Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

 O idiota, de Horácio Nunes


Texto-fonte:

Horácio Nunes Pires, Bastidores. Teatro original,

Florianópolis: Gabinete Tipográfico Catarinense, 1898.

O IDIOTA

Comédia original em 1 ato

Personagens

Macário de Souza           45 anos

José Pato                     22 anos

Ambrósio                      25 anos

Elvira                           20 anos

Atualidade

A comédia O Idiota, antes de ser incluída no volume Bas­tidores, fora publicada no Jornal do Comércio, de Desterro, sob o título A Paixão de Jeremias, em 13 secções sucessivas, de 3 a 22 de outubro de 1890, dedicada a Francisco Margarida.

As personagens, com nomes diferentes, estavam assim caracterizadas:

1  Velho ambicioso que quer casar a filha com sujeito rico, embora patife.

2  João da Silva — rapaz pelintra, requebrado, de pince-­nez, voz aflautada, roupa apertada.

3  Jeremias — criado idiota, lorpa, arrepiado, rindo ou chorando, conforme as circunstâncias.

4  Elvira — moça elegante e um tanto emancipada.

Ato único

Sala bem preparada. Portas laterais e ao fundo. Ao fun­do, esquerda e direita, aparadores com lampiões e vasos com flores. A esquerda baixa, sofá e uma cadeira de braços. À di­reita baixa, mesa redonda com pertences de escrita, e duas ca­deiras, sendo uma de braços. Nos espaços entre portas, cadei­ras. As posições das personagens são tomadas da cena.

Cena I

ELVIRA — (Recostada no sofá, lendo um livro.) "Vai alta a noite; na mansão da morte Já meia noite, com vagar, soou;

Que paz tranquila! Nos vaivéns da sorte, só tem descanso..."

Cena II

ELVIRA E MACÁRIO

MACÁRIO — (Pela direita alta, com uma carta na mão e fa­zendo grande espalhafato.) Bravo! Bravo! Às mil maravilhas!

ELVIRA — (Atirando o livro sobre o sofá e levantando-se.) Ai! que susto!

MACÁRIO — (Rindo e aproximando-se de Elvira.) Assus­tei-te, hein?

ELVIRA — Se lhe parece! Entrar assim como uma tem­pestade, sem ser esperado!... (Senta-se.)

MACÁRIO — Isso é dos nervos, pequena... é dos nervos... Por que não te casas?... Olha que o casamento...

ELVIRA — Mas...

MACÁRIO — (Sentando-se junto de Elvira.) Não te inco­modes. Eu me encarrego de arranjar-te um marido. Já o tenho mesmo de olho, posso até dizer fechado na mão!... É só abrires a boca e dizeres "O marido que saia! "

ELVIRA — E o marido sai?...

MACÁRIO — Exatamente como um boneco de borracha de dentro de uma caixinha de molas. Deixa o negócio por mi­nha conta... (Mostrando a carta.). Olha lê esta cartinha.

ELVIRA — (Estendendo a mão.) Vejamos.

MACÁRIO — (Retirando a carta...) Não! É melhor que eu mesmo a leia. Presta atenção.

ELVIRA — (Passando, amuada.) Ora! O que poderá conter essa carta...

MACÁRIO — (Junto da mesa do meio, com entusiasmo.) Esta carta contém a sorte grande! Esta carta contém um milagre! Esta carta contém um marido!

ELVIRA — (Sentando-se à direita da mesa.) Está bom! Está bom! Leia.

MACÁRIO — (Sentando-se à esquerda da mesa.) Ouve. (Lê.) "Meu prezado senhor. Fui surpreendido com um convite de V. S.a para jantar hoje em sua casa. Não tenho a honra de conhecê-lo intimamente..."

ELVIRA — Oh! papai, pois o senhor convida para jantar o homem que não conhece?...

MACÁRIO — Ouve lá, pequena, ouve lá. (Procurando na carta.) Um... um... um... Ah! cá está. (Lê.) "Não tenho a honra de conhecê-lo intimamente; mas informando-me a seu respei­to, disseram-me que V. S.a era um homem honrado e merecedor de toda a simpatia! Em vista, pois, das boas informações que obtive, sou a dizer a V. S.a que aceito o seu convite, e que estarei em sua casa à hora marcada no mesmo convite. Entre­tanto, prezado senhor, desejo que V. S.a me informe se há mu­lheres em sua casa..."

ELVIRA — Essa agora, como diz a Quitéria, parece...

MACÁRIO — Parece, mas não é. Ouve. (Procurando na carta.) Um... um... um... Ah! cá está... (Lê.)..."se há mulheres em sua casa, porque, com bastante acanhamento, o digo, sou muito tímido, e as mulheres metem-me um medo extraordi­nário..."

ELVIRA — Oh! papai, esse homem parece tolo!

MACÁRIO — Ouve ainda. (Procurando na carta.) Um... um... um... Ah! cá está. (Lê.) "Prefiro a vizinhança de uma jararaca, a estar perto de uma mulher..."

ELVIRA — (Levantando-se.) Não é somente tolo! É atrevi­do também... é... (Desce.)

MACÁRIO — O que ele é, não sei. Mas ouve o resto. (Pro­curando na carta.) Um... um... um... Ah! cá está. (Lê.) "Assim, pois, peço a V. S.a que me comunique se há ou não mulheres em sua casa — Seu atento criado — José Pato (Guardando a carta e erguendo-se.) Hein?... Que dizes?

ELVIRA — Digo... digo...

N. 1

ELVIRA

O tolo do Zé Pato,

e digo em boa fé,

será bicho do mato,

mas home' é que não é!

MACÁRIO

Mas, olha, rapariga,

e presta-me atenção,

embora seja espiga,

o Pato é um partidão!

ENSEMBLE               

MACÁRIO                 ELVIRA

S'eu fosse                Que seja

tu, que achado,        grande achado,

desejado                  desejado

a mais não ser,         a mais não ser,

o Pato                     não quero

por marido                por marido,

bem querido,            pai querido,

havia ter!                 um bicho ter!

MACÁRIO — O rapaz é bonito, delicado e tem dinheiro. Tem o sestro de fugir das mulheres, mas tu tens a faca e o queijo na mão para curá-lo em meia dúzia de lições... (Sentan­do-se à esquerda da mesa.) Vou responder...

ELVIRA — (Subindo.) O quê?

MACÁRIO — (Tomando pena e papel.) Dize lá o que hei de responder.

