LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Poemas inéditos, de Araújo Figueredo
Texto-fonte:
Sueli T. M. Mazurana (org.), Do occaso ao caso:
poemas inéditos de Araújo Figueredo,
Orleans,SC: edição do autor, 2010.
ÍNDICE
Atravessando uma florida estância
A tua voz (a calandra do sonho)
Caravela (caravana) do destino (história triste)
Ninguém nos versos deste livro busque
Sempre revejo uma reminiscência
Teve uns cabelos tão sedosos...
... do, por te haver esquecido
A alma
A alma, a sublime essência delicada,
Dos sonhos pela eterna correnteza,
Veste dos astros toda a luz sagrada
E toda a doce e emocional pureza...
No Empíreo, a alma feliz, santificada,
É como a Águia branca, de imortal beleza,
Tanto ao romper da clara madrugada,
Como da noite na brumal tristeza.
Mas, Águia feita, se subiu no Empíreo,
Impeliu-a das ânsias o martírio;
Fê-la ir o martírio a essas alturas...
Depois de vê-la andar pelos caminhos
Coroada de trágicos espinhos,
Soluçando e chorando desventuras...
A amizade
Essa é mais do que o amor, na eternidade,
De um cristalino e venturoso laço
Indo da terra à curva azul do espaço
E lá ficando toda claridade...
E o amor é a rosa em plena alacridade
Mas que fenece, cheia de cansaço,
À chuva, ao gelo, ou então sob o mormaço,
E até da tarde sob a suavidade.
Um aroma, porém, se perpetua;
Fica no espaço azul, nele flutua,
Transfigurado num clarão sublime.
Eis a amizade, o misterioso aroma,
Que das almas santíssimas assoma
E aos pés de Deus, entre canções, se exime.
Abriram-se os lírios brancos
Abriram-se os lírios brancos
E os rosais, sob o arvoredo;
E pelos seus verdes flancos
Canta alegre o passaredo.
E os rios correndo francos
Do alto, penedo a penedo,
Vão ao mar, pelos barrancos,
Cantando o treno mais ledo...
Tudo isso é como uma festa
Naquela ermida modesta
Da tarde ao sublime encanto.
É que, num caixão bordado,
Vai o meu filho, deitado,
Para a paz do Campo Santo.
Abro a janela
Abro a janela e a porta. A luz do sol faísca
Numa rubra efusão de berilos diluídos
Onde estivera, há pouco, a mais bela odalisca
Do oriente, a lavar seus cabelos brunidos.
À luz do sol a praia é uma casa mourisca
Com mirantes azuis, circulando-a, floridos.
E esse barco a correr recorda uma ave arisca,
Que se afasta da terra. E aqui, pelo comprido
Caminho que a esmeralda encantadora arrasta
Vejo um rio a tremer no verdor que se alastra,
E um perfume sutil de roseiras encerra...
E através desse rio, e através do oceano,
Contemplativamente olho o sol, todo ufano,
A fecundar, seguido, o cetim da terra.
A calandra do sonho[1]
Graças aos Céus! Voltei à nossa velha casa,
Que é o ninho aberto em flor dos nossos lindos filhos.
Maria, andei com frio, e hoje o calor me abrasa...
Pelas trevas andei, e hoje só vejo brilhos...
Sinto o calor que vem do teu seio, dessa casa,
E os brilhos que ora vejo, encontrei-os nos trilhos
Da mais robusta fé, que as dúvidas arrasa,
E das dúvidas quebra os rústicos cadilhos.
E essa, que ora me abraça, a velha Catarina,
Foi ela quem contou ao certo a minha sina,
Quando me disse que eu bem cedo voltaria.
E voltei, minha flor, porque de onde se achava
Todo o meu coração tristemente escutava
A calandra do sonho, a cantar noite e dia.
A escada de Jacó
Ei-la erguida entre a Terra e o Céu; ei-la aprumada
Sob a irradiação dos astros benfazejos,
Pela qual quer subir a minha alma exilada,
E os pássaros febris dos meus grandes desejos...
Ei-la erguida, a sublime e misteriosa Escada,
Que é um primor de beleza e benditos lampejos.
Vai do sopé da Mágoa à Região sonhada,
Onde não há temor de profundos arquejos...
Mas que ilusão, a minha! Em meio do deserto
Da vida, como eu sinto o coração aberto
Às miragens do Sonho! A Escada de Jacó,
Não a vejo senão quando me vem à mente
Uma triste cidade em cuja porta, crente,
Olhava para o Céu a alma simples de Jó.
(Florianópolis, setembro de 1922)
A fome, a pungente fome...
A fome, a pungente fome,
Que fará das nossas bocas?
Trará venenos, um nome?
E onde iremos, almas loucas?
E a peste virá, bramindo?
Loba de eternas vinganças.
Pobres dos que estão florindo,
Pobres das pobres crianças!
E a guerra virá? Mas esta
Vida é toda eterna guerra.
Há tempo traja a funesta
Mortalha do mal – a Terra!
Há tempo que o ódio avassala
As nossas almas. Bem vede!
Como um tigre de Bengala
É negro o ódio – e tem sede
Mas os astros não fervilham
Com sua luz de alegria,
Eles que no azul gravitam
Toda a noite e todo o dia.
E não permitais que seja
De tão tristes desenganos
O ano que perto alveja
Não seja como os meus anos.
Agora, vejam...[2]
Agora, vejam como a rapariga passa
Tão bem, tão satisfeita, alegre, toda risos,
Com o formoso olhar resplendente de graça,
E à boca, a tilintar, uma porção de guizos.
Nenhum medo, nenhum, a incomoda e embaraça.
E os dois seios lhe são delicados narcisos
De seiva virginal. Com modos de ricaça
Ei-la no campo em flor, sem passos indecisos.
É que vive com ela e ela sente, extremosa
A alma feita verão, dulcíssima e piedosa
Daquele a quem beijava os pés, e que hoje em dia
Anda a dizer-lhe ao ouvido as coisas mais bonitas,
Encontradas no azul das plagas infinitas,
Onde tudo floresce e canta de alegria.
Ah! quantos corações...[3]
Ah! Quantos corações como os rochedos
São assim tão frios e tão duros!
Todos ao chão por séculos seguros
Penetrados de aspérrimos segredos!
Corações que ficaram nos degredos,
Abandonados nos pauís escuros
Como espectro da treva dos monturos
Trinambolescos pássaros, tredos...
Ah! quantos corações, de abismo em abismo
Passam por esse eterno transformismo
E mudos, mudos sepultados ficam.
Mas um dia virá talvez, quem sabe,
Essa mudez dos corações se acabe,
Pois todos sob o céu se purificam.
Almas amigas
(Para o Doutor Hercílio Luz)
Almas que vos achais, neste momento, aliadas
Nas mesmas emoções e mesmas alegrias,
Estendei vosso olhar às compridas estradas
Que vão desta cidade às simples freguesias...
Nelas encontrareis irmãs alvoroçadas,
Num sublime festim de cores e harmonias,
A dizer-vos, febris, que se veem banhadas
De um brilho perenal como se fossem dias.
E quando a noite vier, quando a noite serena
Sobre a terra descer, com pólen de açucena
Que no campo e no mar tão linda se retrata,
Olhareis, no prazer que em vós seguido tomba,
Num coração humano a carinhosa Pomba
Cuja cabeça o luar ungiu de óleos de prata!
(28/07/1922)
Almas penadas
Almas penadas são aquelas que no mundo
Passam sem alcançar o estio dos carinhos.
Abandonadas são a um báratro profundo
Sangrando as mãos e os pés nas pontas dos espinhos.
Vagueiam pela praia, e vão do mar ao fundo,
Ou vagam sem cansar pelos longos caminhos.
Não receiam do mar o clamor iracundo,
Nem receiam do campo os arbustos dormindo.
Tomando-o com pavor, os rapazes da aldeia,
Fulja embora o cristal da linda lua cheia,
Às novenas não vão, nem suas namoradas...
Só que nunca deixei de andar às horas altas
Para te ver, pois eu faço parte das maltas
Dessas almas fatais, dessas almas penadas.
A luz daquela estrela
A luz daquela estrela me deleita
Dá-me clarões que nunca mais se apagam!
Mas de que elementos seria feita
Aquela estrela, entre as dores que negam
Água aos seus?
Os elementos dessa estrela linda
São os da mesma essência, que não finda
Daquela tudo foi feito, e será feito,
Por Deus.
Agita-se-me o peito
Quando vejo essa estrela
Maravilhosa, bela...
Ah! tenho o seu clarão, o seu belo clarão
Vejo a sua alma, o mais, decerto vejo
Igual ao meu coração.
A maior saudade
Fitando a aurora azul do longínquo horizonte
Nas linhas do oceano, ei-lo sobre um rochedo.
Prende a palma da mão a nostálgica fronte
E parece rever todo um fatal segredo...
Quantas recordações o seu olhar insonte
Encerra! Vejam só como esse olhar, a medo
Estremece... Estremece! É o fundo de uma fonte
Sob a copa sombria e densa do arvoredo.
Pobre do velho João, que do Congo partira
Há cem anos, ou mais! Quanto o preto suspira,
As lembranças dos seus dias de mocidade!
E quando os olhos fecha, e quando nisso pensa
Perpassa-lhe pela alma uma saudade imensa.
E a da pátria talvez seja a maior saudade.
Ambas
Tarde de evocações... Uma garça alvadia
Contempla, pensativa, a planura do mar
Que parece-lhe encher os olhos da erradia
Claridade de algum mistério do luar...
Vejo-a assim, e me vem à ideia o amargo dia
De Setembro, em que vi, a cismar, a cismar
Na esperança que é sempre uma ave fugidia,
Aquela que viera ao mundo para amar...
Penso na tua noiva. Ela também passava
A contemplar, de tarde, o espelho onde fitava,
De uma tuberculose o destroço inclemente.
E ela via no espelho o mar das suas mágoas
Como, neste momento, a garça vê, nas águas,
A sua alma talvez torturada e descrente.
À minha pátria
I
Eras tu, noutro tempo, um cacique, um Tupã,
Um bugre finalmente. E eras café e fumo.
Se a manhã te surgia, essa triste manhã
Não te dava senão atrasos, em consumo.
Não era, nesse tempo, a tua alma pagã
Senão um barco ao léu das correntes sem rumo.
No entanto, agora, é uma mulher louçã,
Das glórias imortais no perene resumo.
E que transformação! Há um século gozavas
A tanga, arcos e flechas; e por onde passavas
No fumo e no café só o progresso vias...
Que progresso era o teu! Na Liga das Nações
Se ainda fosses Tupã, quantas desilusões,
Quanto olhar cabisbaixo e quantas ironias!
II
Ó minha pátria! Ó minha pátria! Ó pátria amada!
De joelhos em terra, e olhos fitos no espaço,
Eu te saúdo e te beijo e te afago e te abraço
Como quem beija e afaga e abraça a namorada...
És a mulher sublime a quem mais amo. Alada
Vive em redor de ti, num fervoroso laço,
A minha alma febril, porque no teu regaço
Ela dormiu, na infância e dorme, iluminada.
De joelhos em terra, assim, desta maneira,
É teu o meu amor. E a minha vida inteira
É tua unicamente. E o meu peito é um braseiro
De esperanças e fé, porque te vejo agora
Transformada em mulher, com sorrisos de aurora,
Sob o eterno esplendor dos braços do Cruzeiro.
À minha terra
Ao despertar das estrelas
Eu abro as minhas janelas
E fico horas a cismar
Na minha terra, no sul,
Em cujas praias o mar
É verde, e às vezes azul.
Na minha terra querida
Sempre bela e florescida,
Como na infância brinquei.
Com as conchinhas da praia,
À hora que o sol desmaia
Entre brilhos, que nem sei!
É a minha terra saudosa
Trajada de cor de rosa,
E, muitos seres, de cores
De vários jasmins trajada,
A minha terra adorada,
A terra dos meus amores!
Da brisa sinto, nas aras,
O rumor das suas casas,
Quando a luz do sol rebrilha.
E eu vejo como ninguém
A alegria que me vem
Dos encantos dessa Ilha.
E eu lá deixei, entre flores,
Lá deixei os meus amores
As morenas do sertão;
As simpáticas morenas
Que me cobriam de penas
As asas do coração.
E eu lá deixei Mariquinhas,
Como a tinta de escrever,
A domadora dos peitos,
Fazendo-os até morrer.
Ah! Quanta saudade eu tenho
De um velho e sombrio engenho!
Nele trovei muitas trovas
Às raparigas faceiras,
Às raparigas mais novas,
Às almas alvissareiras.
Era aí que eu me julgava,
Quando o dia declinava,
O mais feliz dos rapazes,
Pois até me parecia
Que em redor de mim havia
O carinho dos torcazes.
Ao despertar das estrelas
Eu abro as minhas janelas,
E fico horas a cismar
Na minha terra, no sul,
Em cujas praias o mar
É verde, e às vezes azul.
Amor efêmero
Florescia Janeiro
Mês de calor, mas um dourado mês...
Quando te vi pela primeira vez
E que brilhou-me o teu olhar primeiro!
Dentro em minha alma então
Senti um não sei o que fosse
De grande amor... um sentimento doce
que me partiu em dois o coração!...
A morte
A morte é preta;
Dela ninguém escapa,
Nem o bispo, nem o rei, nem o papa.
Mas hei de escapar eu.
Pego um vintém
Compro uma panela,
Meto-me dentro dela,
Tapo-a muito bem,
E a morte ao passar por ela,
Diz: aqui não mora ninguém
Passem vocês
Muito bem.
Amparado
Amparado nos teus braços latescentes
Sigo, tranquilamente sossegado,
Por este vale de paixões ardentes,
Mais que as ondas de um mar bravio, irado
Sigo, sigo olvidando as inclementes
Dores, porque nos teus braços amparado
Meu coração é todo florescentes
Vinhas, num verde e fecundo prado.
Sou, certamente, bem feliz na vida,
Pois quanta gente por aí, perdida
Vive, tão só, nas ânsias, nos cansaços
Sem ter quem lhe agasalhe o peito aflito
Num punhado de cal, ou de granito...
E quanto mais na rósea cruz de uns braços!
Ana, o que hei de fazer[4]
"Ana, o que hei de fazer para fugir do medo
Que me sacode o dia inteiro, a noite inteira,
Dentro da minha casa, ou à sombra do arvoredo,
E mesmo à luz do sol cantando na lareira?
Ouço à concha do ouvido a toada de um segredo
Horrível, como a de uma alada feiticeira.
Talvez a voz da morte a chamar-me ao degredo
Da cova, nesse chão sem luz meiga e fagueira."
Ora, deves beijar, Maria, os pés gelados
De um defunto qualquer, que eles te levarão
Todo o medo brutal, e viverás contente...
E, nessa mesma tarde azul, de tons magoados,
Ajoelhada, Maria, ao lado de um caixão,
Os hirtos pés do amante osculava, fremente...
Ânsia
Camaradas, ao remo! O vento é fraco! A vela
Bate. Por que passar a noite nessas águas?
Vocês devem saber o perigo das fráguas,
E não há nem sequer o clarão de uma estrela.
Camaradas, ao remo. As rondas da procela
Têm vozes no mar grosso, a leste da Ilha. Trago-as
Sempre no pensamento. Ai, delas tenho mágoas,
Pois eu já naufraguei aos pés do Cambirela.
É igual à de vocês a ânsia que eu tenho na alma.
Mas nem eu, nem vocês temos nesta hora calma,
Nenhum no coração uma alegria sente.
Luiz, a tua amada é a flor das raparigas;
E a tua, Antonio, a rima alegre das cantigas...
Mas eu deixei em casa um filhinho doente.
Ânsia II
Ânsia que não se apaga,
Ânsia infinita,
Essa que, como um grande mar me alaga,
E em turbilhões fantásticos me agita!
Vivo nessa ânsia,
Há séculos talvez;
E cada vez
Mais cheio de tormentos,
Como se eu fosse pelo espaço afora
Levado, e atormentado
Pelas asas dos ventos.
Abrem-se os roseirais diáfanos da aurora,
E se desfolham, ou somem-se no espaço,
E eu a ansiar, sempre a ansiar
Bem como,
Em trêmulo assomo,
A asa de um pobre passarinho aflito,
A voar... a voar
Por sobre o mar
Infinito!
E o dia irrompe, com o sol bendito,
Tendo antes ressurgido a Estrela d'Alva,
Num campo azul, e às vezes cor de malva.
Entre franjas
Da cor da casca oleosa das laranjas...
E eu a ansiar... a ansiar,
Nessa tortura, nessa ânsia
De vencer a distância...
O dia chega, e enquanto vai rolando,
Engolfado na luz maravilhosa,
De uma sublime pedraria
De ouriversaria,
Eis-me ainda ansiando
Mas sem um raio de alegria!
É que eu sou triste
Como quem assiste,
Das janelas de um cárcere, passar
A esposa casta, o filho casto, e a ave
Cantadeira, a voar
....................................
E assim, durante
O dia
Vivo ansiante... ansiante
Vivo ansiando...
Depois, a tarde desce,
Nuns seixos de saudade,
Numa concentração espiritual,
E eis-me, agora, ajoelhado, numa prece,
A qual, diante da minha ansiedade
Nem parece
Efluvial;
Mas antes a expressão de um egoísmo
Que mora dentro do meu coração,
Neste profundo abismo,
De vencer a distância...
E como, de um momento
Para outro, no excelso firmamento,
De veludo de hortênsia
Longe a florescência
Das rútilas estrelas,
Continuo na ânsia
De vencer a distância,
E fico louco para vê-las
De perto, de bem perto,
Cada uma como um lindo porto aberto.
É que eu procuro, aflito de ansiedade,
Já morto de cansaço
Nuns roixos de saudade,
No Arquipélago de ouro das Antilhas
Do espaço,
As minhas filhas!...
Ansiedade
Que ansiedade eu sinto! Ah! Que imensa ansiedade
De viver não sei aonde, em que lugar no mundo;
Mas contigo ao meu lado, a ouvir a suavidade
Da tua voz, e a ver o teu olhar profundo...
Em que lugar, não sei! Fosse mesmo num canto
De alva praia do mar, no meio dos rochedos,
E eu ali ficaria a contar teus segredos,
A fruir teu amor feliz e sacrossanto.
Em que lugar não sei! Fosse dentro das ondas
Convulsionadas desse oceano inclemente...
Ali mesmo eu teria, em continuadas rondas
Em redor da tua alma, uma vida atraente.
E fosse mesmo num deserto, num deserto
Sem árvores, sem água e trigo sazonado,
Todo o meu coração estaria, ao teu lado,
Recordando de fato um lindo céu aberto.
E fosse mesmo, fosse embaixo de uma pedra,
Onde o verme rasteja, e foge à luz do dia,
Junto ao teu coração que tantos sonhos medra,
Eu estaria bem, flamando de alegria.
E fosse num covil de feras indomáveis,
Eu nessa escuridão, nesse covil de feras,
Teria, e tu também, as carnes invioláveis
Sob o doce clarão das tuas primaveras.
Em que lugar, não sei! Fosse mesmo entre espinhos,
Numa estrada sem fim, ou num medonho atalho,
Onde nunca se visse uma gota de orvalho
Nem se ouvissem cantar os próprios passarinhos.
Nessa estrada eu teria a suprema ventura
De te ver cada vez mais bela, entre os meus braços,
Sem sentir, nem de leve, a mínima tortura
Na epiderme dos pés, de tão serenos passos.
E se um dia te visse entre blocos de gelo,
Que pudessem matar-me, eu não me esquivaria
De morrer, de morrer, pois então morreria
Sob a noite aromal dos teus lindos cabelos.
E se eu morrer te visse, as pálpebras fechando
Às ilusões do mundo, ao desceres ao chão,
Junto ao teu coração piedoso, doce e brando
Desceria, por certo, um outro coração.
E se uma vez no Espaço a tua alma rufiasse
As asas, e quisesse a este mundo voltar,
A minha, meu amor, custasse o que custasse,
Voltaria também para sofrer e amar.
Ao partir[5]
Envolvi-a nos meus braços febricitantes...
Beijei-lhe dessa boca a romã sazonada,
E parti. (Como dói às almas dos amantes
Uma separação assim precipitada!)
Damascos de sol posto! E as montanhas, distantes,
Eram azuis. E a praia, alvadia, lavada,
Tinha da lua nova os contornos brilhantes:
Era uma lua em curva, pelo tempo desenhada.
E num barco, por sobre as vagas buliçosas
Parti. (Quanta amargura! ai lágrimas custosas!)
Fui em busca não sei de que plagas ignotas.
Em alto mar, porém, ao resplendor dos astros,
Cruzaram-se no topo alteroso dos mastros
Os seus lenços de amor, nas asas das gaivotas!
Aos astros
Astros! Quando eu deixar este mundo, que desça
A vossa luz serena, esse manto piedoso
Sobre e neve que já me embranquece a cabeça,
E este meu coração profundamente ansioso.
Que a vossa luz divina em minha alma floresça,
Como um belo rosal de abril, e um céu ditoso
Por esse azul afora; e do mundo me esqueça,
Fecho os olhos ao mundo, no viver duvidoso...
Fecho os olhos, assim... Mas, ó astros benditos,
Eu poderei viver sem lágrimas, sem gritos,
Sem ânsias, sem tortura, e sem ouvir quem brade,
Por anos de pesar, por anos de tortura,
Sinto o coração na triste noite escura,
Na atra desolação eterna da saudade?
A partida
(A I. O.)
Ó meu amor, ó meu amor, partes
Tu vais partir, e agora
Como minha alma há de viver, se a vida
Que me conforta, levas mar afora
Como uma essência, uma ilusão perdida?
As almas
Dos astros nos eternos resplendores,
Todas vestidas de ideais purezas,
Como nos campos as formosas flores,
Que são o encanto de toda natureza;
Da glória excelsa nas celestes cores,
Triunfalmente cheias de grandeza;
Purificadas nas imensas dores,
Limpas do imenso charco da vileza;
Todas, todas, assim, as nossas almas
Serenamente irão pelas caladas
Regiões de um sonho feito claridade
Pombos de asas soltas, imaculado,
Se desceram dos astros, emigrados
Regressarão batidos de saudade.
À sombra do olmeiro
À sombra amiga desse olmeiro, certo dia,
Eu te encontrei: o sol, entre franjas doiradas,
Para trás da montanha esplêndido descia,
E eram todas cristais as ondas e as estradas.
Numa ramada em flor, que doce melodia!
Rimava um sabiá suavíssimas baladas
Junto do ninho. E tu, ouvindo o que eu dizia,
Falaste-me do amor nas praias sossegadas.
E o que eu te disse, flor querida? O que eu te disse
Para corresponder à gárrula meiguice
Do teu seio, do teu olhar, dos teus cuidados?
Psiu! que alguém nos ouve... À sombra desse olmeiro,
Tivemos nós um sonho alegre e alvissareiro
E, dentro desse sonho, os braços enlaçados...
Assim foram trabalhando
Assim foram trabalhando
Esses pobres africanos
— Uns contra a dor blasfemando,
Outros dóceis, meigos, lhanos...
Vendo-os na luta eu dizia:
— Triste de quem deixa o lar
Onde viu a luz do dia,
E vem num outro morar.
Sem ter quem lhe dê consolo,
Sem ter quem lhe dê um ai;
De uma fera vendo o colo
E, num verdugo, o seu pai!
Afeiçoei-me aos escravos,
E eles me queriam bem,
Sem os mais leves agravos
Do tamanho de um vintém.
Dentre eles, porém, havia
Um por mim mais estimado
E esse, ao raiar de um dia,
Viu-se de todo aleijado.
De altas pernas de borrelhos,
Passou a andar, desde então,
(Coitadinho!) De joelhos
Fosse quente ou frio o chão.
E envelheceu nessa prova,
Ficou toucado de neve...
Mas que alma sempre nova;
Inefável, doce e leve!
— De joelhos corro o mundo,
Ajojado à escravatura...
Não há tormento mais fundo
Não há noite mais escura.
— Mas Jesus seja louvado
Diante da minha dor;
E eu me veja abençoado,
E também o meu senhor.
— Eu perdoo-o, satisfeito,
Do fundo do coração...
E que ele, por meu respeito,
Jamais seja escravo, não!
- Que aberto o céu lhe seja
Num puríssimo clarão;
E ele dentro do céu veja
Os três lírios do perdão,
Que tantas foram as chagas
Dos pés e mãos de Jesus
Que após três horas pressagas
Morreu por nós numa cruz.
As três cruzes
I
A primeira enterrei-a à beira de um caminho
Que o sol cobria de ouro, e prata, e pedraria.
Pela manhã, por ela errava a sinfonia
Dos ares no aconchego amoroso do ninho.
À tarde, a luz doce, plena, macia,
Era-lhe seguidamente um gozo de carinho...
Os perfumes sutis levíssimos havia
Em redor dessa carne - tão branca como o linho.
E quando a noite vinha aberta em resplendor
Como o manto que cobre a Senhora do Bem
Nessa cruz toda uma eterna flamância
Via-lhe a gente no alto - ao fulgir de um diamante
Os versos imortais que são todo o poema
Da alma maravilhosa e bendita da infância.
As tuas mãos
As tuas mãos são todas arminuras
De carinhos, de afagos, de bondade,
Tão leves e tão brancas e tão puras,
E têm das rosas toda a suavidade.
Que sejam as tuas mãos, nas amarguras
Da minha vida, o pão da caridade;
E, tênues e assim brancas, e assim puras,
Sejam bênçãos de luz, na imensidade.
E sejam asas de pomba sobre o peito
De quem tanto soluça, deste jeito,
De quem tanto padece – asas de pomba,
Mas que sirvam, pronolas e fagueiras,
Para serem as minhas enfermeiras
Sem a prisão das mãos de Santa Comba.
As tuas mãos II
Beijo seguido as tuas mãos formosas,
E procuro fechá-las com carinho,
Porque nas tuas mãos eu acho o ninho
Para as minhas torturas voluptuosas.
Só nessas mãos mais brancas do que as rosas,
Ou muito mais do que o próprio arminho,
Sinto, como embriagado de um bom vinho,
As sensações do amor miraculosas.
Beijo-as seguido, porque nelas vejo
O bendito segredo de um desejo
Que a sete chaves guardo no meu peito.
As tuas mãos, nos últimos escolhos
Da minha vida, fecharão meus olhos;
E eu morrerei sorrindo, e satisfeito.
A suprema linguagem
(Para a alma de Margarida Lopes de Almeida)
A rosa branca, ou jalde, ou cor de sangue, fala,
E fala suavemente o lírio da campina;
E o perfume sutil, que à doce luz se exala
Dessas flores ideais, também fala, em surdina...
E a água fresca da fonte, esquiva e cristalina,
Também fala, amorosa. E fala a luz de opala
Da lua, e a luz do sol, dulcíssima e divina,
Que nos topázios, rubis e berilos se iguala...
E fala a vaga azul do mar, quando sereno;
E a esmeralda do campo é toda um belo treno;
E é uma ânsia de amor, falando, em noites calmas,
Cada estrela a luzir na cerúlea paisagem...
Mas tudo isso não tem a suprema linguagem
Da alma de Margarida, ao pé das nossas almas.
(Florianópolis, 21/03/1923)
Atravessando uma florida estância
Atravessando uma florida estância
Na qual a luz fulgente
Exuberante cai
E exubera o vinhedo
Com muitos cachos dependurados
E quase todos sazonados,
E espalhados
Na água fresca e corrente
À sombra do arvoredo...
Olhando-me, compreendia
A louçania, dos meus verdes anos,
Sem compreender que houvesse, neste mundo,
Almas, feridas de um profundo
Tormento roixo como as violetas.
A tua voz (a calandra do sonho)[6]
Graças aos Céus! Voltei à nossa velha casa
Que é o ninho aberto em flor dos nossos lindos filhos.
Maria, andei com frio, e hoje o calor me abrasa;
Pelas trevas andei; e hoje só vejo brilhos...
O calor que ora sinto é o teu seio, é a tua asa,
E os brilhos que ora vejo, encontrei-os nos trilhos
Da mais robusta fé, que as dúvidas arrasa,
E das dúvidas quebra os rústicos cadilhos.
E essa, que ora me abraça, a velha Catarina,
Foi ela quem contou ao certo a minha sina,
Quando me disse que eu bem cedo voltaria.
E voltei, meu amor, porque onde eu me encontrava
Todo o meu coração tristemente escutava
A tua voz saudosa, ó meiga cotovia!
Aves do sonho
Aves do sono, encantadoras aves,
Aconchegos de linho, encantadores,
Que em vossas asas de esquisitas cores
Subam para o alto os meus suspiros graves...
Aves de adejos leves e suaves
Imigradas da terra de áureas flores,
Levai-me as mágoas e as sinistras dores
Pelas mais altas e vistosas naves.
Pelas naves caladas das montanhas
Levai-me as mágoas rústicas, estranhas
Que eu já não posso dentro da alma tê-las...
E as minhas mágoas que germinem risos,
Aves do sonho, encantadores guizos
Da luz velada e branca das estrelas.
À Zarina
Amoroso, recordo a hora em que voaste,
Asas rufiando, asas ruflando, ó cotovia!
Pelos campos em flor, e nas vagas tremia
A cor em cujos tons as asas mergulhaste.
Hoje sonhas no céu, como jamais sonhaste,
Pois se não fosse assim, tua alma, noite e dia,
Tão vivas emoções à minha não daria...
E vens trazer ao campo o que dele levaste.
E vens toda de branco; e cercam-te as redomas
Cristalinas da altura, estuantes de aromas.
Retorna à casa amiga a leve imagem tua,
Retorna no clarão bendito dos espaços,
E vem meiga, e vem bela; e abrindo no ar os braços,
Como as velas de luz da gôndola da lua.
Batizado
Vibrem desse luar os bandolins de prata,
E as harpas de ouro fino, e as flautas de canela
E o seu fluídico som, que em clarões desata,
Que ande em cada sol, que ande em cada estrela.
Vibrem mais, ainda mais as cítaras misteriosas
E os violinos azuis dos espaços serenos,
Que às vezes quando há luz transformados em rosas
Lembram o linho alvoral dos mantos dos Helenos.
Vibrem, Comunhão bendita dos Altares,
Os Salmos de Davi, que o mundo enchem de encantos
Como de encantos enche as campinas e os mares
O puríssimo Azul, que é o caminho dos Santos.
Nos campos tudo quanto em lírios for nascido
É aroma sacudido das corolas que fale
À luz desse luar docemente diluído
Que não há sonho esplendente que iguale.
Dos pomares que dão os mais bonitos frutos
Como jambos da cor dessas nossas patrícias;
E pitangas lembrando os lábios impolutos
Das crianças gentis que dormem nas carícias...
Dos pomares que dão uvas que amadurecem
Logo que canta o Estio, e com ele as cigarras
Que a cantar, a cantar ternamente parecem
Trazer dentro de si muitas manhãs bizarras...
Dos pomares que dão polpudos ananases,
E cujas febris e dúlcidas laranjas
Que inundam de prazer o peito dos torcazes
E de alegria imensa as cabanas e as granjas...
E dessas fontes que fertilizam campinas
Enchendo-as de frescura e músicas supremas
Como não há na luz das rimas cristalinas
De todas as canções de todos os poemas.
Do divino chilrar dos lindos gaturamos
Que chegam quando Maio enfloresce os caminhos
E sonham muito mais, talvez, do que sonhamos,
Porque sonham cantando, e leves como arminhos.
Tudo vibre em meu Verso, e tudo nele exprima
O que de casto e bom, o que de Azul e de astros,
O que de aroma e sons pelos Ares rima
O sacrário do sol ou a Lua de alabastros...
Tudo vibre em meu Verso, e tudo nele seja
Damascos de manhãs douradas, ondiflavas,
Porque assim o quer, e contente o deseja
Esta minha alma verde e aromal como as malvas.
