LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Helena, de Horácio Nunes
Texto-fonte:
Horácio Nunes Pires, Bastidores. Teatro original,
Florianópolis: Gabinete Tipográfico Catarinense, 1898.
HELENA
Drama original em 3 atos
Personagens
Helena 18 anos
Jorge 23 anos
Paulo 20 anos
Fernando 25 anos
Comendador 50 anos
Do 2º ao 3º ato há um intervalo de 10 anos.
ATO I
Gabinete. Duas portas ao fundo, duas à esquerda e uma à direita baixa. À direita alta, uma janela. À esquerda alta, uma secretária, junto da qual está Paulo sentado em atitude meditativa. Sobre a secretária, livros, papéis, etc. Ao fundo, entre as duas portas, uma mesa com relógio e vasos. Cadeiras. É noite.
CENA I
Helena e Paulo
HELENA. (junto da janela, olhando para fora.) Que noite linda!
PAULO. (indo à janela.) Mas triste... triste como a derradeira lágrima de um moribundo... Não vê?... A lua, que derrama a sua pálida claridade sobre as águas tranquilas do lago adormecido, parece chorar os júbilos perfumados de uma alegria já morta... O poeta sublima do sentimento disse:
“. . . . . . . . . . tudo passa...
“a sorte deste mundo é mal segura;
“vem depois dos prazeres — a desgraça,
“vem depois das desgraças. . . . . . . . . .”
HELENA. (interrompendo-o e descendo.) Mas que desgraças nos ameaçam?... Somos tão felizes!...
PAULO. Felizes!... Quem sabe se esta felicidade de hoje não a fará derramar bastantes lágrimas, não a fará sofrer bastante?...
HELENA. Por quê? O que fiz eu a Deus, para merecer esse castigo?... Amá-lo?... Fazer deste amor uma religião?... Amar não é crime, e, sobretudo, amar como eu amo: com todas as forças de minha alma, com todas as esperanças cor de rosa do primeiro amor...
PAULO. Helena!... (outro tom.) E se eu partir amanhã?
HELENA. (recuando.) Partir!... Como?... Por quê?...
PAULO. Porque a necessidade é a mais poderosa inimiga das afeições e do amor... Sou pobre, bem o sabe, Helena. Seu pai trata-me mal, e já deu-me a entender que...
HELENA. (ansiosa.) Que...
PAULO. Que pretendia despedir-me de sua casa, porque eu sou um miserável... Oh! nem pode compreender a humilhação que sofri! Senti o sangue queimar-me o rosto e o coração ficar gelado como um túmulo... Pobre!... e é porque sou pobre! Mas o que tem isso, se tenho um coração generoso, se tenho a minha honra intacta? Se nada mais ambiciono do que o seu amor para poder viver? Oh! hoje fui maltratado... amanhã serei repelido como um cão!... Vou partir... não sei para onde... Que importa?
HELENA. Oh! cale-se! cale-se! Por que parte?... Porque me abandona, quando eu mais necessidade tenho do seu amor?...
PAULO. (tomando-lhe as mãos.) Ânimo, Helena! Para que lágrimas, se lágrimas não bastam para afastar de nós a fatalidade?
HELENA. (chorando.) E eu, Paulo?... e eu?...
PAULO. A senhora fica. Chorará no primeiro dia, terá saudades no segundo, no terceiro lembrar-se-á vagamente do desgraçado que partiu, no quarto...
HELENA. Oh! por piedade!
PAULO. E não é sempre assim?... De que servem lágrimas de saudade, se não são eternas?... de que serve uma saudade que não dura mais do que uma hora na vida?...
HELENA. Basta! basta!
PAULO. (conduz Helena à janela.) Vê estas flores? Quando o sol amanhã se levantar ardente, elas penderão esmorecidas nas hastes débeis, e o vento desfolhará as suas pétalas perfumadas no pó abrasador da estrada. Quem chorará o destino das desgraçadas?... Ninguém! Apenas a sua formosa jardineira, olhando para os canteiros despidos de galas e de perfumes, dirá distraidamente: — ”Estavam aqui. Ontem ainda brilhavam com todos os seus encantos. O vento levou-as... Que importa?... Outras desabrocharão mais belas e mais perfumadas!”
HELENA. O que quer dizer, Paulo?...
PAULO. Vê este céu sereno e límpido que brilha sobre as nossas cabeças aos reflexos pálidos da lua?... Amanhã a tempestade envolvê-lo-á nas mil dobras do seu opaco manto de nuvens, matando-lhe o brilho e os resplendores divinos... Quem lamentará essa desgraça!... Ninguém? Apenas dirão, com o sorriso da indiferença nos lábios: — ”Ontem brilhava. A procela empanou-lhe o brilho... Que importa?... Amanhã deslumbrará!”
