Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Os argonautas, de Virgílio Várzea


Edição de referência:

Virgílio dos Reis Várzea, Os argonautas,

Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1893.

Ao grande poeta brasileiro

LUIZ DELFINO

Homenagem de admiração e estima

a maior individualidade literária que tem produzido

a minha terra natal,

o estado de Santa Catarina.

Argonautes fameux, demi-dieux de la Grèce,

Castor, Pollux, Orphée, et vous, heureux Jason,

Vous de qui la valeur, et l'amour, et l'adresse

Ont conquis la toison.

VOLTAIRE

Prima deum magnis canimus freta pervia natis,

Fatidicamque ratem; scythici quae Fasidis oras

Aura segui, mediosque inter juga concita cursus

Rumpere, flammifero tendem consedit Olimpo.

VALERIUS FLACUS

Tão brandamente os ventos os levavam

Como quem o Céu tinha por amigo:

Sereno o ar, e os tempos se mostravam

Sem nuvens, sem receio de perigo...

CAMÕES

Os argonautas

I

Uma madrugada de ouro alastrava os céus azuis da Hélade. As muralhas rendilhadas de Iolkos, envolvendo uma multidão de palácios e templos, branquejavam na verde curva do golfo, cujas ondas refletiam magicamente a cidade que tinha, n'água, a rutilação e o aspecto das paisagens polares. Aqui a além, pequenas ilhas frondentes surgiam, como ninhos de verdura ou grandes esmeraldas, sobre a ampla planura de turquesa líquida. As águas do Pagasæ, man­sas e espelhadas, vestiam um esplendor de púrpura ao Levante, onde espuma o Egeu, e con­vidavam a vogar. Longe, ao Norte, no Ossa, fulgiam feericamente, acesas pelo sol, no seu recorte em ameias, as plateas nevadas do Pe­lion. E ao sul, na Eubeia, vinha pouco e pouco emergindo das águas, sob a loura gaze alvoral, o promontório de Artemisa com as suas rochas altas...

Fora das muralhas, num extenso e delgado pontal de areias douradas, homens e mulheres, em multidão, toucados de flores, empunhando palmas e fachos, de pé e olhando as ondas, entoavam entusiasticamente um hino pri­mitivo e bárbaro, mas heroico e cultual a POSEIDON, Deus dos Mares, — enquanto pequenas embarcações, leves batéis de formas singula­res, alinhados em flotilha, ganhavam o largo, impelidos por longos remos prateados que jo­vens marujos atléticos, sentados aos bancos, brandiam vigorosamente, a pulso.

À popa de cada batel destacavam-se grupos de guerreiros trazendo lanças e escudos. Pareciam deuses, aparelhados em guerra, partindo, numa rajada de aventura e audácia, para alguma conquista ou desafronta à pátria, lon­ge, em terras remotas, perdidas nas águas. Eram fortes e belos, de uma grande elegância de porte, as faces morenas emolduradas em densa barba negra e esplêndida cabeleira an­elada. Voltados para a praia, abanavam com as lanças e escudos à multidão que ficava, e que, numa permuta de adeuses acenava também, agitando palmas e fachos.

Dentre esses homens, olímpicos um sobressaía, mais alto, mais augusto que todos. Tinha um grande aprumo marcial. Vinha só, em meio aos remadores, num batel de cedro dourado. Altivo e majestoso sobre o elevado paneiro de popa, um capacete de ouro à cabeça, um vasto manto de púrpura flutuando no ar, pa­recia de pé sobre um trono, singrando à testa da alígera flotilha. Era Jasão, o bravo almi­rante dos Argonautas.

Já o sol surgira de todo; alagando com a sua luz viva e fulva o cristal verde do golfo, a branca cidade de mármore, as arenosas costas recurvas, as planuras sem fim da Tessália. Uma leve brisa de norte, vinda talvez dos rúti­los cimos do Olimpo como uma deliciosa carícia dos Deuses, soprava docemente, enrugan­do a toalha das águas que se enchia de um frêmito.

E já Argo, a nau poderosa, tremia e caturrava nas amarras de prata, ao bafejo afagante da aragem. Toda dourada, resplandecia sober­bamente ao sol. À popa alta, além do enorme e recurvo convés, três cobertas corriam, assinaladas exteriormente, no casco, por longos verdugos de marfim e de ébano, findando, à alheta, em cabeças de Hidras assanhadas, tendo estendidas em assalto as escarlates línguas de ar­pão, torcendo-se furiosamente aos cantos do largo espelho de ré, feito de carvalho maciço para resistir às vagas. A proa, posto que muito resistente, fora, contudo, reforçada com um grosso lenho da sagrada floresta de Dodone, onde estavam os Oráculos. À larga enora do gurupés um entalhado pesado e rude, gigantes­co, de uma estética bárbara, representava a Águia-Real da Tessália, a envergadura aber­ta, na atitude decisiva de arrojar-se ao Espaço, levando nas garras aduncas um dragão suplantado. Três mastros cilíndricos e altos, de um só pau, erguiam-se, à igual distância uns dos outros, estalados e enxarciados de prata, os topes coroados de uma estrela de ouro, a cinco raios, — a POLAR. Tal arvoredo, simples e primitivo, armava latinos de púrpura, abrin­do ao vento como asas. Interiormente, o navio não tinha quase porão, e além de um largo vazio ao fundo, sobre o forro das cavernas, onde ia o pesado lastro, um lastro de colunas dóricas, de mármore de Páros. Mas as cobertas dividiam-se em sacrários e câmaras para o chefe e subchefes náuticos, camarins para a oficiali­dade, praças de armas, paióis de munições bélicas e de boca, e cabines para a marinhagem. Uma dessas cobertas, a segunda, que era o Santuário do navio, abria-se em dois largos âmbitos suntuosos, cheios de incrustações e ornatos: no de popa, o Altar de Hera (a “sobe­rana”, como os gregos chamavam a JUNO) bri­lhava, qual uma constelação de céu tropical, erguido às orações e sacrifícios à Deusa sob cuja benção a expedição se arrojava: no de proa, elevava-se, em ondas de ouro chamejantes, talhado em forma de concha, o de Po­seidon, Deus dos Mares, invocado sempre, com fervor, às Cerrações e às Tempestades. Na tol­da, à extrema ré, ficavas os luxuosos camaro­tes de Jasão, forrados de ouro e damasco, deitando grandes discos de vidro — as vigias — para o Céu e para o Mar...

Quando os batéis atracaram a Argo, os cânticos cessaram na praia. Um silêncio sagrado enchia o ar cheio de sol, envolvia as verdes águas. E só a brisa do norte siflava tenuemente, alegremente nos cabos e mastros.

Ao erguer âncoras a galé, uma derradeira saudação de despedida, um pean prolongadamente estrugiu, partindo do pontal arenoso e ecoando numa plangência nostálgica. E a mul­tidão agitou, outra vez, as suas palmas e fachos.

Os Argonautas, de pé ao tombadilho, aba­navam também com as suas lanças e escudos, enquanto Tifis, o famoso piloto, conhecedor de todas as costas e mares, postado ao leme ao lado de Jasão, entrava a desvendar-lhe o misterioso segredo dos Rumos e a difícil arte das Manobras Náuticas.

E, velas soltas ao vento, Argo começou a singrar, como um estranho, magnífico cisne de ouro e púrpura, para a sua arrojada viagem, deixando a ondular pela popa uma imensa esteira de espuma.

Levados pelo próprio almirante os oficiais argonautas, como toda a marinhagem, soltaram então, em coro, fitando as ondas em volta, o conhecido hino sacro-marítimo à ABEONA, a divindade que presidia às viagens, à partida, velho hino esquipetarpelasgo que impetra tão sentidamente a proteção e as bençãos do OLIMPO para os que cruzam, às bonanças e às tormentas, a vastidão e os turbilhões do Oceano:

Amarras a pique

A nave ergue velas;

Oh, deita ABEONA

Teus olhos a elas!

Protege os marujos

Que arrojam-se aos mares

E deixam em terra

Seus bens e seus lares!

Ao lado de JÚPITER

De onde dominas,

Ampara as galés

Co’as graças divinas!

Guia, oh Deusa, a nau

Ao porto e destino

Por nós pede aos DEUSES

Do OLIMPO divino!

Amarras a pique

A nave ergue velas;

Oh, deita ABEONA

Teus olhos a elas!

Depois entoaram uma suave, amorosa ora­ção a VÊNUS, a arrebatante deusa adorada:

Astro de esplendor,

Flor da Formosura,

Dá-nos teu amor

E graça e ventura.

E d'Argo, arrojada

Sobre os vagalhões,

A ti, DEUSA amada,

Subam orações.

A galé avançava lentamente para o sul, cor­tando as vagas aos balouços, afogada em turbilhões de espuma. Iolkos esmorecia a distância, na brancura dos seus mármores. E todos, olhando a terra que fugia num afastamento contínuo e saudoso onde tudo se afundava e sumia, entraram a experimentar as primeiras oscilações cadenciadas da berceuse do Mar...

Ao pavilhão do comando, diante da in­comparável solidão e majestade oceânica, Jasão, agora, meditava, imerso no seu grande sonho de glória — e sorria agradecido aos Deu­ses por lhe serem propícios e o protegerem na aventurosa viagem. Despojado e afastado do trono sem talvez o perceber, em vez de rei­nar sobre as ricas terras da Tessália, largava, por mares desconhecidos, atrás do Velo de Ouro ideal, cuja história encantadora o arrebatava à terras longínquas com toda uma plêiade de heróis. Levava no espírito a certeza da vitória e contava volver em breve a Iolkos, se­nhor do mundo e do Velocino Mágico. Ante­gozava já as delícias do futuro triunfo, por­que a falange que o seguia era invencível e nem os Fados poderiam esmagá-la. Quem ou­saria afrontar Héracles, Castor e Pólux, Nebô, Admeto, Alfeu, Telamon, Meleagro, Nestor, Ancor, Climenius, Melas, Acasto, Erginius, Zetes, Oiteu, Euritus, Laertes, Orfeu, Nau­plius, Fabros, Peleu, Polifemo, Calais, Hi­las, Teseu e poderosos guerreiros? E, mentalmente, via surgirem já a seus olhos, num prodigioso esplendor, as praias de ouro da Cólchida.

Anoitecia, quando a rutilosa galé velejante entrou serena no Egeu. Estavam à vista as Sporadas Setentrionais — Sciatos, Scopelos, Halonese, Eudêmia, com as suas rochas cinzentas e estéreis, apenas cobertas, nas fendas e grotas, pela renda verde tremulante das oli­veiras e vinhas. O luar raiava ao Levante, no horizonte azulado, numa brancura de jasmins. Os Argonautas então, voltados para a Lua, na tolda, saudaram a DIANA, cantando:

Salve, rainha da Noite!

Salve, deusa de alvo colo!

Querida filha de JÚPITER,

Linda irmã do louro APOLO.

Durante um mês, Argo rompeu o mar espu­moso fazendo a curva do golfo Termaico, a montar o promontório Singos, na Chalcídica, em demanda do Helesponto. Tida a Macedônia fora percorrida, costa a costa, até que, aproada a leste, já perdida a bombordo a ponta extrema da península de Aele, numa clara al­vorada de calma, as esmeraldinas montanhas de Lemnos surgiram ao gurupés. E como vies­sem todos saudosos de terra, saturados da mo­notonia das vagas e derreados pela fadiga da faina, Jasão ordenou a Tifis rumasse presto à Heféstia, capital de Lemnos, a cidade de euro amada. Em pouco, Argo fez rolar os seus fer­ros e amarras de prata numa plácida e linda enseada, cujas águas transparentes lembravam os lagos azuis da Tessália.

Súbito, na larga faixa da praia onde se erguia a cidade de mármore que o Sol iluminava deliciosamente, entrou a aparecer uma multidão de mulheres alegres e graciosas, de uma beleza extraordinária, as quais, envoltas em vestes de um azul transparente como o céu dessas para­gens, coroadas de parras virentes e cachos de uvas douradas, à maneira das verdes encos­tas da formosa enseada, encaminhavam-se para o pontão do litoral onde fundeara a nave, dan­çando e cantando, com braçados perfumosos de rosas d'Armênia ramos de mirto sagrado.

Eram as célebres filhas de Lemnos que, ten­do à frente Hipsipile, a sua tentadora rainha, por uma estranha e surpreendente exceção, corriam a acolher e saudar os recém-vindos, entoando docemente, em coro, o saudoso Cân­tico dos Nautas, tão conhecido e, querido no continente como em todas as ilhas da Hélade. Essas formosas pelasgas tinham uma história sinistra, pois, alguns anos antes, haviam dado àquela ilha, em toda Grécia, uma celebridade, trágica. Contava-se que, tendo desacatado a AFRODITE, fizera a deusa com que elas se tor­nassem repugnantes aos maridos, que as aban­donaram pelas escravas da Trácia. Então as lemnianas, agastadas, enciumadas, feridas por um tal abandono, juraram-lhes uma vingança de morte. Com efeito, na noite da festa, de MARTE, a mais famosa da ilha, elas, arrasta­das, exaltadas pelo despeito e os vinhos, numa irresistível alucinação e furor, em meio das consagrações entusiásticas da orgia divina, degolaram-nos a todos com as espadas do Santuário, quando, aos pés do Deus, de joe­lhos, faziam eles as oblações de soldados. De então por diante todos os homens que ousa­vam abordar ou pisar os seus domínios eram igualmente vitimados. Assim foram, por várias vezes, alguns bandos de piratas toronaicos e singíticos. Mas, agora, extinto para sempre o ódio aos Homens, acordado da sua obsessão o nervoso temperamento feminino, em anseios e desejos de novos amores, elas, febricitantes e sôfregas, há tanto tempo viúvas das virilidades amadas, dóceis e carinhosas, os seios anelantes, vibrados pela longa ansiedade e saudade das carícias másculas, jogavam-se, arrebatadas e loucas, num delírio lúbrico nos braços dos Argonautas.

Hipsipile, rainha de Lemnos, tomou logo a Jasão por esposo e assim as outras a cada um dos nautas. E durante semanas, que voaram — tão breves passam a Alegria e o Gozo! — em festas contínuas e feéricas, ecoando sobre as águas azuis do Egeu, na ilha encantadora, gregos e lemnianas sofregamente se amaram...

Mas Argo tinha de seguir para o oriente, em busca do TOSÃO DE OURO. E os heróis da Lenda e do Sonho abandonando os encantos e delícias femininas, uns belo dia partiram, deixan­do as pobres lemnianas em uma nova e talvez eterna viuvez, enganando-as porém, à despe­dida, que em breve voltariam. Tempos depois, sabendo elas que eles não mais volveriam, amotinaram-se contra a sua rainha, a quem exclusivamente inculparam da recepção e boa acolhida feita aos Argonautas, pelo que a ex­pulsaram, por fim, da ilha, metendo-a sozinha num pequeno batel que soltaram mar em fora. Os piratas a apanharam, livrando-a da morte e indo vendê-la a Licurgo, rei de Nemeia. Nessa corte a acolheram caridosamente, e o monarca, ele próprio, lhe entregou a criar e educar seu filho Arquemoro, a quem ela se devotou como mãe. Hipsipile, andando uma vez a passeio com o menino, encontrou a coorte dos Príncipes que iam pôr cerco à Tebas e que, pedindo lhes indicasse uma fonte onde pudessem desalterar-se da longa marcha que traziam, a obrigaram a depor, por instantes, a criança sobre um pé de aipo, enquanto ela os condu­zia à dita fonte. Ora uma serpente que se acha­va oculta naquela planta mordeu o principezinho que morria logo depois. Licurgo quis punir de morte a descuidada ama, mas não o conseguiu porque os Argivos tomaram-na à sua proteção. Em memória desse acontecimento é que se instituíram os Jogos Nemeus, celebra­dos trienalmente e nos quais os vencedores se vestiam de luto e se coroavam das folhas da umbelífera sobre a qual perecera o filho de Licurgo...

Entretanto a expedição vogava em alto mar, a rumo da Samotrácia onde devia tocar, para não afrontar, numa travessia direta ao Helesponto, os perigosos e rijos ventos de leste. Imbros já fora deixada a estibordo, verde e fulva, talhada em forma de parra.

Abordada a capital da divina ilha dos Cabi­rãs — Kabirim, os Deuses Poderosos, ou Kaberim, os Deuses Associados, formando a tetrarquia de AXIERUS, AXIOGERSUS, AXIOGERSA e CADMILUS ou CASMILUS, deuses fenícios con­fundidos e até sobrepostos aos ancestrais e quase obliterados deuses pelásgicos, mas que atraíam alvoroçadamente as populações do litoral continental da Grécia, como as de todas as ilhas, às suas grandes festas anuais, — Argo ferrou as velas de púrpura e mergulhou as âncoras n'água.

Logo os habitantes correram, em massa, à praia; e no cimo da mais alta colina, o grande Santuário do culto se abriu para receber os desconhecidos e aventurosos forasteiros do Mar, resplandecendo magnificamente ao sol pela sua enorme frontaria e altas colunas de mármore. Sabidos os destinos da nave e os in­tuitos do seu almirante e comandados, o monarca indígena os recebeu em seu palácio, marcando-se o outro dia para a iniciação dos expedicionários nos mistérios do culto cabírico.

Efetivamente, no dia seguinte, aos primei­ros clarões da manhã, o cortejo oficial, tendo à frente o rei Tiricus e cercado da população da cidade — homens, mulheres e crianças — encaminhou-se para o desembarque a esperar a maruja tessálica. E apenas Jasão e seus oficiais e marinhagem saltaram, numa coor­te luzida, do amplo átrio do templo, por uma erguida e sinuosa estrada que descia até ao mar, o Magno Padre e os Sacerdotes Menores, dispostos em procissão, empunhando ramos de oliveira e fachos acesos, entraram a baixar lentamente, num murmúrio arrastado e sonoro de rezas e cânticos ao encontro dos Argonautas. Aumentou-se, então, ainda mais o séquito imperial que, guiado pelo Magno Padre e os Sacerdotes, percorreu toda a cidade, envere­dando depois para o templo onde ia ter lugar a iniciação dos heróis d’Argo. Chegados por fim ao átrio, foram levados todos para um imenso bosque de faias e plátanos que se es­tendia numa légua quadrada, pelo vasto platô que planurava a colina no alto. Era a hora do meio-dia, a mais propícia à iniciação cabírica, porque FEBO ardia em pleno Azul, dominan­do tudo, em triunfo, cheio de júbilo e cheio de esplendor.

Numa esplêndida e larga clareira existente ao centro do bosque, ao fundo do Santuário, reuniram-se os Argonautas cercados dos religiosos, dos místicos, do rei e do povo. Coes, o Magno Padre, subiu então para uma espécie de púlpito de mármore amarelo docelado de púrpura, para dar começo à cerimônia, que era a confissão dos que aspiravam à iniciação sacra. O primeiro a submeter-se a essa prova primordial foi Jasão, seguindo-se depois a sua oficialidade e companha.

Doces e flébeis melodias de cálamos romperam então, de repente, dentre as folhas rendilhadas das faias e plátanos, elevando-se na luz álacre e de ouro do sol a pino e indo morrer lentamente sobre a vaga azul do Mar.

Confessados os marinheiros tessálicos, o venerando e majestoso Coes desceu do púlpito, e, com os demais sacerdotes, tomando Jasão pela mão seguido da sua equipagem, bara­fustou, a passo lento e solene, pela entrada em gruta de um subterrâneo escuro, que se abria logo adiante e percorria, em voltas labirínticas, todo o inter-solo do bosque, surdindo após junto a um alto e rico sólio de mármore verde, postado dentro de um circular e rutilante pavilhão dourado, construído de delgadas colunas corínticas sustentando uma larga cúpula de vidros policromos que era uma maravilha.

Instantes decorreram num silêncio tumular, quando, por um vasto pórtico de granito negro, que ladeava o sólio à esquerda, o Magno Padre apareceu, ao estrugir de um pean divino, exe­cutado por trombeteiros místicos tocando em trombetas de prata, que faiscavam cruamente, pelas suas duplas voltas caprichosas rematando em grandes bocas abertas de golfinhos. Esta­cou então, com todos os iniciados e os Sacer­dotes, em frente à ampla escadaria do sólio, que, batido em cheio do sol a prumo, dir-se-ia envolto numa maravilhosa e estranha fotos­fera de luz multicor. A um sinal da sua mão erguida, doze Sacerdotisas, muito jovens, de peregrina beleza e esculturais formas opulen­tas, vestidas de um tecido de ouro transparente que lhes sobrelevava intensamente a nudez, dando tonturas de volúpia, acercaram-se — e, com graciosa e incomparável destreza, ataram um véu de escumilha no rosto do chefe marujo, pon­do-lhe aos ombros uma estola de seda azul e no alto do capacete um verde ramo de oliveira, o mesmo fazendo com cada um dos Argonautas. Em seguida, o Magno Padre galgou a es­cadaria e entrou no pavilhão circular, mandan­do os iniciados sentarem-se por instantes um a um, no rico sólio de mármore, sob a sua longa benção divina e pontifical...

Consumara-se o tronismo: estavam abertos aos iniciados os fundos e complexos mistérios do culto cabírico.

