma luz que sempre me amparava.

 

Se por lá, no azul...

Se por lá, no Azul, há roseirais florindo

(Mas florindo auroras de um esplendor infindo)

Se por lá, no Azul, há fulgurosos mares

(Mas de águas tão claras como os nenúfares)

Se por lá, no Azul, há vaporosas garças

(Mas muito mais brancas, pelos sois esparsas)

Se os sonhos no Azul, nas altas paragens,

Vestem-se de argênteas, pronubas roupagens.

Se esse mundo ao qual foste chamada

Com efeito lembra uma florida estrada...

E se nesse Azul muitos mundos giram,

E se os teus olhos todos esses mundos viram.

Se não tem misérias, se não tem tormentos,

Revoltosos como os funerários ventos.

Se não tem convulsas lágrimas de dores,

Rebentando chagas de violáceas cores.

Se não tem soluços lá por cima, em todo

Esse campo aberto sobre o eterno lodo...

Se não há gemidos de hospitais de sangue,

Seja a lua um guizo ou seja a lua langue.

Se por esse campo olímpico e ditoso

Tudo, enfim, é paz de florescente gozo...

Conta-me, portanto, minha Mãe saudosa,

Conta-me o mistério dessa paz ditosa.

 

Simbólico

O perfume suavíssimo que eu sinto

Neste lugar por onde andei outrora

Não vem dos seios virginais de Flora,

Coroada de parras e jacinto.

Nem vem das vinhas claras de Corinto

Dos vinhos claros como a luz sonora;

Nem do mel das abelhas, quando a aurora

De cores vivas traz o espaço tinto...

Vem, no entanto, de um corpo de alabastro,

Encarnação simbólica de um astro.

Vindo através de um sonho, entre clarões...

Vem desse corpo transparente e alado,

Que no aroma ficou perpetuado,

Para eu gozá-lo nas recordações.

 

Smyrna

Eu não te vi nascer, porque bem longe andava,

Muitas léguas de mar e de vales, distante...

Pois o Destino assim de nós nos separava

E o Destino no mundo é mais que um Rei Triunfante.

Era ganhar o pão, que me fora negado

Na minha própria terra, eu tua Mãe deixava,

Junto dos teus irmãos soluçando a seu lado

Onde nunca florira a mais pobre seara!...

E essas léguas de mar e de vales medonhos

Passei-as eu sentindo a mais viva saudade!

Tudo por água abaixo — as asas dos meus sonhos,

As rimas do meu Verso, a minha mocidade!

Tudo por água abaixo, em plena correnteza,

Num desespero tal, que lembrava uma enchente!

Quanta dor, quanta dor, e que augural tristeza

Pelo meu coração já de todo descrente!

Mas um dia chegou a notícia de haveres

Nascido, minha ovelha; e então como um Rei Mago,

Parti a te encontrar, nos últimos prazeres

Do meu doce, aromal e paternal afago!..

E essas léguas descendo aflito, agoniado,

Por não poder voar nem sequer um momento

Vim te encontrar então sobre um frio tablado

Movido pela voz nostálgica do vento!...

E aí tinhas nascido, ó minha pobrezinha,

Como nasce no aprisco a altas horas da noite,

A mais casta ovelhinha, a mais casta ovelhinha,

Sem o olhar do pastor, que o seu balido acoite.

Mas não houve mais alegria de lenda

Sonhada à luz da lua castíssima e dolente!

E embora pobre assim, por sobre a nossa tenda

Parecia cantar a Estrela do Oriente.

Ah! ninguém avalia o que é uma chegada

Depois da gente andar por meses e por anos

Pela estrada da ausência a fatigante estrada

Onde na própria luz se encontra desenganos.

Ah! ninguém avalia! E quando a gente abraça

Os filhos e a mulher, que consolo, me Deus!

Por certo tal ventura. Ah! por certo tal graça

De bandeira de proa só se encontra nos Céus!

 

Sofro

Sofro, porém a culpa é unicamente minha,

Minha só, minha só, certo de mais ninguém.

Eu não te quis sentir o afago de madrinha,

Virgem da Conceição, ó meu querido bem.

Quando eu era rapaz, em tua ermidazinha,

Que desde esse passado um meigo encanto tem,

Fugia loucamente ao som da ladainha;

E nunca quis dizer perto de ti – Amém.

As tuas lindas mãos eram lírios em palma

Abertos sobre o céu nevoento da minha alma...

E nunca te escutei, sob o teu doce olhar.

Se tivesse escutado o que então me dizias,

Hoje, ó minha madrinha, eu só teria os dias

Tão belos como está nesse momento o mar!

 

Sonetilhos

Lá vai passando na estrada

A rosa das raparigas.

Bela de ancas, requebrada

Sem dar importância às figas.

Goza da tarde dourada

Como do trigo as espigas.

Toda a luz alvoroçada

Que se desfaz em cantigas.

Parece que vai contente

Porque fala a toda gente

Que encontra, cheia de calma.

Entretanto, quem pudesse

Saber a mágoa que desce

Nos segredos da sua alma.

 

Soneto[25]

Parto! Não chores mais. Não te consumas

como a formosa Catarina, quando

partiu-lhe o amante, num batel, sulcando

do verde mar as águas e as espumas.

Essas tranças que tu ao colo arrumas

não quero ver em prantos se banhando,

nem teu lenço alvadio me acenando

longos adeuses, através das brumas.

De que te serve, minha flor, chorares

se não te ouvem as vagas desses mares

que vejo encheres de febris desvelos?

Chorar, eu! porque além de ti, rainha,

deixo duas irmãs e uma velhinha

que ainda ontem beijou os meus cabelos.

 

Sonhando

Com os braços em cruz sobre o peito cansado

Das vigílias do mar, que dão tanta ansiedade,

Ei-lo do batelão no paneiro deitado,

Da manhã de Setembro à flava claridade.

Dorme. É que à noite andara em pleno mar cavado,

A remar, a remar por essa imensidade.

Então por isso, agora, ei-lo de olhar parado;

Dorme na unção da luz, e sonha, na verdade.

Vê, na estrada do sonho, a mulher que o deseja,

A mulher que o procura, e loucamente o beija,

E lhe dá, (do carinho entre os febris anseios)

Da outra banda do mar, ao encontro desse sonho,

Toda a consolação do seu amor risonho,

Que brotou, como flor, no vale dos seus seios!

 

Só que esteja deitado

Só que esteja, deitado, e me ponho a cismar

No seu corpo de arminho, inefável, fluente,

Ei-lo perto de mim, ei-lo de mim tão rente

Que lhe sinto o calor capaz de me abafar...

Mas, entretanto, está a que noites ausente!

Longe, longe de mim, sem poder me abraçar...

E eu lhe quero, febril, louco, a boca beijar,

E beijar o seu seio, alucinadamente!

Não importam, porém, essas noites de ausência,

Pois no quarto onde durmo, a delicada essência

Das suas mãos gentis, se transforma, em verdade,

Num corpo de mulher, para sempre lembrado,

E que vive, e que sonha, e não sai do meu lado,

Para me ouvir rezar nas contas da saudade.

 

Sorris?[26]

Sorris, donzela? Cuidado!

Meu amor é malfadado,

Que negra sina o manchou.

Laivo da morte descrida

Em gozo infame perdida

Impressa na alma deixou.

Sorris, donzela? Teu seio

Arqueja de devaneio...

Teus olhos têm tanto amor!