O que minha alma quer, alma de beduíno
Que atravessa esta vida até nela ofuscar-se,
É de uns versos fazer um colar diamantino
E oferecê-lo a Mimi, que vem de batizar-se.
A essa cuja fronte é por mim abençoada,
Todas as vezes que lhe entrego um livro aberto,
Onde o seu doce olhar vê sempre uma alvorada,
Onde o seu coração vê sempre um sonho perto...
E não podia ter momento mais preciso
Esta minha alma, não! Este momento asado
Para de cada verso arrancar um sorriso,
Porque afinal eu sei que é um Batizado!
Beleza
Eu te amo, oceano ruidoso,
Em teu brusco e medonho bramar;
Eu te amo, à luz alva da lua,
Espumante na rocha a quebrar.
Eu te amo, na fresca manhã,
Sussurrante na praia a morrer;
Eu te amo, sereno do ocaso,
Quando o sol em ti vai se esconder.
Eu te amo, ó céu puro de anil,
Alvas nuvens de rubro bordado:
Eu te amo, tremendo ao bulcão,
Atro, fero, de raios pejado.
Quando a brisa murmura nos ramos,
Eu te amo, floresta viçosa,
Quando a folha tremula de manso,
Eu te amo, florzinha mimosa.
Mas a flor, o céu puro, a floresta,
Nem o mar com seu triste gemer;
Com amor não me pagou amor;
Só com ais podem ais responder.
E o teu rosto, Beleza, gentil
Tem a meiga inocência da flor,
A candura e pureza do céu
É fagueiro, seduz... tem amor.
Belos campos em flor!
Belos campos em flor! Cheirosos jasmineiros!
Campos de verde seara! E a água pura, dos riachos,
Abertos em cristal, em misteriosos fachos,
Com a brisa a cantar nas harpas dos olmeiros.
Na harmonia da luz, desde a praia aos oiteiros,
Onde o rude aldeão já descansou os sachos
Floresce a vinha verde e se cobre de cachos
Rica messe para encher celeiros e celeiros.
Mas antes dessa messe aromal, de bons vinhos,
Transbordar de emoção as casas e os caminhos,
Creio já ter gozado, alegre e satisfeito,
Não um vinho da cor da seiva do pecado.
Antes, o vinho azul do teu olhar amado,
Que é o orvalho da manhã na aridez do meu peito.
Bem-aventurado
Ora, que as tuas orações benditas
Que as tuas orações, quando morreres,
Serão vistas por ti, em caracteres
De ouro, no Livro Azul das bem escritas.
Descem anjos das plagas infinitas,
Descem da Aurora pelos rosicleres,
Para colher, muito melhor que Ceres
A sementeira de orações contritas...
Cá pela terra é semeado o trigo,
E esse trigo nos dá o pão amigo,
Se o sol de orvalho e viva luz o banha...
Mas nesse azul as orações que oramos,
Muito melhores do que o trigo, achamos,
Banhadas de uma luz mais viva e estranha!
Bendita terra!
Bendita terra! Terra encantadora! Terra
Que na glauca esmeralda e na safira, encerra
Surtos de maravilha!
És a terra ufanosa, desde o campo onde floresce
Em ouro a seara, até ao mar que resplandece
Nas alfaias
Das praias
Desta Ilha!
Bendita terra! Terra amada! Oásis de flores
No deserto da vida, onde se bebe a água
Fresca, a água cristal, a água que mata as dores
Das ânsias e da mágoa!
Terra que eu sempre amei apesar dos cansaços,
Em cuja praia, em frente, onde há sedas de trevo,
Às vezes ajoelhado
E concentrado
Escrevo.
Como venho te dar o calor dos meus braços
E o coração, todo o coração, iluminado
Na alegria que freme alucinadamente
Pela glória que vens de sentir num repente!
Terra, encanto de um sonho! Ó Canaã bendita!
que tens por sobre ti a abóbada infinita,
Enflorada de sois, de primorosos astros,
Como eu te quero bem! Como nós te queremos
Cada vez mais sublime e mais rica, e mais bela!
És a moça que sai a uma humilde capela,
Para rezar em contas de áureos brilhos.
Meiga, casta e divina
Como a luz magnífica do dia,
És a Santa Catarina
De Alexandria!
Da nossa alma os enastros
Fulgem aos teus pés, como os astros
De florações de prata e de cristais.
..........................................
Bendita a terra dos nossos pais!
Bendita a terra em que nascemos!
Bendita a terra dos nossos filhos!
Bíblico
Tanto resplandecia a sua vida, tanto,
Como no Espaço o sol resplandecia,
A vida de José, do Bom, do Santo,
Do idolatrado Esposo de Maria.
Em torno de José havia o encanto
Da luz, da cor, do aroma e sinfonia;
E tecido de paz, que lindo o manto,
Para cobrir a quem de ânsias morria.
Toda essa vida recordava um salmo
De ramos de oliveira, sobre as águas
Do dilúvio, baixando palmo a palmo...
E dos aflitos as profundas mágoas,
Ele, o rude operário, humilde e calmo,
Aparelhava, como as próprias tábuas.
Bravos
(Ao Grupo 12 de Agosto, recitada na noite de 7 de Setembro, no teatro Santa Isabel)
Sanguínea mocidade,
a flor da caridade
que dentro em vós rebenta heroica e palpitante
neste momento brilha assim como no espaço
do legendário sol, o colossal diamante
sempre farto de luz e forte como o aço.
Em vossa fronte rola
o resplendor da Esmola
que cai de vossa mão sem luva de pelica
bem como cai o doce orvalho imaculado
de um largo céu azul profundo iluminado
que à terra dá vigor, que as plantas purifica.
Dentro em vossa alma explose
a máscula nevrose
de um puro coração banhado de esplendores
onde se aninha o amor mais franco e mais sereno
donde se vê brotar uma porção de flores,
como as do coração do antigo Nazareno.
São varonis compêndios
de amor esses incêndios
que rompem simplesmente o vosso enorme peito
quando lançais um pão à boca da miséria,
quando lançais o casto olhar em sois desfeito
para a doce amplidão da plaga azul, etérea.
São místicas estrofes
de madrigais — são cofres
de pérolas gentis e músicas suaves
essas cintilações do vosso amor, tão grandes,
tão francas, tão febris – que voam como as aves
muito além, muito além do píncaro dos Andes.
São virginais ofertas,
esplêndidas cobertas
dum sadio vigor que as almas extasia,
as frases que entornais do peito – esses poemas
feitos da imensa luz puríssima do dia,
que cintilam melhor que os rútilos diademas.
É mesmo assim que deve
tão branca como a neve
a vossa consciência abrir-se em grandes rosas,
ou como estranhos sois nas dúlcidas esperas,
ou como borbotões de cismas fulgurosas
num meigo reflorir de eternas primaveras.
Seja sempre tão lindo
assim o amor infindo
do vosso peito nobre imaculada – seja
sempre muito viril, de eterna claridade,
a alma que se nutre em vós e que despeja
relâmpagos de aurora em toda imensidade.
A esmola que se lança
calma, tranquila e mansa
é a mais radiosa flor das almas – flor nascida
numa estranha manhã de um brilho nunca visto
flor pura e virginal feita da luz querida
duma gota sutil das lágrimas de Cristo.
É flor que nunca morre
e o perfume que escorre
é como de um Altar o incenso – é como a prece
dos nobres corações ingênuos das crianças
olhando para o céu, que sempre lhes parece
aberto – a derramar cascatas de esperanças.
É mesmo assim que as frontes
de vós, como horizontes,
devem se reflorir, – é mesmo assim que a gente
imitando Jesus pregado em duros cravos,
a consciência lava em sol resplandecente,
numa doida explosão de palpitantes – Bravos!
Cânticos
1
Ondas do mar
Saudoso e amigo,
Vinde cantar
Hoje, comigo,
Ondas do mar,
Saudoso e amigo.
2
Aves marinhas,
Ó gaivotas,
Cantai mansinhas
Como as devotas,
Aves marinhas,
Ó gaivotas!
3
Aves das matas,
Dessas florestas,
Dai-me as sonatas
Das vossas festas,
Aves das matas,
Dessas florestas.
4
Rosais em flor,
Dessas estradas,
Que a vossa cor
Cante baladas,
Rosais em flor,
Dessas estradas...
5
Vales e montes,
Verdes e azuis,
Cantai insontes,
Na branca luz,
Vales e montes,
Verdes e azuis.
6
Rios, ribeiros.
Resplandecentes,
Sob os salgueiros
Cantai, frementes,
Rios, ribeiros,
Resplandecentes.
7
Sombras amigas,
Dos arvoredos,
Rimai cantigas,
De almos segredos,
Sombras amigas
Dos arvoredos.
8
Brisas fagueiras,
Doces afagos,
Cantai, ligeiras,
Junto dos lagos,
Brisas fagueiras,
Doces afagos.
9
Loiras abelhas
Errai... errai...
Se sois centelhas
De sol, cantai,
Loiras abelhas,
Errai... errai...
10
Meigas crianças,
Pássaros lindos,
Cantai esperanças,
Cantos infindos.
Meigas crianças,
Pássaros lindos,
11
Moças formosas
De olhos castanhos,
De olhos estranhos,
Cantai, graciosas,
Moças formosas
De olhos castanhos.
12
Cantai, ó moços
De olhos celestes,
Todas as vossas
Rimas campestres,
Cantai, ó moços
De olhos celestes,
13
Moças, mocinhas
De olhos tão pretos
Quais andorinhas,
Rimai sonetos,
Moças, mocinhas
De olhos tão pretos.
14
Ó moças de olhos
Da cor das águas.
Longe de escolhos,
Cantai, sem mágoas,
Ó moças de olhos
Da cor das águas.
15
Cantai, olhares,
Luz dos topázios.
Divinizados
Pelos Parstrázios,
Cantai, olhares,
Luz dos topázios.
16
Esposas santas,
Mães heroínas,
De tantas, tantas
Ânsias divinas,
Cantai, ó santas
Mães heroínas.
17
Formosas filhas
Das nossas terras,
Das verdes ilhas,
Vales e serras,
Cantai, ó filhas
Das nossas ilhas.
18
Sol das alturas,
Do céu bendito,
Dai-me doçuras,
Sol do infinito,
Sol das alturas
Do céu bendito.
19
Lua formosa,
Cela redonda,
Cantai, saudosa,
Ó Gioconda
Lua formosa,
Cela redonda.
20
Cantai, também,
Meus camaradas,
Cantai por quem,
Trajando vestes
Chamalotadas
E de ouro fosco,
E de cristal,
Será convosco
No mesmo ideal,
No mesmo sonho
Claro e risonho;
Na mesma glória
Bendita e flórea
E em que então,
por toda a eternidade
Entre festivas palmas
Gravado ficará
nas asas da saudade
E na luz, e no som,
e no aroma, e nas
Almas.
Caravela (caravana) do destino (história triste)[7]
I
Florença fez-se a moça mais formosa,
A mais formosa Flor do lugarejo.
Entretanto, podendo ser vaidosa
Era modesta e humilde, de sobejo.
Quando a tarde descia, cor de rosa,
Ei-la do sol ao efluvial bafejo
Junto à porta a cantar, maravilhosa,
De coração alegre e benfazejo.
Era nessa hora que eu buscava vê-la
Como quem busca protetora estrela
Como quem busca as linhas de um caminho.
Nessa hora, que feliz contentamento!
Acabava-se todo o sofrimento
Sob o veludo azul do seu carinho.
II
Fez-se da aldeia a moça mais formosa,
A mais formosa flor do lugarejo.
Do seu olhar a clara luz maviosa
Tinha um contínuo e límpido lampejo.
Quando a tarde descia, luminosa,
O sol lhe dava nessa luz um beijo.
O sol beijava aquela luz gloriosa,
Enchendo-a do seu íntimo desejo.
Luz desses olhos meigos e castanhos,
Toda alastrava de clarões estranhos
Os lugarejos, onde a gente a visse.
Era, como no vidro das janelas,
A luz de duas rútilas estrelas
Num céu que, de açucenas, se cobrisse.
III
Eram da cor da casca do pinhão
As pupilas dos olhos dessa moça.
Ao vê-las todo o poviléu da roça
Ficava louco, e cheio de paixão.
Iguais, assim, banhados de um clarão,
Só as pupilas místicas da Nossa
Senhora, cujo amor almas adoça,
Na luminosa Estrada do Perdão.
Olhos, refúgios de amargura e sonhos,
Ora tão tristes como os mais tristonhos
Lutos da lua sobre o frio mar,
Mas enchiam-se às vezes de meiguice,
Como se em cada qual a gente ouvisse
Uma calandra lépida cantar.
IV
Quando cantava, que suavidade
Se espalhava em redor! Quanta harmonia!
Recordava a festiva cotovia
Num ramo verde, em plena liberdade.
E era às vezes de tanta alacridade
A sua voz, que no raiar do dia
Parecia uma avena, e parecia
Num engenho, bem longe da cidade.
Com tantas e tão sãs delicadezas,
A sua voz enchia de surpresas
Todas as almas sempre que a escutavam.
Pois estas, entre violas e atabales,
Para alívio dos seus profundos males,
A sua voz puríssima imitavam.
V
Da sua boca, que suavidade
Se espalhava em redor! Que melodia,
Quando Florença pelas praias ia
A cantar, a cantar, em liberdade.
Cheia de tanto enlevo e alacridade,
A sua voz, ao clarear do dia,
Uma arena silvestre parecia,
Que vibrasse distante da cidade.
Com tão leves e sãs delicadezas,
A sua voz enchia de surpresas
Os corações que, céleres, a ouviam.
E muitos, entre violas e atabales,
Esqueciam-se até dos próprios males,
Pois nessa voz seus lindos fados viam...
VI
Que macios e límpidos cabelos,
Que eterna noite de veludo lindo,
Sob a qual não havia pesadelos,
E sim uns sonhos mágicos, florindo.
Em caracóis tão leves, em novelos,
Ei-los nas sensações todos se abrindo
Vinha gente de longe, para vê-los,
Os fortes gozos do prazer sentindo.
E ao vê-los essa gente procurava
Sentir-lhes a mornura, que igualava
À das asas frementes da andorinha.
E para lhes gozar todo o perfume
Quantas, mordidas embora de ciúme
Pelas estradas pressurosas vinham.
VII
As suas faces eram purpureadas
Como as papoulas, quando o mês de Abril
Canta de Flora as límpidas baladas,
Sob o rico esplendor de um céu de anil.
Embora pelos zéfiros beijadas,
Jamais boca as beijava, dentre as mil
Que beijá-las queriam, assaltadas
De um desejo tirânico, febril.
E quantas vezes as festivas aves
Em torneios alígeros, suaves
Vinham para beijá-las, e as beijavam...
Viam nelas a flor da romãzeira,
Ou os frutos sanguíneos da aroeira,
Que elas, as aves, cedo debicavam.
VIII
Que lindo e que galante, o seu pescoço,
Por novo Fídias na arte modelado.
Tinha das hastes novas o balouço,
O mesmo movimento delicado.
Quando vinha da praia do mar-grosso,
Vinha das águas verdes encharcado.
Para vê-lo fugia ao calabouço
Das mágoas, o mais triste condenado...
Dele em redor (como em redor da torre
De uma capela, quando a tarde morre,
Voam insetos), voavam os desejos.
Voavam doidamente insetos louros
Rutilantes abelhas e besouros:
A transfiguração de alados beijos.
IX
Eram-lhe os seios dois limões guardados
Nas rendas brancas da camisa, ocultos
Aos olhares profanos, e aos tumultos
Dos frementes desejos depravados...
Ou lembravam dois pombos aninhados,
Muito mansos, fugidos aos insultos
Dos ventos frios, que não rendem cultos,
Pois são hereges e desenfreados...
Mas houve quem, ao vê-los, me dissesse:
— Os seios dela, eu os comparo à messe
Do trigo louro, e à do melhor azeite;
E são um vinho claro, que não arde;
E são favos de abelhas; e, mais tarde,
Serão uns rios de bendito leite.
X
Braços robustos, braços vigorosos;
Para servirem dos mais fortes laços,
Esses braços robustos, esses braços,
Esses febris tentáculos nervosos;
Esses grandes amparos amorosos.
Para todas as ânsias e cansaços,
De quem na vida, vacilando os passos
Encontra atalhos negros, escabrosos;
Os seus braços nervosos e robustos,
Sem receios, sem medos e sem sustos,
Sempre, sempre lutavam, de tal sorte,
Que eram lembrados, tanto na folgança
Como nas lutas da desesperança
Também nas próprias emoções da morte.
XI
Dos cadilhos nas leves urdiduras
De fios de algodão, para tecidos,
Os seus dedos rosados e compridos
Possuíam das magnólias as brancuras.
Não eram dedos, eram formosuras
De luares de junho, florescidos
De maravilhas, pelos céus perdidos
No azul sacramentado das alturas.
Nos delicados fusos de canela,
Da roca acelerada, os dedos dela
Que graças tinham, quando trabalhavam!
Dedos de perfeição! Que maravilhas!
Por esses campos e por essas trilhas,
Dedos belos assim não se encontravam!
XII
Vendo-lhe os pés calçados em tamancos
Quantas vezes chamei, pelos caminhos,
Pelos bruscos atalhos e barrancos
Contra essa areia atroz, e os crus espinhos.
Mas os seus leves pés andavam francos
Nos atalhos, devesas e caminhos...
Que pés de fada! Que casal de brancos
E delicados, meigos cordeirinhos!
E dançavam tão bem na viva roda
Do sarrabulho nos festins da moda
Nas belas farinhadas e novenas...
Hoje esses pés seriam bem calçados
Em sapatos de cravos perfumados
Com fitas de jasmins e de açucenas.
XIII
Ventre macio como os veludilhos
Era o seu ventre. Que ideal beleza!
Seria o ninho armado, com certeza,
Para a fecundação de lindos filhos.
Pelas noites saudosas, de áureos brilhos,
Cheias de astros de límpida pureza
Ei-lo das danças pela correnteza,
Da tirana aos festivos estribilhos.
Ventre redondo! Delicado pomo,
Rosado como a flor do cardamomo,
Era para espalhar polens de flor,
Por este triste e desolado mundo,
Para que se tornasse mais fecundo
De almas e corações cheios de amor.
XIV
Sem saber o que são esses amores,
Essas funestas tentações de instante,
Pois vivia tão simples como as flores
Que o sol colora e beija acariciaste;
Sem saber o que são os dissabores;
E o que é dado sentir ao peito amante,
No triste pranto, que só vem das flores,
Amargo, amargo, atroz, febricitante...
Ei-la no entanto, e pela vez primeira,
Encontrando ao redor de uma fogueira,
Por São João uns olhos que a tentavam.
Quis, a princípio, lhe fugir ao fogo,
Mas não pôde fugir, e desde logo,
Os seus olhos os dele procuravam...
XV
Fitou dos olhos do Luiz a chama
E a sua alma tremeu... tremeu-lhe o peito.
E o pobre coração tremeu-lhe, afeito
Já, nesse instante, ao amor que tudo inflama
E desse amor celeremente a fama
Correu de boca em boca de tal jeito
Que todo o povo viu florido um leito,
E um véu branco, de noiva, sobre a cama.
Era um rapaz bonito e corpulento,
Formas de atleta e beiço penugento;
Braços robustos, negro olhar profundo.
Mas, para o amor daquela rapariga
Na gíria do lugar era uma espiga
Igual às muitas que andam pelo mundo.
XVI
— Não te deixes levar, que a boniteza;
Que uns olhos lindos; que uma boca assim;
Que umas palavras doces não põem mesa.
Nem servem para restos de festim.
Que a tua alma se lembre da certeza
De ser guardada, com sagrado fim,
Pelo eterno sacrário de marfim
Da alma virgem do filho da Teresa.
Isso de abrires dessa forma o peito
A esse rapaz do norte, não tem jeito,
Pois tu não lhe conheces a maldade.
Eram esses os límpidos conselhos
Que uma amiga lhe dava, de joelhos,
Osculando-lhe a mão, com caridade.
XVII
E a Rita, as cartas estendendo,
(Era a sortista de maior clientela)
Lhe disse: "Filha, a tua linda estrela,
Vai, entre nuvens, desaparecendo...
Não posso compreender, não compreendo
Como uma moça tão modesta e bela,
Possa a uma alma querer, sem conhecê-la;
Vá para uma alma, doida assim, correndo"...
E estendendo de novo as vinte cartas:
"Se casares, Florença, vê: não partas
Com esse moço, pois terás,voltando,
A alma rosada de amarguras, tantas
Como essas urzes, venenosas plantas
Que no caminho vão nos espinhando."
XVIII
Mas se casaram, numa tarde. O céu
De tão lindo que estava, parecia
Um terno, um leve, um delicado véu
Que sobre o mar e o campo se estendia.
Das ondas nem sequer sobre o escarcéu
Uma rosa de espuma aparecia
Tudo quieto: o mar, o campo e o céu
Só para vê-los, cheios de alegria.
Feliz entre os felizes, sobre a terra,
Ninguém um sonho mais formoso encerra;
Assim falava aos moços e aos rapazes,
Aquela que, pela simplicidade,
Buscava neste mundo a f'licidade
Sem se lembrar das ilusões falazes.
XIX
Que sonho mais dourado e mais formoso,
Como um dia de sol de primavera,
Neste mundo tão triste e tenebroso,
O coração de uma mulher espera?
Que sonho mais álacre ao venturoso
Peito de uma mulher na vida impera?
Que doura a vida da mulher, no gozo
Que as mágoas soluçantes dilacera?
O coração de uma mulher, na vida,
Espera um outro, que lhe dê guarida,
Toda a doçura, todo o sol feliz.
E o coração da rapariga andara
À procura da rórida seara...
E julgou encontrá-la no Luiz.
XX
A princípio, porém, naqueles seios
Quantos beijos febris! Na boca de ambos
Que torneios de beijos, que torneios,
Lembrando abelhas nos morenos jambos.
Os dois, na praia, pródigos de anseios,
Como soltavam leves ditirambos!
E nas rodas da dança, aos galanteios,
Como dançavam, sem pisares bambos!
Ela, tão linda que fazia gosto,
Com duas rosas cândidas no rosto;
E ele, tão forte como os próprios mouros.
Ela, o triunfo perenal da sala;
De boca rubra, e dentes cor de opala,
E ele, tão lindo, de cabelos louros!
XXI
Meses depois, no lugarejo inteiro,
Desde as fraldas do verde Cambirela
Ao mar azul, e ao último ribeiro,
Com aroeiras lhe fazendo umbela...
Meses depois, no lugarejo inteiro
Quanta desgraça! Só falavam nela,
Em Florença, coitada, e no traiçoeiro,
Nesse que a recebera, na capela.
Quanta ilusão desfeita, e quanto sonho
Por água abaixo, como num tristonho
Rio, os troncos das árvores, cortados!
Quantas lágrimas quentes derramadas,
E quantas noites trágicas, passadas
Da insônia sob os ais despedaçados!
XXII
Porém, segui-lo, que contentamento,
Para cumprir o seu fiel destino.
E por um dia, como um sol a pino,
Numa eclosão de luz no firmamento;
Um barco fez-se ao mar, e fez-se ao vento,
De bujarrona aberta, o alvo latino...
E o dia, cada vez mais cristalino,
Mais cheio de ideal florescimento.
No entanto a alma branca, de Florença,
Era inundada de total descrença,
Pois talvez não voltasse ao pátrio lar;
À terra amiga, e aos braços benfazejos
Dos que, entre soluços e mil beijos,
Ficaram tristemente a soluçar.
XXIII
À meia noite, quando o frio corta
Os pés, as mãos, o rosto, e enche a cabeça
Da gente, de uma névoa branca e espessa,
É que Florença ao Luiz abria a porta.
E chegado do jogo, a essa hora morta
Em que do espaço a solidão começa
A se unir à dos campos, e atravessa
As praias, onde o mar ânsias suporta...
Ei-lo o rapaz e às vezes embriagado
Em blasfêmias horríveis, revoltado
Contra a mulher, e contra os céus azuis.
Mas quando ele dormia, a rapariga,
Sempre tão boa, tão leal amiga,
Orava de mãos postas a Jesus.
XXIV
Só, neste mundo, de alma atribulada,
Sem um carinho feito de doçura,
Ei-la do mundo na medonha estrada,
Perto, talvez, da fria sepultura.
Vem-lhe ao cismar a sombra desolada
Da indescritível Rua da Amargura,
Por onde passa, e sente-se varada
Pelos punhais de lâmina segura.
As esperanças da alma lhe fugiram
E, pouco a pouco, todas se sumiram
Pelos mares dos tédios e das ânsias
Bem como certos pássaros se somem
Quando os invernos brancos os consomem,
Levando-os às mais trágicas distâncias.
XXV
Longe da casa que era como um ninho
Dependurado entre festões de malva,
Em cima de um barranco, no caminho,
De onde se via a linda Estrela d'Alva;
Longe da casa, e longe do carinho
Do amor materno, o grande amor que salva
Ei-la da vida no areal daninho,
Onde a saudade tanta dor escalva.
E o doce e meigo e santo amor materno,
E aquele olhar dulcíssimo, paterno,
Enfim, o olhar piedoso da família;
Tudo isso ela lembrava. E muitas noites,
Eram-lhe essas lembranças uns açoites
De vendavais na Torre da Vigília.
XXVI
Que profundas angústias, que pesares,
Que soluções e ais, ela sentia
Na hora calada e triste em que morria
A tarde azul, por cima dos palmares.
Lembrava os verdes, flóridos lugares
Por onde, em plena mocidade, havia
Gozado todo o bem, toda a alegria,
E as ondas verdes dos saudosos mares.
Lembrava, pesarosa, os espinheiros
Onde chilravam céleres coleiros;
E das fontes tranquilas se lembrava,
Porque nelas deixara a sua imagem
Sob o crivo dourado da ramagem
Como a da lua que por lá rolava.
XXVII
A quem contar as suas mágoas, quando
Elas vinham bater, num fundo enredo,
Sobre o seu peito o coração, clamando,
Como as ondas do mar, sobre os rochedos?
"Se eu fosse um leve pássaro, voando,
Por sobre o mar, sem vacilar de medo,
Bem certo, ó minha mãe, de vez em quando
Dar-te-ia saber o meu segredo."
Florença assim pensava, e assim dizia,
Cheia de amarga e funda nostalgia;
E, das plagas tristíssimas, remotas
Para amainar o seu viver cruel,
Quando não tinha folhas de papel
Escrevia nas asas das gaivotas.
XXVIII
Lá longe o viço auroreal perdera
E as rosas orvalhadas da saúde,
Numa tortura e acérrima canseira
Num labutar profundamente rude.
Mas voltando ao lugar onde nascera
E onde passara a sua juventude,
Talvez, agora, a sua vida inteira,
Em nova vida de rosais se mude.
É que a Virgem Senhora dos Aflitos,
Não deixa de escutar os ais e os gritos,
Nem de enxugar o pranto cristalino
De quem soluça, de quem geme e chora,
Mas vai serena, pela vida afora,
Na eterna Caravana do Destino.
Carlos de Faria[8]
Quando eu por esse mundo caminhava
Toda a minha alma abria-se no brilho
Do olhar de quem, chamando-me de filho,
Tantas cousas bonitas me contava.
Mas eu tudo isso rindo desprezava
Ignorando que fosse o mundo um trilho.
De urros e cardos – hórrido empecilho
Como o que a minha alma empecilhava...
E tonto andei, continuadamente tonto...
Mas afinal o que me entontecia
Se não a dor que a todos vai minando?
Ah! meus amigos, isto que vos conto
Só a alma dum poeta acaricia...
Errei no mundo, mas errei sonhando.
Carne
A Carne auroreal e florescente
Dos teus seios bicudos, retesados,
Tem a harmonia do cristal dos prados
Numa clara manhã de sol fulgente.
Carne formosa, tentadora e quente
Estonteante de aromas delicados,
Lembra a casca dos frutos sazonados
E um capitoso vinho do Oriente.
Outra não há mais aromal, por certo,
Alegre como um pássaro no Estio
Cantando à sombra de um pomar aberto.
Carne de branda maciez de malva
Mais bela do que sobre o azul dum rio
O diamante de luz da Estrela d'Alva.
Casamento infeliz
Casamento infeliz, o do Pedro Serrano!
Entretanto ninguém, na velha freguesia,
Deixou de sentir na alma uma grande alegria
Quando o Pedro casou, há pouco mais de um ano!
Mas, como em derredor de todo ser humano
Mora a desilusão, já nesse mesmo dia
Esse pobre rapaz negras mágoas sentia:
Outro lhe dava à vida um feral desengano.
E era tão puro o amor desse rapaz! Nesses campos,
Pelos dias de sol, ou à luz dos pirilampos,
Ei-lo cheio de força, a lutar... a lutar...
“Trabalhar e vencer”, dizia, a toda gente...
Mas não pôde vencer a mulher indemente
Só porque nunca quis morar longe do mar!
Casa pintada
Casa pintada de branco
Junto à beira de um barranco.
Portas abertas ao mar
Que ali vive a soluçar...
Telhados com trepadeiras,
E sombras de laranjeiras.
E um rio, ao longo, a cantar,
E um coração a chorar.
Era pintada de branco
A sua casa. E da porta,
Subia a gente um barranco,
De onde olhando a estrada torta,
Olhava também o mar
Que vivia a soluçar.
Lá longe o mar soluçava
Como um coração saudoso;
E aqui um rio cantava
Sobre um leito pedregoso.
Cheguei
Cheguei para te ver unicamente. Vim
Porque onde eu me via era tudo tão triste
Como a sombra que existe, eternamente existe
No lugar onde Abel foi morto por Caim.
O ambiente, em redor, e por cima de mim,
Era negro e augural, como tu nunca viste
Igual, num cemitério, ou quando a lua assiste
A tormenta, num mar fantástico, e sem fim.
Desespero, o da ausência! E mais que desespero!
Mas afinal cheguei; e, de joelhos, espero
Beijar-te a boca, as mãos, os olhos, o pescoço,
Os seios de veludo, o sedoso cabelo;
E os pequeninos pés, em tamancos de aurelo
Tudo o que anda a cheirar à espuma do mar grosso.
Ciúme
Verão. Céu cristalino. Abro a porta e as janelas,
E vejo o rio em curva, os campos, e os penhascos.
As nuvens da manhã recordam bambinelas;
E nas linhas da serra há sedas e damascos.
Vicejam na baixada as flores amarelas
Do extenso algodoal, e os cheirosos verbascos...
Balouçam docemente as pequeninas velas;
As canoas de pesca, os alígeros cascos.
Lindo o quadro que vejo à sombra de um salgueiro:
Dorme de mãos em cruz sobre o peito trigueiro
Um rapaz que passara a noite, na emboscada...
Mas para lhe abafar o brusco pesadelo
Uma mulher lhe estende ao peito o áureo cabelo
E lhe beija, a chorar, a boca torturada.
Clécia
Todo horizonte escuro, e as montanhas escuras...
Mantos de escuridão vêm do espaço caindo...
E os astros de cristal onde estarão luzindo?
Seriam para sempre extintos nas alturas?
Onde estarão também, de límpidas alvuras,
As garças dos mangais? Foram todas fugindo,
Porque o mar está como um leão, rugindo,
Ou lembra um coração a chorar amarguras.
Tremo de medo. A fé na minha alma se apaga...
Esta noite medonha, aflitiva e pressaga,
Leva-me o sonho em flor num caixão mortuário.
Mas entro de repente, em sua casa, e vejo,
Da candeia de folha ao mortiço lampejo,
Clécia a rezar por mim nas contas de um rosário.
Coisas passadas
Morenos, dessa cor dos frutos dos jambeiros,
Os teus seios, Maria, ardiam de uberdade...
Vê-los era um prazer, à sombra dos olmeiros
Que os viam, nesse tempo, em plena liberdade.