Então o Coes, os Sacerdotes, as Sacerdotisas e os Místicos desceram apressadamente, e, dando-se as mãos e formando um círculo em torno ao radiante Pavilhão multicor, entraram a executar os cânticos e danças simbólicas, que eram acompanhadas pelo rei, a corte e o povo, enquanto a invisível orquestra dos calamos chorava melodias saudosas por entre a densa folhagem rendilhada das faias e plátanos farfa­lhando ao vento...

II

Semanas volvidas, depois de júbilos e festas contínuas, Argo se fez de novo ao mar, tomando a sua rota do Oriente, em direção à ponta meridional da Gersoneso trácica na entrada oeste da Propôntida.

Uma manhã, um nevoeiro denso encobriu-lhe a entrada do estreito, e a fúria do nordeste que rugia, impelindo-a para o sul, levou-a ao país dos Doliones, onde estacionou, enquanto amainavam os ventos daquele quadrante. Aí, Kizicus, o rei desse povo áspero e duro, negou-se a dar hospedagem a Jasão e seus ma­rujos. Não obstante, os Argonautas resolutamente saltaram.

Numa extensa mata de loureiros e cedros que orlava o litoral, antes de alcançar-se as estradas e portas das muralhas que conduziam aos empinados penhascos sobranceiros ao mar, onde pousava a capital doliônica, foi esperá-los o rei, com a sua guarda aguerrida, numa terrível emboscada, pensando os poder assim aniquilar de um só golpe. Cautelosamente, entretanto, e sempre na orla das vagas, mar­chavam os nautas tessálicos, seguidos de per­to, na linha de rebentação espumosa, por uma flotilha de batéis com marinheiros armados, prontos a arremessarem-se à praia ao primei­ro sinal. Mas tal não foi preciso, porque Kizi­cus, impetuoso e arrojado, não julgando do ver­dadeiro valor dos marujos helenos e avaliando mal o seu número, deixou a maior parte das suas forças ao fundo da mata, junto às portas da cidade, e avançou audazmente para o por­to, apenas com sessenta dos seus mais bravos e possantes centauros. De sorte que, ao enfren­tarem os primeiros maciços do bosque, foram os Argonautas de repente atacados. Teseu, Castor, Pólux, Melas e, sobretudo, Héracles obraram, então, prodigiosas proezas, vencendo, esmagando ou pondo em fuga, embora pedes­tres, os destríssimos e fortes cavaleiros doliônicos, que pareciam voar por todo o campo da ação nos seus pequenos e vivos cavalos da Cária.        

Alguns dos centauros inimigos acabaram cri­vados de flechas; outros, arrastados para a água, foram afogados a furiosos golpes de remos da guarnição dos batéis, que nem desembarcara por desnecessário; muitos, arrancados a pulso de cima dos cavalos, ficaram mortos a lança­ços; e ainda outros, feridos e mutilados, fugi­ram. Só Kisicus resistiu até à última, com uma bravura inusitada, vindo a perecer, por fim, já apeado e sozinho, perdidos a lança e o arco, numa longa luta muscular, braço a braço, com Jasão.

Era a poucos passos do cabo Ligeu.

Hesiona, filha de Laomedon, célebre profe­tisa gálata ao serviço do rei, e que na véspera fora por ele consultada sobre o ataque aos fo­rasteiros e a recusa de hospedagem, tendo a tudo isso garantido o apoio e sanção dos Oráculos e Fados — logo que viu Kisicus cair mor­to, deixou o torreão que habitava no alto do cabo e, a correr, alucinada de horror, cabelos desgrenhados, a túnica branca ao vento, jogou‑se à fúria das vagas. Estava prestes a morrer, tragada por um dragão marinho que, surgira de repente, quando Héracles chegou em seu socorro, meteu-se na água, matou o monstro e volveu à terra, trazendo-a triunfante nos braços. Ela ficou louca de amor por ele. Mas o deus invencível, o pai da Coragem e da For­ça, a repeliu docemente — e ela, assim descorrespondida e desprezada no seu primeiro afeto, logo que Argo partiu, foi morrer de paixão e de abandono no interior da Galácia...

Já então o duro nordeste calmara, dando a palma à fresca brisa do sul. A galé fez-se de novo ao norte, em demanda do Helesponto.

Em três dias, por uma tarde de mar chão e sereno, velariada de azul e ouro no alto, com o sol a fulgurar brandamente no ocaso, redondo e grande como o disco metálico de um escudo espartano. Argo enfrentou airosamente, com todo o pano ao vento e vermelhando a crepúsculo, a boca montuosa e florida do alme­jado estreito. No alteroso torreão do comando, de pé ao lado de Jasão, Tifis, o grande piloto, mandou então cambar amura. E a veleira nave, pomposa qual monstruosa gaivota ou cisne de ouro, começou a virar docemente a sua proa em Jotus, coroada da Águia-Real da Tessália, para os altanados pórticos de Galipoli, ornados de relvas e rosas, onde o Egeu se enlaçava à Propôntida num amplexo de bonança, frisados apenas de espuma aos cabeços litorais.

A marinhagem argonauta irrompeu logo na tolda, a unir-se à que estava de quarto. Num alvoroço ruidoso, almirante, oficiais e marinheiros saudaram entusiasticamente a JÚPITER, a POSEIDON e a HERA, pelo triunfo alcança­do, pois era aquela a primeira, a mais difícil e mais notável estância da longa viagem, ven­cida até ali sem o menor obstáculo ou perigo. Depois Orfeu tomou da sua lira divina e exe­cutou uma suavíssima elegia a Hele, justa­mente na altura em que perecera essa linda filha de Atamas, irmã de Frixo, quando am­bos, arrebatados salvadoramente pelo Carnei­ro lendário que os levava para a Cólchida, fugiam à cólera de Demodice, mulher de Cre­teu, que os queria imolar aos DEUSES, a fim de aplacar a peste que devastava os seus reinos, por não ter correspondido ao seu amor o desdenhoso e adorado sobrinho. Hele morrera afogada pelo fundo pavor que lhe causara o terrível bramir das ondas tempestuosas do es­treito, deixando-se desprender da grossa lã do Cordeiro mágico, ao momento mesmo em que este atravessava, pelo ar, das costas europeias de Eleontes para as costas sigeas da Ásia. Da triste memória dela é que veio a essas águas o poético nome de Helesponto. Mas o irmão, mais feliz, seguira sempre. O famoso animal de velo precioso chegou por fim à Cólchida, des­cendo e parando numa formosa campina, onde havia um bosque consagrado a MARTE. Aí Frixo o sacrificou a esse deus, e, tirando-lhe a longa e rica pele que era de fios de ouro, o dependurou da principal árvore da mata sa­grada. Daí ficou-se chamando a essa pele virtuosa e encantada — VELO ou VELOCINO DE OURO. O Deus da Guerra rejubilara com essa grande oferenda votiva, determinando que todo aquele que viesse um dia a possui-la gozasse, enquanto a conservasse, das maiores glórias, felicidades e riquezas, permitindo, para isso, aos homens o direito de empreenderem a sua conquista.

Após a expressiva e melancólica elegia à Hele, Jasão e seus comandados entrega­ram-se a toda sorte de danças e cantos festi­vos, enquanto Argo fendia para o estreito, a balouçar-se feliz nas ondas em bonança.

De repente, porém, ao montar o promontório Sigeu e ao descobrir a coroa branca da praia, onde vinham morrer de muito longe os campos verdes de Troia, uma frota numero­síssima de pequenas embarcações ligeiras, como um infindo bando de pássaros marinhos caindo sobre uma presa, aproou à força de vela para a nau argonauta. Eram os terríveis piratas tirreus que, em manobras habilíssimas, rápidas, cercaram a pesada e alta Argo, acometendo-a com uma densa surriada de setas e um ataque de abordagem. Cerca de quarenta dos seus batéis conseguiram atracar ao costado da galé tessálica; e, apesar do chuveiro grosso de setas, dos golpes de lança e maça, que, de cima das bordas altas, lhes vibrava incessantemente a intrépida e possante maruja grega, al­guns dos mais audazes piratas lograram galgar, de ímpeto e aos saltos quais funâmbulos, o largo convés inimigo, num denodo desvairado. Mas foram todos massacrados; grande parte dos seus pequenos barcos afundou-se; os outros fugiram, a pleno vento e em total desbarato, indo ocultar-se nas protetoras anfractuosida­des da costa. A nau argonauta não tivera a me­nor perda.

Velejando sempre a um largo, a galé vitoriosa chegou nesse mesmo dia, à tarde, à ca­pital da pequenina mas pitoresca nação dos Dolopes. O bom rei Kisico e o seu povo rece­beram carinhosamente os expedicionários que, não obstante, pouco se demoraram, largando em breve para leste, com o bom tempo e o vento norte que reinavam.

No entanto, uma noite, antes de chegar ao pequeno rio Grenike, assaltou Argo um medonho tufão de noroeste. O céu carregara-se, ne­gro de fuligem. O horizonte fechara-se, estrei­tara-se, cortado de relâmpagos. Tudo, em torno, enevoara. A guiadora Estrela Polar, que tão límpida e protetoramente fulgurava a bom­bordo marcando o rumo a seguir, repentina­mente sumira-se. Trovões contínuos rolavam, estouravam furiosamente no alto, entre os cali­ginosos e espessos bulcões que o vento sacudia, impelia e torcia, incessantemente, diante de si. O mar, raso e cheio de bancos, preso e comprimido no aro oval das suas costas, alter­nadamente de areia e rochas a pino, apesar da extensão de duzentos e sessenta quilômetros, por oitenta e cinco de largura, arfava e espumava, revolto e furioso, ampolando-se em vagalhões explosivos que ameaçavam engolir tudo. Argo, com todo pano ferrado, corria agora ao acaso sem quase governo e sem-rumo, aos balanços e trancos formidáveis, galgada e alagada pelas ondas de banda a banda...

Era esta a primeira borrasca que apanhavam os Argonautas, os quais, aterrados com tão inopinada mudança de tempo e de sorte, supondo-se já abandonados dos seus Deuses protetores, não largavam o Santuário, a invocar fervorosamente HERA e POSEIDON. Só Jasão e Tifis não deixavam os seus postos no torreão do comando, a manterem, com alguns destemidos oficiais subalternos e a valente mari­nhagem de quarto, o governo e rumo do navio, ia então posto à capa, aproado ao vento e ao mar para poder aguentar a violência e os em­bates das vagas. E assim se passou a maior parte da noite até que, ao alvorecer, a tormenta acalmava, amainava, e a bela cidade de Blin­dakos, na Mísia, surgia alegremente, salvado­ramente, à proa. Então içaram velas de novo, e, poucas horas depois, fundeavam no porto, onde o imperante local e seus súditos, pasmos de verem ali aportar aquela nave após tama­nho vendaval, os acolheram com simpatia e agrado.

Apenas saltaram Jasão e a sua oficialidade, apressaram-se em consultar os Oráculos (numerosos nessas antigas colônias pelásgicas em todo o vasto circuito litoral da Propôntida) so­bre a origem da incruenta borrasca e sobre o futuro da viagem, enquanto, a bordo, a com­panha, ainda extenuada orava e queimava re­sinas sagradas a POSEIDON, deus dos Mares, agradecendo-lhe a milagrosa salvação das próprias vidas e a da forte e brava Argo. Chega­dos ao bosque sagrado onde se achavam os Oráculos, estes lhes revelaram a origens da tempestade que os flagelara. Fora Eólo que, um momento indignado contra o manso e meigo Zéfiro e o bondosíssimo Bóreas, asso­ciados nobremente em proteger a expedição, lograra, iludindo a vigilância de POSEIDON e de HERA, desencadear sobre Argo o sudoeste infernal. Mas — acrescentaram os Oráculos­ nada mais receassem os Argonautas, pois de­veria correr-lhes, dali por diante, em perfeita bonança, a viagem.

Era um país risonho e feliz essa Mísia, cheia de planícies e montes suaves, cobertas de relval e bosques encantados, onde Ninfas semi­nuas, de alta beleza, vagavam em bandos, à solta, fascinando e amando os Heróis. Os Argonautas ficaram perdidos por elas, mas continham-se para evitar a dispersão da companha e levar a termo e bom fim a conquista do Velo Sagrado.

Aí se detiveram ainda um dia, porque os naturais lhes ofereceram um grande banquete, ao qual compareceu Jasão com toda a sua gente, menos a parte da maruja e oficialidade indispensáveis aos serviços de bordo nos por­tos e menos Héracles, que se dirigira à floresta mais próxima à procura de árvores apropriadas para o fabrico de remos, destinados não só à galé como aos batéis, pois as vagas que cons­tantemente lavaram as cobertas, o convés e a tolda, durante o temporal, os haviam carregado, em quase totalidade, nos seus golpes-de­-mar e invasoras espumas.

O festim ia em meio, quando uma nova des­agradável alarmou os Argonautas. Um valido de rei do Mísia chegara de repente, esbaforido e à pressa, a comunicar ao chefe expedicionário que um dos seus oficiais, Hilas, fora visto, campo fora, já longe, lutando em vão contra as Napeas, que, em bando numeroso e gracioso, o arrastavam para os densos e flori­dos recessos das encantadas matas onde vi­viam.

O formosíssimo Hilas tinha sido por elas raptado, na ocasião em que, após delongado passeio nos prados, saciava a secura da longa caminhada, bebendo, pelas próprias mãos ajus­tadas em forma de ânfora, da pura e desse­dentante água de uma fonte chamada a Consoladora dos Deuses, que ficava mesmo à orla do vasto Bosque de Vênus, no pendor de uma colina sulcada de um veião de prata líquida, conhecido geralmente pelo Colar de Diamante, porque traçava quase um círculo em torno ao viso empinado desse outeiro de esmeralda.

Os Argonautas ergueram-se imediatamente correndo ao local indicado, a salvar o companheiro. Polifemo, que tinha pernas de gamo e era famoso pela sua velocidade nas corridas a pé dos Jogos Olímpicos, tomou a dianteira a todos, chegando a avistar o colega debaten­do-se nos braços das Ninfas, que o levavam à força, sorrindo e cantando, em vertiginosa carreira. Encontrou então a Héracles, o maior amigo de Hilas, que, ao dar com este assim aprisionado, deixando de parte os paus em que estava a talhar remos, acudira a libertá-lo. Na­peas e prisioneiro fugiam, porém, inapanháveis, diante dele. Polifemo emparelhou-se então com o Deus da Força, e ambos, correndo sempre, perseguiram longamente as voantes cati­vadoras, que se embrenharam por fins na es­pessura inextricável da floresta onde reinavam e de que só elas conheciam os meandrosos caminhos.

Jasão e os demais camaradas a certa distância estacaram e, vendo que, para resgatar Hilas do poder das Ninfas, seria suficiente Polifemo, voltaram à cidade, onde encontraram Eufemos, o piloto-menor, que vinha cha­má-los para bordo, pois a hora da partida era chegada e a monção magnífica. Chefes e comandados imediatamente embarcaram, deixando em terra Polifemo e Héracles que, embora às tontas e às cegas talavam a floresta perseguindo as Ninfas...

Argo, desancorando, fez-se de pronto ao mar. O sol, caindo no horizonte a oeste, lançava às águas verdes da Propôntida um rubro cobrejão rútilo. Vésper sorria a um canto do Firmamento, pela sua linda camândula dia­mantina. A noite, a triste e eterna viúva de Érebo, começava a rasourar de uma polvilha­ção de nanquim toda a barra do Levante, desdobrando pouco a pouco, para as bandas do Ocaso, o seu infindo véu de trava e luto pro­fusamente bordado de estrelas. Em breve a lua surgia, abrindo à proa singradoura da nave uma estrada de neve luminosa que tremia na vaga ondulante. Tolda, cordoalha e mastros cobri­ram-se então de uma claridade saudosa, que penetrava idealmente os corações, acordando a nostalgia da pátria afastada e a lembran­ça das Amantes ausentes, deixadas ao lon­ge...

A marinhagem, avante, e os oficiais no tombadilho à ré, em torno ao pavilhão do comando, num coro uníssono e ardente, que era guiado por Jasão, o feliz almirante, saudaram à DIANA cantando:

FEBE divina,

Deusa da caça,

Nos ilumina

Co’a tua graça.

Serena o vento       

E a forte vaga,

Dá-nos alento

E aclara a plaga.

Prateia a rota

D'Argo veleira,

Torna a derrota

Fácil, ligeira.

FEBE divina

Deusa da caça,

Nos ilumina

Co'a tua graça.

Ao outro dia, quando Éos, magnífica e olímpica, apareceu a leste, deslumbrando tudo, a nau aventurosa parecia de ouro, como o mar que a sua proa cortava em marulhosa espuma. A ilha de Proconés passava lentamente a bom­bordo, coberta de ricas pastagens criadoras onde pasciam, em rebanhos sem fim, os cer­vos brancos da Lenda que lhe deram o nome; a estibordo, a celebrada península de Cizica, com a sua artística cidade de Artace, resplandecia à luz pelos seus grandes Ginásios e Tem­plos de mármore azul.

Manhã alta, com o sol faiscando no céu como um escudo lucânico, mostrou-se-lhes ao gurupés a capital dos Bebriceus, onde arriaram âncoras.

Amikos, o rei desse povo, homem despótico, inimigo como a sua corte de todo o estrangeiro ou forasteiro, preparou o seu exército para repelir o navio e os que nele viessem, se acaso tentassem deter-se e fazer desembar­que. Os Argonautas resolutamente o fizeram, embora já informados da índole feroz do rei. Diante de tal audácia por parte dos recém-vindos e do seu número de homens relativa­mente pequeno, posto que bem armados em guerra, Amikos, que pensara primeiro em acometê-los logo ao desembarque, adotou depois outro plano que lhe pareceu teria me­lhor êxito: afetar boa acolhida aos Argonautas e desafiá-los depois para o Combate do Cesto, onde, supunha, poderia esmagá-los, a todos, de uma vez e para sempre. Imaginou-o pô-lo logo em prática, mas felizmente não conseguiu o seu fim.

O Cesto era o famoso cinto de VÊNUS onde se achavam as Graças, os Desejos e os Atrativos. JUNO, na luta entre Gregos e Troianos, pediu-o emprestado àquela deusa para se fa­zer amar de JÚPITER e tê-lo do seu lado em favor do primeiro daqueles povos contra o se­gundo. Vênus foi então forçada a tirar o cinto diante de Páris, e daí surgiu o maldito Pomo da Discórdia. A deusa DISCÓRDIA, que JÚPITER expulsara do céu pelas contínuas desordens que provocava entre os demais deuses, para vingar-se, não só desse ato como de não ter sido convidada para as bodas de Peleu e de Tétis, pegou de um pomo de ouro mágico onde havia esta inscrição cabalística — Á mais formosa — e jogou-o sobre a mesa de núpcias, fugindo. JUNO, VÊNUS e PALAS atiraram-se a ele, disputando a sua posse. Travou-se, por isso, entre as três deusas medonha contenda. Acudiu Páris, por ordem de JÚPITER, a pôr-lhe termo, en­tregando o pomo a VÊNUS. Mas originou-se daí um sem número de desgraças para os DEUSES... Cesto era também uma manopla de ferro com que se armavam os combatentes para a luta.

Ora, era justamente o Pomo da Discórdia que tinha de ser disputado entre o rei Amikos com a sua gente e Jasão com os oficiais Argonautas. Uns e outros se encaminharam então para uma enorme planura, fora da cidade; e, colocada aí uma mesa e sobre ela o Pomo de Ouro, começou renhida luta muscular, corpo a corpo, entre os forasteiros e os indígenas, até que Pólux suplantou Amikos, lançando-lhe as mãos ao pescoço e estrangulando-o. Os Bebri­ceus, para vingar a morte do rei, inesperadamente pegaram das armas e atacaram os Argonautas, que, com a sua extraordinária destreza, bravura e força, lhes inflingiram completa der­rota.

Vitoriosos e sem uma só perda, os mari­nheiros tessálicos volveram à capital bebricea, onde os habitantes os receberam com flores e hinos de júbilo por se verem livres do truculento Amikos e da sua corte que os opri­miam e tratavam como escravos.

No dia seguinte, depois de se ter provido de mantimentos e aguada, a heroica e invencível maruja grega regressou a Argo, que desfraldou as velas de púrpura ao fresco Notos favorável, sob o Azul e sobre o Mar...

III

Alguns dias de singraduras em bonança, sempre para o Oriente, e chegavam a Bizâncio, na Trácia, sobre o Bósforo, após passarem, a salvo, na segunda noite dessa traves­sia, por entre as dez perigosíssimas ilhas e inúmeros recifes alagados, conhecidos e cautelosamente evitados por todos pelos numerosos naufrágios que causavam.