E em segredo te murmura

Doces tendas de ventura

Da lua o misto palor!...

Pois vem, gozemos unidos

Nos prazeres esquecidos

Prazeres do coração.

Com teus lábios junto aos meus,

Quantas delícias, meu Deus,

Mesmo na própria ilusão!

Pudera no mundo insano

Em negro abismo de engano,

Ligeira a vida passar.

E no mar de vagas mansas,

Beijando-te as loiras tranças,

Veloz o barco soltar.

Mas ai, fujamos que a vida

Além vai feia, dormida,

Assim no mundo a correr.

Ao vago aroma das flores

Gozemos nuvens de amores

Das matas no florescer

Paras, donzela? Cansaste?

Na terra a alma enterraste?

Queres o mar a gemer.

Beijando a praia alvacenta,

E a vaga que volve lenta

E vem na praia morrer?

E é tão lindo o sol nas águas

Deixando da rocha as fráguas

E a branca espuma do mar!

Deixemos nele a beleza

À mercê da correnteza

O livre barco vagar.

Amemos. Que importa a morte?

Do amor ao doce transporte

A morte sorri também.

Deixa que eu durma em teu seio,

Pois nesse suave enleio

Como se dorme tão bem!

Que tens? Receias a vaga?

Quiseras voltar à fraga?

Agora é tarde, talvez!

O céu bramindo escurece,

O negro mar se enfurece...

Mas tens meu peito, não vês?

Não temas, aperta os braços,

Sem fadigas, sem cansaços,

E vamos, ó minha flor,

Nos vascos da tempestade

Procurar a eternidade

Das ânsias do nosso amor.

Sorris? Teus olhos molhados,

De desejos inundados,

Têm o frescor das cascatas.

A tua boca enrubesce,

Teu colo arqueja, estremece

Como a juriti das matas.

Sorris? Se queres amores

Perfumados como as flores

À ermida leva o teu véu

Teu seio queima, donzela

E a tua boca tão bela

É toda o maná do céu.

Amemos, porque na vida

Para o mundo indefinida,

Ninguém passará, no entanto,

Sem amor seja a quem for,

Chore embora amargo pranto...

Pois a vida é o próprio amor!

 

Subia do seu olhar

Subia do seu olhar, na última hora

E pela mão da morte, espaço em fora,

Entrou no Empíreo pela Estrada Flórea

Entrou coroada nos mistais da glória.

Ah! neste mundo a tua irmã querida

Tinha das santas misteriosa vida.

Se olhava a gente o astro dos seus olhos

Eram faróis na noite dos escolhos,

Do deserto da vida, abandonado,

Dava à sede o alívio desejado.

Eram fontes suavíssimas, tranquilas

E Estrelas d'Alva eram-lhe as pupilas.

Dois Íris de Aliança, os olhos dela

Em cada um tinha a Dor uma capela.

Uma capela em cujo altar se via

Uma Senhora de Lourdes, noite e dia.

E a sua boca de coral marinho

Tinha as doçuras do mais rico vinho.

Quando falava aos simples, aos modestos,

Eram gabados os seus nobres gestos.

Quando falava às pequeninas aves

Eram só vibrações de harpas, suaves.

E as aves todas, carinhosas, boas

Como amiguinhas lhe cantavam loas.

Mesmo as tristonhas, as prisioneiras

Que não viviam pelas laranjeiras,

Nem na esmeralda florida dos montes,

Ouvindo o doce marulhar das fontes.

As aves adoravam-na, tão meigas,

Como se a tua irmã junto das veigas,

De asas abertas a cantar andasse

E os mesmos sonhos virginais sonhasse.

Iguais às mãos das santas milagrosas

Eram-lhe as suas, de jasmins e rosas.

Fusos ebúrneos os seus dedos finos

Fiavam sonhos tênues cristalinos.

E foi num dia que subiu sua alma

Cheia de paz, de mansidão, de calma.

Subiu à torre límpida dos astros

Feita dos mais sublimes alabastros...

 

Subi cantando

Subi cantando, e ainda aí me vejo,

Mais leve do que a pluma de uma garça

E tudo o que por entre sonho almejo

É mais leve do que a pluma esparsa...

E deu-me, o Deus das siderais alturas,

O momento feliz de eu nessa Casa,

Encontrar (oh! ventura das venturas!)

Um Anjo a abrir-me o amaino da sua asa.

Eu, que do mundo vinha em forma bruta,

Ainda cheia do pó da cova fria,

Senti-me como a luz, branca e impoluta

Branca e impoluta como a luz do dia.

Encontrei-me na porta de um palácio

A olhar um parreiral repleto de uvas...

Cesto — um belo e maternal garopilácio

Regado de ouro transformado em chuvas.

Bem perto estava um roseiral florindo

Rosas da cor das ágatas preciosas

Florindo auroras de esplendor infindo

Que, como sabes, são do Espaço as rosas.

E em roda do Palácio onde eu estava

Tudo era branco como os nenúfares!

E tudo em ondas de prata rebentava:

Tudo isso mais não era do que mares.

E por cima dos mares que alvoroço

De alvissareiras e adoradas aves

De sangue moço, eternamente moço,

Todas cantando músicas suaves.

E que sonhos que vi, meu filho! Ao vê-los,

Por essas meigas, incógnitas paragens,

Tive pesar dos Teus — uns pesadelos

Sem as argênteas, pronubas roupagens.

A Casa, uma das Casas do Universo,

Para onde vim depois de tantas dores,

É mais bela que a rima do teu Verso,

É mais bela do que todas as flores.

Ó caridade nesse mundo! Nunca

O que viste no teu verás bem como

Nós vemos nesse mundo! Atra espelunca

O teu, somente o teu, Reino de Mono.

De onde me vejo com prazer e calma,

Vejo milhões de fúlgidas esferas!

 

Subindo a estrada

Dizem que a linda flor das moças da Prainha

Morreu muito feliz. Com efeito saiu

À hora em que do mar a Estrela d'Alva vinha

Surgindo como um lírio. E quando amanheceu,

Todo esse povo bom, pressuroso já tinha

Corrido à casa dela, e, chorando, lhe deu

As expressões da dor que as almas espezinha,

E para o seu caixão muitas rosas colheu.

E agora, vejam só como, junto às gaivotas,

Uma garça aparece e as asas bate e espalma,

Procurando, por certo, outras plagas ignotas...

Ao divino esplendor da tarde azul e calma,

O enterro sobe a estrada... E junto das gaivotas,

A garça simboliza a brancura de uma alma.

 

Supremo conforto

O estranho Ser que às vezes me aparece,

E crocita-me à porta, solitário,

De olhar sinistro, em fogo, temerário...

Ah! esse estranho Ser das trevas desce!...

Tremendo então recorro à paz na prece,

A esse eterno conforto extraordinário,

E, como Jesus Cristo no Calvário,

Peço a meu Pai, que está no Céu, a messe,

Toda a messe do Amor, do trigo louro,

Que nas granjas azuis os moinhos

Do sol trituram, para o real conforto

Dos corações assim atormentados,

Dos corações que passam fatigados,

Pelas ondas malditas do Mar Morto.

 

Tarde de roseirais floridos

Tarde de roseirais floridos nas estradas

E nas linhas do ocaso, o sol, em chamas de ouro

Faz lembrar um besouro, um enorme besouro

Na corola de um lírio. As águas azuladas

Do mar tremem na praia, onde há canções em coro

De almas livres no amor, para sempre abençoadas,

E há fontes a cantar sob árvores copadas,

E campos sobre os quais flama o trigo louro.