Numa linda manhã, chifrada de coleiros,
Porque Março chegara, em festas de saudade,
Tive-os nas minhas mãos, mas fugiram ligeiros,
Receosos talvez, cheios de castidade...
Mas para minorar desses seios o estio
Na tua boca havia a água fresca de um rio,
A água da minha vida, a matar-me os desejos.
Ando agora a lembrar essas cousas passadas,
Por essas praias, junto ao mar, pelas estradas,
Pelos campos em flor pelos rios e brejos...
Condenado
Condenado a correr praias desertas,
De uma profunda solidão selada,
Ei-lo que vai, palmas das mãos abertas
Ao fustigar medonho da ventada
Ei-lo que vai por todas as incertas
Praias das ânsias, na cruel jornada.
Onde não há manhãs desfeitas
Nem dia azul, nem noite estrelejada.
E irá seguindo pelas praias frias,
Durante as noites e durante dias,
Sem nunca descansar, um só momento,
Enquanto houver, ao longo dessas praias
Joelhos que rezem, como os Mayas
A pequenina esmola de um tormento.
Contraste
(Para o Luiz Pires)
Judith, a ave que tinha as asas cor do linho
E nos olhos a luz imortal da meiguice,
Não queria morrer sem que o teu caminho
Por sobre o luar, por sobre o teu peito caísse.
Na Via-Láctea em flor, no estrelado caminho
Feliz seria só depois que te sentisse
O peito junto do seu como um ninho,
Ou só depois que os teus olhos piedosos visse.
Como Nossa Senhora ouviu-a, a suprema piedade,
Com suas mãos surgiu-lhe a última vontade
E deixou-a ir, como uma garça sobre as águas.
Abriu-se então no azul augusto lírio na haste
Uma porta de luar... Mas no mundo, que contraste
Teu coração chora um mar de eternas lágrimas.
(Março, 1908)
Coração de Jesus
Divino o vosso coração! Divino
Em resumo de todos os dulçores!
Um misterioso vaso cristalino
Feito de sol, para guardar as flores!...
É no entanto, Jesus! meigo Rabino!
Verbo do Amor! Consolação das dores,
Viste-o vazando sangue purpurino
Viste-o coberto de cruéis horrores!...
E Ele ainda vive nesse mesmo anseio
Pois da água um veio sempre foi um veio
Como um clarão da luz sempre um clarão.
Todo Ele assim, Rabino, me parece...
E desse vosso coração nos desce
A água eterna das fontes do Perdão!...
Coroa de espinhos
Talvez vocês não saibam, meus filhinhos,
Quem me coroou de aspérrimos espinhos...
Quem a minha cabeça fatigada
De tantos golpes fez martirizada.
Quem circundou-ma de tormentos tantos,
Sem se lembrar dos rios dos meus prantos.
Quem circundou-ma assim, e fê-la exangue,
Esgotando-lhe o manancial do sangue.
Quem cada vez, desoladoramente,
Mais ma circunda de uma dor pungente
De tanta dor, profundamente forte,
De tanta dor igual à da ânsia da Morte.
De tanta dor que eu mesmo nem sei como
Domo-a por vezes, num febril assomo...
E ao seu peso há tempos que procuro
Um caminho onde pise mais seguro...
Onde pise mais firme os pés chagados,
Que outrora foram limpos e rosados...
Pois vezes há, meus extremados filhos,
Que estes meus pés, ao procurar os trilhos
Do frio chão aspérrimo, parecem
Que esse tão frio chão na dor esquecem...
Vacilo então e, trêmulo, convulso,
Sem a força menor, menor impulso,
Caio bem como (a tua mãe há visto)
Caio nas Ruas da Amargura, Cristo.
Dir-se-ia o mundo me fugir às plantas
Dos pés. E tem acontecido tantas
Vezes isso que ora a vocês todos conto
Que eu já nem sei onde encontrar um ponto
Onde possa pisar sem que me veja
Como o viver que o vento espanadeja...
Outras vezes, meus filhos, adormeço
Porque na dor a própria dor esqueço...
Adormeço nas asas do tormento,
Mas o meu sonho é feito de atro vento...
De um vento igual ao que há nos Pampas,
Que faz das casas funerárias campas...
E se acontece vir-me à ideia um sonho,
Esse não é senão um caos medonho...
E minha alma por esse caos se embrenha,
Sem que outra alma ampará-la venha...
Só, pela solidão, só pelo espaço,
De tantas léguas ver sente o cansaço...
De quem por muitos séculos andasse
E jamais visse a paz, que procurasse...
Ou a de quem tivesse o atro destino
De ser forçado a andar como um beduíno
Por um deserto que, amaldiçoado,
Fechasse um mar de lágrimas formado.
Ou a de quem, para ter do Amor a teia
Tivesse de contar os grãos de areia;
Ou então tivesse de esperar que o oceano
Tranquilamente lhe contasse, ufano,
A quantidade de ais e de soluços
Dos que, de joelhos curvos, ou de bruços,
Foram tragados pelas suas vagas
Desde as primeiras luas aziagas.
Em que lhe foi mandado que matasse
Ais e soluços e que os não contasse...
Ah! minha alma por esse caos se embrenha
Sem que uma outra alma ampará-la venha.
No entanto eu tenho, do meu peito perto,
Um ninho de almas docemente aberto...
Um ninho de almas piedosas, meigas,
Como as aves que voam pelas veigas.
E elas são vocês, almas amadas,
Pelo clarão do amor iluminadas.
E a alma da tua mãe, que é a minha eleita
Aos seus afagos virginais me aceita.
A alma da tua mãe resplende tanto
Que é a lua com que enxugo o pranto.
A alma da tua mãe é o Asilo branco
Da Fé, em cujo altar eu rezo, franco...
A alma da tua mãe resplende em flores,
E lembra o altar da Virgem Mãe das Dores...
Deixa morrer
Que ela morra assim calma, assim doce e tranquila,
Nessa doçura igual à alma das ovelhas.
Olha como fechou-se essa linda pupila,
E essa boca onde havia o favo das abelhas.
Deixa morrer, assim, quem no peito de argila
Teve um vinho melhor que o vinho das botelhas,
Pois o vinho do amor nos sonhos se destila
Sob o amaino feliz, benfazejo, das telhas.
Ela falou no filho... E ele vive, por certo,
Nesta hora, a trabalhar num caminho deserto
Lá longe, a trabalhar, da manhã ao sol posto.
Deixa que morra assim tranquila, essa velhinha,
Pois que sem mais tardar, talvez logo, à tardinha,
Tenha o seu filho alguém a lhe enxugar o rosto.
De joelhos
Jesus! Jesus! Imaculado Fruto
Dos vinhedos do Amor, Fruto aromado,
Desce aos astros letais do meu pecado.
Ampara-me, Jesus casto, impoluto!
Pois Tu sabes o quanto choro e luto,
Pois Tu sabes o quanto atormentado
Vivo, e o quanto do peito a dor prostrado
Todas as mágoas tristemente escuto!
Jesus coroado de cruéis espinhos!
Jesus que andando só por vis caminhos
Desce bem como um vaso de fragrâncias,
Desce o teu olhar de amor eterno
Sobre minha alma, que atravessa o inferno
No carrilhão fantástico das ânsias!
De manhã
Uma grega doirada em cima da montanha...
Cinco horas da manhã. Na limpidez do céu
Uma nuvem recorda a urdidura de um véu,
Para os ombros cobrir de uma visão estranha.
E apressado desci, de machado e gadanho,
Às minhas vinhas. Uso um rústico chapéu,
Indústria que esse povo, o velho povo ilhéu
Amanhava feliz, e ainda agora amanha.
Olhem quem vai passando ali, junto da praia!
Sem resguardar os pés, sem resguardar a saia,
Nem os seios febris, num capote sem mangas.
E agora como o seu olhar tornou-se lindo!
E como a sua boca em flor abriu-se, rindo,
Num sangue que recorda a tinta das pitangas!
De onde vens, minha amada...
De onde vens, minha amada, a estas horas mortas
Sob um frio que gela as montanhas e o mar,
Por onde erra, diluído em óleos, o luar
Que contemplo através das janelas e portas?
Nesse frio, por certo, as carnes brancas cortas;
E tens toda parada a luz do próprio Mar;
E o próprio coração parado, sem pulsar,
Ó minha doce amada, a estas horas mortas.
Venho da sombra espessa e eterna do cipreste,
Trajando da saudade as mortalhas, as vestes;
Pois num ninho moro a centenas de luas.
À espera de subir às regiões do Espaço
Somente, ó meu amor, na curva do teu braço
Morno e febril, mãos unidas às tuas.
Depois de morta
Essa que o povo vê surgir da luz branca
Que a noite estende sobre o mar e sobre o campo,
Numa luz de santelmo, ou luz de pirilampo,
Uma história talvez dentro da alma resuma.
Vê-se-lhe o resplendor das vestes cor de rosa,
Quando ela se incorpora... Ergue-se-lhe o rosto lampo,
E um lírio todo azul, entre os galhos de um grampo,
Na sua trança de ouro ei-lo surgido, em suma.
Quem será, quem será essa visão de encanto,
Que tantas graças tem? Desconheço-a. No entanto
O povo sabe e afirma, anda sempre a afirmar
Ser com toda a certeza a noiva do Paulino,
Que morreu de paixão, ao saber do destino
Desse velho rapaz, na pesca, no alto mar.
Desdêmona
Foste tu, minha flor, minha filha querida,
A primeira a cantar junto de nossa vida.
A Primeira que em sol ofereceu-nos como
De um divino Missal o simbólico tomo.
O teu primeiro olhar foi a nossa alegria
E mais nada houve de mais lindo naquele dia.
Se fosse sempre assim, como um mar de doçuras,
Onde nunca passasse o vento das torturas...
Onde nunca brotasse a flor sanguinolenta
Das árvores da Dor que tanto fel sementa.
Das árvores da Dor, das árvores do tédio
Para cujo veneno ainda não há remédio...
E urdíamos na alma o teu belo futuro
Por enquanto nas mãos do Criador seguro.
E diríamos um ao outro, entre fortes beijos,
Que belo é a gente colher o fruto dos desejos!
Mas sob os nossos pés um negro mar bramia:
A pobreza cruel e a sua melancolia...
Mas foste, desse Mar, a sereia encantada
Em cuja lenda andava a nossa alma embalada.
Desejo
Quem tivesse essa vida, assim, doce e serena,
Ou cheia dos clarins vermelhos da alvorada,
Por esse céu azul, que é todo uma açucena
Sobre o mar, sobre o campo e a montanhas voltada!
Vida de quem tocasse uma saudosa avena,
E ao rebanho chamasse a ovelha desgarrada,
Precavendo-a do lobo, e das garras da hiena...
Pois muitas feras há pelas sombras da estrada.
E Raquel bem seria a minha companheira,
Na abençoada paz dessa vida fagueira,
Sem os pesos do tédio, e o vinagre da mágoa.
Mas seria feliz, assim, a minha vida,
Deste mundo fatal na estrada indefinida?
E os meus olhos que são eternas fontes de água?
De volta ao mar
I
De volta do mar grosso as canoas de pesca
Vêm dobrando o costão, todas a quatro remos.
Ei-las agora, junto à praia branca e fresca,
Onde a espuma nos dá rosas e crisantemos...
Que vida encantadora, alegre, pitoresca!
E que emoções iguais lá na cidade temos?
Lá nossa vida é toda uma aflição dantesca
Velados de amargura os próprios sonhos vemos.
Aqui, no mês de Maio, azul, transparescente,
Nesse trabalho rude a alma se vê contente;
Não há nenhum só que de pesar se queixe.
E a luz de ouro do sol, sobre cada canoa
Paira como um tendal – É Jesus que abençoa,
E Pedro, sem ser visto, as transborda de peixe!
II
Noite de junho. O frio é vidro em pó coçando
As mãos dos que da praia, estendidos na areia,
Estão tranquilamente o café esperando
De um rancho em cuja porta um clarão bruxoleia.
Outros já da canoa as velas vão soltando...
Não há tempo a perder, que à luz da lua cheia
O vento sul que sopra as ondas vai rolando...
E cada coração de pescador anseia!
Todos, todos ao mar, satisfeitos, felizes!
Sem sentirem do mal as profundas raízes!
Apenas da saudade envolvidas nas mágoas.
Mas que saudade doce a dessas almas francas.
Sob as velas em cruz, as grandes velas brancas
Da canoa que lembra uma ave à flor das águas.
III
Noivos! Que lindo par de todos invejado!
Ela de cor trigueira e ele da mesma cor,
O olhar da Hortência tinha um resplendor sagrado
E o de Luís possuía um igual resplendor.
E se casaram sob um céu iluminado,
Por uma tarde que lembrava uma flor...
Houve uma grande festa em todo o povoado:
Cantigas originais, recordações de amor!
E à noite, na enseada, à luz branca dos astros,
Dos bancos a floresta ondulante dos mastros
Enchera-se também dessa imensa alegria!
Mas um ano depois (oh! triste realidade)
Hortência era na praia a visão da saudade...
E o corpo do Luís, em que praia estaria?!
Dia de festa
(Para o Dr. Adolfo Konder)
Quem faz anos assim, cantando de alegria,
Vê, ao redor de si, todo o esplendor de um dia original
Rarefeito em sons divinos
De alados bandolins;
De alados citaredos;
De alados violinos;
De aladas barcarolas,
Em ritinantes cordas de violas
E de segredos;
De asas de harpas de cristal,
Tudo a flutuar... tudo flutuando,
De vez em quando,
Pelos verdes cetins
Dos arvoredos,
E ao correr das montanhas
Estranhas,
Da nossa boa terra sonhadora,
Com Santa Catarina a rodar... a rodar
A misteriosa dobadoura
Dos alvos linhos do seu sonhar,
À beira-mar... à beira-mar.
E quem os faz, neste dia,
Rodeado de alegria,
Da sua própria alma, e das almas amigas,
Num rubro encantamento de cantigas,
Ilumina-se como o vão de uma janela
Que dá para a amplidão de um mar... E em cada vela
Parda, à luz da manhã mais rutilante e bela,
Vê a flâmula de uma abençoada
Cruzada
Que, feliz, voltará
Como voltam, cheias de ufania,
E de satisfação,
As da Rainha de Sabá,
Abarrotadas de suavíssimos perfumes
E de pedras da cor do olhar dos vagalumes;
E de papos de sangue estuante de tucano,
E de arco-íris de penas de pavão
E de madeiras preciosas;
E de orquídeas maravilhosas,
De tudo isso, afinal, para, de ano a ano,
Ser dado de presente a Salomão.
Ilumina-se. Vive. Goza. Dir-se-ia
Encontrar-se, também, num lugar alto,
Num cimo muito alto,
Longe, longe do asfalto
E daí abranger, como abrange,
(E ninguém o constrange)
O campo imenso, trabalhado
Lavrado, cultivado
E atravessado
Pelas veias de prata liquescente,
E esplendente,
Dos grandes rios;
E abrange, como abrange, com cuidado,
Os esses das estradas
Cheias dos murmúrios
Das Caravanas do Ideal, que descem,
Vindas do norte e sul, com os bandeirantes
Da eterna Comunhão dos sonhos palpitantes.
................................
Depois, essa alma moça e encantadora, desce;
E, entre glórias, caminha
Em direção de um lar que Jesus abençoa,
E aí vê, ajoelhada,
Uma santa velhinha
Humildemente boa
Como se fosse a meiga e suave ovelhinha
Que há muitos anos vive abraçada... abraçada
À alma branca e precursora de João.
Então,
Nesse sublime e sagrado ambiente,
Onde o amor é um lírio que floresce
Essa alma moça sente
A vida lhe sorrindo;
E vai o peito abrindo,
Como se abre a porta augusta de uma igreja;
E por ele espaneja
Eterna, eterna,
A asa toda caminho efluviante e azul,
De ave exul
De bênção materna.
E ao vê-la abençoada,
Iluminada
Os seus amigos lembram-se de dar,
Aos pobres da cidade,
Um pedaço de pão,
Comprado
Com o dinheiro recusado
Para uma grande festa
Singular.
Mas, estende-se a luz, clara e fagueira
De uma linda manhã alvissareira.
Ambos esvoaçam pelo ar chilreando
De vez em quando...
E cada um traz ao bico um ramo de oliveira.
E não deixa, entretanto, de haver festa
Desde os campos de longe às ruas da cidade.
Oferenda
Seja sempre de Deus toda essa alma modesta,
Vestida do que há de branco na piedade
Que tantas asas tem!
E seja nossa, também.
(16/02/1927)
Disse minha alma
Disse minha alma um dia ao punhado de terra
Que lhe serve de ninho há uns decênios de anos
"— Espera que eu vou ver, na paz que a noite encerra,
Como dormem por certo os corações humanos".
E minha alma voou, e como um pássaro erra
Do casebre do aldeão à casa dos tiranos.
E o que viu? Uma luta feroz... a guerra... a guerra...
E as mesmas ilusões, os mesmos desenganos.
Nem quando a noite é alta os corações descansam
Pois deles em redor, como fantasmas dançam
Os sonhos... E quem sonha anda na mesma estrada
Do tormento, da dor, do anseio, da loucura,
E se a bendita paz na outra vida procura,
Sem encontrá-la volta à mesma luta azada.
Dois seios
Dois seios, como dois limões cheirosos,
Num pomar cor de rosa, sempre ocultos
Aos olhares profanos, e aos tumultos
Dos desejos febris, voluptuosos...
De dois pombos também, os veludosos
Seios de Hortência, davam-nos os vultos
Até os velhos lhes rendiam cultos
De carinhos e afagos jubilosos.
Houve quem, ao beijá-los, me dissesse:
— Não há na terra mais doirada messe.
Esses mais são trigo e são azeite,
São água e vinho, um vinho que não arde
E são favos de abelhas, e, mais tarde,
Serão dois rios túmidos de leite.
E essa cabeça altiva...
E essa cabeça altiva ainda estará coroada
De pontaços cruéis de trágicos espinhos?
E nessa boca rubra ainda terás guardada
Uma gota de fel, invés de claros vinhos?
Santo Estevão lendário em cujo peito medra
O símbolo da fé, da crença e do heroísmo,
Alguém ainda te nega, ainda te lança pedra,
Neste mundo cruel, que é um verdadeiro abismo?
E negam-te o fulgor dos sentimentos vivos,
E as alucinações na Rua da Amargura?
Não corrias, fremente, aos míseros cativos
Que tinham na epiderme a mesma noite escura?
Não viveste no Amor, que as almas levanta,
Que as almas santifica e as transforma nos seres
Puros, celestiais? Nessa Cruzada Santa
Não amaste a criança, os homens e as mulheres?
Amavas a criança, apaixonadamente,
Amavas de tal jeito e tal contentamento,
Que os teus olhos, assim, ao vê-la, de repente
Eram todas clarões de almo florescimento...
Não amaste, emotivo, os homens do trabalho
Do pão de cada dia – os rudes operários
Que ocultam (sabe-o Deus) uma gota de orvalho
Apenas, na surdez dos feitos solitários?
E as mulheres, então? Como por todas tinhas
Uma veneração que nunca se acabava!
Ao vê-las, deste mundo entre as plantas daninhas
A tua alma, ajoelhada, ante seus pés, orava...
Não lhes deste da pena as rubras energias,
A força necessária, e o valor nunca visto
Quando cheio de fé e crença, as defendias,
Como, na Galileia, o próprio Jesus Cristo?
Moravas num casebre, à beira de uma fonte,
Em cujo lavadouro, a tua mãe, lavando,
Tirava com a lavra a negrura da fronte,
De joelhos em terra, e às vezes, soluçando...
E o teu pai, num telhado, ei-lo já com cem anos!
Continuava a ser o pedreiro Guilherme...
Mas nunca se queixou dos frios desenganos,
Nem de ter, como tu, a noite na epiderme.
A noite da epiderme! A noite sem estrelas!
Mas, através do escuro, as estrelas não brilham
Por essas regiões fantásticas e belas
Que a ideia não alcança? Então por onde trilham
Os sonhos da nossa alma, e a nossa própria alma,
E o nosso grande amor, para sempre bendito?
Apenas sobre a terra onde andamos sem calma
E quem nega de Deus as Casas do infinito?
Uma esposa encontraste: — Ei-la na tua tenda,
Nessa ramada em flor, nessa linda lareira,
Como a mais preciosa e bendita oferenda
Para transfigurar a tua vida inteira.
E vieram depois, para o amaino das telhas
Dessa tenda feliz, cheia de tantos brilhos,
Os virgens corações dos teus queridos filhos,
Tão mansos e tão bons como as próprias ovelhas.
Dessa tenda fizeste o mais rico santuário
Da alegria, do amor, da paz, da fé, da crença
Das ânsias e da Glória — um misto extraordinário
E transformaste em sol a tua mágoa imensa.
E ao teu próprio inimigo abriste o largo peito,
Como quem, de manhã, abre as janelas francas
Aos perfumes e à luz, e fica satisfeito,
A olhar o campo em flor, o mar e as praias brancas.
Mas, a Morte chegou, e à cova fria, fria...
O teu corpo desceu às provas do destino
Dela surgiu, no entanto, a luz clara de um dia
Era a ressurreição de um pássaro divino.
E subiste... subiste... em procura dos sonhos
Que sonhavas no amor e nos próprios tormentos...
E foi quando te viste em plenos céus risonhos,
Na infinda floração dos altos firmamentos.
Logo, na triste cor que envolvia o teu rosto,
Que era noite fatal, para provas, no mundo,
Não havia razão para tanto desgosto
Na alma de tanta gente, e um desprezo profundo.
Outra gente, porém, sentia-se contente,
De alma cheia de sol, de músicas e flores,
Quando via do teu olhar a luz dolente,
E escutava tua alma a lhe contar as dores...
E as dores, na tua alma, era asas felizes,
Por cima desse mar, e por cima dos montes,
Que tinham toda a seiva estuante das raízes
Duas árvores em flor junto às águas das fontes.
Torturam-te a alma as lágrimas amargas,
As lágrimas de fel de envenenado mosto,
Mas, sem vacilações, ias por essas largas
Estradas, sempre rindo, e sem rugas no rosto.
Outra gente, outra gente alegre, e satisfeita,
Te amava, te queria, e contigo sonhava...
Nas searas do Bem, que abundante colheita!
Parecias Jesus, quando na terra andava...
E por seres, assim, tão bom, meu grande amigo,
Encontraste na terra os braços amorosos
De uma bela mulher que quis viver contigo,
E viver para o amor e para os céus ditosos.
Hoje, a tua alma branca, a tua alma formosa,
A tua alma feliz, a tua alma louçã,
Desce das regiões de luz maravilhosa,
Com o mesmo esplendor da Estrela da Manhã.
II
Bem-vindo sejas tu, ó meu saudoso amigo!
Bem-vindo sejas tu, das regiões celestes...
Deu-te Jesus, que andou neste mundo contigo,
O símbolo da Glória, e puríssimas vestes...
É que na terra foste um levita abençoado
No tugúrio da dor, no deserto das ânsias
E por isso subiste, assim, glorificado,
E jamais te perdeste, além, pelas distâncias...
Eu nesta hora te vejo. Ah! todos nós te vemos,
Porque nos corações dos que te querem tanto,
O teu nome renasce, e é como os crisantemos
Numa festa cristã florindo aos pés de um santo.
O teu nome renasce, e cada vez mais lindo,
Em derredor de nós, a cada hora que chega.
De dia, é todo um sol que entre cristais vai rindo
E à noite bem parece a floração de Vega!
O teu nome renasce entre glórias benditas,
Porque da dor te viste ao calor das fornalhas,
Que te secaram bem as lágrimas aflitas,
E te vestiram bem de trágicas mortalhas.
Mas, como após um dia outro dia aparece,
Às vezes muito mais repleto de verdade,
Eis a razão porque, agora, resplandece
O teu nome que a Glória encheu de claridades.
Eis a razão porque, das paragens do Norte,
Às paragens do Sul, nossa alma estremecida
Bem parece te ouvir cantar na paz da morte,
Como cantar te ouvira, entre as lutas da vida.
III
Estas são, da minha alma, as palavras amigas,
E são as deste povo, em cujo peito, oculto,
Para sempre estará, entre as louras espigas
Do Amor que nunca morre, o esplendor do teu Vulto.
E eu, de tão longe
E eu, de tão longe, ficarei cismando,
Nesses teus lindos olhos, rasos d'água...
E tu, querida, pelo mar chorando,
Mais me encherás o coração de mágoa!
Ah! quando sobre o azul das ondas fores
Olhando para trás, continuamente
Hás de na alma sentir os amargores
De uma saudade atroz, impenitente...
Se não partisses, flor, ah, se não fosses,
Como eu veria a Luz da Glória perto:
Porque, longe dos teus olhares doces,
Não vivo: a Ausência é o meu túmulo aberto
Sem teu amor, sem teus afagos, santa,
Eu deixo de existir, caio na Treva,
Porque tu és o sol que me alevanta,
Que o meu ideal para o futuro leva!
Tu deves compreender que nós, poetas,
Temos no peito uma paixão enorme;
Que o nosso coração, como os atletas,
Vive lutando, porque nunca dorme:
Vive lutando pelo Amor, que desce
Do azul do céu, lá desse azul profundo,
O amor que nos redoira e nos floresce
O rei, gênio do Bem, a alma do mundo
No entanto hoje meu peito foge à luta
Porque tu vais partir, ó luz querida,
Tu que és da terra a flor mais impoluta
Tu, que és o sol – vida da minha vida.
(Laguna, setembro de 1888).
Em cada face[9]
Em cada face
Uma vivace
Papoula havia
Toda orvalhada
Da luz dourada
De um claro dia.
Uma carinha
Engraçadinha
Ei-la no rosto,
De lado a lado,
No sazonado
Fruto de Agosto!
Graça lhe dava
Quando ele, indo,
Cantarolava.
Bem crescidinho
Fez-se roceiro,
E no caminho,
De quando em quando,
Cantarolava...
Cantarolando
Ia deixando
Na paz dos vales,
Pelas escarpas,
Ais de atabales,
Gemidos de harpas.
Livre dos tombos,
Caçava pombos
Pelas coivaras;
E nas florestas
Ardendo em festas,
Caçava araras.
De manhã cedo
Vagava ledo,
Numa canoa;
E quantas vezes
Guiava as rezes
Para a lagoa.
Do carro à frente
Sempre imponente,
Chamava os bois,
E pelo barro
Ouvia o carro
Chiar depois...
E no terraço
A mãe ao vê-lo,
Erguia o braço
Para prendê-lo,
Porque no mundo
Só ele havia
Na poesia
Do amor profundo...
E meditava
Se acaso a norte
Um dia viesse
E lhe trouxesse
Uma mortalha,
Das que espalha
No mundo inteiro,
Dentro da mesma,
Corpo de lesma
Ela seria,
Porque ninguém
Cismar podia
No grande bem
Que ela nutria
Por esse filho.
Mas veio a morte
Faca de corte,
E o lindo brilho
Do olhar do filho
Querido, amado,
Ei-lo cortado
De uma maneira
Traiçoeira...
E então a alma
Da mãe, sem calma,
Sem um sossego
Viu-se no pego
Dos sofrimentos;
E os seus lamentos
Negros, estranhos
Eram tamanhos
Dos próprios ventos.
E aquela pobre
Mãe tão tristinha,
Ajoelhada sobre
O frio chão,
Como quem sonha
Parece estar:
Olhos fechados,
Amortalhados
Na compaixão
De um triste luar...
Luar funéreo
Que ao cemitério
Profundo desce
Como uma prece.
E como eu tenho
A convicção
Da alma voar
Para a Mansão
Celestial,
Na ocasião
Em que a morte,
Faca de corte
Nos corta a vida
Indefinida,
Material;
Como eu tenho
Toda a certeza
Que amor igual
Ao maternal
Não há no mundo;
Por isso venho,
Nossa Senhora,
Pedir, nesta hora,
O almo consolo
Que no teu colo
É ninho eterno;
E nos teus lábios
Doces ressábios
De áureo falerno;
E nos teus olhos,
Luz infinita
Para os escolhos;
E em tua mão
A direção
Que necessito,
No mundo vão,
O coração.
Vai até lá
Ao Campo Santo,
E com o teu manto
Enxuga o pranto
Dessa infeliz
Que não me quis
Ouvir dizer
Que toda a gente
Por mais vivace
No mundo nasce
Para morrer.
E reviver...
Em romaria
Vamos, vamos ouvir-lhe a palavra divina,
Que mais do que uma fonte os campos fertiliza!
Da sua boca em flor de aurora purpurina
Tudo o que sai encanta, embriaga, aromatiza!
E o seu olhar possui a chama cristalina,
A chama dessa luz que o nosso olhar divisa!
E que sincero amor, mais que o ouro da mina
Muitas vezes subido, o seu olhar desliza!
Sobe a Montanha então um turbilhão de gente;
E dentre ele Jesus surge, resplandecente...
E em verdade lhe sai da boca aberta em flor
Tudo o que encanta, embriaga e aromatiza o sonho
No qual seu próprio olhar meigamente tristonho
É a suprema expressão do verdadeiro Amor!
(São José, 1903)
Era tão pequenina...
Era tão pequenina que de um lírio
Fiz-lhe o lindo caixão onde deitei-a
E aí ficou, à doce luz de um círio
Muito mais branco do que a lua cheia.
Na alma não tive o mais sutil delírio,
Porque a nossa filhinha, essa teteia,
Não sofrera das mágoas o martírio;
Nem lhe passara o mundo pela ideia.
Lótus gelado desse azul viera...
Entretanto os clarões da primavera
Os verdes campos de rosais enchiam.
Fora feliz a nossa filha... E quando
Fui enterrá-la, os pássaros, em bando,
Isso que eu digo, céleres, diziam!...
Ergui minha alma[10]
Ergui minha alma aos páramos celestes
E fui galgando as límpidas estrelas
Que, cada vez, de perto, são mais belas,
Como tulipas de argentinas vestes...
E vós, mulheres, que no amor me destes
Todas as forças — e que, nesta hora, delas
Em derredor andais, a percorrê-las
Ao meu encontro com saudades viestes...
Senti-me bem, nesse solar ouvindo
As nossas almas que se iam abrindo
Em harpas de ouro da mais rica gema...
Mas tive que voltar, saudoso e triste,
Porque no mundo uma mulher existe
Para fechar-me os olhos na hora extrema.
És a segunda flor
És a segunda flor simbólica dos Sonhos
Do nosso grande Amor, vinda através do Espaço
Lá desse azul dos céus meigamente risonhos.
Da tua Mãe no doce, aromado regaço,
Eras de uma ternura e flacidez de talo
De açucena arrancada há pouco no terraço...
Que corpo tão gentil! Ah! Com que compará-lo?
Nunca houve por certo uma haste mais franzina,
Ele abria desejo à gente de tricá-lo...
E se te visse um leão, quando eras pequenina,
De fera rude e atroz à pomba passaria
Do teu místico olhar à luz casta e divina.
E o que faria a hiena? A hiena o que faria,
Se te visse chorar, ó mina filha amada?!
Por certo, minha filha, amamentar-te-ia.
E era já um nevoeiro a nossa longa estrada!
Pela nossa alma adentro o tédio nos cavava
Todas as ilusões de uma graça sonhada!
À nossa mesa o pão minguava, escasseava
E eis toda a nossa dor, todo o nosso tormento.
Espádua
Nesse de rendas brancas da Saxônia
largo e claro decote em curva, a tua
Espádua entorna o aroma da begônia,
numa alvura eucarística de Lua.
Nem a espuma sutil do Mar de Irônia
lembra essa Espádua lirial que, nua,
trazes para tormento e para insônia
dos olhos que perseguem-te na rua.
Espadual! Rosa branca aveludada,
mais casta do que a ovelha imaculada,
abres em mim um desespero rubro...
Um desespero de morder-te como
se fosses, látea Espádua, um doce pomo
quente, inflamando no esplendor de Outubro.
