Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico

Lourenço de Mendonça, de Moreira de Azevedo


Edição de referência:

Lourenço de Mendonça, de Moreira de Azevedo.

Rio de Janeiro: Tip. Indústria Nacional de J. J. C. Cotrim, editor, 1868.

Nossos agradecimentos à Biblioteca do IEB,

 que gentil e prontamente nos forneceu a digitalização desse romance.

ÍNDICE

A ERMIDA

A MÃE BRÍGIDA

O PAI E O FILHO

A CIDADE DO RIO DE JANEIRO EM 1635

AMOR E VINGANÇA

A CASA MISTERIOSA

O TERÇO

O MAMELUCO

O GOVERNADOR

JOÃO DE ALMEIDA

O OUVIDOR

O JURAMENTO

IDÍLIO DE AMOR

A CRUZ

O CONCILIÁBULO

A VELHA ESCOLÁSTICA

DIGRESSÃO

SUPLÍCIO

O SACRISTÃO

A PROVIDÊNCIA

A EXCOMUNHÃO

OS ANJOS DA GUARDA

CONCLUSÃO

 

A ERMIDA

O morro de Santo Antônio que se ergue no centro da cidade do Rio de Janeiro, te­ve primitivamente o nome de outeiro do Car­mo por haver sido doado por um ermitão aos religiosos carmelitas.

Chegando a esta cidade, em 20 de fevereiro de 1607, cinco religiosos de S. Francisco, hospedaram-se em casa de Pedro Afonso, junto a igreja da Misericórdia, onde encontra­ram dois companheiros, frei Antonio das Cha­gas e frei Antonio dos Mártires. Reunindo-se foram esses capuchinhos pedir ao governador Salvador Corrêa de Sá um asilo conveniente e digno, e interessando-se por eles conse­guiu o governador doar-lhes a ermida de Santa Luzia, com terreno necessário para a fun­dação de um convento. Foram os franciscanos para a ermida, mas assustando-os a vizinhança dos jesuítas, cujo colégio dominava o morro de S. Sebastião, hoje do Castelo, ou julgan­do pouco aprazível a habitação concedida por Salvador Corrêa de Sá, mudaram de residência e foram asilar-se na ermida da Ajuda. Mas ainda não satisfeitos pediram, rogaram, como frades que eram, e do governador Martim de Sá alcançaram, em 9 de abril de 1607, a doação do outeiro do Carmo que desde então recebeu a denominação de morro de Santo Antônio. Na parte mais elevada desse monte lançaram, em 4 de junho de 1608, a pedra fundamental do seu convento, cuja construção teve o auxílio constante do governador, o valioso apoio da câmara a dedicada proteção do povo. Um frade leigo preparou a cantaria do claustro

Esse monte onde ia erguer-se o convento dos franciscanos, já era abençoado por uma ermida consagrada à Santa Bárbara, então mui venerada pelo povo que, receando se das  contínuas e violentas trovoadas, tinha fervo­rosa devoção pela santa advogada contra trovões, coriscos, relâmpagos e raios.

E tão freqüentes eram os trovões e relâmpagos em tardes de dias calmosos que, contando com essa mudança quotidiana do tem­po, se não despediam dois amigos pela manhã sem repetirem:

— Deus Nosso Senhor o acompanhe; até depois da trovoada.

E logo que ouvia o som longínquo dos trovões, e o fuzilar de relâmpagos ajoelhava-se o povo, e dirigia suas fervorosíssimas orações à Santa Bárbara; corriam os devotos com acelerados passos à ermida desta Santa, onde, em domingo tanta gente ia ouvir missa que a capelinha cogulava sem poder conter metade dos devotos.

Erguera esse santuário o beato José da Cruz que residia com sua mulher, Bárbara da Silveira na várgea junto da lagoa de Santo Antônio, próxima do morro do mesmo nome.

Em uma tarde de estio estando esse bom cristão com seus escravos ocupado em plantações no morro repentinamente escureceram o céu nuvens caliginosas, troaram trovões, e relumbraram relâmpagos; começaram a cair grossos chuveiros, e para abrigar-se ocultou-se José da Cruz debaixo de uma árvore. Mas a escuridade tornou-e maior, e quando o devoto aterrado ajoelhou-se pedindo misericórdia rompeu as nuvens um corisco e o raio veio cair na árvore, em que se ocultara o lavrador; desgalhando-a partindo-a, José caiu desfalecido. Sobressaltados vieram os escravos socorrê-lo; levaram-no para a casa, onde o infeliz permaneceu em êxtase alguns instantes, mas desaparecendo pouco e pouco a ação da eletricidade recuperou o cristão o movimento e a voz, tornou em si e ajoelhado, tendo entre mãos um rosário que trazia preso de um cinto, começou a orar.

Naqueles tempos de fervor religioso, de crença pura e santa atribuía-se tudo à religião, via-se em cada fato um milagre, o que ocorria de mau era julgado castigo do céu, o benefício uma  recompensa de Deus. Dominava a religião; não havia casa sem oratório, cruzes ou imagens, nem esquina de rua sem nicho; era o terço a oração de todas as noites; traziam todos um rosário à cintura, e muitos além do rosário, um regis­to cosido no peito da véstia e verônicas, relicários, breves e figas ao pescoço. Eram comuns as promessas, as penitências, os cilícios, os jejuns, as disciplinas, as correntes de ferro e outros objetos para flagelar e molestar o corpo; e não havia devoto  que não rezasse diariamente uma coroa à  Nossa. Senhora ou uma estação ao Santíssimo Sacramento. Mas nem sempre era puro esse senti­mento religioso que dominava a sociedade; havia já. muita hipocrisia e maldade, e sob a religião ocultavam-se idéias nocivas: ser­via-se o mau sacerdote do prestígio que lhe dava a batina ou o chapéu tricórneo para cometer arbitrariedades e desacatos, ou especular com a credulidade pública; e até os namorados envolviam em sentimentos religiosos galanteios e intrigas de amor.

Salvo da ação do raio resolveu José da Cruz erguer no lugar em que se dera o acontecimento uma ermida à Santa Barbara, e em pouco tempo cumpriu seu voto.

Era fácil naquelas eras preparar um ni­cho, levantar um altar, construir uma ermida, edificar uma igreja, porque a religião e a fé faziam de cada devoto um operário, ou um benfeitor; o que não podia abrir a bolsa oferecia-se para carregar um tijolo, lavrar a madeira, entalhar a pedra, ou gessar as pare­des, e desse modo concorriam todos para a edificação das igrejas erguidas desde os alicerces por esmolas e esforços dos fiéis.

Em quatro meses levantou José da Cruz a sua ermida com uma única porta, um só altar e uma só tribuna fechada com grades de madeira, onde a família do devoto ouvia missa e rezava o terço.

Voltada para o Convento de Santo Antônio ficava a ermida junto a uma mangueira secular, frondosa, cujas raízes se enleavam no chão e os ramos se enlaçavam no ar, pen­dendo de um deles um pequeno sino. Abria-se em frente da capela um caminho estreito, tortuoso, cercado de árvores, que ia findar junto à casa do devoto, aos pés do monte. Em dias santificados celebrava-se missa na ermida de José da Cruz; todas as noites entoava-se o terço, e anualmente havia a festa do orago com missa cantada, ladainha, danças, fogueiras e fogos de artifício ostentando a imagem da Santa relicários, cordões de ouro, brincos de crisólitas, anéis em todas os dedos e coroa cravejada de pedras.

Recebeu esta ermida em 1685 a visita de um bispo, o primeiro da diocese fluminense, D. José de Barros de Alarcão, que depois de sagrar, em 20 de.maio desse ano, o sino grande do convento de Santo Antônio, terminada a solenidade retirou-se para a capela de Santa Bárbara, já pertencente ao conven­to, e ali recreou-se com a música e merenda que lhe ofereceram os frades; e convidado nessa ocasião a assistir ao trezenário, e à festa do padre Santo Antônio e a jantar no claustro, aconteceu dar-se no dia da festividade um fato que o povo atribuiu a milagre do Santo dos franciscanos.

Partira o governador Duarte Teixeira Cha­ves para a colônia do Sacramento, e regres­sando os navios que acompanharam-no não houve notícia da embarcação em que voltara o governador. Inquieto ficou o povo, e como era costume, celebrou preces em diversas igrejas implorando a proteção divina, mas dois meses correram sem haver notícia de Teixeira Chaves. Continuaram as preces durante o trezenário do glorioso padre Santo Antônio, e terminada a festividade de tão milagroso Santo retirara-se o bispo acompanhado da comunidade ao refeitório quando a fortaleza deu sinal do navio à barra. Era a embarcação que conduzia Duarte Teixeira Chaves a quem o diocesano e os religiosos foram a bordo cumprimentar, recebendo o governador em seu desembarque vivas saudações do povo, que acompanhou-o à igreja dos franciscanos onde orou Teixeira Chaves agradecendo a proteção milagrosa do padre Santo Antônio.

Faleceu José da Cruz em idade avançada e em testamento pediu que, depois da morte de sua mulher, passasse a ermida aos frades de S. Francisco; instituiu um legado para anualmente festejar-se o orago da capela, onde, depois de amortalhado em hábito de Santo Antônio, como era uso, rogou o sepultassem.     

Continuou Bárbara da Silveira a venerar a Santa que salvara seu marido; e ela e sua filha iam diariamente à ermida rezar o terço e rezar uma pelo esposo, a outra pelo pai.

Era Helena uma moça de dezoito anos, mimosa e simples; sabia fazer primorosamente uma renda e abrir com delicadeza um crivo.

Davam-lhe singular atrativo a vivacidade do olhar, a cor morena das faces, o carmim dos lábios e os cabelos negros e lustrosos. O justilho apertado sobre a cintura modelava o seu seio de virgem, e os sapatos com tacões de madeira forrados de cetim deixavam ver a forma de seu pé pequenino como de uma menina.

Naqueles tempos de temor e recato as moças não apareciam, chegavam à janela por detrás das rótulas, e não saíam à rua senão andas o liteiras; somente as mulheres velhas e pobres andavam a pé trazendo o rosto oculto sob as dobras da mantilha que só deixava visível a ponta do nariz. Os casamentos eram feitos pela vontade só dos pais, e quase sempre era diante do altar que o noivo vinha a conhecer a noiva, por que cada um ia à igreja em sua liteira, e se não aproximavam antes de serem chamados pelo sacerdote.

Mas havia um lugar onde os namorados costumavam encontrar-se, era no átrio das igrejas antes de começar a primeira missa do dia; ali reuniam-se moças e moços, conver­savam, juravam amores, ajustavam entrevistas, balbuciavam promessas, faziam juramentos que se desvaneciam com o tempo, ou mais tarde eram santificados pelo padre; ali come­çavam as relações, amizades e amores, nasciam paixões, arrebentavam ódios, conversava-se, mentia-se, intrigava-se e lançava-se a conso­lação ou o desespero no coração das moças que ao voltarem para casa se não lembravam das palavras do sacerdote, mas não esqueciam as expressões, as súplicas, as promessas e ju­ramentos que tinham ouvido ao entrarem na igreja.

Tornou-se tão escandaloso e imoral o costume de reuniões e conversas às portas das igrejas ao amanhecer que o bispo D. frei Antônio do Desterro proibiu, pela pastoral  de 14 de março de 1767, as conversas e ajuntamentos nos átrios dos templos, principalmente em dias festivos e de concurso, e ordenou que desde a Ave Maria até ao amanhecer não fossem as mulheres à igreja, exceto as pobres que quisessem confessar-se ou ouvir missa.

 

A MÃE BRÍGIDA

Naqueles tempos de fé, de crença e devo­ção, era o padre o primeiro homem da socie­dade, o mais respeitado, que merecia mais afeição e estima do povo; era para as famílias o primeiro amigo e o melhor protetor; uma palavra sua era um conselho, sua benção uma graça, e sua estima uma necessidade para a felicidade neste mundo e a salvação no outro; por isso desejava cada família ter entre os seus um padre que nobilitasse a casa, e logo que o filho primogênito, o mais querido, concluía os estudos, abraçava a vida da igreja para ser de seus parentes o amigo predileto, o protetor, o guia e o anjo de salvação.

Entre as pessoas que freqüentavam a casa de Bárbara da Silveira notava-se o Dr. Lourenço de Mendonça, prelado do Rio de Janei­ro, de cujo cargo tomara posse em 9 de setembro de 1632.

Era Lourenço de gênio violento, e de pouca pureza nos costumes, mas manifestava no exterior, nas palavras tanta santidade que iludia a todos; ao aparecer na rua aben­çoava o povo, e não penetrava em casa alguma sem repetir a saudação usada pelos jesuítas:

Pax Christi.

Em casa de Bárbara tributava-se ao prelado muita estima e respeito; todos beijavam-lhe a mão, ouviam suas palavras como se fossem conselhos, e se não sentavam sem per­missão sua.

Era a casa de Bárbara junto ao morro de Santo Antônio, e próxima à rua que mais tarde recebeu o nome de Bobadela e depois o de Guarda-Velha; era isolada, tendo do lado esquerdo a lagoa de Santo Antônio. De aspecto mesquinho e acanhada como eram as construções daquela época apresentava na frente três janelas e uma porta guarne­cidas de rótulas de madeira e lateralmente quatro janelas com balaustres de pau, abrin­do-se as do lado esquerdo para a lagoa. Mo­biliava o interior mesas de pau santo com pés grossos torneados, cadeiras com assento de couro lavrado, catres de jacarandá com lindos relevos na cabeceira, escabelos, um oratório ornado de boa obra de talha e cruzes guarnecidas de prata pendentes das paredes.

Tinha Bárbara da Silveira cinqüenta anos, porém mostrava ter pouco mais trinta, apresentando o rosto liso e corado e os cabelos sem um fio branco. Era de baixa estatura e corpulenta. Amiudadas vezes vinha Lourenço visitá-la, e o povo, sempre dispos­to a murmurar de tudo, explicava a freqüência do prelado de um modo pouco lisonjeiro à honra da viúva de José da Cruz.

Marcando a hora em que costumava o prelado chagar à casa da viúva ia uma ve­lha, moradora na vizinhança, esperá-lo por entre as rótulas de taquara que tapavam-lhe a janela, e logo que via-o dizia, torcendo entre os dedos as contas do rosário.

— Há muita devoção com Santa Bárbara.

Mas era tudo calúnia: se havia malícia nas visitas de Lourenço o não sabia Bárbara que, honesta e religiosa, dedicava ao prelado afeição sincera e pura veneração.

Tributava Helena muito respeito ao prela­do; quando via-o mostrava-se receosa, trê­mula e não ousava dirigir-lhe uma palavra, vinha saudá-lo por ordem de sua mãe e, bei­jando-lhe a mão, retirava-se logo.

Vivendo as moças naquele tempo no isolamento e retiro não era-lhes lícito apare­cer ou saudar a alguém sem permissão de seus pais. Mas logo que Lourenço chega­va parecia Helena desejar que a não chamas­sem. E porque seria; haveria motivo para ela recear-se do prelado, teria-lhe ódio ou consagrando amor a alguém preferia às conversas e visitas o ficar só e isolada! De feito parece que Helena amava; mas não diremos ainda aos leitores como era este amor, nem revelaremos os sentimentos, os ardores dessa paixão nascida em um coração de vinte anos.

Palpitava de amor o coração, mas era esse amor um segredo entre ela e sua alma, entre sua alma e Deus; nem Bárbara, nem Lourenço que, malicioso e hipócrita procurava ter nos olhos dessa moça os segre­dos e mistérios de sua alma, haviam podido levantar o véu que envolvia esse coração onde existia um idílio de amor.

Mas talvez alguém já soubesse alguma coisa da história do coração de Helena.

Há indivíduos que conseguem estudar a vida dos vizinhos e repeti-la com pontos e virgulas tão sabiamente como se a lessem em folhinha de cada ano. E custa pouco. Um vidro embaciado, uma rótula empoeirada, uma cortina de cor fusca são espelhos através dos quais adivinha o espectador cu­rioso e atento o que ocorre nas casas da vizinhança.

Ora, defronte da casa de Bárbara havia um desses espelhos, e tão perfeito, que devassa a historia dos corações.

Ainda se não conhecia o sonambulismo, mas já havia quem lesse através das costelas, através das carnes, como fazem as sonâmbulas de hoje excedendo aos míopes anatômicos.

Era a mãe Brígida uma sonâmbula, ou como se dizia naquele tempo, uma feiticeira, rezava de quebranto, tirava o mau olhado, exorcizava e sabia orações para erisipelas, inchações e maleitas. Chamava-se Brígida da Nóbrega ou a Nobrinha, e era irmã do padre Manoel da Nóbrega que se empossara na vigararia colada da freguesia de S. Sebastião em dezembro de 1629.

Ordenara-se Manoel da Nóbrega com dis­pensa de cristão novo, e fora apresentado na freguesia por carta régia lavrada em Lisboa em 1625; mas havendo Felipe IV de Castela e III de Portugal permitido ao pre­lado administrador da jurisdição eclesiástica, Matheus da Costa Aborim, que com o seu parecer somente e informação, sem outro exame nem diligência, os sujeitos por ele nomeados para os cargos eclesiásticos fossem apresentados em seu real nome, pelo governador geral do Brasil, usando dessa graça apresentou o governador, Diogo Luiz de Oliveira, a vigararia de S. Sebastião no padre João. Pimentel que foi confirmado pelo prelado em 3 de novembro de 1628. Requerendo o padre Nóbrega a posse do benefício, depois de empossado o padre Pimentel, ficou sem efeito a graça concedida pelo soberano. Resultou daí uma luta contínua e renhida entre Nóbrega e o prelado produzindo funestos efeitos para o clero e para o povo. Morreu o prelado Aborim em 8 de fevereiro de 1629 havendo indícios de haver sido envenenado, e a voz  pública não poupou o padre Nóbrega ao referir esse acontecimento. (1)

Vaga a prelazia passou o governo ecle­siástico ao vigário geral Francisco da Sil­veira Villa-Lobos que, inclinado ao clero, abraçou sua causa contra os prelados, e amigo de Nóbrega entregou-lhe a paróquia em 29 de dezembro daquele ano.

Guardou esse vigário no peito ódio pro­fundo aos prelados; os sucessores de Aborim, frei Maximo Pereira, Pedro Homem Albernaz e Lourenço de Mendonça encontra­ram nele um inimigo; principalmente Lou­renço que dando-lhe a alcunha de Arrevessa Toucinho começou a propalar que, ordenara-se o cura das almas com dispensa de cris­tão novo.

Fugia-se naqueles tempos de um cristão novo como do homem que sobre si trazia o raio da excomunhão; era desprezado, perse­guido e julgava-se bom serviço para a salva­ção das almas do purgatório o matar-se a um desses endemoninhados.

Sabendo que Nóbrega tinha sangue de cristão novo não quiseram seus paroquianos que lhes batizasse os filhos, esqueceram outras obrigações, e mostraram-se como ove­lhas rebeldes do aprisco.

Doloroso devia ser o sentimento do vigário por esse menoscabo público que cerceou-lhe o redito da paróquia, e acerba sua ira contra o autor desse mal.

Mas se Nóbrega odiava a Lourenço Brígi­da, sua irmã, execrava-o; vendo-o enrai­vecia-se, benzia-se três e quatro vezes, encomendava-se a Nossa Senhora, e ocultando completamente o rosto na mantilha balbuciava.

— Santo Nome de Jesus, abrenúncio, os infernos o confundam.

Apesar dessas pragas e execrações não deixava a mãe Brígida de observar os passos de Lourenço não só por seu irmão ordenar-lhe como por ser a curiosidade o seu maior pecado. Não entrava Lourenço uma só vez em casa de Bárbara que a mãe Brígida o não visse. Oculta por trás da rótula, com o ro­sário entre os dedos, e o ouvido atilado marcava a velha a hora em que o prelado chegava e em que se retirava, e talvez por sua perspicácia já tivesse atinado o motivo dessas repetidas visitas.

Além do prelado outro indivíduo visita­va freqüentemente a rua onde residia a viúva de José da Cruz.

Quem era, como se chamava, porque procurava esse caminho! Ninguém o sabia; exceto talvez a irmã do cura das almas.

 

O PAI E O FILHO

Erguia-se na rua da Quitanda do Marisco, próximo à dos Pescadores, um sobrado com três portas no primeiro pavimento e no segundo três janelas guarnecidas de rótu­las de madeira; no pavimento térreo re­sidia um mercador de fazendas e no superior um velho e um moço.

Chamava-se o velho Crispim da Cunha Tenreiro, era natural de Évora, onde nas­cera, em 1547, e viera para esta cidade com os soldados de Estácio de Sá; colhera triunfos combatendo contra os Franceses e indígenas, e havendo prestado valiosos serviços à pátria, reformara-se no posto de ca­pitão. Casara e tivera.numerosa. descendência, indo alguns de seus para Portugal e outros para Índia, e nesses países honraram o nome de seu pai e o brasão  de suas armas. Quando enviuvou tinha Crispim da Cunha em sua companhia um único filho, que teve o prazer de acompanhar seu pai até ao extremo da vida e a dor de fe­char-lhe os olhos; dever pungente e sa­grado do bom filho. (2)

Henrique da Cunha assentou praça no terço velho, e pelos brios próprios e serviços do seu pai alcançou as divisas de oficial.

Tinha 22 anos, semblante expressivo e belo, olhos pretos, bigode pouco espesso, lábios finos, dentes alvos, cabelos ane­lados, como era o uso do tempo, e corpo esbelto e esguio. Quando apresentava-se com a sua farda comprida, guarnecida de ambos os lados de passamanes de retrós  e botões prateados, com os calções justos e presos com fivelas no joelho, com a espada que descia quase ao chão, e o chapéu agaloado admiravam todos o seu garbo militar, e cobiçavam-lhe as moças um olhar e um sorriso.

Ao sair do serviço da guarnição da praça retirava-se para casa, e raras vezes viam-no em passeio; mas todos os dias acompanha­va seu pai à igreja onde ambos assistiam à primeira missa da matriz.

A maledicência, que é tão antiga como a sociedade, censurava a união do pai com o filho.

—Por S. Sebastião, dizia um, aquele ve­lho vigia o filho como se fora criança de cinto e cueiros.

—Nossa Senhora do Ó nos valha, ainda não vi cão, clamava outro, que farejasse tan­to a ovelha do redil.

Mas houve tempo em que Henrique teve de ir só à igreja por seu pai estar doente, e logo que terminava o ato religioso dirigia-se para o adro encarando a todos tris­temente por não ver ali seu pai. Aconteceu ver um dia entre as moças, que deixavam a igreja, uma cujo olhar fascinou-o. O semblante dessa moça visto através do véu, o brilho de seus olhos, a beleza de seu rosto, o arfar do seio comprimido pelo justilho e a graça de seu corpo impressionaram-lhe a alma e o coração, e arrastado por um sentimento íntimo, profundo e veemente acompanhou ou. antes seguiu automaticamente essa moça até a casa em que ela entrou.

Ao chegar Henrique em sua residência Crispim,  pela experiência e penetração adquiridas com a idade, notou-lhe alteração no semblante. .

— O que tens, perguntou-lhe o velho com interesse.

— Nada meu pai.

Henrique mentia ou em verdade não sabia o que ia-lhe na alma!

Nasce o amor sem compreendermos; é fogo que se ateia por si, faúlha.que vem do céu,  seta atirada. por mão desconhecida, veneno que os anjos preparam para enlouquecer o coração dos homens.     

Crispim entristeceu-se vendo a perturbação produzida por sua pergunta no semblante de Henrique; e devia entristecer-se, pois acabava de sofrer uma perda. Haviam-­lhe roubado o coração do filho.

Outrora as missas começavam cedo; ao cantar do galo, ao aparecimento do primeiro clarão do dia ouvia-se o sino chamar os cristãos à oração; tocava à missa, e então os homens envolviam-se em seus capotes, as mulheres em suas mantilhas ou capotes adornados de alamares e dirigiam-se à igreja que cogulava porque ninguém deixava de ir à missa ao amanhecer. Era um costume, um dever de todos, e quem o não cumpria era considerado pedreiro livre, judeu, ou cristão novo. Logo que o sino anunciava a hora saiam os moradores de suas casas. Ia adiante um escravo com um archote aceso para alumiar o caminho, de­pois o chefe da família, a mulher, os filhos uns após outros segundo a idade, e por fim os escravos em fileira uns atrás dos outros.

Ficava deserta a casa. Reunia-se o povo na igreja, e fora dali não havia viva al­ma, senão a de algum perro judeu ou endemoninhado. Mas aproveitavam-se os garotos da pouca claridade da hora, em que celebrava-se a missa, para chacotear dos bons devotos; ora.entornavam tinta de escrever na pia da água benta, ora untavam com sabão o soalho da igreja, ou pregavam nas pilastras as mantilhas das beatas, e lembraram-se um dia de uma brincadeira que assustou a muita gente.

Residia na rua de Mathias de Freitas, chamada mais tarde do Rosário, um indivíduo de nome Antônio Barbosa que era salteiro; isto é fazia os saltos de pau pintados de encarnado ou cobertos de cetim que as mulheres traziam nos sapatos, e quanto mais altos mais na moda.

Era Antônio Barbosa rigoroso para os escravos, e um deles, tendo-lhes desobedecido, castigou-o atrozmente atando-lhe ao pé um grilhão com um enorme cepo que o infeliz arrastava consigo. Não perdoou-lhe mais a menor falta, e um dia infligiu-lhe tão bárbaro castigo que jurou a vítima vin­gar-se de seu algoz. Conseguindo limar a corrente e separá-la do cepo, armou-se de uma faca e penetrando no quarto do senhor que dormia, assassinou-o e fugiu. Divulgado o crime no dia seguinte horrorizou-se a cida­de; deram o governador e ouvidor terminantes ordens para a prisão do culpado que, sendo encontrado oculto no mato junto à lagoa da Sentinela, foi preso e condenado à morte. Levantou-se o patíbulo em frente à casa em que se dera o delito; e enforcado o escravo deceparam-lhe a cabeça que, pregada em um poste, ficou exposta no mesmo lugar. Dirigindo-se de noite alguns garotos ao poste arrancaram a cabeça do enforcado, levaram-na à igreja, e mergulharam-na na pia.. da água benta, de sorte que, os que na manhã do dia seguinte espargiam sobre si a água da pia, borrifavam-se com sangue.