Em tudo há sol, em tudo há viço, em tudo há vida

Nessa linda manhã de Abril toda florida

Desde a poeira do chão ao cerro firmamento.

Entretanto, ao correr das festivas manhãs

As andorinhas vão-se — almas tristes, de irmãs

Fugindo à escuridão das celas de um convento.

 

Tarde espiritual

Para bem compreender os teus fulgores,

Rosa de Maio, esqueço as grandes dores.

Esqueço tudo, no íngreme caminho

Das ilusões, e fico então sozinho

Calmo, tranquilo, sossegado fico,

E a alma nos teus encantos santifico.

Os olhos ergo às regiões celestes

Onde de pedraria o corpo vestes.

E fico a contemplar os teus vestidos

Que ricos são, de gemas guarnecidos...

Agora, vejo rosas e junquilhos

Transfigurados em formosos brilhos.

Vejo hortênsias, as mais imaculadas,

Como que pelos espaços derramadas.

Violetas vejo; e vejo margaridas

E jacintos de pétalas luzidas.

Alastram-se por tudo os heliantos;

Desde as alturas aos mais rasos cantos.

Das serras pelos múltiplos extremos

Erram, florindo, enormes crisantemos.

Folhas de hera, ciclópicas, estranhas,

Caem sobre a linha brusca das montanhas.

Flores de ipê. Da cor do ouro maciço,

Rolam nos ares, no esplendor do viço.

E do cipó de São João o sangue

Lateja em veias verdes, junto ao mangue.

Mal-me-queres rosados, e outros roxos,

Formam tapetes de veludo frouxos.

E vão-se pelo espaço afora os goivos,

Magoados como os olhos de alguns noivos.

Lindos botões-de-prata, e botões-de-ouro,

Parecem despertar o eterno coro

Das festivas e rutilas abelhas

Que zunem nas corolas e nas telhas...

E em tudo, nesta misteriosa tarde,

O sol bizarro em flamâncias arde.

Dele descem topázios e berilos

Aos rios claros, límpidos, tranquilos...

Cobre-se o mar de manto de esmeraldas;

E o alto da serra é azul, e das suas fraldas

Ao campo desce um manto de veludo

De turmalinas, abrangendo tudo...

Descem às linhas curvas dos penhascos

Enormes bambinelas de damascos.

E ao fundo, ao fundo, muito longe, ao fundo

Parece abrir-se a Porta de outro mundo...

E a Porta é toda pérola incrustada!

Que linda Porta! Que bonita Entrada!

II

Ó tarde! deixa que por ela eu entre

E de joelhos, humilde, me concentre.

Que eu por essa Porta entre cantando,

Esquecido do mundo miserando.

Que eu vá por ela adentro, satisfeito,

Sem me lembrar das ânsias do meu peito.

Sem me lembrar que anseio, que padeço,

Quando da fé o trigo louro esqueço.

Sem me lembrar dos turbilhões das mágoas

Que sobem como do dilúvio as águas.

Sem me lembrar também da atra miséria

Que há de ficar na terra deletéria.

Que eu vá por ela adentro, intemerato,

Sem me lembrar do triste mundo ingrato.

Pois que, para se entrar num templo augusto,

Não se deve curvar a fronte ao susto.

 

Tarde, o dia declina

Tarde, o dia declina. O dia morre.

E as paredes do ocaso,

Com as incrustações simbólicas de um vaso

Do tempo de Sabá, são todas feitas de ouro,

E um vinho cai, um vinho desce, um vinho escorre

Um vinho louro,

Que macula o coração e a alma

Mas eu não tenho calma.

Neste momento as brancas açucenas,

E a flor dos pessegueiros,

À sombra dos pinheiros

Deixam, deixam cair das corolas serenas,

Também um vinho louro,

Porque do oceano de ouro

A luz os cobre, enlourecendo tudo...

E me embebeda o coração e a alma.

Mas eu não tenho calma.

E cai por mim o manto de veludo

De uma aragem que vem do campo

Morro de esmeralda,

Rodeado de escarpas,

Em cuja falda

Os delicados sons de violino e harpas

Dos riachos me embalam...

E nessa aragem lhes vem o perfume dos vinhos.

 

Tercetos

Amor, por onde andavas quando um dia

Te lembraste de mim? Por onde andavas,

Triste, quem sabe? ou cheia de alegria?

E o que no espaço intérmino buscavas,

Tu, minha amada, ó meu contentamento?!

Era somente em mim que então pensavas?

Vejo lá longe, em pleno firmamento,

Uma estrela luzir, maravilhosa:

Auro clarão que não se apaga ao vento.

Vejo lá longe, branca e luminosa,

Principalmente quando estende a aurora

Por sobre a terra os mantos cor de rosa...

Vejo lá longe, recordando Flora

Entre jasmins abertos e açucenas.

E como eu fico tão feliz nessa hora:

Dessa Estrela desceste, entre as serenas

Ondulações da luz? Dela vieste

Cheia de graça, ou de profundas penas?

Dessa Estrela da abóbada celeste

É que baixaste? Dize lá, querida,

Tu que nos laços do amor prender soubeste

À tua a minha amargurada vida,

Desta vida no aspérrimo caminho,

Nesta estrada sombria, indefinida?

De onde desceste, ó meigo passarinho?

Pois se o não foras, como poderias

Descer da paina de tão alto ninho?

Desse ninho tecido em pedrarias,

Entre cristais, safiras e berilos,

Entre rubis, sardônias e ardentias?

Olhas-me?! Que tens então nesses tranquilos

Olhares?! Que piedade! que ternura!

Vejo-os selados, vejo-os em sigilos...

Que dor ocultas? Fere-te a amargura

Que é dada ao coração de quem padece?

Fala, responde, ó mística criatura.

Ó luz bendita! ó luz em que se aquece

O meu tristonho coração aflito.

Responde à minha dolorosa prece.

Responde às minhas ânsias, ao meu grito;

Responde aos meus tormentos penetrantes...

De que mundo vieste, do infinito?

E eu não me lembro de te ver no espaço!

Nunca te vi, nunca te vi, por certo;

Nunca te dei o amaino do meu braço.

Nunca te vi de longe nem de perto;

Nunca senti o olor dos teus cabelos;

Nunca senti teu róseo peito aberto...

E nunca vi, desses teus olhos belos

O divino luar, quer nos desejos,

Quer sobre os bruscos, rudes pesadelos.

Nunca vi tua boca; nem teus beijos

Pelos meus beijos límpidos passaram

Como arrulhos de pombos benfazejos.

Nem as mãos te senti. Nunca afagaram

As tuas mãos as minhas mãos trementes;

Em mim jamais as tuas mãos pousaram.

Nunca senti os pombos inocentes

Do róseo vale do teu seio morno

Adormecido em prados florescentes.

E nunca vi o virginal contorno

Da tua espádua ou dos teus pés franzinos;

E nunca andei da tua graça em torno...

Nem nunca ouvi dessa garganta os trinos

A fala musical de uma alma branca

Como a alma dos pássaros divinos.

Nunca, nunca te vi, na vida pouca

Do espaço, nem me lembro se existi

Contigo, noutro mundo, ó alma branca!

Nunca! nunca te vi! nunca te vi!

 

Teve uns cabelos tão sedosos...