Esperança
Como chegou feliz! Como chegou cantando
Como uma ave na luz dulcíssima! Chegou
Da capela do morro, onde esteve rezando
E onde à Nossa Senhora uma vela entregou.
Como chegou feliz, da alma branca vazando
A graça que no olhar de Maria encontrou
No momento em que o seu coração meigo e brando
Do rosário da esperança as contas desfiou!...
Chegou à velha casa onde morava, e disse,
Toda cheia de paz, de sorriso e meiguice:
— Filho, a tua saúde há de prestes voltar...
E, seis dias depois, o Pedro, da enxada,
Já saía, ao raiar da roxa madrugada
De um lindo mês de Maio, à pesca no alto mar.
Essas falanges
Essas Falanges, de que mão serão?
Pelo anel que ainda existe e ora vejo
Rolando junto delas, pelo chão,
Dizer-te a dona nem sequer desejo.
Mas se não te falar toda a razão,
Esse da alma puríssimo lampejo,
Essas falanges que agora estão
Dos vermes entre lúbrico cortejo...
Essas falanges são de quem um dia
Jamais pensava em vê-las desse jeito
No mais nojento e solitário leito.
E esse anel de tão linda pedraria,
Ninguém o quis, nem mesmo a própria terra,
Porque ele muitas lágrimas encerra.
Eu conheci um cão
Eu conheci um cão na nossa aldeia,
Que se julgava o mais altivo cão.
Mas uivava, raivoso, à lua cheia
E andava às moscas pelo frio chão.
Tinha por certo sangue azul na veia
Tal do seu porte a excelsa distinção!
Mas não deixava de roer, à ceia,
Todos os ossos da mais vil ração.
Não tinha dono, era vadio, e quando
Por ele alguém passava, ei-lo rosnando
Ironicamente ao longo das estradas...
Assim o orgulho se nos aparece,
Nessa altivez de cão que não se esquece
De uivar à lua e de roer ossadas!
Eu te quero...[11]
Eu te quero na curva amorosa dos braços,
Junto do coração, e que possas ouvi-lo,
Quer do momento em que dele é um passar tranquilo,
Ou um batalhador curvado de cansaços...
Vacilantes, embora eu já sinta os meus passos,
Vacilante não sinto o peito, para uni-lo
Ao teu peito, no qual vive o amor no sigilo
Da amizade que é eterna através dos espaços...
Viveremos assim, nesta nesga de terra
Neste lindo lugar que as carícias encerra
Da luz que é um monte de ouro ao longo dos caminhos.
E para o longe então ficará toda a sorte
De mixarias cruéis... e teremos na morte
A paz que é sempre dada aos humildes velhinhos.
Felizes
Foge à cidade, e vem morar comigo, aqui,
Neste rancho que o sol enche de claridade,
Onde sempre vivi, onde sempre vivi
Cheio de amor e paz, e rósea mocidade.
Onde vivi, e vivo, e hei de viver... Quem há de
Tirar-me deste lar tão bom? Eu nunca vi
Moradia melhor, nem mesmo na cidade;
Nem noutra, como agora, a alma feliz senti.
Ora, nós dois assim unidos, abraçados,
Longe das coisas vãs teremos bem fechados
Os olhos, da miséria aos trágicos misteres...
Viveremos no bem, sem os cruéis apodos
E eu dos homens serei o mais feliz de todos,
E tu, a mais feliz de todas as mulheres.
Fonte de pranto
Suzana, há quanto tempo humildemente lavas
Nas pedras desta fonte. És uma pobre viúva.
E para teres pão, lavas ao sol e à chuva,
Tu que o lótus do amor ao peito acariciavas.
Moça, pelas manhãs azuis, quanto cantavas!
Eras linda e feliz. Frescas doçuras de uva
Tinhas na boca rubra. E o teu corpo, da luva
Possuía a maciez. Como, assim, encantavas!
Mas, foi-se a tua linda e álacre mocidade,
No torvelinho atroz da augural tempestade
Que atirou teu marido aos profundos abrolhos...
Velha, vives agora a lutar nesta fonte
Que eu não sei se descia das entranhas do monte
Ou se formada foi do pranto dos teus olhos.
Eu te saúdo
Eu te saúdo, ó mar, ó grande torturador!
A ti, que desse peito os segredos e as queixas
Pelas praias rolar seguidamente deixas,
E as desse coração profundo, misterioso
Sob o luar velado, o luar tenebroso
Ao qual, nesta hora, tu friamente te enfeixas
Vim às tuas juntar, numa sede de endexas
As ânsias do meu peito aflito inditoso.
É que no mundo atroz, para sempre inclemente,
Um outro coração veio, a que sabia, crente,
Minhas ânsias ouvir, de um modo singular.
E para aqui chegar, venci longos desertos
Pregado à cruz do Amor, com os braços abertos
Numa dor misteriosa igual à tua, ó Mar.
Gente antiga
Ninguém ria dos que, alquebrados, velhinhos,
De ombros cheios de peso, e trêmulas passadas,
Erram por essa praia, e por esses caminhos,
Desde o flavo raiar da álacre madrugada.
Eles já foram como os meigos passarinhos:
Já rimaram da vida a festiva balada,
E tiveram no sonho os mais cheirosos ninhos,
Nos verdes olivais de uma esperança alada...
Essa gente, porém, pelo caminho afora,
Com o peito aflitivo e acabrunhado, agora
Evoca, humildemente, os dias benfazejos
Da mocidade azul que gozara, sorrindo
Ao mar; sorrindo ao sol, sorrindo ao luar tão lindo,
Sorrindo à paz, sorrindo ao amor, sorrindo aos beijos.
Golpes de aço
Por um dia febril – o sol, raios profundos,
Dardeja pelo olhar flamíramo de brasa,
Por sobre os tetos bons, humílimos, das casas,
Esses pequenos mundos.
Escalda de calor! –As árvores possantes
Parecem já encostar as copas luxuriantes
À cálida pressão do espaço que, abafado,
Os corpos amolece – em tom brusco e pesado.
A hercúlea natura, a fonte dos assombros,
Pressente pelo dorso enormes contorções.
Ao calor que lhe queima as selas, pelos lombos
Das montanhas – tremendo em largas convulsões.
Parece que o Equador
Dilui-se todo em chamas rubras de calor!
Estamos na fornada – a um lado da esplanada,
Pelo eito, as vibrações metálicas da enxada,
Varadas pela dor, de fome estrangulados
Estão a trabalhar os panos, os forçados
Da torpe escravidão. – Na fronte, no semblante
Gravaram-lhe a ferro as cóleras de Dante.
Conservam o ar feroz do lobo e do jaguar
Que não conhece a luz nem sabe o que é pensar!
Hora do ocaso
Hora do ocaso. Como a tarde desce
Em delicado manto azul, de seda!
Mas tudo muda: agora é a labareda
Do sol; depois o escuro, que parece
Uma mortalha sobre a loira messe
Dos campos. Veio a noite. Ao alto envereda
A lua branca, a lua que se aquece
Dos roseirais dos astros na alameda.
Faz-se um silêncio em toda a natureza
E eu me vejo nos vales da tristeza,
Completamente só. Mas de um momento
Para outro te escuto a voz querida...
É ela que me vem doirar a vida,
Dando-me à alma o verdadeiro alento.
Ingratidão
Apenas uma vela à cabeceira, – e apenas
Um lençol por mortalha. – E o seu corpo estirado
Na esteira em pleno chão, jazia abandonado
Sem rosas, sem jasmins, sem lírios, sem verbenas!
Brancas, as suas mãos! E brancas, as melenas
Que lhe caiam sobre o coração parado
E o seu olhar azul, para sempre fechado
Na morte que nivela os homens e as hienas!...
E o Pedro ali ficou, nessa tarde vivace,
Além da hora marcada, à espera que o levasse
À sepultura, a paz que muito peito aspira.
E como então ninguém na casa aparecia,
Para à cova levar, naquela freguesia,
Quem tanta gente pobre à cova conduzira!
Irmãs de caridade
Vê-las é ter na ideia a encantadora imagem
Das místicas visões dos mistérios do Empíreo!
Pois só elas, meu Deus, sabem ler o martírio
Que vai pela nossa alma, em maldita voragem!...
De mãos brancas assim, como de uma ramagem
De laranjeira a flor, ou como a flor do lírio,
Ei-las nos hospitais que a tíbia luz do círio
Do augúreo olhar da Morte enche de atra miragem.
Tristes os hospitais! Ilhas de ânsias e mágoas!
Ilhas à flor de um mar de tenebrosas águas!
Ilhas do tédio roxo e da amarga ansiedade!
Ilhas que muito mais isoladas seriam
E mais gritos de dor para sempre teriam
Se não fosse passar por elas a Piedade!...
(São José, 1903)
Irmãs de caridade II
De mãos brancas assim, brancas ânforas puras
De aromas para a unção das almas infelizes
De cujas chagas ruins, ou fundas cicatrizes
Sobe e rebenta em fel o anseio das torturas!...
De mãos brancas assim, cheias de iluminuras,
Cheias do que há do Amor nos fúlgidos matizes;
Plantas que em nossa dor cruzam fundas raízes
Para enchê-la de seiva e enchê-la de doçuras!...
De mãos de hóstias do luar assim são todas elas!
Encantadoramente e eternamente belas!
Almas virgens guardadas em cítaras eolas
Do Amor por sobre o mar que essas Ilhas alaga,
Que essas Ilhas em fel morde, de vaga em vaga...
Mas por onde Elas vão coroadas de magnólias!...
(São José, 1903)
Ironia
Que a paz dos altos céus estrelados te venha
A alma aflita buscar, é o meu maior desejo...
A alma dentro da qual a mágoa se desenha
Como na escuridão a nódoa de um lampejo.
Trezentos e sessenta e seis degraus da Penha
São os dias por ti sempre contados. Vejo
Sem pão a tua mesa, e o teu fogão sem lenha,
Enquanto muitos pães no mundo há de sobejo.
Desde o dia em que o mar, que é sempre austero e forte,
Chamou o teu marido aos mistérios da morte,
Tua vida tem sido uma eterna invernia...
E que responde o mar, quando triste lhe falas?
"Nada, nada responde". E quando então te calas?
"Sacode ao meu silêncio as vozes da ironia."
João
Não sei se tinhas do viver apenas
Um momento no mundo, pois nasceste,
E sem que visses as manhãs serenas,
Na mesma hora trágica morreste.
Mas para que ao mundo então vieste?
Para que baixaste e de profundas penas
O nosso pobre coração encheste,
Tu que devias vir tocando avenas?
Não era o nosso coração o aprisco
Que desejavas, ó pastor amado?
Não vinhas pastorar, livre de riscos?
Pelos caminhos bruscos e barrancos;
Não vinhas pastorar, ao sol doirado,
Do nosso amor os cordeirinhos brancos?
Lara
Lara veio em Julho. E que frio fazia!
Lá fora, o mar rugindo, ao vento que gelava.
Mas como em nossa casa ainda um fogão havia,
Ei-la dormindo. E ria. Eu creio que sonhava.
Lá fora o mar e o vento. E ela, a nossa alegria,
Continuava a dormir, e a rir continuava.
E sonhando, por certo, o que no sonho via?
— O Anjo meigo da morte, esse anjo que a fitava?
E continuou a ter sonhos misteriosos...
Mas sempre rindo. Um dia entretanto, os formosos
Olhos da minha filha, eram todos palores...
Uma lágrima veio! E Ela, no último leito,
De branco e azul vestida, a espada em pleno peito,
Nossa filha lembrava a Senhora das Dores!
Lá se foi a minha infância
Lá se foi a minha infância
Num caixãozinho dourado
Cheia de toda a fragrância
Do mar, do rio, do prado.
Foi-se há anos... Que distância!
Se conto-a, fico cansado,
Fico axiante, cheio de ânsia
E me julgo abandonado.
E por que nela pensar
Se já foi a se enterrar,
Fria, fria, fria, morta?
Penso nela, com carinho
Quando passa um caixãozinho
Em frente da minha porta.
Lenda antiga
Por uma simples rixa, uma simples loucura,
Ei-lo o pobre do Lúcio apunhalado a fundo
Na quebrada da praia. A noite estava escura;
Era da cor do tédio a vastidão do mundo.
No triste e frio chão, na areienta planura,
Junto ao mar soluçante, o grande mar profundo,
Batera o corpo dessa adorável criatura;
O corpo ainda robusto, ainda forte e fecundo.
E alguns dias depois, umas almas piedosas
Fincaram uma cruz enfeitada de rosas,
No lugar em que fora o inerme corpo ao chão.
Mas só passam por lá, agora, os destemidos;
Vendo uns braços de mãe, docemente estendidos,
Na atitude sublime e santa do perdão.
Leves traços
(Num passeio à Lagoa - Soneto ao amigo e poeta Carlos de Faria)
Volvendo meus olhos à imensidão
Contemplo um manto azul e constelado.
Olhando-me, vejo que estou num prado
À beira do oceano em solidão!
E pouco a pouco surge dentre as brumas
A lua com encantada palidez!
Faceiras juritis com placidez
Quase roçam as asas nas esteiras
Ao longe... além dum bosque tão florido,
Nas águas da Lagoa sublimada
Ao ouvir cantar uns velhos pescadores,
Junto a lira ao peito empobrecido
Arrojo-me a cantar da pátria amada
Os páramos gentis dum céu de amores.
(Desterro, 15/12/1883)
Logo assim que nasceu...
Logo assim que nasceu, cobri-lhe o berço
De papoulas, de rosas e boninas...
Pelas telhas as aves, em surdinas,
Tinham no aroma o coração imerso.
Sorrindo, dei-lhe a música de um verso,
A mais divina dentre as mais divinas.
Que brancuras as suas mãos franzinas,
Como a das velas no esplendor de um terço!
Vejo, porém, que os olhos do meu filho
Têm dos meus olhos o velado brilho:
Ambos são rios de revoltas águas.
Mas se o rapaz chegar ao ponto de homem,
Não o consumam, como me consomem
Os vendavais tristíssimos das mágoas.
Madalena
A encantadora filha de Magdala,
Maria Madalena, meu amor,
Que tinha os dentes brancos como a opala,
E em cada olhar um místico esplendor...
E flor na boca, que um perfume exala;
E ainda um rosal, o mais sublime, em flor.
Dentro do peito, que em clarões estala...
E ainda mais flores nos rosais da dor.
Esse seria o nome recordado
Da nossa filha, se do nosso lado
Não tivesse partido, esse almo misto,
Para o mesmo lugar de onde baixara...
E se ficasse, quanta luz preclara
Para nos redimir, em Jesus Cristo!
Manhã de noivado
Manhã formosa, de céu casto
Manhã de unções sacramentais
Desde o espaço azul e vasto
Ao mar e aos campos virginais
Que manhã bela,
Aberta em lírio, fulgente umbela
Manhã de aromas de alvas rosas
E lírios alvos e violetas;
E íris de estrelas misteriosas
Nas asas tênues das borboletas!
Manhã de Nossa Senhora
Manhã mística e sonora!
Manhã bizarra de trinados
De aves gentis, alvissareiras;
Pelos outeiros, pelos prados
Verdes, de verdes laranjeiras.
Manhã de Nossa Senhora,
Manhã mística e sonora!
Manhã de mar sereno e brando
Nas curvas praias alvadias,
Hinos de amor salmodeando
Belas canções esmeraldinas.
Manhã de Nossa Senhora
Por todo esse mar afora.
Ias comigo, ó minha amada,
Urna de afetos e de carinhos;
Ias comigo por essa estrada
Que é de sorrisos e espinhos
Cantava, alegre, a passarada
Na plumagem dos ninhos.
Junto ao teu colo florescente
Levava eu a alma vazada
De aroma casta e sol fulgente
E de gorjeios, por essa estrada...
Nunca houve, por certo, um par
De tantos olhos enfeitiçar!
A luz me enchia a urna do peito
De encantadores devaneios,
No afago morno desse leito
Aberto em flor entre os teus seios.
E eu nessa luz me engolfava
E alegremente sonhava
Sobre minha alma a sinfonia
Das tuas asas multicores
Baixava em ondas de alegria,
Como as abelhas sobre as flores.
Sinfonia das quimeras.
Manhã num sítio
Maio. Manhã num sítio. Ao longo das estradas
Estendem-se na relva as lágrimas do orvalho.
E já no morro estão, no rústico trabalho,
Os rapazes da aldeia. Há um tinir de enxadas.
Para as fornalhas que, nas belas farinhadas,
Hão de encher-se de brasa, abate-se o carvalho.
Nas estacas do pasto abre clarões o malho,
E há flocos de algodão nas verdes esplanadas.
No terreiro, ao redor dos engenhos antigos
Ruminam docemente os gordos bois amigos,
Deitados sobre a salsa e sobre as alfavacas.
E enquanto se prepara a sebe para o carro
Cheira o café, na mesa, em canjirões de barro
E se retira o apojo aos úberes das vacas.
Maria de Nazaré
As criancinhas são, da natureza,
As delicadas flores, mais perfeitas...
Umas são rosas de ideal beleza,
Outras, jasmins, papoulas ou violetas.
Ao mundo veio a de maior grandeza
Da luz do sol, nas límpidas facetas.
Rosa de Jericó, era a princesa
E eram, na luz, iguais as borboletas...
E esta que está para nascer, querida,
Se for mulher terá o nome d'Ela,
E se for homem, lhe darei, na vida,
Junto de um rio, o nome de um Rabino:
Mulher, será no mundo a nossa Estrela;
Homem, terá na Cruz o seu destino.
Maria Concepta[12]
Tens a meiga compleição das rosas,
E é como as rosas puras, ou como a neve
Que desce das alturas misteriosas
Flutuosamente de luz...
Tem das garças de Maio as opulências
Dos contornos bizarros, quando Maio
Abre do prado as ricas florescências
Junto ao mar verde-gaio.
Há seis meses que entrou na nossa tenda
Por uma noite em que o luar cantava...
Entrou, talvez, como uma visão de lenda
Que a luz as flores soltava.
E trouxe à boca que recorda um cravo
Todo o pólen bendito que nos ares
Rola e se inflama num luzeiro flavo
E desce aos campos e aos mares.
E nos olhos nos trouxe, das esferas,
Os riachos do Amor, que por lá correm
Feitos de sonhos e da primavera
Dessas cousas que não morrem.
Mas de tudo que a nossa filha trouxe,
De tudo quanto existe lá por cima,
Foi o nome lirial, sagrado e doce
Mais que a mais branca Rima.
E esse nome que é todo de perfumes,
E se reveste dos mais alvos linhos,
Esplende como os fulgurosos lumes
E embriaga como os vinhos!
E ele veio matar-nos a saudade
Cruenta, amarga, fúnebre, infinita;
Que nos deixava, em plena crueldade,
Maria Sulamita!
Mas andarás na terra?
Mas andarás na terra? Em que lugar? Por onde?
Na terra em que pisaste os teus pés nos espinhos,
Pelos campos cruéis, pelos negros caminhos,
Sem que haja ninguém que as tuas ânsias sonde?
Pela terra andarás?... Meu amigo, responde,
Pois quero te escutar a clara voz de arminhos,
Macia como a pluma aromada dos ninhos,
E como a fresquidão da fonte que se esconde...
Basta! Sei onde estás! Tu andas lá por cima,
Mergulhado na luz que dá asas à rima
E faz dos corações abençoadas liras.
Por isso, quando vens, quando desces, te vejo
Num Arco da Aliança, amigo e benfazejo,
Todo feito do pó das rútilas safiras...
Mistérios
Ninguém compreende bem os mistérios do mar.
Ora eu, por uma tarde em flor, que era um encanto,
Fui vê-lo do costão para ouvi-lo tocar
Harpas e bandolins, num místico quebranto.
Vinha a noite se abrindo em lírios, e o luar
Estendia-se como um óleo puro e santo.
Que festa! Mas havia, entre as ondas do mar,
Um soluço, um gemido e acres gotas de pranto.
Assim no mundo é todo o coração humano:
Ora canta, feliz; ora, no desengano,
Geme e chora e soluça, amarguradamente...
Não sabe quando está satisfeito, nem quando
As torturas lhe vão os segredos minando
Pelos tempos em fora, indefinidamente.
Muitas vezes
Tranquilo, sossegado, a fitar a brancura
Que aveluda, na tarde, o verde jasmineiro,
Recorda com saudade a mística doçura
De um seio que lhe fora o melhor companheiro.
E a sua alma que, outrora, era toda mornura
Do penugento ninho, ou fremente braseiro
(E agora fria está), ainda guarda a ventura
De sentir, a evocá-la, um delicioso cheiro...
Ainda sente, feliz, da mulher feiticeira,
Que encontrara e beijara, ali mesmo, no prado,
Do alto enlevo do amor na bendita lareira,
O cheiro dos jasmins do lindo seio amado
Sobre cujo calor seu corpo adormecera
Muitas vezes, sem tê-lo, entanto, maculado!
Mulheres
Mulheres! Como são as mulheres! Na infância
Vede-as cheias de afago, emotivos carinhos
Pelas monas de pano, em perene constância
Ora em casa, na sala, ora pelos caminhos.
Na puberdade, vede em cada qual uma ânsia.
Voam como no campo os meigos passarinhos.
E quando moças vão, de distância em distância,
Correndo atrás do Amor, que lhes dá os bons vinhos...
E uma vez neste mundo, e no sonho embriagadas,
Ei-las junto de nós, companheiras amadas,
Heroínas da dor nos austeros cadilhos.
Ah! para sempre santo o ventre das mulheres.
De onde saem para a vida, encarnados, os seres
Que mais queremos bem, porque são nossos filhos.
Na armação
O meu avô materno arpoava baleias
E as conduzia para a Armação da Piedade.
E quando ele chegava, o povo das aldeias
Ia vê-lo, e lhe dava abraços de amizade.
Que festas ao luar, e ao brilho das candeias
Dançava-se na praia alvíssima, à vontade,
Como quem dança em casa. E as almas eram cheias
Dos vinhos da alegria e da felicidade.
Mas na velha Armação, agora, nada existe,
Desse tempo feliz, senão na alma bem triste
De um pobre velho cego, a lembrança alvadia,
De haver tido paixão por umas raparigas
Que ao saírem do mar, à noite, entre cantigas,
Pareciam visões vestidas de ardentia.
Na casa de Clécia[13]
Todo o horizonte escuro, e as montanhas escuras...
Mantos de escuridão vêm do espaço caindo...
E os astros de cristal aonde estarão luzindo?
Seriam para sempre extintos nas alturas?
Aonde estarão também de límpidas alvuras
As garças dos mangues? Todas foram fugindo,
Porque o mar está como um leão, rugindo,
Ou lembra um coração a chorar amarguras.
Tremo de medo. A fé no meu peito se apaga...
Essa noite medonha, aflitiva e pressaga
Leva-me o sonho em flor num caixão mortuário.
Mas entro de repente em sua casa, e vejo,
Da candeia de folha ao mortiço lampejo,
Clécia a rezar por mim nas contas de um rosário.
Na hora extrema
O mestre carpinteiro está quase morrendo
No seu rancho de palha. Ai! pobre do velhinho!
Setenta anos já fez. E viveu percorrendo
Das negras ilusões o infindável caminho.
E agora, à luz do sol que se vai distendendo
Pelas praias e campo, existe um burburinho
De povo humilde e bom. E o povo vai correndo
Para a morte assistir do seu melhor amigo.
Numa lancha que dobra a ponta da enseada
De vela branca ao vento, uma vela tufada,
O senhor vigário chega. E entre preces em coro
Que enchem de graça e paz toda essa tarde bela
E as almas dos fiéis, na encantadora umbela
Como uma flor do céu abre as pétalas de ouro.
Na novena
Novena na capela. E quantas raparigas
Correm pelo Rincão. E as rosas vão-se abrindo...
E logo à noite então, que piedosas cantigas
À Senhora do Monte, e ao seu Filho tão lindo.
Abracemo-nos, pois, almas francas e amigas,
E sigamos também, que a luz que vem caindo,
É a luz da nossa fé, que nos deixa as espigas
Do amor, trigo que vai em nossa alma florindo.
Olha, que profusão de velas enfeitadas
Nesses braços febris! Olha, quantas braçadas
De rosas e jasmins! E quanta palma, aos milhares!
Sim, unidos os dois, a essa novena iremos
E uma prece de amor aos céus elevaremos
Para que não nos mate a inveja dos maus olhares.
Praia[14]
Que lindo estava o azul da tarde imaculada
Que o mês de Maio abria entre as rútilas franjas!
E que laranjal coberto de laranjas,
E que chios de carro ao longo dessa estrada.
Que perene trabalho, em plena farinhada,
Na abastança do solo e das extensas granjas.
E tu, ó meu amor, que tão meiga te arranjas,
Como estavas bonita, e toda perfumada!
Nessa tarde não sei que deslumbres de vida
Eu senti do teu lado, ó alma estremecida,
Principalmente quando as tuas mãos nas minhas
Se aninhavam febris, durante o tempo inteiro
Em que estivéssemos nós sentados no terreiro,
E, na praia a brincar, as nossas três filhinhas.
Naquela estrela
Naquela estrela que lá vês, em cima
E cujo brilho bate à tua janela
E os teus sonhos dulcíssimos anima.
Naquela branca e luminosa estrela
É que eu vivi, e tu viveste, unidos,
Na mesma luz acariciante e bela.
Ambos os nossos corações ungidos
Do mesmo ideal, dos mesmos sentimentos
Sonharam laços nunca enfraquecidos.
Eram teus os meus leves pensamentos,
E os teus os meus, em comunhão sagrada,
Longe dos vendavais, longe dos ventos;
Longe dessa tristíssima nortada
De desgraças morais, de dissabores
De ânsias da mesma desolante estrada.
A nossa vida rebentava em flores;
E era tão cheia de trigais maduros,
E de céus tão cobertos de fulgores;
Era distante dos pauís escuros;
Era longe das plagas da miséria
Que neste mundo forma-se em monturos.
Nessa Estrela da curva Azul, etérea,
Os nossos peitos não sentiam mágoa,
Nem pensavam nos vícios da matéria...
Nas praias
Nas praias, ao luar tão claro como o azeite
Dos verdes olivais da Espanha, ou como o vinho
Das parras de Ergadit, que sublime deleite
No coração dos dois, pelo mesmo caminho!
O seio de Valésia era o frescor do leite
De uma cabra montês, e o seu colo era o ninho
Plumaroso, a deixar entre as heras de enfeite
De um telhado, onde houvesse um meigo passarinho.
E a sua boca tinha a frescura dos favos
Transbordados de mel, quando nos dias flavos ,
Muito limpos e azuis, com riachos em coro,
E vagas soluçando os seus grandes segredos,
Abre-se em plena praia, das curvas dos rochedos,
Dos esguios ipês a florescência de ouro.
Na vida praieira
Não me sinto feliz se a rir te me apresentas
Dessa maneira, assim vestida, assim trajando
Saia de rico preço, e essas fitas cinzentas
Num chapéu que parece pássaro agoirando...
Nutro, às vezes, por ti, maneiras turbulentas,
Ideias infernais, principalmente quando
Vejo que dentro da alma a vaidade acalentas,
E andas as ilusões tristíssimas gozando.
Uma saia de chita azul, que linda saia!
E, no branco areal fulgíssimo da praia,
Os teus pés a pisar as ondas irrequietas...
Na vida junto do mar, nessa vida praieira,
Serias mais do que a Gata Borralheira,
Com tulipas de sol nas lindas tranças pretas.
Nesta da vida trágica jornada
Nesta da vida trágica jornada;
Neste caminho atroz, nesta corrente
De rio negro, e neste mar fremente,
Por um luar de luz triste e velada.
Nesta luta fatal, de dor gritada
Neste eterno rugir de ânsia inclemente;
Nesta profunda aspiração, que a gente
No tédio amargo esconde, alucinada.
Que tudo isso eu teria o inferno aberto
Se o teu coração, do meu tão perto,
Amorosamente não dissesse
O quanto vale à vida o sofrimento
Quando ajoelhados, em qualquer momento,
Aos céus erguermos o clarão da prece.
Neste lugar agreste
Neste lugar agreste é que toda a florida
Mocidade passei. E que rimas maviosas
Soltei nos bandoleios do amor.
Nesta querida Terra cantei o sol e as estrelas formosas.
Cantei, por essa praia em fora, a indefinida
Beleza singular das almas alterosas.
E, portanto, cantei tua alma estremecida,
Mais cheia de frescor do que as próprias rosas.
Eras humilde e boa, e plena de alegria...
E a calandra do sonho, a cantar noite e dia,
Nos teus olhos pousava. E eu me punha a cismar
Nos olivais em flor da nossa mocidade,
Que eles nunca, jamais morram de saudade...
Mas tudo se acabou como a espuma no mar...
Ninguém nos versos deste livro busque
Ninguém nos versos deste livro busque
Encontrar qualquer coisa que corusque.
Qualquer coisa que brilhe, vibre e cante
Como a luz misteriosa do diamante.
Ou qualquer coisa que possua as cores
Divinamente cândida das flores.
Nem busque da Arte os sólidos caprichos
Como no Templo os bizantinos nichos.
Nem veja neles o rendilhamento
Da Arte nos sacrossantos paramentos.
Quando, de peito afoito, vai o Artista
Das imortais belezas à conquista.
Quando, de alma banhada de esperança
O Artista augusto toda a glória alcança.
Quando Ele, como um rei da antiguidade
É todo força e excelsa majestade.
Quando o Artista, vencendo as nuvens, passa
Por sobre o mundo, resplendendo em graça.
Ninguém busque encontrar nestes meus versos
Segredos de arte, em ondas de ouro imersos.
Ninguém viu
Ninguém viu... ninguém viu... Porém é certo
Que para o Empíreo, nesse instante aberto
Do seu olhar tão límpido, tão lindo
Uma ave de asas tênues foi subindo...
Uma ave de asas tênues como a neve
Que dos longes das alturas cai de leve...
Cai como pluma cristalina, cai
E vestindo de luar os campos vai.
A ave que no seu peito em flor tecera
Um ninho azul do azul da primavera
Que tecera, em seu peito, um ninho brando
Com os sonhos que sempre ia sonhando.
De sonhos castos como os lírios castos
Que florescem, no estio, pelos pastos.
A ave do amor, o ser da vida, a alma
Essa subiu, — do seu olhar, apenas calma
Subiu do seu olhar, na última hora,
E pela mão da Morte, espaço em fora,
Entrou no Empíreo, pela estrada flórea
Toda coroada dos mistais da glória.
No campo
(A Múcio Teixeira)
Vão chegando do banho as raparigas
do campo, essas simpáticas morenas,
numa conversação doida, de amigas,
frescas e virgens como as açucenas.
Do verde milharal pelas espigas
voam lindas abelhas e falenas,
no ar puro, de abril, bilram cantigas
as avezinhas loiras e serenas.
Ergue-se o sol do tálamo das ondas,
vitalizando as extensosas mondas
enchendo tudo de alegria rara.
E pela estrada verdurosa desce
um rude carro, que a cantar parece
uma estranha, fantástica cigarra.
Noivado na morte[15]
(Para o Aníbal Pires)
Quando Judite gelou na Morte, certo
Que para o Empíreo, que se tinha aberto
Do seu olhar tão límpido, tão lindo
Uma ave subiu, as asas sacudindo...
Uma ave de asas diáfanas e puras
Como as da luz errando nas alturas,
Uma ave meiga, que no amor tecera
Um ninho azul do azul da primavera,
Cheio de aromas, músicas e flores
E dos mais misteriosos esplendores.
Um ninho como o que nos arvoredos
São tecidos de afetos e segredos.
Tecidos que, à luz da madrugada,
Tecem em lírios de pólen de ouro a estrada
A ave sublime, o ser da vida - a alma
Da tua irmã subiu ao azul com calma.
Noiva saudosa
Recordava, chorando, a profunda tristeza
De uma tarde invernal. Recordava a partida
Do noivo, belo noivo, alma afeita à beleza
Do amor que em si resume a floração da vida.