Encontrada na pia a cabeça do sentenciado assustaram-se todos, e, considerado milagroso o fato, mais de um devoto mandou celebrar missas por alma do infeliz escravo. (3)

Continuou Crispim a ouvir a primeira missa do dia com seu filho, que procurava qualquer pretexto para não acompanhá-lo, permanecendo na igreja até ver sair a moça cujos encantos vivamente o impressionaram; e impelido por um sentimento íntimo e veemente do seu coração seguia a essa moça até vê-la desaparecer na casa em que entrava. Começou o velho a observar os passos do filho, e não tardou em reconhecer que Hen­rique amava. Mas se não irritou; quando moço Também ele amara, experimentara essa sensação e vivera nesse enlevo da alma, nesse sonho do coração que o amor dá à mo­cidade; porém uma coisa preocupava-o profundamente; quem seria o objeto do amor de seu filho, que mulher teria conquistado seu coração; e seria esse amor, despertado em sua alma, um sentimento digno ou uma má inclinação que teria de manchar a honra de uma família!

O velho cismava e sofria.

 

A CIDADE DO RIO DE JANEIRO EM 1635

Pouco extensa era a área da cidade nessa época; estendia-se na vargem limitada ao norte pelos morros de S. Bento e da Con­ceição, ao sul pelo de S. Sebastião, hoje do Castelo, e o de Santo Antônio, e a este pelo mar, e ao oeste por um fosso sinuo­so que recebia as águas pluviais da planície chamada campo da cidade para despeja-­las no mar. Prolongava-se esse campo desde o fosso até aos mangues de S. Diogo.

Erguia-se no morro de S. Bento o mos­teiro dos beneditinos edificado em 1589; no da Conceição a ermida consagrada à Santíssima Virgem por Maria Dantas, mu­lher de Miguel Carvalho de Souza; no de Santo Antônio o convento dos francis­canos construído em 4 de Junho de 1608, e a ermida de Santa Bárbara entre espes­so arvoredo; no de S. Sebastião levantavam-se três edifícios importantes, o colégio dos jesuítas fundado em 1560, a igreja de S. Sebastião erigida pelo governador Salvador Corrêa de Sá e a fortaleza abençoada com o nome daquele santo, ha­vendo sido seu fundador o ilustre Mar­tim de Sá.

Permitindo-se aos habitantes da nova cidade a faculdade de edificarem onde bem lhes parecesse, sem o menor ônus e conforme arbítrio de cada um, foram-se espalhando na planície aberta entre aquel­es montes, cortando-a ruas estreitas e tor­tuosas, vielas pouco extensas e escuras.

Não havia ordem nem alinhamento nas edificações; cada um abria onde lhe pa­recia mais cômodo os alicerces de sua habitação, de sorte que não parecia uma cidade que se fundava, senão pequena povoação ou aldeia de gentios.

As ruas principais eram a rua Direita do Carmo, da Misericórdia, do Porto dos Padres da Companhia hoje de D. Manuel, de S. José, do Cotovelo, a de S. Francisco, hoje da Assembléia, a de Aleixo Manuel, hoje do Ouvidor, a de Matias de Freitas, hoje do Rosário, a do Padre.Manuel Ri­beiro, hoje do Hospício, a de Diogo de Brito, depois da Alfândega, a do Sabão, a de Antônio Vaz Viçoso, conhecida depois, com a denominação de S. Pedro, e a dos Pescadores.

Cruzavam-nas as ruas Detrás do Carmo, de Mateus de Freitas também chamada da Quitanda do Marisco, a dos Ourives, e mais uma ou duas vielas, e depois o fosso que corria na direção da atual rua da Uruguaiana.            

Santificavam a nova cidade a igreja da Misericórdia cuja irmandade já existia em 1591, e tinha um hospital aberto para os doentes pobres; a ermida de S. José erguida tão próximo à praia que as ondas batiam nas paredes da capela-mor; o con­vento do Carmo na praça do Carmo próxi­mo à praia de Nossa Senhora do Ó; a igreja da Cruz levantada no lugar em que existira o forte desse nome; a igreja da Candelária cujos fundadores foram An­tônio Martins da Palma, e sua mulher Leonor Gonçalves em cumprimento do vo­to feito à Virgem Nossa Senhora, em alto mar, em noite de tempestade; a er­mida da Ajuda construída na esquina da rua denominada mais tarde dos Barbonos, ignorando-se o ano da fundação e o no­me de quem a erigiu, e a de Santa Luzia, na praia do mesmo nome, a qual já exis­tia em 1592, sendo um dos primeiros santuários que abençoaram a nascente cidade de S. Sebastião.

Abriam-se na rua da Misericórdia para o mar diversos becos, dos quais o mais extenso era o do Guindaste, assim de­nominado por estar assentado em frente dele o guindaste que alçava as mer­cadorias dos jesuítas para o seu colégio, no morro de S. Sebastião.

Não tinha a cidade calçamento nem iluminação; de noite guiavam aos viandantes as luzes colocadas pelos fiéis defronte dos nichos erguidos nas esquinas das ruas, mas, nas vielas em que a fé não erigira oratórios, era completa a escuridade e dif­ícil o caminhar logo que desaparecia a luz coada pelas fasquias das rótulas das portas e janelas.

Quase todas as casas eram térreas e ti­nham as janelas e portas guarnecidas de rótulas de madeira ou tecidos de palha cha­mados peneiras ou grupemas, que eram de­pendurados ao amanhecer e recolhidos à noite.

Dividia-se a cidade em duas freguesias, a de S. Sebastião criada em 1569, tendo por primeiro pároco o padre Mateus Nu­nes que recebera autorização para repre­ender e castigar os que vivessem mal, sentenciando-os até dez cruzados sem apelação nem agravo, para conhecer dos casos da santa inquisição, sentenciando se­gundo Deus o iluminasse, e para conde­nar a trinta cruzados e com a pena de ex­comunhão a quem o desobedecesse!

A segunda paróquia era a da Candelária instituída em 1634, constando ter sido seu primeiro pastor o padre espanhol Pablo Santi.

Era diminuta a população que, já dissemos, reunia-se, quase toda, quotidianamente na hora da primeira missa, o que tornava fáceis e freqüentes as relações conhecendo-se todos e sabendo pronta e estendidamente o que acontecia a cada um.

Agora que o leitor tem conhecimento do teatro em que vão representar-se os acon­tecimentos seguintes poderá melhor compre­endê-los e acompanhar as personagens desta verídica história.

 

AMOR E VINGANÇA

Henrique tinha verdadeiros sentimentos religiosos, educara-o seu pai nos princípios austeros, na doutrina sã daqueles tempos, repetia-lhe em casa as orações que ensinava a todos os seus filhos e escravos, levava-o diariamente à igreja para ouvir a missa matutina, e não havia festividade religiosa a que não assistissem Crispim e seu filho.

Além dessa educação domestica bebera Henrique instrução pura e religiosa nas escolas, onde não havia dia em que deixassem os meninos de entoar em voz alta quase todas as orações da cartilha.

Criado nestes princípios se não afastara deles; quando menino ia à igreja guiado pela mão de seu pai,  quando moço levavam-n­o à casa de Deus a religião e a fé ; mas, desde  dia em que viu, ao sair da missa, a mulher que fascinou-o, outro sentimento arrastou-o à igreja. Já não era a fé só que guiava-o até ali, porém também o desejo de ver e admirar a beleza dessa mulher, a quem chamara anjo por encontrá-la na igreja, ou julgara santa por haver-lhe en­sinado um culto ignorado do seu coração. Se a razão lembrava-lhe o sentimento reli­gioso aproximando-o da casa de Deus, inflamava-lhe o amor o coração e levava-o para ali, obedecendo a alma à fé, o coração à outro culto, ao amor.

E quantos não procuram a casa de Deus por sentimentos profanos, quantos não mis­turam as idéias do mundo com as orações di­rigidas ao céu, quantos não tem na igreja uns lábios que rezam e um coração que men­te! Chega até aí o pecado.

Dificilmente satisfaz-se o coração que ama, vai de sensação em sensação, de desejo cm desejo, e jamais se sacia.

Via Henrique todos os dias, ao sair da igreja, a mulher a quem amava, e acompa­nhava-a até à casa ; mas, não satisfeito, para vê-la mais unia vez em cada dia, percorria todas as tardes a rua em que ela habitava.

Desejando descobrir o amor de seu filho, conhecer a mulher amada por ele começou Crispim a espreitar os passos de Henrique: porém outra pessoa, mais perspicaz que o velho militar, já adivinhara quem era a donzela amada pelo filho de Crispim.

Via tudo a mãe Brígida.

Em pé, por detrás da rótula, como sentinela constante da rua em que residia, não passava por ali alma viva, nem ocorria fato algum que lhe ficasse desconhecido; tudo via e ouvia, não dando descanso aos olhos nem aos ouvidos; e não havia olhos mais cintilantes nem ouvidos mais agudos.

Os passeios continuados de Henrique pela rua em que habitava a viúva de José da Cruz impressionaram a velha, que começou a ver, a observar os passos, os movimentos do

moço, e no fim de alguns dias descobriu a historia do seu amor.

Quando o moço passava repetia a mãe Brígida, em seu posto constante, por detrás da rótula, estas palavras:

— Bendito e louvado seja o santíssimo nome de Jesus, santa Helena me valha e aquele seu mais fervoroso devoto!

Assim como espalha a flor o seu perfume e a estrela a sua luz transmite-se o amor de um coração em outro: é espírito que anima duas almas, sentimento que identi­fica dois corações, idéia que liga dois entes. Helena leu no coração de Henrique, adivinhou o sentimento que agitava-lhe as fibras e sentimento igual, sensação semelhante desper­tou-se-lhe na alma; e ambos, antes de terem trocado uma palavra, revelado uma sensa­ção, soltado um ai ou abafado um gemido, palpitaram pela mesma idéia, e sentiram a­cender-se-lhes na alma o mesmo fogo; ama­ram-se sem haverem dito um ao outro: Eu vos amo!

Fogo sem luz, suspiro dos anjos, espírito celeste expande-se o amor, cresce e não fica no estreito recinto de um coração; absorve uma existência.

Henrique só pensava na mulher que amava, ia à igreja para vê-la, seguia-a até à casa, e repetidas vezes percorria a rua, em que ela residia, para lobrigar-lhe a sombra por entre as fasquias da rótula.

Os pensamentos, os sonhos, as orações de Helena eram consagrados a seu amante; vi­via pensando nele; era a imagem constante de seus olhos, a sua idéia fixa e o sentimento do seu coração. Quando via-o passar arfa­va-lhe o seio, palpitava-lhe o coração, e bal­buciavam seus lábios uma prece, uma súp­lica, um hino de amor em que pedia ao céu proteção, vida e felicidade para aquele a quem amava ardentemente.

Sabendo qual a mulher que atraíra o coração de seu filho, e merecera seu amor ficou Crispim satisfeito. Era Helena filha de uma viúva rica e virtuosa, gozara seu pai de reputação honrada e influência legítima e fora cavaleiro professo da ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Continuara Lourenço a freqüentar a casa de Bárbara da Silveira, mostrando-se cada dia mais afável e merecendo muita estima e confiança da viúva de José da Cruz que lisonjeava-se se com essas relações e esforçava-se por torná-las mais íntimas. Mas proce­dia Helena de outro modo; a presença do prelado incomodava-a; mostrava-se tímida e constrangida quando via-o ou aparecia na sala para saudá-lo, receosa dirigia-lhe a palavra, trêmula beijava-lhe o anel  retira­va-se logo.

Não passara desapercebido a Lourenço o acanhamento da filha de Bárbara, a timidez que experimentava ao vê-lo, mas julgava esse constrangimento nascido da educação recolhida que tivera. Não tinha-lhe anti­patia porém temor, pensava o prelado, e por tranqüilizá-la mostrava-se de dia para dia mais afetuoso, risonho e lhano; trazia-lhe mimos, flores e retendo-a junto a si se não esquecia de prodigalizar-lhe afagos e lisonjear-lhe os encantos; mas era inútil; aumentavam o temor, o receio da filha de José da Cruz os carinhos, os presentes e elogios de Lourenço de Mendonça.

Pretextando quase sempre um incômodo ao anunciar-se a visita de Lourenço come­çou Helena a esquivar-se, e, só depois de amiudadas admoestações ou ordem positiva de sua mãe, vinha saudá-lo, respondia às suas perguntas, e aproveitando o primeiro ensejo, disfarçava e ausentava-se da sala para não voltar mais.

Multiplicava Lourenço os seus agrados, repetia gracejos e momices, ria, folgava, trazia-lhe dádivas mais lindas e mimosas, porém encontrava na filha de Bárbara a mesma frieza, a mesma seriedade, o mesmo tédio.

Começou Lourenço a cismar e compre­endeu que não era temor porém aversão que Helena consagrava-lhe, e logo tratou de descobrir o motivo desse sentimento.

Atinara a mãe Brígida com o amor de Hen­rique, e bastou, isso para algum tempo depois, no átrio da igreja, saberem todos ao sair da missa, as relações amorosas entretidas pelo filho de Crispim e a filha de Bárbara.

Quem conta um conto acrescenta um ponto, mas, relatando qualquer notícia, acrescentava a mãe Brígida três ou quatro, isto é, aumen­tava e alterava os acontecimentos segundo a sua fantasia e comprimento de língua.

Propalou que Henrique amava a Melena e era correspondido, que ia quotidianamente à casa de Bárbara, e pedira a filha desta em casamento, que breve era o dia das bodas, e outras cousas e cousinhas mais inventadas por sua imaginação ou bisbilhotice.

Espalhou-se a notícia da noveleira, e chegando aos ouvidos de Lourenço percebeu este o motivo da aversão que lhe votava a filha de Bárbara.   

Era Lourenço inimigo de Crispim da Cunha que, quando vereador, acusara-o em câmara, de intervir em negócios estranhos à jurisdição da prelazia. Irritado por isso per­seguira-o o prelado, e contribuíra para ser desterrado para os presídios da África um dos filhos do velho servidor do estado. Des­de então mais vivo tornou-se o ódio entre ambos.

Ora Helena não ignorava o sentimento que separava o prelado da família de seu noivo; e arrastada pelo seu amor, começou a consagrar ódio a Lourenço.

Ao princípio era o temor, o acanhamento nascido da sua educação que tornava re­ceosa e trêmula na presença de Lourenço, mas, desde que começou a amar o filho de Crispim, transformou-se o temor em anti­patia ou antes em ódio.

Quando revelaram-lhe o nome do homem preferido pelo coração de Helena, Lourenço de Mendonça empalideceu, chamejaram-­lhe os olhos áscuas vivas de ira, e um tre­mor convulsivo contraiu-lhe todos os músculos da face. Desde então pensou em embaraçar o casamento da filha de Bárbara, e lembrou-se do ouvidor Paulo Pereira, homem de cinqüenta anos, grelado, seco de carnes, a quem se oferecesse a mão de Helena, herdeira rica, não recusaria ainda que para obter esse dote lhe fosse preciso cometer baixezas e até crimes.

Conhecia Lourenço o caráter venal e servil de Paulo Pereira, a sede de ouro que esmorecia-lhe a alma, e por isso, contando com ele para executar o seu plano, disse ou antes rosnou o prelado, depois de haver es­tado algum tempo pensativo.

— O filho de Crispim não ha de casar-se com a filha de José da Cruz.

Ao sair da casa de Bárbara em uma tarde em que Helena lhe não aparecera, dirigiu-­se Lourenço à casa do ouvidor, e sem cir­cunlocação propôs-lhe o casamento com essa rica herdeira.

Poucas vezes vira Paulo Pereira a moça que lhe ofereciam em casamento, não podia asseverar se era bonita ou feia, mas decla­rara Lourenço que se a esposasse ficaria senhor de grosso cabedal, e bastou isso para excitar-lhe a cobiça.

De feito, trajando casaca de seda, calções de chamalote largos e franzidos no cós e nos joelhos, espadim de copos e cadeias de aço e enorme .cabeleira de cachos apolvilhados apresentou-se Paulo Pereira no dia seguinte em casa de Bárbara e pediu-lhe a filha em casamento.

Surpreenderam-se mãe e filha de tão rá­pida e súbita paixão; Bárbara ficou mui lisonjeada, e deu o seu assentimento, mas Helena chorosa e aflita respondeu franca e decididamente –não.

Cego de furor, pletórico de cólera retirou-se o ouvidor, e foi referira Lourenço o mau êxito da sua missão.

Contara Lourenço que Bárbara, seduzida pela posição e cargo elevado de Paulo Pereira, cedesse-lhe a filha sacrificando-a à sua vai­dade, mas o não fizera Bárbara; sentira-se contrariada por haver Helena recusado uma aliança que julgava mui vantajosa, mas respeitara o seu sentimento e despedira o ouvidor.

Resoluto, enérgico e vingativo não re­cuava Lourenço diante do primeiro obstá­culo; e excitando-o à vingança, e tendo para prosseguir um seu plano um homem cujo caráter flexível e ambicioso arrastava-o a baixezas e a crimes, reconheceu que devia lutar e, cravando seus olhos penetrantes no semblante do ouvidor, bradou o prelado .

— Havemos do realizar esse casamento; se executardes o que vos ordenar sereis feliz sereis rico.

— Rico... exclamou Paulo Pereira; e agi­tou-lhe o rosto e todo o corpo um movimento convulsivo.

Poucos momentos depois ambos sentados em frente um ao outro, calmos e obstina­dos, planejaram os acontecimentos que se vão seguir.

 

A CASA MISTERIOSA

Havia na ladeira do Poço do Porteiro, hoje chamada do Seminário, uma casa de triste aparência construída de adobe com uma porta o uma só janela cuja rótula nunca se abria. O povo suspeitava dessa habitação, e dizia que apareciam ali vultos sinistros, almas do outro mundo, e havia quem asse­verasse ter visto sair dali, alta noite, animais medonhos, alguns sem cabeça, outros com quatro pernas e duas cabeças, e outros deitando fogo e exalando cheiro de enxo­fre.

Quase todos ao passarem por essa casa, quando iam ouvir missa na igreja do Colégio, ou na Sé, faziam duas e três vezes o sinal da cruz, pediam a proteção deste ou daquele santo ou santa, e de noite depois das oito horas, era raro ver alma viva subir ou descer a ladeira com receio da casa mal assombrada. Mas deixemos os espíritos, os doentes, e digamos o que ao certo sabemos dessa triste morada.

Residiam ali dois homens Lucas e Jerô­nimo que não eram vistos de dia nas ruas da cidade, nem sabia-se donde vieram, nem em que se ocupavam; mas toda a população temia-os, e, quando dava-se um roubo ou acontecia algum assassinato, dizia-se que o ladrão ou o assassino ocultara-se na casa da ladeira do Poço do Porteiro.

Eram dois vultos, dois fantasmas que amedrontavam ao povo, e traziam-no em contínuo sobressalto. As velhas beatas consideravam-nos como entes endemoninhados, ou almas de perros judeus que andavam penando, e não havia dia em que não rezassem rosários e coroas a Nossa Senha para livrá-las dessas almas impenitentes.

Mostravam Lucas e Jerônimo a mesma idade; trinta a quarenta anos.

Lucas era alto, magro e dotado de força prodigiosa, o que reconhecia-se pela disten­são e saliência da rede muscular; tinha o rosto vermelho, cabelos compridos e barba que, cobrindo-lhe o queixo, caía sobre as clavículas.

Trajava constantemente calções de estame­nha, pelote de pano com vivos e guarni­ções, carapuça e capote cor de vinho.

Baixo, reforçado e mociço tinha Jerônimo o cabelo preto e caído pela testa, o nariz chato e cor acobreada no rosto, o que denunciava o sangue índio que circulava-lhe nas veias.

Nessa época recolhiam-se cedo os habitan­tes da cidade; às oito horas ficavam desertas as ruas, e apenas viam-se algumas andas ou liteiras de pessoas principais, precedidas de um escravo com um archote para alumiar o caminho, ou vultos embuçados caminhando rapidamente e procurando ocultar-­se nas trevas.

Em uma noite escura, depois de haver soado na igreja do Colégio a última bada­lada das oito horas, aproximou-se à casa sinistra da ladeira um vulto e bateu à porta.

— Quem bate, gritou de dentro uma voz forte e medonha.

— O vosso servo, Paulo Pereira ; abri.

Levantaram a aldrava da porta e abriram-na_

— Deus Nosso Senhor seja nesta casa, repetiu o ouvidor ao entrar na sala alumiada

por um candeeiro de azeite.

Estava Paulo Pereira embuçado em um amplo capote de gola alta, cor de azeitona, e trazia carregado até aos olhos um chapéu de abas largas.

— Jesus Cristo Nosso Senhor seja com vmc. redargüiu o homem que abrira a porta, o qual trajava gibão redondo, calções de­ pano baixo, capote e carapuça.

— Amém, pronunciou outro indivíduo levantando-se da esteira em que estava dei­tado.

— Meus filhos deixai-me assentar; a ladeira é cumprida e as minhas pernas são de velho.

— Tem razão, vmc. aqui está este escabelo, disse Lucas ao ouvidor.

— Sentai-vos também, temos que conversar.

— Obedecemos sempre ao senhor ouvi­dor, disseram ao mesmo tempo Jerônimo e sentaram-se logo.

— Necessito do vosso préstimo, redargüiu o ouvidor.

— S. Sebastião nos valha! Não sabe vossa mercê que somos seus servos...

— Servos de Deus Nosso Senhor que nos acompanhe e ilumine a todos.

— Amém.

— Mas dizei-me sabeis onde reside a viúva de José da Cruz?

— Eh lá que sim; conhecemos a todos os habitantes, onde moram, como vivem,

o que.possuem e entras cousinhas mais...

— A nós é que ninguém conhece, rosnou Lucas.

— É assim, murmurou Jerônimo; tam­bém só a noite saímos de casa...

— O sol constipa-nos, acrescentou Lucas sorrindo.

— Tendes razão; mas, redargüiu Paulo Pereira, Bárbara vai todas as noites rezar o terço na sua ermida...

— É certo, rosnou Jerônimo, e por sinal.

— O quê?

— Temos desejado aproveitar-nos da sua ausência, mas os vilões deixam tudo guardado.

— É tal qual, disse Lucas soltando um largo suspiro.

— Ora a filha de Bárbara acompanha-a sempre, e...

— Então...

— É estreito e sombrio o caminho que vai ter à ermida, e o lugar ermo...

— É assim, acrescentou Jerônimo.

— Pois desejo que amanhã quando Bár­bara for ao terço não volte para casa com sua filha; raptando-a conduzam-na para a nossa habitação junto à ermida da Ajuda.

— Ah temos um rapto, exclamou Lucas.

— É uma expedição amorosa, acrescentou Jerônimo sorrindo.

— Que render-vos-á alguns mil cruzados, acrescentou o ouvidor interrompendo-os. E breve encarregar-vos-ei de outra missão um pouco mais seria...

— Nossa Senhora seja conosco e nos ampare sempre; basta o senhor ouvidor para dar-nos trabalho.

— Conheço o vosso préstimo, meus filhos; o pão pode chegar a todos.

— É certo, porém não pensam assim os vilões desbragados, os perros judeus.

— Mas não devem boquejar no caso a ninguém.

— A nossa língua é endurecida, rosnou Lucas.

— O dia marcado é amanhã.

— Ficai descansado, amanhã estará o pás­saro na gaiola.

— Confio em vós, disse Paulo Pereira, levantando-se e envolvendo-se no capote. Deixou cair sobre o escabelo algumas moedas de ouro, e aproximando-se da porta acrescentou:

— Ficai na paz de Deus Nosso Senhor.

— Amém, e a Virgem Santíssima vos acompanhe retorquiram Lucas e Jerônimo junto à porta.

Desceu Paulo Pereira a ladeira apressada­mente, e em breve desapareceu na escuri­dade da noite.

Logo que retirou-se o ouvidor, fechou-se a porta da casa misteriosa, mas, algumas horas depois, tornou-se a abrir para dar passagem a dois vultos que desceram rapi­damente a ladeira embuçados em capotes.

Soou na torre do Colégio a primeira ba­dalada da meia noite.

 

O TERÇO

Mostrava-se coberto de espesso arvoredo o morro de Santo Antônio aparecendo entre as árvores as paredes esbranquiçadas do convento ainda não concluído. Não era calçada a ladeira que ia ter essa habitação de frades, e só apresentava de notável um alto cruzeiro de pedra junto do qual ajoelhava-se o povo, orava, arrastava-se em penitência e ali deixava oblações em cumprimento de promessas feitas ao milagroso padre Santo Antônio.

Havia próximo ao convento uma cisterna, que ainda existe, mas se não projetara ainda essa obra monumental, o aqueduto da Ca­rioca, cuja majestosa arcaria, unindo os dois morros de Santa Teresa e Santo Antônio devia entornar no centro da cidade abundante água fresca e cristalina.

Havia, no lado ocidental, no meio do bosque que vestia o morro, uma nascente d'água conhecida vulgarmente pelo nome de Pro­vidência, que proveio-lhe do seguinte fato.

Estava o sol a terminar o seu giro sobre o horizonte quando um religioso de avan­çada idade saiu do claustro e embrenhou-se no bosque; depois de algumas horas de passeio quis regressar à cela, mas viu-se perdido por entre o arvoredo.

Sumira-se o último reflexo dos raios do sol e as sombras da noite escureciam a terra. O religioso começou a procurar o caminho; dava alguns passo em uma direção, mas logo após abandonava-a para tomar outra vereda, e com essas investigações, com esse caminhar estonteado e incerto fatigou-se, ficou exausto de forças, sequioso de sede, inun­dou-lhe o corpo um suor frio; aterrou-o o ter de passar a noite fora do convento e em lugar ermo, e quase desfalecido, sentindo tremerem-lhe as pernas, ajoelhou-se e começou orar. O sono fechou-lhe as pálpebras.

Ao primeiro clarão do dia despertou ardendo em sede; levantou-se, deu dificilmen­te alguns passos, e estendendo a vista por entre os ramos e folhas das árvores; lobrigou um golpe d'água rebentava do chão. Reanimando-se dirigiu-se pressuroso ao lu­gar, e bebendo copiosamente restaurou as forças perdidas. Pôde então caminhar, e chamando por seus companheiros encontrou-os antes de chegar ao convento, do qual haviam, saído diversos religiosos em busca do frade velho, que, relatando o acontecimento, não houve quem o não considerasse milagre do padre confessor Santo Antônio, e imedia­tamente deu-se à nascente d'água o nome de fonte da Providência, cuja denominação perpetuou-se. (4)

Estendia-se aos pés do morro, do lado rio oriente a lagoa de Santo Antônio, em cuja superfície lisa e serena refletiam-se as som­bras dos arvoredos, abrigo e refúgio das aves aquáticas quando perseguidas pelos caçadores. Levantava-se próximo à lagoa a casa do devo­to José da Cruz, donde começava um caminho estreito, sinuoso por entre áleas de laranjeiras, mangueiras e outras árvores frutíferas de um lindo pomar, que prolongava-se até ao alto do morro em frente à ermida de Santa Bárbara, envolvida em paredes de verdura formadas pelas árvores.