Teve uns cabelos tão sedosos,

Leves, tão lindos e cheirosos,

Como ninguém, neste lugar

Hoje, porém desses cabelos

Caíram todos os novelos;

E vive o crânio a se mostrar.

Na sua boca (Que linda boca!)

A voz tão clara tornou-se rouca,

De uma maneira de arranvel.

E aos lábios graves então aflui

Uma violeta que se dilui

Em gotas negras, de vivo fel.

Nos belos olhos expressivos

De sentimentos emotivos,

De tantas graças e primor,

Nos belos olhos agora existe

Tudo que é triste, tudo que é triste,

E cheios andam de pavor.

De sobrancelhas arqueadas

Lembrando as asas ondeadas

Mas pequeninas de um faisão,

Já não se encontra um fio, ao menos;

Caíram ambas aos serenos

De algum cobrilho de serão.

Suas orelhas já são roxas

Moles, descidas e tão frouxas

Caem-lhe, agora, descomunais,

Sobre as linhas do pescoço

Disforme, inchado, disforme grosso

Como as raízes dos batatais.

Faces, assim tuberculosas,

Ei-las cheias de negras rosas,

Em quantidade que não tem fim.

E os braços dela, os braços dela

Parecem vasos de esparrela

Que a gente avia para o chopim.

Vejo-lhe as pernas entumecidas

De nódoas roxas, enegrecidas

Como as do cedro, que chagas tem

Quando lhe morde o vivo tronco

O fogo atroz, e escuta o ronco

Do vento sul, que o sopra bem.

Vi-a sentada no caminho

Talvez em busca de carinho

Dos que passam por ali,

Mas nunca vi, à luz do dia,

Alguém lhe dar, com alegria

Nem um cobre que seja, vi.

Ao ver-lhe os velhos mantos rotos,

Da aldeia inteira os vis garotos

Dão-lhe mil chufos. Que escarcéu!

E hoje, que os vi, assim sonhando,

Vi os seus olhos se levantando,

Os de Maria, fitando o céu.

De cor morena, de cor morena,

Era dos campos a açucena

A mais bonita, original.

Hoje, porém, que cara feia!

Não há por toda esta aldeia

Uma outra a esta igual.

Quando em mocinha ia ao espelho

E via o rosto tão vermelho,

Numa saúde de romã,

Toda orgulhosa então dizia:

— Nos olhos tenho a luz do dia;

Eu sou a estrela da manhã.

Eu sou da aldeia a mais faceira

Das raparigas. Assim trigueira,

Ninguém me iguala nesse sol.

E se eu morasse na cidade,

Seria rainha, na verdade,

E o meu marido seria o sol.

 

Tibúrcio de Freitas

Ó meigo alvoriador do Rio da Amargura,

O que é feito de ti, nos silêncios etéreos?

Tens ainda na fronte a triste noite escura?

E andas no mesmo fel de sinistros mistérios?

Ainda tens nesse olhar de emotiva doçura,

A Águia branca do Sonho, ou por ele os funéreos,

Os tormentos cruéis, a flamante tortura

Dos que se acham sob o poder dos Tibérios?

E o que fazes da tua encantadora Lira,

Na alta Torre do Ideal, na Torre de Safira

Lá onde os astros são mais castos do que as flores?

Na alta Torre do Ideal, ó meu saudoso Amigo,

Na mesma Lira o Amor anda a cantar contigo,

E acabou-se por certo o fel das tuas Dores!...

 

Timóteo Maia

Ó terra tão linda! Ó terra de amores!

À beira das ondas eu sempre te vejo

Num chão de esmeraldas coberto de flores,

Do sol sempre claro ao doce lampejo.

Dos morros te estendes às praias formosas,

E ali te espreguiças nos teus devaneios,

E as ondas te enfeitam de espumas radiosas

As tranças, os ombros e os túmidos seios.

Tu és a cachopa dos meus sentimentos;

Namoro-te, ó Ilha, cachopa de escravos...

Balouçam-te as vestes as asas dos ventos,

E dão-te as abelhas seus dúlcidos favos.

Tu és dos meus sonhos o pássaro lindo

Que canta da aurora até muito tarde.

E quando tu cantas, minha alma sorrindo,

Em gozos sublimes, puríssima arde.

Ó Ilha querida, cercada de ondinas,

Que tens dos encantos o eterno condão,

Escuta a minha alma, nas flébeis surdinas

Das cordas sinceras do meu violão.

 

Tínheis os corações[27]

Tínheis os corações bravos, ardentes,

E as almas de esperanças consteladas;

Vós, nutridas na luz, porque rasgastes

A túnica do Bem e assim - entrastes

No antro da Presa, no cairel do Mal?!

É o Destino! No entanto, nas orgias,

Mesmo nos gozos

Sei que sentis um íntimo punhal!...

(Laguna, 1888)

 

Tomé

Tomé corria as praias sossegadas

Lançando a sua rede ao verde mar,

E como nossas almas, abraçadas

Gostam das praias, gostam de pescar...

Como pelas manhãs embalsamadas

Vamos às praias, para lá cantar,

Lá teremos as horas bem contadas,

Do filhinho que está para chegar...

E o seu nome será... (Que nome lindo!)

Um jasmineiro que já está florindo.

Mas o seu nome não será Tomé.

Entretanto, Maria, neste mundo,

Neste tristonho báratro profundo,

Quem possui na alma um átomo de fé?

 

Transfiguração

(Para o espírito de Cruz e Sousa)[28]

Ah! Para todo o sempre protegidos

Pelos mantos suavíssimos do Amor,

Há corações de míseros, vencidos

Nos oceanos trágicos da Dor.

Transfiguram-se, então, os seus gemidos

Em asas de ouro, cheias de esplendor;

E os seus prantos cruéis e denegridos

Têm, no momento, uma formosa cor.

Assim, de um dia para o outro, viste,

Tu que vivias quase sempre triste,

A transfiguração das tuas mágoas.

Viste-a como Noé, na alvissareira

Manhã de sol num ramo de oliveira,

Trazido por um pombo, à flor das águas...

(Florianópolis, 1924)

 

Tulipa do azul

A Essa que além, no Incognoscível mora,

Vestida de alvos linhos e brocados,

Desde a cabeça onde floresce a aurora

Aos seios virgens como os virgens prados.

A Essa cuja palavra é mais sonora

Que os áureos anafis por sois vibrados,

E cujo olhar de piedade inora

Os corações por mais atormentados...

A Essa meiga Tulipa dos Sidéreos

Uma que tem por chaves os mistérios

Na dispersão do amor por sobre os mundos

Os meus joelhos curvam-se, contritos!

Ah! só ela é o refúgio dos meus gritos,

Do meu tormento, dos meus ais profundos.

 

Usura benfazeja

Moço, de carne em flor de Maio, perfumado,

Com frescuras de sedas e claridades de ouro

O teu corpo é por certo, o meu maior tesouro

O que guardo, no amor, com carinho e cuidado.

Usurário que sou, quero tê-lo guardado:

E andem por cima dele os meus sonhos... Em coro,

Cante por cima dele o passaredo louro,

Da alegria do meu coração torturado.

Dias passo a cismar; noites passo sem sono,

Só para não te ver o corpo no abandono

De si mesmo, sem ter alguém que o beije e cubra.

Usurário que eu sou! No entanto é benfazeja

A minha usura... a minha usura... que deseja

Guardar beijos aos mil na tua boca rubra.