HELENA. O que quer dizer, Paulo?...
PAULO. Sente a brisa perfumada que passa embalsamando com seus agrestes perfumes o seu cabelo negro? Amanhã ele se transformará em furacão, despedaçará, fremente de raiva, as rosas do prado e as arvores da floresta... Quem terá saudades da brisa que passou!... Ninguém? Apenas alguém dirá: — Ontem era doce. Amanhã será divina!”
HELENA. Paulo, o que quer dizer?...
PAULO. Quero dizer que tudo neste mundo tem um fim: que com o tempo desaparecem as saudades, a desgraça foge, a felicidade surge radiante de seduções e de encantos... e a lembrança daquele que partiu se esvaece para sempre do coração daquela que ficou...
HELENA. Paulo!
PAULO. Oh! é bem mais doloroso o sofrimento do que parte! Sentirmos a aproximação de uma hora que desejávamos nunca soasse; ouvirmos um soluço que não se pode por mais tempo reprimir; ouvirmos, aqui, uma frase cortada por um suspiro, ali, um gemido acompanhado de um estertor; vermos a tristeza e a magoa espalhadas nos semblantes de todos que nos são caros... é um martírio insuportável. Soa, enfim, a hora fatal. Todos rodeiam o infeliz que parte, talvez para nunca mais voltar... As lágrimas rebentam em torrentes, os gritos de agonia sucedem-se os saudosos abraços repetem-se, e o quadro desolador é fechado pelas duas tristes palavras, as mais das vezes desmentidas: — “Boa viagem” — (Fernando aparece ao P.E.)
HELENA. Oh! basta!
PAULO. O que parte vai só. É maior ainda o martírio. Não se ter um seio amigo onde se deposite os queixumes das amarguras que nos vão efervescentes n’alma... olhar-se em roda e ver-se isolado... Oh! quanto é mais terrível este sofrimento, do que as saudades dos que ficam! Estes consolam-se mutuamente, animam-se, amparam-se. Mas aquele é só!... Só! Que ânsias dolorosas, que tremendas agonias não nos revela esta palavra — só!... E a noite eterna do martírio sem tréguas, é a treva imensa do sofrimento sem um raio doce da aurora, é o inferno sem céu, da culpa sem arrependimento, é a descrença gelada, é a morte da parte mais sublime da criatura... a morte d’alma!...
CENA II
Os mesmos e Fernando
FERNANDO. (da F.E.) Bravo!
HELENA. (voltando-se.) Ah!
PAULO. (idem, irônico.) O Sr. Fernando da Cunha é muito generoso!
FERNANDO. (descendo.) O Sr. Paulo não sei de que está impagável hoje! há cinco minutos que, parado àquela porta, ouço-o discorrer, com toda a proficiência e sentimento, sobre as coisas do coração. Fiquei nervoso, creia. Por mais de uma vez enxuguei algumas lágrimas que, mal grado os esforços que empreguei para sufocar, subiram-me do coração aos olhos...
PAULO. O senhor escarnece...
FERNANDO. Nunca falei tão seriamente. Se as deixasse correr, devia ainda conservar no rosto os seus vestígios... Mas esquecia-me de... (Indo à Helena.) Minha Sra., tenho a satisfação e a honra de anunciar-lhe que hoje venho...
HELENA. O que?...
FERNANDO. Solicitar a concessão desta formosa mão.
PAULO. (avançando.) A sua mão! (Retrai-se.)
FERNANDO. De que se admira?... Por ventura aqui a Sra. não está no caso de merecer o meu amor?... (À Helena.) E eu amo-a, minha Sra., creia... (Durante esta fala e as seguintes, Paulo mostra-se agitado e aflito.) Não sei como se apoderou de minha alma este amor; mas amo-a, não com o amor que vive de esperanças cor de rosa e alimenta-se de ilusões, de brisas e de perfumes... mas com o amor que não admite refolhos, com o amor real, isto é, com o amor que só encontra a vida e o alimento na realidade descarnada e nua, embora prosaica...
HELENA. Senhor!
FERNANDO. Nunca me apaixonei ao ponto de passar noites em claro, formando castelos tão inocentes como o coração de José, de bíblica memória, ou chorando a ausência da mulher amada... As paixões — uma choupana e o teu amor — são soberanamente ridículas e servem unicamente para os romances piegas... Não sei amar assim. Isso é bom aqui para o Sr. Paulo, caixeiro, ou guarda-livros, que tem a alma a nadar em poesia, zéfiros que ciciam, em perfumes inebriantes, em ondas que beijam as brancas areias, em melancólicos luares... mas que tem, ao mesmo tempo, as algibeiras cheias de teias de aranha assim como a cabeça... O meu amor é bem diverso. Nada de sonhos, nada de esperanças, nada de ilusões. Quero amar uma mulher que possa indenizar-me do sacrifício do meu amor ou do meu coração, abandonando-se aos meus carinhos, aos meus caprichos e à satisfação dos meus desejos...