As frondosas árvores que ladeavam o ca­minho, que ia morrer em frente à ermida, enlaçavam seus ramos tortuosos, e ocul­tando os raios do sol deixavam escapar uma luz tíbia coada pelas folhas; cipós entre­tecidos, trepadeiras enramadas do flores acompanhavam as curvas dessa vereda, en­feitavam-na, e embalsamavam o ar com seus perfumes suaves; animavam a essa na­tureza bela e vivaz o pipitar constante e harmonioso dos passarinhos, o sussurro da folhas batidas pelas asas da brisa. Termi­nava o caminho em um largo, ou terreiro cercado de altos bambus unidos em feixe que, inclinando-se ao soprar do vento, pro­duziam um chocalhar harmonioso, e davam sombra e frescura; no fundo do largo levantava-se a frontaria esbranquiçada da ermida semelhante a um lençol estendido no meio do bosque.

Abria-se todas as tardes as portas desse santuário para a oração do terço, a que assistiam Bárbara, sua filha e escravas, e amiudadas vezes convidavam aos vizinhos para acompanhá-las nessa devoção.

Ia adiante Helena, depois Bárbara e se­guiam-nas as escravas umas após outras, como era o costume do tempo; guardavam na volta a mesma ordem, exceto se a noite era escura, vinha na frente uma escrava com um archote para alumiar o caminho.

Em uma tarde levaram Bárbara e Helena a oração do terço à velha Escolástica, que mais tarde diremos quem era, e reconhecerão os leitores que não é personagem pouco importante desta verídica história.

Ia Helena alegre e risonha talvez por ter visto por entre a rótula o moço, que en­sinara um novo culto ao seu coração, e despertara-lhe idéias e sentimentos não co­nhecidos da sua alma.

— Está a menina mui contente, disse-lhe a velha Escolástica que envolta em uma mantilha preta, e com um comprido rosário entre os dedos, caminhava atrás dela.

— Sim, tia Escolástica, vou levar este ramalhete a Nossa Senhora e fazer-lhe uma promessa.

— Já sei, vai pedir-lhe para os dias se­rem menores, e os meses mais curtos.

— Não lhe percebo.

— Tenha paciência, filha; o dia ha de chegar.

— Que dia?

— Nossa Senhora me valha, e a vós tam­bém, minha filha, pois julga que não sei que está tudo ajustado, e breve serão as bodas! Helena corou, mas, procurando ocultar sua torvação, acrescentou logo:

— Não pensava nisso: a tia Escolástica é muito maliciosa.

— Ah, redargüiu a velha, Deus Nosso senhor me perdoe e ilumine; quando moça tive um coração sensível, um olhar ardente, amei... hoje estou velha, o coração está frio, o olhar amortecido, e só sei re­zar e fazer penitências mais ainda conheço o coração palpitante de amor, e o olhar de quem como vós tem a alma incendida em paixão.

— Mas desta vez a tia Escolástica não acertou.

— Assim o santo nome de Jesus me va­lha sempre. Eu adivinho, filha, ou antes é esta figa de  raiz de arruda arrancada em noite de S. João. E a velha beijou a figa pendente do enorme rosário que tinha en­tre os dedos.

Nesse momento chegaram à capela, e, transpondo-a foram, assim como Bárbara, para a tribuna; as escravas ajoelharam-se no pavimento. Começou a oração. Havia no hino dirigido à rainha dos anjos os seguintes versos, que não são nossos, e se os transcrevemos é para não afastar-nos da crônica do tempo. Eram assim:

Remédio de tudo

Bendita Maria,

Que o terço nos deste

De tanta valia.

A virgem Maria

Prometeu salvar

A todo o devoto

Que o terço rezar.

Sempre rezaremos

Com grande alegria

Para celebrar

A virgem Maria

Viva Maria

Estrela do norte

Guiai-vos, senhora

Na hora da morte.

Repetia-se todas as noites este hino, a ladainha e outras orações em voz alta.

Anunciando em uma noite o ruído das folhas  açoitadas pelo vento, o cantar triste e monótono das aves noturnas, a escuridade do céu, o som longínquo e surdo do trovão próxima tormenta desciam Bárbara e Helena apressadamente a ladeira, indo adiante uma escrava com um archote para mostrar o ca­minho, mas em uma das curvas da vereda deixou Helena a traz de si a escrava; corria receando-se da chuva. Repentinamente viu prenderem-lhe os braços dois pulsos de ferro; deu um grito que foi abafado por uma mão anteposta a sua boca, e um indivíduo suspendendo-a carregou-a como se levasse uma criança.

A escrava que conduzia o archote não ouviu o grito de Helena porque o vento soprava rijo entre as árvores dobrando-lhes os galhos e produzindo forte ruído entre as folhas, repercutia-se entre as nuvens o eco surdo dos trovões, grasnavam os répteis, e não cessavam as corujas o seu piar estrí­dulo, mas esse grito abafado retiniu como um gemido longínquo no coração de Bárbara, porque adivinham as mães os sofrimentos dos filhos, ouvem seus suspiros mais fracos, e sentem suas dores por mais pequeninas.

Bárbara chamou as escravas, perguntou-lhes por Helena, repetiu diversas vezes nome de sua filha, gritou, correu até a casa, subiu de novo a ladeira, ordenou às es­cravas que percorressem o pomar, e ela repetindo amiudadamente o nome da filha, tropeçando nos cipós, batendo com a cabeça no tronco das árvores começou, debulhada em pranto, a correr de um para outro lado; balbuciou orações e fez repetidas promessas aos santos da sua devoção para encontrar a sua desditosa filha; Helena, Helena, era a sua exclamação de instante um instante, porém inutilmente porque lhe não respondiam..

Mui fatigada caiu desfalecida entre as árvores; as escravas encontraram-na nesse estado e carregaram-na para a casa. A chuva anunciada pelos trovões, relâmpagos e negrura do céu começaram cair.

Helena desaparecera.

 

O MAMELUCO

Correu no dia seguinte em toda a ci­dade a noticia do triste acontecimen­to que se  dera em casa  de Bárbara, e cada um explicou-o a seu modo; disseram uns que Helena se ausentara voluntariamente da casa paterna, e que cometera esta falta por evitar maus tratos, outras que fora raptada pelos índios, costumados a faze­rem correrias, invadir as casas roubar e matar os moradores, e outros atribuíram o crime a diversos indivíduos, a Lucas, a Jerônimo sem excetuarem o governador, o ouvidor e o regedor da justiça.

Cada um referiu o fato dando-lhe cores e episódios novos; asseveraram uns que a moça fora raptada no recinto da capela, outros que fora ultrajada em sua honra, assassinada, e houve quem divulgasse que Helena, sua mãe e mais pessoas da casa haviam sido vítimas de assassinos e la­drões.

Foi a mãe Brígida quem primeiro rela­tou o acontecimento a seu irmão o padre Nóbrega, e o que disse acrescentando e alterando o fato, as revelações que fanta­siou, as exclamações, os suspiros, os pra­guejamentos que empregou em sua locu­ção não os mencionaremos nós nesta verídica história.

Se não desvanecera a impressão daquele triste fato quando veio contristar e ater­rar o povo do Rio de Janeiro um aconte­cimento muito mais serio e grave.

Havendo-se dado o desaparecimento de Helena mostrou-se Henrique aflito e pe­saroso, e correu logo às autoridades pedindo-lhes providências contra os autores desse cri­me, que fizera a infelicidade de uma mãe e o desespero de um amante; foi no dia seguinte ao regedor da justiça e depois ao go­vernador, e retirava-se tarde para sua casa, quando viu-se acometido por dois em­buçados que procuraram roubá-lo; afastan­do o capote de belbute cor de vinho com botões de metal amarelo que trazia sobre os ombros desembainhou o moço a espada, pois apresentara-se fardado em casa do governador, e cuidou em defender-se. Os dois indivíduos embuçados em capotes que desciam-lhes até aos pés, e tendo o rosto ocul­to por chapéus de abas largas, acomete­ram-no com punhais. Travou-se a luta entre os três brandido o filho de Crispim a espada com presteza para aparar os golpes dos adversários, que desejavam feri-lo de surpresa, porém ele ágil e destro afastava-os com a espada, que mais de uma vez se descarregara pesada no corpo dos assassi­nos. Mas, operando um movimento rápido, atirou-lhe um deites uma punhalada no ombro direito, que o fez vacilar e per­der a espada. Henrique não desanimou; apesar da dor do ferimento e do sangue que espadanava da ferida, abaixou-se rapidamente, apanhou a espada, e, sustendo-a com esse mesmo braço lavado em sangue, não deu tréguas à luta. Mas o sangue der­ramado e a dor do golpe assaz profundo foram pouco e pouco roubando-lhe forças, re­conheceu que ia desfalecer, e lembran­do-se de seu pai, da sua noiva cuja desgraça devia vingar, pediu socorro.

O anjo da guarda ouviu-lhe a voz.

Apareceu repentinamente um homem alto, robusto que alçando com ambas as mãos um remo que trazia ao ombro, des­carregou-o com tanta força em um dos as­sassinos que este vacilou, resmoneou um gemido, estorceu-se na convulsão da ago­nia, e morreu. O outro assassino fugira.

Vendo o  filho, de Crispim desfalecido o indivíduo, que viera socorrê-lo, suspendeu-o ao ombro, e levou-o para casa.

Era um, homem de estatura elevada, cor­pulento, forte, de resto largo e amarelado, têmporas salientes, olhos pequenos, ventas largas, lábios espessos e sem barba.

Vestia um gibão de lã, calças do mesmo estofo curtas e largas, pés descalços, e cabelo rente e oculto em um lenço de canequim. Era mameluco, vivia da pescaria, e chamava-se Antônio das Canoas.

Homem enérgico, nascido para o perigo não arreceava-se do mar, dos ventos nem das Tormentas. Estivesse sereno e plácido o oceano, ou marulhadas as ondas pela fúria dos ventos, brilhasse o céu iluminado de estrelas ou o escurecessem nuvens tormentosas era para Antônio indiferente; não dei­xava sua canoa de singrar as águas porque o mameluco se não cansava em olhar para o céu e observar o mar.

Havia de noite um temporal desfeito, a chuva, o vento, os relâmpagos, e trovões ate­morizam aos pescadores mais ousados, que não se atreviam a sair de casa, ou encarando o mar recuavam temendo soltar as canoas à fúria das ondas; porém ao amanhecer surgia um batel na praia. Era o do Antônio das Canoas.

Quando não navegava trazia o remo como arma ao ombro, e ai daquele que o ex­perimentasse, ai de quem se visse acome­tido por essa arma pior dos que os piques, espontões, espadas, mosquetes, arcabuzes e outros inventos mortíferos daquela época para isso que se chama guerra. Esse remo era inexpugnável e manejado pelo braço hercúleo do mameluco, era a queixada de Sansão.

Residia o mameluco em uma casa de palha junto ao braço do mar que, internando-se pela cidade, próximo à rua já então chama­da dos Pescadores, transformava o morro de S. Bento em uma península. Saíra de casa em busca da sua canoa quando ouviu gritos de socorro, e correndo ao lugar do sinistro terminara repentinamente a luta prostrando sem vida a um dos assassinos, que acometeram ao filho de Crispim.

Carregando o moço ao ombro levou-o para casa, deitou-o em um leito, e tirando de um almário uma caixinha, que conti­nha uns pés escuros, com eles pulverizou ferida do mancebo, a qual sangrava muito; velou toda a noite junto do doente, que ao recuperar os sentidos, abriu os olhos, e depois de encarar algum tempo para o mameluco, disse-lhe.

— Obrigado, Antônio.

— Obrigado por que... por matar um cão.

— Salvastes-me a vida.

—Qualquer o faria.

— Não, ousastes combater contra dois ho­mens.

— Dois homens; dizei antes dois mi­seráveis que não sabem tirar a adaga senão no escuro.

— Eu vo-lo agradeço.

— Calai-vos, senhor ateu, pode abrir-se de novo o arranhão que vos fizeram os malditos.

— Vosso remédio estancou-me o sangue da ferida, e deu-me alento.

— Aprendi-o de meu pai, mezinheiro afamado como são os índios meus avós; mas deixai que vos diga que um dos birbantes ficou estirado no caminho como lagarto que se aquenta ao sol; o outro fu­giu.

— E reconhecestes o que morreu?

— Eh... que sim, é Lucas, o morcego que com os seiscentos demônios não esca­pou deste remo, exclamou o mestiço alçando o remo como se o inimigo, tendo ressuscitado, estivesse presente.

— Queriam roubar-me, acrescentou Hen­rique com voz desfalecida.

— Malditos, rosnou o mameluco.

Caiu Henrique em novo delírio do que aproveitou-se Antônio para sair em procura do licenciado, que residia na praia de Nossa Senhora do Ó próximo ao convento do Carmo.

Apareceram os primeiros raios do sol saudados pelo mavioso gorjeio dos passa­rinhos e pelo bafejo brando dos zéfiros; despertou a natureza resplendente pelo astro do dia, e deixando os habitantes as casas para sentirem o aroma alpestre das plantas, viram na rua um cadáver como crânio despedaçado. Era o de Lucas.

Encarando o rosto lívido e lavado em sangue do assassino, os olhos esbugalhados, as narinas, os lábios e ouvidos escorrendo em sangue, a larga equimose que cobria-lhe uma das faces, começou o povo a recordar os crimes atribuídos a esse cele­rado. Cada um referiu um episódio negro da história desse homem, cada um dirigiu-lhe um escárnio, um insulto ou uma maldi­ção; houve quem quisesse arrastar o cor­po e precipitá-lo no mar, mas impediu a justiça de el-rei nosso senhor que se prati­casse contra um cadáver insulto tão des­umano; deitaram-no os granadeiros em uma rede, e levaram-no para o cemitério da Santa Casa da Misericórdia.

Acabam assim os assassinos. Atores de dramas sinistros vivem roubando e ensan­güentando a faca nas entranhas das víti­mas, sem indagarem se matam a um filho, a um irmão, a um esposo ou a um pai. Ocultos sob a capa e o chapéu de bandidos vivem do latrocínio e do crime, deixando sangue em suas pisadas como os animais daninhos deixam a peçonha. Con­tando os dias pelos crimes zombam dos gemidos e lágrimas das vítimas: causam-lhes riso as dores e desgraças alheias, e lhes não detêm o braço homicida nem as lágrimas que rebentam nos olhos do inocente, nem o grito de dor que se parte de um peito de mulher, nem o gemido rouco que o velho gargareja na ânsia da morte. Mas um dia brilha a justiça de Deus, é punido o assassino, penetra-lhe no coração o punhal da vingança, e ninguém tem dó do sangue que goteja ou do cadáver que ap­arece frio e estirado na calçada, porque esse sangue, esse cadáver é do celerado que, em quanto vivo, flagelou e ter­rorizou a humanidade. Se não acabam assim perecem na prisão ou no patíbulo; a jus­tiça vinga a humanidade.

Aparecendo na rua o cadáver de Lucas acreditaram todos que se dera de noite al­guma cena sinistra, e começando a correr diversos boatos mais ou menos exa­gerados; não tardou em espalhar-se em toda a cidade que fora assassinado naquela noite o filho de Crispim da Cunha Tenreiro.

 

O GOVERNADOR

Produziram estes acontecimentos profun­da sensação na cidade, tornaram-se tema de todas as conversações, todos tocaram a rebate com a história do rapto de He­lena e do homicídio de Henrique, e ficaram tão impressionados que não julgaram seguras nem a honra, nem a vida.

Reunidos ao amanhecer na porta da er­mida de S. José conversavam alguns indi­víduos ocupando-se com o que ocorrera na cidade.

— E o rapto da filha da senhora D. Bár­bara!

— Ah, compadre, foi um ato imoral. Em que tempo estamos que já se não respeita a honra das famílias.

— Quero crer, e S. Jerônimo me per­doe, se a minha boca mente, que a meni­na sabia o plano...

— Talvez, as mulheres quando querem sabem fazer as cousas melhor que nós.

— E o senhor Henrique que excelente moço.

— Dizem que já pereceu.

— Oh! não vem cá outro tão bom para o regimento, redargüiu um dos circunstantes, que pelo calção encarnado atacado so­bre meias de lã, botas de couro, farda com ornatos de prata e chapéu ornado com ga­lão branco mostrava pertencer ao regimento velho.

— E sabe-se quem cometeu esse delito? 

— Foram os habitantes da casa mal as­sombrada, Lucas e Jerônimo.

— Deus Nosso Senhor os amaldiçoe e condene, e Nossa Senhora do Amparo me perdoe, mas quero crer que certa personagem não é estranha a esses acontecimentos, res­moneou uma velha que envolvida em sua mantilha, conservara-se próxima e aten­ta aos que conversavam.

— Diga, mãe Brígida, diga.

— Nosso Senhor me salve, e livre das mais línguas, porém julgo que Lourenço.

— O prelado!

— Falem baixo.

— Mas dizia a mãe Brígida...

— Eu não, meus filhos, rosnam por aí que esses acontecimentos, que aterraram-nos tanto, foram planejados por Lourenço, porém pelo santíssimo nome de Jesus declaro não crer em tal.

E a velha benzeu-se e beijou o rosário pendente da cintura.

É escusado dizer que as revelações da mãe Brígida contra Lourenço nasciam da sua má língua: ainda não ouvira acusar o prelado por esses acontecimentos.

Começando a tocar à missa separaram-se os circunstantes e entrarão na ermida, exceto a mãe Brígida que tomando pela rua do Cotovelo subiu a ladeira do Colégio, e foi bater à porta da casa do seu ir­mão, o padre Nóbrega que residia próximo à matriz.

Entrando e sentando-se em uma cadei­ra de pau santo com assento e espaldar de couro disse a velha para seu irmão que, tendo a pouco voltado da matriz, ocupa­va defronte outra cadeira semelhante.

— Tenho que revelar-lhe cousas impor­tantes.

— Falai mana, sou todo ouvidos.

— Quero crer que andou Lourenço en­volvido no que aconteceu à filha de Bárbara.

— Como, retorquiu o padre.

— Lourenço tinha afeição a essa moça que aborrecia-o, e ia casar com o filho de um seu inimigo, Crispim da Cunha.

— Mas como sabeis isso?

— Para que canso os olhos e ouvidos por detrás da rótula, não é para saber o que ocorre na vizinhança! Ia Lourenço todos os dias à casa de Bárbara, mas desde que a menina desapareceu não foi lá mais. Pode estar doente.

— Não está; viram-no ontem na rua estes olhos que a terra ha de comer, e a velha apontou os olhos com dois dedos da mão direita.

— Não tem vindo à Sé.

— Ah, anda atarefado, e talvez para as cousas da igreja lhe não sobre tempo.

— E o filho de Crispim já faleceu?

— Dizem uns sim e outros não; e pre­zado mano quem sabe se por aí não an­dou também a mão de Lourenço de Men­donça.

— Pois não foram Lucas e Jerônimo?

— Os braços dos assassinos são armas, que se compram como as adagas nas lojas dos mercadores.

— Mas...

— Henrique era o noivo da filha de Bárbara e sabeis que ódio guarda Lou­renço contra Crispim e seus filhos: ora ele opunha-se a esse casamento.

— Vou compreendendo mana; Louren­ço é mau e vingativo, e pode ter feito tudo isso; convém-nos indagar, sabeis como me arde no peito o desejo de vingança.

— Pois então armas em riste, em campo contra o adversário e contai comigo, hei de devassar tudo porque os segredos não resistem à minha perspicácia. Ah se con­sigo desembaraçar essa meiada; adeus ma­no vou entrar em atividade.

— Nossa Senhora vos acompanhe.

— Amém.

E a velha desceu a ladeira, ajoelhou-se defronte de um nicho no canto da rua de S. Francisco, e depois com passo apressa­do procurou a sua habitação.

Dolorosamente sentira Bárbara da Silvei­ra a desgraça de sua filha; submersa na dor não sabia o que pensar, nem fazer; teria Helena abandonado a casa arrastada por algum sedutor, ou teria sido vítima de alguma traição! Se voluntariamente dei­xara a casa paterna porque dera aquele grito, cujo eco ainda ressoava nos ouvidos de sua mãe como um gemido longínquo. Não era de crer que mão maléfica arreba­tara essa moça à desgraça.      

Não tendo encontrado a sua filha, nem havendo quem dela desse-lhe notícia cor­reu Bárbara ao quarto em que tinha seu oratório, e de joelhos com as mãos ergui­das e debulhada em choro pediu à ima­gem da Santíssima Virgem amparo e pro­teção para sua desditosa filha.

Costumara-se a orar desde menina dian­te dessa imagem; diante dela ajoelhara-se e fizera fervorosas orações ao expirar seus pais, ao ver morto seu primeiro filho, ao soltar seu esposo o último suspiro, e em todos esses momentos de dor e aflição, de martírio e angústia, volvendo os olhos em­panados de lágrimas, cruzando as mãos e balbuciando com verdadeira fé suas ora­ções, sentira coar-se-lhe no peito o bálsamo da consolação e penetrar-lhe no coração um raio de esperança.

Havendo desaparecido sua filha veio cair aos pés da Santíssima Virgem, que nas horas amargas da vida dera-lhe resignação; orou e orou muito, e ao levantar-se não sentiu tão acerba a sua dor, nem tão viva a sua angústia; serenara-se a tempestade de sua alma, e entornara-se em seu peito um bálsamo consolador. Já não julgava-se só; ti­nha para ampará-la a proteção da mãe de Deus.

É sempre suave a resignação que a re­ligião traz ao coração humano.

Passou alguns dias entregue à dor, re­ceando revelar ao governador, ao prelado e a seu confessor o acontecimento ocorrido em sua casa, para poupar a honra de sua filha, mas vendo divulgado o fato era inútil ocul­tá-lo mais, e assim envolvendo-se em sua ca­pa de dó mandou vir a cadeirinha ou liteira, e entrando nela dirigiu-se a pobre mãe à casa de Lourenço.

Tão pálido trazia o semblante, manifes­tava tanta aflição no olhar e alteração nos traços da fisionomia que o prelado não re­conheceu-a, mas fazendo reparo percebeu-a, e então sentiu um estremecimento. Preocupado como tinha o espírito não atendera Bárbara a emoção de Lourenço, que momenta­neamente procurara ocultar o seu abalo.

Referiu-lhe a desgraça acontecida à sua filha, e atento e compassivo mostrou-se Lou­renço, gemeu, chorou com a pobre mãe pa­recendo participar de sua dor e aflição; mascarava-lhe o semblante tanta hipocrisia, sujeitavam-se os músculos do rosto tão do­cemente aos sentimentos que desejava ma­nifestar, que encarando-o nesse momento dir-se-ia ser real o seu sentimento, sin­ceros os seus lamentos e aguda a sua a dor.

Dirigiu à infeliz mãe palavras de conso­lação, acompanhou-a até a porta, ajudou-a a entrar na cadeirinha, mas logo que viu-a ausente, quem encarasse seu semblante, há pouco triste e choroso, notaria em seus lá­bios um riso sarcástico de vingança.

Subiu Bárbara a ladeira do Colégio, e chegando à portaria do colégio dos jesuí­tas declarou ter desejo de falar ao padre João de Almeida; um donato foi chamá-lo e alguns minutos depois apareceu o confessor de Bárbara que começou a referir-lhe o que acontecera em sua casa; o jesuíta interrompendo-a, disse-lhe que sabia tudo, e tudo relatou acrescentando alguma cousa ignorada pela infeliz mãe. Admirou-se Bárbara de ver o jesuíta informado de tudo, ciente dos pormenores do fato, e agra­decendo-lhe o que revelara-lhe, beijou-lhe comovida a aba da manga, e seguindo seu conselho dirigiu-se à casa do governador.

Ocupava o cargo de governador do Rio de Janeiro, desde 13 de junho de 1633 em que tomara posse no paço do senado da câmara, o capitão da companhia de ar­cabuzeiros, Rodrigo de Miranda Henrique, fidalgo da casa real e cavaleiro da ordem de S. Thiago.

Era Rodrigo de Miranda ainda moço e militar ativo, o que manifestava pela ex­pressão do rosto, vivacidade do olhar e agi­lidade dos movimentos. Exercia o cargo de cabo militar da Bahia.quando, foi nomea­do governador do Rio de Janeiro, onde corriam há tempos boatos de invasão de inimigos, pelo que avisara-lhe a metrópole que se prevenisse. Recebendo o governo da capitania sob essa impressão man­dou Rodrigo de Miranda fortificar a cida­de, levantou o padrasto da Candelária, e o de Nossa Senhora da Ajuda, no morro de Santo Antônio, o qual por haver sido construído por Antônio Corrêa, que nessa obra empregara o serviço de seus escra­vos, teve por capitão o próprio Corrêa em recompensa desse auxílio prestado à defensa do Estado. Levantou-se no monte de S. Bento um forte cujo capitão foi João Ro­drigues Brabo.

Fortificada a cidade e preparada e ex­ercitada a tropa para resistir ao inimigo, que tentasse algum desembarque, cuidou o governador nas necessidades peculiares do povo.

Não havendo fontes de água corrente serviam-se os habitantes da água de poços; ou por caminhos ermos e perigosos iam três quartos de légua de distância, no bairro das Laranjeiras buscar água no rio Carioca. Era sensível a falta de água potável na cidade, e reconhecendo-a esforçou-se o governador por trazer ao centro da povoação a água pura e cristalina; que o povo com perigo e trabalho, ia apanhar em lu­gar longínquo; resolveu construir um en­canamento, e para dar princípio a obra estabeleceu por cada canada de vinho a con­tribuição de cento e sessenta reis, ordenando que a coleta imposta aos compra­dores fosse depositada em uma arca de três chaves, no colégio dos jesuítas, ficando uma das chaves em mão dele governador, a outra na do reitor do colégio dos refe­ridos padres, e a última em mão, do vereador mais velho; mas por haver no mer­cado grande escassez de vinho, tornando-se tão raro esse gênero que por algum tempo não puderam os sacerdotes celebrar o santo sacrifício da missa, não realizou-se o im­posto criado pelo governador, e não deu-se começo a obra do encanamento.      

Era Rodrigo de Miranda alto de esta­tura e magro de corpo. A boca rasgada, o nariz adunco, os olhos azuis e vivos, a barba espessa, os cabelos anelados e o rosto pálido formavam um tipo que não era belo, mas atrativo e simpático.

Usava calções de pano cor de canela golpeados de vermelho, gibão de seda da mesma cor com as abas e bolsos guarnecidos de um escarlate, colete de cha­malote azul e que descia quase aos vazios, meias de seda, sapatos com fivelas de pra­ta e espada com bainha de veludo. Quando saia à rua trazia preso aos ombros um capote tudesco forrado de azul claro.