ELVIRA — (Colocando-se por trás da cadeira de Macário.) Responda que não há mulheres cá em casa, e que pode vir sem receio. (Outro tom.) Quero dar uma lição a esse pelintra! Ter medo das mulheres!... Um homem que tem medo das mulhe­res, não é homem!

MACÁRIO — Então o que é?...

ELVIRA — É... é... Seja o que for, mas não é homem... Va­mos, papai: responda a esse pateta.

MACÁRIO — (Escreve.) "Meu caro senhor. Pode vir sem receio. Em minha casa não há mulheres, além de minha filha Elvira. Para gozar alguns momentos da sua amável compa­nhia, mandei-a para a casa da madrinha. Espero-o às 4 horas. Seu criado, Macário de Souza". (À Elvira.) Está boa?

ELVIRA — (Descendo pela esquerda.) Perfeitamente. Mas previno-o de que não saio hoje de casa. Quero rir-me à custa desse tolo e fazê-lo andar aqui numa roda viva.

MACÁRIO — (Fechando a carta.) Vê lá... o rapaz é rico e não é para desprezar...

ELVIRA — Deixe-o por minha conta. Esperarei ocasião oportuna para aparecer-lhe. O papai não se admire do que eu fizer!

MACÁRIO — (Endereçando a carta.) Toma cuidado, meni­na... Às vezes a gente pensa uma coisa e ela é outra... Não vá o chumbo virar por cima da cortiça...

ELVIRA — Sei o que tenho de fazer. Não se assuste.

MACÁRIO — (À porta, esquerda alta.) Ambrósio! oh! Ambrósio!

AMBRÓSIO — (Dentro.) Já vou, patrão!

ELVIRA — (Sentando-se no sofá.) Ter medo de mulheres... Este homem é...

MACÁRIO — (Descendo.) É rico, menina, é rico.. Lembra-te disto.

ELVIRA — Mas é um estúpido!

MACÁRIO — Menina, quem tem dinheiro nunca é estú­pido, nem ignorante, nem feio e nem idiota. Olha o Ambrósio. Pensas tu que se o Ambrósio tivesse um par de contos de réis, haviam de chamá-lo maluco, como o chamam agora? Estás enganada. Todos o considerariam como o homem de mais juízo deste mundo e classificariam de filosofia a sua maluquice! (Indo à esquerda alta.) Ambrósio! Oh! Ambrósio!

AMBRÓSIO — (Dentro.) Já vou, patrão!

MACÁRIO — (Descendo.) Olha: conheci um barão tapa­do como uma porta. O animal, — animal é o termo, — não abria a boca que não dissesse um chorrilho de asneiras... mas era podre de rico... (Indo à esquerda alta.) Oh! Ambrósio! Ambrósio!

AMBRÓSIO — (Dentro.) Já vou, patrão!

MACÁRIO — (Descendo.) Pois os jornais, quando fala­vam do tal quadrúpede, o menos que o chamavam era de ilustrado e talentoso! (Indo à esquerda alta.) Oh! Ambrósio! Oh! diabo!

AMBRÓSIO — (Dentro.) Já vou, patrão! Oh!

ELVIRA — (Que tem estado a folhear o livro.) Então o di­nheiro é tudo?

MACÁRIO — (Descendo.) É tudo, menina, e é preciso acompanhar os costumes. No pobre, um calo arruinado é be­bedeira; no rico, uma bebedeira é calo arruinado; um pobre sujo é porco; um rico porco, é filósofo!... (Indo à esquerda alta.) Oh! Ambrósio! Oh! raio do diabo!

Cena III

OS MESMOS E AMBRÓSIO

AMBRÓSIO — (Entrando da esquerda alta, a amarrar um cordel na cintura — Tipo esquisito, arrepiado, amarelo e idiota.) Já vou, patrão!

MACÁRIO — Oh! tratante, há uma hora que deito os bofes pela boca, a gritar por ti!

AMBRÓSIO — (Rindo parvamente.) Eu não podia vir, patrão!...

MACÁRIO — Por quê?

AMBRÓSIO — (Rindo e descendo, no centro.) Porque não podia...

MACÁRIO — Desembucha, bruto!

AMBRÓSIO — (Rindo.) Porque não podia... O patrão bem viu quando eu entrei...

N. 2

Ai! que teima "arrenegada",

esta teima do patrão!

fique a coisa bem calada

e termine a amolação!

Não quero teimas agora...

se teimar mais tempo, assim,

o motivo da demora

digo — tim-tim por tim-tim!

MACÁRIO — Está bom: não é preciso pôr os pingos nos is! (Dando a carta.) Vai levar esta carta ao Sr. José Pato. Sabes quem é?

AMBRÓSIO — (Sempre rindo.) Nunca o vi mais gordo, patrão.

MACÁRIO — Nem precisas conhecê-lo. Aqui no endere­ço está a indicação. Anda, salta!

AMBRÓSIO — E se ele não estiver em casa?

MACÁRIO — Deixa a carta. Pé lá, pé cá. Anda, animal!

AMBRÓSIO— (Sempre rindo, e olhando em torno.) Animal! O patrão fala comigo?

ELVIRA — Anda, Ambrósio. Vai levar essa carta e volta já.

AMBRÓSIO — Já vou, menina, já vou. Que pressa! Arre!...

MACÁRIO — (Segurando-o por uma orelha.) Oh! patife, vais ou não vais?

AMBRÓSIO — (Saltando.) Ai! ai! Que brincadeira!... Já vou, patrão... já vou!...

MACÁRIO — (Deixando-o.) Salta!

AMBRÓSIO — (À parte, olhando para Elvira.) Ai! ai! Se ela quisesse... casar comigo...

MACÁRIO — (Dando um grito.) Ambrósio!...

AMBRÓSIO — (Coçando a cabeça.) Já vou, patrão, já vou... Que pressa!

MACÁRIO — (Empurrando-o para o fundo, direita.) Anda, bruto! anda!

AMBRÓSIO — (Saindo.) Jesus! Que maldita pressa!

Cena IV

MACÁRIO E ELVIRA

MACÁRIO — (Descendo.) Decididamente, vou pô-lo na rua... Não posso mais aturá-lo... não posso!...

ELVIRA — Não, papai. Tenha pena dele.

MACÁRIO — Um idiota!

ELVIRA — Justamente por isso. Depois, o pobre rapaz, enquanto teve juízo, serviu-nos sempre tão bem.

MACÁRIO — Ainda estou por saber como ficou assim pancada...

ELVIRA — Eu também. Um rapaz que era tão esperto...

MACÁRIO — Mas voltemos à vaca fria: ao José Pato.