PAULO. O senhor é...
FERNANDO. Um homem que não sabe se viveu ontem; que sabe que vive hoje, porque goza, e que nada espera de novo no dia de amanhã; um homem cujo coração está gasto ou intato para as grandes emoções; um homem que vive, porque o gozo há de extinguir-se quando se extinguir o mundo. Que me importa o passado?... que me importa o futuro?... Não tenho saudades do passado, nem me dá cuidados o futuro: aquele, morreu; não lhe vou chorar sobre a sepultura... este, hei de amoldá-lo aos meus desejos... (Outro tom.) O Sr. comendador está, minha Sra.?...
HELENA. Saiu.
FERNANDO. Bem. Voltarei depois. Sou esperado em casa da baronesa da Silva, que particularmente me distingue com os seus favores, e não posso demorar-me. (Estendendo a mão a Helena.) Minha Sra.... Como é bela!
HELENA. (recuando.) O Sr. é um... miserável!
FERNANDO. Um miserável riquíssimo, minha Sra.! Até mais ver... (A Paulo.) Continue a sonhar acordado, meu amigo: é muito patético!...
CENA III
Helena e Paulo
PAULO. Este homem precisa ser punido!... É um insolente!
HELENA. Não, meu amigo... A sua punição é o seu próprio aviltamento. Coragem e resignação. Adeus. (Paulo beija-lhe a mão e acompanha-a até à porta.)
CENA IV
PAULO. (sentando-se à secretária, depois de um momento de reflexão.) A miséria!... sempre a miséria!... E não poder erguer-me, e não poder rojar dos pulsos arroxados esta cadeia fatal, que me oprime, que me acabrunha, que me rouba todas as esperanças da vida!... Sou moço e forte... Sinto o fogo da mocidade correr-me em lavar ardentes nas veias intumescidas... sinto borbulhar-me no cérebro as ideias grandiosas do gênio... e não posso erguer-me... e não posso lutar... e sou vencido como um covarde!... Oh! a mísera!... sempre a miséria! (Pausa.) Amei... em um momento que me ** possuir a mulher dos meus extremos... mas quando estendia os braços para chamá-la a mim... quando o triunfo sorria-me... a miséria repele-me, e de envolta com uma gargalhada satânica atira-me à face estas palavras malditas: — ”Que fazes, insensato!... Olha para o passado... olha para o futuro!... O teu passado foi a miséria; o teu futuro será a miséria!” — E eu curvei a fronte febricitante... senti o sangue gelar se me nas veias, o meu coração ficar gelado... porque em toda parte, velando ou sonhando, sempre a vejo me estendendo a mão descarnada e fria... ouço sempre a sua gargalhada do diabólico sarcasmo!... (Pausa.) Vamos! cumpra-se o destino... (Fica um momento pensativo, com o rosto apoiado à mão. Depois toma um papel de sobre a secretária e lê:)
Pobre nasci... Na aurora da existência,
nos anos da alegria e dos folguedos,
quando o peito, a cantar, não tem segredos,
todo gozo só goza a pura essência,
quando o prazer respira alma inocência,
e os dias se deslizam calmos, ledos,
como a brisa nos verdes arvoredos,
na brilhante estação da florescência,
quando os brincos pueris convidam rindo,
quando tudo é prazer, tudo é beleza,
e o gozo imorredoiro, eterno, infindo,
criança, eu já pensava na pobreza,
nas mágoas do porvir, na dor, sentindo
molhar-me a face o pranto da tristeza...
CENA V
Paulo e Helena
HELENA. (da porta.) Meu pai...
PAULO. (deixando o papel sobre a secretária e levantando-se.) Ainda não veio, minha Sra.
HELENA. Supus encontrá-lo aqui. Ouvi o Sr. falar...
PAULO. Eu falava?... Ah! sim... estava trabalhando...
HELENA. (descendo.) Mas o que tem?... Por que está tão agitado?... Já não lhe pedi que tivesse coragem?...
PAULO. Nada, minha Sra.... não tenho nada...
HELENA. Mas o Sr. sofre; bem vejo...
PAULO. Se sofro!... Só os felizes não sofrem, minha Sra.... E eu sou um desgraçado... um desgraçado sem nome...
HELENA. Que diz?
PAULO. Digo que sofro... que o meu coração está cansado... Todos me repelem... todos fogem de mim... todos me desprezam... Por quê?...
HELENA. Todos?...
PAULO. Todos... Seu pai massacra-me... Não há um momento só em que me não lance em rosto o amargo pão que me atira. Seu irmão acabrunha-me com escárnios... Insulta-me, supondo-me talvez um covarde!...