Residia em um sobrado com sacada de madeira na rua do Governador, chamada também de Diogo de Brito e mais tarde da Alfândega.

Chegando à casa de Rodrigo de Miranda saiu Bárbara da cadeirinha, apressada subiu a escada, e correndo violentamente o re­posteiro encarnado, que revestia a porta principal entrou ou antes precipitou-se na sala, e caiu aos pés do governador que, sen­tado em uma poltrona de couro lavrado com encosto e marchetada de pregos amarelos, lia um papel apresentado há pouco por um soldado.

Não pôde o governador reconhecer essa mulher envolta em uma capa de dó, e que ousara penetrar em seus aposentos sem ter se feito anunciar como era da etiqueta; estranhando seu proceder quis levantar-se para mandá-la expulsar, mas deteve-se comovido com as lágrimas e soluços da in­feliz..

— Que deseja, perguntou-lhe Rodrigo de Miranda afastando-a de si.

Convulsa de lágrimas, e sufocada pela dor Bárbara não podia falar.

— Que queres, mulher, retorquiu o go­vernador em tom desabrido.

— Justiça, senhor, balbuciou Bárbara.

— Falai e a justiça de el-rei nosso senhor não faltará.

— Roubaram-me minha filha.

Informado do rapto de Helena e vendo a aflição e angustia da mulher que fal­ava-lhe, compreendeu o governador que ela a mãe da infeliz moça, mas para certificar-se perguntou-lhe.

— Sois D. Bárbara da Silveira?

— Sim, meu senhor.

— E onde está a vossa filha, para onda levaram-na, já descobristes?

— Adivinhei, senhor, ou antes a piedosa Mãe do céu revelou-mo.

— E onde está ?

— Em casa do ouvidor Paulo Pereira. E tendo pronunciado estas palavras caiu desfalecida no chão.

 

JOÃO DE ALMEIDA

Deixando o colégio de S. Vicente por ser mui pobre essa povoação vieram os je­suítas estabelecer-se no Rio de Janeiro em 1560, tendo por visitador geral o padre Inácio de Azevedo; concedeu-lhes o go­vernador Mem de Sá terreno no morro de S. Sebastião para fundarem seu colégio e igreja, e deu-lhes renda suficiente para o sustento de cinqüenta indivíduos. Em 1567 levantaram os padres de Jesus junto ao edi­fício do colégio a sua igreja, a primeira erguida na nascente cidade.

Para moralizar, instruir o povo, ad­quirir prestígio, e angariar a afeição po­pular abriam os jesuítas no seu colégio aulas gratuitas de primeiras letras, e dou­trina cristã, e mais tarde de gramática, filosofia, teologia e matemáticas, obri­gando aos estudantes, que freqüentavam-nas a confessar-se mensalmente, a fazer penitên­cia em certos dias, a jejuar em outros, e a ouvir missa quotidianamente, preceitos que, admitidos por quase toda a população, eram seguidos com perseverança pelos alunos dos padres da companhia.

E era importante esse serviço de educar e instruir o povo, por não haverem au­las públicas; os que não iam beber instrução com aqueles padres não encontravam-na em outra parte; era só dali que resvalava al­guma luz.

Se por esse ensino dado ao povo eram os jesuítas considerados superiores aos outros homens em inteligência e saber, tratavam de elevar-se mais aos olhos da plebe cercando-se de mistérios, propalando milagres e feitos prodigioso praticados pelos filhos da ordem, mostrando-se ascéticos em sua vi­da e em seus atos, e assumindo um prestígio que dava-lhes decidida influência nos negócios não só religiosos senão profanos. Acumulavam nos altares de sua igreja re­líquias de santos mártires, como as de S. Macário, Santo Antônio, Santa Tecla, S. Fulgêncio, S. Dionísio, S. Paulino, San­to Agapito, S. Maurício, S. Teodoro, Santa  Úrsula e suas companheiras, Santo Olímpio e S. Brás. (5)

Prestando-se os jesuítas a todos os atos religiosos e especialmente à confissão caiam em seu regaço os segredos de todas as cons­ciências; guiavam-se todos pelos conselhos dados em seu confessionário, ninguém lia qualquer livro sem consultá-los, nem trata­va de qualquer negócio ou dispunha do me­nor objeto sem ouvir seu parecer. Aos que ouviam de confissão obrigavam a assistirem a missa na igreja do colégio, a comun­garem, a darem conta das penitências prescritas, a declararem que quotidianamente re­zavam a ladainha e faziam amiudados exames de consciência, prometendo-lhes em troca disso contínuas deprecações e indulgên­cias.

A influência moral e religiosa que exer­ciam sobre o povo tornava-os nimiamente respeitados, vivia a população sob sua obe­diência, e a única autoridade legítima que admitia era a da companhia de Santo Inácio. E ai daquele que mostrasse des­denhar sua proteção, não compreendesse seu zelo ascético, e não admitisse a sua in­fluência benéfica e celestial; por qualquer falta era excomungado, sua alma destina­da às chamas do inferno, e por fim uma acusação injusta levava-o ao tribunal do santo ofício, onde esperava-o o suplício do fogo precedido dessa cerimônia horrível chamada auto de fé.

Naqueles tempos enegrecidos pelo ba­fo da superstição era o raio da excomunhão uma arma terrível; o desgraçado que sof­ria-o, não podia conviver com pessoa alguma, todos evitavam-no, não dirigiam-lhe a palavra, negavam-lhe o menor auxílio, e deixavam-no morrer a fome e sede ; não con­sideravam-no ente humano porém um trasgo social, ou cão tinhoso, cujo latir afastava os viandantes ou inflamava-lhes a ira. E não só o infeliz carregava o anátema da mal­dição porém também seus filhos, seus pa­rentes, os objetos em que tocava ficavam interditos, e afastados do trato social. Nem depois de morto havia comiseração do in­feliz, seu cadáver não encontrava um lençol por mortalha, nem quatro palmos de terra por sepultura; arremessado aos abutres era por eles devorado em quanto a alma pa­decia nos infernos.

Essas idéias e preconceitos sociais tra­ziam todos sob o domínio dos jesuítas, con­siderados como os precursores da verdade, os escolhidos de Deus para guiarem os ho­mens no mundo e abrir-lhes as portas no céu.

Como todos deixava-se Bárbara dominar pelo jesuíta seu confessor que, além das orações e penitências para cada dia, indica­va-lhe o vestuário de que devia usar, o alimento quotidiano, o meio de empregar o dinheiro, as pessoas que devia receber em sua casa, as inclinações, os sentimentos que devia professar; era o confessor seu guia terrestre e espiritual e chamava-se João de Almeida.

Nascido em Londres, no reinado da rai­nha Isabel, tinha John Martin dez anos quando um mercador português roubou-o para preservá-lo na fé católica; levado à igreja por seu protetor recebeu na pia o nome de João. (6) Contava dezoito anos quando chegou ao Rio de Janeiro acompa­nhado do mercador que, conhecendo as in­clinações do seu pupilo, e desejando dar-lhe vantajosa carreira, admitiu-o no colégio dos jesuítas desta cidade, do qual era provincial o padre José de Anchieta.

Natural da ilha Tenerife, onde nascera em 1533, vestira Anchieta muito moço o hábito negro da companhia de Jesus, cria­da um ano depois do seu nascimento por Ignácio de Loyola. Dedicando-se ao serviço de Deus abandonara a terra em que nascera, a seus pais, parentes e amigos, e viera propagar no novo mundo a religião do Cru­cificado, e por seus talentos, virtudes, pureza da alma, austeridade de vida e dedi­cação à igreja tornara-se aos vinte anos respeitado e venerado por todos. Foi um dos fundadores do colégio e igreja dos jesuítas no morro de S. Sebastião, e o ins­tituidor do hospital da Misericórdia no Rio de Janeiro.

Os trabalhos, as fadigas, as vigílias, os rigores dos jejuns e das penitências, as austeridades da vida abateram-lhe cedo as forças do corpo mas não as do espírito; e, apesar de enfermo e debilitado se não esquivava aos trabalhos, às disciplinas, aos cilícios e às abstinências.

Era Anchieta de estatura regular, magro, trigueiro, de olhos azuis, testa larga, nariz comprido e pouca barba, e, pela deslocação de uma das vértebras em conseqüência de uma queda, apresentava acurvado o corpo, o que emprestava-lhe na mocidade um ar de decrepitude e velhice.

Quando João de Almeida, que tomara esse apelido do seu protetor, foi recebido na ordem dos jesuítas, contava o padre An­chieta mais de sessenta anhos, e tinha o corpo mui abatido pelas fadigas, moléstias e acerbidades de disciplina e sujeito a freqüen­tes desmaios, durante os quais esfregava-lhe o padre Almeida os pés com vinagre para reanimá-lo e acordá-lo desses delíquios; e aludindo a isso costumava dizer João de Almeida que se alguma virtude tinha nas mãos dos pés do mestre lha viera.

Ouvindo a voz enfraquecida mas cheia de unção do padre Anchieta, a relação de seus prodígios e milagres praticados em favor da humanidade, sentindo o fervor, a fé desse homem, cuja vida se consagrara inteira a Deus, vendo o corpo desse velho ferido e ensangüentado pelos cilícios, respirando o bafo de san­tidade que todos encontravam nesse servo de Deus, e bebendo de seus lábios frios e trêmulos pela idade, mas incandescidos pela fé e santificados pela verdade, doutrinas puras e santas, apesar de exaltadas e apregoadas de mistura com as superstições do tempo, pro­curou João de Almeida imitá-lo, seguir suas pisadas e receber a virtude inoculada no cor­po do apóstolo santificado pelo martírio e na alma inspirada por Deus.

Entregou-se aos maiores suplícios para mortificar a carne e purificar a alma, e por considerar o corpo o inimigo da alma, o bar­ro inútil da criação, o invólucro danoso do espírito, tratou de puni-lo, flagelando-o com disciplinas de cordas, de tiras de couro e de arame. Colocava nos braços, pernas e coxas cilícios de arame, e um de sete cadeias em volta do tronco; tinha um colete da cri­na mui áspera guarnecido na parte interna de cruzes com pontas agudas formando gros­sos rascadores, e trazia unido à carne esse cilício denominando-o o seu bom saco. Nunca enxotava as moscas e mosquitos que atormentavam-no, nem mudava de roupa mais de uma vez por semana quer fosse calmosa a estação, quer fizesse penoso exercício; quan­do viajava metia por penitência grãos de milho nos sapatos.

Trazia consigo um papel escrito por seu punho no qual estava indicado o regímen de cada dia; prometia não comer na segunda feira em honra da Santíssima Trindade, tra­zendo junto ao corpo um dos cilícios: na terça feira devia jantar pão e água: na quarta se não afastava da regra da companhia: na quinta guardava abstinência em louvor e gloria do Espírito Santo, de Santo Inácio de Loiola, dos apóstolos e de todos os santos e santas; no sábado jejuava em honra da Virgem Santíssima, disciplinando-se e ocupando-se em orações; ao domingo almoçava, jantava e ceava como faziam os de sua comunidade. Nos jejuns de pão e água comia uma só vez no dia.

Todos os dias rezava três horas à Trindade, ao Santíssimo Sacramento, ao Salvador e a Virgem Maria, e dizia que repetia essas ora­ções diante de um oratório imaginário colo­cado no seu coração, e do qual fazia uso dia e noite, no lugar em que estivesse em terra ou no mar, no centro das povoações ou na solidão dos desertos; e tinha esse oratório três nichos, no do centro estava a Trindade, no da esquerda o Sacramento e no da direita a sacra Família, Jesus Maria e José. Ajoe­lhava-se diante desse oratório ideal, entoava suas orações e com os lábios da alma beija­va os pés de cada imagem, exclamando re­petidas vezes: Glória ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo e à Virgem Maria. Os contínuos jejuns, as flagelações, os cilícios, as prolongadas penitências extenuavam-lhe o corpo tornando-o tão abatido e fraco que às vezes nem podia erguer-se, nem ajoelhar-se, mas nem assim diminuía seu zelo religioso, ou modificava seu viver penitente e rigoroso, antes persistia em martirizar o corpo julgando-o um cadáver corrupto, que ator­mentava-o e de que se envergonhava.

Aludindo ao lugar do seu nascimento colocavam ao retratarem-no de um lado a fi­gura da Inglaterra e do outro a do Brasil com esta inscrição: Hinc AnglusHinc Angelus.

Era João de Almeida de estatura elevada, magro, de cor macilenta, olhos azuis, cabelos louros e corredios.

Por sua vida ascética tornara-se respeita­do de todos, eram ouvidos e estimados os seus conselhos, e considerados eficazes para perigos e moléstias as suas orações; o que saía da sua nômina tinha-se por milagroso e santo; eram ele e Anchieta os jesuítas mais venerados. Todos desejavam tê-lo por confessor, e os que vazavam-lhe no confessio­nário os segredos da alma, iam assistir à missa dita por ele ao romper da alva, ou pedir-lhe alguma oração ou relíquia para li­vrá-los dos espíritos das trevas ou dos peri­gos terrestres, referiam-lhe tudo que aconte­cia na cidade, e por isso não havia segredo que lhe não fosse devassado, nem aconteci­mento cuja notícia lhe não ferisse os ou­vidos.

Era costume e preceito dos padres da com­panhia indagarem tudo, e João de Almeida perspicaz, vigilante e zeloso se não esquecia de seguir essa regra, não só por cumprir os estatutos da sua ordem senão por conservar a reputação de santo em que era tido; e em verdade não deixava de causar assombro e admiração a notícia antecipada de aconteci­mentos e segredos que se ouvia da sua boca.

Deixando a casa de Lourenço dirigiu-se Bárbara da Silveira ao colégio dos jesuítas para referir ao seu confessor o que acontece­ra a Helena, e pedir-lhe conselho e sua va­liosa e benéfica proteção; mas ao principiar a sua narração interrompera-a o jesuíta, dizendo-lhe -

— Sei tudo.

E de feito relatou o fato como se o tivera presenciado, sem esquecer o menor incidente, nem a hora, o lugar, as pes­soas que se achavam presentes, e acrescentou que por uma revelação divina sabia achar-se Helena em casa do ouvidor; aproximando-se ao ouvido de Bárbara, disse-lhe baixi­nho:

— Ide à casa do senhor governador re­velai-lhe isso como se Nossa Senhora vos houvesse anunciado.

Surpresa, não duvidando um momento da revelação que seu confessor recebera do céu, e comovida, sem poder articular uma pala­vra, beijou Barbara o hábito do padre João de Almeida, e despedindo-se correu à casa do governador.

 

O OUVIDOR

A aflição que sentira desde o desapareci­mento de sua filha, o abalo que produzira-lhe a notícia revelada por João de Almeida, a ansiedade de comunicar essa notícia ao governador para obter justiça, e a sensação de que se apossara ao entrar em casa de Ro­drigo de Miranda abateram as forças de Bár­bara da Silveira, que havendo dito o que divulgara-lhe João de Almeida, caiu desfa­lecida junto à poltrona do governador.

Suprema era a dor do seu coração; e com­pungia ver-se essa pobre mulher há pouco aflita, acabrunhada, sem repouso, nem sus­tento, vagando em procura da filha que haviam-lhe arrebatado, indagando onde haviam-na oculto, e agora desfalecida pela vi­gília, pelo tormento, pelas sensações e mar­tírios que oprimiam o seu coração de mãe.

Sustendo-a chamou o governador por um dos seus fâmulos, e colocando-a em umas das poltronas de couro, que mobiliavam a sala, afastou-lhe do rosto a capa de dó, mandou abrir as rótulas das janelas para facilitar a ventilação, e ordenou fossem buscar o licenciado; mas no fim de alguns instantes Bárbara recuperou os sentidos, e logo que pôde falar disse a Rodrigo de Miranda.

— Ser-me-á restituída a minha filha, senhor governador.

— Certo que sim se estiver aonde dis­sestes.

— E quando, senhor.

— Providenciarei prontamente, pois exige a moralidade pública a imediata e severa punição culpado.

— Sim, pela Virgem do céu; nossa mãe, apressai-vos, senhor, desejo tornar a ver minha filha, beijar-lhe o rosto, palpar-lhe os cabelos, as faces, apertá-la junto ao meu seio, vê-la viva, olhando para mim, abra­çando-me e misturando suas lágrimas com as lágrimas de sua mãe.

Bárbara estava debulhada em pranto.

— Sossegai; a justiça de el-rei nosso se­nhor protege os inocentes e não poupa aos culpados, ide e prometo restituir-vos a vossa filha se ela estiver em casa de Paulo Pereira, cujo castigo será rigoroso e exemplar.

Levantando-se com dificuldade beijou Bár­bara a mão do governador, desceu vagarosa­mente a escada, e entrando em sua cadeirinha voltou para casa murmurando seus lábios  orações ardentes, em quanto nos olhos ressu­mavam lágrimas sentidas.

Quem encarasse o semblante de Rodrigo de Miranda ao revelar-lhe Bárbara a notícia de achar-se Helena em casa de Paulo Pereira, veria um sorriso mover-lhe os lábios e um indício de satisfação abrir-lhe o semblante; mas foi rápida essa expansão; o desfalecimento de Bárbara veio distrair e apagar re­pentinamente o pensamento oculto nesse mover de lábios.

Ficara Rodrigo de Miranda satisfeito por saber o nome do autor do atentado, cuja sensação fera geral na cidade, ou odiando a Paulo Pereira comprazera-se em ter ocasião de vingar-se do seu inimigo? Não queremos fazer injustiça ao magistrado, nem também ocultar os sentimentos do coração humano.

Apreciou Rodrigo a notícia não só por abrir-lhe ocasião de patentear seu zelo pela moralidade pública, como de vingar-se de um amigo ingrato

Ocupara Paulo Pereira o cargo de depositário do cofre público da cidade da Bahia,  no que se não mostrara nem zeloso, nem probo.

Era uso naqueles tempos guardar-se o co­fre público em casa de um particular chamado depositário, cuja residência transforma­va-se em erário da cidade. Esse sistema prejudicial à nação e aos particulares, tornava fácil o descaminho de somas consideráveis, freqüente os roubos e amiudadas as fraudes; não havia método, nem regulari­dade nas somas depositadas; fazia o depositário girar o dinheiro do cofre em proveito seu sem garantia e segurança para o Estado e para os particulares, e se não tinha zelo, probidade, escrúpulo, nem cuidado defrau­dava a nação o aos indivíduos.

Durante a administração de Paulo Pereira sofreu o cofre perdas sensíveis, houve falta de valiosa quantia que obrigou o depositário a recorrer aos amigos para isentar-se das penas da lei, e entre os que socorrem-no foi Rodrigo de Miranda, então cabo militar da praça da Bahia, o mais pronto e genero­so. Mas nomeado ouvidor do Rio de Janeiro, esqueceu-se o ex-depositário do favor pres­tado por seu amigo, não restituiu-lhe a quan­tia emprestada, nem patenteou-lhe gratidão. Fez mais. Unindo-se com Lourenço de Mendonça começou a entremeter-se em negócios estranhos à sua alçada.

Entrara Lourenço com mão aberta na jurisdição civil; mandava visitar os navios que buscavam o porto e indagar de onde  vinham, o número de seus passageiros e de sua tripu­lação, o gênero e quantidade das mercadorias, e nessa usurpação de direitos alheios acompanhava-o o ouvidor Paulo Pereira, ar­rastado pela ambição, pelo desejo insaciá­vel de alcançar lucros avantajados.

Havia nesse homem um sentimento do­minante, a ambição, a sede do ouro, febre contínua, persistente que tornava-o ingrato, mau, venal e corrupto; para obter dinheiro se não embaraçava em defraudar a fazenda pública, malbaratar as quantias confiadas à sua guarda, violar a lei e renegar os amigos.

Homem digno e probo irritara-se Rodrigo de Miranda contra o proceder de Paulo Pe­reira no Rio de Janeiro, e se não o culpara fora por não pensar-se ser vingança do procedimento ingrato do ex-depositário para com ele na cidade da Bahia; mas, achando-se o ouvidor acusado de crime de rapto, regozijou-se o governador por ter ocasião de vingar-se da perfídia e má fé desse homem. E naqueles tempos de simpleza de costu­mes julgava-se atentado horrível o ultraje contra a honra e segurança das famílias; sofriam penas rigorosas os que ofendiam a moral pública ou penetravam no lar do­méstico para manchar a reputação das famílias.

Eram punidas com o degredo a sodomia, alcovitaria, molície, abraçar e beijar, dar casa para couto, vender qualquer homem ou moço alféloas e obréias que era do ofício de mulheres, adivinhar, deitar cartas, ver em água, espelho ou cristal para encontrar for­tuna, servir-se e ensinar feitiçarias, e outros delitos semelhantes.

Pesada e atroz aplicava a legislação do tempo penas rigorosas, infamantes e quase sempre superiores aos delitos; era ilimitada a alçada da justiça e inexorável a espada da lei.

Raptando a filha de Bárbara incorrera Paulo Pereira em pena de degredo, e como se bastara isso para ser-lhe aplicada a sentença da lei, aconteceu chegar no mesmo dia, em que Bárbara fizera a revelação ao go­vernador, a frota do reino, que havendo to­cado na Bahia por ser ali a sede do governo, trouxera de conde de Miranda ofícios para o governador do Rio de Janeiro, em que se lhe ordenara a prisão imediata de Paulo Pereira, e sua remessa à Bahia onde de ia sofrer processo por descaminho e de­fraudo de dinheiros de particulares; pois o ex-depositário não só dilapidara os dinhei­ros públicos como os dos particulares confia­dos à sua guarda, pelo que dirigiram diversos indivíduos petição de recurso ao gover­nador geral Diogo Luiz de Oliveira, conde de Miranda, implorando-lhe justiça contra o ex-depositário, e provada por sentença judi­ciária a criminalidade de Paulo Pereira or­denou o governador geral a prisão do delin­qüente fraudador.

Recebendo a ordem do conde de Miranda tratou Rodrigo de Miranda de executá-la imediatamente; mandou preparar o seu ca­valo e seguido de seus ajudantes de ordens, dirigiu-se à casa do regador da justiça com o qual teve larga conferência.

Na noite desse mesmo dia era cercada a casa de Paulo Pereira, e penetrando nela os soldados não encontravam viva alma.

O desaparecimento de Helena que tanta sensação produzira, e logo após  o cerco à casa do ouvidor fizeram crer que Paulo Pe­reira não era estranho àquele fato, e não havendo sido encontrados nem a filha. de Bárbara nem o ouvidor, mais capacitado fi­cou o povo da criminalidade desse magistra­do, e desde então foi voz geral na cidade que fugira a filha de Bárbara com o ouvidor Paulo Pereira.

Mas como soubera o jesuíta João de Al­meida que achara-se a filha de Bárbara em casa do ouvidor!

Tinha Paulo Pereira uma criada chamada Ana das Mercês, cujo guia temporal e es­piritual era aquele jesuíta. Ana referia­-lhe tudo e obedecia-o cegamente.

Tendo ido à missa no dia seguinte àquele em que Helena chegara à casa do ouvidor, viu o jesuíta  João de Almeida atravessar a igreja, chamou-o e disse-lhe.

— Saiba vossa caridade que tenho uma nova a revelar-lhe.

— Qual!

— A filha de Bárbara da Silveira acha-se em casa do senhor ouvidor!

— Como!

— Eu conto a vossa caridade tudo, mas vamos para ali que é lugar mais retirado.

O jesuíta acompanhou a devota, que diri­giu-se para um dos extremos da igreja por debaixo do coro, e ali referiu-lhe esten­didamente o acontecimento como o ouvira da própria Helena. Ao terminar disse-lhe João de Almeida.

— Agora não boquejai no caso, eu vos peço.

— Vossa caridade ordena.

A devota beijou a mão do jesuíta e saiu.

Ao atravessar de novo a igreja cruzou João de. Almeida os braços, abaixou a cabeça e com voz sentida murmurou:

— O ouvidor, o ouvidor!

Entrando na cela sentou-se, encostou a cabeça às mãos e ficou silencioso.

 

O JURAMENTO

Foi pronto e rápido o restabelecimen­to de Henrique, viera o licenciado, aprovara o que fizera o Antônio das Canoas, receitara novas aplicações e em pouco tempo vira entrar o doente em convalescença.

Tivera Henrique notícia da frustrada diligência de Rodrigo de Miranda para aprisionar o ouvidor indigitado como autor do rapto da filha de Bárbara, e, não ha­vendo sido encontrados nem o sedutor, nem a vítima, começou ele a suspeitar de sua noiva. Mas lhe não dizia o coração que Helena o amava, não percebera no olhar, no palpitar do seio o amor que enchia-lhe o peito, não devia essa moça jurar-lhe breve e voluntariamente amor eterno perante os altares; porque havia de iludi-lo! Essas idéias contristavam-no e abatiam-lhe a alma; porém, pensava também ele, se Helena lhe fora infiel, se volun­tariamente deixara a casa paterna porque partira-lhe do peito esse grito agudo que ferira os ouvidos de sua mãe;  não era mais provável ter sido essa moça surpreendida, atraiçoada e violentamente arrebatada do lar paterno!

E os assassinos que haviam-no atacado, seriam enviados pelo ouvidor, ou não!

Julgara Henrique que não; sabia, como todos os habitantes da cidade, em que aqueles homens se empregavam, que acom­etiam de noite aos viandantes para ar­rancar-lhes a bolsa e também a vida. Exi­giram-lhe o dinheiro que trazia, e como se opusera apontaram-lhe os punhais; nin­guém os guiara àquele crime; tinham-no acometido porque eram ladrões, pensara o filho de Crispim. E assim como sofrera esse ataque inesperado também a filha de Bárbara fora vítima de uma traição; ti­nham-na arrastado do lar paterno, retirando-a violentamente do lado de sua mãe, com quem estivera a orar com fervorosa  devoção diante da imagem que salvara seu pai em dia de tempestade da ação fulmi­nante do raio. Helena lhe não podia ser perjura, ele sentira-lhe no olhar, no arfar do seio apertado pelo justilho que era cor­respondido. Na igreja mais de uma vez oraram juntos, e ao levantarem-se disseram seus olhos o que os corações de ambos queriam descobrir; ao atravessar a rua em que ela residia, vira-a anelante esperan­do-o e seguindo-o com o olhar. Helena lhe não podia ser perjura.

Essas reflexões tranqüilizaram-lhe um pouco a alma e o coração, e pelo amor que consagrava a essa moça, e pelo dever de vingá-la, pois breve devera ser sua esposa, esperando unicamente a licença já impetrada de el-rei nosso senhor para celebrar-se o casamento, levaram-no a indagar onde es­taria Helena, a pedir a Bárbara que lhe referisse o que soubesse, a implorar o auxílio de João de Almeida, e a aprestar-se a todas as diligências de que o governador encarregava-o para descobrir o autor ou autores da violência praticada contra a sua infeliz noiva.