Era outono. As águas límpidas do Bósforo tinham uma serenidade de lago de par­que, nessa bacia profunda e em geral plácida da Propôntida; e na sua polida e refletora su­perfície de grande espelho líquido, as margens bordadas e paisagísticas reproduziam-se, em contínuas e lindas imagens luminosas, lem­brando vagamente — sem dúvida mais poéticas e nítidas, em suprema perfeição — os gigantes­cos mas rudes esmaltes fenícios, cheios de maciços de árvores, de brancuras de mármores de templos e de colinas de esmeralda. O céu era de um doce e límpido azul transparen­te. As encostas suaves da serra de Rodope ti­nham um encanto e floração primaveris. Ha­via no ar, na terra e nas águas uma frescura suave, pela ausência dos ventos quentes da Ásia Menor que, retidos agora nas arenosas planícies e desertos interiores, não ousavam chegar até ali, como nos dias ardentes de es­tio. Bizâncio, a filha querida de Bizas de Me­gara, o rico e aventuroso viajante e armador do Mar de Alcion, resplandecia pela sua casa­ria branca, os seus grandes monumentos e tem­plos de mármore, jogando rendilhados ao Azul os seus terraços, os seus altos zimbórios e os seus esguios torreões coloridos...

Apenas Argo fundeou, embarcações de toda       ordem a cercaram, conduzindo o rei e os maio­rais do país, que iam saudar os Argonautas, de quem haviam tido notícias desde a primeira aportada à Mísia. Em terra, toda a cidade pom­peava sob ornamentações magníficas. Os habi­tantes, apinhados nos cais, andavam por ver desembarcar os recém-vindos marujos. E festas maravilhosas se preparavam por toda a parte, em honra a esses heróis de Helênia de onde os bizantinos provinham. Com efeito, Jasão e seus camaradas saltaram por entre as mais vi­vas, extraordinárias aclamações de regozijo.

No dia seguinte começaram as grandes re­cepções, banquetes, jogos, caçadas, excursões, danças, festins que durante uma semana trou­xeram Bizâncio em delírio. E como se fizesse indispensável prover-se de tudo o navio contra os furores do Axenos, no inverno quase à por­ta, a marinhagem tessálica demorou-se ainda um mês, sempre em festejos contínuos.

Essa demora foi sobremodo grata à expedi­ção, porque, seis dias antes de prosseguirem viagem, apareceram-lhes Polifemo e Héracles, os companheiros queridos, que haviam atravessado, por terra, toda a Mísia e a parte oeste da Bitínia até Crisópolis, depois de terem, em vão, tentado libertar Hilas do poder das Ninfas e sobretudo dos veludosos e cativantes braços da sua rainha, a encantadora Eunica.

Houve então um contentamento geral entre todos. Argo empavezou-se em gala. E para festejar a volta feliz dos dois heróis, Jasão ofereceu-lhes, a bordo, um grande banquete, a que assistiram o rei Tarkilos com a sua corte e a fina flor da gente bizantina.

Deu-se ainda em Bizâncio uma outra ocorrência altamente auspiciosa para os Argonautas: foi a libertação de Fineu, o adivinho e poeta cego, da tortura das Harpias.

Fineu, filho de Agenor e rei da Trácia, ainda muito jovem sucedera no trono a seu pai e casara com Cleópatra, a gentil filha de Bóreas. Dessa união nasceram três filhos va­rões, aos quais a mãe se afeiçoara muito, principalmente depois que se fizeram moços, acompanhando-os por toda a parte e cercan­do-os sempre de extremas meiguices. Fineu, vendo-se abandonado da esposa pelos filhos, desconfiou da existência de trato ilícito entre estes e ela, pelo que a repudiou, nupciando-se com outro e mandando vazar os olhos aos filhos. Bóreas, logo que soube do ato injusto e cruel do genro, quando Cleópatra e a prole estavam inocentes, vingou-se de Fineu privan­do-o da vista, tal qual este fizera aos próprios filhos, e arrancou-lhe ao mesmo tempo a coroa  para a dar a Tarkilos. Mas não contentes com o castigo ou vingança de Bóreas, JUNO e NETUNO condenaram Fineu a viver errante pelas Matas, campinas e praias, sob a inces­sante perseguição das Harpias, embora JÚPITER, condoído do precito e querendo atenuar tão grande castigo, lhe concedesse o dom de predizer o futuro.

As Harpias eram monstros gerados de Netuno e a Terra. Tinham uma fisionomia de mulher com orelhas de urso e corpo de abutre, ostentando garras nas mãos e nos pés. Anda­vam pelas florestas, campos e praias, sob a che­fia das príncipes delas — Celne, Ocipete e Aele, que se entendiam diretamente com os Deuses para flagelarem a todos aqueles que incorressem no desagrado dos Deuses. Apenas receberam ordens contra Fineu, vieram para a Trácia e nunca mais o largaram, surgindo-lhe sempre à hora das refeições, arrancando-lhe da mesa as iguarias e substituindo-as pelas suas imundícies que obrigavam a vítima, quando se achava só e sem guia, como frequen­temente sucedia, ao tormento de uma fome continua...

Nesta desgraça vivia havia alguns anos o infeliz poeta e rei destronado na ocasião em que Zetes e Calais, os dois irmãos argonautas, o encontraram, ao acaso, num campo re­tirado dos arredores de Bizâncio. Fineu ti­nha-se sentado a repousar na relva e mal começava a tirar o que trazia no alforje para o primeiro repasto do dia, quando as Harpias, voando, em nuvem, ao redor dele, mas sem o mínimo rumor de asas para não serem perce­bidas, puseram-se a arrebatar-lhe, um a um, os frutos e manjares, deixando em lugar destes os seus nojentos detritos. Zetes e Calais caíram então sobre elas e, a setadas furiosas, as espalharam para não mais voltarem, apla­cando assim a cólera dos Deuses castigadores e libertando para sempre a pobre vítima daquele longo e horroroso suplício.

Fineu, agradecido, sabendo que os seus sal­vadores eram tripulantes da nau Argo, que no outro dia retomaria a sua viagem para a Cólchida em demanda do VELOCINO DE OURO, revelou-lhes o segredo da passagem entre os terríveis rochedos Simplégades em perfeito salva­mento.

Tais escolhos ficavam já em águas do Axenos, mas em frente mesmo à saída dos Bós­foro. Ali tinham sido colocados por POSEIDON para impedirem as frotas troianas tentas­sem explorar o comércio das riquíssimas na­ções daquele mar. Mas os Simplégades utili­zando-se, por conta própria, da virtude que tinham de alternativamente se aproximarem ou se afastarem um do outro, sepultavam no fundo das ondas não só os navios de Ilion. co­mo também todos aqueles que, embora de ou­tros países, e até mesmo helênicos, ao assomarem à boca do estreito, lhes não enviassem imediatamente, por um golpe de porta-voz, a “senha sagrada» de protegidos do Olimpo, que dizia mais ou menos o seguinte: — Quedai-vos firmes onde estaco, fiéis sentinelas do Axenos, que eu venho a mandado de POSEIDON, Deus dos Mares!

Senhores deste segredo os Argonautas, ao deixarem Bizâncio, investiram afoitamente o  celebrado estreito, avistando ao longe os Simplégades que apenas se revelavam à flor d'água pelas suas coroas de espuma.

Então, como uma lestada desfeita varresse ao sul o Anexos, foram aportar a Salmidessos, na costa oriental da Trácia. Tiveram aí amistoso acolhimento e ao desembarcarem pa­receu-lhes que a cidade estava em festa, pois regurgitava de forasteiros vindos de todas as costas europeias e asiáticas daquele mar e da Propôntida. Ia pelas ruas e praças uma ruidosa alegria, expandindo-se no vozear de várias línguas faladas por tipos representantes de muitos povos orientais que se cruzavam incessan­temente, nas vestes coloridas, carnavalescas e características dos mísios, dos bitínios, dos lídios, dos frígios, dos paflagônios e dos pontinos, pompeando em gala como nas gran­des feiras das suas terras longínquas.

Efetivamente Salmidessos jubilava, a en­tão prestigiosa e adorada sultana do Axenos, porque nesse dia começavam as pomposas festas noturnas de BENDIS, a grande deusa trácica, espécie de DIANA helênica. Era ao plenilúnio de tressilos, o quinto mês do ano entre esse povo, assim conhecido no calendário do sábio e venerando Zamolxis, supremo astrólogo e legislador do país.

As festas bendidias solenizavam-se num colossal e riquíssimo templo a duas léguas da cidade, num vasto e cerrado bosque de castanheiros e freixos, talhado em círculo e cortado de sinuosas alamedas que iam dar a um amplo largo, ao centro, onde estava o Santuário. Co­meçavam por cânticos e orações à Deusa, na imensa nave aberta e toda acesa, onde a multidão se apinhava em torno aos Sacerdotes, envolta no tênue fumo brancacento das caçoi­las de ouro, suspensas do teto e em cujo bojo lavrado e artístico ardiam as deliciosas resinas aromáticas do Oriente. Ao nascer da Lua, a estátua alabastrina de BENDIS que na véspera fora postada sobre um andar, saia, em procissão, pelas aleias de mata, iluminada por brandões acesos, pequeninas lâmpadas multicores col­gadas às ramagens e miríades de discos lácteos dançantes que o Astro da Noite, ainda no ho­rizonte, coava brandamente através da renda escura da folhagem ramalhando ao vento. Em todo o giro processional até à volta ao templo, os Sacerdotes Maiores carregavam aos ombros o andor, cantando, de vez em quando, em baixa toada melancólica, ao som de chorosos flautins ou avenas, uma ode à BENDIS, ao passo que os Sacerdotes Menores, conduzindo o an­dor de SABAZ, quando os outros cessavam, en­toavam, com estardalhaço, um ruidoso hino de guerra, ao estrugir de atroadoras trompas metálicas. À cauda do préstito ia COTITO, a VÊNUS trácica, rodeada de corpulentas Bacantes coroadas de parras e cachos de uvas cor de âmbar, cercada de Baiadeiras, em curtas saias de alvo linho transparente, bailando arrebatadoramente, cheias de pulseiras e colares de numerosas e minúsculas luas de prata que tiniam ao menor movimento, faiscando aos fo­gos em volta como vaga-lumes presos. Seguia-se infinita multidão de devotos cosmopolitas — homens, mulheres, crianças — apertando-se densamente, todos cingindo as vestes alvas do culto repetindo em coro e em várias línguas, o estribilho da Ode à Bendis:

Louvares, glórias, oblatas

À BENDIS,

À BENDIS fascinadora!

Que'ecoem por estas matas

Cantos
Santos
À divina caçadora!

Depois o povo repetia igualmente o estribi­lho do Hino a Marte:

Salve, MAVORTE

Cheio de glória,

Valente e forte

Rei da Vitória!

Os Sacerdotes Maiores embraçavam todos grandes e tufadas grinaldas de açucenas e jasmins, com que devia ser coroada BENIS, ao ar livre e no átrio do templo, à volta da procis­são, quando a Lua montasse o zênite, pratean­do olimpicamente as largas alamedas do bos­que e as marulhosas águas marinhas...

A festa durava uma semana e os Argonautas a toda ela assistiram, muito alegres e felizes.

Uma manhã nevada de bruma e de horizonte limitado. Com as procelarias a voarem em alvoroço sobre a costa e sobre o largo, ensaian­do já antecipadamente a sua áspera e pressaga grasinação, de inverno, que vagamente quebran­ta e aterra a marujada nostálgica, Argo deixou o porto de Salmidessos, arrancando para o sul com o seu velame purpúreo inclinado à fria aragem.

Dezembro chegava trazendo os primeiros ba­fejos álgidos da Meócida e de Cimeros, bafejos que em breve tornar-se-iam rajadas, borrascas, ciclones, ampolando gigantescamente tornar-se-iam o manto líquido verde negro do Axenos, o Inóspito, sublevando-o em formidáveis e movediças serras rugidoras de espuma que asso­lariam e devastariam tudo, a todos os Quadrantes e Rumos. E ai das velas e dos cascos, e das pobres almas marujas que viessem a ser apanhadas, ao acaso, nos turbilhões irresistí­veis de Eólo e do delírio da sua corte, dan­çando e siflando descompassadamente à orquestra atroadora da Invernia em fúria! Felizmente para o Auster ainda o Febo imperava, alagando tudo de ouro. E a invencível galé helênica ia singrando para lá, em demanda do tépido e abrigado litoral da Bitínia.

Zéfiro soprava ameno e brando e, nove dias depois, por uma tarde morna e clara, com o sol já baixo no Ocidente, surgiu, pequenina ao longe, Heracléa da Bitínia, radiante e toda branca na sua casaria de mármore, destacando sobre a verdura dos montes, como uma noiva romântica que, antes de soar a hora divina das bodas, andasse a passear ingenuamente o seu rico vestido de cauda e o seu longo véu de tule por sobre os maciços de relva do seu castelo de núpcias...

A formosa cidade, onde Argo em pouco ancorava, era habitada pelos Mariandinios que receberam fidalgamente os Argonautas, propor­cionando-lhes toda a espécie de conforto e di­versões, tal qual haviam feito os demais povos orientais em cujos portos tocara e estacionara o lendário navio.

Já o inverno avançava, dia a dia, sobre as margens meridionais do Axenos. Do poente ao levante, desde o Bósforo até o rio Partênios, pelo Calpes, o Hípias e o Tiam, na extensão das suas cento e tantas milhas de costa em per­feita linha sigmoidal, as águas verde-escuras da Bitínia amanheciam, agora, veladas ao norte pelas primeiras barras de névoa. O azul do céu desmaiava pouco a pouco, deserto de nuvens, num esgazeamento melancólico e saudoso. Já não se viam as andorinhas, há muito emigra­das, internadas para as bandas quentes da Sí­ria. Amiudavam-se as afiadas, frígidas refregas do Setentrião. Nas campinas e montes lito­rais, a relva entrava de amarelecer e secar à adustão das orvalhadas frias, e as matas de ar­bustos e árvores seculares começavam a exibir, pelos cimos, onde as folhas desfaleciam e caiam em chuveiro, uma imensa e desolada água-forte de galhos retorcidos e nus. E só para o interior, para o sul, para lá das terras doces de Dusah até o enorme seio recurvo que o Sangários faz para leste, às fronteiras da Paflagônia, da Galácia e da Frígia, é que o encanto primaveril das nações axeno-austrais se conservava ainda inatingível à devastação hibernal.

A estação ia ser dura, inclemente, naquele negro e inóspito mar que só era explorado e aberto às gentes dos Tempos Heroicos pelos incomparáveis Fenícios e pela singular galhardia do lendário Bisas de Megara, o rico via­jante e armador do longínquo Mar de Alcion, que naquelas costas semeara, aqui e além, cobaias e entrepostos marítimos, pelásgicos ou helênicos, que secularmente vicejaram e flori­ram, deslumbrando o Mundo Antigo. Tinha sido ele também que, navegando quase um ano sob tormentas contínuas, dera àquelas águas negras o áspero nome de Axenos.

Os Argonautas, vendo então perfeitamente que por aquele trimestre não poderiam ir além com o seu barco, avisada e prudentemente re­solveram amarrar Argo numa bela enseada de abrigo e baixar à terra, a gozar aqueles três meses de folga no interior da Bitínia, espe­rando o inverno passasse para depois se afoitarem às vagas da Cólchida, em busca do VELO DE OURO.

Com efeito, fundeada a nau a quatro ferros — dois à proa e dois à popa — no porto interior de Heracléa e deixada a bordo unicamente a guarnição de vigia, baixaram todos à capital, em excursão curiosa às províncias dos bití­nios. Estiveram entre os Caucones, Migdones e Tunis, que os receberam sempre cordialmente, com bom gasalhado e alegria. Figura­ram em festas e danças, caçadas e jogos contínuos, em que obraram grandes façanhas, não só Jasão e seus oficiais, como a maruja luzi­da. À partida de cada cidade, maiorais e ha­bitantes levavam-nos até fora de portas, em delongadas despedidas, e mulheres e crianças acenavam-lhes tristemente pelas voltas dos ca­minhos. Em muitos pontos ofereciam-lhes tudo — campos, vinhas e escravos, bem como espo­sas formosas, filhas de príncipes e reis, sob con­dição de ficarem e nunca mais deixarem aquelas terras. E entre os simpáticos Migdones, Castor e Pólux, mais Orfeu e Telamon, sou­beram inspirar tal paixão às quatro filhas sol­teiras do bondoso rei Frinígio, que os hospedara em seu palácio, que, ao deixarem essa província, foi preciso sair alta noite, às ocul­tas e sem serem pressentidos, para elas não os seguirem loucamente, como pretendiam, ate à capital da Bitínia. Este forçado e longo descanso de três meses em país carinhoso e amigo, fora para os mari­nheiros tessálicos de muito encanto e doçura. Mas, já ao fim do inverno e já todos de volta à Heracléa, onde aguardavam apenas o pri­meiro dia de primavera para largar velas, Idmon, o alegre e gentil filho de Apolo e de Astéria, o adivinho de bordo, que, à saída de cada porto e durante as travessias, fazia pre­dições e vaticínios, mais ou menos exatos e seguros, sobre as futuras ocorrências da via­gem, auxiliando e secundando assim eficaz­mente a perícia de Tifis — veio a perecer numa caçada, no Bosque de Juno, a duas léguas da cidade, atacado por dois javalis. Isto trouxe aos Argonautas grande consternação e angústia.

Entretanto, entrava a última semana de inver­no. Os derradeiros, fortes ventos glaciais, espalhados do Arcturo até o sul, recolhiam-se de todo ao norte, aos mares gelados da Meócida de Cimeros. Os sendais de espessa névoa, que tomavam ao largo as águas e as costas bitínias, desfaziam-se de hora a hora. O céu readquiria suntuosamente a sua transparência de turquesa aérea. Clareara de todo o hori­zonte oceânico, onde as pequenas velas dos barcos costeiros corriam já em multidão, con­fundindo-se ao longe, na sua alvura singrante, com as voadoras e alvacentas gaivotas. As pla­nícies e montes reenvergavam picturalmente os seus ricos mantos verdes de gala, pintalgados de flores de todos os matizes como os soberbos tapetes da Suza. Os primeiros mioparones de comércio da Paflagônia entravam a deman­dar Heracléa, em flotilhas numerosas, cheios de mercadoria. Pela curva dos cais, onde ia uma grande grita e movimento marítimo de embarque e desembarque, cruzavam-se densa­mente, expansivamente, cantando as nostálgicas e amorosas cantigas do mar e das praias, os pescadores e marinheiros bitínios, nas suas roupagens pitorescas e de um colorido gritan­te, em que predominavam o azul intenso do anil, o encarnado flamante e um fulvo de ouro candente...

Jasão mandou preparar tudo e reaparelhar Argo, a fim de prosseguir viagem. Já havia dez meses que os Argonautas tinham deixado a ca­pital da Tessália, e, no entanto, o fim da expedição não fora ainda alcançado. Mas HERA e POSEIDON, lá das alturas do Olimpo, velavam de certo por eles e pela sua nau.

A valente marinhagem, repousada agora, sa­tisfeita e feliz de três meses de folganças e gozos, trabalhava alegremente por todo o navio, nos preparativos da próxima partida, a cantar, de sol a sol e pelas noites, em largo e alto coro uníssono, nessa língua fulgente e sonora, ono­matopaica e altiloqua que era a sua, as estro­fes singelas e cândidas dos cantos náuticos da Helênia.

Só Jasão e a oficialidade, chorando ainda Idmon, andavam apreensivos e tristes. Dois golpes haviam já atingido a expedição e perturbado a sua felicidade. Lamentara-se, na Mísia, o desaparecimento de Hilas, que fi­cara vivendo entre as Ninfas e que poderia voltar ainda à Pátria. Mas Idmon? A este jamais permitiriam os Deuses a graça de ainda um dia ressurgir...

Mal sabiam, entretanto, os Argonautas que o DESTINO, sobre quem nem mesmo JÚPITER tinha o mais pequeno domínio, devia ainda arrebatar-lhes mais um outro companheiro, cuja falta a bordo seria certamente impreenchível. Era Tifis, coitado! o excelente piloto, a quem se devia, tanto como à HERA e POSEIDON, a conservação da vida de todos e o bom êxito da viagem até àquele ponto, através de tamanhos e tão frequentes perigos.

Efetivamente, na antevéspera da partida, já tudo pronto para Argo erguer velas ao primeiro sinal, Tifis enfermava subitamente falecendo poucas horas depois, sem que o Físico de bordo, bem assim os que vieram de terra e o próprio ESCULÁPIO, deus da Medicina, invocado ansiosamente com preces e cânticos, pudessem salvá-lo. Então é que foi dor, pranto e amargura para os Argonautas!

Adiou-se então a partida por mais dois ou três dias. E Jasão ordenou fossem feitos a Tifis os devidos funerais. Idmon os não tivera por se não delongar por mais tempo a já tão longa estadia na Bitínia. Mas o morto de agora era outro, era o primeiro piloto do navio, o mestre náutico de todos, o seguro condutor da galé até àquelas plagas através de todos os riscos. Era justo, portanto, que os seus despo­jos não ficassem a repousar para sempre em terra estranha e longínqua, mas que fossem re­conduzidos à pátria, para honra e glória daquela expedição e para que EUDEMONIA continuasse a ampará-los até ao fim, como os grandes Deu­ses do OLIMPO.