E, nessa hora, também, a própria natureza
Lhe fazia lembrar uma noiva, vestida
De roxo, para a morte. E nutria a certeza
De lhe morrer a fé, de vê-la ressequida...
É que viera, há pouco, a passos apressados,
Da casa da sortista, onde lhe foram dados
Agouros sobre o fim da partida de um barco.
E ela me disse, aflita, ansiosa, soluçando:
— Eis a razão porque, nesse barco, pensando,
Os meus olhos azuis de lágrimas encharco.
No mar dos sonhos
No mar dos sonhos não se via mágoa,
Nem tinhas tu, nem eu, morta a esperança,
Nem nossos olhos eram rasos d'água.
Sempre havia em redor de nós bonança
De lagos de cristal, e lindas fontes,
Sob a curva do Arco da Aliança.
Que doçura de vida entre dois montes:
Entre o monte da fé e o da certeza,
De cujo cimo viam-se horizontes
Que se alargavam, cheios de pureza,
Todos abertos como portas de ouro,
Da imensa catedral da natureza.
Na nossa casa os pássaros, em coro,
Vinham cantar, vinham cantar, bem cedo,
Como cantam as moedas de um tesouro.
Não vivíamos, antes, num degredo,
Num lugar para sempre abandonado,
Como as almas fechadas num segredo
Tu me falavas sempre e sempre, amado,
Na certeza das almas que se abraçam;
E eu te falava, no paú sonhado
Por essas almas que no amor se enlaçam,
E docemente vão, da terra, ao Empíreo
Da terra ao espaço alegremente passam
Sem angústias fatais, e sem martírio.
No sítio
(A Santos Lostada)
Era a nossa casinha à beira de uma estrada,
Com janelas de vidro abertas para a horta,
E avistava-se ao longe, assim ao pé da porta,
O morro e todo o mar e à praia mais nevada.
Ouvia-se cantar a linda passarada
Como a esperança ideal que o coração conforta,
E o sol iluminava o lago que além corta,
O bosque e vai descendo a grimpa, na baixada.
E quando a aurora abria o lírio resplandente
Do seio, e coloria as longas aquarelas,
Subia-nos a alma ao céu que na luz se perde
E as nuvens de ouro e prata e chumbo, no Oriente
Pareciam de um palco as lindas bambinelas...
Na natureza, então, uma plateia verde!...
Nossa senhora, um dia...
Nossa Senhora, um dia, ao ser chamada, veio
Lá de cima do céu recamado de flores,
Ouvir o teu clamor, dentre os fortes clamores
O mais forte que estava a te possuir o seio.
Veio vindo, desceu, sem o menor receio
Da lonjura que dista entre a terra e os fulgores
Das estrelas... Desceu, apiedada das dores
Da tua alma, lhe deu todo o seu grande anseio.
Nossa Senhora é mãe, de todas a mais piedosa!
E por isso desceu a escada luminosa,
Veio cheia de graça, e entrou na tua porta
Para te dar a paz no sonho que tiveste
Com ela vindo assim, dessa mansão celeste
Onde com ela viste a tua filha morta...
No velho engenho[16]
(Para um amigo)
Sabes de onde te escrevo este simples soneto?
Escrevo-te do mesmo engenho onde Maria,
Pela primeira vez, sentiu todo o seu peito
Nos afagos febris da mais pura alegria.
Nas eiras, lá por fora, era um cristal desfeito
O claríssimo luar. E a neve que caía
Recordava a cortina alvíssima de um leito
No laranjal em flor. E que frio fazia!
Deves, pois, te lembrar desse engenho, por certo:
Na farinhada, em junho, era um céu todo aberto
Nos encantos da paz, que a tudo estende um brilho.
Moços vinham dançar, após o árduo trabalho;
E, no forno de cobre, ao calor do borralho,
Faziam ternamente uns lenços de polvilho.
Novenas em maio[17]
Hoje não rezarás senão longe da terra
Que tantas ilusões tristíssimas encerra.
Fechei então os olhos
Aos rústicos escolhos
Do mundo, e as mãos cruzei sobre o peito gelado,
Que não pulsava mais, e deixei-me ficar
Desse jeito deitado...
Mas eu via, através das pálpebras, eu via
Uma linda mulher vestida de junquilho
E coberta de um manto azul chamalotado
De fulva pedraria...
E a sua voz de alegre cotovia,
Banhada de meiguice,
A sua voz me disse:
Vem comigo, meu filho.
Senti que do meu peito um pássaro voava
Leve, leve, sutil, terníssimo, lembrando
A fluídica espiral do perfume das rosas
Que se caem são desfolhadas
Pela estrada por onde o pássaro voava,
Sacudindo na luz as asas silenciosas.
E fui. Abriu-se, então, uma porta, e por ela Entrei.
Que contente alegria
A gente goza ao entrar numa festiva estrela.
Num Álbum
Este Álbum – teu tesouro –
Templo de luz, que encerra
Das flores o Troféu,
Tem duas portas de ouro:
— Uma – abre para a terra
— Outra – abre para o Céu!
(Desterro, novembro de 1885)
Nunca fora bonita
Nunca fora bonita, nem graciosa
Nos olhares azuis, e nos meneios
Das ancas, nem na virgem flor dos seios
Nem nos gomos da boca cor de rosa.
Nem jamais, nos serões, na quadra ansiosa
Do inverno, em que há mais horas de recreios
Ela teve, na esfolha dos centeios
Quem lhe desse uma frase esperançosa.
Vendo-se ao espelho, tudo compreendia:
— Era feia demais... Mas não sofria;
Antes gozava o que lhe dava a sorte...
Entretanto, no dia em que morrera,
Era uma linda flor de laranjeira
Sob as asas diáfanas da morte.
Nunca mais
Manhã! Preces de amor na ermida de um salgueiro,
Na alva praia tranquila. Amarguradamente
Arfava-te de anseio o róseo peito inteiro
E era um fruto pisado a tua boca ardente.
E quando o barco fez-se ao mar, sob o nevoeiro
Que envolvia o pontal da praia, alvinitente,
Clécia, o teu coração, de alegre e feiticeiro,
Transfigurado foi numa sombra inclemente.
Para longe partia aquele que deixava
A tua alma infeliz, que tanto se lembrava
Do destino fatal de outros queridos noivos,
Os quais nunca! jamais! das paragens do norte
Voltaram! Nunca mais! Senão na própria morte,
Ou vencendo um mar de ciprestes e goivos!
Nunca sorriu!
Nunca sorriu! Jamais na sua boca
Essa graça do sol de uma alma um dia
Alou, como a adorada e linda e louca
Borboleta da rosa que inebria.
E a sua voz era sinistra e rouca
Como a da água descendo a penedia.
Pouca importância dava às outras, pouca,
Numa suprema e gélida ironia.
Nunca sorriu! Nunca sorriu! Jamais
Mas também nunca teve aflitos ais.
Soluços, gritos de emoção ardente.
No entanto, agora, pelo cemitério,
Ei-la a rir, sempre a rir, no atro mistério
Dos que riem de si, seguidamente.
Ó campos de mentrasto!
Ó campos de mentrasto! Ó campos de verbenas!
Ó caminhos que a luz meiga do sol bafeja!
Lindas tardes azuis, altas noites amenas
Aragem que do sul as verdes ondas beija!
Ó aves que aos beirais das casas, tão serenas
Descem, cheias de amor! E esse luar que alveja
As praias, e esse pó de prata das falenas...
E tudo o que no campo a minha alma deseja.
Tudo isso me ilumina a esperança suprema
Em ter um bem estar, até na hora extrema...
E não será feliz quem morre na pureza
Duma praia tão linda? E por que não? Um dia
Hei de contar-te então toda a minha alegria,
E tu me contarás toda a tua tristeza!...
O capoeira
Dançava-se um fandango em casa do Paulino,
E para que o João não viesse perturbá-lo,
Botou-se de alcateia, à luz da lua a pino,
O crioulo Joaquim, montado num cavalo.
Mas na volta da estrada ouviu um desatino
De palavras brutais como o som que um badalo
Bruscamente produz no côncavo de um sino,
E voltou o rapaz, com gritos de afogá-lo...
— Ó Paulino! Ó Paulino! O João lá vem vindo!
Credos! Lá vem o João, certamente brandindo
O facão que pelo ar um cabelo cortava...
Houve então um clamor fantástico de medo,
À chegada do João, que ao longo do arvoredo
A cabeça fremente e os braços, agitava...
O coração e a estrela
Dizia o coração à estrela do infinito:
Treme de inveja, ó luz, que o teu poder invado!
Pois se brilha em teu seio um mundo iluminado
Dentro de mim resplende um grande amor bendito!
Como um órfão sem lar, um triste réu prescrito,
Vives tu no silêncio, ó astro abandonado!
Ao passo que feliz, risonho e enamorado,
Eu vivo para alguém! Eu para alguém palpito!
E cada instante sinto o olhar sereno dela
Encher-me de uma luz mais límpida e mais bela
Do que essa com que Deus o seio iluminou-te...
Mas tu, que tens além do etéreo brilho teu?
— Eu tenho a liberdade!... (a estrela respondeu
Sumindo-se no abismo esplêndido da noite...)
Olhar...
I
(À Margarida)
Aquele olhar que me lançaste um dia,
Por uma tarde, à luz crepuscular,
A cândida e suavíssima harmonia
Para onde foi, daquele doce olhar?!
A tarde pouco a pouco esmaecia
Entre neblinas, lenta, devagar;
Uma ave no horizonte se sumia
Numa saudade como a prece no ar...
Sobre as ondas um barco velejava
Na agonia do sol que se afundava
No ocaso como um coração que amou!
Tudo eu recordo claramente agora!
Mas ah! aquele doce olhar de outrora,
Aquele doce olhar, que fim levou?!
II
Aquele doce olhar, que fim levou
Que em vão que sempre em vão hoje o procuro
Vendo tudo ao redor tão vago e escuro
Que já nem mesmo sei por onde estou?
Desde que aquele doce olhar voou
Como um pássaro azul por um céu puro
Que eu os trilhos não sei do meu futuro,
E nunca mais meu coração cantou.
Tudo em torno de mim, saudoso e triste,
Numa grande saudade e imensa dor,
Como um deserto, para sempre existe!...
E se ainda às vezes vem-me ao peito em flor
Uma alegria que jamais sentiste,
É tudo desse olhar e desse amor!
III
O teu olhar perdeu-se nas estrelas!
Que eu é ver esses astros primorosos
Brancas visões de mundos nebulosos
E me deslumbro só de apercebê-las.
É certo que eu não sei compreendê-las,
Nem dizer os segredos fabulosos
Dessas estrelas pelos céus radiosos,
Nem assim qual te vejo eu posso vê-las.
Mas sinto bem, embora as não entenda
Que o teu olhar na misteriosa lenda
Das estrelas finíssimas dardeja...
Que mesmo assim estando longe, o certo
É que esse olhar de mim sempre está perto,
Por muito longe que eu de ti me veja!
IV
Por muito longe que eu de ti me veja
Sempre o meu coração voa e procura,
Deseja e adora e carinhoso beija
A tua peregrina formosura.
Tu não o vês, nem sentes que ele adeja
Junto à tua alma virginal e pura,
Nem que quando ansioso te deseja
E não te vê, só vê a noite escura.
Para o teu coração, talvez que tudo
Que sente une outro coração que adora
Tenha a frieza de um sepulcro mudo.
No entanto eu que ao sentir-te sinto a aurora
Sorrir-me nos teus olhos de veludo,
Recordo sempre aquele olhar de outrora...
O meu patrono...[18]
Neste momento
O lindo nome
Do meu Patrono
Não dorme o sono
Do esquecimento,
Nem o consome
O isolamento
Da terra fria
Da sepultura,
Que todo o dia,
E a noite toda
É noite escura
Na qual o verme
Tem na epiderme
Do nosso rosto
A sua boda
De melhor gosto.
Almas cansadas,
Amortalhadas
Em vis mortalhas
De pessimismo
No fundo abismo
Que as dilacera.
E, para eu vê-lo,
Não cavo a terra,
Que só encerra
O pesadelo
Das almas vãs,
Das almas falhas,
Sem as manhãs
Da primavera;
A sua infância
Fora um rosal
(Sem outro igual)
Sob a flamância
Dos céus formosos,
Dos céus ditosos
De astros lembrando
Tendas de abrigo,
Com pó de trigo
Que uma peneira
O peneirasse
Por sobre a esteira
Do mar divino,
Que é maravilha
Na nossa Ilha
De alvos caminhos
Com laranjais
Cheios de ninhos
De sabiás.
Em pequenino
Ele sabia
E compreendia
Os Evangelhos,
Quando ajoelhava
E então rezava
Junto aos joelhos
Da mãe querida,
Da qual tivera
A primavera
Mais florescida,
Sob os afagos
De uns olhos magos,
E dos ressábios
Do mel dourado
Do amor sagrado
Do ser amado.
E, assim, cresceu
Fez-se taludo,
E compreendeu
Que, tudo, tudo
No mundo é vão
Sem a instrução
Que é astro em meio
Da cerração,
Nesses caminhos
Por onde andamos
Quase sozinhos,
Pisando espinhos;
Ou pelos vales
Tredos, sombrios;
Pelas montanhas
Longas, estranhas,
Ao pé dos rios
Cheios de males,
Cheios de gritos,
Prantos convulsos:
Ranger de dentes,
Quebrados pulsos,
Quebrados braços,
Grandes cansaços,
Dores latentes;
Ou pelo mar,
À flor das ondas
Que fazem rondas
A soluçar,
Em luta insana
Nas praias tristes
Da vida humana.
E o astro em meio
Da cerração,
Sublime veio
E o coração
Lhe foi abrindo;
Abriu-se lindo,
Diante dos olhos
Desse menino
Que assim foi vindo
Sem os escolhos
De um mau destino.
Ei-lo na Escola
Pedindo esmola,
A luz que encanta,
Que a alma alevanta,
Que a treva escalva,
Numa pureza
Numa beleza
De Estrela d'Alva.
Vede-o contente,
Vede-o feliz.
E o Mestre diz:
A toda gente:
— Dos meus meninos
É o que mais sabe,
Talvez acabe
Ao som dos sinos,
Ao som dos hinos
Proclamadores
Dos vencedores.
E assim foi vindo,
Até que um dia,
Cedro florindo,
Todo alegria,
Homem tornou-se
E compreendeu
Que, para a vida
Lhe ser mais doce
Lutar devia,
De espaço a espaço,
Como um soldado
Erguendo o braço
Contra o inimigo
Desesperado.
E homem feito,
Pôs-se a lutar,
Afoito o peito
Como o do mar,
Que no rochedo
Bate sem medo
Velando as ânsias
Pelas distâncias
As mais sombrias,
As mais pesadas,
Convulsionadas
De ventanias
Vertiginosas.
Amando a terra
Que o viu nascer,
E, agora, encerra,
A florescer
O corpo seu,
Ei-lo lhe dando
O coração,
Sereno e brando
Como um clarão
Que vem do Céu
Vestido à malva,
Na ocasião
Em que aparece
E resplandece
A Estrela d'Alva.
Fez-se ao trabalho
O mais correto.
Como arquiteto
Buscou o malho,
Buscou o esquadro,
Pá e compasso,
Tudo isso, tudo
Que robustece
E fortalece
O nosso braço,
O braço humano,
De dia a dia,
De mês a mês,
De ano a ano,
Com energia,
Com altivez.
E, assim, vencendo,
Ei-lo colhendo,
Para a sua alma,
A branca palma
Dos lutadores,
Dos vencedores
Glorificados
E coroados
De verde louro,
Em tronos de ouro.
Pegou da pena
E fez-se um bravo,
Matando a hiena
Do fero agravo.
E discutia
Como ninguém;
E combatia
Mais do que cem,
Como Sanção.
P'ra dar exemplo
Entrou no Templo
Da Abolição,
Para ajudar
A subjugar
A escravidão.
Fez do cativo
O seu irmão,
E pelas ruas
Lhe dava a mão,
Sempre festivo
Como o verão;
De alma bizarra
Como a cigarra;
De olhos tão lindos
Quais céus infindos,
De onde brotava
E se alastrava
A florescência
Da inteligência.
Na quietude
Da sua casa,
Ardendo em brasa,
Todo saúde,
Todo vigores
Fazia versos
Encantadores,
Os mais cheirosos,
Deliciosos,
De tons diversos
Que como as flores,
Por esses campos
Verdes e lampos;
Pelas estradas
Embalsamadas,
E pelas praias
De áureas alfaias
Como os altares,
E pelos lares,
Como se abrindo
Ao sol luzindo.
Alma de poeta,
Filigranava
Rimas ideais,
Espirituais!
Que madrigais,
Que redondilhas
Ele rimava
Por essas ilhas
Que o mar oscula
Quando tremula
Nas suas águas
Cheias de mágoas,
A branca lua,
Ofélia nua!
Que sentimentos
E que emoções,
Na asa dos ventos,
Quando ele dava
Às raparigas
Essas cantigas,
Essas canções!
E as raparigas,
Suas amigas
Como o queriam
Nos seus segredos.
Nos seus enredos
Nos seus anseios,
No palpitar
E gorjear
Dos róseos seios!
Ah! nessa quadra,
Nos tempos idos,
Tempos queridos,
Que nunca mais
Hão de voltar,
Os madrigais
E as redondilhas
Que ele rimava
Junto das tendas
Dos pescadores,
Junto das granjas
Dos lavradores;
Os madrigais
E as redondilhas
Originais,
Que ele rimava,
Eram tão leves
Bem como as rendas
Dessas rendeiras
Que à sombra amiga
Das laranjeiras
Trabalham rindo,
Cantando, e ouvindo
Cantar, audazes,
Os seus rapazes,
Os pescadores,
Os lavradores,
Os trovadores
Dos seus amores!
Olhos? Cantou-os
Formosamente
Cantou as bocas
Dos namorados;
Das moças loucas
Pelo poeta,
Alma seleta,
Alma festiva,
Alma emotiva,
Alma sem mágoa,
Tão boa e doce
Como se fosse
Um copo d'água!
Seios!? Cantou-os
Divinamente;
E docemente
Cantou os belos,
Leves cabelos
Das raparigas,
Que usam figas
Pra o mau-olhado
Das velhas feias
Que, nas aldeias
De lado a lado,
Vivem clamando,
Vivem rezando
Contra o noivado
Que é tão bonito,
Que é campo em flor
Por onde o Amor
Canta, bendito!
A sua prosa
Tinha a cadência
Maravilhosa
E a resplandência
Das ondas, quando,
Batidas pelas
Asas de arminho
De um vento brando
Sob o carinho
De alvas estrelas
Era castiça,
Era inteiriça
Como os metais.
Dava aos jornais
Toda a grandeza,
Toda a beleza
De um rico estilo
Feito a berilo,
Feito à safira,
Feito à esmeralda,
Feito à ametista
Nuns rendilhados
De mãos de artista.
No jornalismo,
Que pena ingente!
E que heroísmo
De combatente!
Atormentava,
Aniquilava
A hidra maldita
Do despotismo,
Talvez inscrita
Para matar
A terra amada,
De tantas rosas
Prodigiosas;
De tantas giestas
Virgens, modestas;
De margaridas
Enternecidas;
De tantas aves
Tão cantadeiras
Por sobre as naves
Das laranjeiras,
De tantos riachos
Lembrando fachos,
Do amanhecer;
Ao entardecer
De um meigo luar
Beijando o mar,
Na praia em fila
Onde cintila
A pedraria
Da maresia!
No jornalismo,
Que pena ingente!
E que heroísmo
De combatente!
Que polemista
De larga vista!
Mas nunca teve,
Mesmo de leve,
Para o inimigo
Feral castigo,
Negra tortura,
Funda amargura
Punhal em riste
Que é cousa triste,
Porque o irmão
Matar não deve
O coração
De um outro. Não!
Suas palavras
(Quando faladas)
Lembravam lavras
As mais douradas
Por sobre as quais
O sol cantasse
Dos seus encantos,
Os belos cantos
Tão virginais
Dos seus violinos
Adamantinos;
Das suas harpas,
Seus atabales,
Pelas escarpas,
Montes e vales.
E era tão puro,
O seu olhar,
Como o luar
Esse óleo branco
Que escorre franco,
E faz lembrar
O que, na unção,
Na hora extrema,
Enche de crença,
E fé imensa
O coração
De um pobre monge;
Que vai pra longe,
Alma cansada,
Assim... assim...
Numa jornada
Que não tem fim.
Suas pupilas
Azuis, tranquilas
Meigas, serenas,
Cor de açucenas,
Também nos davam
Vinhos de Samos,
Que embriagavam
Profundamente
Como se a gente,
Cheia de graças
Sempre os tivesse,
Sempre os bebesse
Em lindas taças.
Os seus cabelos
Sempre em novelos
Até o pescoço,
Lembravam musgos
Num alvoroço
De ventania.
E eram da cor
Dos grãos de trigo,
Quando, em sazão,
O ceifador
Lhe estende a mão
E o leva à mó
Que o moi sem dó,
Sem compaixão,
Sem lhe escutar
A grande dor
A dor da morte.
Medonha sorte!
Alto, talhado,
Passos serenos
Dos nazarenos,
Ei-lo aprumado
Como um soldado
Da antiguidade.
Que majestade
No seu pisar,
Pela cidade.
Pelas aldeias
Pelas taperas
Por onde andava
E procurava
As almas boas
Dos lavradores
E pescadores
Que soltam loas,
E rimam flores
Com seus amores,
E rimam ninhos
Com passarinhos,
E seios francos
Com lírios brancos,
E tranças pretas
Com borboletas,
E tranças louras
Com dobadouras
De seda em rama
Que a luz inflama
Com muitos beijos;
Muitos desejos,
Muitos sorrisos,
Que vão-se abrindo
Em paraísos
No amor infindo.
Que simpatia
Por ele havia!
Quanta doçura
Na criatura
Que hoje é meu guia,
Que hoje me banha
De luz estranha,
De tanta graça
Como a que passa
Suavemente,
Do céu do Oriente
Ao céu do Poente,
No amor do sol,
No amor da estrela,
Nesse crisol
De luz tão bela.
Homem já feito
(Que nobre sina!)
Ei-lo Doutor
Em Medicina,
Tendo no peito
A rósea flor
De um grande amor,
Sem esquivanças,
Pelas crianças,
As aves mansas,
Que batem asas
Nas nossas casas.
Ei-lo a curar
As pobrezinhas,
Com santidade,
Com piedade,
Com humildade,
Como bem poucos.
Ouvidos moucos
Nunca Ele os teve,
Mesmo de leve,
Para as crianças,
As esperanças
Da nossa vida,
Na indefinida
Desolação
Dos desenganos
Sobre-humanos.
E as criancinhas,
As avezinhas
Das nossas casas,
Batiam, então,
Com emoção,
De novo, as asas.
Quanta alegria
Na alma dos pais,
Durante o dia,
Durante a noite,
Longe do açoite
Dos vendavais!
E, para os Céus,
Solar de Deus,
Como subiam,
Frementes iam
As orações
Dos corações
Reconhecidos.
Num pobre leito,
Um pai se achava,
Entre gemidos,
Agonizava,
Quase esqueleto,
Num abandono,
E o meu Patrono
Lá ia vê-lo.
Cheio de amor,
Sereno e belo,
E parecia
Nosso Senhor,
Quando dizia
Ao irmão doente:
— Implora a Deus
Que está nos Céus
Azuis, serenos,
E Ele será
O teu Doutor,
Salvar-te-á
Desses terrenos
Desolamentos
De sofrimentos.
E a paz voltava
Ao pobre pai
Numa saúde
De juventude,
Como a que cai,
Virgem, louçã,
De uma manhã
De Abril em flor,
Todo esplendor.
E a mãe aflita,
Na dor imensa
De uma doença,
A alma bendita
Do meu Patrono
Jamais deixava
Uma visita
De proteção.
Fugia ao sono,
A noite inteira,
À cabeceira
Do triste leito,
É que em seu peito
O coração
Pulsava cheio
De adoração,
De grande anseio
Por quem no mundo,
Junto dos filhos,
Desses cadilhos
Do amor profundo,
Acalentava
A verde esperança
De, sem tardança,
Vê-los sorrindo,
Almas se abrindo
Como um trigal,
Numa festança
Original.
Quando pra um velho
Iam chamá-lo,
Ei-lo a cavalo,
Ou mesmo a pé.
Cheio de fé
Galgava as ruas,
Galgava as fontes,
Galgava as pontes,
Pisando as puas
Dos espinheiros,
E, sobranceiros,
Os seus olhares
Eram doçuras,
Eram frescuras
De nenúfares.
O rico e o pobre
Ele atendia,
E parecia
Que, da alma nobre,
No céu soltava
O som, o dobre
De um sino em prece
Quando entardece
Um dia em flor,
E vai no andor,
Em procissão,
Nossa Senhora
Da Conceição,
Que o povo adora
Com devoção.
Na hora que o sino
Tão cristalino,
Faz – Blim-de-Blim,
E a sua voz
Corre veloz
Por esse espaço
Que não tem fim.
Nas pandemias
Ele, clemente,
Salvava a gente,
Por essas ruas,
Tristes, sombrias,
Onde as charruas
Da morte andavam
E procuravam
Os que morriam,
Os que deixavam
Na terra, as flores
Dos seus amores,
Os seus desejos
No sol dos beijos.
Por esse tempo,
Junto do Rola
Alma querida
Que ainda consola
Os infelizes
Com as raízes
Da sua esmola:
Por esse tempo,
Quadra de outono,
O meu Patrono
Não se esquivava
De ouvir chamados
A qualquer hora,
Com mil cuidados
Tudo acalmava;
Num bom carinho
Enchia tudo
De asas de arminho,
E do veludo
Das suas penas
Transfiguradas
Em açucenas
Aljofaradas.
Por esse tempo,
Nesta cidade
Só existia
Calamidade:
Ruas veladas
E desprezadas:
Casas tristonhas
Como as cegonhas;
Com lampiões
Para os serões,
Quando soprava
O vento-sul,
E vinha a chuva
Se despencando,
Negra, lembrando
Véus de viúva.
Cidade exul,
Quase em ruína,
Onde à noitinha,
Em cada esquina
Sem lampião,
Eram queimados
Ou espalhados
Pás de alcatrão,
De sul a norte,
Para que a morte
Se afugentasse
Com seus horrores,
Com suas dores,
Com sua peste;
Fosse pra leste
Para o arcabouço
Desse mar-grosso;
E lá ficasse,
Lá se acabasse.
Metia medo
Esta cidade,
Mas não ficava
Em abandono,
Quando chamava
O meu Patrono
Pra socorrê-la.
No entanto nunca,
Quer aos ricaços,
Nos seus terraços
Iluminados;
Nem na espelunca
Aos pobrezinhos
Abandonados,
Abria os braços
O meu Patrono
Para pedir
O seu salário,
O pão do dia,
Tão necessário
A quem corria
Sem descansar,
Ora a chorar,
Ora a sorrir.
É que em sua alma
Santificada,
Na luz sagrada
Que o Amor espalma,
A Caridade
Surgia em brotos
De augustos lótus
De castidade.
Pra todos tinha
Sorriso amável,
Vinho inefável
Da melhor vinha;
Favo aromado
De mel de abelhas;
Leite apojado
A umas ovelhas;
Água na mata.
Numa cascata
Rumurejante,
Matando a sede
Ao viajante;
Trigo moído
Numa toalha
Pra quem trabalha
Quase vencido;
Mantos de pena
Para a nudez
Dos desvalidos;
Braços abertos
À viuvez,
E aos orfãozinhos;
Toques de avena
Para os perdidos
Pelos caminhos,
Pelos desertos,
Pelas montanhas,
Pelas divisas,
Bruscas, estranhas,
E pelas praias
Abandonadas,
Tristes, veladas,
Onde soluça
E se debruça
O mar — aquele
Que arrasta, impele
Às amarguras
Os corações
Das criaturas.
Pra todos tinha
Essas grandezas,
Essas belezas,
Essas alfaias
De adoração
Sincera, franca
Na mesa branca
Da comunhão.
Muitos velhinhos
Desta cidade,
Que têm saudade
Do meu Patrono,
Muitos virão
Em seu abono,
Muitos dirão
O que Ele foi
Na mocidade,
E na velhice,
Em que a meiguice
Do seu olhar,
Do seu falar,
Do seu tratar,
Do seu amar,
Do seu chorar,
Formava um misto
De crença e fé,
Talvez só visto,
Cheio de luz,
No Bom Jesus
De Nazaré.
Eu, pelo menos,
Nos meus terrenos
Desolamentos,
De sofrimentos,
Nunca o esqueci;
Porque foi Ele
Que um dia vi
Me dar alentos,
Me dar cuidados,
À cabeceira
De um pobre leito
Onde a doença
Me aniquilava.
E me chamava,
Profunda, intensa,
Aos Sete Palmos
Da sepultura.
Era eu menino
Muito franzino,
E os olhos almos
Do meu Patrono
Me deram sono;
E comecei,
Logo, a sonhar
Com coisas belas,
Com as estrelas,
Com o luar,
Com as manhãs,
Flavas, louçãs,
E os gaturamos
Nos verdes ramos
Dos laranjais
Tão virginais;
Com as gaiolas,
Com os bodoques
Dos rapazolas;
Com as caçadas
Às lindas rolas
Pelas estradas
Das nossas Ilhas,
As maravilhas
Deste Brasil
Que um céu de anil
De ouro pesponta,
E em cada um astro
Cor de alabastro
Tem uma conta,
Como um rosário
Extraordinário!
Por isso sinto
Grande alegria
De, no recinto
Desta suntuosa
Academia,
Onde sou eu
Lâmpada triste,
Falar sincero
Do meu Patrono,
E no que existe
Dentro de mim,
Porque venero,
De coração,
A tradição
Dessa alma justa,
Nobre e robusta,
Toda bondade,
A qual, no entanto,
Numa das ruas
Desta cidade,
Em velha casa,
Deixou as duas
Filhas queridas,
Estremecidas,
Quase sem brasa,
Quase sem pão,
Sem vinho e água,
Cheias de mágoa,
De quando em quando.
Mas... vão passando,
As pobrezinhas,
As coitadinhas,
Sob as centelhas,
Sob o clarão
Do céu bendito,
Céu infinito.
.....................................
São as ovelhas
De São João!
Ora, quem vive aqui
Ora, quem vive aqui, neste recanto, sente
O coração na mais pura felicidade.
Por isso vim morar bem junto desta gente,
Para sentir-lhe a vida, em plena liberdade.
O trabalho não mata; apenas é torrente
De água fresca. E os rosais do amor com virgindade
Florescidos estão, no orvalho reluzente...
Até nos velhos há rosais de mocidade.
Como são de encantar as vagas marulhosas
Do mar, na praia em curva, - e essas maravilhosas
Laranjeiras, e a flor da ramagem do ipê.
Humilde como sou, viverei satisfeito,
De calça arregaçada, e blusa aberta ao peito,
No aconchego feliz de um rancho de sapé.
Os meus filhos
Os meus filhos, o que são
Da vida na negra estrada?
— São as cordas da adorada,
Harpa do coração.
Os meus filhos, os meus filhos,
O que são essas criaturas?
— São os mais fortes cadilhos
Dos sonhos nas urdiduras.
O que fazem os seus olhos
Quando voltados para mim?
— Iluminam-te os abrolhos
De um mar revolto, sem fim.
Mas dos seus olhos tão lindos
A luz que encanto é que tem?
— Tem o encanto dos infindos
Céus de onde luar te vem.
E nessa luz que alegria
Zumbe, zumbe a cada instante?
— Zumbe a flora litania
Da Estrela d'Alva brilhante.
Quem me embriaga de vinhos
Quem de vinhos me embriaga?
— Os olhos dos teus filhinhos
Cuja luz mundos pressaga.