HELENA. E eu?...
PAULO. É o anjo bom desta casa. Bastantes vezes tenho-a ouvido defender-me; bastantes vezes tenho ouvido eu pai e seu irmão repreenderem-na por minha causa... Oh! se soubesse como o meu coração lhe agradece os seus sacrifícios!...
HELENA. Não faço sacrifícios, Paulo.
PAULO. Sacrifica-se, sim, minha Sra. E por quem?... Por um homem que seria apontado ao dedo como um louco se lhe dissesse: — Obrigado!”
HELENA. Paulo!
PAULO. Aborreço-a?... O que quer?... Fica tão aliviado o coração quando desabafamos as nossas dores!... E eu sofro tanto...
HELENA. Mas por que está tão aflito?...
PAULO. Porque esse homem que daqui saiu há pouco, ferio-me no coração... Oh! quando ele disse que vinha hoje pedir a sua mão... senti o sangue subir-me ao rosto... uma nuvem de sangue obscurecer-me a vista...
HELENA. (chorando.) Meu Deus!
PAULO. Chora?... Chore, Helena, chore, que eu bem mereço as suas lágrimas... Mas não... não chore!... Para que lágrimas, quando o destino é implacável, quando o sofrimento é eterno?... Não chore... Massacrem-me... acabrunhem-me... matem-me... Que importa? O mendigo, a quem se atira um pedaço de pão amargo e duro, não merece lágrimas, é indigno delas... porque não tem com que pagá-las... Folgue a opulência... proclame aos quatro ventos a sua infinita grandeza... atire à face do mundo a luva do desafio para a luta do ouro com a honra... Está no seu elemento... Bem se lembra ela dos que gemem, dos que choram a miséria, dos que morrem à míngua de afetos e de pão!... Estruge a tempestade... enquanto a pobreza humilde prosterna-se nas frias pedras da rua, pedindo a misericórdia... nas salas deslumbrantes da opulência maldita retinem as gargalhadas da ebriedade, trocam-se palavras de amor impuro... zomba-se do poder divino!...
HELENA. Paulo! Paulo!... Enlouqueceu?
PAULO. (frio.) A pobreza não enlouquece, minha Sra.... Se a pobreza enlouquecesse, perderia a consciência do sofrimento... Oh! quem me dera a loucura... o indiferentismo para o mundo... o termo dos desejos e dos martírios!... Quem me dera a loucura!...
HELENA. Silêncio, Sr!... Não vê que me mata...
PAULO. (tomando-lhe as mãos.) Perdão!... Eu desvario... Não me fica odiando... não?
HELENA. (vendo os versos sobre a secretária.) O que é que estava escrevendo!... (toma o papel.) Versos...
PAULO. Por quem é minha senhora... dê-me esse papel...
HELENA. Por quê?
PAULO. Porque a Sra. não os deve ler... Foi um momento, e cri que tinha uma alma para amar e um coração para sentir... mas foi um momento só... Esqueci-me que o pobre não tem alma nem coração... que não pode amar... Quem o amará?... quem amará um homem que não teve passado, que não tem futuro?... Adormeci chorando e sonhei... há sonhos tão doces, Helena!...
HELENA. Sonhou?...
PAULO. Sonhei... não com a opulência, não com as efêmeras grandezas da terra... mas com o amor de uma mulher, que vale todas as glórias possíveis... Eu era pobre... bem pobre... Os ricos, quando por mim passavam e que eu estendia a mão, pedindo uma esmola, voltavam o rosto e diziam: — Trabalha!”- Os pobres, como eu, quando não me davam um pedaço de pão, porque não o tinham, murmuravam, com as lágrimas nos olhos: —Perdoa, irmão! Coragem!” — Uma noite, — fria noite de inverno! — estendi os lassos membros sobre as geladas pedras de uma calçada, para dormir. Adormeci. De repente, uma música, harmoniosa como um coro de anjos, feriu-me os ouvidos... Ajoelhada a meu lado estava uma mulher... mas uma mulher ideal... uma mulher como na terra jamais encontrarei outra...
HELENA. Ah!
PAULO. —Ergue-te, — disse-me ela. — Morrias abandonado como um cão, todos escarneciam de ti, porque faltava-lhes o coração para sentir. Vem... só meu, meu só, porque eu te amo!...”-
HELENA. Ah!
PAULO. Despertei... procurei, ansioso, a mulher dos meus amores... Fora tudo um sonho... mas a sua imagem ficou-me gravada na memória e no coração... Mas... dê-me esses versos minha Sra. Seu pai não tarde... Dê-me esse papel...
HELENA. Não, Paulo... não dou. Quero conservá-lo como uma lembrança sua...