ELVIRA — É verdade: explique-me a razão porque, não o conhecendo, convidou-o para jantar.

MACÁRIO — (Sentando-se na cadeira junto do sofá.) A ra­zão é simples: eu sempre pensei em casar-te com um homem rico...

ELVIRA — E tolo, não?

MACÁRIO — Não, tolo não; porque tolo não era eu em ca­sar-te com um homem tolo. Ontem, indo à casa do teu padrinho, lá encontrei o José Pato, que eu nunca tinha visto mais gordo, como diz o Ambrósio, e que momentos depois, saiu. O teu padrinho disse-me então que o rapaz era filho de um fazendeiro de São Pau­lo e que tinha alguma instrução. Ao ouvir isto, lembrei-me logo de ti; mas o compadre deitou-me água na fervura, dizendo que o José tinha mais medo de mulheres do que o diabo da cruz. Esta notícia desconcertou-me um pouco, mas arranjei logo um plano...

ELVIRA — Que plano?

MACÁRIO — Convidá-lo para jantar, dizendo-lhe que não encontraria mulheres cá em casa. O rapaz vem. Sentamo-nos à mesa, eu e ele. Faço-o beber um pouco mais. Quando estabelecer-se maior intimidade entre nós dois, tu apareces. O rapaz, que já está com "dois dedos de gramática" na cabeça, olha para ti, acha-te bonita, e nem pensa em fugir... E o casa­mento está feito!... Hein?... O que dizes... (Desce, esfregando as mãos e rindo.)

ELVIRA — E contou comigo para essa comédia?

MACÁRIO — Comédia, não, menina! O negócio é até muito sério... Um rapaz bem educado... com uma boa fortuna...

N. 3

ELVIRA

Ai! boa fortuna

não pode ele ter,

se à vista das moças

se põe a tremer!

Ai! ai!... ai! ai! ai!

Se à vista das moças

se põe a tremer!

MACÁRIO

Não digas tolices,

e agarra o rapaz,

e deixa o seu medo,

que mal não te faz.

Ai! ai! ai! ai! ai!

e deixa o seu medo,

que mal não te faz!

ELVIRA — O papai devia ver logo que não me convinha um marido que andasse a fugir de mim... E se eu já amasse outro?...

MACÁRIO — A quem?

ELVIRA — Ao primo Antonico, por exemplo... (Senta-se.)

MACÁRIO — Ora, o Antonico!... (Sentando-se.) O Antonico é um pobretão... um empregadinho de meia tigela, que mal ganha para comer... O Antonico nunca poderá dar-te o que te há de dar o José... Elvira, agarra o José, e nada te falta­rá... Terás carruagem, irás aos teatros, aos bailes, aos passeios... terás brilhantes, vestidos de seda...

ELVIRA — Casando com José Pato, terei tudo isso, como diz, mas...

MACÁRIO — Nada te faltará, fica certa...

ELVIRA — Talvez falte justamente... o José Pato!

MACÁRIO — (Admirado.) Como?

ELVIRA — Não é bom a gente fiar-se em todo mundo... As aparências enganam... Enfim, veremos...

MACÁRIO — Sim; confio no teu juízo... (Levantando-se.) Mas vai preparar-te, vai fazer-te bonita, anda... O rapaz não tarda por aí...

ELVIRA — (Saindo pela esquerda baixa e dando uma risada.) Ora, um homem que tem medo das mulheres!... Tenho muito que rir-me... (Sai.)

Cena V

MACÁRIO — Esta rapariga é uma tola!... O José Pato é rico, de boa família e bonitote, lá isso é... (Fica gesticulando à boca da cena.)

Cena VI

MACÁRIO E AMBRÓSIO

AMBRÓSIO — (Entrando sutilmente do fundo direita e gri­tando ao ouvido do Macário.) Pronto, patrão!

MACÁRIO — (Dando uma viravolta.) Oh! bruto!...

AMBRÓSIO — (Rindo.) O patrão pregou um corcovo!... O patrão é passarinheiro?

MACÁRIO — Entregaste a carta a ele mesmo?

AMBRÓSIO — A ele mesmo, não; o moço tinha saído.

MACÁRIO — E então?

AMBRÓSIO — Entreguei ao criado, um crioulo retinto como um carvão... O moço vem cá, patrão?

MACÁRIO — Vem. É o noivo da menina.

AMBRÓSIO — (Recuando.) O noivo da menina!... O que me diz, patrão? E eu então?...

MACÁRIO — Hein?... Tu o quê?

AMBRÓSIO — (Com voz de choro.) E eu que não sabia!...

MACÁRIO — Nem tinhas que saber, tratante!... Bem. Vou descansar um pouco. Quando chegar o Sr. José Pato, manda-o sentar-se e vai prevenir-me. (Sai pela direita alta.)

Cena VII

AMBRÓSIO — (Fica parado um momento, seguindo Macário com a vista; depois dá um grande suspiro.) Ai! ai!...(Pausa, limpan­do os olhos.) E eu, então?... E eu, que gosto tanto dela!... (Desa­tando num berreiro infernal.) Ai! ai! ai! Que caipora esta minha! Nunca se viu uma coisa assim!...

N. 4

Tenho a caipora

nas costas, cá,

como um ouriço...

ah! ah! ah! ah!

ah! ah! ah! ah! (Bis.)

Não posso nunca

casar-me... Olé,

morro solteiro...

eh! eh! eh! eh!

eh! eh! eh! eh! (Bis.)

As namoradas

todas perdi,

todas se foram...

ih! ih! ih! ih!

ih! ih! ih! ih! (Bis.)

Tenho a minh'alma

que mete dó,

toda em pedaços...

oh! oh! oh! oh!

oh! oh! oh! oh! (Bis.)

Todos me comem

por tolo, cru,

e fazem troça.

uh! uh! uh! uh!

uh! uh! uh! uh! (Bis.)