Pegaram então do cadáver de Tifis e le­varam-no procissionalmente do seu camarote para a tolda, cobrindo-o com um sudário de púrpura. Colocaram aí a grande pira de bronze do Altar de Poseidon, carregada de to­ros de carvalho — a lenha dos sacrifícios — cortados ao bosque sagrado de Dodôna, no Epiro, onde se erguia o majestoso templo a JÚPITER DODONÊO. Com uma estopa perfumada de nardo e embebida em óleo candente, Tela­mon ateou fogo aos toros. E apenas estes co­meçaram a arder, o corpo do morto foi colocado sobre as chamas. Polifemo e Héracles, os dois gigantes de bordo, postando-se a um e outro lado da pira, agitavam, nas mãos erguidas para o céu, grandes turíbulos de pra­ta, onde fumegavam docemente resinas e pós aromáticos. Jasão e os oficiais, cercados da marinhagem, ajoelhados em torno, soltavam os cânticos rituais a PLUTÃO, deus dos Infernos, enquanto Orfeu, acompanhando-se à lira, entoava uma nênia:

Átropos negra,

Cruel e vil,

Por que nos roubas

Tifis gentil?

Ai! manes santos

Do nosso guia,

Mesmo do Elísio

Nos alumia.

Faze a não Argo,

Teu lenho dino,

Chegar, feliz,

Ao seu destino.

E lá dos reinos

Do grã PLUTÃO

Ouve os lamentos

Dos que aqui 'stão.

Sereno e límpido o céu sorria no alto, como imenso zimbório de vidro azulino. O sol já tocara o zênite e descia lentamente para o ocaso. À sua luz Heracléa faiscava pelos seus templos e casaria de mármore, destacando esplendidamente sobre os montes que a cercavam em anfiteatro. Na baía, onde o movimen­to marítimo pouco a pouco adormecia ao fene­cer da tarde, apenas os escaleres do tráfego e outras embarcações miúdas singravam de bor­do para terra e vice-versa, ou de um para ou­tro lado, por entre um cantar de rumadas que abriam volutas de espuma A superfície das águas. Pela linha do cais já poucos marinheiros e pes­cadores cruzavam. A não ser no coração do ancoradouro, tudo mais parecia dormente e em calma. E só ao longe, à barra, no horizonte de uma solidão desoladora e nostálgica, brancuras navegadoras de velas, às miríades, fugiam para todos os rumos, como infinitos bandos de gaivotas.

Na tolda alta da nau, o cadáver de Tifis desaparecia, consumia-se no meio das laba­redas, desgrenhadas pelo vento na crepitante. De pé, na mesma posição, Polifemo e Héracles continuavam a agitar os turíbulos de pra­ta, que tiniam brandamente. Apinhados em volta, Jasão, seus oficiais e demais tripulan­tes, cantando ou orando aos Deuses, guarda­vam ainda a sua atitude genuflexa. E Orfeu, o musicista divino, dedilhava a lira de ouro em toadilhas gementes...

Anoitecia, quando a lenha dos sacrifícios e os despojos do morto ficaram de todo reduzi­dos a cinzas.

Então Menetius e Mopsus desceram ao Al­tar de Hera, volvendo, em pouco, com uma rica urna de ouro lavrado, que entregaram a Jasão. Logo solevaram-se todos. Acenderam-se as pequenas lâmpadas de óleo de bordo e os fa­chos de breu dos funerais. E apenas o fogo se extinguiu inteiramente, no amplo côncavo da grande pira de bronze, o almirante argonauta, empunhando uma longa colher de prata que lhe dera Clítius, fez acercarem-se Menetius e Mopsus que seguravam a urna, e começou a enchê-la com as cinzas ainda quentes de Tifis Enquanto isso, os outros, ajoelhados de no­vo, menos Polifemo e Héracles que não cessavam de agitar os turíbulos nas mãos ainda erguidas ao céu, entoavam, em voz baixa e velada, num ritmo arrastado e choroso, desoladamente fúnebre, o conhecido Cântico aos Manes:

Aí vai na alma,

Negro Chame,

Passa-a co'calma

O rio Aqueron.

E leva-a ir corte

Do rei PLUTÃO,

Onde os da Morte

Julgar-se vão.

E a MINOS fero,

E a RADAMANTO,

E a EACO austero

Mostra-a em pranto.

Que esses juízes

Cumprindo a lei,

A mandem f'lizes,

Do Elísio à grei.

Aí une na alma,

Negro Charon,

Passa-a co'calma

O rio Aqueron.

Já no porto reluziam aqui e além, pelos mas­taréus e bordas, como rareadas e pequeninas estrelas de púrpura luminosa, os farolins dos navios que riscavam as ondas negras e plácidas de longos e tremulantes rastilhos de san­gue. O Azul cobria-se todo do esplendor das estrelas. Da linha do cais para terra, para o interior e os montes, a cidade era qual enorme molhe alvadia de cômoros, afogada na sombra e só se revelando vagamente, por uma ou ou­tra frontaria de palácio ou de templo, aos cla­rões vermelhantes das grandes fogueiras de car­valho ou de chopo, ardendo de bairro em bair­ro, cercadas de populares bailando e cantando alegremente...

Vazia a pira e cheia a urna mortuária, foi esta levada por Jasão, seguido dos oficiais e companha, para o Altar de Poseidon. E toda a noite, a bordo, se passou em vigília e orações.

No outro dia, ao primeiro rosicler da ma­nhã, o almirante argonauta reuniu, na vasta câmara, a oficialidade, para se escolher, em conselho, quem, dentre os nautas, devia substituir o Piloto Magno, e planear e executar, dali por diante, com justeza e perícia, o itinerário a navegação, a rota geral. Foi então escolhido ou eleito unanimemente Anceu, o oficial argonauta que mais dedicada, cuidadosa e provei­tosamente havia acompanhado Tifis, desde a saída de Iolkos, capital da Tessália, até aquela parte da Bitínia, em todas as mano­bras, acidentes e notações das singraduras e bordadas, estudando as correntes, os ventos, os aspectos dos céus e dos mares. E foi-lhe en­tregue, com o respectivo e solene juramento sagrado sobre o Altar de Poseidon, a pilotagem-mor de Argo.

Estão voltaram todos entusiasticamente à faina, já adiantada, dos preparativos de toda a espécie para se fazerem ao mar.

Mas o rei da Bitínia, Botiras II, que só à última hora soubera da morte de Tifis, assim que a nave helênica, após os funerais, comunicou de novo com a terra, correu a bordo com o seu estado-maior, a sua corte e nume­rosa comitiva militar, a dar os pêsames ao al­mirante e à digna marinhagem. Mandou pro­ceder a solenes sacrifícios à MORTE no grande templo de Melkar, a serenar e mansuetar a ne­gra DEUSA IMPLACÁVEL, que dir-se-ia voltada agora truculentamente contra os Argonautas. Depois fez consultar os Oráculos e os Augures sobre a futura sorte de Argo e dos que anda­vam a seu bordo. Os Oráculos e Augures declararam que a expedição, dali por diante, lo­graria alcançar o seu fim, sem mais perigos e desastres. E como coroamento a tão expressi­vas homenagens aos arrojados marujos helênicos, o bom monarca da Bitínia designou dia e hora para a inauguração de um monumento suntuoso que mandara erigir a Tifis.

O monumento foi levantado em dois ou três dias pelos mais hábeis artífices do paço, sobre o promontório Levantino, que fechava por leste a baía de Heracléa, e consistia num elevado e lindo altar de mármore verde, tendo no cimo os emblemas do Mar nos Tempos Heroicos — ­a Âncora, a Cana de Leme, um pedaço de Cabo, e uma miniatura de ouro maciço do Astro-Bússola dos Antigos, do guia certo das Naves pelas noites do Oceano, uma miniatura da ado­rada e bendita ESTRELA POLAR. Na face do Sul, tinha aberto em relevo no mármore a sim­ples palavra Argo, galé argonauta; na do nas­cente, Tifis, nome do famoso piloto; na de oeste, Iolkos, Tessália, a capital e o país dos Argonautas; e na do norte, olhando para as amplidões do mar alto, a seguinte piedosa inscrição: — QUE OS PESCADORES, OS MARINHEIROS E OS VIAJANTES DO LARGO E DA COSTA, DO AXENOS E DE TODOS OS OCEANOS, AO CRUZAREM ESTAS PARAGENS E AO ENFRENTAREM ESTE ALTAR, SAÚDEM E BENDIGAM SEMPRE OS TEUS MANES, OH! TIFIS, HEROICO FILHO DA TESSÁLIA E SUPREMO REI DOS MARES!

Na véspera da partida foi o monumento inaugurado por Bótiras II e os Argonautas, tendo assistido a esse ato toda a população de Heracléa.

E na manhã seguinte, ao nascer do sol, de­pois das despedidas ao nobre Rei e ao bom povo bitínio, Argo içou velas ao vento e saiu outra vez para os vagalhões do alto mar...

Com proa a lesnordeste, porque todo o lito­ral da Paflagônia talhava-se em grande bojo no Axenos, desde o Partênios ao Halis, os rios limítrofes com a Bitínia e a Capadócia-Ponto, projetando para o setentrião, como uma flecha de terra avançada, o promontório de Sinope, onde assentava a cidade do mesmo nome — o bravo lenho argonauta, impelido por contínuos e frescos ventos de oeste, Aí reinantes na monção da primavera, não tocou em porto algum, a singrar sempre para o le­vante. Mas, velejando costa a costa, os lugare­jos e cidades lhe passavam constantemente a vista, a distância, por sobre praias de areia ou de rochas escarpadas, por sobre montanhas verdes, como variadas imagens, sucedendo-se infinitamente no girar contínuo de um caleidoscópio imenso.

Debruçados das bordas, sob as amuras re­curvas, os marinheiros tessálicos saudavam cada um desses povoados com emotivo alvoroço, pois que lhes acordavam na alma sauda­des dos seus e uma infinda nostalgia das para­gens helênicas. Jasão, ele próprio, que obede­cia mais que todos a um sagrado e irrevogável desígnio, ia saudoso de terra como nunca; mas evitava a mais ligeira aportada, não só para não perder o esplendor da monção e a corda dos ventos propícios de oeste — de certo manda­dos do Olimpo pelas boas graças dos Deuses! — como para não retardar por mais tempo a viagem, tão delongada na Bitínia devido aos rigores do Inverno, embora essa forçada e inativa estação naquele país houvesse sido pro­veitosa e útil à oficialidade e marinhagem, agora sem dúvida mais reforçadas e saudáveis, mais alegres e animadas.

Assim, ainda mesmo que necessária se fizesse a renovação da aguada e dos víveres, ou outras quaisquer necessidades de bordo, jamais demandaria um povoado para se prover de tudo isso, mas fá-lo-ia junto às numerosas e suces­sivas flotilhas mercantes que, cruzando em trá­fego toda a costa, dia e noite encontrava em seu caminho, porquanto passavam alias frequentemente à minúscula distância e sempre fala com Argo. Eram as pequenas e bizarras embarcações paflagônias ou pontinas, de cas­cos esguios, boleados e revirados à popa e proa, mastros latinos oblíquos, pintados a mil matizes, com os altos retângulos das velas brancas, purpurinas ou azuis bojando ao vento como seios, todas ocupadas em carregar mercadorias de cidade em cidade. No meio dessas frotas apareciam às vezes, ainda mais originais e pinturescos no seu conjunto naval, as lanchas e lanchões da Cólchida, de alcandora­dos capitéus, que desciam, carregados de ouro, dos opulentos e celebrados entrepostos minei­ros de Dioscurias, Apsarus, Atenas, Trebi­zonda, Gita e Fase até aos limites extremos dos seus rendosos e afastados cruzeiros às águas da Fenícia e do Egeu...

Numa tal singradura, dias depois o Halis era deixado pela popa e entravam a contornar o litoral reentrante e cheio de rendaduras pro­fundas da Capadócia-Ponto. O vento mudara já para leste duro, com aguaceiros e cerração. Quase um mês consumiram em bordadas trabalhosas e contínuas, para a costa e para o mar, no percurso de pouco mais de um grau, sobre o alongado crescente azul d'águas fundas que fica, num desenho de noroeste a sueste, entre o Halis e as duas bocas deltosas e rasas do Íris. Já então era indispensável fazer aguada e tomar víveres, porque o mar fora varrido de banda a banda e as frotas costeiras não ousa­vam afrontar a vaga em fúria, arribadas e abrigadas em Amisus e Eusene. Bonanceava o tempo e vinha rompendo à proa, doce e branca na sua artística construção grega, a Temis­cire da lenda, a inefável cidade feminil, a famosa capital do Reino das Amazonas.

Mas nesse exótico e ideal país onde só ha­via mulheres, os homens eram odiados como na ilha de Lemnos.

As Amazonas eram umas singulares damas asiáticas que, assentando um dia em viver independentes dos homens, sem eles e longe deles, tinham vindo, não se sabe de onde nem como nem em que tempo, fundar um reino particular seu, naquela região do Axenos, em que o clima era delicioso, a vida fácil e farta, e em cujas vastas e ferreis campinas vagavam, em récuas infinitas, fortes e excelentes cavalos, mui procurados e famosos, em toda a Capadócia e redondezas, para as grandes remontas de guerra, para as longas jornadas de sol a sol, e para as caçadas e incursões no deserto. Assim instaladas em nação, fizeram-se espe­cialmente cavaleiras, domando como gaúchos os cavalos selvagens e servindo-se deles para combaterem os povos inimigos que às vezes tentavam invadir os seus domínios. Robustas e intrépidas, a cavalo pareciam centauros. Tinham como armas arcos e setas que atiravam a primor, bem como grandes lanças de bronze a dois gumes, que brandiam destra­mente. Morenas e altas, em geral de uma carnação opulenta e magnífica, usavam os cabelos longos e densos caídos à solta pelas costas e vestiam corpetes colantes de púrpura com largos e compridos péplos ou saias da mesma fazenda, que esvoaçavam ao vento como ban­deiras de fogo ou de sangue quando em dispa­radas vertiginosas nos seus velozes corcéis. Nas lutas em campo raso e plano eram inexcedí­veis e punham quase sempre em desbarato o mais afoito e resistente inimigo. Tornaram-se por isso, desde os seus princípios, extrema­mente temidas pelos povos vizinhos. No rei­nado das suas primeiras rainhas, não consen­tiram nunca que homem algum tivesse ingresso no seu país, nem que as visitassem mesmo os reis de mais fama e prestígio. Mas quando An­tiopa subiu ao trono, elas, refletindo que haviam de extinguir-se, por fim, sem descendência, e cansadas também, como as lemnia­nas, do isolamento em que viviam, sem jamais verem surgir em torno a si uma sombra más­cula que fosse — batidas de repente da fusti­gante e insofrida saudade do fecundo contato com os homens, resolveram admitir, ao menos uma vez por ano uma afetuosa e demorada entrevista com os homens. Escolheram para isso os seus belos e fortes vizinhos dos montes Pariadres e, pelas festas anuais da deusa KÍRIA, a CERES amazônica, celebradas, durante semanas, nos recônditos e paradisíacos recessos das grandes selvas sagradas do Termodon, en­laçavam-se nervosa e doidamente a eles numa orgia de volúpia... Mas fiéis sempre à essên­cia dos seus cânon e códices primitivos, davam a morte a todos os filhos varões que lhes nasciam, só deixando viver os do seu sexo que carinhosa e diligentemente criavam quei­mando-lhes, quando atingiam a puberdade, o seio direito para que pudessem praticar sem estorvo o manejo da seta e da lança.

Ora, quando os Argonautas aportaram à Temiscire, havia justamente cinco anos que reinava entre as Amazonas a soberba e encantadora Antiopa. A cidade estava em festas por isso. Mas apenas viram surgir e fundear no porto a galé desconhecida, as Amazonas se armaram para ver e aguardar quem nela vinha.

Formadas na praia, em numerosos esqua­drões, admiravam Argo pela sua beleza e majestade náuticas, pelos seus mastros enxarciados e estalados de prata, pelas suas altas e largas velas de púrpura e pelo enorme e re­curvo casco dourado rebrilhando ao sol. E pasmas perguntavam umas às outras. De onde viria e a que nação pertenceria aquela formosa e imensa nave, tão estranha e diferente, em proporções e formas, de todas as outras naves?!...

Entretanto, não perdiam um só detalhe do movimento de bordo, nem tampouco o das águas em torno, para não serem de repente surpreendidas com qualquer desembarque ou ataque.

Por sua vez os Argonautas, sabedores desde muito da aversão inveterada e histérica que essas mulheres tinham ou diziam ter pelos ho­mens, equiparam-se e armaram-se convenientemente, e, mandando arriar batéis, largaram para terra a rijas e possantes remadas.

E de bordo da nau haviam olhado com en­canto aquelas estranhas e curiosas Cavaleiras, cuja história aventurosa e heroica era desde séculos conhecida na Hélade, agora que se avizinhavam da praia e mais nitidamente as iam vendo, não cessavam de as admirar, num crescente deslumbramento, pelo garbo com que montavam, pela ordenada e perfeita formatura que mantinham, belas e fascinantes sob os seus capacetes de couro bordado, de onde se erguia um penacho escarlate e de cujas abas jorrava esparsamente o amplo e longo feixe onduloso dos seus negros cabelos flutuando ao vento, enquanto os corpetes e os largos péplos de púrpura formavam, ao longo da praia arenosa e contra o mármore da casaria branca de Te­miscire, uma vasta e viva mancha de sangue agitando-se estranhamente sobre os dorsos e as garupas redondas dos corcéis inquietos e frementes...

Quando os batéis abicaram ao alcance de um tiro de arremesso, as Amazonas recebe­ram-nos com a primeira surriada de setas, a que os Argonautas respostaram ferindo algu­mas, entre as quais a airosa e linda Agave, que era neta da nona rainha amazônica da célebre dinastia das Dez. E o combate prosseguiu encarniçadamente, voando as setas de terra para o mar e vice-versa, em nuvens contínuas e densas que escureciam o sol na área em que passavam, zumbindo e siflando sinistramente. Os marinheiros tessálicos, protegidos pelas bordas e as proas altas dos batéis, bem assim pelos escudos que traziam, quase nada sofriam; mas as bravas cavaleiras do Termodon, além de várias companheiras feridas, viam já muitas outras rolando sem vida no chão. Entanto não desanimavam um instante, despedindo as suas sestas com admirável justeza, embora vissem que o inimigo invasor avançava sempre, sem que pudessem detê-lo. Carregado de mais, os batéis tinham encalhado muito fora, no fundo raso da vaga, à linha da arrebentação.

Jasão meteu-se então a água, seguido de Héracles, Castor e Pólux, Zetes e Calais, Polifemo, Teseu, Butes, Admeto, Climenius, Autólicus, Erginus, Oileu e demais oficialidade argonauta, menos Eufemus, o pi­loto-menor, que ficara a tomar conta da nau com uma pequena parte da guarnição, pois que a outra fazia em massa o desembarque. Enquanto esta manobrava os batéis, o almi­rante e seus camaradas, divididos em grupos se baterem com a rainha Antiopa em pessoa.

Foi graças ao ardor e possança destes três e mais Teseu que a vitória, a princípio inde­cisa, pendeu afinal para os marujos helênicos, quando Antiopa, a soberba e formosíssima Antiopa, após a morte do seu lugar-tenente, sua irmã Menalipo, caiu prisioneira de Héracles, que, inebriado pela façanha e tomado de irreprimível furor, jogou-se sobre a mole, já des­orientada e perdida das Amazonas, infligindo-lhes grande chacina que teria sido total se não fora a intervenção oportuna e generosa de Jasão.

Findo o combate, os Argonautas tinham perdido apenas Oileu e vinte e seis marinheiros, ao passo que as Amazonas contavam, entre mortas e feridas, cento e doze das suas melhores guerreiras...

Horas depois, recolhidos os feridos de am­bos os lados e queimados os mortos numa grande fogueira feita no próprio campo da ação, os Argonautas, empunhando quais glo­riosos troféus os despojos bélicos das venci­das e levando diante de si as pobres e tristes cavaleiras sobreviventes, entravam em Te­miscire, festejando o seu triunfo com ban­quetes, jogos e danças, durante aquela tarde, a noite inteira e o dia seguinte. Senhores de tudo, os vencedores tomaram por esposas, cada qual, uma das belas e valorosas Amazonas, tocando a Teseu, pela gentil concessão que lhe fizera Héracles, a graciosa e encanta­dora Antiopa.

E foram dois meses de gozos e festas, findos os quais, abarrotada a galé de mantimentos e aguada, os Argonautas fizeram-se a rumo do Mar...

IV

Afinal, numa alegre madrugada de agosto, as ricas e almejadas terras da Cólchida apareceram à proa.

Os Argonautas, aglomerados à tolda, ergue­ram os braços ao céu, saudando a POSEIDON e a HERA.

A expedição parecia agora chegar ao seu termo.