PAULO. Helena!
HELENA. Aí vem meu pai. Adeus... (Sai.)
CENA VI
PAULO. E ela ama-me também... ama-me!... Mas que fatal amor este, meu Deus!... (Senta-se à secretária.) Pobre mártir!... Quantas lágrimas amargas não terás de derramar!... quanto não terás de sofrer!... (Descansa a fronte na mão.)
CENA VII
Paulo e o Comendador
COMENDADOR. Então, o que é isto?... (Paulo levanta-se.) Deixo-o encarregado de um trabalho importante, e venho encontrá-lo a dormir como... como um bruto!...
PAULO. Sr. comendador...
COMENDADOR. A ociosidade é a mãe de todos os vícios. Se continuar assim, ponho-o na rua.
PAULO. Perdão, Sr. comendador. V. S. não me deixou encarregado de trabalho algum... Quanto a despedir-me de sua casa, não pense que me faria afronta. Já estou cansado de suportá-lo!...
COMENDADOR. Insolente!
PAULO. Não sou insolente, Sr. comendador: sou um homem honrado que repele os insultos que lhe lançam em rosto... Não pense que me verá mais curvar a fronte às suas insolências e...
COMENDADOR. O que és tu, miserável?...
PAULO. Sou um homem, e um homem honrado, Sr. comendador. A pobreza não exclui o sentimento do brio e do amor próprio. Sou pobre. Se sair hoje de sua casa, amanhã talvez não tenha um pão para matar a fome. V. S. é rico e opulento... mas a minha pobreza não se curvará mais à sua opulência. Tenho sofrido muito. Há dez anos — dez longos anos — que sofro as suas grosserias sem dizer uma palavra... que suporto os escárnios insolentes de seu ilho, sem estrangulá-lo... Supuseram, talvez, os Srs. que eu era um covarde... que sofreria tudo, porque temeria a sua grandeza!... Mas como se enganaram!... Eu não era um covarde... Não reagi nunca, por causa de sua filha...
COMENDADOR. De minha filha! Fala de minha filha!
PAULO. Sim: de sua filha... porque muitas vezes a vi chorar, quando o senhor acabrunhava-me, lançando-me em rosto o pão que me dava... porque muitas vezes ouvi-a interceder por mim, quando o Sr. ameaçava-me... Sua filha é um anjo, Sr. comendador.
COMENDADOR. Miserável! Quem és tu para falar em minha filha?...
PAULO. (perdendo a calma.) Nem mais uma palavra, Sr. comendador!
COMENDADOR. Ingrato! que te esqueces que te levantei do pó e que te mato a fome há dez anos!
PAULO. (pausada e friamente, depois de um momento de pausa em que mede o comendador com pronunciado desprezo.) O homem que lança em rosto à pobreza os benefícios que lhe faz, perde o direito à gratidão. Nada lhe devo, Sr. comendador. De sobejo tenho pago os seus benefícios com a minha submissão, com o meu silêncio, quando o Sr. e seu filho me acabrunham sem piedade, quando me matam de dor e de vergonha. Cansei... A rua da amargura foi longa, enorme o peso da minha cruz. Depois de dez anos de martírios e de vergonhas, cheguei ao meu calvário. Lancei dos ombros a cruz... O mártir morreu... Um homem, ferido na sua honra e no seu pundonor; nasceu das cinzas frias do mártir para vingar o morto!...
COMENDADOR. O Sr. é indigno da minha proteção. Vou sair. Quando voltar, não quero encontrá-lo aqui, ou caro pagará. (Sai.)
CENA VIII
PAULO. Oh! este viver é um inferno!... Mas sair... sair desta casa... E ela... e Helena... como posso eu abandoná-la?... como posso esquecê-la?... Deixá-la é morrer... é perder tudo, porque é perdê-la... Vou trabalhar, resignado, a sofrer novos insultos... até que Deus se compadeça de mim!... (Senta-se a secretária, abre um livro e toma a pena. Virando à pena.) Oh! não posso! não posso!... (Esconde a fronte nas mãos.)
CENA IX
Paulo e Fernando
FERNANDO. Uma palavra, meu amigo...
PAULO. (erguendo-se.) Ainda o Sr.!...
FERNANDO. Venho prestar-lhe um serviço, e o Sr. recebe-me como se fora eu que lho viesse pedir. O procedimento não é bonito, meu caro mancebo...
PAULO. (dando-lhe as costas.) Agradeço os seus serviços.
FERNANDO. Olhe que trata-se de Helena...
PAULO. (voltando-se.) De Helena!... oh! fale! fale!
FERNANDO. O Sr. ama-a realmente?
PAULO. Oh! se a amo!...
FERNANDO. E por que não casa com ela?