(Sentando-se no sofá, a rir.) Já quando eu namoriscava a Rita... aquela "danada" do Beco do Segredo... veio o diabo do Zé Grilo, passou-me a perna, e lá carregou com a Rita, deixan­do-me a ver navios... (Outro tom.) A ver navios?... Era justa­mente o que eu não via!... Chorei uma semana, e arranjei um bico d'obra com a Narcisa... a Narcisa... aquela trigueira, que morava na rua do Padre Miguelinho... Veio o Chico, e lá se me foi a Narcisa com o Chico... Chorei outra semana, e comecei a catrapiscar a Micaela... Aí veio o maldito do Pedro, e levou-me a Micaela, sem me dar tempo de apitar pela polícia... To­das as minhas namoradas têm ido assim pela água abaixo!... (Chorando.) E eu que chore e que arranque os cabelos! (Rindo.) Agora volte-me cá para a menina!... (Chorando alto.) Ai! ai! ai!... Que caipora esta minha!... E a menina vai também abalar com o Zé Pato... um pato!... Que vergonha!... (Pausa, mirando-se, a rir.) Pois eu não sou feio nem desajeitado... O Zé, o Chico, o Pedro, o Pato, e todos os outros, são mais feios do que eu!... Parece inacreditável, mas são... (Pausa.) De que me serviram os dias que perdi, metido pelos cantos, e as noites que passei sem pregar olho, pensando nela!... (Chorando alto.) Ai! ai! ai! To­das as mulheres são umas ingratas!... Estão todos os dias a casar-se com macacos, e no entretanto não querem casar comigo, que sou um rapaz bonitinho!... (Chora cada vez mais alto.)

Cena VIII

AMBRÓSIO E MACÁRIO

MACÁRIO — (Entrando da direita alta.) Que diabo de berra­ria é essa, Ambrósio?...Parece que está aqui um boi!

AMBRÓSIO — (Rindo.) Boi! Não era boi, não, patrão. Era eu.

MACÁRIO — Que eras tu, sei eu, animal! Mas por que berravas assim?

AMBRÓSIO — Eu não berrava, patrão; estava chorando...

MACÁRIO — Mas chorando por que, estafermo?

AMBRÓSIO- (Rindo.) Eu estava chorando por uma coi­sa, patrão...

MACÁRIO — Que coisa?

AMBRÓSIO — (Chorando.) O patrão não se zanga comi­go, não?

MACÁRIO — Não me zango não. Fala, estúpido!

AMBRÓSIO — (Rindo.) Estúpido!... Ai! ai! Estou apaixo­nado, patrão!

MACÁRIO — (Pasmo.) A... a... apaixonado!

AMBRÓSIO — (Imitando-o.) A...a...apaixonado!... Sim, pa­trão, eu estou doido!

MACÁRIO — (Passando.) Doido, não; idiota, pateta!

AMBRÓSIO — (Rindo.) Idiota, não; pateta, doido!

MACÁRIO — Mas apaixonado, por quem?

AMBRÓSIO — Por uma moça.. (Avançando.) Ui! quando penso nela, fico danado!

MACÁRIO — (Recuando, com medo.) Está bom... Guarda isso para depois, rapaz... guarda isso para depois...

AMBRÓSIO — O patrão teve medo?

MACÁRIO- (Arrogante.) Medo!... Pois eu lá tenho medo de coisa alguma!...

AMBRÓSIO — (Dando um grito e correndo a ele.) Vou ma­tar-te!

MACÁRIO — (Correndo para trás do sofá, com voz trêmula.) Oh! Ambrósio... oh! rapaz... toma cuidado... Se estás doido varrido, dize-o de uma vez... não me enganes...

AMBRÓSIO — (Rindo-se.) Ué!... O patrão disse que não tinha medo!...

MACÁRIO — (Ainda trêmulo.) Pois sim; mas isto não é modo de brincar... (À parte.) Puxa! Não fiz o susto com um quilo de sabão! (Alto.) Mas dize-me, rapaz, quem é a moça?

AMBRÓSIO — Não digo, não. O patrão é capaz de me vir aos queixos...

MACÁRIO — (Saindo, ainda receoso, de trás do sofá.) Des­cansa, que tenho mais que fazer.

AMBRÓSIO — O patrão não me puxa as orelhas?

MACÁRIO — (Sempre receoso.) Não! Fica tranquilo.

AMBRÓSIO — E promete guardar segredo?

MACÁRIO — Sem dúvida.

AMBRÓSIO — E jura não dizer nada a ninguém?

MACÁRIO — (Avançando.) Oh! cara de todos os bichos!... Estás caçoando comigo?

AMBRÓSIO — (Recuando.) Está bom, patrão... não vai a zangar... Eu digo... eu digo...

MACÁRIO — Pois dize de uma vez!

AMBRÓSIO — (Rindo.) A moça que me virou o miolo é...

MACÁRIO — Quem?

AMBRÓSIO — (Chorando.) Mas o patrão não me soca, não?...

MACÁRIO — (Segurando-lhe uma orelha.) Falas ou não fa­las, bruto?

AMBRÓSIO — (Esperneando.) Ai! ai! patrão da minha alma!... Ai! orelha do meu coração!

MACÁRIO — (Deixando-o.) Salta para dentro, mariola!

AMBRÓSIO — (Rindo.) Então o patrão não quer saber?

MACÁRIO — Não quero saber nada!

AMBRÓSIO — Pois agora é que eu vou dizer!

MACÁRIO — Não digas!

AMBRÓSIO — Digo, patrão, digo!

MACÁRIO — (Tapando os ouvidos.) Não digas! Não digas!

AMBRÓSIO — (Gritando.) É a menina Elvira!

MACÁRIO — (Dando um salto, fica pasmo, com as mãos nas ilhargas e as pernas abertas.) A...a...a... Elvira!

AMBRÓSIO — (Tomando a mesma posição.) A...a...a...Elvira!

MACÁRIO (Avançando, furioso.) Oh! cachorro!

AMBRÓSIO — (Fugindo.) Oh! cachorro!

MACÁRIO — (Perseguindo-o.) Bandido!

AMBRÓSIO — (Fugindo.) Bandido!

MACÁRIO — (Perseguindo-o.) Canalha!

AMBRÓSIO — (Fugindo.) Canalha!

MACÁRIO — (Perseguindo-o.) Espera, biltre!...

AMBRÓSIO — (Saindo, fundo direito.) Não vê que eu sou tolo!

Cena IX

MACÁRIO — (Descendo.) E esta!... Olhem que perigo te­nho eu metido em casa!... Este diabo é capaz de perder as estribeiras e fazer uma asneira qualquer dia! Ora; para o que lhe deu a pancada!... Nada!... Ou ponho-o no olho da rua, ou... O melhor é pô-lo na rua: é mais seguro... (Saindo, direita alta.) Que perigo! Que perigo!

Cena X

ELVIRA — (Entrando da esquerda baixa.) Já está me tardan­do a visita do tal idiota com quem o papai quer que eu me case... Deve ser uma raridade digna de ver-se... Um homem que corre das mulheres!... Desta nunca me hei de esquecer!...