 

Vai pela estrada afora

Vai pela estrada afora um cortejo funéreo

Mas nessa hora por sobre o mar tranquilo rola

Do alto, da esfera azul, do fresco azul sidéreo

Um pó de ouro e cristal, como o de uma corola.

Range o rude portão do velho cemitério

E o coveiro aparece, à luz que freme e assola

O barro cor de sangue, e os rosais, num mistério

De aroma que eu não sei a que regiões evola.

Vai tudo muito bem, sem pranto, sem tristeza,

Sem réquiens de amor na mais branca pureza

E sem recordações, indiferentemente...

Dispersa-se em seguida o cortejo funéreo

E lá ficou no velho e triste cemitério

Um coração que amava os outros loucamente!

 

Vamos...

Vamos os dois, assim... Vamos assim, querida,

Que esse amor que nos cerca é a nossa própria vida:

Toda a nossa existência em flor, e o nosso sonho...

Abracemo-nos, sim, minha querida, embora

Diga todo esse povo o que quiser, da aurora

Do nosso amor, num mundo entretanto enfadonho.

E que doirada aurora! A meiga Estrela d'Alva

Jamais se apagará no espaço cor de malva!

E hão de vir escutar os nossos grandes ais,

Os canários da telha, e os saudosos sabiás.

E os nossos ais irão bater na meiga Estrela

Como bate na praia o nosso barco à vela,

— "Os nossos ais?!" — Pois não, minha prenda querida!

E quem nunca no amor os teve, nesta vida?

 

Veio a tarde

Veio a tarde, na verdade,

Toda envolvida de arminhos

Pelo azul da imensidade

As nuvens lembravam ninhos.

Veio a tarde, e lá por baixo,

Pela estrada florescida

Cantava também o riacho

Muito contente da vida.

Cantava, entre os ananases

Tão vermelhos, nos barrancos,

O coração dos rapazes

Mais generosos e francos.

Cantavam moças felizes

Como os aromas da mata

Que tem as fortes raízes

Junto às águas da cascata.

E veio a noite estrelada

Como eu nunca vi mais bela.

Era uma rosa prateada

O farol de cada estrela.

Que veludo de almo encanto

No céu azul e nos campos!

Era o veludo de um manto

Bordado de pirilampos.

 

Velas

Dias existem, que me dão tristezas,

Que me acabrunham de ânsias infinitas

Como este que surgiu

Embora lindo, sobre o campo, e as fitas

Dessas praias por onde afloram-se as belezas

Deste lugar agreste,

Que sempre se vestiu,

E ainda se veste

De encantadoras framboesas.

Dias existem, para mim tão negros,

Mesmo tão cheios de acabrunhamentos,

Mesmo tão cheios de desolamentos,

Que até os próprios cânticos suaves

Das sonhadoras aves,

Nos seus elevadíssimos alegros,

Não são capazes de me embalar

A alma emparedada, a agonizar

Eu moro junto ao mar,

Em frente à Ilha das Vinhas,

Cujas pedras parecem umas casas

De misteriosas fadas,

Atravessadas

De rumores de asas

De andorinhas...

E poderia muito bem gozar

Os encantos do mar,

As suas maravilhas,

Que em derredor dessa Ilha, e de outras Ilhas

Andam sempre a rondar...

Mas as tristezas nem me dão vontade

De fitar-lhes a cor, toda suavidade,

De uma esmeralda liquescente;

E de sentir-lhe docemente

O precioso cheiro

Do salgueiro

Florescente.

E o que mais me entristece, o que mais me contrista,

É alargar a vista,

Por tudo isso, e encontrar velas que se vão indo

Por esse mar infindo,

Sem saberem se um dia voltarão.

Vendo-as, procuro recordar aquelas

Pequeninas velas

Que eu enchi de esperanças,

E soltei por um mar de vagas mansas,

À luz silenciosa das estrelas

Para vê-las

Voltar, no outro dia,

Ao Porto Desejado,

Iluminado

A surgir da alegria

Dos fulgores da aurora.

E como muitas velas vão passando,

Nesta hora,

Rumando

O mar alto, o mar grosso, o mar infindo,

Sem saberem se um dia voltarão,

Com essas velas

Com todas elas

Saudosamente vão

Minha alma e coração.

Mas, de joelhos, fico pedindo

A volta dessas velas...

E, uma por uma,

Rompam os roseirais da espuma;

Rumem de novo à praia onde ficaram

Uns roixos de saudade, e umas gotas de pranto.

Que elas não fiquem, como então ficaram,

Não sei por onde desarvoradas,

Não sei por onde naufragadas,

Não sei por onde abandonadas,

As pequeninas velas

Do meu encanto,

Que eu enchi de esperanças,

E soltei por um mar de vagas mansas,

Sob horizontes límpidos, risonhos,

Para vê-las

Voltar, no outro dia,

Ao Porto Desejado,

Iluminado

Dos meus sonhos!

(Últimos versos —18/03/1927)

 

Velhinhos

Meu pai e minha mãe lá vão pelo caminho.

É uma touca de linho a cabecinha dela.

E a dele também é. Talvez não haja linho

Mais alvo numa fonte, enxaguado em barrela.

Lembra um viver a tremer, o corpo do velhinho!

E o dela também treme. Ambos vão à Capela

Do Senhor do Bonfim, levar, devagarinho,

Dois corações de massa, e uma bonita vela...

Eles querem morrer tranquilos, sossegados;

Não querem ser na paz da morte despertados

Por dívida cruel, que lhes assombra a sorte...

E toda alma que deve anda de cruz aos ombros

Nos abismos fatais, nos rústicos escombros

No caminho da vida, ou no da própria morte.

 

Vem

Vem, que te quero junto ao meu peito aflitivo,

Para me dares toda a paz e lenitivo,

Que desejo encontrar nos atalhos da vida

Para mim tão cruel, tão vaga, indefinida

Sem campos a florir, sem riachos, sem fontes,

Sem montanhas azuis rasgando os horizontes

Sem formosos trigais, sem verde de pomares,

Sem praias de cristal no aconchego dos mares.

Vivo como quem vive abandonado e triste

Num castelo sombrio, onde tudo que existe

Amortalhado está de amarguras e ânsias...

Num castelo perdido em meio das distâncias

De um deserto sem fim, de areias escaldantes,

De céu sem resplendor, sem astros fulgurantes;

Sem óleos de luar, que é bálsamo, que é vinho,

Que é consolo na dor, que é afagos e carinho,

Que é manto de alva pluma de ave mansa,

Que é todo, neste mundo, um abraço de aliança

Entre os homens da terra e os homens de outros mundos,

Que procuram na paz amparo aos ais profundos,

E toda a proteção nuns braços que os ampare

Nuns braços virginais que as feridas lhes sare,

Porque uns braços são, em verdade, na terra

O amparo mais leal, que dentro em si encerra

O coração, a alma, o amor, a caridade;

Grãos de trigo maduro, e água na soledade...

E eu que sinto a escaldar a minha pobre língua

Não desejo morrer desamparado, à míngua.

 

Vinde o perfume das flores

Vinde o perfume das flores

Nos caminhos,

Da aldeia nos arredores

Seus carinhos.

Pelas árvores também,

Sob a aragem,

Esmeralda que se osculou,

Com coragem.

Rapazes e mais rapazes

(Coração

Feito de rosa e lilases

E emoção)

Em bandos um terno cantam

Loucamente,

E assim seus males espantam

Eternamente.