De pé à popa, ao lado do comando, Jasão contemplava, a sorrir, as praias que se desenrolavam a seus olhos e que, dentro em pouco, ele e os seus pisariam. Aproximava-se, enfim, do Tesouro sagrado — TOSÃO DE OURO querido! E via-se já, em espírito, com todos os seus heróis, na arena do Campo de Marte, diante da Árvore Bendita, onde, suspenso de alto ramo balouçante, o VELO AUGUSTO tremulava numa rutilação magnífica olímpica. Só ele Jasão, por graça especial dos DEUSES, seria, entre os humanos, o único capaz de o tocar, de o conquistar, depois que para ali o trouxera Frixo, irmão de Hele, filho de Atamas e rei de Tebas, quando fugia à per­seguição de INO! E agradecia a MARTE o haver dado ao TALISMÃ PRECIOSO, que lhe fora consagrado, encantos, poderes e misteriosas virtu­des. Apenas se apoderasse dessa Mágica For­ça, sobre a qual nenhum outro homem lograra ainda pôr mão, tornar-se-ia o rei dos Reis, o poderoso dos Poderosos, o dominador do Mun­do!...

Estavam pouco acima de Apsarus, a meio grau do Fases.

Jasão mandou então forçar velas ao norte e, com o sol já meio alto no Azul, ancorou à barra do grande rio, numa tranquila enseada oculta aos ventos do Axenos. Explorada, por uma frota de batéis, a profundidade das águas, fez-se de pano rio acima, à aragem favorável do largo, sulcando águas murmurosas e man­sas, que rolavam seguidamente palhetas de ou­ro faiscantes e cujas margens se estendiam, à direita e à esquerda, em pitorescas paisagens. Um dia e uma noite vogou sem parar até que, numa manhã clara e de nácar, cheirando sândalo e magnólia, chegou a um sítio em que o Fases fazia como uma grande doca mu­rada, tendo a um lado vasta e admirável esca­daria de granito negro, que baixava da alta linha de um cais e mergulhava nas águas, para embarque e desembarque. Aí as pequenas e estéticas embarcações Cólchidas enxameavam aos milhares, com as suas velas coloridas e os seus cascos finos e de proa revirada, como cau­les de açucenas ou voltas recurvas de harpas. Aí também, mas a distância, Argo mergulhou ferros e amarras de prata.

Logo Jasão e os camaradas, paramentados em gala, com os seus arcos, as suas lanças e escudos, os longos mantos de púrpura flutuan­do no ar, encheram os batéis dirigindo-se para o cais.

Nesse local, que se elevava e se estendia num vasto e amplo pendor de colina para o interior onde frondejavam matas, debaixo de gigantesca e amplíssima alpendurada de vidro sobre colunas de mármore, uma imensa multidão agitava-se curiosa e alegremente. Em meio dela se via Eetes, o poderoso rei da Cólchida, com o seu belo séquito luzido e um exército colossal...

Dadas as boas vindas aos hóspedes por um pelotão de arautos que lhas transmitiam porta-vozes de prata, o rei recebeu com abraços, a oriental, o chefe argonauta e os seus comandos. Depois, ao estrugir de músicas guerreiras e ao entrechocar de armas movendo-se em homenagens, Eetes e a sua corte, bem como os forasteiros e o exército, puseram-se em marcha pela colina, ao fundo da qual bri­lhava esplendidamente, batida de um sol de ouro e fogo em demanda já do zênite, vastíssima frontaria de mármore de uma grande cidade. Era já, a suntuosa capital daquele reino, o mais opulento e celebrado de todo o Oriente, na Antiguidade.

Os Argonautas foram magnificamente instalados numa das mais luxuosas seções ou apartamentos do monumental palácio de Eetes, que ocupava uma área de uma milha quadrada entre incomparáveis e maravilhosos jardins. E, durante uma semana, a famosa capital da Cólchida jubilou em festas nunca vistas a Jasão e sua equipagem...

O rei da Cólchida tinha uma filha de rara e admirável beleza que durante os festins, dan­ças e jogos fazia as honras ao chefe expedicionário com requintada gentileza e bondade.

Cha­mava-se Medeia. Era uma princesa de dezes­sete ou dezoito anos, cuja fisionomia cor de tâmara, dourada pelo sol ardente da Ásia, arre­batava de fascinação e encanto. Os olhos, ras­gados e grandes, de longos e negros cílios veludosos, tinham uma constante expressão de ternura e meiguice. A boca, breve e graciosa, de um contorno delicado, lembrava, pela fres­cura e colorido, uma dessas pequeninas fendas das romãs que estalam de maturidade. A testa, alta e ampla, revelava inteligência e um quer que fosse da fronte olímpica de VÊNUS. As ore­lhas, minúsculas e bem feitas, de uma linha contornal de concha de praia brava, eram muito unidas ao crânio, como nas perfeitas belezas femininas, e resplandeciam de ricos e artísticos brincos, em meia-lua de ouro, cravejados de diamantes pérolas. E até cabelos, ondeados e espessos, descendo-lhes até aos tornozelos, à maneira de imenso e flácido man­to de fios de seda fofa, perfumados com os do­ces óleos e finíssimas essências do Oriente, da­vam frêmitos de volúpia, no leve e constante roçagar pelas espáduas esculturais e sobre as custosas vestiduras brancas, azuis, amarelas, ou purpúreas, feitas de esvoaçantes tecidos transparentes de Babilônia ou de Armênia.

Medeia, apenas viu Jasão teve por ele uma funda impressão. Aquele nauta forte e belo, vindo de longínquas regiões do Ocidente, numa galé de guerra, tão opulenta de forma e de tão gigantescas proporções como nenhuma outra jamais aparecera em toda a volta da Axenos, soube inspirar-lhe tais emoções e afetos que ela se sentiu para logo escravizada a ele. Vivia, desde a sua chegada, na perene e embevecida contemplação do seu rosto moreno-claro, da sua barba e cabelos negros anelados, dos seus olhos de viril atração, do seu porte alto e marcial e de suas maneiras delicadas e nobres, que ela não via nos Príncipes do seu reino nem nos dos países vizinhos. E nessa sua primeira e exaltada paixão, não deixava um momento o chefe-de-mar helênico, mesmo porque seu pai lhe ordenara o acompanhasse por toda a parte, como uma honra e di­gnificação especiais ao príncipe forasteiro e à sua gente marítima, que, através de inenarráveis perigos, tinham vindo de outras plagas e de outros mares a cumprir ali uma alta e incomparável missão dos DEUSES.

Se a linda filha de Eetes assim se apaixona­ra pelo almirante tessálico, não menos rendido de amor por ela ficara ele, desde o primeiro instante em que a viu e lhe falou. E que homem poderia resistir a tão arrebatadoras graças fe­minis? Jasão não vacilou, pois, em demons­trar-lhe também desde logo, tal qual lho fizera ela, os seus mais vivos enlevos.

Juntos anda­vam nas frequentes e festivas excursões e pas­seios por toda a capital da Cólchida; juntos viviam nos apartamentos do palácio real, em presença da Rainha e do Rei, dos Argonautas e da corte, e mesmo a sós, muitas vezes. Dir-se-iam, por isso, já noivos e mui prestes a en­laçar-se, coroados de flores e palmas, ante o altar de HIMENEU. Mas a verdade era que, no enleio e timidez naturais dos que se conhecem de momento, embora se votem desde logo re­ciprocamente uma grande afeição, nem ele, nem ela, haviam ainda trocado a menor confidência de amor.

Uma noite, porém, em que todos se diver­tiam pelos vastos e dourados salões, invocando perenemente o folgazão GELASINO, deus da Alegria e do Riso, Jasão e Medeia, depois de tomarem parte no começo dos jogos e brincos, encaminharam-se para o grande terraço do pa­lácio, de onde se dominava amplamente a par­te oriental da cidade.

Que céu límpido e sereno no seu alto velario azul-ferrete de uma translucidez magnífica e toda pontilhada de astros!... ASTAROTH ou ASTARTÉ, a inefável iluminadora e rainha da noite, ia tocando o zênite, e, em plena glória e triunfo, espalhava sobre a Terra o seu doce e melancólico esplendor...

Ao primeiro instante Jasão e Medeia, repassados dos aromas deliciosos dos jardins em torno e de onde um fluído extasiante de amor, quedaram-se a admirar a soberba e clara noite. E contemplando, com fundo embevecimento, a cismadora DEUSA DA TREVA, filha do Céu e da Terra, no seu infindo manto lutuoso todo floreado de ouro, invocaram cantando a prote­ção de DIANA para o seu grande e vivo afeto:

FEBE ou DIANA

Irmã de APOLO,

A graça emana

Do níveo colo,

Sobre o destino

De dois mortais,

— Oh Zeus divino! —

Que se amam mais

Que VENDO lindo

Amou MAVORTE,

Com força infinda

E até de morte!

Oh Deusa pura

Da castidade,

Dai-nos ventura

E f ’licidade.

Enquanto a lua cobria de malhas de prata as águas mansas do rio que pitorescamente atravessava os campos como uma Via Láctea líquida, trocavam ambos as mais íntimas confidencias de amor. Um ao outro terna e mutua­mente contavam a história da sua vida, juran­do-se uma fidelidade eterna. Ele era um herói do Oceano e um Príncipe que estava a reinar, ela era uma simples princesa que de certo jamais herdaria o trono da Cólchida, o qual de direito pertencia a seu irmão Absirto, mas ninguém havia na Terra a não serem os Deuses, as Divindades e os Oráculos que tivesse o seu poder de feiticeira ou de mágica. Os Deuses tinham-lhe concedido virtudes sobrenaturais. Ali, como em qualquer parte, poderia exercer misteriosas influências sobre as Coisas e as Pessoas, modificando-as, transformando-as ou extinguindo-as, acionando e dominando todo aquilo em que pensasse e tudo que tocasse. Fazia o imprevisto, e sobrenatural. E força alguma, a não ser a dos Deuses, poderia jamais opor-se à sua magia e encantos.

Jasão narrou-lhe então os desígnios de sua expedição, os quais eram a conquista do VELOCINO DE OURO, já várias vezes tentada, mas sempre com resultado adverso, por alguns dos mais poderosos Príncipes da Terra. Ele, po­rém, esperava alcançar o triunfo, porque ouvira os Oráculos, as Divindades e os Deu­ses, e estes lhe eram favoráveis. Além disso, aquela empresa vinha sob os auspícios e ben­çãos de POSEIDON e de HERA que contavam, para o seu inteiro êxito, com a graça suprema de JÚPITER. Mas uma vez que ela Medeia, por um prodigioso favor do Olimpo, tinha misteriosos prestígios para fazer o Bem e o Mal, o Possível e o Impossível, ali lhe pedia, pelo seu amor, fizesse aquela expedição ser coroada do maior êxito.

Ao separarem-se nessa noite, já pela ma­drugada, Medeia enlaçando-o longamente, assegurou-lhe a posse do TOSÃO DE OURO, e jurou, em nome dos Deuses, pertencer-lhe para sempre e segui-lo até às terras da Tessália, a bordo da nau triunfante...

Quando as festas de recepção aos Argonautas cessaram e a capital da Cólchida voltou à sua vida normal, Jasão declarou ao Rei, em audiência de corte, qual o fim da sua expedição. E Eetes, muito surpreendido, pois o jul­gava um príncipe do Ocidente em alegre excursão marítima a várias plagas do Globo — expôs-lhe então as dificuldades da empresa, que excedia as humanas forças e se lhe afigu­rava irrealizável. E logo contou-lhe que no seu reinado de quase sessenta anos, já ali tinham estado para o mesmo fim, alguns Reis e Príncipes estrangeiros, vindos de todos os pontos do Orbe, mas sem terem podido ao menos entrar no Campo de Marte, quanto mais se apro­ximarem ou tocarem o famoso VELO DE OURO.

Entanto, por que assim sucedia? Porque MARTE cercara o VELO de todas as forças e pavores, para o tornar inviolável e inconquistável aos Homens, não obstante o haver franqueado à conquista e ambição, dos Homens. E acrescentava que para chegar até ao GRANDE TESOURO, era mister, antes de tudo, amansar dois formidáveis touros que tinham chifres e pés de bronze, e vomitavam chamas, depois ungi-los a um arado de diamante, lavrar uma certa zona do Campo de Marte que jamais fora arroteada, semear nela os dentes de um dra­gão, dos quais nasceriam guerreiros que teriam de ser primeiro exterminados para se chegar ao grande carvalho onde Frixo depusera a pele Mágica do DIVINO CORDEIRO, e, finalmente, matar um monstro aterrador que guardava o DEPÓSITO SAGRADO. Tudo isto não devia durar mais de um dia...

Jasão respondeu-lhe que conhecia todas essas dificuldades e que sabia que o VELO­CINO DE OURO era guardado por MARTE. Mas que a sua missão era irrevogável, havia de cumprir-se, fosse como fosse, dando-lhe o triunfo e a glória ou arrebatando-lhe a vida e a de todos os companheiros. Nem para ou­tro fim viera de tão longe, com um sono e tanto de viagem, afrontando e vencendo o perigo dos Ventos e Mares, afrontando a fúria e inospitalidade de Povos inimigos e, por vezes, a própria MORTE, que lhe arrebatara já três heróis. Como pois, voltar assim sem mais nem menos, sem tentar o seu desígnio supremo, e apenas vitorioso de um ou outro pequenino combate, aqui e além pelejado na costa. Aquela expedição partira, navegava e volveria sem dúvida, a Iolkos, na Tessália, sempre sob o favor e graça de POSEIDON e de HERA, proteto­res de Argo. Depois o seu ânimo, como o dos seus heróis e marinhagem, era intemerato e forte. Do Olimpo, à exceção de MARTE tal­vez, os demais Deuses os seguiam com os seus olhos onividentes e abençoadores... Que temer pois, oh Eetes, excelente e nobre rei, quando um só Deus isolado queria opor-se aos outros Deuses? MARTE não poderia impe­dir jamais o triunfo da Coragem e da Força, quando, somente por amor delas, concedera aos mortais poderem empreender, embora sob terríveis provas de pujança e valor, a con­quista do VELOCINO DE OURO.

Eetes marcou então o dia para a jornada de Jasão e seus companheiros ao Campo de Marte, distante algumas milhas de Æa. Na véspera, a filha do rei e amada do chefe argonauta que com este estivera longas horas, a instrui-lo na maneira e “segredos” de se apoderar do VELO, passara a noite naquele Campo a exercer os seus encantamentos e magias e invocar as Di­vindades que lhe eram propícias. Recolheu ao alvorecer, convicto e confiante de que o herói e seus bravos comandados obteriam triunfo...

Efetivamente no dia aprazado, apenas o sol surgiu doirando a curva azul do Espaço, Jasão e seu séquito de Argonautas se dirigiram para o Campo de Marte, acompanhados do rei e sua corte, do exército e de uma grande mul­tidão.

Após uma hora de marcha, realizada ao som álacre de clarins de guerra e ao estrugir de grandes tubas metálicas, chegaram a uma vasta campina, tendo ao centro soberbo e majestoso bosque de carvalhos seculares, cujos troncos e ramos, erguiam ao ar toda uma enorme abside de tolhas rendilhadas e trêmu­las que farfalhavam à aragem. Apesar da sua imensa e quase inextricável espessura, per­cebia-se que o terreno onde se elevava devia intumescer e ondular sob a rede colossal de raízes desses gigantes florestais, pois que em muitos pontos, descia, em suaves e ligeiros pendores, a nivelar-se à linha rasa da planície onde a grama macia e fofa, salpicada do ouro das giestas e do escarlate sangrento e vivo das anêmonas, dir-se-ia uma sucessão sem fim de verdes tapetes da Zuziana, profusamente pin­talgados de flores cor de sol e cor de lacre.

No quadrante entre Favônio e Apertios, abrindo para as bandas azuis do Axenos, o extenso tabuleiro da mata alteava-se e talha­va-se num singular e avançado promontório tufado de frescas e densas ervagens, sobre o qual um carvalho magnífico, bem maior que os demais, bracejava para o céu, de tal modo se­parado e destacado da cerrada legião dos seus companheiros vegetais, que dir-se-ia o rei de todos saindo ao encontro dos Argonautas como para os acolher e saudar.

Que bom presságio, oh JÚPITER, oh POSEIDON e oh MARTE!

A célebre árvore milenária, enfeitada no tronco e pelos longos braços de risonha flora­ção de agárico, a rendada folhagem cheia de refulgências ao sol, parecia em júbilo e em gala. Do seu mais belo e alto ramo o VELO DE OURO pendia, num deslumbrante halo de olímpica claridade.

No chão relvoso e erguido em coxilha, tra­çado em ângulo como uma proa de barco, destacava-se, sentado sobre as patas traseiras, a poucos passos da Árvore Sagrada e como na arrogante atitude de a defender, um desco­nhecido, monstruoso e fantástico animal, de longos e negros pelos eriçados, a cabeça vo­lumosa e brutal onde os grandes olhos cor de sangue fulgiam como duas granadas, mos­trando nas desmedidas e escancaradas fauces duas fileiras de terríveis e afiadas agulhas e meneando nervosamente a cauda, como já aceso e fremente de cólera. À esquerda e à direita desta espécie de Cérbero unicéfalo, dois touros de porte de elefante, pelo ver­melho a malhas brancas, com aguçados e re­virados chifres de bronze, e pés também de bronze, em posição de investir, guardavam igualmente o majestoso carvalho, como a tor­ná-lo ainda mais inacessível e inviolável. Ao fundo e não mui distante, rebrilhava cruamente ao sol, rojando sobre a grama de esmeralda, um grande arado de diamante que tinha a forma de uma âncora de galé despojada das amarras e com uma das unhas mutilada. Junto à relha do arado, jazia uma canga de ouro com poli­dos canzis de aço...

Mas os touros colossais, como o estranho molosso, não davam sinais de vida senão pe­las caudas recurvas que lentamente moviam e abanavam.

Procurando posição de ataque, a brilhante falange argonauta, com Jasão à vanguarda, alinhou-se intrepidamente a doze braças de distância do terreno relvoso onde se erguia o grande carvalho lendário.

O rei Eetes, a sua corte e o exército estavam formados em semicírculo sessenta jardas à retaguarda. Por detrás deles alastrava-se por toda a planície a imensa multidão de populares, agitando-se como um mar.

O céu sorria serenamente e o sol já ia alto no fresco azul da manhã. Um silêncio solene descia sobre a infinita amplidão da campina e o povo, absorvido inteiramente pela ideia do espetáculo que se ia passar, calava pouco a pouco os seus rumores, os olhos fitos no alteroso carvalho e ofegando já na impaciência que fundamente o dominava.

De repente houve um frêmito geral de emoção.

Era Jasão que, de lança erguida e coberto com o seu grande escudo oval, o manto de púrpura flutuando no ar, o penacho do capacete flamejando como um jorro de sangue, marchava, a passos largos e seguros, em direção à Árvore. No alto da ponta angulosa da coxilha parou um instante, e, num gesto hábil e presto, com a lâmina da lança que Medeia un­tara, na véspera, de um óleo virtuoso, tocou o dorso peludo e negro do molosso que todo se curvou humildemente como um cão faz ao do­no. Depois, o almirante tocou também os dois touros que não fizeram um só movimento: acercou-se então de ambos e, jungindo-os à canga de ouro e atrelando-os ao arado, desceu à planura e lavrou com eles cem júgeras de campo, conforme mandava a lenda. Em seguida e sem que ninguém visse, sacou dos dentes de dragão, que igualmente lhe tinha dado na véspera, e os semeou nos sulcos aber­tos no solo, dos quais saiu, como por encan­to, toda uma coorte de guerreiros, em meio de quem jogou uma pedra que os enfureceu por tal modo que, em poucas horas, se exterminaram uns aos outros. E já se dirigia para o tronco do carvalho a recolher o TESOURO AUGUSTO, quando o molosso, outra vez em guarda e de fauces escancaradas, atirou-se contra ele. Precipite e destro, esfregou-lhe no focinho um punhado de ervas encantadas que também lhe dera Medeia, e o monstro imediatamente rolou morto no chão...

Daí a instantes, partindo do rei, da tropa e do povo, como dos oficiais e guarnição argonautas, um uníssono geral de aclamação reboou por todo o campo, atingindo ao supremo auge quando Jasão subiu ao ramo alto da Árvore e volveu trazendo triunfalmente, suspenso de uma das mãos, o famoso VELO DE OURO.

Então o bom rei da Cólchida, ignorando a intervenção da filha naquela ingente conquista e despercebido ainda de que eram o prestígio, a força, a grandeza e a riqueza do seu reino que iam agora arrebatadas com o VELO para outro país, coroou de louros o herói, mandou tocar hinos de guerra e celebrou, ali mesmo, no próprio campo de glória, num altar improvisado de ramos de carvalho, um preito à VITA POÇA ou VITÓRIA ou NICE, Deusa do Triunfo, pelo êxito alcançado pelos gloriosos forasteiros e mareantes tessálicos.

Pôs remate à grandiosa façanha, a celebração da cerimônia de agradecimento aos DEUSES protetores da expedição, bem como à TEOFANE, a ovelha da lenda, mãe do COR­DEIRO de onde saíra o VELO DE OURO. Jasão e seus heróis cercaram o Carvalho Sagrado e, de joelhos, entoaram em coro um cântico à TEOFANE, a JÚPITER, à HERA, a POSEIDON e a MARTE :

OVELHA gloriosa      

Mãe do grã CORDEIRO,

A ti afetivo

Preito verdadeiro.