N. 5.

Assim medroso, assim palerma,

assim pancada, assim corrido,

jamais acha moça ou velha

que o aceite por marido...

Andar sempre em roda viva,

sempre atrás do José Pato,

[que tem medo das mulheres]

como o cão atrás do gato...

Não, não me serve,

não aceito,

não tem jeito

um tipo assim,

que ande sempre

aforismado,

desastrado,

além de mim!

(Sentando-se no sofá.) Ora, não tinha eu mais que fazer do que andar toda a vida a correr atrás dele, e ele a correr diante de mim!... (Tomando o livro que deixara no sofá e abrindo-o.) En­fim, matemos o tempo lendo alguma coisa... (Folheia negligen­temente o livro e lê.)

"Mulatinha do caroço,

no pescoço,

eis aqui o teu cambão;

mete o ferro d'aguilhada,

minha amada,

no teu dengue cachorrão!"

Cena XI

ELVIRA E AMBRÓSIO

AMBRÓSIO — (À parte, encostando-se à porta do fundo à direita, a coçar a cabeça.) Que moçona!... Ai!.. ai!...

ELVIRA — (Sem o ver.) Esta mulatinha do caroço — é boni­ta, mas há coisas melhores... (Folheia o livro e lê.)

"Amarrotado o teu vestido branco... solto o cabelo nas espáduas nuas..."

(Suspirando.) É esta a poesia da minha paixão... Como isto é expressivo!... Ah! se Casimiro de Abreu ainda fosse vivo...

AMBRÓSIO — (Rindo.) Não tinha morrido, menina!

ELVIRA — (Fechando o livro.) Ah! o que estavas fazendo aí?

AMBRÓSIO — (Descendo pela direita.) Eu... eu estava olhando...

ELVIRA — Para quem?

AMBRÓSIO — Para a menina... A menina sabe que é muito bonita?...

ELVIRA — Achas?...

AMBRÓSIO — O quê?... Se acho?... Mas é bonita mesmo como o diabo!...

ELVIRA — A comparação não é muito lisonjeira para mim...

AMBRÓSIO — Mas é para o diabo, menina, e é a mesma coisa!...

ELVIRA — (Folheando distraidamente o livro.) Queres algu­ma coisa?...

AMBRÓSIO — (Coçando a cabeça.) Queria... mas a menina não me dá.

ELVIRA — Dinheiro?

AMBRÓSIO — Dinheiro?... Não é dinheiro, não, menina...

ELVIRA — Licença para saíres?

AMBRÓSIO — Licença?... Não é licença, não, menina...

ELVIRA — Então, o que é?

AMBRÓSIO — (Rindo.) É...é...é... uma coisa...

ELVIRA — Mas que coisa?

AMBRÓSIO — (Rindo.) É uma coisa que a menina tem, mas que não há de querer me dar...

ELVIRA — Uma coisa que eu tenho?... Não sei.. Tenho tantas...

AMBRÓSIO — Pois é uma delas... a mais gostosa de todas...

ELVIRA — Tenho sapatos... vestidos... chapéus...

AMBRÓSIO — Não é isso... É uma coisa muito gostosa...

ELVIRA — Então não sei o que é...

AMBRÓSIO — Quer que eu diga?

ELVIRA — Pois dize... Se for possível...

AMBRÓSIO — (Caindo de joelhos.) Menina do meu cora­ção, é o seu amor!

ELVIRA — (Levantando-se.) Hein?... O que é isso?...

AMBRÓSIO — É isso mesmo, menina... Eu amo a menina... estou apaixonado pela menina... quero casar com a menina!...

ELVIRA — (Passando, à parte.) Ficaria doido de uma vez?

AMBRÓSIO — (Caminhando de joelhos.) Ai! menina, tenha pena de mim!... Se não casar comigo, eu faço uma tolice!

ELVIRA — Oh! Ambrósio, não sejas idiota... Olha se o papai vem por aí...

AMBRÓSIO — (De joelhos.) O papai já sabe... Por sinal que quase me arrancou uma orelha!

ELVIRA — (Passando.) Mas eu não posso casar contigo!

AMBRÓSIO — (De joelhos.) E os dias que perdi, e as noi­tes que não preguei olho, pensando na menina!... (Chorando alto.) Ham!...Ham!...Ham!...

ELVIRA — Ambrósio, cala-te!

AMBRÓSIO — Não me calo! Não me calo! (Chorando.) Hi! hi! hi!...

ELVIRA — Ora... vá para o diabo! (Sai, esquerda baixa.)

Cena XII

AMBRÓSIO — (Chorando alto.) Ham!... ham!...ham!... (Olhando em roda depois de uma pausa.) Foi-se a ingrata!... (Er­guendo-se.) Está decidido: vou me matar... vou me matar!... (Rin­do.) Ela não quer casar comigo!... (Trágico.) Vou me matar! Vou me matar!... (Chorando alto.) Ham!... ham!... ham!...

Cena XIII

AMBRÓSIO E JOSÉ

JOSÉ — (À porta do fundo à direita. Rapaz adamado, de pince­-nez, voz aflautada, roupa justa, imberbe.) Está em casa o Sr. Macário de Souza?...

AMBRÓSIO– (Olha-o de alto abaixo e dá uma gargalhada.) Olha o boneco!...

JOSÉ — (Olhando em roda.) Boneco?... Onde está o boneco?...

AMBRÓSIO — (Acenando-lhe.) Ouve cá, rapaz. Apro­xima-te.

JOSÉ — (À parte, descendo pela direita, receoso.) Este sujeito será maluco?...

AMBRÓSIO — (Gritando.) Boneco! Boneco!... (Gargalhada.)

JOSÉ — (À parte, com medo.) Já não estou bem aqui... (Alto.) O Sr. Macário de Souza?

AMBRÓSIO — (Mirando.) Estás catita... estás... Mas espe­ra... Eu te conheço...

JOSÉ — (À parte.) Mau! mau!... (Alto.) A mim?

AMBRÓSIO — (Rindo e aproximando-se de José.) Não; a mim.

JOSÉ — (À parte, desviando-se.) Este sujeito é idiota por força... Oh! senhores, eu, de repente, disparo pela porta fora!. (Alto.) O Sr. Macário de Souza?

AMBRÓSIO — Eu te conheço, eu te conheço!

JOSÉ — (Trêmulo.) O sr. parece que está enganado...

AMBRÓSIO — Nada... Eu te conheço!

JOSÉ — (À parte, a tremer.) Oh! meu Deus!... que aper­tos!... Estou sem pinga de sangue!