Só eu por montes e vales,

Entretanto,

Meus tristes e negros males

Não espanto.

(1907)

 

Vindo da pesca

Das ondas do mar grosso, as canoas de pesca

Vêm dobrando o pontal, todas a quatro remos

Ei-las, agora, junto à praia branca e fresca,

Onde a espuma parece abrir-se em crisantemos.

Que vida emocionante, alegre e pitoresca.

E que vida melhor lá na cidade vemos?

Lá, nossa vida é toda uma luta dantesca

Em pleno coração só desenganos temos.

Aqui como é tão bela a vida, e como é santa!

Dentro de cada peito a alma nos sonhos canta;

Não há nem uma só que de mágoas se queixe.

Ah! Divino Jesus, como do Alto abençoas

No trabalho da pesca, essas lindas canoas!

E Pedro alegremente as transborda de peixe!

 

Visão

Será mesmo verdade o que diz toda gente

Deste lugar? Será? Toda esta gente diz

Que a alma ainda pagã da noiva do Luiz

Tem sido vista junto ao mar, à luz do poente...

Por isso anda a vagar, agora, sorridente,

Com todo o coração entre sonhos, feliz.

Antes andava triste, era um pobre infeliz...

Não havia na aldeia uma alma mais descrente.

Chegava de pescar no alto mar revoltado;

E ao se lembrar da noiva (ai! Triste, o seu noivado!)

Viu-a baixar talvez das regiões celestes...

E nunca mais deixou de vê-la, nesta praia,

Vestidinha tal qual, de linho e de cambraia.

Como quando a enterrou à sombra dos ciprestes.

 

Vi tudo mudado

Vi tudo mudado, tudo,

Céus e mares e horizontes

E sobre a linha dos montes

Cobrir o silêncio mudo.

E eu lembrei-me quando a aurora

Sobre aquelas esverdeadas

Águas jorrava sonora

A luz em puras golfadas.

Lembrei-me desses supremos

Dias acres de alegria,

Na vaga loura e macia

As leves palmas dos remos.

Lembrei-me de todo o encanto,

Todo o encanto matutino,

Ir da aragem no quebranto

Por sobre o mar cristalino.

Alicar as doces ilhas

De pedras, musgos e flores

Cheias de heras e frescores

E naturais maravilhas.

Ir à pesca alegre e fresca

Nos raríssimos luares,

Numa hora pitoresca,

Em cima dos salsos mares.

Quando flexível canoa

Deixa nas vagas um sulco

Fundo, vivo, feito de hiulco

Rasgão cortado na proa.

 

Voo de ave

Ei-lo deitado em seu caixão, deitado

como a dormir o sono das quimeras,

tendo no olhar de mármore, extasiado,

ainda o fulgor das róseas primaveras.

Do seu pequeno coração parado

às grandes dores rígidas, austeras,

serena como um pássaro dourado

subiu sua alma às límpidas esferas.

Já amanhã de madrugada, quando

a aurora abrir os místicos rosais

do azul, por certo Ela estará cantando

Ou então entre as estrelas virginais

mais um astro veremos, desfolhando

frescos idílios, verdes madrigais!...

(São José, 16/10/1888)

 

Vou partir

Vou partir, vou partir. O barco já me espera

Com as velas em cheio. Adeus, prenda querida!

Que te seja dourada a flórea primavera,

Já que o inverno te foi uma profunda lida.

Vou partir, vou partir, saudoso. Quem me dera

Voltar cedo a esta praia, aromada e florida,

Onde teu coração, numa saudade austera,

Há de ficar revendo as angústias da vida.

E cedo voltarei. Nos teus seios morenos

Hei de vir acabar os meus sonhos terrenos

Satisfeito e feliz, com flâmulas em arco.

Fito-lhe o amigo olhar e alegremente parto...

Deixo-a então a rezar, ajoelhada no quarto

Ao Divino Jesus com São Pedro num barco.

 

Fragmentos

 

Canta

Canta na hora da morte o cisne pensativo

A olhar o fundo azul do lago. E por que canta

Na hora extrema da vida, o cisne, se tão santa

Dele fora sempre a vida, à luz do sol festivo?

A água do fundo azul do lago era o atrativo

Do seu saudoso olhar, e a manhã que levanta

Damascos e cristais no mar, e tudo encanta,

...............................

 

... do, por te haver esquecido

... do, por te haver esquecido, amor santo e profundo!

Por não me ajoelhar diante das rutilâncias do teu sol,

cuja luz ilumina as distâncias...

Por te esquecer me vejo em caminhos sombrios,

cheios de coaxos de rãs, cheios

de murmúrios de grilos augurais,

de fantasmas horríveis, de sombras

de histriões, de coisas impossíveis,

de blasfêmias à luz, de risadas

à Dor, de formal negação

ao teu princípio, Amor!

Mas hoje, (eu e tu, um sagrado Helianto)

não te quero senão como o mais alvo manto

estendido por sobre a minha vida inteira.

És de minha alma, agora,

um ramo de oliveira!

Pois tu fizeste, Amor,

que se enchessem meus olhos

de água como a que rola e freme nos escolhos!

No dia em que morreu minha Mãe,

nesse dia, pela primeira vez, vi fugir a alegria

de dentro de minha alma: ave que abriu as asas

e voou como voa um pombo além das casas...

Ah! Quando ela fechou os olhos, nesse instante

era impossível haver quem no peito ansiante

ocultasse maior e mais negro tormento!

Ao meu peito descera um tenebroso vento

vindo não sei de que regiões de dor e tédio!

Mas como eu procurasse um divino remédio

para suavizar tanta angústia inclemente,

recordei-me de ti, e disse-te, fremente:

"Amor! Pelo clarão sagrado que te encerra.

Acolhe minha mãe, que hoje partiu da terra."

Neste momento então, um astro que aparece

é a transfiguração da minha grande prece.

E uma voz a rolar nas asas de um mistério,

desce do claro azul olímpico do Etéreo

numa coloração e paz religiosa

para quem desta vida em meio dos caminhos

cuidosa andou por sobre um Calvário de espinhos,

mas andava por sobre uma esteira de rosas!

Bem que a encontraste, Amor, em pleno azul do Espaço!

Bem que o céu acolheu-a em seu doce regaço!

Pouco tempo depois, por uma noite bela,

Descida sobre a terra, em fúlgida capela

de astros de ouro e cristal, meu Pai também morria!

A dor, a dor profunda, a grande dor bravia

fazia-me da alma um funerário leito!

E já me cobria a alma dentro do peito!

Os meus olhos, na dor, choraram como as fontes,

ou como a nuvem chora e escorre pelos montes!

Dois riachos de pranto os meus olhos magoados!

E os meus lábios de fel quase que envenenados!

E a minha infância então foi transformada em freira

para a qual não há cantigas na lareira!

E o meu coração não se encontrava longe

de trajar o burel taciturno de um monge!

Este meu coração que era para ter a vida

cheia de aves e sol, ou tê-la tão florida,

como a toalha do altar da Senhora da Graça.

Ah! ninguém sabe a dor que a outra alma transpassa!

Mas procurei então o divino remédio,

o único que mata a dor e mata o tédio.

Por suavizar-me esta angústia inclemente

recordei-me de ti, e disse-te fremente:

"Amor, pelo clarão sagrado que te encerra,

Vem acolher meu pai, que hoje partiu da terra!"