PAULO. Porque... Oh! não me pergunte por quê... Porque ela está muito alto; porque eu não devo aspirar à sua posse... porque ela não pode ser minha... Ela vive em um mundo de luz e de ouro; os seus olhos estão acostumado à luz deslumbradora das salas da opulência... não podem penetrar a obscuridade do meu mundo de trevas... Ela é muito rica para amar-me; eu sou muito pobre para merecer o seu amor...
FERNANDO. Ela ama-o...
PAULO. Porque é um anjo... porque se compadeceu da minha desgraça... porque o seu coração é bom...
FERNANDO. E para que se apaixonou por ela... porque não empregou o seu amor em uma mulher que pudesse recompensá-lo?...
PAULO. Porque o meu coração queria amar... porque Helena subjugou-o... porque eu não tive forças para fugir...
FERNANDO. E o que pretende fazer agora?...
PAULO. Sofrer!... calar-me...
FERNANDO. É um covarde!
PAULO. Um covarde!
FERNANDO. É um covarde, sim. Esqueça essa mulher... (Ruído.) O mel não é...
PAULO. Oh! cale-se! Nem mais uma palavra, ou esmagá-lo-ei! Por ventura pedi0lhe eu conselhos?... por ventura supõe que aceitarei os seus conselhos?
FERNANDO. Não quer seguir os meus conselhos?... Pois bem: juro-lhe que Helena será minha!... Ah! ah! ah! (Sai.)
CENA X
PAULO. (avançando para Fernando, que vai a sair.) Miserável!... (Retrai-se, levando as mãos ao peito.) Meu pobre coração!...
FIM DO 1º ato
ATO II
A mesma vista do 1º ato
CENA I
HELENA. (junto da janela, medita. Tem na mão o papel dos versos do 1º ato.) Que destino o meu!... Eu, que devia ter tantas esperanças... um futuro tão belo... ser condenada a viver assim... a viver para chorar!... Meu pai! E é meu pai o meu algoz!... Pobre Paulo!... (Pausa. Limpa os olhos e lê:)
Pobre nasci... Na aurora da existência,
nos anos da alegria e dos folguedos,
quando o peito, a cantar, não tem segredos,
todo gozo só goza a pura essência,
quando o prazer respira alma inocência,
e os dias se deslizam calmos, ledos,
como a brisa nos verdes arvoredos,
na brilhante estação da florescência,
quando os brincos pueris convidam rindo,
quando tudo é prazer, tudo é beleza,
e o gozo imorredoiro, eterno, infindo,
criança, eu já pensava na pobreza,
nas mágoas do porvir, na dor, sentindo
molhar-me a face o pranto da tristeza...
CENA II
Helena e Jorge
JORGE. Helena...
HELENA. Ah! meu irmão...
JORGE. Que papel é esse?
HELENA. São versos...
JORGE. Versos?... de quem?
HELENA. De ninguém.
JORGE. Sobre isso falaremos depois.
HELENA. Então...
JORGE. Desejo, em primeiro lugar, que me explique o seu procedimento de certo tempo a esta parte.
HELENA. O meu procedimento? Não o compreendo.
JORGE. Toda a mulher quer subir. A pobre deseja um homem rico para ampará-la; a rica um homem opulento para mais elevá-la ainda. A Sra., não. A Sra. desce... degrada-se até...
HELENA. Jorge!
JORGE. Olhe para meu pai, olhe para mim, e veja se podemos admitir nunca no grêmio da nossa família...
HELENA. Quem?
JORGE. Um miserável, que veio um dia bater à nossa porta, coberto de andrajos, pedindo uma esmola, e que meu pai recebeu por caridade... um desgraçado que foi aqui sempre tratado como um filho...
HELENA. (à parte, com profundo sentimento.) Como um filho!... E pouco falta para lhe cuspirem no rosto!
JORGE. Um mendigo, que hoje esquece-se dos benefícios que de meu pai tem recebido, para olhar para a filha do seu benfeitor... E a Sra. desce tanto... perdeu tanto o sentimento do brio...
HELENA. (altiva.) Meu irmão! Respeite-me... Veja que sou uma mulher e que não estou resolvida a suportar as suas insolências!
JORGE. Silêncio! Desceu tanto, que já nem respeita os cabelos brancos de nosso pai... não lhe respeita uma vida de cinquenta anos de honra. Antes de lançar-se ao abismo do aviltamento, por que não renegou o nosso nome?... Devia tê-lo feito, porque, só assim, não nos degradaria tanto!
HELENA. Silêncio! — digo eu. — Esse homem de quem fala é digno no meu amor e hei de amá-lo sempre. A sua pobreza não é motivo para o massacrarem. Quanto aos benefícios de que falou há pouco, Paulo nada deve a meu pai. De sobejo tem pago o pão amargo que lhe atiram, com o suor do seu trabalho. Dez anos de trabalho compensam dez anos de hospedagem, meu irmão.