E o que me dão os seus lábios,
Esses seus lábios em flor?
— Dão-te os dúlcidos ressábios
Do mais divino licor.
E quando os beijo, o que sinto
Com tanta frescura d'água?
— Um licor três vezes tinto
Num sol sem mancha e sem mágoa
O que a alma me ilumina
Quando me vejo no escuro?
— O riso de luz divina
Que à sua boca anda seguro.
Ah! quem me apaga a tristeza
Na qual sinto a alma a chorar?
Os primeiros versos
Os versos que escrevi na jornada da infância
Ah! se eu os pudesse ler! Os primeiros que eu fiz
Tinham toda a frescura e a divina fragrância
Do pólen virginal da meiga flor-de-lis.
Por esse tempo a minha alma não tinha a ânsia
Que hoje tem. Nesse tempo eu era tão feliz
Como quem vai, ao sol, por uma verde estância
De floridos trigais, sem males na raiz.
Os versos que então fiz, por mim te foram lidos
Ó minha mãe querida; e por ti escondidos
Sob as asas dos teus cuidados amorosos...
E os levaste para esse céu impoluto,
Serão eles os que neste momento escuto,
Asas ruflando como uns pássaros saudosos?
Ossadas
Ei-la, a ossada do meu cavalo. Ei-la rolando
No campo, ao sol glorioso, e ao luar o mais belo.
Era um lindo animal, de aveludado pelo
Esse do qual estou os dotes recordando.
Comigo, em plena tarde, ele, de vez em quando
Passeava garboso. Era um encanto vê-lo
A marchar, a marchar por essa praia e pelo
Caminho do sertão. E às vezes, galopando,
Ei-lo a me conduzir à casa de Rosanalva
Sobre esteiras de giesta, e de cheirosa malva,
Onde eu ficava até o vir da madrugada.
Como foste feliz, meu cavalo tordilho!
Cobre-te a ossada branca o lindo céu, de um brilho,
E eu terei num buraco a minha pobre ossada...
Pai
Testemunha ocular, vira o filho brandindo
Uma adaga lavada em sangue, e em pleno chão
Um corpo escultural, exuberante, lindo,
De uma mulher que tinha em chaga o coração.
"Foge" (disse-lhe o pai). E a rude porta abrindo,
Na maior aventura e maior aflição,
Nas quais aos poucos ia atrozmente caindo,
Disse de novo ao filho: — "Anda, busca o sertão".
Outro dia, porém, comparece em juízo
O desolado pai, para dar o preciso
Testemunho do fato... Então frio, suspeito,
Sentiu passar-lhe na alma uma ideia sublime:
Se dissesse a verdade, era provar o crime...
E, com a mesma adaga, atravessou o peito.
Para as mães aflitas[19]
Não devemos chorar pelas crianças,
Por essas meigas ovelhinhas mansas,
Quando a morte as chamar,
Porque elas têm um Pastor para guiá-las,
E um lindo Aprisco Azul para ampará-las
Numa terra longínqua, onde o luar
É uma eterna árvore espiritual,
Sem outra igual.
E esse belo Pastor
Faz, da haste das açucenas,
As formosas avenas
De onde sai a rolar a voz do seu amor;
E faz, dos lírios agrestes,
Puros, imaculados, as suas vestes;
E os seus sapatos bordados,
Faz, dos tropos de luz, em massarocas
Nos céleres fusos das rocas
Tocadas pelas mãos da eterna Fiandeira
Do destino dos seus filhos amados
A qual vive sentada
No alto de uma torre
Talhada numa enorme turmalina;
Numa casa dourada,
De onde se avista o mar da Palestina
E a terra inteira.
E esse belo Pastor
Possui no olhar doçuras de água fresca
De dois lagos azuis marginados de opalas;
E quando fala, as suas falas
Transformam a ânsia dantesca
Em pequeninos grãos de areia
Tão pequeninos que, na vida, a gente
Nem os sente.
É Jesus, o Pastor que pastoreia,
Pelos campos do mundo, essas crianças,
Essas queridas ovelhinhas mansas
Que a morte leva no seu regaço
Para soltá-las no Espaço
Entre montanhas:
De nuvens estranhas;
E nos vales de alabastros,
Entre as curvas harmônicas dos astros,
E pelos caminhos abertos,
E para sempre cobertos,
De orvalho de pedraria,
E afagos dos olivais
Que dão sombra amorosa aos nossos ais,
Noite e dia,
Isso das pobres mães aflitas não querê-las
Mortas, quando elas descem das estrelas,
E para lá desejam ir,
Podem bem lhes trazer ao coração
(Esse pesado egoísmo)
Uma profunda perturbação:
Porta que se abre para um abismo.
Ora, a minha mãe, (a quem Deus já levou)
Muitas lágrimas tristes derramou
Por uma filhinha
De quem ela dizia:
Esta minha filhinha é uma meiga ovelhinha
Que o divino Pastor me deu para criar
Com o bendito azeite
Da minha mansidão;
E com o meu sangue transformado em leite,
No vale ebúrneo do meu coração;
E com a luz do luar,
Meiga e serena, do meu olhar;
E com o mel purificado
Do meu amor sagrado.
Mas, quando ela morreu, essa meiga ovelhinha,
Ao vê-la, minha mãe, cobriu-se de tristeza;
E daí não passava de uma hora sem chorá-la,
Pois perdera a certeza
De poder encontrá-la
O belo Pastor tocador de avenas
Feitas da haste das açucenas.
Uma feita, porém, em que mais soluçava
De saudade cruel, minha mãe assombrou-se
Diante de um olhar fulgentíssimo e doce...
É que então acabava
De ver uma ovelhinha a seus pés, debruçada,
Como a pedir um manto quente,
Que amparasse o seu frio inclemente,
E fizesse cessar toda a água corrente
Que lhe cobria o dorso, e o corpo inteiro;
Pois ela nem podia andar e nem saltar,
E havia se transviado, em meio de um ribeiro,
De onde saíra assim, assim toda molhada
E surda, e cega e muda, e tonta, e fatigada.
Na doçura, porém, do seu olhar tão santo
Havia
Uma cousa que dizia:
— Faze que cesse, mãe, o teu amargo pranto,
Do qual vivo encharcada!
Para o Tibúrcio de Freitas[20]
Pelos ares em fora, ao luar,
Abre-me a porta, que eu desejo entrar
E alegremente falar.
Venho de percorrer distâncias misteriosas
Pra te falar das rosas,
Dos lírios, das papoulas, das verbenas,
Dos cravos, das magnólias e açucenas,
Dos jasmins, bogaris e margaridas.
As campinas da terra estão floridas
De tal maneira que dá gosto vê-las.
Flores por toda parte, às mil,
Pois é chegado o lindo mês de abril
As flores? Quem pudesse compreendê-las
Nos mistérios dos seus inefáveis aromas?
As flores são redomas,
Ou ânforas sagradas,
Que ao clarão dos caminhos
Trazem guardadas
As almas brancas dos passarinhos.
Abre-me a porta que eu desejo entrar
E alegremente te contar
Tudo o que ouvi nos flóreos espinheiros:
— Fremem na ramaria os guizos dos coleiros.
No florido beiral das minhas telhas,
Ao surgir da manhã ou quando a tarde desce
A cantoria dos canários d'ouro,
Ao ouvi-la, me parece
Vinda da luz do sol.
Atende-me: As abelhas
Produzem tanto mel, tão doce e loiro,
Que é a fartura nas granjas...
E já estão cheirosas as laranjas!
Dos cristalinos riachos
Dos rios e dos mares,
Que à luz da lua nos parecem fachos,
Ouvirás as fanfarras...
Só não te falo, cheio de pesares,
Só não te falo, agora, das cigarras,
Porque no mês de Abril, pelas florestas,
(Estejam estas
Embora em festas)
Não há quem possa ouvi-las
Nem te falo dos meigos sabiás
Que emudeceram pelos matagais.
Abre-me a porta que eu desejo entrar
E tristemente te falar
De umas almas tranquilas
Tuas amigas
Trigo de luz e amor, de sagradas espigas...
Por elas fui encarregado
De te trazer por essa imensidade,
Uns lenços de saudade!
E o olhar do meu amigo, até então
Banhado
De um divino clarão,
Entristeceu-se como por encanto
Seus meigos olhos destilam pranto
Em vez de luz,
Como os benditos olhos de Jesus.
E a sua boca que ainda uma mágoa encerra
Falou-me assim, desta maneira:
— Eu passo a vida inteira
A recordar a terra...
E tu, meu grande irmão, quando voltares,
Saudades minhas levarás às flores,
Às aves, às abelhas e a essas águas
Dos riachos, dos rios e dos mares
Que eu, para ouvi-las,
Rompo seguidamente a ondulação dos ares...
E se existem na terra almas tranquilas,
Dirás a todas elas:
— Deixem a terra e subam pras estrelas!
(Coqueiros, 09/04/1919)
Perdoar...
Perdoar! Perdoar! Que sublime expressão!
Que palavra de amor! Que símbolo divino
No segredo onde está guardado o coração,
E no segredo azul desse céu cristalino!
Perdoar, perdoar, sem a menor paixão,
Sem olhos de saloio a medir o destino...
Perdoar ao que inveja, ao que esconde a traição,
E ao que busca matar como um vil assassino.
Perdoar, perdoar, será todo o dilema
Da tua alma louçã, ouro de excelsa gema,
Vinda para sofrer e se purificar...
E quando, em certo dia, ascenderes ao espaço,
Levarás teu irmão na curva do teu braço,
Para que ele possa ver como é bom perdoar.
Perto de ti
Venho de atravessar um deserto medonho,
De uma triste aridez de pedras e calor...
Atravessei-o sob as impressões de um sonho
De verdadeiro anseio e verdadeiro horror.
Este peito que ao teu olhar descubro e exponho.
Este peito no qual escondo um grande amor,
Invadido que foi por um luar tristonho
Recordando da morte o gélido palor.
Venho de ver na sombra a minha alma metida,
Quando ela ia, no entanto, em busca de outra vida...
Mas que sombra fatal eu nessa viagem vi!
E aonde terei, agora, o amparo desejado
Se não, ó minha flor, no teu seio aromado,
Se não no teu olhar, se não perto de ti?!
Plantei
Plantei, quando era moço, um broto de figueira
À beira de um caminho.
E hoje a figueira dá a qualquer alma viajeira
Uma sombra e um carinho.
E plantei, com cuidado, um galho de videira
Num terreiro mansinho;
A planta cresceu, tornou-se alvissareira
E no estio dá vinho.
E hei plantado também, durante a minha vida,
Uma série indefinida
De flores, desde o inverno ao rútilo verão.
E tudo tem florido, ao lindo sol aberto...
Só não floriu, é certo,
Nem florirá no campo, este meu coração.
Por quem rezas assim?
Por quem rezas assim? Perguntas-me, querida...
Quando voltados tenho os olhos ao Infinito.
— Rezo, querida,
Pela tua vida.
Eu sei que tens o coração aflito
Cansado de chorar.
Agora mesmo ao luar
Que sobre o mar
É todo prata diluída
Volto os olhos ao Azul e rezo humildemente.
E conheces a ermida
Resplandecente,
A mais bonita do lugar,
Onde a minha alma vai quase sempre rezar?
É ela a tua
Alma que agora está cheia da luz do luar
Deste Maio tão lindo,
Que em flores vai-se abrindo
Pelos longos caminhos
Perfumados
E orvalhados...
Tudo parece estar coberto de alvos linhos!
Que linda torre de marfim
Essa ermidinha tem! É o teu belo pescoço!
E eu que não sou moço
Nunca vi outra assim!...
Por que não hei de então...
Por que não hei de então voltar os olhos
Para esse azul esplêndido, tão puro,
Quando entre pedras, ásperos escolhos
Sinto o meu pobre coração seguro?
A minha mocidade, entre refolhos
Passou cantando; mas o meu futuro
Já não é a velhice? olhando abrolhos
Não viverei talvez um frio escuro?
Por isso os olhos a esse azul levanto
Porque só ele enxugará o pranto
Duma saudade que em meu peito existe.
De uma negra agudíssima saudade
Pelos dias de sol a mocidade
Que, ao ver-me triste, se apagou, tão triste!
Porto desejado[21]
Tudo neste lugar agreste é puro e santo,
De maneira que eu julgo achar, na própria terra
A verdadeira paz, que não conhece o pranto.
E não sabe o que é dor, a grande dor que aterra.
Toda a minha alma aberta, entre emoções, encerra
A luz, o aroma e o som, num mágico quebranto,
Desde as praias do mar às florestas da selva...
Mas choro, e anseio e gemo e soluço, no entanto.
É que não fujo à dor, antes busco senti-la.
Porque na dor eu vejo a luz meiga e tranquila
Do áureo olhar de um farol no azul imaculado.
E os barcos dos meus sonhos hão de seguir, com velas
Pandas... Hão de seguir, rumo às brancas estrelas
E terei noutro mar o porto desejado.
Portos de abrigo
Vejo uma vela ao mar, e mais outra aparece
E outra vela lá vai garbosamente, ao vento.
E como o sol desta tarde, em brasas as aquece!
E como todas vão, num lindo movimento!
E quando as vejo assim viajando, me parece
Encontrar em cada uma o azul do firmamento
Que a esperança lhes dá; e bom, as adormece
E elas vão-se a correr na eflúvia asa do vento.
E brame a lestada, ou corra o aceite da bonança.
As velas sobre o mar são todas esperança,
E buscam dos faróis todo o clarão amigo.
E assim buscam também, as nossas próprias ânsias,
Nos segredos da morte, as longínquas distâncias
Onde há faróis de amor, calmos portos de abrigo.
Por uma noite assim[22]
Por uma noite assim, de prata diluída
Num longe azul de hortênsia,
Tal a cor sacrossanta da Clemência
Que do Alto desce
Às angústias fatais da nossa vida
Quando desfiamos as contas do rosário
Extraordinário
Da nossa prece...
Por uma noite assim,
De uma maciez de fúlgido cetim
Eu me lembro de ti, eu me lembro dos teus
Braços enlaçados nos meus
E desses olhos límpidos, castanhos;
E desses seios túmidos, estranhos
Na cor e nos desejos;
E me lembro, também, da música dos beijos
Da tua boca unida à minha boca ardente
Dessa música de ouro
Em coro,
Na orvalhada corola
De uma rosa de maio,
De uma rosa onde se evola
Uma essência sutil, maravilhosa...
E a lua que ora surge, e que flutua,
Entre nuvens de pluma de algodão,
É a mesmíssima lua
Com o seu branco clarão,
Que nos ungia de óleos sacrossantos
A alma e o coração,
E nos fazia orar.
Praias da minha terra
Praias da minha terra, eu vos quero, e vos amo.
Desde o tempo da infância em flor, em que me via
Pelo nosso areal, onde a flava ardentia
Lembrava, de ouro e prata, um contínuo recamo.
E veio a mocidade, e em mil sonhos me inflamo
No vosso claro encanto , e na vossa poesia.
No mar que vos banhava eu contente corria,
E em vossas curvas tive a presteza de um gamo.
E agora, na velhice, em que triste me vejo,
Dai ao meu coração o amparo benfazejo,
E a verdadeira paz que me dê gozo e calma.
E na morte, quem sabe? ainda andarei na vossa
Água sagrada, um dia, acompanhando Nossa
Senhora, que será madrinha da minha alma.
Presidindo a festa
Haja o sutil e doce aroma das violetas
Nuns roixos de saudade, e o do sangue das rosas
Transfigurado em mel, e o das amplas colheitas
Dos parreirais de Chipre, em taças luminosas...
Haja o rumor febril das meigas borboletas
De antenas de ouro; e haja, a luz, das primorosas
Aves, a sinfonia, ou as cantigas inquietas,
E o contínuo ofegar de asas maravilhosas.
E haja, neste momento, aqui, uma alma branca,
Uma alma doce, uma alma linda, uma alma franca,
Revoando, ou parada, em êxtase profundo.
A alma de Cruz e Sousa, escapa da floresta
Dos astros, para ver e presidir a festa
Que, nesta terra em flor, faremos ao Edmundo.
Presságios
Erram pelo ar não sei que presságios de morte!
Que sombras de amargura e que pressentimento.
Por que soluça assim, desta maneira, o vento?
Que tristezas cruéis nas lufadas do Norte?
Não há quem dentro da alma um temor suporte,
Parece haver chegado o supremo momento
Do mais negro e augural e fundo desalento,
Transformando em pavor a benfazeja sorte.
Todos na praia estão: rapazes e crianças,
Mulheres e homens sãos, mas vazios de esperanças
Pois um barco no mar em fúria se sumia...
— Pobre do Bastião! As vagas o consomem!
Tanta gente na praia, e como morre um homem!
É o que uma pobre mãe, a chorar, repetia!
Primavera
Vão-se purpurando as bandas do Poente.
É primavera. Um ar olímpico, dormente,
Entra pelos pulmões, em ondas de perfume,
E rasga a atmosfera o trêmulo cardume
Das borboletas. Canta alegre a passarada
Em bandos pelo Azul. A luz sanguidourada
Do sol vibra sutil nos píncaros da serra!
Há um concerto de amor por sobre toda a terra.
Os homens do Trabalho, os bravos lavradores
Descansam, vendo o sol nos últimos fulgores.
A ventania vai por uma das escarpas
Rumorejando o som de uma surdina de harpas.
Purezas
Purezas há nos lírios, nos junquilhos,
Nas rosas brancas, e nas correntezas
Das fontes de cristal, de eternos brilhos;
Mananciais de límpidas purezas...
Purezas há nos verdurosos trilhos
Dos caminhos, dos vales, das veredas
E na canção das aves... Mas, nos filhos,
Nos nossos filhos ainda há mais purezas.
Basta ver-lhes um pai as mãos pequenas
Quando elas, postas para o céu, serenas
Rezam por nós saudosas litanias...
Rezam por nós à Mãe dos Pecadores,
Que desce ao mundo a recolher as dores
Que foram sonhos nas caveiras frias.
Quando...[23]
Quando te sentes loucamente aflito,
Pelas cruzes da dor atormentado,
Tremes, porque te lembras do Infinito
No qual te vês de todo abandonado.
Quando te julgas só, como um maldito,
Do olhar à luz santíssima vedado
Sentes no coração o inferno escrito,
E aos pés o inferno, e o inferno lado a lado...
Quando vertendo lágrimas, soluças
E ao chão, bem como às vagas te debruças
Nesse via-crucis da tortura,
Perdes até a crença, a fé e tudo,
Porque o Infinito te parece mudo
Às ânsias imortais das criaturas.
Quando cheguei
Logo assim que cheguei, disseste-me, sorrindo:
— Vem ver como está bela a nossa casa branca.
E fui. O roseiral ia aos poucos subindo
À sala de jantar, pela janela franca.
Mais adiante o leito. Era um ninho tão lindo!
Nenhuma ave talvez, nos trevos da barranca
Tivesse um ninho igual. E a tua alma me arranca
As dúvidas de fel, que me vinham cobrindo...
E descemos à praia, alegres e felizes,
Dessa manhã florida aos rútilos matizes,
De ouro flavo do sol entre as sedas e as franjas.
Muitas horas então ficamos nessa praia.
E quanto que te enchi o regaço da saia
De morangos febris e cheirosas laranjas!
Quando ela morreu
A música! Que bela, a música! Parece
Que seu eu fosse aprendê-la, um vibrante desejo
Em cada nota, em cada acorde, em cada harpejo,
A minha alma teria, entre eflúvios de prece.
A música me embala em sonhos, me adormece,
Enche o meu coração de um viver benfazejo...
Subo ao céu, na harmonia, e todo o céu me aquece;
E, na música, até os próprios astros vejo.
No entanto em seu olhar uns cânticos havia
De uma doce e suave e alada melodia
Que eu me punha a cismar horas, horas inteiras
Mais doces, mais sutis, mais cheios de poesia
Percebidos por mim, humildemente, quando,
Valésia em flor me mostrava algo me martirizando.
Que jornada tristíssima
Que jornada tristíssima de dias...
Sem sol; de um céu de chumbo vergastado
De chuva forte, e frio de invernias;
E mar de praias úmidas, irado...
As árvores se arrastam às urgias
Do vento sul, que brame no explanado.
E caem dos alterosos penedios
Nuvens da cor cinzenta do lamado.
Mas, no meio de tudo isso apareço
Cada vez mais feliz. É que me aqueço
Com o perfume que em meu lenço trago
Das suas mãos febris, e do seu peito,
E das carícias mornas do seu leito,
Sem os venenos tenebrosos de lago!...
Que mais queres do mundo?
Que mais queres do mundo? — Uma vida mais santa?
Mais cheia de doçura e de recolhimento?
Olha, Maria, como a vida aqui nos canta
Em derredor do olhar, e em nosso pensamento!...
Vemos ao derredor a luz que se alevanta
Como uma ave a espalmar todo esse firmamento.
E toda ela, Maria, o preceito transplanta
E dá aos corações a força, e o movimento...
E em nosso pensamento essa vida palpita,
E cresce à proporção do amor que nos agita
E produz em nós dois toda a glória que medra
Nos que sabem se amar, como nós nos amamos,
Seja ao abrigar do sol, do qual nos inflamamos
Ou, no mesmo destino, à sombra de uma pedra.
Quem se despede de casa
Quem se despede de casa
E avança por esse mar,
Do fundo da alma transvasa
Muito pranto, sem cessar,
Quem se despede de casa...
Vai de olhos tristes, molhados,
E a boca molhada em fel,
Como a boca dos soldados
Diante da guerra cruel
Vai de olhos tristes, molhados...
Vai, com vagarosos passos,
E olhar cravado no chão,
Sem poder erguer os braços,
Do céu ao largo clarão;
Vai, com vagarosos passos.
Vai, como um ébrio, subindo
Uma ladeira sem fim,
Ora aprumado, ou caindo
Dessa forma... assim... assim...
Vai, como um ébrio, subindo...
Bem sente o peito fechado
Às alegrias do sol,
E fica, às vezes, parado
Como o inseto no aranhol,
Bem sente o peito fechado.
Pela cabeça lhe passam,
Tristemente, coisas tais
Como as que bem se entrelaçam
Nas urdiduras dos ais,
Pela cabeça lhe passam.
A luz do dia, a mais linda,
A mais formosa, lhe dá
À alma a tristeza infinda
De quem na mortalha está...
A luz do dia, a mais linda.
E nos fulgores do Empíreo,
Nas estrelas do alto céu,
Em cada uma vê um círio;
E no azul, funéreo véu;
E nos fulgores do Empíreo...
Ao ver da lua o recorte
De sinistra foice nua,
Põe-se a recordar a morte,
E amedrontado recua,
Ao ver da lua o recorte.
Olha as vagas e os escolhos,
E em cada um a cova vê.
Mas fecha, depois, os olhos...
Ah! Certamente porque
Olha as vagas e os escolhos.
Recorda então, tristemente,
A terra que atrás ficou,
Onde ele, alegre e fremente,
A mocidade passou.
Recorda então, tristemente...
Ao deixar a sua herdade,
Se ouviu soluços de alguém,
Que merencória saudade
Dentro do peito ele tem,
Ao deixar a sua herdade!...
Mas quem tem fé e tem crença,
E bandeiras de esperança,
Vai, rompendo a terra imensa;
E sem perda nem tardança,
Um florido e amplo abrigo
Encontra, num porto amigo,
Onde há rosas derramadas
Muitas rosas derramadas,
E de onde há de então voltar
Feliz, pelo mesmo mar,
Com rosas no coração,
Ó Virgem da Conceição!
Quem sonha...[24]
Quem sonha desta forma, olhos semicerrados
Como as ogivas dum convento, à beira-mar,
Com certeza revive os seus dias passados,
E deixa-os docemente entre gozos passar...
E tu sonhas, assim. Passam por ti doirados
Dias de claro sol, e noites brancas de luar...
E os mares em bonança, ou então convulsionados,
Todos eles te dão um contínuo sonhar.
Mas o sonho melhor é esse que ora tua
Alma antiga revive, à luz meiga da lua,
Prendada de que, nas noites mais belas,
Ó velho pescador, rotineiro das ondas,
Muitas vezes passaste, em vigílias e rondas
Junto do peitoral de umas lindas janelas...
Que pelo lindo azul
Que pelo lindo azul desta tarde festiva
Suba a tua alma ao sol, e aí fique a cantar
Como canta na mata a meiga patativa
Cuja alma também voa, asas leves, sem par.
É que a tua alma foi, neste mundo, cativa
Das carícias do bem, do amor e do sonhar.
Por isso ela estará, toda alegre e emotiva
Nas paragens do céu, nesse eterno Solar.
E que de lá nos venha, ó meu saudoso amigo,
O que alcançarás, de vinho e pão de trigo,
Para nosso consolo e divino alimento.
Paire a tua alma, pois, aos pés do Deus clemente,
Festiva, emocional, sublime, resplandente
Como um clarão de amor, de paz e sentimento.
Recordar...
Tanto tempo passado, e não me sai da mente,
A vida do Manoel Gonçalves. Ainda tenho
Vivas recordações do seu modesto engenho
Sempre aberto e festivo ao coração da gente.
Velho, a sua cabeça era prata luzente;
Mas o seu corpo, forte, rijo como um lenho
Era neste lugar a sua casa... Venho
De novo recordar essa vida atraente.
De novo recordar o tempo que lá vai
Que lá vai já tão longe, em que o meu velho pai
Vinha, comigo, à noite, às labutas da pesca,
E esperava o compadre, o amigo dedicado,
Que chegasse do mar tranquilo, sossegado,
Para levar à casa uma tainha fresca.
Reencarnada
Tantas crianças agasalhadas
E ela tão rota, pelas estradas!
Cabelos de ouro, faces de arminho,
Numa esperteza de passarinho...
Olhos de opala com ametistas:
— Pedras preciosas, para conquistas...
Boca de rosa, cheia de aljofre;
De marfim caro custoso cofre.
Mãos tão cheirosas e tão pequenas
Como, dos campos, as açucenas.
Pés bem rosados, rosados como
As palmas virgens do cardamomo.
Um tipo lindo, todo atraente
Que atrai ao sonho a alma da gente.
No entanto vai pelas estradas,
Com roupas velhas, esfarrapadas.
Cobre-lhe os ombros um negro manto
Que, abandonado, se achava a um canto.
Pela tarrafa do seu vestido,
Vê-se-lhe o corpo emurchecido.
E a chuva rola, se precipita,
Pelo arvoredo que o vento agita,
Vergando-o à lama de barro e areia
Da qual a vila ficou bem cheia.
Mas vai confiante, nada descrente,
Essa alma casta, de luz albente.
É que do fundo dessa alma branca,
Uma esperança por certo arranca
Todas as ânsias ali metidas,
Todas as mágoas ali contidas.
Deixando em casa, sua avozinha
Morta de fome, a coitadinha,
Vai certamente, pedir esmola,
E pra trazê-la leva a sacola...
E tu, que a contemplas, da tua porta,
Vendo-lhe a sorte que a alma lhe corta;
Vendo-lhe o anseio tão soluçante,
Não te incomodas, nem, nesse instante,
Lanças-lhe às mãos que a chuva orvalha,
Lanças-lhe às mãos uma migalha
Do que é demais nas tuas granjas:
Do trigo ouro que tanto esbanjas,
Quando, quem sabe? num tempo ido,
Há vinte anos houvesse sido,
Essa criatura, que a estrada trilha,
E pede esmola, a tua filha;
Aquela filha dos teus cuidados
Que ornamentavas com mil brocados.
De ardentes beijos, frementes beijos,
Que a unção bendita dos teus desejos
Tinha de orná-la de diademas
De ricas prendas, custosas gemas,
E vê-la gloriosa, nessa riqueza,
Transfigurada numa princesa!
Mas, a pequena que a chuva orvalha,
Nem sabe disso! Nem a migalha
Que lhe negaste, sabe-o por certo.
Sabe-o, entretanto, o céu aberto,
Que lá de cima vê tudo quanto
No mundo é riso, ou triste pranto.
Reminiscências
Entre as reminiscências do caminho,
Em derredor de mim, eu sempre via
Uma luz com brandícias de carinho,
Clara e formosa, e cheia de alegria.
E um perfume de flor de rosmaninho
Perfume azul e verde que inebria,
Vinha de um vale branco como o linho
Corado ao sol de um turquesino dia.
E a luz, e esse perfume, e essa brancura,
Tudo isso eu via quando me lembrava
De que nos separava um campo vasto...
E tudo isso em saudades soluçava...
Era a luz dos teus olhos, ó criatura!
E, dos teus seios, o perfume casto.
Resignada
Meiga que estás, Maria! És por certo a ternura
Transfigurada numa imagem Atenal!
Fitas do verde mar a infinita planura
Que se cobre de branco e lembra um roseiral.
Ruge o vento do sul. É um leão que murmura
Fortes imprecações de imponderável mal
Mas continuas tu na mesma compostura
Sem lançares do mar um trágico sinal.
Busca da alma sorver um triste pensamento:
— Há de acalmar-se o mar, há de acalmar-se o vento...
O meu noivo é o melhor barqueiro do lugar.
Mas uma hora passou, e outras horas passaram.
Ai! Quantos corações junto ao dela choraram...
Só não chorou o vento e não chorou o mar!
Rio das mágoas
Vi, depois de aflitivas caminhadas,
Pelos desertos lúgubres da morte,
Junto de um grande rio, debruçadas
Todas as almas recordando a sorte...
Eram do mundo as almas, emigradas
Umas idas do sul, outras do norte,
E de outras tantas infernais estradas,
Das paixões no tantálico recorte...
E a todas perguntei o que faziam
Ali, assim... de bruços; e o que elas viam
Na transparência de cristal das águas...
E todas, todas, tristes, me disseram:
— Das almas que no mundo se perderam,
É este o Rio das profundas mágoas.
Rústico
Brame por sobre as árvores o vento,
Com rajadas fantásticas, estranhas;
E a chuva cai de um céu cor de cimento
Pelo lado de dentro das montanhas.
Do engenho no terreiro lamacento
Trazendo à cinta fúlgidos gadanhos,
Arruma o carro um negro corpulento,
Dos bois fugindo às conhecidas manhas...
Outro ceva-se à roda da almanjarra,
Rangendo aos solavancos do novilho,
Em cujo gacho a canga rude agarra...
Lindas moças de olências de junquilho,
E a boca alegre como uma cigarra
Fazem no forno lenços de polvilho.
Salve, Rainha!
Salve, Rainha! Mãe de Misericórdia!
Plena de paz, de Amor e de Concórdia!
Salve, Rainha! Mística doçura!
Esperança de toda criatura!
Salve, Rainha, dentre as mais Rainhas!
Açucena brotando dentre as vinhas!
A vós bradamos, desta horrível treva.
Nós, os degredados filhos de Eva.
Nós, os filhos do desgraçado Tédio,
Dessa doença que não tem remédio.
Nós, os tentados pelos Satanazes
que de todos os crimes são capazes.
A vós, Rainha, aflitos suspiramos,
suspiramos, gememos e choramos...
Choramos todos nesse escuro vale,
que outro não há que pelo Espaço o iguale.
Neste vale de lágrimas soturnas
como se rebentasse de outras furnas...
Neste vale de lágrimas tão cruas,
como se viessem de sinistras luas...
Eia, pois, ó Rainha, advogada
da nossa vida lôbrega isolada...
Os vossos olhos misericordiosos
que se abram sobre os nossos, lacrimosos.
A nós volvei os vossos meigos olhos:
Claros farois nos míseros escolhos.
A nós volvei três fontes de piedade;
tais fontes de doçura e claridade.
A nós volvei tais fontes cristalinas,
de aromas esquisitos e divinos.
E depois nos mostrai neste desterro
de tão longos desertos feitos de erro;
E nos mostrai, depois de tudo isto,
ao vosso amado Filho, Jesus Cristo
A esse do nosso Amor excelso Fruto,
meigo, casto, suavíssimo, impoluto.