Neste momento então, um astro que aparece,

é a transfiguração da minha grande prece

e uma voz a rolar nas asas de um mistério

desce do claro azul olímpico do Etéreo,

numa consolação e paz religiosas

para quem desta vida em meio dos caminhos

cuidosa andou por sobre um Calvário de espinhos,

mas andava por sobre uma esteira de rosas.

Bem que o encontraste, Amor, em pleno azul do Espaço!

Bem que o céu acolheu-o em seu doce regaço!

Mas continuou minha alma a ser a ave perdida

nos campos glaciais e soturnos da vida!

Era uma ave perdida e sem asas,

Que ao menos pudesse alcançar os espaços serenos,

quais pálios de luz nos umbrais das casas.

Em minha alma

nada havia de paz, pouco havia de calma!

Nada de uma esperança aberta em flor de lótus!

Morriam-me dos sonhos os luminosos brotos!

Morria-me do peito a fé! Tudo morria

como se sobre mim, quer de noite ou de dia,

descesse o fogo atroz de uma praga do Egito,

um vivo fogo atroz muitas vezes maldito!

E nas sombras da Morte a luz que a lua espalha

servia de veste, era a minha mortalha!

Mas me veio à lembrança o divino remédio,

o único que mata a dor e mata o tédio.

Para suavizar-me esta angústia inclemente,

recordei-me de ti, e disse-te fremente:

"Amor, pelo clarão sagrado que te encerra,

Manda que alguém me queira e me ampare na terra!..."

E como houvesse em nossa aldeia uma mulher

cujo olhar era um sol num vivo romper

de aurora sempre em flor de lirial prata e ouro

e cujo coração era um grande tesouro

de ofertas virginais, imáculos, divinos

e cuja boca em favos e os beijos cristalinos

como se fossem sons de cítaras e harpas,

ou um rio sobre as rendadas escarpas...

Chamei-a a me amparar no seu morno abraço;

e Ela, tão doce e boa, ao ver-me num regaço

de quem estava quase a morrer, amparou-me,

e um bálsamo de luz sobre o peito lançou-me.

Bem que me ouviste, Amor, do claro azul do Espaço.

Bem que me deu o Céu o amaino de um regaço.

Mas mesmo assim nem sei o que em minha alma andava

de uma melancolia atroz, que me matava!

Ah! não por meu pastor que eu tanto bem quisesse,

que dentro da sua alma a minha alma florescesse!

Quem me beijava a boca aflita a toda hora;

quem fosse para mim o encanto de uma aurora.

Quem rezasse por mim à Virgem dos aflitos

Que soubesse abafar os meus profundos gritos!

Quem tivesse nos meus os seus olhos imersos,

e soubesse tão bem decorar os meus versos!...

E me veio à lembrança o divino remédio,

o único que mata a dor e mata o tédio.

Para suavizar-me esta angústia inclemente,

acordei-me de ti, e disse-te presente:

"Amor! pelo clarão sagrado que te encerra,

Manda que uma ave cante para a nossa alma, na terra!"

E por um março azul, de canários nas telhas

Da minha pobre casa, e irisadas abelhas

Nos verdes dos rosais que floriam nas eiras,

E pombos aseando em torno às laranjeiras,

E mar que se estendia em novelos de arminho

E festivas canções no aroma do caminho,

E sol, e muito sol dourado, e muita messe

De bem, que é o lírio azul que em todo azul floresce...

Ah! por um Março assim só mesmo tu, Amor,

Sabes o que de puro e encantado fulgor

desceu-nos a nós dois do teu ninho celeste!

Só tu sabes, Amor, a filha que nos deste!...

E assim por eu te ver em toda a longa estrada

Da minha vida, Amor, lembro-me de te dar

Neste livro onde está minha alma retratada,

Por certo o mais sublime e luminoso altar!

 

Foi ele

Foi ele que me ensinou

Este verdadeiro canto:

— quem sua pátria deixou

Vive coberto de pranto.

— Quem nunca teve saudade

Da sua pátria querida?

Ninguém negou, e nem há de

Negar coisa mais sentida.

— De joelhos corro o mundo,

Ajojado à escravatura...

Não há tormento mais fundo,

Não há noite mais escura.

— Mas Jesus seja louvado

Diante da minha dor;

E eu me veja abençoado,

E também o meu senhor.

 

Luar

Pelos caminhos

As moças e os rapazes

Brandos como os lilases

Puros como os arminhos

Descem vindo da casa das novenas

De uma casinha branca,

Festiva e franca,

Que fica assim num alto, entre verbenas

Uma linda casinha de janelas

Escancaradas para o verde mar

E para a luz de prata das estrelas.

.................................

Das longas esplanadas

Onde as estradas claras

Vistas de cima, do alto, nos parecem

Enormes fitas que desaparecem

Ao longe, nas quebradas...

Luar... luar... luar!

Que belo o campo e que saudoso o mar!

E as moças e os rapazes

Brandos como os lilases

Vão descendo, contentes,

Canta-lhes na alma toda a luz dos sonhos

Onde não há tristonhos

Sentimentos morrendo...

 

Maria Sulamita

Era da cor de uma açucena agreste

E tinha os olhos negros, da negrura

De que a noite às vezes se reveste,

Como da mais simbólica aventura.

Tinha os olhos assim; mas deles quanto

Sorriso em luz castíssimo, brotava!

Não havia talvez maior quebranto!

Era uma ave da noite, que cantava!

No bercinho deitada, e a rir, algumas

Horas estava, deliciando a gente!

Nossa filha era a garça entre as espumas

De um mar batido por um vento ardente!

Nossa filha, deitada, algumas vezes

Ria tanto, meu Deus, que parecia

Ver através da infância de três meses

Dos vossos astros toda a pedraria!

E horas ria, dormindo, sossegada!

Mas que riso era o seu? Ria por certo

Para os anjos que via pela estrada

Que ia da sua infância ao céu aberto

 

Nunca te vi

Nunca, nunca te vi. Não creio nisso

Que ora com calma original me dizes

Ó meu querido bem, ó meu feitiço.

Que amor foi esse de febris raízes,

Que então gozamos assim tanto

Nunca fomos por certo mais felizes.

Nunca me foste, nessa estrela, um manto

De puríssimas sedas ofegantes

Nem eu te dei o meu amor tão santo.

Nunca! Nunca! Jamais fomos amantes

Nunca nos abraçamos com desejos

Nos nossos corações febricitantes.

Nunca se ouviram beijos e mais beijos

Na tua boca rubra e nem na minha

Em rutilantes, mágicos desejos.

E se o teu peito muitos sonhos tinha

Nunca os teve por mim; por outro os teve

Buscando os sonhos de florida vinha.

Que um trigo louro espero, de momento,

Colher nos campos pródigos da vida,

Elevado, contente, ao firmamento.

De onde baixa à terra indefinida

Entre as ondas da luz maravilhosa

Para por tuas mãos ser escolhida.

A cada instante, no redor dos dias,

A alma, cansada de viver na terra

Nesse maldito pélago de orgias,

Neste abismo tentálico que encerra

Junto da dor a sombra - e o amor bendito

Junto à miséria que corrói e aterra.

 

Quando nos morre um filho

Quando nos morre um filho, o nosso coração

É certo que se parte em muitos mil pedaços.

E há em redor de nós muita desolação

Que nos quebra da vida os poderosos laços.