Achando-se um dia ajoelhado na ermida de S. José a suplicar ao céu que o guias­se ao lugar em que haviam ocultado a sua infeliz noiva, sentiu no ombro uma peque­na pancada, e voltando-se viu junto a si, uma velha envolvida em uma mantilha preta.

— Sofreis muito, senhor Henrique, disse-lhe a velha, mas, tende fé na Virgem Santíssima que D. Helena ha de aparecer.

— Helena, exclamou Henrique como se despertara nesse momento.

— Sim, D. Helena vive, e sei...

— Que sabeis?

— Falai baixinho pois estamos na casa de Deus Nosso Senhor.

— Dizei e dar-vos-ei esta bolsa cheia de moedas, e apresentou à velha uma bolsa que tirou da véstia,

— Guardai o vosso dinheiro; sabe Deus Nosso Senhor as minhas necessidades, mas também mão ignora que o interesse me não trouxe aqui.

— Perdão se vos ofendi.

— Não; conheço o vosso bom coração, igual ao da vossa mãe que Deus a conserve em sua eterna glória, mas acompanhai-me; a casa de Nosso Senhor Jesus Cristo é para a oração e não para confidências.

Henrique seguiu a velha sem pronunciar nem mais uma palavra.

Erguia-se a ermida de S. José na rua da Misericórdia próxima ao mar, cujas on­das vinham quebrar-se junto às paredes da capela-mor.

Levantara esse santuário, antes do ano 1633, o ermitão Egas Muniz, homem pobre que, levado do zelo religioso e ajudado pelos fiéis, começara a obra com paredes de pedra e cal, mas por escassearem-lhe os recursos fizera as outras paredes de taipa, e erguera ao lado esquerdo um cam­panário de madeira, do qual recebeu a viela, que ali começava e ia ter ao, mar o nome de beco da Torre. Nesse beco residia a velha que interrompera a oração de Henrique.

Chegando defronte de uma casa baixa, antiga, cujo aspecto patenteava a miséria, ínfima, que ali havia, paro a velha, e bateu na rótula carunchosa e pintada de vermelho, uma escrava veio abri-la; a dona da casa e Henrique entraram em uma sala cujo pavimento era chão e o teto de telha vã. Havia neste tugúrio uma banca tosca, dois escabelos rasos, e uma mesa onde achava-se um oratório alumiado por um can­deeiro de azeite. Apresentando um dos escabelos a Henrique sentou-se a velha na banca.

Chamava-se essa mulher Escolástica, e vivia de esmolas; era alta de estatura, magra, com a pele do rosto rugosa e com essa cor baça e  pálida que a velhice im­prime à epiderme.

Saía ao amanhecer de casa a tirar esmolas, e ia depois para a ermida de S. José ou para outra qualquer igreja, onde passava o dia quase todo desunhando em um grande rosário e indagando o que acontecia.

Saía  como a mãe Brígida curar de fei­tiços e maus olhados, e para isso tinha grande cópia de figas, bentinhos, meias luas, signos de Salomão, palmas bentas, alecrim, arruda, e medidas de todos os santos e santas do céu.

Eram naqueles tempos descrença e devoção veneradas pelo povo essas velhas beatas, que passavam os dias nas igrejas a entoar ladainhas, a assistir às vias-sacras, a rezar o terço, a benzer, curar de achaques novos e velhos, afastar o espírito mau dos corpos dos viventes, exorcizar, livrar as crianças de maus olhados e a ensinar orações e fornecer figas e breves para livrar os mor­tais de males presentes e futuros, terres­tres e celestes.

Eram consultadas por todos; quando qualquer sentia-se doente, receava.se do espírito mau no corpo, experimentava algum transtorno, temia-se de alguma desgraça, via fugir de casa o escravo ou desaparecer qualquer objeto corria ao albergue das velhas de mantilha, e em troca de alguns vinténs recebia o breve, a figa, ou aprendia alguma oração, remédios tidos sempre por seguros e infalíveis.

A tia Escolástica entendia de tudo; era a melhor mezinheira e rezadora da cidade; não havia achaque por mais inveterado que resistisse aos seus breves e figas infalíveis contra as tribulações, enfermidades e os espíritos malignos. Além disso ninguém fazia melhor um crivo, nem fiava com mais per­feição, e eram tão vastos seus conhecimentos que por eles recebera do povo a alcunha de  Sete Ciências.

Sentada defronte de Henrique rompeu a velha o silêncio, dizendo:

— Sei onde está a senhora D. Helena.

— Dizei e dar-vos-ei o que quiserdes. De novo Henrique apresentou à velha a bolsa cheia de dobras de ouro.

— Guardai o vosso dinheiro, redargüiu Escolástica, sou pobre, mas rejeito a vossa esmola. Os pobres também podem fazer favores, senhor Henrique.

— Perdão, tia Escolástica.

— Tranqüilizai-vos; sei as dores que pesam sobre o vosso coração, porque tam­bém já fui moça, amei, experimentei as paixões e sofri, mas a santíssima mãe de Jesus me perdoe e a quem está lá no céu. Estou velha; a mocidade levou-me tudo, beleza, amor, felicidades e esperanças; hoje só peço a Deus me conceda mais alguns dias de vida para orar por minha alma pecadora e pelas almas de outros peca­dores como eu. Sou pobre e muitas vezes tendes deitado esmolas nestas mãos mir­radas pela pobreza e pelos anos; não foi pois por soberba que rejeitei o vosso dinhei­ro. Nossa Senhora nos ouve. Mas a velha Escolástica deseja prestar um serviço ao filho da sua antiga devota.

— Ah que santa mulher era a vossa mãe, a minha melhor amiga e mais desvelada protetora. Quando batia à porta da sua casa, ou encontrando-a estendia-lhe a mão via, cair entre os meus dedos uma moeda; quando ouvia-me alguma queixa, percebia-me algum gemido, ou sentia uma lágrima banhar-me a face, apertava-me a mão e nela deixava-me uma esmola; quando o frio enregelava-me os membros, ou prostravam-me a fadiga, a moléstia, ou a miséria via entrar nesta casa em que estamos uma mulher ou um anjo, e deitar naquela mesa, junto àquela imagem, uma esmola, e essa mulher ou esse anjo era a vossa mãe. Coitada, assisti ao seu último suspiro, e nesse momento de tanta dor para ela e para mim pediu-me repetisse em minhas orações o seu nome, prometi-lhe, e a Virgem Santís­sima sabe se tenho cumprido a minha pro­messa.

— Minha mãe.

— Perdoai se a pobre velha amargura o vosso coração,  cujo sofrimento é já tão profundo, mas devia declarar-vos o motivo pelo qual não recebi o vosso dinheiro. Em gratidão à memória de vossa mãe desejo prestar-vos um serviço, e não queria que julgásseis ter sido arrastada pelo interesse.

— Obrigado, tia Escolástica; mas onde está Helena?

— Direi com uma condição.

— Qual?

— De jurardes antes não ofender ao homem em cuja casa encontrardes a D. Helena;  nem dar-vos a conhecer senão  a vossa noiva.     

— Ah, não vingar-me desse homem, pou­par-lhe a vida, deixá-lo no gozo da felici­dade para, escarnecendo de mim, dizer-me em face: És um covarde, roubei-te a honra e felicidade e não ousaste tomar vingança. Ah é impossível.

Não exijo o esquecimento da vingança, peço só que, penetrando guiado por.mim na casa em que estiver a filha de Bárbara, se não levante o vosso braço contra ninguém.

— Mas, verei e falarei a Helena.

— Sim.

— Pois juro, exclamou Henrique levan­tando-se e também a velha Escolástica.

— Posso agora revelar-vos o meu segre­do; redargüiu a velha sentando-se. A vossa noiva está em casa de Lourenço de Mendonça.

Causaram estas palavras profunda sensa­ção em Henrique, que não só por sua edu­cação religiosa tributava consideração e res­peito a Lourenço, como o não julgara capaz de ação tão ignóbil. Quis crer a princí­pio que a velha iludira-o, mas a exigên­cia do juramento mostrava-lhe a gravidade e certeza da revelação; todavia animou-se em perguntar.

E tendes certeza disso, tia Escolástica?

— Sim, meu filho, assim como de morrer nesta terra em que nasci na paz e religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Ah, não deveria ter feito juramento, murmurou Henrique no ardor do ciúme e da vingança.

— Mas, meu filho, não desejais ver a vossa noiva?

— E foi por amor de vê-la que fiz esse sacrifício à minha honra; o coração obrigou-me a jurar, e cumprirei o meu voto, mas minha vindita será tanto mais terrível quanto mais tarde for satisfeita. E como penetrarei em casa de Lourenço?

— Escutai-me. Vou todos os dias à casa do prelado levar-lhe notícia do que ocorre na cidade, recebendo em recompensa desse serviço, que executo conto posso, uma pequena esmola. Vede que grata devo ser a Lourenço e não o guia do inimigo à sua casa, eis porque exigi o juramento. Sois quase da minha altura e envolto nesta mantilha, com este véu...

— Percebo, e quando costumais a vi­sitar a casa do prelado?

— À hora das Trindades.

— Pois hoje estarei aqui pouco antes.

— E vestireis a minha roupa, e depois do disfarce ireis à casa de Lourenço onde entro sem bater, e sem anunciar-me. Hoje àquela hora ele não está em casa, e assim...

— Falarei mais livremente com Helena, e pedir-lhe-ei me conte tudo; mas se Lou­renço chegar?

— Cumprimentai-o, e se perguntar-vos se tendes que dar qualquer notícia, dizei-lhe não, meu senhor. Assim procedo às vezes poucas é certo.

— Obrigado, tia Escolástica, e até a hora das Trindades.

— Mas jurai pela imagem que vedes naquele oratório, cumprir o que dissestes.

Henrique e a velha levantaram-se, e o moço curvando um joelho, e volvendo os olhos para o oratório disse em som grave e pausado.

— Juro.

E logo depois despediu-se da tia Esco­lástica, trêmulo e comovido.

 

IDÍLIO DE AMOR

Pouco antes de anunciar o sino a hora das Trindades bateu Henrique à porta da casa da tia Escolástica que já o esperava; recebendo-o com agrado indicou-lhe o quarto onde estava a roupa do disfarce, e no fim de alguns instantes apareceu o moço transformado em mulher de saia e mantilha.

Quem o visse vestido de saia de sarja preta envolto em uma capa de baeta da mesma cor, que só deixava exposto o nariz pequeno e afilado, tendo o corpo acurvado e em uma das mãos um comprido e grosso rosário, o tomaria pela tia Escolástica, ou por outra qualquer mulher de mantilha, pois muitas havia na cidade.

A tia Escolástica abaixou um pouco o grande pente que suspendia a mantilha, alisou uma ou outra dobra da saia, e, depois de encarar o moço disse satisfeita:

— Nossa Senhora me valha; eu mesma o tomaria por mim.

Chegando à casa do prelado levantou Henrique o ferrolho da rótula, abriu-a e seguindo pelo corredor viu-se em uma sala no extremo da casa, alumiada pela luz frouxa e amortecida de um candeeiro de azeite.

— Deus Nosso Senhor seja nesta casa, disse o moço imitando a voz da velha Escolástica.

— Entrai, retorquiu uma voz fraca e difícil de ouvir-se

A suposta velha entrou, e sentou-se em uma cadeira de pau santo junto à um estrado de madeira, onde estava sentada uma moça..

Henrique reconheceu logo a sua noiva.

— Como passou o dia, minha boa senhora, perguntou o moço.

— Como passam os infelizes; a gemer e a chorar.

Ao ouvir estas palavras o moço estreme­ceu, quis dar-se a conhecer porém conteve-se

— O senhor D. Lourenço está em casa?

— Não, tia Escolástica, respondeu He­lena.

Erguendo-se e aproximando-se de sua noiva viu-lhe Henrique o rosto pálido e desfigurado, os olhos abatidos e inflamados, a dor e tristeza do semblante, e com­preendeu o sofrimento que comprimia-lhe o coração; pesaroso quis patentear-se à sua amada, mas podia Lourenço chegar, e ainda lhe não referira Helena como haviam-na arrebatado do lado de sua mãe, e como se achava naquela casa; conteve-se pois, e sentou-se, ou antes deixou-se cair sentado na cadeira.

— Ah, tia Escolástica, disse Helena en­xugando as lágrimas que ressumavam-lhe nos olhos, tenho sofrido muito, cada dia é para mim um martírio, e cada hora me traz um novo tormento; estou desanimada, e me julgo abandonada de todos, até dessa religião pura e santa que minha mãe ensi­nou-me desde o berço, das orações que desde menina ajudava-me a repetir, e dessa imagem da Virgem, cujo nicho todos os dias recebia as flores mais lindas e mimosas colhidas por mim, tudo abandonou-me tia Escolástica, tudo.

— Não faleis assim; Deus Nosso Senhor não desampara a ninguém, é pai de mise­ricórdia, pai dos infelizes, e talvez breve...

— Que dizeis.

Dessa vez Henrique quase afastou a capa, em que se envolvia, para revelar-se à sua amada, mas, detendo-se, acrescentou:

— Talvez breve terminem os vossos sofrimentos..

— Sim, com a morte; mas os infelizes custam tanto a morrer.

Helena chorava amargamente.

— Tranqüilizai-vos e tende fé na Pro­vidência; mas dizei-me como viestes para esta casa. Perdoai-me, faço-vos essa pergun­ta porque vossa sorte interessa-me.

— Conheço quanto é bom o vosso co­ração. Escutai-me. Era uma sexta feira, e voltava eu da ermida, onde assistira ao terço, orara por meu pai e pedira a Virgem Nossa Senhora me amparasse e protegesse; a noite estava escura e o céu anunciava chuva, pelo que, deixando todos atrás de mim, corri adiante, alegre e risonha, com muita esperança no coração e na alma muita fé, por haver dirigido ao céu súplicas fervorosas, mas repentinamente vi-me detida por dois vultos, dei um grito, eles taparam-me a boca, ataram-me os braços e carregaram-me.

— Malvados.

— Julguei-me arrebatada por demônios o; céu trovejava e a chuva começava a regar a terra. Depois de algum tempo pararam os que me conduziam, e, colocando-me em uma cadeirinha, ouvi dizer.

— Para a casa do ouvidor. Ao sair da cadeirinha fui arrastada para um aposento onde não havia luz; tiraram-me a mordaça e os atilhos dos braços; quis gritar, mas era inútil; quem viria socorrer-me àquela hora; além do que o vento, a chuva e os trovões abafaram a minha voz. Ajoelhei-me e comecei a orar. No fim de alguns instantes vi entrar no meu aposento um indivíduo trazendo um castiçal de prata com vela. Reconheci-o, era o ouvidor. Falou-me com agrado e ternura, declarou-me que arrastado pela paixão arrebatara-me da companhia de minha mãe para esposar- me e tornar-me feliz, e a ele também.

— Hipócrita!

— Eu chorava amargamente e nem sa­bia que responder-lhe; continuou ele a consolar-me, e declarou que breve seria o nosso casamento; então o amor que guar­do em meu peito como um culto sagrado, deu-me alento e emprestou-me expressões; disse-lhe que jamais seria sua esposa, por que amava a outro homem a quem dedicara meu coração, minha alma e minha vida.

Produziram estas palavras viva impressão em Henrique que sentia um sobressalto, e quase caiu nos braços de sua noiva.

— O ouvidor retirou-se, prosseguiu He­lena, mas no dia seguinte tornou ao meu quarto, e quis convencer-me que era inútil a minha resistência, que se o esposasse teria posição na sociedade, mas se o não fizesse, macularia a minha honra, seria re­pelida pelo mundo e por meu noivo que me não receberia mais por esposa; mas res­pondi-lhe que suportaria tudo, que se o mundo me repelisse o claustro abriria-me as portas, se meu noivo me desprezasse o céu amparar-me-ia. Nesse dia e no se­guinte não o vi mais, o que tranqüilizou-me por ver que me deixavam em meu retiro; mas ao anoitecer vi entrar no aposento em que estava uma mulher, a mesma que me trouxera o alimento nos dias antecedentes, e a quem referira tudo que me acontecera; era a criada do ouvidor, Ana das Mer­cês, pobre mulher que mais de uma vez procurara consolar-me. Ela disse-me:

— Deveis partir já?

— Para onde? perguntei-lhe eu.

Não sei, esta casa vai ser cercada, acrescentou ela, veio ordem do governador geral para prender-se o ouvidor que já re­fugiou-se.

— E vós, interrompi-lhe.

— Vou para a casa de uma conhecida próximo a fazenda dos jesuítas, no Engenho-Velho.

— Irei convosco, disse-lhe eu.

— Não é possível.

— Então ficarei, aqui, redargüi-lhe.

— Também não, a justiça de el-rei nosso senhor vai cercar esta casa, e que­reis tornar pública aos esbirros e granadeiros a vossa desgraça?

— Eu estava perplexa, não sabia o que fazer. Nisto bateram à porta, Ana chegou à janela para ver quem era, voltando-se disse-me:

— É a cadeirinha, parti talvez a felici­dade vos acompanhe, acrescentou ela.

— Que fazer; a ficar expor-me-ia aos olhos curiosos dos esbirros da justiça que iam cercar a casa de Paulo Pereira; resolvi pois entregar-me ao destino, e, despedindo-me de Ana das Mercês,  entrei na liteira som saber para onde ia.

— Comecei a orar; os que conduziam-me pararam em frente à porta desta casa, en­trei e vi diante de mim o prelado, fiquei pálida e trêmula: reconhecendo a minha emoção disse-me ele,

— Sossegai, vos não desejo fazer mal, e mais generoso que vos quero pagar o vosso ódio para comigo elevando-vos na socieda­de, dando-vos por esposo o ouvidor.

— Nunca, exclamei indignada.

— Acalmai-vos, e depois resolvereis me­lhor, acrescentou ele sorrindo e retirou-se.

— Lancei-lhe um olhar de desprezo e debulhada em pranto sentei-me ou antes dei­xei-me cair em uma cadeira. Desde en­tão maior tem sido o meu sofrimento, por que se desprezo a Paulo Pereira odeio a Lourenço, o autor de meus males e infor­túnios, que afastou-me de minha mãe e de meu noivo, pois acredito que foi ele quem arrastou o ouvidor, quem atiçou-lhe a cobiça para levá-lo a praticar o que com­eteu. Helena chorava.

— E ainda amais a esse moço que devia ser o vosso noivo, perguntou a fingida velha com a voz assaz trêmula.

— Sim, como o amei no primeiro dia em que o vi, e como jurei amá-lo sempre. Não sabeis, tia Escolástica, que o primeiro amor é uma legenda que se grava no co­ração, é um sentimento que se identifica com a alma; se na mocidade o vosso co­ração amou ele já vos terá dito isso, não é assim!

— Ah, exclamou Henrique afastando a mantilha em que se envolvia, eu também vos amo.

Helena deu um grito agudíssimo e ficou como petrificada, mas serenado o abalo que experimentara, redargüiu levantando-se:

— Vós aqui, como pudestes descobrir-me, fugi, Lourenço pode vir e...

— Não, retorquiu Henrique ajoelhando-se e cobrindo de beijos as mãos de Helena, daqui sairemos juntos para ir vivermos longe, bem longe de todos. Ah, não sabeis que sofrimentos tem traspassado meu coração, e que dores magoado a minha alma. Eu que vos consagrara minha vida, que sonhara convosco todas as venturas, que em vós de­positara todas as esperanças de uma feli­cidade futura senti dores profundas, sorvi a tragos o cálix da amargura quando fos­tes vítima da desgraça que vos arrebatou a vossa mãe, e por momentos quis crer-vos infiel.

— Fostes injusto, Henrique, não soubes­tes ler no coração da mulher que jurou amar-vos sempre, que insensível a quanto lhe não falava desse amor vivia por vós, que fez do seu amor a esperança e conso­lação da sua vida, e em seus dias de in­fortúnio, foi ele o escudo da sua honra e o manto da sua defesa.

— É certo, Helena, fui injusto e mau, mas aqui estou a vossos pés suplicando­-vos perdão e entregando-vos minha alma; vinde, partamos e para nós se abrirá um céu de esperanças e venturas.

— Partamos Henrique, exclamou Helena, aproximando-se do seu noivo, vamos longe de todos gozar as delícias inefáveis de um amor, alma de dois corações e vida de duas almas.

— Sim, mas...

— Mas se Lourenço chegar o repelireis, não é assim; não deixar-me-eis entregue a um homem que abomino sobre todos!

— Ah, e o juramento que fiz de não ofen­dê-lo, de não dar-me a conhecer para não per­der a infeliz velha, que facilitou-me a entra­da nesta casa!

— Pois bem, partamos já enquanto ele não chega, assim cumprireis o vosso jura­mento. Mas quando os dois jovens come­çavam a dar os primeiros passos no corre­dor sentiram abrir a rótula; recuaram ambos, e quase ao mesmo tempo disseram em voz sentida e abafada..

— É ele!

Henrique envolveu-se apressadamente na mantilha, sentou-se, tomou entre os dedos o rosário, e fingiu balbuciar uma oração. Helena sentou-se quase desfalecida no estrado.

Ao entrar na sala disse Lourenço de Men­donça.

— Deus seja convosco.

— Amém, e também com vossa ca­ridade, redargüiu Henrique fazendo uma li­geira cortesia.

— Como vos achais, perguntou ele a Helena.

A moça não respondeu. Voltando-se para a velha acrescentou Lourenço.

— Que há de novo?

— Nada, meu senhor, retorquiu Henri­que imitando a voz da velha Escolástica.

Era imensa a ansiedade, o desespero, as paixões que tumultuavam-lhe no coração; desejava levantar-se, apresentar-se diante de Lourenço, esmagá-lo e arrebatar e libertar sua noiva, mas lembrava-se do seu juramen­to; ardendo em ódio, pletórico de vingança ansiava por lançar-se sobre esse homem, autor de seus infortúnios, e de sua noiva, mas detinha-o o juramento feito; mais de uma vez tentou erguer-se e precipitar-se sobre Lourenço, porém diante de si via uma velha lívida e trêmula pedindo-lhe que a poupasse, e repetindo-lhe com voz surda e rouca o seu juramento. Era a luta do cora­ção e da razão, do amor e da fé e essa luta produziu-lhe um tremor nervoso em todo o corpo.

Reconhecendo o abalo, a comoção que experimentava seu amante, vendo-lhe os olhos chamejarem, e cobrir-lhe o rosto a palidez da morte receou Helena que ele pudesse comprometer a velha Escolástica, e para animá-lo a cumprir o que jurara, levan­tou-se e disse-lhe em voz mui baixa.

— Lembrai-vos do vosso juramento.

Lourenço retirara-se para o aposento vi­zinho.

Henrique soltou um suspiro profundo e agudo, que repercutiu no coração de sua noi­va, e levantando-se disse-lhe em voz abafa­da e cortada de lágrimas.

Tende esperança e fé em Deus.

E saiu rapidamente.

Helena caiu desfalecida e debulhada em pranto.

 

A CRUZ

Retirou Henrique da casa do prelado com o coração opresso de dor, e com o ardente desejo de vingar-se; ao princípio arrepen­deu-se de haver cumprido o juramento, mas, ao referir a Escolástica como procedera, quanto sofrera, que luta dolorosa sustentara seu coração, e vendo as lágrimas de gratidão lavarem o rosto da pobre velha, suas mãos trêmulas abençoarem-no em nome de sua mãe, sentiu na alma íntima consolação, consolação que se entorna no peito quando sabemos que praticamos o dever.

Helena ficou mergulhada na dor e no desespero vendo sair o seu noivo sem poder acompanhá-lo, mas, começando a orar para que nada lhe acontecesse, e o céu o amparasse, achou em suas orações suave conforto; Henrique estava vivo e ainda a amava, pensou ela, e, se não lutara para afastá-la de seus inimigos, fora por cumprir o dever de bom cristão, por não ser perjuro, e réprobo perante Deus.

Atando as mãos à fronte, e gemendo um suspiro ajoelhou-se diante da imagem de Cristo pregada na parede, junto ao estra­do, e orou com fervor; e enquanto caíram-­lhe as lágrimas pelo rosto lívido e desfigu­rado, sentia renascer-lhe na alma a esperanças, e nas próprias lágrimas um bálsamo de alívio para seu coração aflito; mas repen­tinamente lembrou-se de sua mãe, e o desespero da dor veio de novo abater esse coração já tão carregado de pesares.

Também palpitava agitado por dor mui profunda o coração de Bárbara.

Soubera que infrutífera fora a diligência ordenada pelo governador à casa do ouvidor. Paulo Pereira; Helena não havia sido encontrada ali, e dela lhe não davam notícia.

Repetia as suas orações, multiplicava as promessas, visitava as igrejas, fazia peni­tências, acompanhava o terço e as procis­sões, e pedia continuamente a infeliz mãe a proteção do céu para encontrar sua filha, que o mundo, os homens haviam-lhe arre­batado. E quem a visse com o rosto pálido, os olhos avermelhados do pranto, os ca­belos em desalinho, os pés descalços, andando vagarosamente e com pouca fir­meza, repetindo orações em voz. alta no meio do povo, que rezava o terço ou seguia as procissões de penitência, diria: É uma louca. E era uma desgraçada mãe, louca de amor por sua filha, em cuja procura an­dava dia e noite pedindo-a ao céu e aos homens.

Não se sabe como, se avisado pelos jesuí­tas, se pelo prelado tivera Paulo Pereira notícia do que ordenara contra ele a su­prema autoridade da capitania, e, para facilitar a sua fuga, enviara a filha de Bár­bara para a casa de Lourenço por julgá-la segura ali, acreditando ter o prelado des­interessadamente e só por sincera amizade lhe aconselhado o rapto dessa moça, a qual mais tarde esposaria; além do que, se quisessem acusá-lo de raptor podia ele inocentar-se, sendo a moça encontrada não em sua casa, e sim na do administra­dor da igreja fluminense.

Paulo Pereira era homens mau e egoísta, e se não receava de sacrificar ao próprio amigo quando dele riais necessitava; era o tipo perfeito do apóstolo maldito do Ho­mem Deus.

Lourenço recebera em sua casa a filha de Bárbara risonho e satisfeito; podia sa­crificá-la a seus caprichos, pensara ele, ou se lhe encontrasse obstinada resistência apressaria, para vingar-se, o casamento com o ouvidor.

Já dissemos que entremetiam-se os pre­lados em negócios estranhos à sua alçada, como visitando os navios vindos do reino, exigindo dos comandantes certas propinas, que se não eram pagas, arrecadavam alguns gêneros defraudando a real fazenda, e ex­torquindo reditos pertencentes a outras autoridades. Tão violento proceder tor­nara-os malquistos, e originara uma luta constante entre o poder eclesiástico e o civil, sentindo o povo ver nos ministros do altar tanta ambição e interesse pelas cousas da terra, principalmente nesses tempos de fé em que, parecendo todos viverem somen­te para a igreja, estranhavam muito terem os eclesiásticos os olhos mais para o mun­do que para o céu.