JÚPITER tonante

Dos DEUSES senhor,

Ao teu trono de ouro

Suba o nosso amor.

Oh HERA divina,

Boa protetora,

Recebe ovações

D'Argo vencedora.

A ti, REI DOS MARES,

Nossas graças d'alma,

Porque Argo trouxeste

Por ondas em calma.

E tu, oh MAVORTE

De fero semblante,

Recebe esta prece

Da Nau navegante.

Após, isso, todo o cortejo retomou o cami­nho da cidade, ao ressoar vitorioso e álacre das músicas, dos clarins e das grandes tubas metálicas.

Crepusculava. Sobre o Campo de Marte descia lentamente uma poeira de sombra. O velario azul do céu desmaiava a sua cor. A leste a luz se esbatia sobre os cumes nevados do Cáucaso que alvejavam ao longe, muito ao longe, onde já começavam a alastrar o horizonte as primeiras violetas da noite. E só para além do Axenos, da Propôntida e das costas ocidentais da Mísia e da Lídia o sol resplan­decia ainda feericamente, cobrindo a Tessália de uma apoteose de ouro...

Ao chegarem à cidade, Eetes convidou os Argonautas para um grande festim no palácio, mas eles não quiseram aceitá-lo desejosos de se reembarcarem quanto antes; e conduzindo procissionalmente o VELO chegaram, por fim, ao cais onde tomaram os batéis que os trans­portaram à Argo. Já aí estava Medeia que, à popa, envolta num capicio de seda branca e coroada de flores, deslumbrante de beleza e de graça, jogava, a sorrir, ramos virentes de louro e braçados frescos de rosas sobre a fa­lange gloriosa dos bravos heróis de Iolkos.

Enquanto Jasão arrebatava à Árvore o misterioso DEPÓSITO SAGRADO, ao estrugir das aclamações e aplausos, ela abandonava o pa­lácio e, disfarçada e às ocultas, conforme combinara com o Amado, dirigia-se ao embarque e instalava-se a bordo da galé, a aguardar a volta do chefe vencedor. Tinha jurado perten­cer-lhe e ali se achava, com a sua grande pai­xão, para o acompanhar, à aventura e ao so­nho, por terras e mares, até às plagas da Tessália...

Posto a bordo o TOSÃO DE OURO e colocado sobre o Altar de Hera onde já se queimavam aromas, todos, ajoelhados, entoaram um cântico à GRANDE DEUSA:

A vós, rainha graciosa

Dos DEUSES e dos mortais,

A vós, JUNO poderosa,

Que do Céu nos amparais,

Que fazeis com que vençamos

Os mares, as cerrações,

Oh exilada de Samos,

A vós nossas orações!

Depois, passando à outra câmara onde es­tava o Altar de Poseidon, entoaram uma saudação ao DEUS DOS MARES:

Oh grandioso NETUNO

Das águas o soberano,

Irmão querido de JUNO

E forte REI DO OCEANO,

Que tendes sempre guiado

Com amor e proteção

Esta Nau, no pego irado,

A vós esta saudação:

“Salve, supremo Senhor,

Salve, POSEIDON gigante,

Que dominais o furor

Das ondas do Mar hiante!”

Findas estas cerimônias, voltaram à tolda. A noite descia, toda cheia do suntuoso esplendor das estrelas. A POLAR destacava a estibordo, saliente entre todas, como o farol guiador dos Navegantes, orientando e ilumi­nando as singraduras e rotas com o seu grande foco diamantino.

Os Argonautas cantaram então, em coro, o belo Hino à Estrela Polar, que parecia prometer-lhes, a sorrir luminosamente no hori­zonte ao norte, um regresso feliz e de bonança. O célebre hino dizia assim, no seu ex­pressivo e sonoro estribilho:

Bendita ESTRELA

E guiadora

Da nave bela

Navegadora!

Mas Argo suspendeu e entrou a vogar rio abaixo, em direção ao Axenos, à harpa-eólea dos cabos vibrando à brisa e ao bater rítmi­co dos remos mordendo a água em gorgolões de espuma, como os dentes de uma estranha e possante engrenagem hidráulica. Vivamente iluminada no interior, na tolda e nos mastros, pelas suas pequeninas tampadas de azeite e pe­los seus farolins de viagem que abriam na faixa líquida do rio longos rastilhos luminosos de ouro, a galé parecia unia monstruosa e fantástica centopeia aquática.

Soprava então fresco sudoeste, o libicus ou africus dos gregos. E como o Fases, de Æa para o mar corria justamente nessa direção, Argo não tinha quase seguimento, apesar dos numerosos remos, dispostos em três ordens no casco, manejado cada um por cinco remadores atléticos, que, nus da cintura para cima, fir­mados os pés nas grossas e largas bancadas, pendendo os impeliam, contraindo e distendendo os braços hipertrofiados de músculos em remadas tão compassadas e iguais que dir-se-iam mecânicas, na continua imersão e emersão n'água...

Aproveitando esta insignificante marcha da galé assim puxando contra o vento da proa, Absirto, bravo guerreiro, irmão de Medeia e filho mais velho de Eetes, primeiro ministro do reino e que, retido em palácio em ocupa­ções administrativas, não pudera assistir à conquista do VELO, nem à vitória dos foras­teiros helênicos que por tal forma arrebatavam para sempre o Talismã Encantado, simbolizador das riquezas da Cólchida, — Absirto, apenas soube da partida de Argo e da fuga da irmã, reuniu todas as forças de cavalaria de que dispunha e saiu, a galope, pela estrada que acompanhava o rio de Æa até ao mar, a dar combate à galé no ponto em que a encontrasse, visto não poder ela vencer as trinta milhas que a separavam do Oceano e alcan­çá-lo, antes que ele chegasse à barra, onde, com o auxílio de grandes máquinas bélicas e dos barcos de guerra que a defendiam, espera­va impedir-lhe a saída e bater os Argonautas, resgatando o TOSÃO DE OURO e impedindo a fuga da irmã. Entanto, mal sabia o moço prín­cipe que o DESTINO e os DEUSES lhe reserva­vam, nessa empresa, o mais desastroso fim.

Com efeito, Absirto chegou à barra do Fases antes de ali aparecer a nau. Era pela madrugada e FEBO não se anunciava ainda nem pela mais tênue claridade. Apenas comunicou com o chefe da sua flotilha, mandou dispor os navios atravessados ao rio e unidos por correntes e cabos, a dificultar, senão a embaraçar de todo, a passagem de Argo. De­pois voltou-se a preparar as grandes catapul­tas de guerra, numa e noutra margem da barra. E, tudo pronto, ficou a aguardar a galé, pensando poder aniquilá-la com as grandes pedras que arremessariam sobre ela as medonhas catapultas, com os dardos certeiros dos seus marujos e com a multidão de setas dos seus valentes centauros.

Mas Argo só apareceu à vista no dia seguinte, quando APOLO apagava já os seus fachos de luz às bandas rútilas do Ocaso. Do alto da popa, Medeia reconheceu logo o irmão, belo e soberbo, com o seu capacete dourado e a sua clâmide cor de vinho, agitando-se a cavalo à frente das suas forças.

Jasão, como os demais argonautas, vendo a barra do Fases trancado pelas catapultas, a esquadrilha e as forças de terra ao mando do Príncipe herdeiro da Cólchida que fora enviado a impedir-lhe a saída, pensou em levar remos à nau e procurar, por qualquer meio que fosse, libertar-se do inimigo e ter franca a passagem para o mar. Valeu-se da largura do rio no ponto onde se achava e aí mandou fundear Argo, inteiramente fora do alcance das setas de terra, aguardando a calada da noite para fazer um desembarque com toda a guarnição e, avançando às ocultas pelas matas da margem onde estava Absirto com a sua cavalaria, cair sobre ele de surpresa e desbaratá-lo. Se bem o intentou melhor o pôs em prática, porque Absirto, querendo dar-lhe com­bate bem no canal da barra que obrigava Argo a abeirar-se toda a margem onde estava acampado e tinha as suas máquinas de guerra, quedou-se descuidosamente a aguardar ela retomasse a viagem descendo o rio, sem pensar de leve nalgum ataque de surpresa por parte dos Argonautas, de sorte que estes deram-lhe em cima quando menos o esperava, matando-o e destruindo-lhe as catapultas. Diante disso a esquadrilha cólchida deitara a fugir mar em fora. Absirto ficara esquartejado na praia onde mais tarde erigiram uma cidade para memorar a sua morte, a qual se denominou TOMO, pala­vra grega que significa cortado em pedaços...

No dia seguinte a galé entrava triunfal­mente o Axenos. A manhã rompia cobrindo as águas de luz. Aproaram a Oeste. E lentamente os montes, planícies e costas brancas da Cól­chida começaram a esbater-se ao longe à popa...

Medeia, ao lado de Jasão, na tolda, delicia­va-se pela primeira vez com o espetáculo do mar, quebrando em rendados espumosos con­tra o bojo da nau. O almirante não se fartava de a contemplar, enlevado e feliz na sua gran­de paixão. E, saturado da alegria geral das coisas e do esplendor da viagem, refletia no destino. Os DEUSES agora, mais do que nunca, seguiam e protegiam Argo. De certo, lá do Olimpo onde estava, HERA, com os seus olhos desvendadores de todos os recantos da Terra e dos Mares, via jubilosa o singrar vitorioso da galé e orgulhava-se do incomparável resul­tado da expedição, feita sob os seus auspícios e graça. E POSEIDON, a quem a nave venturosa devia ser consagrada logo que chegasse à pátria, exultava também ao ver o denodo dos seus Argonautas...

Entanto o mar, ao largo, ia todo em bonança. O céu, de seda azul transparente, tinha uma imensa doçura e encanto. O horizonte, límpido e sem nuvens, arqueava-se infinitamente na sua linha destilada e nostálgica. Jasão apenas Medeia pisara a bordo, entrara a tratá-la como esposa e como tal a fizera reconhecer pelos seus comandados.

Fora a primeira noite em que se encontra­ram a sós no terraço do palácio de Eetes que haviam trocado a primeira jura de amor. E somente depois desse juramento é que ela o preparara para a conquista do VELOCINO DE OU­RO, que muitos e poderosos guerreiros tinham anteriormente tentado, mas em vão. Devia-lhe, portanto, aquela suprema vitória, o fim único a que se abalançara a expedição. Por que, pois, não partilhar com ela o trono da Tessália?...

V

Mas o vento passara ao nordeste. A galé, singrando a um largo, fazia milhas de mar. Todos, a bordo, iam alegres e felizes. Uma bonança admirável dominava o Axenos, cujas va­gas em geral verde-negras, dobravam agora com transparências de esmeraldas, apenas vaga­mente encristadas de espuma. Os céus suce­diam-se azuis e serenos, as noites límpidas e consteladas, às vezes envoltas em doce luar. O horizonte mantinha-se claro e sem nuvens, de uma nitidez persistente e de calma. De sol a sol, pela costa e ao largo, bem assim em tor­no às velas e mastros da Argo e dos barcos que a todos os rumos cruzavam, as gaivotas em bandos festivos.

Às cobertas e toldas, nos castelos de proa e de popa, às amuradas jogando em balanços suaves, os Argonautas e toda a marinhagem, nos ócios e folgas da faina, viam correr lentamente, a bombordo, no seu litoral recortado e cheio de paisagens esplêndidas, a Capadócia e a Paflagônia, acendendo-lhes saudosamente no espírito a lembrança dos gozos e encantos nos lugarejos ou cidades em que já ti­nham estado.

Assim, em menos de um mês, montaram o Bósforo da Trácia, sem tocar em parte al­guma, tendo apenas, ao enfrentar a nau o cabo Levantino, uma légua a leste de Heracléa, feito pequena parada sob velas, para uma homena­gem, invocação e adeus derradeiro a Tifis, cujo túmulo, mandado erguer em sua honra e memória por Bótiras II da Bitínia, no alto do cabeço que rematava aquele promontório, on­de as ondas choravam dia e noite o seu morno pranto de espuma, destacava melancolicamen­te ao sol no ocaso, exibindo os expressivos símbolos do Mar que o coroavam — a Âncora, a Cana de Leme, o Cabo e a Estrela Polar — talhados em ouro maciço, e deixando ver, ao longe, através do fulgor vivo em que pairava, a sua forma bizarra e náutica, original e artística.

Como haviam de atravessar a Propôntida e a Egeu até as terras tessálicas, seguindo o itinerário observado até ali, salvas as eventuali­dades desfavoráveis de vento e mar, Jasão e seus oficiais resolveram aportar a Bizâncio, mas demorando-se o tempo indispensável para abarrotar de mantimentos a nau por seis me­ses ou um ano, pois não era possível prever nem calcular com certeza quando viriam a che­gar à pátria. Nessa intenção ancoraram na grande capital trácica e, apenas se viram pro­vidos de tudo, lançaram-se de novo ao mar.

A monção para ocidente continuava ainda a mesma. O noroeste fresco não cessava de soprar. A Propôntida, adormecida e serena, pa­recia um imenso espelho de lago, sobre o qual passava o Cécias ou Aquilo sem frisá-lo sequer. Nem mesmo ao Setentrião ou ao Austro, nos seus golfos de Astacene  e de Cius, as suas ilhas rendadas, ou nos seus penhascos da Demonese e Proconese, a mais leve flor de escumilha se via, acaso, erguer intumescência arfante e larga da vaga, extraordinária e completa da bonança geral. E os dias e as noites prosseguiam ainda cheios de Sol e estrelados, cheios de esplendor e bonança, como à saída do Fases...

Mas ao transpor a galé o Helesponto e ao sair ao mar Egeu, em frente à ilha de Tenedos, uma desfeita tempestade de leste, jogou-a fu­riosamente, quase em soçobro e naufrágio, para o quadrante oposto, por entre o meandroso e perigosíssimo crivo as numerosas ilhas ou ar­quipélagos helênicos. Era a cólera dos deuses da Cólchida, invocada por Eetes à punição dos Argonautas, ao momento mesmo em que o po­bre e velho rei recebia a terrível notícia da morte de Absirto, no combate com Jasão.

Argo, arrebatada numa corrida incessante, de desgraça e de desastre, com todo o velame de púrpura a esvoaçar em frangalhos nos mastros, à maneira de sangrentas e sinistras bandeiras em funeral, veio parar, num escarcéu rolante, voando por sotavento dos Cárpatos e de Creta, à altura de Apolônia, na Cirenaica!

Nunca até então haviam os Argonautas experimentado tormenta igual, não só nas suas primitivas e pequeninas bordadas de um dia ou de horas apenas pelas paragens litorais da Tessália, como muito menos nessa longa e agora trabalhosa e quase interminável viagem, porquanto o mau tempo que apanharam duas ou três vezes nas constantes travessias para leste na Propôntida e no Axenos quando em demanda da Cólchida, não se podia comparar àqueles pois verdadeiramente não passara de simples e insignificantes aguaceiros que só lo­graram assombrar a Jasão e seus comanda­dos pela inexperiência em que andavam ainda, à exceção de Tifis de Eufemos, das gran­des borrascas do Mar.

Em todos, o terror a bordo, durante a tor­menta, tornara-se verdadeiro pânico.

Anceu, eleito piloto-magno por ocasião da morte de Tifis, assim que o leste caiu sublevando tudo, adornando e lavando de popa à proa e de bombordo a estibordo a galé inva­dida e coberta seguidamente pelas vagas, pas­sara a navegação a Eufemos que, felizmente, soubera vogar entre os escolhos e bancos da Polinésia Helênica com calma perícia e coragem, levando o lenho a salvo até aquele ponto da Líbia Marítima ou Cirenaica. E mesmo Jasão, não obstante o seu já provado denodo náutico, fora também de certo modo abalado, bem assim os mais bravos oficiais argonautas. Medeia abandonara a sua cama e, aterrada com as ondas, levara todo o tempo agarrada ao chefe marujo, a suplicar-lhe, em gritos desesperados, arribasse à ilha mais pró­xima. O almirante e todos assim o queriam. Mas a borrasca não dava lugar a mais peque­na manobra, nem mesmo a que se invocasse os Deuses protetores de Argo. E só agora, quase à vista de Apolônia, é que o ciclone pa­recia amainar um bocado. Procedeu-se então às orações e votos sagrados, consultando-se o ramo de carvalho de Dodone que vinha enta­lhado na popa e que proferia Oráculos. E logo este declarou que a nau só poderia singrar em bonança e a caminho da Tessália, se os Argonautas subissem até a ilha de Etália, situa­da muitas milhas ao Setentrião, entre a Córsica e a Etrúria, e aí se purificassem ante CIRCE do crime da morte de Absirto, pois CIRCE era quem assim os flagelava a pedido dos deuses da Cólchida aos quais eles, matando e esquartejando o moço Príncipe, haviam grave­mente ofendido.

Jasão ordenou então a Eufemos lançasse imediatamente a galé para o Ionium Mare e, passando por Scila e Charibides, cortasse o Tirrenum em demanda da ilha indicada onde residia CIRCE, a esposa do rei dos Sármatas e sua cruel envenenadora, a trágica filha do Dia e da Noite.

Já então se envergara nos mastros de Argo uma nova andaina de panos de púrpura; e como o vento soprava agora do sueste ou de vulturnus, embora ainda com mar muito alto, apenas deu em popa, entrou a voar sobre as ondas com rumo certo a Etália...

Um mês após, à primeira luz da alvorada alegrando o céu azul, a nau pairava entre as ilhotas graciosas de Dianum, Izilium, Oglasa e Plonásia, tendo já é vista os montes altos da Etália. O vento era ainda o vulturnus. E o mar rolava ainda em grandes zimbórios aquosos mosqueados de espuma.

Ao meio-dia Argo fundeava em frente a E’a, capital da ilha, que destacava toda branca entre as suas vinhas. E logo Jasão tomava os batéis e dirigia-se à terra com toda a companha, a votar-se à purificação de que falara o oráculo de bordo, o ramo de carvalho de Dodone. A procela que o impelira do Egeu à Apolônia em corrida irresistível, trazia-o ainda apreensivo, embora confiasse no oráculo. A bordo só ficara Medeia com a guarnição de vigia, para evitar se agravasse a cólera dos deuses da Cólchida e não impedir, com a sua presença de irmã quase fratricida, as boas graças de CIRCE, diante de cujo altar e estátua iriam comparecer os Argonautas, no templo do monte Uva. A cidade alvoroçara-se à chegada da nave, mas o seu chefe e maruja tiveram a melhor acolhida.

Apenas os batéis atracaram ao cais, Jasão e sua comitiva dirigiram-se ao rei Ítalo, a saudá-lo a comunicar-lhe os motivos daquela aportada à ilha. O rei recebeu-os com carinho e solicitamente os acompanhou até o templo de CIRCE, onde eles passaram a noite em orações e penitências até ao dia seguinte. Ao volverem ao navio, foi de novo consultado o oráculo que declarou consumada a purificação, devendo Argo contar, dali por diante, com as boas graças de CIRCE...

Começava o Inverno. Dos cimos dos Alpes Marítimos, já cobertos de neve, os primeiros ventos álgidos desciam, revolvendo as águas do Golfo Ligústico e velando as névoas do Uva. Era urgente passar para as águas mornas do Austro e demandar as terras da pátria, pois já dois anos iam quase volvidos.

Abarrotaram-se então os tanques e paióis da galé com aguadas e víveres. E, feitas as despedidas ao bom rei Ítalo e seu povo, Argo levou ferros e largou velas de púrpura por uma manhã ainda límpida em que o sol resplandecia alegremente e as gaivotas enxameavam ao longe, em revoadas festivas.

Descendo ao sueste, à aragem fresca e propícia do argestes ou corus, ao longo da costa tirrênia da Itália, em pouco a nau passava de novo as águas de Scila e Charibides, a salvamento e sem a menor avaria, não obstante ter sofrido por os embates e correntes opostas desses dois golfos terríveis onde Scila, a filha de Forco, a apaixonada de GLAUCO, se lança­ra desesperadamente, às ondas, depois que a encantadora e cruel CIRCE, sua gratuita inimiga e rival, a quem recorrera para abrandar a in­diferença do amado, a transformara em mons­tro, cuja parte inferior revestia a forma de um cão, de um dos famosos cães de Acteon.

A viagem corria magnífica, parecendo que a expedição singrava outra vez sob a plena benção dos DEUSES, como até à sua volta ao Egeu. Cumpria, porém, ter cautela e prudência e não arriscar a galé à longa e difícil tra­vessia do promontório Leucopetra à Pentápo­le ou à Creta, ou à Cítera, ou à Áquia, como imponderadamente haviam feito quando, da altura de Apolônia, ainda sob a cauda do ciclone apanhado em Tenêdos, mal ouvindo as profecias do Oráculo e não medindo os furo­res do Siculum Mare, largaram em demanda da Etália e das graças da sua Deusa. Sabiam que retardariam ainda por mais alguns meses a desejada chegada à Iolkos, mas que fazer se o DESTINO e os DEUSES assim o queriam e mandavam...