Pois um filho o que é senão a proteção

Ao nosso grande amor? E quem os nossos passos

Há de guiar mais tarde, em plena solidão

Da velhice que é toda anseios e cansaço?

E o meu filho morreu, e o colocaram dentro

De uma cova, no chão, junto à qual me concentro

De olhar voltado aos céus, sem compreender no entanto

O peso que a sua alma pelas asas leva

 

Vim trazer-te, senhora...

Vim trazer-te, Senhora, uma vela enfeitada,

E quero vê-la arder, num castiçal de prata,

No teu florido altar, diante da luz sagrada

Dos teus olhos azuis, que tanto me arrebata.

E esta vela, Senhora, é a dádiva de uma alma

Que depois de chorar tantos dias a fio,

Tantas noites cruéis, afinal conseguiu

Do vosso amor materno, o áureo azeite da calma.

E vós sabeis que amargo era o meu sofrimento,

E era o pranto a escorrer do canto dos meus olhos,

A cada hora, chegada, assim como entre abrolhos

Chega a vaga a rolar sob as asas do vento.

Muitos dias passei, e também muitas noites,

Sem os olhos fechar, nas pálpebras doridas,

A ouvir seguidamente o rumor dos açoites,

Dos frios vendavais! Quantas horas compridas,

Quantas horas que nunca acabariam, nunca!

Eu passei-as a ver o Antonio, meu marido,

Quase morto, a morrer numa velha espelunca,

Num leito ao qual faltava um cobertor tecido

De lã, para melhor agasalhar um doente

Cujo corpo sentia a friagem dos gelos,

E ocultava no peito os bruscos pesadelos

De um coração sem fé, um coração descrente!

E se o Antonio morresse, ai de mim! ai dos filhos!

(E os meus foram, no mundo, uma escada de sete

Pequeninos degraus). Pelos medonhos trilhos

De uma vida cruel, que tanto compromete,

Iríamos rolando... Iríamos rolando...

Sem termos nesse mar uma tarrafa, ao menos,

Pelos dias azuis, pelos dias serenos,

Que nos desse de comer, assim, de vez em quando,

Umas postas de peixe; e nos desse coivara,

A farinha de aipim, que é o pão de cada dia,

Sobre a esteira onde estendo a minha toalha clara,

E com meus filhos rezo a vós, Virgem Maria!

E como o Antonio nunca em seu peito sentisse

A fé que tanto eleva a alma da criatura,

Nossa Senhora, um dia, enchi-me de meiguice,

E lhe falei do vosso olhar, todo ternura,

E nos lábios nos quais depondes a pureza

Do dulcíssimo mel das abelhas do Amor,

E dessas lindas mãos mais brancas, com certeza,

Do que os bogaris banhados do frescor

Das manhãs deste mês, que é bendito Sacrário

Onde nos colocais, com um manto de estrelas

Sobre os ombros caído, entre as flores mais belas,

De um campo de esmeraldas, ao som do campanário.

E ao lhe falar assim, o meu querido Antonio

Que acreditou mais nas artes do demônio,

Começou a me ouvir com tal devotamento,

Que, um dia, me chamou, e me disse, chorando:

— Rosa, se a alma existe, é chegado o momento

Do que tenho a dizer-te o que está esperando

Da piedade d'Aquela a quem rogas contrita

Pelas dores cruéis dos meus braços cansados

Que nunca, nunca mais trabalharam, coitados!

Nesse momento então, dentro em minha alma aflita,

Como que fulgurou um céu de pastos de ouro,


[1] Publicado no livro Poesias (1966, pág. 81), com modificações e sob o título Relógio da mágoa. Foram descobertas duas versões do mesmo poema, com dois títulos diferentes e algumas semelhanças entre ambos em sete dos seus versos. O outro título é A tua voz.

[2] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 69, com modificações e sob o título Fugindo ao medo.

[3] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 283, com modificações e sob o título Purificados.

[4] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 68, com modificações e sob o título Fugindo ao medo.

[5] O livro Poesias (1966, página 08) traz um poema com o mesmo título e alguns versos também semelhantes, assim como o tema. Porém diferem no foco de pessoa: O do Poesias está em terceira pessoa.

[6] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 81, com modificações e sob o título O relógio da mágoa.

[7] Não se tem certeza se a palavra grifada no verso 13 do soneto XIX seria mesmo rórida. O certo é que ela existe no original manuscrito e também no texto datilografado pesquisado. Há no mesmo texto o nome de Valésia e Florença. Optou-se pelo último para salvar o soneto n° XXII, onde a 3a estrofe possui, para rimar com a palavra "Florença", a palavra "descrença": No entanto a alma branca, de Florença,/ Era inundada de total descrença.

[8] A Biblioteca Nacional informa que há dois textos com o título Carlos de Faria. Um no Documento 109 e outro no Documento 110. São variantes do mesmo poema.

[9] No livro Poesias (1966, página 162), sob o título geral Novenas de maio, há um poema com o nome No campo santo. Às páginas 163/164 e 165, a partir do verso 11 (Em cada face uma vivace) entra o presente poema, com algumas modificações, sendo a principal a que transforma o texto, que é de versos tetrassilábicos, em versos eneassilábicos. Há lá também palavras que não existem no texto original.

[10] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 292, com modificações e sob o título Saudoso e triste.

[11] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 74, com modificações e sob o título Viveremos assim.

[12] O livro Poesias (1966) traz, à página 202, este título, mas o texto é outro.

[13] Publicado em Poesias (1966, página 35) com o título Valésia.Na pesquisa foram localizados dois poemas, parecidos, com dois títulos diferentes: Na casa de Clécia e Clécia.

[14] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 73, com modificações e sob o título Páginas saudosas.

[15] Parece um poema inacabado, mas o Catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro não informa isso.

[16] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 99, com modificações e sob o título Ao velho engenho.

[17] Na pesquisa foram encontrados dois títulos: Novenas em maio e Novenas de maio.

[18] São 970 versos deste que é um dos mais extensos poemas de Araújo Figueredo.

[19] O original deste poema possui a observação NOVENAS DE MAIO, e o livro Poesias, 1966, à página 113, publicou 38 poemas sob esse título, mas lá não consta o transcrito acima.

[20] Na versão datilografada deste poema há uma linha pontilhada com 31 pontos, antes do verso 52. Portanto, pode-se pensar em parte do texto manuscrito que não foi localizado nesta pesquisa, e que também quem o datilografou não o tenha localizado.

[21] Publicado em Poesias (1966, pág. 50), com modificações e sob o título A vida. No original, apresenta dois títulos: Bendizendo, anulado com diversos traços e substituído por Porto desejado.

[22] Foram encontradas duas versões deste soneto. Optou-se pela publicação da versão acima.

[23] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 278, com modificações e sob o título Infinito mudo.

[24] Publicado no livro Poesias (ACL - 1966) à pág. 88, com modificações e sob o título Tiranas do amor.

[25] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 267, com modificações e sob o título Ao partir.

[26] A Biblioteca Nacional catalogou um fragmento deste poema (do verso 11 ao verso 24) como sendo outro documento.

[27] Não está informado no catálogo da BN se o poema é incompleto.

[28] Na data de 29/11/2007, Santa Catarina, a terra natal de Cruz e Sousa, depois de três décadas de empenho para trazer os restos mortais do maior poeta simbolista de todos os tempos, pôde realizar o que teria sido o desejo do poeta, relatado por Araújo Figueredo em No caminho do destino.