JORGE. Basta! Dê-me esse papel.
HELENA. Para que o quer?
JORGE. Que lhe importa? Dê-me.
HELENA. Não dou.
JORGE. Dê-me, se não quer que empregue a violência...
HELENA. A violência! Oh! seria um tratamento digno do senhor!... Empregue-a! Não a temo!
JORGE. Helena!
HELENA. Supõe talvez que eu sou Paulo, que suporta os seus insultos, sem levantar a cabeça?... Está enganado, Sr., e ainda mais enganado, se pensa que Paulo responde-lhe sempre com o silêncio porque o teme... Oh! não! Desgraçado do Sr. se Paulo quisesse vingar-se. Mas descanse... Não se vingará, porque é muito nobre para descer até à vingança...
JORGE. É de mais! dê-me esse papel, ou arranco-lho à força!
HELENA. Não dou!
JORGE. (segurando-lhe o braço.) Agora chame o seu D. João para defendê-la!
HELENA. (subjugada.) Jorge!
JORGE. Vamos! Dê-me esse papel! Quero saber até que ponto chegou a sua degradação!
CENA III
Jorge, Helena e Paulo
PAULO. (afastando-o.) Para traz! para traz!
JORGE. (encarando-o e erguendo a mão para dar-lhe uma bofetada.) Ah! finalmente!
PAULO. (segurando-lhe a mão.) Senhor!
JORGE. (com desprezo.) Fique descansado. Não mancharei a minha mão no seu rosto. Quando quiser castigá-lo, chamarei os meus criados.
HELENA. Meu irmão... cale-se... por piedade!... Que mal lhe fez ele, para tratá-lo assim?
PAULO. (friamente.) Não interceda por mim, minha Sra. São inúteis as suas lágrimas e as suas suplicas para quem tão mal se serve da sua superioridade. (Altivo.) Sr. Jorge de Menezes, o caixeiro submisso morreu. Cansei de suportá-lo e de suportar as grosseiras insolências de seu pai. Previno-o que estou resolvido a repelir de ora em diante as afrontas que me irrogarem. Se pensa que a minha pobreza obriga-me a guardar silêncio quando sou insultado, está enganado. Não me atemoriza o seu ouro; não me intimida a sua opulência. Quando a nossa consciência está tranquila, não temos de que nos arrecear. Se sou pobre é porque sou honrado...
JORGE. Quer dizer que...
PAULO. Quero dizer que tenho visto muita opulência adquirida à custa das lágrimas da viuvez, a custa das lágrimas e dos sofrimentos da orfandade... quero dizer que tenho visto muita riqueza servir somente para o mal, para a desgraça...
JORGE. Silêncio!
PAULO. Hoje insulta-me porque sou pobre, porque não tenho um punhado de ouro para comprá-lo... Mas amanhãs, se a fortuna me ajudasse, se eu enriquecesse também; estou certo que seria o Sr. o primeiro a ir bater à minha porta, a estender-me a sua mão...
JORGE. E o senhor...
PAULO. Oh! então eu seria mais generoso do que o Sr. e seu pai. Recebê-lo-ia como um amigo, como um irmão. Esqueceria as injurias passadas, para só lembrar-me que tinha diante de mim um homem que se acolhia à minha proteção...
HELENA. Meu Deus!
JORGE. (contendo a custo a raiva que o domina.) Saia imediatamente!
PAULO. Não é preciso ordenar-me que eu saia. Eu sei que de hoje em diante as portas desta casa se fecharão para mim. Pouco me importa sair daqui, se não fora sua irmã. Só a ela devo gratidão, porque só ela tem-se mostrado compadecida da minha desgraça, só ela me tem dado forças para sofrer resignado e ter esperanças de um melhor futuro. Quanto ao Sr. e seu pai, só tenho a dizer-lhes que um dia se arrependerão do mal que me têm feito...
JORGE. Senhor!
PAULO. Quando a desgraça bater à sua porta, quando se virem, como eu, reduzidos à extrema pobreza, lembrem-se de mim, que fui sempre pelos senhores tão duramente tratado, e vão procurar-me. Não temam que eu os repila, como os senhores me tem repelido; não! Hei de recebê-los com os braços abertos e o coração transbordando da felicidade de poder ampará-los na desgraça...
JORGE. É de mais!
HELENA. (suplicante.) Jorge!
PAULO. Ainda não é tudo. A sorte é varia. Se hoje são os Srs. ricos e opulentos, podem amanhã empobrecer, podem amanhã ver-se obrigados a trabalhar ou a pedir uma esmola para viver. Quando passarem nas suas carruagens salpicando de lama a face pálida dos desvalidos da sorte, não voltem o rosto à súplica humilde do pobre, que lhes estende a mão trêmula pedindo uma esmola para matar a fome que o devora...