Dobraram, pois, o promontório Leucopetra e caíram no Mar Iônio, aproados ao cécias e marcando a esse rumo o Lapigium ou Salentinum, extrema meridional da Messápia, na Magna Grécia. Uma semana após, puxando a diversas amuras, amanheciam em Hidruntum, na entrada do Adriaticum ou Superum, e su­biam ao noroeste, contornando a montanhosa costa oriental da Itália batia até às ilhas Elétridas, no delta do Padus. Vão até à região dos Hi­leus, que amistosamente os hospedam e a quem presenteara com uma trípode de ouro. Atra­vessam o Adriático e descem para o sul à fei­ção das costas ilíricas, por entre o verde bor­dado das ilhas liburnianas, tocando em Me­lita e Ninfea, então residência de Calipso. Depois aportam à Corcira — Drepana, Feá­cia ou Schéria dos coríntios — onde os hos­pitaleiros e generosos feácios os recebem com júbilo e celebrações míticas. Aí se demoram dois meses, a reparar Argo e descansar a guar­nição das extensas e afanosas travessias desde a Etália até ali.

No dia da partida de Corcira celebravam-se as junonias, suntuosas festas anuais a HERO ou JUNO. Resplandecia, todo ornamentado de palmas e flores, o vasto templo consagrado à formosa RAINHA DOS DEUSES, a olímpica pa­trona e protetora de Argo.

Jasão, atendendo às constantes instâncias de Medeia e aos seus próprios e afetivos impulsos, aproveitou a oportunidade da festa para realizar as suas núpcias, à hora em que hou­vesse de ter lugar à coroação da DEUSA. Esta cerimônia costumava dar-se quando o sol, já no Ocaso e pairando algumas braças acima do horizonte, entrava pela porta principal do templo doirando em cheio a nave e o magnífico altar sobre o qual se elevava a estátua da célebre filha de Rea e SATURNO.

O chefe argonauta desembarcou então ar­mado e paramentado em gala com a sua fa­lange de heróis, e, alto e belo, à frente do brilhante cortejo náutico, tendo Medeia a seu lado, toda de seda branca trajada e coroada de rosas, encaminhou-se para os cimos do monte Ardiei onde havia um bosque sagrado de so­breiros e eloendros em flor, em cujo centro se erguia o templo destacando no céu azul da Ilíria pela sua mole colossal de mármore.

E aí, ele e a noiva — que parecia ela mesma uma Deusa na sua grande formosura — no meio de uma coorte de Sacerdotes e Sacerdotisas feácias envoltos em capicios a duas cores — branco e verde — simbolizando a Esperança e a Pureza empunharam os fa­chos sagrados de HIMENEU que lhes dera o Hélio, o Magno Sacerdote, e, após a invoca­ção ao DEUS DO CASAMENTO e à ADULTA ou JUNO que o presidiam vestindo os seus péplos de luz, como as divindades que os seguiam, Volumno, Subigo, Talássio, Domitio e Pi­lumno, unindo estreitamente, palma a palma, as suas mãos direitas que o Hélio atou doce­mente num largo laço de púrpura franjado de ouro, trocaram, num juramento místico, o sim trêmulo e emocional do Eterno Enlace, enquanto os Sacerdotes entoavam o Hino de Himeneu:

DEUS DO CASAMENTO

Dá-nos boa sorte,

Calma o frio vento

Das iras da MORTE.

A nós, os mortais,

Teu “facho” ilumine

E a sermos leais

Sempre nos ensine.

Que as nossas esposas

Nós sempre as amemos

Que de amor e rosas

Fiéis as coroemos.

DEUS DO CASAMENTO

Dá-nos boa sorte,

Calma o frio vento

Das iras da MORTE.

Então Orfeu tirou do plectro de ouro e vi­brou a lira olímpica, acompanhando-lhe a música sublime um bando de encantadora, meninas, em leves saietas de um tecido transparente de neve, engrinaldadas de lírios e mirtos, que gorjeavam docemente, em coro, um epitalâmio ideal...

Depois os noivos e todo o cortejo de bodas, despedindo-se do rei e do povo feácios e agradecendo-lhes a esplêndida acolhida, volve­ram para bordo de Argo, que imediatamente largou velas com rumo às costas do Epiro. A noite descia serena e clara. As estrelas fulguravam com uma vaga luz de ardentia. O mar estendia-se para todos os quadrantes no seu infindo e líquido lençol esmeraldido, agora enlutado pela treva e mal aceso, aqui e além, sob as luzes de bordo, em miudinhos clarões de rubi. A brisa leve do largo psalmodeava brandamente nos cabos. E ao longe, no hori­zonte, a lua surgia abrindo o seu nevado e ful­gente velario de escócia sobre a deserta pla­nura das vagas.

Os Argonautas de pé às amuradas, na tolda, saudaram à DIANA cantando:

Salve, rainha da Noite!

Salve, deusa de alvo colo!

Querida filha de JÚPITER,

Linda irmã do louro APOLO

À ré, num recanto da borda, Jasão e Medeia, enlaçados estreitamente, numa grande ternura, contemplavam, em êxtase, a lua, co­mo se os seus corações amorosos fossem, acaso, lenta e deliciosamente ascendendo, na luz láctea e nebulosa, para algum noivado no céu...

Era a hora das orações. Todos desceram ao Santuário do navio, penetrando primeiro no recesso em que se elevava o Altar de Hera, iluminado por miríades de pequeninas lâmpadas sacras, por entre as quais pendiam do teto balouçantes caçoulas de bronze, onde ardiam resinas e pós aromáticos. Aí ficaram ajoelhados a orar por instantes. Depois passaram ao Altar de Poseidon, praticando a mesma cerimônia. E voltaram à tolda entoando cânticos a JÚPITER e demais DEUSES do Olimpo, enquanto Jasão, o noivo venturoso, conduzia Medeia, a noiva adorada, para o florido tála­mo nupcial armado na sua câmara...

A noite continuava plácida clara. A Lua, já quase no zênite, nevava em cheio o Espaço. Pelas vagas, em torno, largas faixas de espuma semelhavam rendados de prata. Tudo, no Mar e no Céu, era um geral amavio e uma esplen­dente alvura geral. E como o feliz e apaixona­do casal do Sonho e da Lenda, àquela hora inefável a Natureza inteira dir-se-ia também a noivar!

Argo vogava docemente, como na serenida­de de um lago. À popa alumiava-lhe a singradura e o rumo, como um guia fiel e bendito, a linda ESTRELA POLAR. No alto e à proa era a luz ideal de DIANA, estendendo sobre as águas escuras, para livrar a galé dos baixios e escolhos, uma galáxia de prata. E uma brisa de feição tufava as velas de púrpura, sitiando e gemendo melancolicamente nos mastros e cabos...

Os ofìciais e marinhagem argonautas, de­bruçados ou reclinados às bordas, sob pálio luminoso da Lua, absorviam-se agora numa saudade das feminas criaturas amadas que haviam deixado na pátria ou pelas risonhas ter­ras do Oriente por onde tinham andado e tocado em toda aquela infindável viagem, quan­do de repente um canto inefável, de uma melodia inexcedível e sem par, se ergueu e se es­palhou pelas ondas envolvendo toda a nau. Eram vozes feiticeiras, idealíssimas suaves. Arrebatados e tomados de eflúvios de amor, lan­çaram curiosamente o olhar em derredor, para ver de onde partia tão divina barcarola, quan­do uma surpresa extraordinária os empolgou profundamente.

Seres estranhos, metade mulher metade pei­xe, com bustos brancos como o gelo ou como o mármore, com fisionomias e colos de idealizadora beleza, flutuavam, em multidão, na crista alta das vagas, deslizando e deslo­cando-se em meneios langorosos, em torno ao costado da nave, para onde erguiam expressi­va e fascinadoramente, cantando sempre com as pequeninas bocas entreabertas, os seus brilhantes olhos de esmeraldas e os seus bra­ços de uma carnação escultural, que se abriam e fechavam ritmicamente, em mudos convites amorosos, para as bordas onde eles estavam, como sôfregos de os amplexa­rem e arrebatarem para o seio fundo das águas. Eram as encantadas SEREIAS da Iônia, dentre as quais se destacavam, tentadoramente — Telixiopa, Pisione e Aglopgêne, as suas três amadas rainhas, de fato soberanas a todas pelos enleios e graças.

E o canto delicioso e enlevante das olímpicas mas enganosas filhas do Mar rolava de vaga em vaga, em volta de Argo, irresistível e tentadoramente :

Vinde, vinde, Marinheiros

Matar o ardor da paixão

Nestes seios, verdadeiros

Ninhos de amor, que fagueiros

E sinceros vos serão.

Nestas colchas ondeadas,

Sobre estes lençóis de espuma,

Vinde, oh almas namoradas,

Da Graça as flores aladas

Desfolhá-las uma a uma.

Jogai-vos da Nau ligeira

Nos abismos de estas águas;

Deixai a vossa canseira

Que é d'arminhos esta esteira

Ond'há gozos e não mágoas.

Vinde, que nós, as “incautas”,

Ansiamos por abraçar-vos

E convosco, lindos Nautas,

Tornar-nos em Argonautas

Para de amor saciar-vos.

Descei — sem medo à voragem —

A este mar de esperança;

Parai a vossa viagem,

E enlacemo-nos à aragem

De estas ondas em bonança.

Nossas bocas tem doçuras,

Nossos olhos esplendores,

Jamais tereis amarguras

Mas encantos e venturas,

Beijos, sorrisos, amores...

Nossos braços são cadeias

Das mais sublimes prisões

Que até nem ZEUS já receia-as

— Abri, pois, a nós SEREIAS, Marujos, os corações!

Héracles, Polifemo e Orfeu; Bules, Anfiarau e Teseu; Anceu, Zetes e Calais; Castor, Pólux e até Eufemos, o piloto-mor­ de bordo, bem como os demais companheiros, sentiram-se logo cativos dessas feituras so­berbas. E, esquecendo por instantes a Pátria, a Glória, o Dever, iam jogar-se aos braços enlaçantes das adoráveis SEREIAS, quando APOLO e VÊNUS subitamente apareceram, num ne­voeiro de sol, e, a mandado de POSEIDON e de HERA, afugentaram as enliçadoras criaturas cantantes, acorrentando-as às grossas rochas de coral e pérolas, de safiras e turmalinas verdes das suas misteriosas e feéricas grutas marinhas.

Butes foi o único que, não podendo ou não sabendo conter-se, se atirou impetuosamente às ondas e já nadava ao longe, levado triunfalmente entre contínuos amplexos e beijos, por um cativante pelotão de SEREIAS.

Mas VÊNUS, no seu vivo resplendor de astro e no seu leve e pequenino barco de concha, com o véu azul ao vento, voou logo em socorro do belo moço argonauta e, libertando-o das enfeitiçantes, Tentadoras do Mar, o recolo­cou a bordo no meio dos companheiros que, dir-se-ia, vibravam ainda de volúpia e paixão pelas irresistíveis e gentis cantadeiras. Entanto DIANA continuava a iluminar ideal­mente Céu e Mar, com o seu melancólico esplendor...

Ao deixarem pela popa Paxos, a sétima e menor das principais ilhas iônias, ao passarem Nicópolis e Ácio, no golfo Ambraquia, avistaram o lendário promontório setentrional de Leucade, onde os amantes infelizes, levados de desespero e angústia, iam pedir ao Oceano o repouso eterno, a paz suprema do Sono Fi­nal e a satisfação terrível e cáustica, que o AMOR jamais lhes dera às desilusões e ansiedades de traídos e abandonados da Mulher e das suas graças, e onde mais tarde viria tam­bém a matar-se SAFO, a divina poetiza dos Epitalâmios, sacudida da sua indômita e delirante paixão por FAON, o feiticeiro e fascinante mancebo lésbio a quem VÊNUS, presenteando-o com um vaso de mágicos perfumes, fizera o mais gentil e tentador dos homens...

Tomando o canal entre Leucade e as costas verdes da Acarnânia, os Argonautas vieram até as pequeninas e risonhas ilhas Equinades na entrada do golfo Corinto, à boca do Aquelous. Daí rumaram ao promontório Chelonites, na Elida, a contornar o Peloponeso em de­manda de Cítera e do azul do Mar de Mir­tos.

Ventos rijos de oeste e correntes marinhas contrárias vieram, entretanto, impelir Argo para as águas espumosas da Pequena Sirte, em frente ao rio Tritonis que liga essa zona mediterrânea ao lago do mesmo nome...

Não estariam ainda aplacados os DEUSES?! Sim, estavam. O que havia apenas eram os comuns acidentes do mar. Mas já ninguém a bordo percebia bem isto, porque o ciclone do Egeu ainda os trazia em constante assom­bro e temor. As menores coisas, fora da plena normalidade e da plena segurança da bonança, sugeriam-lhes logo apreensões e maus presságios. Por isso a cada momento surgiam sus­tos, medos, sobressaltos que desorientavam a todos. Viriam ainda novos e maiores perigos nesse custoso fim de tão longa viagem?!

O ramo sagrado do carvalho de Dodone, o oráculo da galé dizia que não. Porém, quem sabe? O DESTINO cruel, oh DEUSES! que arrebatara já para sempre Idmon, Tifis, Oileu e mais alguns da marinhagem, era bem capaz, o feroz, o implacável, de reservar-lhes ainda o naufrágio, a morte, quem sabe? como supremo remate à audaz expedição...

Assim pensavam os Argonautas na espécie de acabrunhamento de espírito em que os deixara a grande tempestade apanhada à saída do Helesponto. Mas, em verdade, a viagem gigantesca, perfeitamente simbolizadora da plena expansão e do absoluto domínio dos GREGOS nos Mares, era a mais feliz, a mais calma, a mais bela de toda a Antiguidade...

Como o tempo continuasse adverso, os ma­rujos tessálicos resolveram subir até ao lago Tritonis, a esperar melhor monção. A corrida era à popa e de calma: salve NETUNO, deus do Oceano, e ANFITRITE, bela deusa do Mar! E seguiram. Então, com velas largas e mano­bras folgadas, visitaram os povos dessas para­gens.

Aí, no mesmo sitio usada feira criada MINERVA, a deusa da Sabedoria, da Guerra e das Artes que dera o nome ao lago, porque então se chamava TRITÔNIA, que significa nascida da cabeça, pois saíra da cabeça de JÚPITER — levantaram um templo de mármore verde da Numídia coroado por um grande ramo de oli­veira — o emblema da Paz — primorosamente esculpido em bronze, não só para deixarem assinalada a sua passagem por ali como para chamarem em seu favor a graça e proteção da poderosa e invencível PALAS. O templo, edificado em semanas por milhares de artífices tritônicos, foi inaugurado com suntuosas e alegres festas a que assistiram o povo e seu bom rei, o qual lhes ofertou como lembrança um precioso vaso divino, que tinha a virtude de manter a certeza das rotas e a segurança do bom tempo no mar...

Dois meses, depois volviam à Pequena Sirte e se faziam ao largo. O vento oposto cessara. Já não era sem tempo. Toca, pois, a puxar para Tessália ...

Oeste ou zéfiros soprava deliciosamente. O mar dobrava largo e azul, apenas levemente rendado de espuma. O horizonte, límpido e sem nuvens, deixava ver o seu arco longínquo a toda a rosa dos ventos. No alto o céu, cheio de serenidade e transparência, de esplendor e doçura sidéria, de augusta paz elísea, parecia o Olimpo no seu imenso docel de safira. Em torno, ao longe, velas alegres e tingidas a múrex cruzavam a todos os rumos, confundin­do-se com as gaivotas felizes voando em nu­vens de asas palpitantes em ideal brancura. O sol, subindo triunfalmente a leste, deslum­brava pelo seu disco de ouro flamívomo. Enfim, pelo gigantesco e soberbo cenário ma­rinho, tudo era graça e ventura, num encanto paradisíaco.

A bordo de Argo varreram-se então de to­dos os espíritos as apreensões, os anseios, os temores de perigos. Ninguém, desde o almirante ao último grumete, deixava de exultar de feli­cidade e alegria. À popa e à proa, nas cober­tas e tolda, ferviam e espumavam os vinhos doces da Grécia nas crateras de ouro ou bron­ze, pejadas de cinzeladuras artísticas, correndo de mão em mão em libações contínuas. BACO ou DIONÍSIOS era invocado a pleno júbilo, d’envolta com as retumbantes aclamações aos pa­tronos do navio. E saudações, cânticos e hinos aos demais Deuses fluíam espontânea e entusiasticamente de todas as bocas, ecoando no céu e nas águas num uníssono festivo...

Já Anceu voltara a assumir o posto de pilo­to-magno a que fora elevado quando morrera Tifis, e, de acordo com Eufemos, ao presente o verdadeiro chefe de navegação e manobras de nave — lançou a galé afoitamente, numa longa travessia direta de quase mil mi­lhas, da Pequena Sirte ao Carpatium Mare, onde, depois de um mês de singraduras felizes abordam o grande Cárpatos, aportando a Mi­siros. Aí se demoram apenas seis dias. Apro­veitando a monção sem igual, largam para o noroeste ou corus, por entre o bordado esme­raldino das Ciclades. Mas o vento que rondara para o cécias ou nordeste auxiliado pelas correntes marinhas, impelira-os para Creta. Lan­çam âncora em Minôa e buscam desembarcar. O rei Talús, famoso tirano inospitaleiro e cruel, se opõe terminantemente a isso, intimando-os a que deixem imediatamente o porto. Jasão e seus camaradas pensam, a princípio, em operar o desembarque à força dando batalha a Talús, mas desistem logo da ideia te­mendo o desagrado dos Deuses. E fazem-se ao mar, rumando de novo às Espóradas, na rota de Bóreas ou Àquilo.

Singravam junto aos numerosos e perigosos penedos que ficam entre Astipalea, Nisiros e Telos, quando caiu um sudoeste ou libicos duro. Que horror, oh Deuses! quanto mais se houvessem atacado Talús em Creta!...

Entretanto HERA e POSEIDON acodem sem tardança, enviando-lhe APOLO, que aparece de repente à proa de Argo num enorme nevoeiro de luz, abonançando imediatamente as vagas e indicando-lhes a rota da ilha de Anafe, para onde velam em bordada segura e onde, um dia após, ferram velas ancorando.

Febea, a pequenina e graciosa capital de Anafe, agitava-se alegremente na sua grande festa anual APOLO, patrono dessa pérola das Ciclades Meridionais, que aí era adorado com o nome de EGLETA, radiante. Os Argonautas, agradecidos ao deus da Poesia e da Música por os haver salvo dos rochedos e da borrasca das Espóradas, desembarcam em gala com toda a guarnição, e, associando-se entusiasticamente aos anafeus nas suas esplêndidas apolônias, levantam altares e celebram sacrifícios particulares seus, em honra ao irmão de DIANA e filho sobre todos querido de ZEUS, TONANTE e de LATONA...

Deixam Anafe um mês depois e soltam velas de púrpura a uma bonança tão alegre como a da travessia para os Cárpatos. Os dias e as noites sucedem-se serenamente como então, ao esplendor do céu azul e à berceuse doce das ondas. Jasão e Medeia deliciavam-se num conchego feliz de corpos e corações, noi­vando inefavelmente, idealmente sobre a infi­nita amplidão marinha, povoada de encantos e sonhos. E na rica câmara ou na tolda, à luz velada das lâmpadas de cores, ou ao fulgir das estrelas, ou ao suave clarão feminino de ASTARTÉ ou DIANA, ou ao jorrar fulvo e rútilo dos de FEBO — jamais se desenlaçavam um momento, em amavios de amor...

Os oficiais e marinhagem argonautas iam também venturosos, como que já a antegozar as delícias da chegada à Tessália, onde salta­riam em triunfo com o VELO maravilhoso.

Assim abordam à pequenina ilha de Tera, onde, alguns anos antes, o insubmisso povo dos teras, exilado de Esparta, achara um asilo e um ninho, fazendo-se marinheiro e pirata invencível para se vingar de sua pátria, a La­cônia, levando o assalto e o morticínio às suas ricas cidades litorais de Epidauro e Gitium, excursionando mesmo audazmente, apesar do seu pequeno número, até às inexpugnáveis mu­ralhas da sua capital, tentando esmagar Espar­ton, o déspota e caudilho terrível que os expul­sara para aquela ilha perdida das Ciclades.

De Tera, aproados ao corus, largam para o golfo Sarônico. Passam por entre as Ciclades de oeste. À uma e outra banda as ilhas sucedem-se — Paros, Olearos e Citmos, a sotavento; Sicinos, Cimolos, Serifos e Hi­dréa, a barlavento, destacando num panorama seguido, em relevos verdejantes ou em rochas escalvadas e estéreis. Uma tarde surge à proa Enópia ou Enona ou Ezina, bem à boca do Sarônico, entre as esplêndidas terras da Argó­lida e da Ática. Os eginetas e seu bom rei Eaco, o Justo (assim cognominado pela reta e inquebrantável justiça que sempre praticou nos seus reinos desde que subira ao trono até à sua morte) dispensaram-lhes a mais afável acolhida.