AMBRÓSIO — Tu nasceste por engano, e eu vou já te pro­var... Espera aí... (Corre a ele.)

JOSÉ — (Correndo e gritando, perseguido por Ambrósio.) Quem me acode! Socorro! Quem me acode!...

Cena XIV

OS MESMOS E MACÁRIO

MACÁRIO — (Da direita.) O que é isto, oh! Ambrósio?...

AMBRÓSIO — (Rindo.) Não é nada, patrão. (Gritando a José.) Boneco! Boneco!

MACÁRIO — Desculpe-o, senhor. Este rapaz é um pouco idiota.

JOSÉ — Idiota! (À parte.) Olhem em que assados estava eu metido!

MACÁRIO — (Aproximando-se de Ambrósio, que está fazen­do caretas a José.) Vai-te embora, Ambrósio, e dize à Quitéria que sirva o jantar.

JOSÉ — (À parte, desconfiado.) Quitéria!

AMBRÓSIO — (Desatando a chorar.) Ham!.. ham!... ham!... Ela não quer casar comigo!... (Dá uma risada e grita a José.) Bone­co! Boneco! (Cerra os punhos e corre a José.) Lá vai soco!...

JOSÉ — (Abraçando-se com Macário.) Misericórdia! Miseri­córdia!

MACÁRIO — (Dá um boléu em José, segura Ambrósio pelo cachaço e leva-o à porta direita alta.) Salta, patife!

JOSÉ — Boneco! Boneco!... (Sai, chorando em altos gritos.)

Cena XV

MACÁRIO E JOSÉ

MACÁRIO — (Indicando o sofá.) Queira sentar-se, meu amigo, queira sentar-se...

JOSÉ — (Sentando-se.) Pois, Sr. Souza...

MACÁRIO — (Sentando-se na cadeira, junto do sofá.) Sem cerimônia... sem cerimônia... Agradeço-lhe do fundo do cora­ção o ter aceitado o meu convite...

JOSÉ — (Desconfiado.) Mas o senhor falou em Quitéria...

MACÁRIO — É a minha cozinheira.

JOSÉ — (Erguendo-se, zangado.) Mas Quitéria é uma mu­lher, senhor!

MACÁRIO — (À parte.) E eu que já me tinha esquecido!

JOSÉ — (Passando.) O senhor, enganou-me!

N. 6.

Que desgraça cai-me em cima!...

sinto o peito numa brasa!

— dizer que estava sozinho,

tendo mulheres em casa!

MACÁRIO

Mas, meu caro, não se zangue,

nem lhe cause a coisa abalo;

a Quitéria, da cozinha,

nem sequer pode enxergá-lo!

ENSEMBLE (JUNTOS)

JOSÉ                                                 MACÁRIO

Que desgraça cai-me em ­cima!               Mas, meu caro, não se zangue,

sinto o peito numa brasa!                      nem lhe cause a coisa abalo;

— dizer que estava sozinho,                  a Quitéria , da cozinha,

tendo mulheres em casa!                       nem sequer pode enxergá-lo!

MACÁRIO — Mas, Sr. Pato...

JOSÉ — (Zangado.) Mando perguntar-lhe se tem mulheres em casa; responde que não, isto é, que tem uma filha, mas que essa vai passar o dia fora, com a madrinha... E no entretanto, deixa ficar em casa uma Quitéria! Uma Quitéria, senhor!... uma...

MACÁRIO — Mas é uma velha, meu amigo!

JOSÉ — As velhas também são mulheres, senhor! O se­nhor não me aponta uma mulher que depois de velha mudas­se de sexo!

MACÁRIO — Mas, meu amigo...

JOSÉ — Além disso, eu não tenho medo somente das mu­lheres moças! As velhas ainda me metem mais medo! (Passeando, sempre zangado.) Tem em casa uma Quitéria, e não me preveniu!

MACÁRIO — Mas, meu amigo, acalme-se...

JOSÉ — (Subindo.) Com licença... Vou-me embora... Uma Quitéria!...

MACÁRIO — (À parte.) Ora, que diabo de homem!... (Se­gurando-o.) Oh, meu amigo, fique. Eu vou mandar também a Quitéria a passeio.

JOSÉ — Pois mande-a já, senhor! Mande-a já! (Descendo.) Uma Quitéria!

MACÁRIO — (À porta, esquerda alta.) Quitéria! Oh! Quitéria!

VOZ — (Grossa, dentro.) Que é lá, patrão!

MACÁRIO — Serve o jantar e vai dar um passeio. Não me apareças em casa antes da noite.

VOZ — Que diabo de mania é essa, oh! patrão?

MACÁRIO — Estás ouvindo?

VOZ — Estou, estou, porque não sou surda!

MACÁRIO — (Descendo.) Pode ficar descansado agora, meu amigo!

JOSÉ — (Consigo, sentando-se no sofá.) Uma mulher! Uma Quitéria!...

MACÁRIO — (Sentando-se à esquerda da mesa do meio.) Mas o meu amigo não me explicará o motivo dessa sua aversão às mulheres?

JOSÉ — Eu lhe explico. A mamãe era uma mulher... (Elvira aparece à esquerda baixa, onde fica.)

MACÁRIO — E o papai era um homem. Eu já sabia.

JOSÉ — Pois a mamãe era uma mulher de cabelinho na venta. Todos os dias, por qualquer coisa, dava-me sovas de chinelo, de me pôr a tinir. Em casa havia duas primas, que não me davam pancadas, mas que queriam por força dar-me abraços... E uma vizinha passava os dias a convidar-me para irmos brincar o "tempo será de esconder" e a "Maria macunguê..."

MACÁRIO — E você o que fazia?

JOSÉ — Eu?... Fugia da mamãe, fugia das primas e fugia da vizinha... O papai...

MACÁRIO — Que era um homem, já sei também...

JOSÉ — Sim. O papai queria que eu me deixasse abraçar pelas primas e mandava-me brincar o "tempo será" com a vi­zinha. (Depois de uma pausa, baixando os olhos, como que envergo­nhado.) O papai era um bilontra!...

MACÁRIO — (Rindo.) Era um bilontra o papai, hein?

JOSÉ — Mas eu disparava pela rua fora, e não voltava para casa senão à noite...

MACÁRIO — E que idade tinha o meu amigo?

JOSÉ — Eu tinha dezesseis anos...

MACÁRIO — Tinha dezesseis anos e... (Dando um murro na mesa.) Ah! eu!

JOSÉ — O que é que o senhor fazia?