Imitando o procedimento irregular dos seus antecessores, não contente com as suas atribuições, extorquiu Lourenço de Mendonça outras, e desse modo continuou a luta en­tre o poder civil e eclesiástico, que produziu funestos resultados, cooperando para a des­moralização pública e para a perda do pres­tígio que deve cercar aos que governam; e principalmente o clero, cuja missão é educar e moralizar o povo.

Chegando a frota do reino dirigiu-se Lourenço a bordo, e, depois do interrogatório usual, no qual indagou quantos eram os navios, o seu carregamento, o número dos passageiros e da marinhagem, exigiu o pa­gamento do imposto que dizia pertencer-lhe, e recusando-se o comandante satis­fazê-lo, ofendeu-se o prelado, excomun­gou-o, e por vingar-se mandou arrecadar para sua casa um barril de pólvora encon­trado a bordo, declarando estar autorizado à apreender a pólvora não consignada à real fazenda.

Soube o governador do procedimento irregular de Lourenço de Mendonça; intimou-lhe mandasse entregar a pólvora mas não obedeceu-lhe o prelado.

Receavam os governadores empregar vio­lência contra os prelados, entrar em luta aberta com eles por serem seus proteto­res os jesuítas, cuja influência moral e política pesava sensivelmente sobre os ma­gistrados e o povo. Logo que viam-se ameaçados pelo poder secular refugiavam-se os prelados no colégio dos padres de Jesus, e ali encontravam asilo seguro e proteção decidida; travava-se então a luta entre a companhia e o poder secular, e neste caso não era difícil adivinhar quem alcançaria a vitória.

Sabia Rodrigo de Miranda que dispensavam os jesuítas muita proteção a Lourenço de Mendonça, e por isso não quis arcar com ele; além do que, se Lourenço não era digno soldado da religião de Cristo, sabia pela sua hipocrisia enganar e iludir o povo; mostrava-se crente e religioso, acompanhava as procissões de penitência, assistia às festividades da igreja, prestava-se às confissões, consolava os moribundos, mostrava-se complacente com a fraqueza do próximo, distribuía contínuas indulgências, e em público ninguém era mais humilde, nem patenteava mais fé que ele. Se não ultrapassasse os limites da sua jurisdição, e se não estivessem no domínio público certos fatos pouco decorosos, que lhe eram atribuídos, seria muito respeitado e venerado do povo; e apesar do que corria de mau sobre sua reputação, ninguém ousava murmurar publicamente contra ele, e, logo que se divulgava qualquer fato contra a moralidade desse administrador eclesiás­tico, irritava-se o povo, clamava que era calunia, ainda que ocultamente cada um fazia juízo mais ou menos temerário.

Tudo isso detinha o governador a decla­rar-se em luta aberta com Lourenço, mas guardando-lhe ódio e sabendo que irregular era o seu proceder, dissimulou Rodrigo de Miranda, resoluto a esperar que algum ato inconveniente do prelado excitasse o povo, e desse-lhe ocasião de vingar-se.

Na mesma noite,  em que Henrique en­trara disfarçado em casa de Lourenço, deu- se ali um acontecimento fatal.

Soaram nove horas no sino do colégio dos jesuítas; a cidade repousava, as ruas estavam desertas e só eram percorridas pelos quadrilheiros, homens de capote e espada comprida encarregados de guardar o sossego público. Parecia que todos já dormiam pois era profundo e completo o silêncio, e apenas ouvia-se o piar triste e agoureiro de alguma coruja em torre de igreja ou o latir ferino e continuado dos cães em diversas ruas; mas repentinamente veio des­pertar a população inteira um ruído estron­doso, um estampido como o da explosão de uma mina; muitos habitantes deixaram suas casas, e ao chegarem à rua, viram um clarão que alumiava a cidade; os quadri­lheiros começaram a tocar matraca para anunciarem o incêndio; o sino dos padres da companhia tocou a rebate, o povo correu sobressaltado, e cada um tratou de indagar onde se dava o sinistro.

— É na casa do prelado; dizia um qua­drilheiro correndo.

— S. Marçal nos valha, acudia um ve­lho envolvendo-se em seu capote, e diri­gindo-se ao lugar onde havia o incêndio.

De feito era a casa do prelado que ardia, o clarão das labaredas anunciou mais de­pressa que ninguém onde era o sinistro.

A escuridade da noite, intensidade das chamas, a coluna de fumo toldando os ares, o estalido das madeiras carbonizadas, o calor da atmosfera e a idéia de estarem naquelas labaredas um ou mais indivíduos assustaram e comoveram o povo; mas breve correu a notícia de que o prelado achava-se no colégio dos jesuítas, e que seus escra­vos haviam conseguido salvar-se, por ter o incêndio começo na sala da frente, onde estava o barril da pólvora, cuja explosão originara o fogo.

Toda a casa ardeu, e quando estava mais intenso o incêndio, quando mais espesso era o fumo, mais vivas e elevadas as chamas, viu-se um indivíduo, envolto em uma capa negra, romper por entre as labaredas, e desaparecer na imensa nuvem de fogo e fumo: o povo ficou absorto e consterna­do, houve uma sensação profunda traduzida por um silêncio de morte e depois por uma exclamação geral.

— Coitado!

Mas um instante depois reapareceu o indivíduo trazendo erguido em uma das mãos um pau que ardia; era uma cruz.

Voltava de ouvir a um moribundo de confissão, quando o padre João de Almeida sentiu-se sobressaltado pelo estampido, que despertou o povo da cidade, e logo depois viu as labaredas que devoravam a casa do prelado; aproximou-se do lugar, onde se dava tão triste cena, e recordando-se de que havia uma cruz dependurada na parede junto à porta da entrada da casa de Lou­renço, precipitou-se às chamas para sal­var o emblema do Gólgota, e ao sair das labaredas conduzindo a cruz que ar­dia, o povo reconheceu-o, cercou-o, saudou-o com aplauso, beijou-lhe o hábito, e pe­diu-lhe sua benção.

Esse ato de abnegação, esse sacrifício pela fé e religião do Crucificado, e a cir­cunstância de haver o padre João de Almeida escapado são e salvo das chamas fizeram o povo crer firmemente que esse jesuíta era um santo.

 

O CONCILIÁBULO

Despertando os cidadãos amedrontados pelo estampido da explosão, que se dera em casa do prelado, invadiram as ruas, e correram ao lugar do sinistro onde presenciaram a cena sempre horrorosa da destruição rápida e terrível produzida pela pólvora e pelo fogo, e o ato de abnegação e fé praticado pelo je­suíta João de Almeida.

Extensos muros separavam a casa do pre­lado dos prédios vizinhos, que por isso nada sofreram, mas caíram lanços inteiros desses muros, e um cercado de madeira, que corria em frente à casa de Lourenço; e dessa casa só restavam no dia seguinte quatro paredes enegrecidas, calcinadas e fendidas pelo fogo, guardando um montão de cinzas, das quais saiam labaredas.

Não se pôde descobrir a causa do incên­dio, e acreditou-se geralmente ter-se origina­do de algum descuido ou imprudência; sa­bia-se que Lourenço mandara recolher à sua casa um barril de pólvora encontrado a bor­do, e, talvez aproximando os escravos impre­videntemente alguma luz à pólvora, se ateasse o incêndio.

Só no dia seguinte teve Henrique notícia desse fatal acontecimento, e, correndo imediatamente ao lugar em que se dera o in­cêndio, começou a perguntar a todos se Hele­na se salvara.

— Salvou-se, dizei-me, clamava ele, inter­rogando os que passavam, ou paravam para contemplar as ruínas.

— Quem, senhor, redargüiam-lhe.

— D. Helena, a filha da infeliz viúva de José da Cruz, salvou-se ou pereceu!

Diziam-lhe uns que não sabiam, outros lhe não respondiam,e outros não compreenden­do a pergunta por acreditarem ter Helena desaparecido com o ouvidor, voltavam-lhe as costas, e diziam entre dentes

— Está louco.

Entretanto não cessava o infeliz de repetir a mesma pergunta, já tantas vezes sem res­posta, o que aumentava seu martírio e desespero.

Corria, queria precipitar-se nos carvões ardentes, nas cinzas que chamejavam, in­dagava de todos, suplicava-lhes urna respos­ta à sua pergunta, uma notícia da sua desdi­tosa noiva, e assim passou Henrique muitas horas nesse desespero e tormento; mas, os que encaravam para as ruínas do incêndio, não compreendendo a angústia do pobre moço, lhe não respondiam; e entretanto tal­vez no meio das cinzas ainda quentes, dos carvões que crepitavam se estivesse consu­mindo o cadáver dessa infeliz moça, procu­rada com tanto anelo e sofreguidão pelo seu noivo.

Não podia Henrique explicar a causa do fatal incidente ocorrido na casa do prelado; teria Helena ateado o fogo para perecer nas chamas ocultando ao mundo sua desgraça; seria Lourenço o autor desse crime para es­conder a todos o que praticara, e vingar-se da repulsa de Helena, ou seria o incêndio uma fatalidade!

Pesavam esses pensamentos no ânimo de Henrique, e amargamente torturavam-lhe o coração.

O dia ia adiantado, o sol já havia trans­posto parte do círculo celeste, os clérigos ha­viam celebrado suas missas e os cônegos, havendo concluído a reza do coro, desciam a ladeira do colégio, acompanhados dos devo­tos que se não dispersavam sem receberem a benção dos sacerdotes, graça esta julgada naqueles bons tempos mui profícua e pro­veitosa.

Tendo o padre Manuel da Nóbrega decido a ladeira, seguiu com o licenciado Matias das Ventosas pela rua Detrás do Carmo, tomou a rua de Aleixo Manuel, e dirigiu-se à rua Di­reita do Carmo para ver as ruínas da casa do prelado. Ali encontraram ele e o licenciado o filho de Crispim da Cunha, que fez-lhes a pergunta já muitas vezes repetida.

— Salvou-se ou pereceu a filha de Bár­bara!

O padre e o licenciado encararam o moço, e, trocando olhares entre si, não responderam por julgarem que as desgraças do amor haviam abalado as faculdades do filho de Crispim, mas a convicção com que Henrique falava, a circunspecção em sua frase, e a propriedade em seus modos, excitaram-lhes a atenção, e começaram a suspeitar houvesse alguma revelação importante no que o moço dizia, mas não ousarão fazer-lhe nenhuma pergunta; compreendendo o embaraço dos que ouviam-no exclamou Henrique:

— Não me julgueis doido, graças a Deus Nosso Senhor conservo o uso da razão, que me dá coragem para superar as dores da alma; os espíritos do homem que crê piamente na Providência não sucumbem; e eu creio, senhores.

Relatou como conseguira penetrar em casa do prelado, o juramento que fizera, o que ouvira e dissera a Helena.

A narração pausada, certa, convincente e seguida do infeliz moço impressionou ao pa­dre Nóbrega e ao licenciado que, inimigos do prelado, resolveram aproveitar-se do fato de ter Lourenço ocultado em sua casa a filha de Bárbara para vingarem-se dele.

Logo que Henrique acabou de falar disseram Nóbrega e o licenciado.

— Devemos vingar esse crime.

— Sim, e eu encarregar-me-ei do pla­no da vingança, cujo instrumento e algoz quero ser, bradou Henrique aceso em ira.

— Revelemos o crime ao senhor gover­nador; retorquiu o padre Nóbrega.

— A justiça de el-rei nosso senhor é de­morada, e o réu pode fugir, redargüiu Henrique.

— Pois seja hoje mesmo assassinado, gritou Matias das Ventosas.

— Não, acrescentou Henrique, não dese­jo dar-lhe morte pronta e rápida, mas dolorosa e atormentada. Lembro-me de que o prelado presta-se de noite ao serviço da confissão; podemos mandar chamá-lo, pren­dê-lo e lançá-lo ao mar...

— Eh lá que sim, murmurou o licen­ciado, levando a mão aos cabelos longos e anelados.

— Mas se Lourenço souber nadar, perguntou Manuel da Nóbrega.

— Amarra-se uma pedra aos pés e os tu­barões façam o resto, redargüiu o licenciado sorrindo.

Depois de haver estado algum tempo pensativo, acrescentou Henrique,

— Convidemos o prelado para ouvir de confissão amanhã à noite, a um mori­bundo, e conduzindo-o a uma das praias da cidade atemos-lhe mãos e pés, e deitando-o em um batel desaparelhado, o conduzamos até a barra, onde ficará entregue à fúria das ondas e à morte. (7)

— Está muito bem pensado, disse o licenciado.

— E amanhã realizaremos esse plano, não é assim, redargüiu Henrique.

— Se a fortuna nos ajudar, rosnaram o padre e o licenciado.

Quando estes homens separaram-se estava o sol no seu pino, e soava nos sinos das igrejas a primeira badalada do meio dia.

 

A VELHA ESCOLÁSTICA

Profunda sensação causaram em Lourenço o incêndio da sua casa e a morte de He­lena, pois não havendo notícia da pobre moça, acreditou ele ter essa infeliz pere­cido nas chamas; mas se assim aconte­cera, era conveniente, pensara o prelado, ocultar a todos o ter Helena permanecido em sua casa.

Avisado por Lourenço, pelo regedor ou pelos jesuítas soubera Paulo Pereira da ordem de prisão lavrada contra ele pelo governador geral, e tratando de ocultar-­se enviara a filha de Bárbara para a casa de Lourenço, onde ficaria depositada até ele poder apresentar-se e celebrar clandestinamente o seu casamento; então Bárbara que se irritara por a violência pratica­da contra sua filha, havia de reconciliar-se com ele, e dar-lhe pingue dote, o que lhe facilitaria a fuga para lugar mais distante, onde viveria sossegado e tranqüilo.

Mas Helena havia morrido no incêndio, o que, participando-lhe Lourenço, compre­endeu Paulo Pereira que devia homi­ziar-se em lugar mais longe, porque mui irritados ficariam os ânimos contra ele lo­go que se divulgasse o fim desastroso da filha de Bárbara da Silveira. De feito re­tirou para uma das capitanias do interior. Ora excetuando o ouvidor uma única pes­soa sabia o haver Helena estado em casa de Lourenço, era a velha Escolástica, cuja língua não tinha ossos, como dizia o vul­go, quando queria revelar notícias. O ou­vidor não podia comprometê-lo por achar-se homiziado, mas a tia Escolástica, lem­brava-se o prelado, como fazê-la calar, como pedir-lhe segredo, se, quando dava com a língua nos dentes, era um falar de que Deus nos acuda; prometer-lhe esmolas ou indulgências; mas não conviria an­tes afastá-la da cidade, fazê-la desaparecer, porém de que modo!

Recordava-se Lourenço, de que há alguns meses  fora a velha Escolástica chamada para ver a um doente junto ao campo da ci­dade; receitara-lhe as suas beberagens e aplicara-lhe seus feitiços, mas o pobre ho­mem falecera alguns dias depois, e correra então na cidade que havia sido vítima dos cosimentos da velha mezinheira.

Já naqueles tempos, como ainda hoje, aos médicos e cirurgiões, lançava-se aos licenciados e mezinheiras, a culpa da morte dos doentes; para o vulgo é idéia antiquada que lavra o defunto a carta da ignorância do médico assistente.

Lembrando-se desse fato resolveu Lou­renço acusar a velha de feiticeira, e, como comissário do santo ofício, cujo era, or­denou a prisão da pobre mulher.

Trabalhava a velha em um crivo quando bateram-lhe à porta da casa.

— Quem é, perguntou.

— Abri.

— Mas quem bate!

— Abri em nome da santa inquisição, gritaram-lhe de fora!

Assustada e trêmula levantou a velha a aldrava da porta e, abrindo-a, viu entrar dois indivíduos, que disseram-lhe.

— Somos familiares do santo ofício, e viemos prender-vos.

— Pelo que, balbuciou a velha.

— Não sabemos.

— Mas nada tenho feito ou dito contra a religião de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ah, exclamou Escolástica ajoelhando-se e la­vada em lágrimas, tende piedade de mim, não vede como estes cabelos estão brancos, esta pele enrugada, e mirrados estes bra­ços. E a velha apontava para a cabeça, para o rosto e mostrava os braços.

Os familiares conservaram-se em silên­cio.

— Ah me não arrebateis desta casa, on­de tenho vivido mais de quarenta anos, onde tenho escondido as lágrimas da minha miséria, onde vi morrer minha mãe, e tantas vezes tenho orado à Virgem Santíssima. Vede aquela imagem; recebia-a de meu pai moribundo, aquela almofada, aquel­e fuso, era com que minha mãe trabalha­va para comprar o pão que comíamos, aquelas ervas, aquelas figas, aqueles bentinhos, não vede, estão ali, é para re­partir pelos doentes e pelos aflitos. E que­reis prender-me!

— Sim, o ordenou o comissário, redargüiram-lhe os familiares.

— Oh, o comissário não é possível, ele que tanto me protege. Há engano; não é a velha Escolástica que procurais, não é assim! Deixai-me falar ao prelado, quero dizer-lhe que é calúnia se alguma coisa propalaram contra mim. A velha levantou-se.

Agarrando-lhe nos braços disseram-lhe os familiares com voz áspera.

Não, daqui para bordo, vinde fei­ticeira.

Ah, minha mãe, meu pai, balbuciou a velha sufocada pela dor e pelo pranto.

Quase arrastada foi a pobre mulher conduzida para bordo; e no dia seguinte velejava para Lisboa a frota, indo em um dos navios a velha Escolástica.

Vendo os navios levantar as âncoras, e abrir as velas conversavam duas mulheres na praia de Nossa Senhora do Ó; dizia uma del­as.

— Sabeis, comadre, a Sete Ciências foi presa.   

— De ordem de quem, do regedor, per­guntou a outra.

— Não.

— Do governador?

— Também não.

— De el-rei nosso senhor?

—Upa.

— Da inquisição?

— Sim, falai baixinho. Coitada, quantas orações me não ensinou para alívio e per­dão dos meus pecados.

— Quando estava doente não queria outra pessoa para tratar-me. Se não fora o chá de periparoba e erva tostão que ela recei­tou para o filho do Chico Pedro morrera o pobre moço de hidropesia; e a mulher de Leandro Gomes...

— E outros e outros.

— Vamos à igreja do convento de Nossa Senhora do Carmo pedir a Deus que lhe am­pare e fortifique nos trabalhos e perigos que vai sofrer.

— Vamos, comadre.

Entraram as duas mulheres na igreja do Carmo, ajoelharam-se e começaram a orar.

Ouviria o céu os votos de gratidão de tão boas e pias devotas!

 

DIGRESSÃO

Antes de prosseguirmos nesta verídica história convém dar notícia de alguns lu­gares para o leitor compreender melhor as cenas que se vão seguir.

Chamava-se marinha da cidade a praia, que se estendia entre os morros de S. Sebastião e S. Bento. Deixando os habitantes o morro de S. Sebastião para vir ocupar a planície próxima construíram as primeiras casas à beira mar, na praia compreendida en­tre aqueles montes; não permitindo o gover­nador da capitania que se levantasse edi­ficação alguma do lado do mar, não só por conservar-se a praia livre e desembaraçada ao embarque e desembarque dos efeitos públicos e particulares, senão para defesa da cidade; mas houve uma exceção a esta proibição, em favor de Salvador Corrêa de Sá e Benevides.

Convém saber que em 1605 ou no ano seguinte erguera-se junto ao mar o açougue público; e o governador Martim de Sá levantara nesse mesmo lado, e naquele ano, o forte de Santa Cruz.

O cisco e a terra das ruas lançados no mar foram-no afastando mais e mais, deitan­do em frente ás habitações um vasto logradouro; e assim aconteceu que o forte de Santa Cruz, cujos muros eram outrora banhados pelas ondas, ficou em terra firme: e estando obstruído, e derruído pelo tempo, e em posição já não conveniente, re­solveram o governador e os militares da guar­nição da praça levantar sobre os baluartes do antigo forte uma capela consagrada à Santa Cruz, perpetuando sob essa invocação a memória daquele edifício, que para defesa dos habitantes da cidade de S. Sebastião mandara el-rei nosso senhor cons­truir. Em 1628 estava a capela concluída, vendo-se hasteada a cruz no mesmo lugar onde tremulara o estandarte das cinco chagas.

Em dezembro de 1635, na época em que se deram os acontecimentos desta narra­tiva, usando a câmara da jurisdição de que gozava sobre os terrenos devolutos da cidade, concedeu ao alcaide-mor Salvador Corrêa de Sá e Benevides o aforamento por dezoito anos de uma grande parte da marinha da cidade, ficando compreendido no mesmo aforamento o açougue público; permitiu a câmara ao alcaide-mor o privi­légio exclusivo de levantar na marinha um paço onde colocasse a balança de ver o peso, destinada a verificar o peso das cai­xas de açúcar importadas e exportadas, percebendo por essa verificação, pelo depó­sito e embarque do açúcar, três taxas na importância de cento e vinte reis por cada caixa, e devendo o alcaide-mor pagar à câmara o foro anual de vinte mil reis.

Foi este o princípio do primeiro trapiche desta praça, o qual recebeu o nome de trapiche da cidade.

Apesar de haver sido cóii elido o afora­mento a Salvador Corrêa de Sá e Benevides que, pelo seu cargo e serviços de seus antepassados, era estimado e respeitado do povo, houve muitas reclamações por ter sido exclusivo aquele favor, desejando muitos aforar terrenos na marinha, e não cessaram de murmurar enquanto a câmara não acabou com o privilégio concedido ao alcaide-mor.

Tendo alguns anos depois de erguer-se para melhor defensa da praça a fortaleza da Laje, e não podendo o erário régio dar princípio a obra, determinou-se que, além de uma subscrição voluntária, se pusesse em hasta pública o aforamento de todos os chãos da marinha da cidade; e de feito todo o vasto logradouro, chamado mari­nha da cidade, foi aforado, exceto a área fronteira ao convento do Carmo, a qual ficou reservada para rocio ou praça pública.

Erguidas diversas casas do lado do mar formou-se uma rua tortuosa e de largura de­sigual, que começava nas proximidades do morro de S. Bento e ia terminar na praça do Carmo; teve o nome de rua Direita do Carmo ; além da praça abria-se a rua da Misericórdia, da qual partiam diversas vielas que iam findar na rua do Porto dos padres da companhia, assim denominada por fazer-se ali o embarque e desembar­que de mercadorias dos jesuítas.

Próximo ao hospital da Misericórdia havia uma praça chamada da Batalha por existir em uma das esquinas um nicho com a imagem da Virgem sob essa invocação.

Começara em tempos remotos o hospital da Misericórdia, e referem as crônicas à sua origem deste modo.

Arribara neste porto em 1582 uma frota vinda de Castela, composta de dezesseis navios comandada por Diogo Flores Baldez, e estando enferma quase toda a tripulação de mais de três mil homens, rece­beram os habitantes em suas casas a alguns dos marinheiros, porém ficaram muitos sem agasalho, e sem remédio. Nesse ano acha­va-se no Rio de Janeiro, em visita ao colégio da companhia de Jesus, o padre Anchieta que, condoendo-se de ver tantos doentes ao desamparo, preparou urna casa com diversos leitos, remédios e dieta, e nela abrigou os marinheiros de Castela. ­Foi esta a origem do hospital da Miseri­córdia, criado pelo sentimento caridoso do padre Anchieta. Instituída mais tarde a ir­mandade da santa casa da Misericórdia continuou esta confraria na tarefa encetada pelo apostolo do novo mundo, e deu prin­cípio a construção de um edifício conve­niente para hospital da pobreza desvalida.

Defronte do hospital, na ponta de terra prolongada sobre o mar e chamada da Mi­sericórdia, lançara Villegaignon os alicer­ces de um forte, que concluído pelo go­vernador Martim de Sá, recebeu o nome de S. Tiago, nome que perdeu quando passou de fortaleza a prisão, e prisão de escravos, denominada Calabouço.

Ao lado direito do hospital estendia-se a praia chamada de Santa Luzia, por exis­tir em um dos seus extremos uma ermida consagrada a essa virgem mártir; e na parte posterior daquele edifício havia um terreno cercado com estacas de pau; era o cemitério onde sepultavam-se os doentes falecidos nas enfermarias da santa casa.

Próximo ao cemitério levantava-se o pa­tíbulo.   

Naqueles tempos em que o raio da jus­tiça caía com excessivo rigor sobre a ca­beça dos réus, eram comuns as sentenças de morte, os castigos infamantes; o manto negro da justiça abafava o condenado, e arrastava com a vítima seus filhos e ne­tos, que no berço da infância, devido sor­ver no cálix acerbo da justiça pública o castigo, a condenação lançada sobre seus antepassados. O patíbulo não ces­sava de trabalhar, estava sempre tinto de sangue; era o altar da justiça , e para re­cordar a vítima do sacrifício, o último pescoço estrangulado apresentava em sua parte mais elevada ou nos seus braços fúnebres a cabeça e as mãos cortadas cerceadas do ca­dáver do enforcado, e expostas ao ludibrio público, à profanação e voracidade das aves de rapina.

Revestido de alva era o sentenciado à morte acompanhado ao patíbulo pelo padre da agonia, escolhido sempre dentre os frades franciscanos, pelo juiz, meirinhos, alcaide-mor, pregoeiro, carrasco, esbirros, grana­deiros, pela irmandade da Misericórdia e povo; ouvia ler em todas as esquinas o auto da sentença cuja leitura terminava ao rufo de tambores; ao chegar à forca o padre absolvia-o, o carrasco cobria-lhe o rosto com o capuz da alva, e ajudando-o a subir ao patí­bulo executava a sentença, rufando os tambores para abafarem os gemidos da vítima. Se acontecia cair com vida o con­denado, desfraldado o estandarte da Misericórdia vinha cobrir o infeliz, e reti­rava-o das mãos da justiça; era a túnica da salvação. Se o corpo porém caía cadáver, decepavam-lhe a cabeça, as mãos, os pés e com esses troféus ornamentavam o ápice e braços do trono funéreo do con­denado. E não parava aí a justiça de el-rei ; os bens do sentenciado eram confis­cados, sua casa arrasada e salgado o chão, e desonrados, declarados infames todos os seus descendentes.