A esse que o vosso seio, em lírios, trouxe,
Ó clemente! ó piedosa! ó sempre doce!
Sempre doce e ideal! Virgem Maria!
Origem da sagrada luz do dia.
Rogai por nós, ó Santa Mãe de Deus!
Rogai a esse que governa os Céus!
São Vicente de Paulo
(A Bento Cabral)
A alma de Vicente é mais fresca que as fontes
Que dão água a quem vai com sede pela estrada,
Depois de haver corrido a aspereza dos montes,
Depois de haver vencido uma longa jornada!
E de seus olhos bons, espirituais, insontes,
Corre um vinho melhor que o da uva arrancada
Aos pâmpanos do sol no azul dos horizontes,
Quando Ceres se acorda à luz da madrugada.
E Vicente percorre os campos e as cidades,
De coração flamante a todas as bondades
Chamando ao seu amor as crianças mendigas.
E as crianças, Senhor, como gostam de vê-lo!
Ah! mesmo São Vicente é tão meigo e tão belo!
E está porque ele tem tantas almas amigas!...
Saudade
Vibrando o meu olhar fundo, magoado
Por sobre a vastidão da nossa vida,
Vejo tão longe o nosso azul passado,
Urna de amor nas ilusões partidas.
E como o céu é límpido e estrelado,
Quanta alegria ouvi pela avenida
Prismática do Tempo, e que comprida
Noite em meu peito, ninho abandonado!
Ah! saudade! és o eterno silforama
Dos tempos idos, tu és gelo e és chama
Para quem deixa a vida para trás.
Sim! a recordação fere... e consola,
Porque traz sempre uma pequena esmola
Da luz que foi e que não volta mais!
Saudoso
Saudoso, sem te ver, e de novo gozar
Os aromas sutis dos teus seios morenos,
E ouvir, neste casebre, aqui, à beira mar,
Da tua boca fresca os suavíssimos trenos.
Nas léguas de distância, eu me punha a cismar
No entanto desta praia, e nos dias amenos
Que passei, minha prenda, à luz do teu olhar,
Tão bela como a luz dos pássaros serenos.
E o teu casebre é o mesmo: alvo ninho aromado
Com floridos rosais na curva do telhado,
E canários trinando à sombra do arvoredo.
Que lindo o teu casebre, onde nos encontramos
Pela primeira vez e, felizes, sonhamos
Junto do altar em flor o primeiro segredo!...
Seios
Tremem-lhe os seios, dessa forma. Ambos
Os seus morenos e cheirosos seios.
Da cor morena dos morenos jambos,
Tremem, tremem nos mais fortes anseios.
Não lhes faço motivos ditirambos
Vagas canções, em mórbidos enleios.
Antes lhes dou, embora a passos bambos,
Dos olhos os mais santos galanteios.
Prefiro vê-los mais, do que senti-los,
Para que eles fiquem doces e tranquilos,
Para que eles fiquem nessa mansidão,
De forma tal que eu possa no da esquerda,
Das ilusões na resoluta perda,
Pelos meus ais ouvir bater um coração.
Seios II
Aveludados Seios de Jacinto,
Castos no sangue e na arvorai brancura,
De uma epiderme empenujada e pura,
Sob um leve cabelo, de ouro tinto...
Seios formosos, gêmeos nos quais sinto
Perfume de baunilha ao sol madura,
Seios que dão-me a virginal doçura
De um raríssimo vinho de Corinto.
Seios de opala, com botões de rosa
Quero-vos sobre a minha boca ardente,
Como frutos de polpa cetinosa...
Seios febris, de sangue novo e quente,
De uma pureza branca e religiosa
De Eucaristia num Altar do Oriente.
Seja
Seja, Maria, a única que as minhas
Ânsias rubras apague, nesta vida.
Seja a tua alma branca, dentre as vinhas
Do amor, a luz bendita, a luz querida...
Tua alma alegre como as andorinhas
Por uma tarde de rosais florida,
Da minha afaste as lágrimas daninhas
Vendo-as eu muito longe, em despedida...
Seja a tua alma a flâmula sagrada
Da paz eterna, pelo Amor sonhada,
Continuamente em festa, alvissareira.
Seja a formosa e encantadora pomba
Que sobre as águas de um dilúvio tomba
Trazendo ao bico um ramo de oliveira.
Sempre a pensar em ti
Sempre a pensar em ti, sempre voltado,
Para onde estás, para onde vivo, creio,
Sentir, mesmo de longe, o perfumado
Calor do vale do teu róseo seio...
Sempre a pensar em ti, horas, parado
Fico, como se visse, num anseio,
O teu formoso olhar, sempre lembrado,
Que outrora vinha me bater em cheio...
E se me deito para ter descanso,
Só, minha flor, alegremente o alcanço,
Se te chamo e me escutas, e apareces.
Como ainda ontem, perto do meu pobre leito,
E as mãos colocas no meu triste peito,
Para ouvir, por certo, as minhas preces.
Sempre em caleidoscópio
Sempre em caleidoscópio as manhãs outoniças
Em que eu te via, amor, no eterno murmurejo
Das árvores em flor, onde as meigas cuícas
Chilravam como tu, num álacre solfejo!
De Missal de marfim, ias sorrindo às missas.
E expunhas a gemer o teu maior desejo,
Porque, pelos caminhos, em continuadas liças
Eu vivia contigo, e te furtava um beijo.
Depois... naquela tarde! a canoa singrava
As ondas, nos levando. Eu, à popa, remava,
Que tarde! O céu cobria as montanhas, de franjas
De ouro e prata, e cristais e topázios vermelhos...
E chegando à Ilha, ouvi os teus conselhos,
Fomos ambos chupar morangos e laranjas.
Sempre revejo uma reminiscência
Sempre revejo uma reminiscência
Do que fui noutros séculos passados,
Em que a minha tristíssima existência
Era coroada de meus pecados.
Nos segredos do espelho da consciência,
Revejo os dias trágicos, contados
Hoje, a força de grande penitência,
E os trago sempre e sempre, desolados...
Revejo a tudo, tudo, num momento,
Se os olhos fecho, e ouvir o pensamento,
Às moradas por onde eu transitava.
Mas quando os olhos abro, que alegria!
Vejo em teus olhos límpidos, Maria,
A mesma luz que sempre me amparava.
Se por lá, no azul...
Se por lá, no Azul, há roseirais florindo
(Mas florindo auroras de um esplendor infindo)
Se por lá, no Azul, há fulgurosos mares
(Mas de águas tão claras como os nenúfares)
Se por lá, no Azul, há vaporosas garças
(Mas muito mais brancas, pelos sois esparsas)
Se os sonhos no Azul, nas altas paragens,
Vestem-se de argênteas, pronubas roupagens.
Se esse mundo ao qual foste chamada
Com efeito lembra uma florida estrada...
E se nesse Azul muitos mundos giram,
E se os teus olhos todos esses mundos viram.
Se não tem misérias, se não tem tormentos,
Revoltosos como os funerários ventos.
Se não tem convulsas lágrimas de dores,
Rebentando chagas de violáceas cores.
Se não tem soluços lá por cima, em todo
Esse campo aberto sobre o eterno lodo...
Se não há gemidos de hospitais de sangue,
Seja a lua um guizo ou seja a lua langue.
Se por esse campo olímpico e ditoso
Tudo, enfim, é paz de florescente gozo...
Conta-me, portanto, minha Mãe saudosa,
Conta-me o mistério dessa paz ditosa.
Simbólico
O perfume suavíssimo que eu sinto
Neste lugar por onde andei outrora
Não vem dos seios virginais de Flora,
Coroada de parras e jacinto.
Nem vem das vinhas claras de Corinto
Dos vinhos claros como a luz sonora;
Nem do mel das abelhas, quando a aurora
De cores vivas traz o espaço tinto...
Vem, no entanto, de um corpo de alabastro,
Encarnação simbólica de um astro.
Vindo através de um sonho, entre clarões...
Vem desse corpo transparente e alado,
Que no aroma ficou perpetuado,
Para eu gozá-lo nas recordações.
Smyrna
Eu não te vi nascer, porque bem longe andava,
Muitas léguas de mar e de vales, distante...
Pois o Destino assim de nós nos separava
E o Destino no mundo é mais que um Rei Triunfante.
Era ganhar o pão, que me fora negado
Na minha própria terra, eu tua Mãe deixava,
Junto dos teus irmãos soluçando a seu lado
Onde nunca florira a mais pobre seara!...
E essas léguas de mar e de vales medonhos
Passei-as eu sentindo a mais viva saudade!
Tudo por água abaixo — as asas dos meus sonhos,
As rimas do meu Verso, a minha mocidade!
Tudo por água abaixo, em plena correnteza,
Num desespero tal, que lembrava uma enchente!
Quanta dor, quanta dor, e que augural tristeza
Pelo meu coração já de todo descrente!
Mas um dia chegou a notícia de haveres
Nascido, minha ovelha; e então como um Rei Mago,
Parti a te encontrar, nos últimos prazeres
Do meu doce, aromal e paternal afago!..
E essas léguas descendo aflito, agoniado,
Por não poder voar nem sequer um momento
Vim te encontrar então sobre um frio tablado
Movido pela voz nostálgica do vento!...
E aí tinhas nascido, ó minha pobrezinha,
Como nasce no aprisco a altas horas da noite,
A mais casta ovelhinha, a mais casta ovelhinha,
Sem o olhar do pastor, que o seu balido acoite.
Mas não houve mais alegria de lenda
Sonhada à luz da lua castíssima e dolente!
E embora pobre assim, por sobre a nossa tenda
Parecia cantar a Estrela do Oriente.
Ah! ninguém avalia o que é uma chegada
Depois da gente andar por meses e por anos
Pela estrada da ausência a fatigante estrada
Onde na própria luz se encontra desenganos.
Ah! ninguém avalia! E quando a gente abraça
Os filhos e a mulher, que consolo, me Deus!
Por certo tal ventura. Ah! por certo tal graça
De bandeira de proa só se encontra nos Céus!
Sofro
Sofro, porém a culpa é unicamente minha,
Minha só, minha só, certo de mais ninguém.
Eu não te quis sentir o afago de madrinha,
Virgem da Conceição, ó meu querido bem.
Quando eu era rapaz, em tua ermidazinha,
Que desde esse passado um meigo encanto tem,
Fugia loucamente ao som da ladainha;
E nunca quis dizer perto de ti – Amém.
As tuas lindas mãos eram lírios em palma
Abertos sobre o céu nevoento da minha alma...
E nunca te escutei, sob o teu doce olhar.
Se tivesse escutado o que então me dizias,
Hoje, ó minha madrinha, eu só teria os dias
Tão belos como está nesse momento o mar!
Sonetilhos
Lá vai passando na estrada
A rosa das raparigas.
Bela de ancas, requebrada
Sem dar importância às figas.
Goza da tarde dourada
Como do trigo as espigas.
Toda a luz alvoroçada
Que se desfaz em cantigas.
Parece que vai contente
Porque fala a toda gente
Que encontra, cheia de calma.
Entretanto, quem pudesse
Saber a mágoa que desce
Nos segredos da sua alma.
Soneto[25]
Parto! Não chores mais. Não te consumas
como a formosa Catarina, quando
partiu-lhe o amante, num batel, sulcando
do verde mar as águas e as espumas.
Essas tranças que tu ao colo arrumas
não quero ver em prantos se banhando,
nem teu lenço alvadio me acenando
longos adeuses, através das brumas.
De que te serve, minha flor, chorares
se não te ouvem as vagas desses mares
que vejo encheres de febris desvelos?
Chorar, eu! porque além de ti, rainha,
deixo duas irmãs e uma velhinha
que ainda ontem beijou os meus cabelos.
Sonhando
Com os braços em cruz sobre o peito cansado
Das vigílias do mar, que dão tanta ansiedade,
Ei-lo do batelão no paneiro deitado,
Da manhã de Setembro à flava claridade.
Dorme. É que à noite andara em pleno mar cavado,
A remar, a remar por essa imensidade.
Então por isso, agora, ei-lo de olhar parado;
Dorme na unção da luz, e sonha, na verdade.
Vê, na estrada do sonho, a mulher que o deseja,
A mulher que o procura, e loucamente o beija,
E lhe dá, (do carinho entre os febris anseios)
Da outra banda do mar, ao encontro desse sonho,
Toda a consolação do seu amor risonho,
Que brotou, como flor, no vale dos seus seios!
Só que esteja deitado
Só que esteja, deitado, e me ponho a cismar
No seu corpo de arminho, inefável, fluente,
Ei-lo perto de mim, ei-lo de mim tão rente
Que lhe sinto o calor capaz de me abafar...
Mas, entretanto, está a que noites ausente!
Longe, longe de mim, sem poder me abraçar...
E eu lhe quero, febril, louco, a boca beijar,
E beijar o seu seio, alucinadamente!
Não importam, porém, essas noites de ausência,
Pois no quarto onde durmo, a delicada essência
Das suas mãos gentis, se transforma, em verdade,
Num corpo de mulher, para sempre lembrado,
E que vive, e que sonha, e não sai do meu lado,
Para me ouvir rezar nas contas da saudade.
Sorris?[26]
Sorris, donzela? Cuidado!
Meu amor é malfadado,
Que negra sina o manchou.
Laivo da morte descrida
Em gozo infame perdida
Impressa na alma deixou.
Sorris, donzela? Teu seio
Arqueja de devaneio...
Teus olhos têm tanto amor!
E em segredo te murmura
Doces tendas de ventura
Da lua o misto palor!...
Pois vem, gozemos unidos
Nos prazeres esquecidos
Prazeres do coração.
Com teus lábios junto aos meus,
Quantas delícias, meu Deus,
Mesmo na própria ilusão!
Pudera no mundo insano
Em negro abismo de engano,
Ligeira a vida passar.
E no mar de vagas mansas,
Beijando-te as loiras tranças,
Veloz o barco soltar.
Mas ai, fujamos que a vida
Além vai feia, dormida,
Assim no mundo a correr.
Ao vago aroma das flores
Gozemos nuvens de amores
Das matas no florescer
Paras, donzela? Cansaste?
Na terra a alma enterraste?
Queres o mar a gemer.
Beijando a praia alvacenta,
E a vaga que volve lenta
E vem na praia morrer?
E é tão lindo o sol nas águas
Deixando da rocha as fráguas
E a branca espuma do mar!
Deixemos nele a beleza
À mercê da correnteza
O livre barco vagar.
Amemos. Que importa a morte?
Do amor ao doce transporte
A morte sorri também.
Deixa que eu durma em teu seio,
Pois nesse suave enleio
Como se dorme tão bem!
Que tens? Receias a vaga?
Quiseras voltar à fraga?
Agora é tarde, talvez!
O céu bramindo escurece,
O negro mar se enfurece...
Mas tens meu peito, não vês?
Não temas, aperta os braços,
Sem fadigas, sem cansaços,
E vamos, ó minha flor,
Nos vascos da tempestade
Procurar a eternidade
Das ânsias do nosso amor.
Sorris? Teus olhos molhados,
De desejos inundados,
Têm o frescor das cascatas.
A tua boca enrubesce,
Teu colo arqueja, estremece
Como a juriti das matas.
Sorris? Se queres amores
Perfumados como as flores
À ermida leva o teu véu
Teu seio queima, donzela
E a tua boca tão bela
É toda o maná do céu.
Amemos, porque na vida
Para o mundo indefinida,
Ninguém passará, no entanto,
Sem amor seja a quem for,
Chore embora amargo pranto...
Pois a vida é o próprio amor!
Subia do seu olhar
Subia do seu olhar, na última hora
E pela mão da morte, espaço em fora,
Entrou no Empíreo pela Estrada Flórea
Entrou coroada nos mistais da glória.
Ah! neste mundo a tua irmã querida
Tinha das santas misteriosa vida.
Se olhava a gente o astro dos seus olhos
Eram faróis na noite dos escolhos,
Do deserto da vida, abandonado,
Dava à sede o alívio desejado.
Eram fontes suavíssimas, tranquilas
E Estrelas d'Alva eram-lhe as pupilas.
Dois Íris de Aliança, os olhos dela
Em cada um tinha a Dor uma capela.
Uma capela em cujo altar se via
Uma Senhora de Lourdes, noite e dia.
E a sua boca de coral marinho
Tinha as doçuras do mais rico vinho.
Quando falava aos simples, aos modestos,
Eram gabados os seus nobres gestos.
Quando falava às pequeninas aves
Eram só vibrações de harpas, suaves.
E as aves todas, carinhosas, boas
Como amiguinhas lhe cantavam loas.
Mesmo as tristonhas, as prisioneiras
Que não viviam pelas laranjeiras,
Nem na esmeralda florida dos montes,
Ouvindo o doce marulhar das fontes.
As aves adoravam-na, tão meigas,
Como se a tua irmã junto das veigas,
De asas abertas a cantar andasse
E os mesmos sonhos virginais sonhasse.
Iguais às mãos das santas milagrosas
Eram-lhe as suas, de jasmins e rosas.
Fusos ebúrneos os seus dedos finos
Fiavam sonhos tênues cristalinos.
E foi num dia que subiu sua alma
Cheia de paz, de mansidão, de calma.
Subiu à torre límpida dos astros
Feita dos mais sublimes alabastros...
Subi cantando
Subi cantando, e ainda aí me vejo,
Mais leve do que a pluma de uma garça
E tudo o que por entre sonho almejo
É mais leve do que a pluma esparsa...
E deu-me, o Deus das siderais alturas,
O momento feliz de eu nessa Casa,
Encontrar (oh! ventura das venturas!)
Um Anjo a abrir-me o amaino da sua asa.
Eu, que do mundo vinha em forma bruta,
Ainda cheia do pó da cova fria,
Senti-me como a luz, branca e impoluta
Branca e impoluta como a luz do dia.
Encontrei-me na porta de um palácio
A olhar um parreiral repleto de uvas...
Cesto — um belo e maternal garopilácio
Regado de ouro transformado em chuvas.
Bem perto estava um roseiral florindo
Rosas da cor das ágatas preciosas
Florindo auroras de esplendor infindo
Que, como sabes, são do Espaço as rosas.
E em roda do Palácio onde eu estava
Tudo era branco como os nenúfares!
E tudo em ondas de prata rebentava:
Tudo isso mais não era do que mares.
E por cima dos mares que alvoroço
De alvissareiras e adoradas aves
De sangue moço, eternamente moço,
Todas cantando músicas suaves.
E que sonhos que vi, meu filho! Ao vê-los,
Por essas meigas, incógnitas paragens,
Tive pesar dos Teus — uns pesadelos
Sem as argênteas, pronubas roupagens.
A Casa, uma das Casas do Universo,
Para onde vim depois de tantas dores,
É mais bela que a rima do teu Verso,
É mais bela do que todas as flores.
Ó caridade nesse mundo! Nunca
O que viste no teu verás bem como
Nós vemos nesse mundo! Atra espelunca
O teu, somente o teu, Reino de Mono.
De onde me vejo com prazer e calma,
Vejo milhões de fúlgidas esferas!
Subindo a estrada
Dizem que a linda flor das moças da Prainha
Morreu muito feliz. Com efeito saiu
À hora em que do mar a Estrela d'Alva vinha
Surgindo como um lírio. E quando amanheceu,
Todo esse povo bom, pressuroso já tinha
Corrido à casa dela, e, chorando, lhe deu
As expressões da dor que as almas espezinha,
E para o seu caixão muitas rosas colheu.
E agora, vejam só como, junto às gaivotas,
Uma garça aparece e as asas bate e espalma,
Procurando, por certo, outras plagas ignotas...
Ao divino esplendor da tarde azul e calma,
O enterro sobe a estrada... E junto das gaivotas,
A garça simboliza a brancura de uma alma.
Supremo conforto
O estranho Ser que às vezes me aparece,
E crocita-me à porta, solitário,
De olhar sinistro, em fogo, temerário...
Ah! esse estranho Ser das trevas desce!...
Tremendo então recorro à paz na prece,
A esse eterno conforto extraordinário,
E, como Jesus Cristo no Calvário,
Peço a meu Pai, que está no Céu, a messe,
Toda a messe do Amor, do trigo louro,
Que nas granjas azuis os moinhos
Do sol trituram, para o real conforto
Dos corações assim atormentados,
Dos corações que passam fatigados,
Pelas ondas malditas do Mar Morto.
Tarde de roseirais floridos
Tarde de roseirais floridos nas estradas
E nas linhas do ocaso, o sol, em chamas de ouro
Faz lembrar um besouro, um enorme besouro
Na corola de um lírio. As águas azuladas
Do mar tremem na praia, onde há canções em coro
De almas livres no amor, para sempre abençoadas,
E há fontes a cantar sob árvores copadas,
E campos sobre os quais flama o trigo louro.
Em tudo há sol, em tudo há viço, em tudo há vida
Nessa linda manhã de Abril toda florida
Desde a poeira do chão ao cerro firmamento.
Entretanto, ao correr das festivas manhãs
As andorinhas vão-se — almas tristes, de irmãs
Fugindo à escuridão das celas de um convento.
Tarde espiritual
Para bem compreender os teus fulgores,
Rosa de Maio, esqueço as grandes dores.
Esqueço tudo, no íngreme caminho
Das ilusões, e fico então sozinho
Calmo, tranquilo, sossegado fico,
E a alma nos teus encantos santifico.
Os olhos ergo às regiões celestes
Onde de pedraria o corpo vestes.
E fico a contemplar os teus vestidos
Que ricos são, de gemas guarnecidos...
Agora, vejo rosas e junquilhos
Transfigurados em formosos brilhos.
Vejo hortênsias, as mais imaculadas,
Como que pelos espaços derramadas.
Violetas vejo; e vejo margaridas
E jacintos de pétalas luzidas.
Alastram-se por tudo os heliantos;
Desde as alturas aos mais rasos cantos.
Das serras pelos múltiplos extremos
Erram, florindo, enormes crisantemos.
Folhas de hera, ciclópicas, estranhas,
Caem sobre a linha brusca das montanhas.
Flores de ipê. Da cor do ouro maciço,
Rolam nos ares, no esplendor do viço.
E do cipó de São João o sangue
Lateja em veias verdes, junto ao mangue.
Mal-me-queres rosados, e outros roxos,
Formam tapetes de veludo frouxos.
E vão-se pelo espaço afora os goivos,
Magoados como os olhos de alguns noivos.
Lindos botões-de-prata, e botões-de-ouro,
Parecem despertar o eterno coro
Das festivas e rutilas abelhas
Que zunem nas corolas e nas telhas...
E em tudo, nesta misteriosa tarde,
O sol bizarro em flamâncias arde.
Dele descem topázios e berilos
Aos rios claros, límpidos, tranquilos...
Cobre-se o mar de manto de esmeraldas;
E o alto da serra é azul, e das suas fraldas
Ao campo desce um manto de veludo
De turmalinas, abrangendo tudo...
Descem às linhas curvas dos penhascos
Enormes bambinelas de damascos.
E ao fundo, ao fundo, muito longe, ao fundo
Parece abrir-se a Porta de outro mundo...
E a Porta é toda pérola incrustada!
Que linda Porta! Que bonita Entrada!
II
Ó tarde! deixa que por ela eu entre
E de joelhos, humilde, me concentre.
Que eu por essa Porta entre cantando,
Esquecido do mundo miserando.
Que eu vá por ela adentro, satisfeito,
Sem me lembrar das ânsias do meu peito.
Sem me lembrar que anseio, que padeço,
Quando da fé o trigo louro esqueço.
Sem me lembrar dos turbilhões das mágoas
Que sobem como do dilúvio as águas.
Sem me lembrar também da atra miséria
Que há de ficar na terra deletéria.
Que eu vá por ela adentro, intemerato,
Sem me lembrar do triste mundo ingrato.
Pois que, para se entrar num templo augusto,
Não se deve curvar a fronte ao susto.
Tarde, o dia declina
Tarde, o dia declina. O dia morre.
E as paredes do ocaso,
Com as incrustações simbólicas de um vaso
Do tempo de Sabá, são todas feitas de ouro,
E um vinho cai, um vinho desce, um vinho escorre
Um vinho louro,
Que macula o coração e a alma
Mas eu não tenho calma.
Neste momento as brancas açucenas,
E a flor dos pessegueiros,
À sombra dos pinheiros
Deixam, deixam cair das corolas serenas,
Também um vinho louro,
Porque do oceano de ouro
A luz os cobre, enlourecendo tudo...
E me embebeda o coração e a alma.
Mas eu não tenho calma.
E cai por mim o manto de veludo
De uma aragem que vem do campo
Morro de esmeralda,
Rodeado de escarpas,
Em cuja falda
Os delicados sons de violino e harpas
Dos riachos me embalam...
E nessa aragem lhes vem o perfume dos vinhos.
Tercetos
Amor, por onde andavas quando um dia
Te lembraste de mim? Por onde andavas,
Triste, quem sabe? ou cheia de alegria?
E o que no espaço intérmino buscavas,
Tu, minha amada, ó meu contentamento?!
Era somente em mim que então pensavas?
Vejo lá longe, em pleno firmamento,
Uma estrela luzir, maravilhosa:
Auro clarão que não se apaga ao vento.
Vejo lá longe, branca e luminosa,
Principalmente quando estende a aurora
Por sobre a terra os mantos cor de rosa...
Vejo lá longe, recordando Flora
Entre jasmins abertos e açucenas.
E como eu fico tão feliz nessa hora:
Dessa Estrela desceste, entre as serenas
Ondulações da luz? Dela vieste
Cheia de graça, ou de profundas penas?
Dessa Estrela da abóbada celeste
É que baixaste? Dize lá, querida,
Tu que nos laços do amor prender soubeste
À tua a minha amargurada vida,
Desta vida no aspérrimo caminho,
Nesta estrada sombria, indefinida?
De onde desceste, ó meigo passarinho?
Pois se o não foras, como poderias
Descer da paina de tão alto ninho?
Desse ninho tecido em pedrarias,
Entre cristais, safiras e berilos,
Entre rubis, sardônias e ardentias?
Olhas-me?! Que tens então nesses tranquilos
Olhares?! Que piedade! que ternura!
Vejo-os selados, vejo-os em sigilos...
Que dor ocultas? Fere-te a amargura
Que é dada ao coração de quem padece?
Fala, responde, ó mística criatura.
Ó luz bendita! ó luz em que se aquece
O meu tristonho coração aflito.
Responde à minha dolorosa prece.
Responde às minhas ânsias, ao meu grito;
Responde aos meus tormentos penetrantes...
De que mundo vieste, do infinito?
E eu não me lembro de te ver no espaço!
Nunca te vi, nunca te vi, por certo;
Nunca te dei o amaino do meu braço.
Nunca te vi de longe nem de perto;
Nunca senti o olor dos teus cabelos;
Nunca senti teu róseo peito aberto...
E nunca vi, desses teus olhos belos
O divino luar, quer nos desejos,
Quer sobre os bruscos, rudes pesadelos.
Nunca vi tua boca; nem teus beijos
Pelos meus beijos límpidos passaram
Como arrulhos de pombos benfazejos.
Nem as mãos te senti. Nunca afagaram
As tuas mãos as minhas mãos trementes;
Em mim jamais as tuas mãos pousaram.
Nunca senti os pombos inocentes
Do róseo vale do teu seio morno
Adormecido em prados florescentes.
E nunca vi o virginal contorno
Da tua espádua ou dos teus pés franzinos;
E nunca andei da tua graça em torno...
Nem nunca ouvi dessa garganta os trinos
A fala musical de uma alma branca
Como a alma dos pássaros divinos.
Nunca, nunca te vi, na vida pouca
Do espaço, nem me lembro se existi
Contigo, noutro mundo, ó alma branca!
Nunca! nunca te vi! nunca te vi!
Teve uns cabelos tão sedosos...
Teve uns cabelos tão sedosos,
Leves, tão lindos e cheirosos,
Como ninguém, neste lugar
Hoje, porém desses cabelos
Caíram todos os novelos;
E vive o crânio a se mostrar.
Na sua boca (Que linda boca!)
A voz tão clara tornou-se rouca,
De uma maneira de arranvel.
E aos lábios graves então aflui
Uma violeta que se dilui
Em gotas negras, de vivo fel.
Nos belos olhos expressivos
De sentimentos emotivos,
De tantas graças e primor,
Nos belos olhos agora existe
Tudo que é triste, tudo que é triste,
E cheios andam de pavor.
De sobrancelhas arqueadas
Lembrando as asas ondeadas
Mas pequeninas de um faisão,
Já não se encontra um fio, ao menos;
Caíram ambas aos serenos
De algum cobrilho de serão.
Suas orelhas já são roxas
Moles, descidas e tão frouxas
Caem-lhe, agora, descomunais,
Sobre as linhas do pescoço
Disforme, inchado, disforme grosso
Como as raízes dos batatais.
Faces, assim tuberculosas,
Ei-las cheias de negras rosas,
Em quantidade que não tem fim.
E os braços dela, os braços dela
Parecem vasos de esparrela
Que a gente avia para o chopim.
Vejo-lhe as pernas entumecidas
De nódoas roxas, enegrecidas
Como as do cedro, que chagas tem
Quando lhe morde o vivo tronco
O fogo atroz, e escuta o ronco
Do vento sul, que o sopra bem.
Vi-a sentada no caminho
Talvez em busca de carinho
Dos que passam por ali,
Mas nunca vi, à luz do dia,
Alguém lhe dar, com alegria
Nem um cobre que seja, vi.
Ao ver-lhe os velhos mantos rotos,
Da aldeia inteira os vis garotos
Dão-lhe mil chufos. Que escarcéu!
E hoje, que os vi, assim sonhando,
Vi os seus olhos se levantando,
Os de Maria, fitando o céu.
De cor morena, de cor morena,
Era dos campos a açucena
A mais bonita, original.
Hoje, porém, que cara feia!
Não há por toda esta aldeia
Uma outra a esta igual.
Quando em mocinha ia ao espelho
E via o rosto tão vermelho,
Numa saúde de romã,
Toda orgulhosa então dizia:
— Nos olhos tenho a luz do dia;
Eu sou a estrela da manhã.
Eu sou da aldeia a mais faceira
Das raparigas. Assim trigueira,
Ninguém me iguala nesse sol.
E se eu morasse na cidade,
Seria rainha, na verdade,
E o meu marido seria o sol.
Tibúrcio de Freitas
Ó meigo alvoriador do Rio da Amargura,
O que é feito de ti, nos silêncios etéreos?
Tens ainda na fronte a triste noite escura?
E andas no mesmo fel de sinistros mistérios?
Ainda tens nesse olhar de emotiva doçura,
A Águia branca do Sonho, ou por ele os funéreos,
Os tormentos cruéis, a flamante tortura
Dos que se acham sob o poder dos Tibérios?
E o que fazes da tua encantadora Lira,
Na alta Torre do Ideal, na Torre de Safira
Lá onde os astros são mais castos do que as flores?
Na alta Torre do Ideal, ó meu saudoso Amigo,
Na mesma Lira o Amor anda a cantar contigo,
E acabou-se por certo o fel das tuas Dores!...
Timóteo Maia
Ó terra tão linda! Ó terra de amores!
À beira das ondas eu sempre te vejo
Num chão de esmeraldas coberto de flores,
Do sol sempre claro ao doce lampejo.
Dos morros te estendes às praias formosas,
E ali te espreguiças nos teus devaneios,
E as ondas te enfeitam de espumas radiosas
As tranças, os ombros e os túmidos seios.
Tu és a cachopa dos meus sentimentos;
Namoro-te, ó Ilha, cachopa de escravos...
Balouçam-te as vestes as asas dos ventos,
E dão-te as abelhas seus dúlcidos favos.
Tu és dos meus sonhos o pássaro lindo
Que canta da aurora até muito tarde.
E quando tu cantas, minha alma sorrindo,
Em gozos sublimes, puríssima arde.
Ó Ilha querida, cercada de ondinas,
Que tens dos encantos o eterno condão,
Escuta a minha alma, nas flébeis surdinas
Das cordas sinceras do meu violão.