MACÁRIO — O que é que eu fazia?... Deixava-me abra­çar pelas primas e brincava o "tempo será" com a vizinha. Ora, aí está o que eu fazia!

JOSÉ — (Admirado.) O senhor é muito valente!

MACÁRIO — (À parte.) É um completo maricas este tramanzola!

JOSÉ — Uma noite, eu ia entrando em casa, de volta de uma das minhas fugidas por causa das primas e da vizinha. O corredor estava escuro. De repente, sinto-me agarrado por três pessoas e sou arrastado por ali fora. Começo a berrar como um animal; esperneio, atiro com os braços, sacudo-me todo... mas qual! Estava bem seguro. Metem-me num quarto, fecham a porta e acendem uma vela... (Estremecendo.) Ai! Ainda quan­do me lembro disto, fico sem pinga de sangue!...

MACÁRIO — (Sorrindo.) E então?

JOSÉ — Eu tinha sido agarrado pelas primas e pela vizi­nha... Quando as reconheci, dei um grito e... desmaiei!

MACÁRIO — Desmaiou?

JOSÉ — Se lhe parece! O caso não era para menos... Soube depois que foi o papai que preparou aquilo tudo para eu per­der o medo às mulheres... mas enganou-se, porque ainda fi­quei com mais medo!... (Baixando os olhos, envergonhado.) O papai era um grande bilontra!...

MACÁRIO — É verdade, é. Mas o filho não saiu ao pai; pode ser que saísse à...

JOSÉ — O senhor desculpe...

MACÁRIO — Oh! meu amigo, é uma fraqueza como outra qualquer... Mas o senhor precisa mudar de sistema. Que idade tem?

JOSÉ — Vou fazer vinte e dois anos.

MACÁRIO — Ora, aí está. Um homem de vinte de dois anos não deve ter medo das mulheres; deve, pelo contrário, rodeá-las, conversar com elas, fazer-se amável, namorá-las.

JOSÉ — Mas não está em mim...

MACÁRIO — Está; faça um esforço, que está. Não caia na asneira de dizer a todo mundo que tem medo das mulhe­res. São capazes de dar-lhe uma vaia de escrachar... Ora, diga-me cá: não gosta de ver uma moça bonita?

JOSÉ — De longe...

MACÁRIO — E de perto?

JOSÉ — De perto, não! Deus me livre!

MACÁRIO — (À parte.) É uma mulher de calças!

Cena XVI

OS MESMOS E ELVIRA

ELVIRA — (Avançando sutilmente, toma entre as mãos a ca­beça de José e dá-lhe um beijo na testa.) Meu querido Zezinho!

JOSÉ — (Levantando-se e dando um grito.) Ai!... (Voltando-se e vendo-a.) Uma mulher!... (Correndo para o outro lado.) Socor­ro!... Socorro!...

MACÁRIO — (Erguendo-se, a rir.) Oh! seu Zé, o que é isso?

ELVIRA — (Indo a ele.) Meu Zezinho!

JOSÉ — (Fugindo.) Não se chegue, senhora!... Não se che­gue!...

MACÁRIO — (Que se tem debruçado nas costas da cadeira.) Oh! moço, sossegue!... (Dá uma risada, e, sem mudar de posição, assiste, rindo, a toda a cena.)

ELVIRA — (Perseguindo-o.) Vem cá, meu bobo!

JOSÉ — (Fugindo.) Senhora... pelo amor de Deus... arrede-se... não me toque!...

ELVIRA — (Perseguindo-o.) Zezinho da minh'alma!...

JOSÉ — (Fugindo.) Quem acode! Quem acode!...

ELVIRA — (Perseguindo-o.) Hás de dar-me um abraço, quer queiras, quer não, meu idiota de uma figa!... Hei de fa­zer-te perder o medo às mulheres!

JOSÉ — Pelo amor de Deus, senhora! Deixe-me... deixe-me!...

ELVIRA — (Agarrando-o.) Dá-me um abraço! Anda, ba­nana! Pateta das luminárias!

JOSÉ — (Trêmulo e tapando o rosto com as mãos.) Estou per­dido! Estou perdido!...

ELVIRA — Vamos, abraça-me!

JOSÉ — (Tremendo, e sempre com as mãos no rosto.) Ai! Eu tenho um ataque!... Eu morro... Jesus!...

ELVIRA — Anda, simplório... Olha para a minha cara... Sou bonitinha, não sou?

JOSÉ — (Espiando por entre os dedos.) É bonitinha, é...

ELVIRA — Se sou bonita, por que é que foges de mim?...

JOSÉ — (Forcejando para safar-se.) Largue-me, senhora.... largue-me... Deixe-me ir embora... Eu tenho medo...

ELVIRA — Dá-me primeiro um abraço.

JOSÉ — (Tremendo.) Pelas suas alminhas!

ELVIRA — Dá-me um abraço, já te disse!... Não te faças de tolo!

JOSÉ — (Sempre com o rosto tapado, desatando a chorar.) Ham!... ham!... ham!...

ELVIRA — (Pondo-lhe as mãos nos ombros e como quem aca­ricia uma criança que chora.) Não chores, meu nenê... coitadinho do meu Pipi!... Não chores assim, que ficas com a cara feia, meu Dudu!.. Olha como está fazendo o beicinho comprido... Queres uma chupinha, meu bobo?...

MACÁRIO — (Rindo.) Oh! "seu" Zé, olha bem para a pe­quena. Ela não é nenhuma asneira, e não tem espinhos.

JOSÉ — (Tremendo e espiando por entre os dedos.) É boniti­nha, é... Mas eu tenho medo... (Chora.)

MACÁRIO — (À parte.) Ora, o diabo do maricas!

ELVIRA — Hás de casar comigo, ouviste?

JOSÉ — Casar!... (Fugindo-lhe.) Socorro! Socorro!... Que­rem me casar! Querem me casar!...

MACÁRIO — (Rindo.) Oh! menino, não grite assim!

ELVIRA — (Obrigando-o a sentar-se no sofá.) Sente-se aí, seu pancada, vamos! (Senta-se junto dele.)

JOSÉ — (Tapando o rosto e chorando.) Que desgraça esta minha!... Moça, eu quero ir-me embora.

ELVIRA — Nada; hás de ficar aqui, perto de mim.

JOSÉ — (À parte, absorvendo o ar.) Ai! que bom cheirinho que ela tem!

ELVIRA — Já não tens tanto medo de mim?

JOSÉ — (Absorvendo o ar.) Mas que bom cheirinho!... (Olhando-a, com receio.) E como ela é bonita!