De noite não transitava viva alma pela praia de Santa Luzia não só receando-se das almas dos finados, que jaziam no ce­mitério, senão das dos justiçados, que como era crença, vagavam toda noite ao re­dor do patíbulo; mas, crendo algumas mu­lheres do pecado que as almas dos padecen­tes podiam interceder por elas, e abrir-lhe as portas do céu, iam, quando arrependidas de suas faltas e desvarios, em hora adiantada, à praia de Santa Luzia, e ajoelhadas nas escadas do patíbulo, começavam a orar sem se assustarem nem com as mãos e pés mir­rados dos padecentes, e os crânios carcomi­dos e putrefatos hasteados no tope da forca, nem com o silêncio lúgubre do cemitério e o piar triste e agoureiro das aves noturnas.

 

SUPLÍCIO

Estava a noite escura, ouvia-se o ronco longínquo e surdo do trovão, amiudavam-se os relâmpagos, e soprava rijo um vento frio e úmido.

Davam oito horas na torre do colégio dos jesuítas quando bateram à porta da casa de Lourenço, na rua de S. Francisco, onde fora residir depois do incêndio da sua pri­meira habitação.

— Quem sois, perguntou o prelado abrin­do o postigo.

— Um pecador que deseja falar com vossa caridade, redargüiu o indivíduo ti­rando a sua carapuça de baeta.

— Entrai.

— Deus Nosso Senhor seja nesta casa.

— Sentai-vos.

— Perdoai-me se vos não obedeço, mas tenho pressa; uma penitente em artigo da morte deseja confessar-se, e ouvir as vossas palavras consoladoras antes de deixar a vida.

— Onde reside?

— Junto ao hospital da santa casa da Misericórdia.

— Já vou, e a demora é só em tomar a túnica; redargüiu o prelado, que entrou para o quarto próximo à sa1a, onde se achava o indivíduo, que viera convidá-lo para o ofício da confissão.

Ao entrar na alcova e, cerrando sobre si as portas, começou o prelado a espiar para ver se encarando o indivíduo o reco­nhecia, mas lhe não foi possível, por achar-se este envolto em um capote comprido de pano pardo forrado e debruado, e de gola tão alta que tapava-lhe o rosto deixando somente exposta a ponta do nariz.

— Partamos, disse Lourenço entrando na sala.

Vestia uma túnica sem cauda porém com capelo franzido e afogado à roda do pes­coço, cobrindo-lhe a cabeça, e por cima do capelo o chapéu de três ventos.

Seguiram ele e seu companheiro pela rua de S. Francisco e entraram na da Miseri­córdia, sem trocarem durante esse trajeto uma só palavra. Ao chegar defronte do hospital perguntou o prelado.

— Onde fica a casa em que vamos?

— Do lado da praia, senhor; devemos atravessar o arco do hospital.

Havia nessa época por debaixo do edifício do hospital um beco, que abria comunicação para a praia de Santa Luzia.

Na praia soprava o vento com violência, e nas suas lufadas borrifava os viandantes com a água do mar.      

Ao avizinhar-se do cemitério viu o prelado dois vultos, e, apesar de não temer-se de almas do outro mundo, essa aparição em lugar tão sinistro e na escuridade da noite produziu-lhe um estremecimento nervoso, quis dar um passo para trás e não pôde; os músculos das pernas pareciam ter perdido o movimento, quis gritar, mas sen­tiu a língua presa; começou a balbuciar uma oração. Aproximaram-se os vultos.

Caístes finalmente em nosso poder, senhor Lourenço de Mendonça, disse um dos vultos.

Não teve o prelado ânimo para articular uma palavra.

Um assobio agudo retiniu pela praia; imediatamente surgiram mais dois vultos.

— Tomai esse homem e amarrai-o bem, disse Henrique indicando o prelado a um dos indivíduos chegados por último.

Aproximando-se de Lourenço, torceu-lhe o indivíduo os braços para trás prendeu-os com uma mão, enquanto com a outra atava-os com uma corda, e apertou-a tanto que o prelado deu um grito.

— O homem está seguro, exclamou André.

Era André um moço de vinte e dois anos, magro, descarnado, porém dotado de uma força hercúlea; mostrava nos braços e per­nas salientes os músculos, tendões e veias, manifestando essa distensão das carnes e tendões o continuo exercício que de sua for­ça fazia. De feito, por ostentar a força de que era dotado, apostava continuamente suspender grandes pesos, firmar-se no chão, estender o braço, ou prender entre mãos qualquer objeto, e o peso levantado por ele dois homens o não sustinham; se fir­mava-se no chão ninguém podia arredá-lo, era uma estátua de pedra; não dobravam-­lhe o braço estendido porque esse braço fino e descarnado ficava rijo e seco como um bastão, nem arrancavam-lhe da mão qualquer objeto, porque os dedos pareciam correntes de ferro.

Estando Lourenço atado disseram-lhe Hen­rique e Matias das Ventosas, que o acom­panharam nessa cilada.

— Vinde, Sr. Lourenço.

E o prelado seguiu-os em silêncio, não ou­sando levantar um grito; e tão aterrado estava que não podia dizer com certeza se eram homens ou fantasmas que cercavam-no.

Puseram-se a caminho, Henrique, o li­cenciado e a sua vítima, e logo atrás o remador André e mestre Guedes Estopa.

Mestre Guedes ora baixo, gordo, robusto e ágil; viera há dois anos do reino e exercia o ofício de calafate.

Ao chegarem perto da ermida de Santa Luzia desceram à praia onde pararam.

O mar batia com alguma violência, e as ondas ao espalharem-se na areia deixavam diante de si um lençol do espuma, cuja brancura contrastava com a escuridade da noite; o cheiro mau e nauseabundo da maresia anunciava mudança atmosférica, e de feito as nuvens negras corriam de um ponto para outro, acumulavam-se e tendiam a cobrir as montanhas; repetiram-se os relâm­pagos, e o vento sul agitava-se mais e mais.

Estavam ancoradas na praia duas canoas, uma convenientemente preparada, mas a outra desaparelhada, sem vela, nem remos

Na primeira entraram Henrique, o licenciado, mestre Guedes e André, que ao che­gar à praia atara por ordem de Henrique, os pés do prelado, e, suspendendo-o como se fora um boneco de pau, o deitara no batel desaparelhado.

Dando reboque a este batel zarpou a pri­meira canoa que, impelida pelos remos manejados por André e mestre Guedes Es­topa, cortou velozmente a água, afastando-se em breve da praia.

O homem que iludira o prelado, entre­gando-o a seus inimigos, ficara na praia e seguira com a vista as canoas; vendo-as desaparecer voltou apressado, correu ao passar em frente do patíbulo e do cemitério, e se não julgou livre das almas do outro mundo senão ao entrar no largo da Misericórdia.

Continuavam os relâmpagos, repercutia-se entre as nuvens o ruído surdo dos tro­vões; crescera o vento, e ao bater nas ondas levantava uma espuma branca, onde se refletia a luz fulgente dos contínuos relâmpagos; a chuva com o seu granijo rijo e batido açoitava o rosto daqueles que por um tempo desses saíam a navegar.

Enquanto os elementos revoltos lutavam, enquanto o céu negro e trovejante amea­çava a terra, e o mar esverdiado e espumoso alçava ondas como querendo sair de seu leito e repelir os que ousavam transpô-­lo, alguns homens, sem atenderem que por vingarem-se iam praticar um grande crime, sem lembrarem-se.de que a vingança nunca satisfaz, que pelo contrário enegrece e trás fel ao coração, reuniam-se, conspiravam, tramavam muitos contra um, e serviam-se da traição, das sombras da noite e da natu­reza revolta para saciarem seus ódios no tormento e martírio de sua vítima.

Ao aproximarem-se da barra cortou An­dré o cabo que dava o reboque à canoa, em que se achava Lourenço de Mendonça, e aproando a outra canoa para a cidade, continuou a empunhar o remo; ele e mestre Guedes venceram em pouco tempo a distân­cia da barra à praia do Nossa Senhora do Ó onde todos desembarcaram.

Depois de trocar algumas palavras em segredo com André e mestre Guedes Estopa seguiram Henrique e Matias das Ventosas pelo largo do Carmo, e em breve desapa­receram nas ruas estreitas e tortuosas da ci­dade.

Ficara Lourenço, só, atado de pés e mãos, entregue à fúria do céu, do mar, das ondas e do vento em uma canoa, que pouco e pou­co devia encher-se d’água e submergir-se.

 

O SACRISTÃO

Muita gente há que sem mais nem menos rasga o capote aos outros, refere, comenta e analisa a vida alheia, estuda e decora os fatos, incidentes e aventuras que ocorrem. Ide aos passeios, aos cafés, aos clubes, aos teatros, aos bailes o até às igrejas e vereis como todos falam e criticam de tudo.

Já naqueles tempos de que escrevemos era assim; se não havia clubes, cafés, bailes e teatros em compensação atopetava-se de gente o átrio das igrejas, e ali todos conver­sarão, murmuravam comentando prolixa e estendidamente a vida alheia.

Se assim é e sempre foi, deve também o hu­milde escritor desta narrativa ter o direito de rasgar o capote, em que tão embuçado se apresentou o indivíduo para conduzir trai­çoeiramente o prelado à praia de Santa Luzia.

Era homem de trinta anos ou pouco mais, de estatura meã, anafado, de rosto alegre e simpático; conheciam-no por José Sacristão por haver ocupado esse cargo na igreja da Sé.

José sabia ajudar bem  missa e nada mais; quando entrara para o serviço da igreja era doente, grelado e raquítico, mas em pouco tempo ficara nédio; gordo e luzidio, o que atribuíram alguns a  milagre e outros, mais atilados, às boas iguarias da mesa.do padre cura, e aos beijos chupados e quotidianos do sacristão nas galhetas coguladas de vinho ge­neroso.

Quando aparecia na rua revestido de opa de lã, com um oratório pendente ao pescoço, e um saco à cinta, a tirar esmolas para as almas do purgatório e para os santos, nin­guém podia resistir-lhe; falava tão adocica­do, prometia tantas indulgências, distribuía tão profusamente orações e relíquias de sua nômina, e tais eram seus rogos que caíam as esmolas; ficava a bolsa cheia, porém se cheia chegava à igreja, é segredo que o cronista não pode devassar a seus leitores.

José era muito conhecido, tinha muitos devotos e principalmente devotas, que satisfeitas deitavam esmolas no saco do sacristão.

Entre as devotas uma sobre todas mostra­va-se mui generosa, e além da esmola cum­primentava cada dia ao feliz pedinte com um sorriso.

A boa esmola ou antes o sorriso agradá­vel da moça foi produzindo impressão em José, que tantas olhaduras deitou-lhe, tantas vezes viu-a sorrir que sentiu rendido o co­ração, e começou a amar a devota; e então deu-se um fato singular na vida ou antes no modo de proceder do honesto sacristão.

Ele que com seus calções golpeados, vés­tia comprida, opa de lã branca, oratório à frente, e saco à cintura caminhava com passo grave nas ruas da cidade, batia com firmeza em todas as portas diante das quais repetia sua súplica com voz doce e lamentosa, apre­sentava desembaraçadamente o gazofilá­cio ambulante, e tinha sempre prontas pala­vras suaves para agradecer aos fiéis, co­meçou a sentir-se acanhado quando chega­va defronte da casa de sua devota predi­leta; hesitava antes de bater à porta, repetia com voz trêmula a sua petição; a moça aparecia, dava a esmola e sorria.

Eis o nosso sacristão em novos apuros; não sabia como agradecer, empalidecia, tre­miam-lhe as pernas, a língua também, e por fim regougava algumas palavras em agrade­cimento, e lá se ia envergonhado do ridí­culo papel que representara.

Ora isso não podia continuar assim; tan­to embaraço e acanhamento era impróprio e indecoroso em um sacristão, e principal­mente em um irmão das almas; por isso resol­veu José revestir-se de energia, e mostrar-se digno da sua posição e do seu amor.

Preparou-se, tomou a opa, suspendeu o oratório, a nômina, prendeu a bolsa à cin­tura e saiu. Ao chegar perto da casa de sua querida devota estacou, refletiu instan­tes, e depois continuou a caminhar com pas­so apressado; junto à porta da casa fez sua petição em regra; a moça apareceu com o sorriso nos lábios, e ao deitar a esmola agar­rou-lhe o sacristão na mão, beijou-a e dis­se-lhe.

— Eu vos amo!

Foram fatais estas palavras, a moça re­cuou, fechou apressadamente o postigo e desapareceu.

Ficou o sacristão desapontado, mas como se despertasse repentinamente deitou a correr.

A declaração porém estava feita; José e Tereza amavam-se e continuaram a amar-se; e de dia para dia foi crescendo esse amor, o que fazia o sacristão viver satisfeitíssimo por ver-se amado por uma moça, na sua.opinião, a mais linda da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

Em verdade a cor clara e corada das faces, o vermelho vivo dos lábios, os olhos expressivos e brilhantes, o rosto arredondado e mimoso e os cabelos pretos e ondeados tornavam essa moça formosa e sedutora; real­çavam-lhe a formosura  do justilho guarnecido de renda, os brincos de crisólitas, os anéis, os cordões, o alto pente a cravejado de pedras, a saia de cabaia, e os sapatos de tacões vermelhos que patenteavam um pé pequeno e delicado. Vendo-a assim vestida ficava o sacristão tresvariado, julgava-se no céu diante dos anjos, e por uma profanação felizmente passageira, supunha-se na igreja a encarar as imagens dos altares.

Residiam Tereza e seus pais em uma pe­quena casa na ladeira do colégio.

Trazia essa moça o José sacristão tão embevecido em seu amor que não era raro vê-lo esquecer na ocasião da missa o turíbulo, o missal, a campainha ou, o que é mais notável, as próprias galhetas.

Notando a distração em que vivia José, e o pouco cuidado que dava às suas obriga­ções, Lourenço de Mendonça repreendeu-o, mas se não emendando o sacristão começou o prelado a espreitá-lo, e um dia, ao descer da Sé, viu-o em conversa animada coma linda Tereza. Perguntou-lhe no dia seguinte quem era aquela moça.

O sacristão envermelheceu, engasgou-se duas ou três vezes, tossiu e nada disse.

Calou-se o prelado pois compreendeu estar o sacristão namorado, e como conti­nuasse por amor de sua dama a descuidar-se, a relaxar-se em seu emprego, o demitiu do serviço da igreja.

Ficou José na miséria assim como seus pais, velhos e valetudinários; desde então dedicou o ex-sacristão a Lourenço ódio pro­fundo, e tornou-se amigo predileto do pa­dre Nóbrega, que chamava a si os que abor­reciam e odiavam ao prelado.

Fora José despedido do cargo de sacristão um mês ou pouco mais antes de dar-se o incêndio na casa de Lourenço.

No dia seguinte a esse acontecimento dei­xara o padre Nóbrega o licenciado Matias das Ventosas e Henrique em frente à casa in­cendiada quando, ao subir à ladeira do col­égio, encontrou o ex-sacristão a olhar para as janelas da casa da sua namorada: refe­riu-lhe o que lhe dissera o filho de Crispim sobre o fim desastroso de Helena.

Era o ex-sacristão sobrinho de Bárbara da Silveira, e por isso ficou aflito e pesaroso ao ouvir o padre Nóbrega relatar-lhe a morte da sua desgraçada prima.

Contou-lhe em seguida o plano de vingan­ça que haviam preparado contra Lourenço, e acrescentou que só restava-lhes o achar um indivíduo que se encarregasse de convidar o prelado para o ofício da confissão atrain­do-o à praia de Santa Luzia àquela noite.

Ouvira-o José com grave atenção, e ar­dendo-lhe no peito ódio contra Lourenço de Mendonça, exclamou, tornando-se cor de lacre cerrando os punhos.

— Saiba vossa reverendíssima que disso me encarrego eu.     

— Mas o prelado vos conhece, e pode sus­peitar; redargüiu Nóbrega.

— Sei disfarçar-me, senhor cura.

— Lourenço é homem de recursos e ran­coroso, e se nosso plano fosse descoberto...

— Que aconteceria; ainda há adagas para acabar-se prontamente com os inimigos.

— E comprometei-vos a conduzir o prela­do hoje à noite à praia de Santa Luzia?

— Está de ver que sim.

— Sereis generosamente recompensado, e vou avisar aos meus amigos.

— Rejeito qualquer paga, senhor cura; o ex-sacristão também tem direito de vingar-se e aos seus parentes.

Despedia-se Nóbrega do ex-sacristão mui satisfeito por haver encontrado o indivíduo de que ele e os seus necessitavam para a execução de seu plano; mas havia dado alguns passos quando retrocedendo disse para o ex sacristão:

— Não preciso pedir-vos completo segredo; fio-me em vos.

— E podeis confiar pois não descansarei, nem desarmarei meu braço enquanto não vingar-me de quem tirou-me o pão a meus pais, e ofendeu o sangue do meu sangue.

O ex-sacristão estava pletórico de raiva; tremia-lhe todo o corpo.

Nóbrega apertou-lhe afetuosamente a mão e partiu.

Relatou tudo ao licenciado e a Henrique que, havendo convidado o moço André e mestre Guedes Estopa para levarem as canoas à praia de Santa Luzia, para lá partiram de noite sedentos de vingança.

Dissera-lhes Nóbrega que os não acompa­nhava por não encontrar-se com o prelado.

Era o padre Nóbrega desses homens que lançam tanto ódio sobre seus inimigos que não desejam vê-los mais; entregam-nos ao olvido, ao desprezo, ou minam-lhes nas sombras a sua ruína, manipulam nas trevas o veneno que lhes ha de ser fatal.

Brígida, sua irmã, não era assim; procura­va espreitar os passos de todos até daqueles que execrava; queria ver e ouvir tudo, vivia vendo e ouvindo; quebrassem-lhe as pernas, tirassem-lhe o movimento dos braços mas deixassem-na por trás da rótula com os olhos e ouvidos abertos e ela estaria satisfeita. Era a curiosidade personificada, mas a curiosidade maléfica, o corvo de olhos arregalados.

Cumpriu José a sua missão fatal; foi o Ju­das da conjuração; Lourenço foi a vítima.

 

A PROVIDÊNCIA

Ficara Lourenço de Mendonça abando­nado em uma canoa que pouco e pouco de­via submergir-se, com os braços e pernas atados, vendo contra si as ondas alcanti­ladas e o céu escuro e trovejante.

Julgou chegada sua última hora; exposto ao furor do mar empolado, ao marulho das ondas, à chuva, ao vento pranteava e lastimava-se como pedia perigo tão eminente; e enquanto marejavam-lhe nos olhos as lágrimas murmurvam os lábios frios e trêmulos orações com fervor e fé, como soem ser as súplicas dirigidas a Deus pelo homem no abismo do perigo.

Quando mais alta era a onda e mais forte o estampido do trovão soltava o prelado um gemido, último alento de quem tão per­to acreditava a morte.

A fúria das ondas, a agitação do mar trazia a canoa em contínuo movimento, e lançava-lhe dentro bastante água.

Empregava Lourenço esforços supremos para desprender os braços, mas lutava em vão, porque, tão apertadas estavam as cor­das que não podia fazer o menor movi­mento.

Uma onda maior que todas veio sobre a canoa, e, elevando-a à grande altura, fez depois descê-la ao precipício aberto pelos vagalhões do mar; soltou Lourenço um gemido, um grito agudo, penetrante, cujo som repercutiu naquela noite de tempestade.

Estava o prelado abatido, exausto, inundava-lhe o rosto e o corpo um suor frio, os membros estavam hirtos e quase inertes.

A tempestade continuava.

A água do mar e os esforços inauditos empregados por Lourenço deram as cordas que atavam-lhe os braços e pernas, forte tensão e produziram-lhes estilhaços, por último arrebentaram deixando livres os bra­ços do prelado, mas estavam tão frios, ri­jos e inertes pela excessiva pressão, que deles não pode Lourenço  servir-se; dos pulsos vertia sangue.

A canoa enchia-se de água e ia pouco e pouco submergindo-se, o que, reconhecen­do o prelado, não cessava de repetir entre gemidos.   

— Misericórdia, misericórdia.

Essa expressão soltada no mar em uma noite de tempestade  por um infeliz, que esperava o momento em que as ondas túmidas, deviam tragá-lo, era imponente e terrível; parecia a voz da humanidade cla­mando contra os elementos.

Havendo os músculos dos braços readquirido a ação vital procurou Lourenço, suster-se neles e sentar-se, mas o movimen­to trêmulo e desordenado que fez sobre a borda da canoa, a soçobrou. Deu o prelado um gemido agudíssimo, terrível e pro­fundo, como deve ser o último ai, a últi­ma expressão do náufrago a precipitar-se no marulho das ondas. A canoa desapareceu nos vagalhões do mar, no rolo enfureci­do das ondas, mas como se surgisse do abismo do oceano, apareceu repentinamente um pescador em uma canoa, aproximou-se do lugar em que se dera o sinistro, e, logo, que o prelado veio à tona da água, suspendeu-o, colocou-o em sua canoa e navegou para terra.

Quem era esse pescador que em noite tão tempestuosa expusera-se ao mar, e chegara a tempo de salvar a Lourenço de Mendonça!

Os nossos leitores já o reconhecerão: era o mameluco Antônio.

Abicando a canoa a praia de Nossa Se­nhora do Ó tomou Antônio sobre os ombros o prelado desfalecido, e correndo foi bater à portaria do convento de Nossa Senhora do Carmo.

— Quem bate, gritou o leigo porteiro com voz rouquenha.

— Um servo de Deus que pescou no mar um homem.

— Falai sério, e pelos santos e anjos do céu dizei o vosso nome, gritou o leigo aplicando os lábios à fechadura.

— Sou o Antônio das Canoas senhor reverendo, e trago-vos um infeliz que as ondas e os peixes queriam para si.

O leigo deu volta na chave, e a pesada porta abriu-se gemendo nos gonzos, Antô­nio entrou, deitou o náufrago sobre as lájeas da portaria, e tirando a carapuça disse para o leigo.

— Saiba vossa reverendíssima que mui­to sinto haver interrompido seu tranqüi­lo sono, mas, encontrando por esse mar de Deus a este infeliz não achei lugar melhor onde abrigá-lo senão aqui.

Esfregando os olhos tomou o leigo a lanterna que largara no chão ao abrir a porta, aproximou-se do náufrago, e ao encará-lo deu um grito de espanto e recuou.

— Ah... ah.

— Que tendes, senhor reverendo, per­guntou-lhe o pescador.

— Nada, porém.

— Falai.

— Se a Santíssima Virgem do Carmo me não tirou a vista, este é.

— Acabai.

— É.

— Quem?

— O muito reverendo senhor D. Lourenço de Mendonça.

— Uh, o prelado!

— Sim, o não conheceis?

— Saiba vossa reverendíssima que lá muito bem, não; o tenho visto na Sé a dizer missa; mas aí fica o homem, e eu na graça, de Nosso Senhor Jesus Cristo, vou tomar conta da minha canoa.

— Esperai, vou chamar a comunidade.

— Que cousa é comunidade?

— Os religiosos.

— Para quê?

— Para receberem o prelado, e dar-vos uma gratificação.

O mestiço cruzou os braços, ficou firme, e, lançando um olhar torvo ao leigo, dis­se-lhe.

— Gratificação; para quem, senhor re­verendo, julgai que o pobre mamelu­co solta a sua canoa em noite de tem­pestade para salvar náufragos por di­nheiro; que estas mãos escuras e calosas que sustentam o remo, e levantam das on­das os moribundos abrem-se mais tarde para receber moedas de ouro; que o po­bre mestiço vai procurar no abismo do mar infelizes náufragos para negociar, como faz com o pescado preso nas malhas da sua rede; não é este o primeiro homem que estes braços escuros têm arrebatado às on­das; Deus Nosso Senhor o sabe e é bastan­te; mas ainda não marquei preço para esse meu serviço; guardai antes o vosso dinhei­ro e de vossos irmãos para reparti-lo pelos pobres que choram e gemem nesta por­taria.    

E o mameluco saiu apressadamente.

O leigo que, quase sem pestanejar ouvira ao pescador, voltou-se ao sentir o prelado mover-se, e tornando este em si, tocou ele a campainha e correu para o interior do convento.

Alguns instantes depois desceram os reli­giosos, cercaram o prelado, e sustendo-o sen­taram-no em uma cadeira de espaldar de couro lavrado.

Uma exclamação uníssona ecoara na por­taria ao chegarem os religiosos

— Ah o senhor D. Lourenço, exclama­ram os frades atônitos encarando a Lourenço de Mendonça.

Começaram uns a perguntar o que lhe acontecera, quem o salvara, outros a fazer a mesma pergunta ao leigo, outros o que sentia; alguns com os braços pendentes e os olhos fixos pareciam petrificados; estes repetiam em voz submissa frases em latim, aqueles resmoneavam orações, e aqueles outros encarando absortos seus companhei­ros, batiam nos peitos clamando.

— Foi a providência que o salvou.

Lourenço não falava, estava pálido, arquejante e abatido, apenas volvia de quando em quando os olhos para o céu e jun­tava as mãos.

Chegaram o provincial e o guardião e, depois de beijarem a mão do prelado, man­daram buscar uma das cadeirinhas do con­vento; e desprezando aos donatos que as conduziram colocaram os religiosos o pre­lado na cadeirinha, e sustentando-a sobre os ombros levaram-no para o pavimento su­perior do convento; seguira-o o cortejo dos reverendíssimos.

 

A EXCOMUNHÃO

Divulgou-se logo na cidade a notícia da traição empregada contra o prelado e a da sua salvação; serviu isso de conversa, e se não falou em outra coisa; apesar de não ser Lourenço estimado, alegraram-se todos por ele se haver salvado, e o nome de ma­meluco, que o arrebatara das ondas, come­çou a ser repetido com louvor e muito fes­tejado.

É que as grandes e generosas ações en­tusiasmam e tocam às fibras de todos, até dos indiferentes.

Porém, mais exaltados mostraram-se os inimigos de Lourenço, tigres esfaimados, que o são inimigos que não sabem perdoar, rangeram os dentes por haver-lhes escapado a presa, e trataram de indagar onde se achava o prelado para assassiná-lo imediatamente.

Sabendo Henrique que o prelado se reco­lhera ao convento do Carmo, começou a percorrer disfarçado e armado de adaga as imediações da habitação dos religiosos, es­perando ansioso a ocasião de lançar-se sobre seu adversário, para feri-lo mortalmente.

Tendo ido ao convento do Carmo para ou­vir missa, soube a mãe Brígida. que Louren­ço escapara, que fora retirado salvo das on­das; benzendo-se dissera a velha:

— Abrenúncio, Jesus, santo nome de Deus o fogo o não quis, a água rejeitou-o; oh aquele homem não tem boa alma!

Chegaram aos ouvidos de Bárbara todos os acontecimentos ocorridos na cidade; o incêndio da casa de Lourenço, o boato que espalhara-se de Helena ter sido vítima nesse sinistro, o plano cruel empregado pelos ini­migos do prelado e a salvação deste; tudo isso Bárbara o soubera e alanceara-lhe com angústias o coração. Fora fatal o destino de sua filha, tivera morte desastrosa, causara a outros torturas e desgraças, e a ela, pobre mãe, dores e martírios.