Tínheis os corações[27]
Tínheis os corações bravos, ardentes,
E as almas de esperanças consteladas;
Vós, nutridas na luz, porque rasgastes
A túnica do Bem e assim - entrastes
No antro da Presa, no cairel do Mal?!
É o Destino! No entanto, nas orgias,
Mesmo nos gozos
Sei que sentis um íntimo punhal!...
(Laguna, 1888)
Tomé
Tomé corria as praias sossegadas
Lançando a sua rede ao verde mar,
E como nossas almas, abraçadas
Gostam das praias, gostam de pescar...
Como pelas manhãs embalsamadas
Vamos às praias, para lá cantar,
Lá teremos as horas bem contadas,
Do filhinho que está para chegar...
E o seu nome será... (Que nome lindo!)
Um jasmineiro que já está florindo.
Mas o seu nome não será Tomé.
Entretanto, Maria, neste mundo,
Neste tristonho báratro profundo,
Quem possui na alma um átomo de fé?
Transfiguração
(Para o espírito de Cruz e Sousa)[28]
Ah! Para todo o sempre protegidos
Pelos mantos suavíssimos do Amor,
Há corações de míseros, vencidos
Nos oceanos trágicos da Dor.
Transfiguram-se, então, os seus gemidos
Em asas de ouro, cheias de esplendor;
E os seus prantos cruéis e denegridos
Têm, no momento, uma formosa cor.
Assim, de um dia para o outro, viste,
Tu que vivias quase sempre triste,
A transfiguração das tuas mágoas.
Viste-a como Noé, na alvissareira
Manhã de sol num ramo de oliveira,
Trazido por um pombo, à flor das águas...
(Florianópolis, 1924)
Tulipa do azul
A Essa que além, no Incognoscível mora,
Vestida de alvos linhos e brocados,
Desde a cabeça onde floresce a aurora
Aos seios virgens como os virgens prados.
A Essa cuja palavra é mais sonora
Que os áureos anafis por sois vibrados,
E cujo olhar de piedade inora
Os corações por mais atormentados...
A Essa meiga Tulipa dos Sidéreos
Uma que tem por chaves os mistérios
Na dispersão do amor por sobre os mundos
Os meus joelhos curvam-se, contritos!
Ah! só ela é o refúgio dos meus gritos,
Do meu tormento, dos meus ais profundos.
Usura benfazeja
Moço, de carne em flor de Maio, perfumado,
Com frescuras de sedas e claridades de ouro
O teu corpo é por certo, o meu maior tesouro
O que guardo, no amor, com carinho e cuidado.
Usurário que sou, quero tê-lo guardado:
E andem por cima dele os meus sonhos... Em coro,
Cante por cima dele o passaredo louro,
Da alegria do meu coração torturado.
Dias passo a cismar; noites passo sem sono,
Só para não te ver o corpo no abandono
De si mesmo, sem ter alguém que o beije e cubra.
Usurário que eu sou! No entanto é benfazeja
A minha usura... a minha usura... que deseja
Guardar beijos aos mil na tua boca rubra.
Vai pela estrada afora
Vai pela estrada afora um cortejo funéreo
Mas nessa hora por sobre o mar tranquilo rola
Do alto, da esfera azul, do fresco azul sidéreo
Um pó de ouro e cristal, como o de uma corola.
Range o rude portão do velho cemitério
E o coveiro aparece, à luz que freme e assola
O barro cor de sangue, e os rosais, num mistério
De aroma que eu não sei a que regiões evola.
Vai tudo muito bem, sem pranto, sem tristeza,
Sem réquiens de amor na mais branca pureza
E sem recordações, indiferentemente...
Dispersa-se em seguida o cortejo funéreo
E lá ficou no velho e triste cemitério
Um coração que amava os outros loucamente!
Vamos...
Vamos os dois, assim... Vamos assim, querida,
Que esse amor que nos cerca é a nossa própria vida:
Toda a nossa existência em flor, e o nosso sonho...
Abracemo-nos, sim, minha querida, embora
Diga todo esse povo o que quiser, da aurora
Do nosso amor, num mundo entretanto enfadonho.
E que doirada aurora! A meiga Estrela d'Alva
Jamais se apagará no espaço cor de malva!
E hão de vir escutar os nossos grandes ais,
Os canários da telha, e os saudosos sabiás.
E os nossos ais irão bater na meiga Estrela
Como bate na praia o nosso barco à vela,
— "Os nossos ais?!" — Pois não, minha prenda querida!
E quem nunca no amor os teve, nesta vida?
Veio a tarde
Veio a tarde, na verdade,
Toda envolvida de arminhos
Pelo azul da imensidade
As nuvens lembravam ninhos.
Veio a tarde, e lá por baixo,
Pela estrada florescida
Cantava também o riacho
Muito contente da vida.
Cantava, entre os ananases
Tão vermelhos, nos barrancos,
O coração dos rapazes
Mais generosos e francos.
Cantavam moças felizes
Como os aromas da mata
Que tem as fortes raízes
Junto às águas da cascata.
E veio a noite estrelada
Como eu nunca vi mais bela.
Era uma rosa prateada
O farol de cada estrela.
Que veludo de almo encanto
No céu azul e nos campos!
Era o veludo de um manto
Bordado de pirilampos.
Velas
Dias existem, que me dão tristezas,
Que me acabrunham de ânsias infinitas
Como este que surgiu
Embora lindo, sobre o campo, e as fitas
Dessas praias por onde afloram-se as belezas
Deste lugar agreste,
Que sempre se vestiu,
E ainda se veste
De encantadoras framboesas.
Dias existem, para mim tão negros,
Mesmo tão cheios de acabrunhamentos,
Mesmo tão cheios de desolamentos,
Que até os próprios cânticos suaves
Das sonhadoras aves,
Nos seus elevadíssimos alegros,
Não são capazes de me embalar
A alma emparedada, a agonizar
Eu moro junto ao mar,
Em frente à Ilha das Vinhas,
Cujas pedras parecem umas casas
De misteriosas fadas,
Atravessadas
De rumores de asas
De andorinhas...
E poderia muito bem gozar
Os encantos do mar,
As suas maravilhas,
Que em derredor dessa Ilha, e de outras Ilhas
Andam sempre a rondar...
Mas as tristezas nem me dão vontade
De fitar-lhes a cor, toda suavidade,
De uma esmeralda liquescente;
E de sentir-lhe docemente
O precioso cheiro
Do salgueiro
Florescente.
E o que mais me entristece, o que mais me contrista,
É alargar a vista,
Por tudo isso, e encontrar velas que se vão indo
Por esse mar infindo,
Sem saberem se um dia voltarão.
Vendo-as, procuro recordar aquelas
Pequeninas velas
Que eu enchi de esperanças,
E soltei por um mar de vagas mansas,
À luz silenciosa das estrelas
Para vê-las
Voltar, no outro dia,
Ao Porto Desejado,
Iluminado
A surgir da alegria
Dos fulgores da aurora.
E como muitas velas vão passando,
Nesta hora,
Rumando
O mar alto, o mar grosso, o mar infindo,
Sem saberem se um dia voltarão,
Com essas velas
Com todas elas
Saudosamente vão
Minha alma e coração.
Mas, de joelhos, fico pedindo
A volta dessas velas...
E, uma por uma,
Rompam os roseirais da espuma;
Rumem de novo à praia onde ficaram
Uns roixos de saudade, e umas gotas de pranto.
Que elas não fiquem, como então ficaram,
Não sei por onde desarvoradas,
Não sei por onde naufragadas,
Não sei por onde abandonadas,
As pequeninas velas
Do meu encanto,
Que eu enchi de esperanças,
E soltei por um mar de vagas mansas,
Sob horizontes límpidos, risonhos,
Para vê-las
Voltar, no outro dia,
Ao Porto Desejado,
Iluminado
Dos meus sonhos!
(Últimos versos —18/03/1927)
Velhinhos
Meu pai e minha mãe lá vão pelo caminho.
É uma touca de linho a cabecinha dela.
E a dele também é. Talvez não haja linho
Mais alvo numa fonte, enxaguado em barrela.
Lembra um viver a tremer, o corpo do velhinho!
E o dela também treme. Ambos vão à Capela
Do Senhor do Bonfim, levar, devagarinho,
Dois corações de massa, e uma bonita vela...
Eles querem morrer tranquilos, sossegados;
Não querem ser na paz da morte despertados
Por dívida cruel, que lhes assombra a sorte...
E toda alma que deve anda de cruz aos ombros
Nos abismos fatais, nos rústicos escombros
No caminho da vida, ou no da própria morte.
Vem
Vem, que te quero junto ao meu peito aflitivo,
Para me dares toda a paz e lenitivo,
Que desejo encontrar nos atalhos da vida
Para mim tão cruel, tão vaga, indefinida
Sem campos a florir, sem riachos, sem fontes,
Sem montanhas azuis rasgando os horizontes
Sem formosos trigais, sem verde de pomares,
Sem praias de cristal no aconchego dos mares.
Vivo como quem vive abandonado e triste
Num castelo sombrio, onde tudo que existe
Amortalhado está de amarguras e ânsias...
Num castelo perdido em meio das distâncias
De um deserto sem fim, de areias escaldantes,
De céu sem resplendor, sem astros fulgurantes;
Sem óleos de luar, que é bálsamo, que é vinho,
Que é consolo na dor, que é afagos e carinho,
Que é manto de alva pluma de ave mansa,
Que é todo, neste mundo, um abraço de aliança
Entre os homens da terra e os homens de outros mundos,
Que procuram na paz amparo aos ais profundos,
E toda a proteção nuns braços que os ampare
Nuns braços virginais que as feridas lhes sare,
Porque uns braços são, em verdade, na terra
O amparo mais leal, que dentro em si encerra
O coração, a alma, o amor, a caridade;
Grãos de trigo maduro, e água na soledade...
E eu que sinto a escaldar a minha pobre língua
Não desejo morrer desamparado, à míngua.
Vinde o perfume das flores
Vinde o perfume das flores
Nos caminhos,
Da aldeia nos arredores
Seus carinhos.
Pelas árvores também,
Sob a aragem,
Esmeralda que se osculou,
Com coragem.
Rapazes e mais rapazes
(Coração
Feito de rosa e lilases
E emoção)
Em bandos um terno cantam
Loucamente,
E assim seus males espantam
Eternamente.
Só eu por montes e vales,
Entretanto,
Meus tristes e negros males
Não espanto.
(1907)
Vindo da pesca
Das ondas do mar grosso, as canoas de pesca
Vêm dobrando o pontal, todas a quatro remos
Ei-las, agora, junto à praia branca e fresca,
Onde a espuma parece abrir-se em crisantemos.
Que vida emocionante, alegre e pitoresca.
E que vida melhor lá na cidade vemos?
Lá, nossa vida é toda uma luta dantesca
Em pleno coração só desenganos temos.
Aqui como é tão bela a vida, e como é santa!
Dentro de cada peito a alma nos sonhos canta;
Não há nem uma só que de mágoas se queixe.
Ah! Divino Jesus, como do Alto abençoas
No trabalho da pesca, essas lindas canoas!
E Pedro alegremente as transborda de peixe!
Visão
Será mesmo verdade o que diz toda gente
Deste lugar? Será? Toda esta gente diz
Que a alma ainda pagã da noiva do Luiz
Tem sido vista junto ao mar, à luz do poente...
Por isso anda a vagar, agora, sorridente,
Com todo o coração entre sonhos, feliz.
Antes andava triste, era um pobre infeliz...
Não havia na aldeia uma alma mais descrente.
Chegava de pescar no alto mar revoltado;
E ao se lembrar da noiva (ai! Triste, o seu noivado!)
Viu-a baixar talvez das regiões celestes...
E nunca mais deixou de vê-la, nesta praia,
Vestidinha tal qual, de linho e de cambraia.
Como quando a enterrou à sombra dos ciprestes.
Vi tudo mudado
Vi tudo mudado, tudo,
Céus e mares e horizontes
E sobre a linha dos montes
Cobrir o silêncio mudo.
E eu lembrei-me quando a aurora
Sobre aquelas esverdeadas
Águas jorrava sonora
A luz em puras golfadas.
Lembrei-me desses supremos
Dias acres de alegria,
Na vaga loura e macia
As leves palmas dos remos.
Lembrei-me de todo o encanto,
Todo o encanto matutino,
Ir da aragem no quebranto
Por sobre o mar cristalino.
Alicar as doces ilhas
De pedras, musgos e flores
Cheias de heras e frescores
E naturais maravilhas.
Ir à pesca alegre e fresca
Nos raríssimos luares,
Numa hora pitoresca,
Em cima dos salsos mares.
Quando flexível canoa
Deixa nas vagas um sulco
Fundo, vivo, feito de hiulco
Rasgão cortado na proa.
Voo de ave
Ei-lo deitado em seu caixão, deitado
como a dormir o sono das quimeras,
tendo no olhar de mármore, extasiado,
ainda o fulgor das róseas primaveras.
Do seu pequeno coração parado
às grandes dores rígidas, austeras,
serena como um pássaro dourado
subiu sua alma às límpidas esferas.
Já amanhã de madrugada, quando
a aurora abrir os místicos rosais
do azul, por certo Ela estará cantando
Ou então entre as estrelas virginais
mais um astro veremos, desfolhando
frescos idílios, verdes madrigais!...
(São José, 16/10/1888)
Vou partir
Vou partir, vou partir. O barco já me espera
Com as velas em cheio. Adeus, prenda querida!
Que te seja dourada a flórea primavera,
Já que o inverno te foi uma profunda lida.
Vou partir, vou partir, saudoso. Quem me dera
Voltar cedo a esta praia, aromada e florida,
Onde teu coração, numa saudade austera,
Há de ficar revendo as angústias da vida.
E cedo voltarei. Nos teus seios morenos
Hei de vir acabar os meus sonhos terrenos
Satisfeito e feliz, com flâmulas em arco.
Fito-lhe o amigo olhar e alegremente parto...
Deixo-a então a rezar, ajoelhada no quarto
Ao Divino Jesus com São Pedro num barco.
Fragmentos
Canta
Canta na hora da morte o cisne pensativo
A olhar o fundo azul do lago. E por que canta
Na hora extrema da vida, o cisne, se tão santa
Dele fora sempre a vida, à luz do sol festivo?
A água do fundo azul do lago era o atrativo
Do seu saudoso olhar, e a manhã que levanta
Damascos e cristais no mar, e tudo encanta,
...............................
... do, por te haver esquecido
... do, por te haver esquecido, amor santo e profundo!
Por não me ajoelhar diante das rutilâncias do teu sol,
cuja luz ilumina as distâncias...
Por te esquecer me vejo em caminhos sombrios,
cheios de coaxos de rãs, cheios
de murmúrios de grilos augurais,
de fantasmas horríveis, de sombras
de histriões, de coisas impossíveis,
de blasfêmias à luz, de risadas
à Dor, de formal negação
ao teu princípio, Amor!
Mas hoje, (eu e tu, um sagrado Helianto)
não te quero senão como o mais alvo manto
estendido por sobre a minha vida inteira.
És de minha alma, agora,
um ramo de oliveira!
Pois tu fizeste, Amor,
que se enchessem meus olhos
de água como a que rola e freme nos escolhos!
No dia em que morreu minha Mãe,
nesse dia, pela primeira vez, vi fugir a alegria
de dentro de minha alma: ave que abriu as asas
e voou como voa um pombo além das casas...
Ah! Quando ela fechou os olhos, nesse instante
era impossível haver quem no peito ansiante
ocultasse maior e mais negro tormento!
Ao meu peito descera um tenebroso vento
vindo não sei de que regiões de dor e tédio!
Mas como eu procurasse um divino remédio
para suavizar tanta angústia inclemente,
recordei-me de ti, e disse-te, fremente:
"Amor! Pelo clarão sagrado que te encerra.
Acolhe minha mãe, que hoje partiu da terra."
Neste momento então, um astro que aparece
é a transfiguração da minha grande prece.
E uma voz a rolar nas asas de um mistério,
desce do claro azul olímpico do Etéreo
numa coloração e paz religiosa
para quem desta vida em meio dos caminhos
cuidosa andou por sobre um Calvário de espinhos,
mas andava por sobre uma esteira de rosas!
Bem que a encontraste, Amor, em pleno azul do Espaço!
Bem que o céu acolheu-a em seu doce regaço!
Pouco tempo depois, por uma noite bela,
Descida sobre a terra, em fúlgida capela
de astros de ouro e cristal, meu Pai também morria!
A dor, a dor profunda, a grande dor bravia
fazia-me da alma um funerário leito!
E já me cobria a alma dentro do peito!
Os meus olhos, na dor, choraram como as fontes,
ou como a nuvem chora e escorre pelos montes!
Dois riachos de pranto os meus olhos magoados!
E os meus lábios de fel quase que envenenados!
E a minha infância então foi transformada em freira
para a qual não há cantigas na lareira!
E o meu coração não se encontrava longe
de trajar o burel taciturno de um monge!
Este meu coração que era para ter a vida
cheia de aves e sol, ou tê-la tão florida,
como a toalha do altar da Senhora da Graça.
Ah! ninguém sabe a dor que a outra alma transpassa!
Mas procurei então o divino remédio,
o único que mata a dor e mata o tédio.
Por suavizar-me esta angústia inclemente
recordei-me de ti, e disse-te fremente:
"Amor, pelo clarão sagrado que te encerra,
Vem acolher meu pai, que hoje partiu da terra!"
Neste momento então, um astro que aparece,
é a transfiguração da minha grande prece
e uma voz a rolar nas asas de um mistério
desce do claro azul olímpico do Etéreo,
numa consolação e paz religiosas
para quem desta vida em meio dos caminhos
cuidosa andou por sobre um Calvário de espinhos,
mas andava por sobre uma esteira de rosas.
Bem que o encontraste, Amor, em pleno azul do Espaço!
Bem que o céu acolheu-o em seu doce regaço!
Mas continuou minha alma a ser a ave perdida
nos campos glaciais e soturnos da vida!
Era uma ave perdida e sem asas,
Que ao menos pudesse alcançar os espaços serenos,
quais pálios de luz nos umbrais das casas.
Em minha alma
nada havia de paz, pouco havia de calma!
Nada de uma esperança aberta em flor de lótus!
Morriam-me dos sonhos os luminosos brotos!
Morria-me do peito a fé! Tudo morria
como se sobre mim, quer de noite ou de dia,
descesse o fogo atroz de uma praga do Egito,
um vivo fogo atroz muitas vezes maldito!
E nas sombras da Morte a luz que a lua espalha
servia de veste, era a minha mortalha!
Mas me veio à lembrança o divino remédio,
o único que mata a dor e mata o tédio.
Para suavizar-me esta angústia inclemente,
recordei-me de ti, e disse-te fremente:
"Amor, pelo clarão sagrado que te encerra,
Manda que alguém me queira e me ampare na terra!..."
E como houvesse em nossa aldeia uma mulher
cujo olhar era um sol num vivo romper
de aurora sempre em flor de lirial prata e ouro
e cujo coração era um grande tesouro
de ofertas virginais, imáculos, divinos
e cuja boca em favos e os beijos cristalinos
como se fossem sons de cítaras e harpas,
ou um rio sobre as rendadas escarpas...
Chamei-a a me amparar no seu morno abraço;
e Ela, tão doce e boa, ao ver-me num regaço
de quem estava quase a morrer, amparou-me,
e um bálsamo de luz sobre o peito lançou-me.
Bem que me ouviste, Amor, do claro azul do Espaço.
Bem que me deu o Céu o amaino de um regaço.
Mas mesmo assim nem sei o que em minha alma andava
de uma melancolia atroz, que me matava!
Ah! não por meu pastor que eu tanto bem quisesse,
que dentro da sua alma a minha alma florescesse!
Quem me beijava a boca aflita a toda hora;
quem fosse para mim o encanto de uma aurora.
Quem rezasse por mim à Virgem dos aflitos
Que soubesse abafar os meus profundos gritos!
Quem tivesse nos meus os seus olhos imersos,
e soubesse tão bem decorar os meus versos!...
E me veio à lembrança o divino remédio,
o único que mata a dor e mata o tédio.
Para suavizar-me esta angústia inclemente,
acordei-me de ti, e disse-te presente:
"Amor! pelo clarão sagrado que te encerra,
Manda que uma ave cante para a nossa alma, na terra!"
E por um março azul, de canários nas telhas
Da minha pobre casa, e irisadas abelhas
Nos verdes dos rosais que floriam nas eiras,
E pombos aseando em torno às laranjeiras,
E mar que se estendia em novelos de arminho
E festivas canções no aroma do caminho,
E sol, e muito sol dourado, e muita messe
De bem, que é o lírio azul que em todo azul floresce...
Ah! por um Março assim só mesmo tu, Amor,
Sabes o que de puro e encantado fulgor
desceu-nos a nós dois do teu ninho celeste!
Só tu sabes, Amor, a filha que nos deste!...
E assim por eu te ver em toda a longa estrada
Da minha vida, Amor, lembro-me de te dar
Neste livro onde está minha alma retratada,
Por certo o mais sublime e luminoso altar!
Foi ele
Foi ele que me ensinou
Este verdadeiro canto:
— quem sua pátria deixou
Vive coberto de pranto.
— Quem nunca teve saudade
Da sua pátria querida?
Ninguém negou, e nem há de
Negar coisa mais sentida.
— De joelhos corro o mundo,
Ajojado à escravatura...
Não há tormento mais fundo,
Não há noite mais escura.
— Mas Jesus seja louvado
Diante da minha dor;
E eu me veja abençoado,
E também o meu senhor.
Luar
Pelos caminhos
As moças e os rapazes
Brandos como os lilases
Puros como os arminhos
Descem vindo da casa das novenas
De uma casinha branca,
Festiva e franca,
Que fica assim num alto, entre verbenas
Uma linda casinha de janelas
Escancaradas para o verde mar
E para a luz de prata das estrelas.
.................................
Das longas esplanadas
Onde as estradas claras
Vistas de cima, do alto, nos parecem
Enormes fitas que desaparecem
Ao longe, nas quebradas...
Luar... luar... luar!
Que belo o campo e que saudoso o mar!
E as moças e os rapazes
Brandos como os lilases
Vão descendo, contentes,
Canta-lhes na alma toda a luz dos sonhos
Onde não há tristonhos
Sentimentos morrendo...
Maria Sulamita
Era da cor de uma açucena agreste
E tinha os olhos negros, da negrura
De que a noite às vezes se reveste,
Como da mais simbólica aventura.
Tinha os olhos assim; mas deles quanto
Sorriso em luz castíssimo, brotava!
Não havia talvez maior quebranto!
Era uma ave da noite, que cantava!
No bercinho deitada, e a rir, algumas
Horas estava, deliciando a gente!
Nossa filha era a garça entre as espumas
De um mar batido por um vento ardente!
Nossa filha, deitada, algumas vezes
Ria tanto, meu Deus, que parecia
Ver através da infância de três meses
Dos vossos astros toda a pedraria!
E horas ria, dormindo, sossegada!
Mas que riso era o seu? Ria por certo
Para os anjos que via pela estrada
Que ia da sua infância ao céu aberto
Nunca te vi
Nunca, nunca te vi. Não creio nisso
Que ora com calma original me dizes
Ó meu querido bem, ó meu feitiço.
Que amor foi esse de febris raízes,
Que então gozamos assim tanto
Nunca fomos por certo mais felizes.
Nunca me foste, nessa estrela, um manto
De puríssimas sedas ofegantes
Nem eu te dei o meu amor tão santo.
Nunca! Nunca! Jamais fomos amantes
Nunca nos abraçamos com desejos
Nos nossos corações febricitantes.
Nunca se ouviram beijos e mais beijos
Na tua boca rubra e nem na minha
Em rutilantes, mágicos desejos.
E se o teu peito muitos sonhos tinha
Nunca os teve por mim; por outro os teve
Buscando os sonhos de florida vinha.
Que um trigo louro espero, de momento,
Colher nos campos pródigos da vida,
Elevado, contente, ao firmamento.
De onde baixa à terra indefinida
Entre as ondas da luz maravilhosa
Para por tuas mãos ser escolhida.
A cada instante, no redor dos dias,
A alma, cansada de viver na terra
Nesse maldito pélago de orgias,
Neste abismo tentálico que encerra
Junto da dor a sombra - e o amor bendito
Junto à miséria que corrói e aterra.
Quando nos morre um filho
Quando nos morre um filho, o nosso coração
É certo que se parte em muitos mil pedaços.
E há em redor de nós muita desolação
Que nos quebra da vida os poderosos laços.
Pois um filho o que é senão a proteção
Ao nosso grande amor? E quem os nossos passos
Há de guiar mais tarde, em plena solidão
Da velhice que é toda anseios e cansaço?
E o meu filho morreu, e o colocaram dentro
De uma cova, no chão, junto à qual me concentro
De olhar voltado aos céus, sem compreender no entanto
O peso que a sua alma pelas asas leva
Vim trazer-te, senhora...
Vim trazer-te, Senhora, uma vela enfeitada,
E quero vê-la arder, num castiçal de prata,
No teu florido altar, diante da luz sagrada
Dos teus olhos azuis, que tanto me arrebata.
E esta vela, Senhora, é a dádiva de uma alma
Que depois de chorar tantos dias a fio,
Tantas noites cruéis, afinal conseguiu
Do vosso amor materno, o áureo azeite da calma.
E vós sabeis que amargo era o meu sofrimento,
E era o pranto a escorrer do canto dos meus olhos,
A cada hora, chegada, assim como entre abrolhos
Chega a vaga a rolar sob as asas do vento.
Muitos dias passei, e também muitas noites,
Sem os olhos fechar, nas pálpebras doridas,
A ouvir seguidamente o rumor dos açoites,
Dos frios vendavais! Quantas horas compridas,
Quantas horas que nunca acabariam, nunca!
Eu passei-as a ver o Antonio, meu marido,
Quase morto, a morrer numa velha espelunca,
Num leito ao qual faltava um cobertor tecido
De lã, para melhor agasalhar um doente
Cujo corpo sentia a friagem dos gelos,
E ocultava no peito os bruscos pesadelos
De um coração sem fé, um coração descrente!
E se o Antonio morresse, ai de mim! ai dos filhos!
(E os meus foram, no mundo, uma escada de sete
Pequeninos degraus). Pelos medonhos trilhos
De uma vida cruel, que tanto compromete,
Iríamos rolando... Iríamos rolando...
Sem termos nesse mar uma tarrafa, ao menos,
Pelos dias azuis, pelos dias serenos,
Que nos desse de comer, assim, de vez em quando,
Umas postas de peixe; e nos desse coivara,
A farinha de aipim, que é o pão de cada dia,
Sobre a esteira onde estendo a minha toalha clara,
E com meus filhos rezo a vós, Virgem Maria!
E como o Antonio nunca em seu peito sentisse
A fé que tanto eleva a alma da criatura,
Nossa Senhora, um dia, enchi-me de meiguice,
E lhe falei do vosso olhar, todo ternura,
E nos lábios nos quais depondes a pureza
Do dulcíssimo mel das abelhas do Amor,
E dessas lindas mãos mais brancas, com certeza,
Do que os bogaris banhados do frescor
Das manhãs deste mês, que é bendito Sacrário
Onde nos colocais, com um manto de estrelas
Sobre os ombros caído, entre as flores mais belas,
De um campo de esmeraldas, ao som do campanário.
E ao lhe falar assim, o meu querido Antonio
Que acreditou mais nas artes do demônio,
Começou a me ouvir com tal devotamento,
Que, um dia, me chamou, e me disse, chorando:
— Rosa, se a alma existe, é chegado o momento
Do que tenho a dizer-te o que está esperando
Da piedade d'Aquela a quem rogas contrita
Pelas dores cruéis dos meus braços cansados
Que nunca, nunca mais trabalharam, coitados!
Nesse momento então, dentro em minha alma aflita,
Como que fulgurou um céu de pastos de ouro,
[1] Publicado no livro Poesias (1966, pág. 81), com modificações e sob o título Relógio da mágoa. Foram descobertas duas versões do mesmo poema, com dois títulos diferentes e algumas semelhanças entre ambos em sete dos seus versos. O outro título é A tua voz.
[2] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 69, com modificações e sob o título Fugindo ao medo.
[3] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 283, com modificações e sob o título Purificados.
[4] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 68, com modificações e sob o título Fugindo ao medo.
[5] O livro Poesias (1966, página 08) traz um poema com o mesmo título e alguns versos também semelhantes, assim como o tema. Porém diferem no foco de pessoa: O do Poesias está em terceira pessoa.
[6] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 81, com modificações e sob o título O relógio da mágoa.
[7] Não se tem certeza se a palavra grifada no verso 13 do soneto XIX seria mesmo rórida. O certo é que ela existe no original manuscrito e também no texto datilografado pesquisado. Há no mesmo texto o nome de Valésia e Florença. Optou-se pelo último para salvar o soneto n° XXII, onde a 3a estrofe possui, para rimar com a palavra "Florença", a palavra "descrença": No entanto a alma branca, de Florença,/ Era inundada de total descrença.
[8] A Biblioteca Nacional informa que há dois textos com o título Carlos de Faria. Um no Documento 109 e outro no Documento 110. São variantes do mesmo poema.
[9] No livro Poesias (1966, página 162), sob o título geral Novenas de maio, há um poema com o nome No campo santo. Às páginas 163/164 e 165, a partir do verso 11 (Em cada face uma vivace) entra o presente poema, com algumas modificações, sendo a principal a que transforma o texto, que é de versos tetrassilábicos, em versos eneassilábicos. Há lá também palavras que não existem no texto original.
[10] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 292, com modificações e sob o título Saudoso e triste.
[11] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 74, com modificações e sob o título Viveremos assim.
[12] O livro Poesias (1966) traz, à página 202, este título, mas o texto é outro.
[13] Publicado em Poesias (1966, página 35) com o título Valésia.Na pesquisa foram localizados dois poemas, parecidos, com dois títulos diferentes: Na casa de Clécia e Clécia.
[14] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 73, com modificações e sob o título Páginas saudosas.
[15] Parece um poema inacabado, mas o Catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro não informa isso.
[16] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 99, com modificações e sob o título Ao velho engenho.
[17] Na pesquisa foram encontrados dois títulos: Novenas em maio e Novenas de maio.
[18] São 970 versos deste que é um dos mais extensos poemas de Araújo Figueredo.
[19] O original deste poema possui a observação NOVENAS DE MAIO, e o livro Poesias, 1966, à página 113, publicou 38 poemas sob esse título, mas lá não consta o transcrito acima.
[20] Na versão datilografada deste poema há uma linha pontilhada com 31 pontos, antes do verso 52. Portanto, pode-se pensar em parte do texto manuscrito que não foi localizado nesta pesquisa, e que também quem o datilografou não o tenha localizado.
[21] Publicado em Poesias (1966, pág. 50), com modificações e sob o título A vida. No original, apresenta dois títulos: Bendizendo, anulado com diversos traços e substituído por Porto desejado.
[22] Foram encontradas duas versões deste soneto. Optou-se pela publicação da versão acima.
[23] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 278, com modificações e sob o título Infinito mudo.
[24] Publicado no livro Poesias (ACL - 1966) à pág. 88, com modificações e sob o título Tiranas do amor.
[25] Publicado no livro Poesias (ACL — 1966) à pág. 267, com modificações e sob o título Ao partir.
[26] A Biblioteca Nacional catalogou um fragmento deste poema (do verso 11 ao verso 24) como sendo outro documento.
[27] Não está informado no catálogo da BN se o poema é incompleto.
[28] Na data de 29/11/2007, Santa Catarina, a terra natal de Cruz e Sousa, depois de três décadas de empenho para trazer os restos mortais do maior poeta simbolista de todos os tempos, pôde realizar o que teria sido o desejo do poeta, relatado por Araújo Figueredo em No caminho do destino.