ELVIRA — Sim, sou bonitinha, sou. Tu é que és um tolo!

JOSÉ — Tolo eu!

ELVIRA — Tolo sim. Por que é que fugias de mim?

JOSÉ — Eu tenho medo das mulheres...

ELVIRA — Das mulheres feias e velhas, vá lá; mas de uma moça como eu, é imperdoável.

JOSÉ — (À parte, absorvendo o ar.) Mas que cheirinho!...

ELVIRA — Olha para mim, anda.

JOSÉ– (Olhando-a e baixando logo os olhos, à parte.) Ai! que olhos tem ela!... São dois vaga-lumes!...

ELVIRA — E então?

JOSÉ — Então, o quê?

ELVIRA — O que dizes?

JOSÉ — Eu... eu não digo nada... (Olhando-a e baixando logo os olhos, à parte.) Mas que olhos!... São duas lanternas!...

ELVIRA — Dize-me uma coisa: por que é que não casas comigo?

JOSÉ — (Tapando o rosto com as mãos.) Casar com uma mu­lher!... Eu!...

MACÁRIO — (Dando uma risada.) Sim, com uma mulher. Pois então! Oh! Cazuza, você é tolo!

JOSÉ — (À parte.) Que cheirinho!... (Envergonhado.) E a me­nina queria?

ELVIRA — Queria; mas tu não havias de fugir de mim.

JOSÉ — (À parte.) Esta moça está me fazendo sentir umas coisas!... (Alto.) Queria, sério...

ELVIRA — Queres?...

JOSÉ — (Tapando o rosto.) Eu... eu também quero...

MACÁRIO — Bravo! Viva o Juquinha!

ELVIRA — Ora, graças a Deus!... (Levantando-se e esten­dendo a mão.) Dê-me a sua mão, meu noivo!

JOSÉ — (Levantando-se e dando a mão.) Aqui está.

MACÁRIO — Sim, senhor: já vai criando juízo... (Dando-lhe com as costas da mão na barriga.) Ah! maganão!

JOSÉ — (Encolhendo-se.) Ai!

ELVIRA — Não tem raiva de mim, não?

JOSÉ — Raiva! Agora sou eu que tenho gana de abraçá-la!

MACÁRIO — Pois abracem-se. Sem cerimônia. Daqui a quinze dias, caso-os.

JOSÉ — A menina me dá um abraço, para eu ver se é bom?

ELVIRA — Nada, não, senhor. Guarde isso para mais tarde...

JOSÉ — É só para experimentar se é bom, menina!

ELVIRA — É bom, é. Mas como já está atrevido!

JOSÉ — Atrevido!... A culpa é sua. Eu não sabia que era tão bom estar pertinho das moças!...

N. 7.

Ai! bela Elvira,

que amor me inspira,

como suspira

meu coração...

como palpito...

como me agito...

já não hesito...

— peço-te a mão!

ELVIRA

Num desconsolo

de pobre tolo,

num desconsolo

ias viver,

se assim vivace

não te ensinasse,

num passe-passe,

amor a ter!.

MACÁRIO

Que mais tu queres?...

que mais prazeres?...

Medo às mulheres!...

que toleirão!

Eis-te curado

desse pecado

tão desgraçado,

meu paspalhão!

TODOS

Amor dá gozos,

divinos cantos,

doces encantos

cheios de ardor,

põe-nos em chamas,

mexe co'a gente,

febril, ardente,

amor! amor!

Cena XVII

OS MESMOS E AMBRÓSIO

AMBRÓSIO — (Entrando da esquerda alta.) Patrão, o jantar está na mesa. (Fazendo uma careta a José.) Boneco!

MACÁRIO — (A Elvira.) Eu não te disse que o marido havia de saltar como um boneco de borracha de dentro de uma caixa de molas?...

ELVIRA — E saltou!

MACÁRIO — Agora vamos jantar, e viva a alegria!AMBRÓSIO — (Rindo.) A alegria?

MACÁRIO — A alegria, sim. Daqui a quinze dias, caso a menina.

AMBRÓSIO — (Rindo.) Comigo, patrão?...

MACÁRIO — Contigo, animal?... Aqui com o meu ami­go José Pato.

AMBRÓSIO — (Desatando a chorar.) Ham!... ham!... ham!... A menina vai casar com o boneco!... (Rindo e fazendo caretas a José.) Boneco! Boneco! Boneco! (Chora alto.)

MACÁRIO — Cala a boca, Ambrósio. Fica descansado, que eu te arranjo uma noiva.

AMBRÓSIO — (Chorando sempre.) Quem é, patrãozinho, quem é?

MACÁRIO — Caso-te com a Quitéria. É uma bruxa; mas para ti é o que serve.

AMBRÓSIO — Pois sim, patrão, pois sim... A Quitéria me serve... (Rindo.) O que eu não quero é morrer solteiro!

MACÁRIO — Mas com uma condição: hás de fazer es­quecer o teu berreiro distraindo aqueles senhores com um pou­co de música.

AMBRÓSIO — Oh! patrão, eu conheço aqueles sujeitos...

MACÁRIO — Sim?

AMBRÓSIO — Quando o patrão me puxou as orelhas e a menina disse que não queria casar comigo, já todos eles esta­vam ali espiando cá para dentro, e por sinal que fizeram risota de mim... Mas não lhes quero mal por isso, não. Estive pelas duas, pelas três, chamando-os também bonecos e fazendo-lhes uma careta... sobretudo quando vi muito bem repimpados, como se fossem gente, o Zé, o Chico e o Pedro, aqueles que me carregaram a Rita, a Narcisa e a Micaela... O patrão conheceu-as... sobretudo a Narcisa. Lembre-se bem... aquela que mora­va na rua do Padre Miguelinho... aquela morena...

MACÁRIO — (Encalistrado, coçando o nariz.) Está bom... está bom... Canta alguma coisa, anda.

AMBRÓSIO — Então lá vai. (Vai à boca da cena e volta.) Nada, patrão. Estou muito envergonhado com aqueles senho­res, que viram o patrão puxar-me as orelhas... (Sobe e volta.) Ora, bolas!... Quem tem vergonha, morre de fome! (Faz uma careta ao público.)

N. 8

Se a dita nós tivemos

de o riso provocar,

se, rindo, vos fizemos

do sério despertar,

palminhas,

batidinhas,

cantadinhas

de estalar,

pedimos,

suplicamos,

impetramos,

ao findar!

(Todos repetem o canto. — Cai o pano.)

FIM