Mas não se demoram aí mais de uma se­mana e fazem-se de vela para o norte, para a entrada do grande canal de Euripe, na Eubeia, célebre pela sua estreiteza e extensão e cento e vinte milhas e pelo encontro das correntes do Setentrião e do Notos, que nele forma­vam às vezes preamares singulares e de alar­gar e inundar as ribas da Boécia e de Chalcis. Nas costas e ao largo, o poético mas perigoso Mar de Mirto, crivado de escolhos e Sirtes, se ostentava em bonança, resplandecendo ao sol pelo seu azul claro e límpido. Ao avistarem o alto promontório Sunium onde acaba o monte Laurum e ao enfrentarem o rico templo de MINERVA que se erguia e branquejava magnificamente nos mais avançados e culminantes penedos pelo seu vasto frontão e grossas colunas de mármore, atravessaram a galé e, lan­çando às ondas o vaso divino que lhes dera o rei do lago Tritonis, à maneira de uma ofe­renda votiva, entoam um hino glorioso à Deusa da Guerra e da Paz que os áticos chamavam ATENEIA.

Subindo o passo de Macris entre a ilhota de Helena e o litoral tórico da Ática, desco­brem o promontório Geretes, na Eubeia, e o viso agudo do Ocha. Aproam às ilhas Petálias e correm à popa com o sueste ou vulturnus para os altos pórticos graníticos da passagem do Euripe.

A um e outro bordo de Argo costas borda­das e lindas começam então a passar, à distância de um tiro de dardo, lentamente para o sul, com praias de areias alvíssimas ou varandas e muralhas ameadas de rochas basálticas, ele­vando-se para o centro em outeiros, colinas, socalcos e serras cobertas de verdes pastagens ou de rendilhadas oliveiras, plátanos, cedros e vinhas, por entre os quais alvejavam alegre­mente, espelhando-se na toalha azul da água, pela fulguração da sua casaria, palácios e templos de mármore, as vilas e cidades continentais da Ática, da Boécia e da Lócrida, como Probalinta, Tricoríntia, Romnonte, Orope, Délium, Clátia, Antedon, Larimna, Cinos, Alope, Daphnis, Cnemides, e, na costa in­sular da Eubeia, Caristes, Marnarum, Tami­ne, Amariate, Chaleis, Egéa, Orobias e Dúem...

No convés e na tolda, a bombordo ou a es­tibordo, Jasão e Medeia, oficiais e marinha­gem, viam deslizar num encanto, acenando alacremente aos de terra que pasmavam a olhar a grande nau suntuosa, as paisagens e os quadros rurais e urbanos da terra firme e da ilha, dessa rica e bela ilha do Egeu a que os pelasgos, os dórios, os eólios, os helenos e outras gentes que povoaram Grécia tinham chamado a princípio Macris (a longa) pela sua grande extensão, depois Chalcias (a de Esta­nho) pelas suas minas de estanho, ainda depois Abantis (a dos Abantes) pelo povo dessa raça que mais tarde a ocupou, e, por fim, Eubeia, que, passados os Tempos Heroicos e as primeiras épocas históricas, viria ainda a ser mu­dado em Negroponto.

Três semanas após entravam no golfo Ma­líaco e avistavam os montes meridionais da Tessália. Eram as terras benditas da pátria! Que imensa e profunda alegria, oh HERA, oh POSEIDON e oh JÚPITER!... E todos, a uma, lançaram-se no convés de joelhos, entoando uma saudação prolongada às saudosas plagas natais, aos três poderosos e augustos patronos da nave e aos demais deuses do Olimpo.

Então rumaram à lesnordeste, para o cabo de Artemisa. E dois dias depois, sempre com excelente bonança e bons ventos, manhãs e tardes divinas, entraram em águas azuis do Pagasæ que, batido do sol a prumo a coroar de luz Céu e Mar, sorria e rutilava feericamente, como no dia feliz da partida — já havia dois anos e meses — quando Argo largou heroica­mente a singrar as vagas altas do Egeu, da Propôntida e do Axenos à conquista do VELOCINO DE OURO.

Agora, como então, uma brisa fresca e suave impelia à popa a galé que, leve e célere e graciosa, flutuava e vogava com o seu alto casco dourado e as suas largas velas de púrpura, numa rota quase em reta, Apertius ou Setentrião acima, em demanda de Iolkos, como se acaso fosse uma grande ave marinha de Lenda ou de Sonho, ou algum cisne de ouro e múrex que JÚPITER, num dos seus caprichos, houvesse por ventura mandado, em forma de nave ou de nau, a buscar a sua JUNO a alguma dessas mil ilhas graciosas da Hélade.

No dia seguinte, à primeira luz da alvorada, a galé fundeava no ancoradouro de Afetes, próximo ao belo pontal de areias que o separava da formosa capital tessálica que, envolta já no magnífico e róseo transparente de E'os, rutilava pelos seus ricos palácios e tem­plos, refletindo-se com a brancura de uma paisagem polar no cristal, verde do golfo. Ha­via dois anos e seis meses que, numa manhã igual a essa, Argo partia para as terras de ouro da Cólchida de onde vinha agora che­gando.

Na faina da amarração, ao correr tilintante das amarras mergulhando as âncoras n'água, Jasão e toda a oficialidade e maruja, de pé sobre a tolda, entoaram, em coro o Hino de Adeona, a divindade das viagens que presidia à chegada:

Já nada é amargo

A nós, ADEONA,

Que em paz trazes Argo

Dos Mares à tona.

À bela maruja

Que vem triunfante

Não há mar que ruja,

E tudo é brilhante.

À HERA devemos

E ao REI DO OCEANO

O VELO que temos

E que é soberano.

Dá-nos, DIVINDADE,

Que os nossos que amamos

Com felicidade

No lar os vejamos.

Já nada é amargo

A nós, ADEONA,

Que em paz trazes Argo

Dos Mares à tona.

Toda a cidade despertava nesse instante em nunca experimentado alvoroço, não só porque ninguém contava mais com a vitória e regresso da expedição como também por jamais lhe haver chegado, durante aquele tempo, a menor notícia do seu tão longo e trabalhoso cruzeiro pelos perigosos domínios de ANFITRITE e POSEIDON. De sorte que, mal se soube ser Argo que ancorava no porto, a população inteira, tomada de regozijo, vazara-se toda para as praias e cais, a ver o navio querido e os seus heróis gloriosos que o tinham levado e trazido a salvamento e em triunfo sobre os abismos do Mar. E, empunhando archotes e ramos de louro virente, homens, mulheres e crianças agitavam-se em júbilo sobre o pontal de areia, entoando o cântico A volta dos Na­vegantes aos Lares com que de remoto costu­me, na Helênia, saudavam-se, as expedições marítimas que regressavam à pátria vitoriosas de jornadas ou conquistas ao longe:

Bem-vinda a galé veleira

Que volta a salvo dos Mares,

E a gente marinheira

Que anseia pelos seus lares!

Que perigos e avarias

aos rijos ventos e vagas

Não sofreu, noites e dias,   

Até ver amadas plagas!

Seu almirante e companha

Quantas dores não passaram

Para a palma verem ganha

Dos combates que travaram !

Mas, enfim, depois de tanto

Lutar, com alma ansiosa,

Eis c’rôa o Prazer o Pranto

Na viagem gloriosa.

Bem-vinda a galé veleira

Que volta a salvo dos Mares,

E a gente marinheira

Que anseia pelos seus lares!

Em pouco os Argonautas, uniformizados em gala, com os mantos de púrpura flutuando ao vento, os capacetes e armas radiando ao sol, desembarcavam por entre as bênçãos e aclamações do povo. E formado um cortejo solene, tendo Jasão e Medeia à frente conduzindo procissionalmente aos ombros o famoso TESOURO DA CÓLCHIDA e os despojos queridos do companheiro morto, sob o uníssono de um pean puseram-se em marcha para o templo de JUNO, onde iam depositá-los. O povo os seguia em multidão, cantando também e agitando alegremente os seus fachos e ramos.

As ruas e praças por onde passavam acha­vam-se alcatifadas de folhagens e pó de ouro, como nas grandes festividades públicas, osten­tando a casaria e os palácios pendentes das amplas janelas aberta as ricas colchas de púrpura dos triunfos, sobre as quais se debruçavam as Donzelas e Matronas mais for­mosas da Tessália, acolhendo os guerreiros do Oceano com gritos de afetuosa saudação e cobrindo-os de incessantes chuveiros e turbilhões de flores.

Depositados no templo de JUNO a urna e o TOSÃO DE OURO, o almirante, a esposa e os de­mais Argonautas, depois de ali se quedarem a orar, dirigiram-se ao palácio real a saudar o rei Pélias que os recebeu friamente, em cerimônia oficial, não trocando uma só palavra com Jasão e Medeia e limitando-se a abraçar o belo Acasto, seu filho, que contra a sua vontade e fugido, havia partido a bordo de Argo para a viagem da Cólchida.

Mas era natural que o rei Pélias assim pro­cedesse e se mostrasse, porquanto experimentava profunda decepção com a volta dos Argonautas, cuja longínqua expedição às costas lestes do Axenos calculada e cruelmente arran­jara, pensando por esse meio livrar-se para sempre de Jasão, pois aguardava que ele e to­dos que o seguiam perecessem na viagem e não voltassem mais à pátria. Entanto o DES­TINO e os Deuses tinham sido retos e justos. O miserável e desapiedado usurpador da coroa de seu irmão Éson que, por fim, já doente e em avançada idade, abdicara em Jasão, seu fi­lho e legítimo herdeiro, a quem Pélias trouxera sempre ardilosamente arredado da corte até que o concitara à viagem da Cólchida onde, supunha, ele viesse a morrer, podendo assim governar tranquilamente a Tessália e largar aos seus descendentes o trono — ficara em grande desespero e furor apenas recebera a notícia do regresso de Argo. Sim, porque ali tinha de novo o sobrinho, Príncipe popular e amado, agora enaltecido como nenhum outro pela mais elevada e estrondosa conquista do tempo. Por isso o acolhera friamente, como aos demais Argonautas. E já começava a meditar num outro plano mais certo e seguro de o exilar e o matar...

Do palácio real, incessantemente acompa­nhado e aclamado pela população de Iolkos, que cada vez mais se expandia em alvoroço e prazer, Jasão, com a esposa e os camaradas, dirigira-se para a antiga sede do governo — um vasto e suntuoso edifício onde habitava Éson, seu pai, já ansiosamente à sua espera.

Foi de extraordinária emoção e júbilo o en­contro entre o velho Éson e Jasão, depois daqueles dois anos a meio de ausência e sau­dade. O filho vinha glorificado pela vitória de uma jornada até ali sem igual e que o tornava para sempre imortal, porém ele, coitado, sentia-se como nunca envelhecido e alquebra­do, e mais que tudo pela dor formidável da perda da consorte, a boa e dedicada rainha Anfinomea, mãe de Jasão, morta, havia justamente um ano, de amargura e desalento pela ausência do filho adorado que, supunha, nunca mais voltaria à Tessália. O chefe marujo, ao saber da morte de sua mãe, ficou como fulminado, abraçando-se ao pai a chorar. Medeia chorava também. E os oficiais Argonautas compartilhavam do sentimento do seu grande almirante com sinceridade.

Mas as alegrias públicas, tão significativas e espontâneas como Iolkos jamais vira iguais, vieram desvanecer e atenuar de algum modo aquela desgraça com o torvelinho delicioso das suas músicas, cânticos e danças. E durante um mês, Jasão, Medeia, oficiais e tripulantes da gloriosa galé andaram nos braços do povo, que os carregava ao colo, em triunfo, sob o estrugir glorificante e contínuo das aclamações e ovações.     

Passadas as lestas, Jasão e sua companha voltaram ao ancoradouro de Afetes e aí mandaram construir uma espécie de estaleiro colossal de mármore, em forma de templo, onde recolheram Argo com todos os seus apetrechos náuticos e tal qual vogara durante a sua longa viagem, consagrando-a, em seguida, à PALAS ATENAS e a POSEIDON, deus dos Ma­res...

VI

Como sói suceder às coisas humanas, aos grupos, ajuntamentos ou agremiações que espontânea e naturalmente se reúnem e congregam em grandes momentos históricos na comunhão de um mesmo pensamento ou empresa social que alcança, afinal, o seu desfecho ou desígnio grandioso, civilizador, supremo, e que nada mais tem a fazer senão dissolver-se, acabar, dispersar-se, espalhando em fragmentos a sua força coletiva que irá agir então, sociologicamente, subdividida no sentido individual e próprio de cada um, — a ocasião chegou em que os Argonautas, após meio lus­tro de estreita, perfeita completa união e camaradagem, numa expedição internacional ma­rítima de descobrimentos e conquistas, operan­do atos que se consubstanciaram no feito ou façanha geral de uma raça, tiveram de sepa­rar-se, de orientar-se tão somente pelas energias e aspirações próprias, particulares,  íntimas, pessoais e partir depois cada qual, para seu destino

Assim Héracles, filho de JÚPITER e ALCMENA, que já era um herói, mas que mais tarde se tornaria ainda o herói dos heróis e que já tinha vencido o famoso leão de Nemeia, foi executar, além de outros, os seus Doze Trabalhos sobre-humanos e maravilhosos; Polifemo, fi­lho de NETUNO e de TOOSA, saiu a peregri­nar pela Hélade; Castor e Pólux, filhos de JÚPITER e de LEDA, irmãos de Helena e de Clitemnestra, notáveis pela viva e constante afei­ção fraternal que os ligava tornaram para a Lacônia de onde eram naturais; Orfeu, filho de APOLO e da musa Clio, ou de EAGRIO e Calíope, dirigiu-se para Trácia; Teseu, fi­lho de Egeu e de Etea, lançou-se a correr mundo e a praticar façanhas à maneira de Héracles; Calais e Zetes, os dois irmãos, filhos de Bóreas e de Oritisia, encaminharam-se para Élida; Anceu voltou à Arcádia de onde era filho e onde viria depois a reinar; Anfirau filho de FEBO e de Hipermnestra, reco­lheu-se à Etólia, sua terra natal; Tideu, filho de Eneu e Alteia, transportou-se a Tebas, na Beócia; Meleagro partiu para a Argólida; Butes, filho de Bóreas, embarcou para a Sicília com Melas, Filacos, Talaus, Equion, Climeno, Menetius, Clitius, Cefeu e Erginus; Eufemus foi chamado a dirigir as frotas de guerra do rei da Lucânia; Telamon volveu à Messênia, sua pátria, e, finalmente, os demais largaram também à aventura pelo Orbe.

Só Jasão e seu primo Acasto ficaram em Iolkos — o primeiro pacientemente à espera que seu tio Pélias se resolvesse um dia entre­gar-lhe o trono; o segundo, de acordo com o ardiloso e perversíssimo pai, numa íntima e insofrida ambição de reinar, aguardava viesse a tocar-lhe o mesmo trono, ocupando-se para isso em organizar o exército tessálico, que, além de tudo, poderia opor eficazmente ao parente e ex-chefe, se este acaso pensasse em revoltar-se com o povo, que o idolatrava, para depor a Pélias.

Nesta expectativa ansiosa o valente almi­rante argonauta viu decorrer o primeiro ano depois de seu regresso à patria.

Nisto, devido às inconveniências e despotismo constantes de Pélias que procura impor-se até às Nações vizinhas pela violência e a força, rebenta a guerra na fronteira norte da Tessália com a Macedônia, que os Elimeus ameaçavam já com um numeroso e aguerrido exército por causa da cidade de Dium que Pélias dizia pertencer-lhe e tentava incorporar ao seu reino.

Acasto então, elevado a general em chefe das forças tessálicas, teve de partir com elas a repelir o inimigo. Foi. Mas no grande encontro das montanhas do Vale de Tempe, ao sul da Piéria, já em território macedônico, on­de o esperava o exército elimeu, experimentou tamanha derrota que caiu logo prisioneiro com o seu estado-maior. As forças tessálicas escapas à matança geral, voltaram depois a Iolkos, negando-se terminantemente os generais e soldados a volverem à fronteira e prosseguirem na guerra, alegando que ela era invasão e absorção do território estrangeiro e que os elimeus não tinham feito mais que defender as suas terras e os seus direitos. E obrigaram Pélias a aceitar a paz após a derrota tremenda e sob as piores imposições do ini­migo, que lhe exigiu uma enorme indeniza­ção de guerra e manteve o filho em cativeiro.

A medida dos vexames, humilhações e sofrimentos públicos estava cheia: o infortúnio das armas fê-la transbordar. Exército e povo tessálicos revoltaram-se então e depuseram o rei usurpador, aclamando e repondo no trono a Éson que, cada vez mais envelhecido e doente, conseguiu afinal, nesse momento, a efetividade da abdicação do filho. Jasão foi imediatamente exaltado ao trono.

Durante as suntuosas e ruidosas festas da coroação, o regozijo e expansão públicas atingiram verdadeiramente ao delírio, e foram ge­rais em toda Tessália. Exército e povo fraternizaram então na mesma comunhão de ideais e sentimentos, e uma grande cerimônia ritual celebrou-se no templo de JUNO ao triunfal e milagroso VELOCINO DE OURO cujas virtudes e prodígios Jasão e Medeia, como a multidão inteira e as classes armadas atribuíam a admirável e venturosa mudança das coisas.

Um reinado pacífico, progressista, justiceiro e brilhante entrou então de felicitar a Tessália, como nos áureos tempos de Éson, que se via agora desdobrado e retratado na pessoa heroica e gloriosa do filho...

Mas, vinte anos depois — já havia muito falecera Pélias — Acasto que, sem se saber como, fugira com todo o estado-maior da sua prisão em Ege, capital da Macedônia, viera incógnita e secretamente para Iolkos onde, uma noite, à horas mortas, auxiliado pela sua gente, violou o templo de JUNO e roubou o TOSÃO DE OURO, indo escondê-lo em Demétrias, cidade próxima, erigindo-lhe aí um templo.

E logo a felicidade o poder e a riqueza en­traram a abandonar Jasão. Depois a esposa, que já de algum tempo o flagelava com as suas exigências e zelos, tornara-se antipática e intolerável ao povo, a quem ofendia a todo ins­tante com o seu orgulho e desprezo, fazendo perseguir e matar, por intermédio dos ministros, os que porventura se reuniam contra ela em murmurações públicas.

Felizmente, já Éson era morto.

Os desgostos e desagrados gerais, aumen­tando sempre sem atenuante, subiram a ponto que o mesmo exército e o povo, que haviam elevado Jasão ao trono, minados e solapados pelas promessas e finuras de Acasto, do seu es­tado-maior e do partido que já se formara em torno dele, depuseram o valoroso almirante argonauta, por meio de uma sedição, que, vitoriosa e senhora de tudo, proclamou rei o filho de Pélias.

Jasão, abatido e vencido, com a vergonha e a dor a corroer-lhe o coração e o espírito, repudiou publicamente Medeia, que deixou em abandono com os dois filhos que ela tivera, e se passou a Corinto, onde foi carinhosamente acolhido pelo bom rei Créon, o qual o fez logo seu primeiro ministro e o adotou por herdeiro. Aí, em pouco, desposou a gentil Creusa ou Glauce, filha de Créon, que por ele se apaixonara. Vivia em Corinto feliz e estimado do povo quando Medeia, ao saber o seu paradeiro, para ali se transportou, e, numa alucinação contra a rival, corrompendo as sentinelas e serviçais do palácio, enviou como presente a Creusa uma boceta infernal que, apenas aberta pela inexperiente e boa princesa, horrorosamente explodiu abrasando todo o palácio e com ele reduzindo para sempre a cinzas a pobre Creusa e o infeliz rei seu pai.

Jasão escapara ao acaso, por achar-se au­sente em Delfos, na Fócida, onde fora em missão do governo. Ao voltar, ainda encontrou Medeia que o procurou, tentando unir-se-lhe outra vez, o que não conseguiu, pelo que, a fim de tomar dele tremenda vingança, despedaçou pelas próprias mãos os dois filhos e fugiu para Atenas, onde esposou Egeu, de quem teve um filho chamado Medo, que veio a ser, depois, o patriarca de um dos maiores povos da Ásia. Por último, Medeia regressou à Cólchida, re­pondo no trono seu pai, o velhíssimo rei Eetes, já então com cento e cinco anos de idade, o qual tinha sido deposto por uma insurreição das tropas, logo após a morte de Absirto e a partida_dos Argonautas...

O digno filho de Éson, profundamente aniquilado por tantos desastres e desgraças, em extremo desespero e desalento, voltou de novo a Iolkos, e, sem que ninguém o soubesse, dirigiu-se ao ancoradouro de Afetes e perdida e alucinadamente decidiu pôr termo à existência, o que fez, sem mais detença, batendo as cunhas do colossal picadeiro de mármore onde se achava colocada a gloriosa Argo, deixan­do-a ruir medonhamente sobre a sua própria cabeça. Assim acabaram, ao mesmo tempo, o ínclito almirante argonauta e a sua lendária galé...

Era por uma manhã bela e límpida. O sol surgia e galgava risonhamente o azul do Firmamento, iluminando Iolkos e o espelhado cristal do seu golfo como no dia, já remoto e saudoso em que Argo e seus tripulantes haviam partido aventurosa e alegremente para a conquista do VELOCINO DE OURO.

Rio de Janeiro, Novembro-Dezembro de 1905.