Com o coração carregado de pesares e os olhos arrasados em lágrimas vivia Bárbara orando, suplicando a Deus que a chamasse ao céu, para lá gozar da felicidade, não en­contrada por ela, nem por sua filha na terra.

Em vez de com sua autoridade conter a exaltação dos inimigos de Lourenço exacerbou o ouvidor Francisco Taveira da Neiva, o sucessor de Paulo Pereira, a sanha desses homens, convocando a câmara para decidir a prisão de Lourenço, e, depois de longa e calorosa discussão, resolveram ele e os vereadores, para privarem o prelado de todo o trato e socorro, lançar-lhe o raio da excom­unhão. (8)

Era o povo nessa época desenvolto, corrompido, ignorante e sem educação moral; desconhecia os seus deveres, tinha religião, mas não tinha o coração educado; a perversão dos costumes e o desenfreamento das paixões tornavam-no mau e vingativo, sem generosidade, sem os grandiosos sentimentos da alma que nos ensinam a submissão, a hu­mildade, a caridade e a compaixão, vivia em­brutecido, considerava a vingança um dever e o perdão uma fraqueza.

Os fatos desta crônica apresentados com tão desmaiadas cores pintam a selvatiqueza dos costumes daquela época.

Henrique para vingar a sua noiva, que julgara haver perecido nas chamas, aban­dona ele e seus cúmplices o administrador eclesiástico em um batel desaparelhado na vastidão do oceano enfurecido.

Matias das Ventosas é seu cúmplice por haver Lourenço recusado dar ao padre João de Jesus, filho do licenciado, um benefício eclesiástico.

José, o ex-sacristão, entrega o prelado a seus adversários por ter sido despedido do emprego no qual se mostrara remisso e des­cuidado; e o ouvidor, os vereadores arro­gam a si o direito de lançar o raio da excomunhão contra Lourenço, por se afastar este de suas prerrogativas invadindo as alheias.

Mas se vivia o povo escurentado, na igno­rância de seus deveres nascia o seu atraso moral da corrupção e indisciplina do clero, que ignorante, mau e pervertido ofendia à moral pública, desrespeitava os prelados, os seus chefes, vivia em luta com eles, levan­tava-se orgulhoso e vingativo se não obtinha benefícios eclesiásticos, e mais de uma vez, para alcançar a ambicionada autoridade, ma­nipulava venenos ativíssimos, ou aguçava armas para ferir mortalmente quem a isso se lhe opunha. (9)

Mas não podem também os prelados ser inocentados desse estado anormal do clero.

Transpunham a esfera de suas atribui­ções, invadiam o poder temporal, e desse modo concorriam para os contínuos conflitos que perturbavam a ordem pública; violentos e vingativos não davam tréguas a seus inimigos, e não era raro partir deles a primeira provocação contra os sacerdotes, magistra­dos, câmara e povo; injustos e vingativos davam os cargos e benefícios eclesiásticos a sa­cerdotes sem virtude, nem moral, e chefes de uma classe, esquecidos da sua posição, eram os primeiros em dar exemplo de ambi­ção desenfreada, ou de perversão de costumes. Entregues às paixões e vícios apagavam a auréola de prestígio que os cercara, quando iniciados no governo da prelazia, e por encontravam forte oposição se queriam, mais tarde, estabelecer reformas ou postergar abusos; insultados e apupados publicamente, ameaçados por assassinos tinham de fugir ou morriam sob o peso de desgostos e afrontas.

Veio o primeiro bispo nomeado para o Rio de Janeiro encontrar o povo e o clero nesse atraso e desenvoltura de costumes, e teve de arcar com supremas dificuldades.para trazer ao aprisco os pastores e ovelhas do seu santo rebanho.

Foi tarefa penosa e difícil a regeneração do povo e do clero, de então, e só pôde ser vencida pelo prestígio da autoridade, por o zelo e dedicação nunca desmentidos do pri­meiro diocesano. Colocado em uma atmosfera corrupta e pervertida, soube conser­var-se puro em seus costumes, afastou-se de cuidados e interesses mundanos, e, abraçado com a cruz fez compreender a sublimidade da sua missão. Sentado no sólio episcopal não temeu os invejosos, nem os intrigantes, não deu tréguas aos delinqüentes, nem per­doou aos culpados; desse modo plantou a disciplina na igreja e a moralidade no povo do qual tornou-se pai e juiz. Cercado do prestígio do poder, entregue ao serviço de Deus, fez partir da cadeira episcopal os pri­meiros raios da verdadeira fé e civilização; o povo criou e civilizou-se.

Vendo lançado sobre si o anátema da excomunhão, compreendeu Lourenço que devia renunciar o cargo de prelado, e reti­rar-se do Rio de Janeiro, cujo povo o não respeitaria mais.

Não podia contar com o apoio do governa­dor, que votava-lhe ódio acerbo, e exercera decidida influência na sentença de excomunhão lavrada pelo ouvidor e vereadores. Quan­to aos jesuítas, protegiam-no, é certo, mas animar-se-iam, por conservá-lo em seu cargo, arrostar os feros e implacáveis inimigos da prelazia e afrontar à opinião pública?

Devia Lourenço largar a vara da prelazia e ausentar-se do Rio de Janeiro; mas como sair do convento tendo contra si o povo exaltado e exacerbados inimigos; não serio escarnecido e vilipendiado, estando feri­do do raio da excomunhão; não estariam seus inimigos atentos e vigilantes nas cir­cunvizinhanças do convento para emprega­rem bem suas adagas, e não falhar-lhes dessa vez o golpe!

Compreendeu Lourenço o transe perigoso em que se achava, e em tão críticas circunstâncias julgou que só os jesuítas podiam salvá-lo. Escreveu-lhes pedindo auxílio e proteção para poder embarcar em um navio da frota, que prestes estava a zarpar para Lisboa.

Não eram os jesuítas homens de recuar em empresas árduas e difíceis; decididos, fortes e perseverantes venciam todas as dificulda­des, superavam os mais ingentes e violentos obstáculos quando empreendiam defender o indivíduo, que era-lhes devotado, ou cujo valimento podia ser-lhes útil ou vantajoso.

Lourenço era homem inteligente, enérgico e decidido partidário da companhia, e assim não devia ser abandonado; além do que não partira da igreja o raio que o fulminara, mas de um tribunal incompetente.

Mas para acompanhar o prelado ao em­barque era necessário afrontar a opinião pública, desprezar os preconceitos da época, que mandava não dar guarida ao excomun­gado, e revestir-se de muita paciência e co­ragem, para suportar os escárnios e ultrajes públicos, ou desviar os chuços e adagas que haviam de levantar-se contra o amaldi­çoado.

E qual o padre que havia de expor-se e sacrificar-se aos ódios populares?

Eis o que preocupava os jesuítas, e para resolver tão difícil questão reuniram-se em uma das salas do colégio.

Discutiram a conveniência de proteger ao prelado, de livrá-lo dos insultos e das iras populares, da morte violenta que podia sofrer nas ruas da cidade, e reconhecida a ne­cessidade dessa proteção, hesitaram em es­colher aquele que dentre eles, afrontando a fúria popular, devia encarregar-se de acom­panhar a Lourenço de Mendonça até  o em­barque.

Estavam todos irresolutos, nem um queria oferecer-se não só por temer o perigo como por julgar que cometia uma falta acom­panhando a um excomungado, pois, apesar de ter partido o anátema de uma corpora­ção que arrogara a si direitos estranhos, to­davia estava lançada a maldição e irritado o povo contra a vítima.

Veio cortar a hesitação e perplexidade de todos a voz do jesuíta João de Almeida, que conservara-se silencioso. Levantou-se, cruzou os braços sobre o peito, voltou os olhos para o céu, e disse com voz grave e pausada.

— Encarrego-me de acompanhar o prela­do Lourenço de Mendonça, até ao lugar do embarque.

Houve um murmúrio em toda a assembléia e depois um silêncio profundo; causaram as palavras do jesuíta sensação geral; ao prin­cípio não compreenderam como ele, entu­siasta e devotado propugnador dos preceitos da igreja, se oferecera para tal comissão, e por isso murmurarão; mas, refletindo de­pois no sacrifício a que se prestava por amor à companhia, todos admiraram-no, encararam-no silenciosos, e inclinaram a cabeça em as­sentimento à resolução do virtuoso padre.

 

OS ANJOS DA GUARDA

Haviam terminado as missas matutinas do dia; o sol erguia-se acima das montanhas, estava o céu azul e sereno, soprava da parte dos bosques um vento brando, que trazia à cidade o cheiro alpestre das plantas, vol­tavam da igreja descendo a ladeira do colégio os devotos, e cruzavam as ruas as ca­deirinhas conduzindo às suas casas os mais ricos e abastados. Era de manhã.

Descendo o morro de S. Sebastião tomou o jesuíta João de Almeida pela rua de S. Francisco, entrou na praça do Carmo e che­gou ao convento dos Carmelitas; logo que o avistou bateu o leigo três badaladas na sineta da portaria, sinal que indicava a visita de algum jesuíta ao convento.

Soavam oito horas no campanário do col­égio dos jesuítas quando apareceram no alpendre da portaria João de Almeida e Lourenço.

Extático e admirado ficou o povo; era a primeira vez que se via um homem com a pena de excomunhão em companhia de um sacerdote. Quando deram o jesuíta e o prela­do os primeiros passos no Largo do Carmo houve um murmúrio de indignação, e mais de um braço levantou-se para descarregar pesado golpe sobre os dois sacerdotes me­nospresadores e afrontadores da opinião pública, mas a imagem nobre e imponente de João de Almeida, a tranqüilidade serena e pura do seu rosto, o riso plácido que animava-lhe os lábios, o andar grave e pausado, as suas vestes negras, a confiança que manifestava ter no povo produziram intensa e profunda impressão; ao rumor confuso, à agitação que apresentara ao princípio o povo, sucedeu um silêncio completo.

Todos recuavam ao passarem os dois pa­dres; uns estugavam os passos para não encontrá-lo no trajeto; outros voltavam o rosto para não encará-los; estes abana­vam coma cabeça e olhavam para o céu las­timando o que viam; aqueles, olhando absortos ora para o jesuíta, ora para o pre­lado, benziam-se, e faziam mais de uma vez o sinal da cruz. Repetidas vezes desembainharam e levantaram os inimigos de Louren­ço as adagas para feri-lo, mas, dado o pri­meiro passo, recuavam com a arma em­ punho, tocados da figura calma e veneranda do jesuíta, do seu olhar penetrante e fixo.

Atravessaram o jesuíta e Lourenço a praça do Carmo, e entraram na rua Direita do Carmo que findava próximo ao morro de S. Bento, apresentando no fim uma curva que ia terminar no mar; e todo esse espaço até a praia percorreram o jesuíta e Lourenço acompanhados de unia multidão compacta e absorta que contemplava-os silenciosa  sem saber o que pensar.

Como se animara João de Almeida, homem nimiamente religioso, de vida ascética, à apresentar-se em público com um sacer­dote que estava sob a maldição da igreja; teria o jesuíta descrido, renegado seus prin­cípios, esquecido sua fé, mas seu rosto ma­cilento e lavado em suor, seus cabelos esbranquiçados, seu corpo abatido e descarnado, seus passos às vezes incertos e vacilantes denunciavam as vigílias, os tra­balhos espirituais, as torturas, as priva­ções, os cilícios e jejuns de sua vida ascé­tica. Mas se conservava-se piamente dedi­cado à religião, se batiam-lhe na alma os raios da fé incitando-lhe o fogo do amor divino, como ousara, aparecer diante do povo em companhia de um padre condenado pela opinião pública e pela igreja!

Certo do respeito e veneração que tributa­va-lhe o povo oferecera-se João de Almeida à acompanhar o prelado até ao ponto do em­barque: sabia que Lourenço estava condenado à excomunhão, mas julgava-o livre dessa pena por não admitir nem respeitar a excomunhão lançada por seculares.

Se tivessem partido de Roma os raios contra Lourenço o padre João de Almeida, mui religioso, de crenças ardentes e exalta­das, não prestar-se-ia a seguir nas ruas a um condenado da igreja, mas, lavrada a sentença por um poder secular, considera­va-a írrita e nula, e ao prelado livre de culpas e pena, devendo ser respeitado como chefe e administrador da igreja fluminense cujo era.

E o jesuíta se não enganou com a im­pressão que sua presença devia causar no povo: o povo acalmou-se serenaram-se os ódios e abateram-se as ameaças; Lourenço, em sua companhia, atravessou a rua prin­cipal da cidade, e próximo estava do lugar do embarque.

A mãe Brígida que, acostada à porta de uma casa esperava ansiosa a passagem do jesuíta e do prelado, apesar de não crer em tal, logo que os viu atravessar, exclamou, tapando o rosto com ambas as mãos:

— Jesus, santo nome de Jesus, coisa assim não viram estes olhos que a terra há   de, comer, seja Deus louvado, cruz, santíssimo seja o nome de Jesus. E a velha rompendo por entre o povo sumiu-se como se vira cousa que irritara-lhe os nervos e of­uscara-lhe a vista.

Saindo do meio do povo, onde se achava, disse Nóbrega quase ao ouvido de Lourenço.

— Chamastes-me outrora cristão novo, hoje chamo-vos excomungado; e se não fora o vosso anjo da guarda...

Nóbrega afastou-se; rangiam-lhe os dentes e estava branco como um cadáver.

Caminhavam João de Almeida e Louren­ço silenciosos parecendo apenas pelo volver dos lábios que resmoneavam orações, quan­do viu-se correr um embuçado, unindo-se às paredes por evitar algum encontro; uma mulher queo observava a passagem do jesuíta e do prelado, voltou o rosto ao ver passar o vulto que corria, e imediatamente foi seguindo-o apressada.

Estando João de Almeida e Lourenço de Mendonça mui próximo da praia surgiu o embuçado no meio do povo, romper a massas popular, de um salto apresentou-se na frente do jesuíta e de Lourenço, com a mão esquerda apertou a capa do prelado, junto ao pescoço, enquanto suspendia na direita uma faca, cuja lamina aguçada e polida reluziu aos raios do sol.

Ia descarregar o golpe quando viu-se detido por um braço frágil.

Ainda com o braço erguido, o semblante lívido e desfigurado, os cabelos caídos sobre a testa fitou Henrique quem o deti­vera, e exclamou.

— Helena!

— Dizei antes o vosso anjo da guarda, murmurou Helena afastando a mantilha, e procurando abaixar o braço de Henrique.

Seu rosto estava pálido e os cabelos caíam-lhe sobre os ombros como um véu de luto.

Henrique ficou absorto, pasmo e comovido; continuou a olhar para sua noiva sem fazer o menor movimento.

Lourenço ao encarar Helena horripilou-se, tremeu-lhe o corpo, eriçaram-se-lhe os cabelos, julgou ver um fantasma, a alma da virgem morta no incêndio que naquele momento surgira para exprobrar-lhe seu crime e condená-lo.

João de Almeida que, calmo e tranqüilo assistira a esta cena, e que com um gesto procurara conter o povo agitado, reconhe­cendo a comoção do prelado, deu-lhe o braço e o conduziu até a praia onde devia embarcar.

De feito era Helena.

Logo que declarou-se o incêndio em casa de Lourenço, ela que se achava em um dos últimos aposentos, tratou de salvar-se, sal­tando o muro, para o quintal de uma casa vizinha onde residia uma mulher pobre e doente chamada Leonor da Conceição que vivia de fiar algodão, tecer rendas e abrir crivos; tendo uma única escrava, já idosa, que todos os dias saía a vender água.       

Isolada no seu tugúrio, entregue ao seu tra­balho e às orações ignorava Leonor o que ocorrera na cidade naqueles tempos, e estupefata ficou ao ver o modo porque Helena aparecera em sua casa; Helena po­rém tranqüilizou-a referindo-lhe tudo, e acabou por pedir-lhe que a ocultasse em sua habitação para que, acreditando Lou­renço haver ela perecido no incêndio, a não perseguisse mais, e desse-lhe tempo de ausentar-se com o seu noivo.

Mas precipitaram-se os acontecimentos; perseguido e excomungado pelos seus ini­migos resolveu Lourenço ir para Portugal, e então era conveniente deixá-lo partir para depois ir ao encontro do seu noivo, pensara Helena; mas vendo ausentar-se o seu inimigo não procuraria Henrique des­carregar-lhe golpe certeiro! Essa idéia preo­cupava a pobre moça que, vencendo por fim o seu embaraço e acanhamento, pediu a Leonor a saia de lila e a mantilha, e assim disfarçada saiu a observar o seu aman­te para livrá-lo, se pudesse, de cometer algum crime. Helena se não enganou; conheceu logo pelo olhar exaltado de Hen­rique quais os projetos sinistros que guar­dava no peito; o não perdeu mais de vista; vendo-o correr seguiu-o, e chegou a tempo de poder suster-lhe o braço que empu­nhava a arma homicida.

Ao entrar no navio; que devia afastá-lo rara sempre do Brasil, compreendeu Lou­renço que não tivera uma visão, que Hele­na estava viva, salva junto de Henrique que sentia-lhe o palpitar do coração, o arfar do seio, o calor da respiração; os dois amantes estavam juntos e felizes, e ele só e abandonado; abria-se para eles um céu de delícias, e para ele um mar de peri­gos e incertezas; sonhavam Henrique e Helena prazeres e venturas, e ele ardia em ódio e via sobre si a condenação de todos; sorriam os dois amantes tendo os corações incendidos de amor enquanto ele gemia e trazia no peito rancor, ódio e desespero.

É assim a história da humanidade, há risos para uns quando há lagrimas para outros; gemem e padecem uns quando ou­tros riem e se alegram; quando os gemidos acordam em uns dores e martírios, em outros despertam os risos prazeres e venturas; lágrimas e risos, dores e prazeres, rosas e goivos, sombras e luz, eis a vida, a his­tória da humanidade.

 

CONCLUSÃO

Deixara Lourenço de Mendonça o Rio de Janeiro em abril de 1637, havendo passado a vara da prelazia ao padre Pedro Homem Albernaz que por eleição do clero exercera já uma vez tão elevado cargo.

Não arrefeceu o ódio dos seus inimigos a partida do prelado;  acusaram-no perante o santo ofício, e ao chegar em junho à Lisboa, foi Lourenço sujeito a processo, que seguiu os trâmites da lei, e terminou em 19 de junho de 1637, pela absolvição do réu declarado por sentença do tribunal livre de culpa pelo fato acusado. (10)

Desejando honrar e dar consideração social a seu comissário conseguiu o santo ofício em 1639 o cargo de prior de Avis para Lou­renço, que apressou-se em aceitá-lo; e ten­do o valimento da inquisição mereceu Lou­renço de Mendonça a proteção do rei e dos fidalgos; nomeou-o o rei Felipe III bispo do Rio do Janeiro, diocese há pouco criada, mas um acontecimento político afastou do Brasil o novo prelado.

Em 1640 sacudiu Portugal o jugo da Espanha; à voz de João Pinto Ribeiro, o Moisés do povo português; findou o cativeiro de sessenta anos, e nas ameias das fortalezas e junto às cruzes dos campanários, apareceu desfraldado o estandarte das cinco chagas; abraçaram-se com ele, saudando a li­berdade e a D. João IV, seu rei, todos os portugueses, menos um, um só... Lourenço de Mendonça que seguiu o partido da Espanha... e ela recompensou-o nomeando-o bispo de Anel no arcebispado de Toledo, mas Portugal... amaldiçoou-o.

Deixemos no velho mundo o renegado po­lítico, e vamos encontrar no Brasil as outras personagens desta narrativa.

No mesmo mês e ano em que afastara-se Lourenço do Rio de Janeiro, começara a exercer o cargo de governador da capitania do Rio de Janeiro, Minas e S. Paulo, Salvador Corrêa de Sá e Benevides, sucessor de Rodrigo de Miranda Henrique que, nomeado para  governar  Angola, lá faleceu em 1653, abrindo-se o seu jazigo na igreja de Santo Antônio.

No cargo de ouvidor continuou Francisco Taveira da Neiva, o quarto provido por el-rei para as capitanias do sul.

De Paulo Pereira não corria notícia averiguada, diziam uns, que retirara para uma das capitanias do interior, outros que se au­sentara para o reino.

Arrastado pela ambição que lhe incitara Lourenço, arrancara do lar paterno a filha de Bárbara, e contara ocultar seu crime até realizar o casamento com essa moça, o que dar-lhe-ia bom cabedal e de algum modo o justificaria na opinião pública.

Preparara a cilada contra Henrique, e dela encarregara a dois malfeitores para se acreditar que haviam cometido esse crime não assalariados por alguém, mas levados só por sua perversidade; morto o filho de Crispim, a filha de Bárbara, perdidas as esperanças do seu primeiro amor, mais facilmente sujeitar-se-ia à sua vontade, pensara Paulo Pereira.

Mas se não realizaram seus planos sinistros: Ana das Mercês, revelando ao jesuíta onde se achava a filha de Bárbara, fez logo pública a criminalidade do ouvidor, que foi destituído do emprego, e tornou seu nome amaldiçoado pelo povo.

Havendo Lourenço deixado o Rio de Janeiro, viveu o padre Manoel da Nóbrega no gozo tranqüilo do seu benefício eclesiásti­co, de vigário perpétuo da Sé e matriz e mais recôncavo da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

A irmã do cura, a mãe Brígida, não aban­donou a bisbilhotice; continuou no seu pos­to, por trás da rótula, a ver e ouvir, como sentinela constante, o corvo implume da sua rua e vizinhança.

Depois da morte de Lucas afastara-se da cidade o seu companheiro Jerônimo, e dele se não falou mais; rosnavam alguns, porém, que depois de haver cometido repetidos e nefandos crimes, fora justiçado na capitania de Minas, outros que morrera à fome e ao desamparo vítima de moléstia contagiosa; mas tal horror haviam incutido esse celerado e seu sinistro companheiro no ânimo do povo que, depois de se ter refugiado da cidade, não houve quem quisesse alugar a casa, que fora o covil desses malfeitores; caiu o prédio em ruína, e depois de noite fechada, alma viva não transitava por ali.

Reintegrado no seu cargo de sacristão, e no honroso e lucrativo emprego de irmão das almas, tornou o José sacristão a suspender o seu oratório, e saco de esmolas; e empavona­do, de opa branca, com passo firme e seguro, e voz doce e flautada voltou  à casa de todos os seus, devotos e devotas que receberam-no ale­gremente, e largaram-lhe no saco boas esmolas; a sua predileta devota fez mais; além da pingue esmola pagou a volta do sacristão com sorrisos e afagos que tornaram-no um pouco gago e enleado ao pronunciar as palavras de agradecimento. Mas as cousas foram indo mais suave e desembaraçadamen­te para ambos; José foi perdendo a gagueira e o acanhamento, e Tereza aumentando os seus sorrisos e carinhos, e tudo isso acabou no casamento celebrado pelo cura das almas, o padre Manoel da Nóbrega.

Quanto a Antônio, o pescador, mereceu o acolhimento e agrado dos jesuítas desde o dia em que salvou das ondas ao prelado Lou­renço de Mendonça; foi em recompensa disso encarregado de fornecer o peixe à companhia, o que deu-lhe em pouco tempo bom e abundante cabedal.

Desembarcando a tia Escolástica em Lis­boa, foi levada aos cárceres do santo ofício e, depois de vários interrogatórios, obteve a absolvição; logo que viu-se livre embarcou para o Rio de Janeiro, e ao chegar nesta ci­dade dirigiu-se à sua morada; ficou a ve­lha louca de alegria ao entrar em sua casa; ria e chorava ao mesmo tempo, beijava as imagens de seu oratório, abraçava-se com a almofada do crivo, passava entre os dedos os seus rosários, revolvia as figas e os bentinhos. Uma escrava, que ficara na pobre habitação, experimentou também vivo prazer ao ver entrar a sua senhora; de joelhos e chorando beijava-lhe os pés, abraçava-se com eles e fazia repetidas exclamações.

Crispim e Henrique vieram visitar a tia Escolástica e convidaram-na para residir em sua companhia; a velha concordou e não deixou mais tão bom amigos protetores.

Era no mês de maio de 1637. Tendo percorrido quase todo o círculo diurno imergia-­se o sol na vastidão do horizonte, iluminava seus últimos raios as cruzes dos campanários e as nuvens colocadas no oriente; o vento que soprara rijo de manhã, como para abrandar os ardores do astro do dia, havia diminuído sua força e pouco se fazia sentir; estava o céu azul e sereno; adejavam as aves aquáticas então muito abundantes na baía do Rio de Janeiro; os passarinhos pepitando volitavam de árvore em árvore; as flores que só dão perfumes quando o sol vai para o ocaso, já aromatizavam a atmosfera, e cha­mavam os sinos aos cristãos ao terço quando assomaram à porta da ermida de Santa Bár­bara uma moça vestida de noiva; seguia-a uma mulher idosa, logo após um moço de uniforme militar, que apoiava em seu braço a um velho de noventa anos. Entraram na ermida acompanhados de diversos convida­dos e ajoelharam-se todos. O padre se não fez esperar; uniu e abençoou os noivos, cujos nomes vão os leitores repetir conosco, Hen­rique e Helena, que, depois da benção da igreja, foram abençoados por seus pais, Bárbara e Crispim.

O padre era o jesuíta João de Almeida.

FIM

NOTAS

(1) Memórias Históricas de Pizarro, vol. 2º pags. 40 e 41.

(2) Balthasar da Silva Lisboa menciona o nome deste cidadão entre os das pessoas de distinção que ajudaram a fundação e edificação do Rio de Janeiro.

(3) Vimos referido este fato em um manuscrito.

(4) Em 1811 o senado da câmara beneficiou a essa nascente d’água cingindo-a com um muro no qual mandou gravar a palavra Providência; que, há alguns anos ainda podemos decifrar nesse muro esboroado. 

(5) Nos anais do Rio de Janeiro enumera Balthasar da Silva Lisboa essas relíquias conservadas na igreja dos jesuítas, no Rio de Janeiro.

(6) São vultos históricos este jesuíta e José de Anchieta, e não afastamo-nos da verdade descrevendo-os nestas páginas.

(7) V. Memórias Históricas de monsenhor Pizarro vol. 2º pag. 221.

(8) V. Memórias Históricas de monsenhor Pizarro, vol.2º pag. 223.

(9) V. nas Memórias Históricas de monsenhor Pizarro a notícia do governo dos prelados administradores do Rio de Janeiro.

(10) V. nas Memórias Históricas de Pizarro, vol. 2°, pag. 223.