JORGE. Onde quer ir ter?
PAULO. Não escarneçam nunca dos andrajos que cobrem as carnes roxas de frio de mísera indigência... não escarneçam, porque sob esses andrajos, talvez, quem sabe?... palpite um coração grandioso, agonize um gênio que, por falta de proteção, ignorado morre...
JORGE. (com desprezo.) Talvez queira dizer que é um gênio, não?... Com franqueza...
PAULO. Na ininterrompida sucessão dos anos, no correr tempestuoso ou calmo da existência, bem vezes varia a sorte. O potentado de homem, mendiga hoje o óbolo da caridade publica, para não morrer à míngua... o rei de hoje, anda amanhã foragido, procurando escapar à punição que o persegue... Oh! não julguem, senhores potentados, que em alicerces de bronze assentam as colunas de ouro da sua felicidade. O vendo de adversidade sopra quando menos se espera, Sr. Jorge de Menezes, e some sob as areias da morte as efêmeras grandezas da terra... O que é o orgulho, Sr. Jorge de Menezes?... Palavra fatal e vã, arma de dois gumes, que depois de ferir o humilde, fere mais fundo ainda o orgulhoso...
JORGE. Basta! Já disse!
HELENA. Jorge!
PAULO. Em que se escuda o orgulho? No ouro?... Desaparece. Na posição? Cabe-se. Sr. Jorge de Menezes, do mesmo limo de que foram feitos o humilde e o fraco, foram feitos o orgulhoso e o forte...
JORGE. (com desprezo.) Acabou?... Se quer acabar de aborrecer-me, repita o que disse.
HELENA. (baixo a Paulo.) Cale-se!...
PAULO. Não é necessário repetir, porque bem gravadas na memória lhe ficarão as minhas palavras. Talvez que bem cedo o Sr. as repita chorando...
JORGE. Devia ser bonito!... O Sr. é profeta do mau agouro?
PAULO. Não prognostiquei desgraças; lembrei-lhe apenas a inconstância da sorte. Dei-lhe um conselho. Aceite-o, se quiser, e seja feliz.
JORGE. (rindo.) Palavra de honra! Estou quase chorando!...
PAULO. Ainda é cedo. Não faltará tempo para chorar e arrepender-se...
JORGE. (altivo.) Saia!
PAULO. Eu saio, Sr. Jorge de Menezes. Mas espero que em breve nos havemos de ver! (Saída falsa.)
HELENA. (aflitíssima, em soluços.) Paulo!... Paulo!... (Caindo numa cadeira.) Meu irmão!...
PAULO. (voltando-se do fundo.) Helena... Helena... adeus!... (Sai.)
CENA IV
Jorge e Helena
JORGE. Levante-se!
HELENA. (erguendo-se.) O que mais quer?
JORGE. Se de hora em diante eu vir correr de seus olhos uma só lagrima por aquele homem, ver-me-ei obrigado a chamá-la de novo ao cumprimento do dever. (Sai.)
CENA V
HELENA. Meu Deus!... para que nasci eu?... Oh! isto é um martírio horrível!... Paulo!... Para onde iria ele?... Quem sabe?... Talvez que o desespero... Oh! meu Deus! meu Deus!...
CENA VI
Helena e Fernando
FERNANDO. (da porta.) É um anjo!
HELENA. (com dignidade.) Saia!
FERNANDO. (descendo.) Pois tem ânimo de ordenar-me que saia?... Quem é tão bela deve ter um coração de anjo. A sua formosura nada mais é então do que uma mascara que serve para ocultar uma alma de gelo...
HELENA. Senhor!
FERNANDO. Por que me repele, quando eu tanto a amo?... Não sabe que o homem que ama, como eu amo, não encontra obstáculos ao seu amor, e quando é desprezado, faz-se amar à força?...
HELENA. Deixe-me sair, Sr.!
FERNANDO. Sairá, mas depois de ouvir-me. há muito tempo já que espero este momento para declarar-lhe que dentro em pouco a Sra. será minha, e que é preciso não continuar a repelir-me.
HELENA. Mas se eu o desprezo!
FERNANDO. Por causa do ex-caixeiro de seu pai, não é verdade?... Não lhe impeço que o ame; ame-o, mas com a condição de ser menos esquiva para comigo.
HELENA. (admirada e como não tendo compreendido.) O que quer dizer?
FERNANDO. Não compreendeu?... Eu me explico mais claramente. Quero dizer que não sou como certos homens que ameaçam céu s e terra quando as noivas olham para outros, que não eles... Eu gosto de viver tranquilamente e não desejo incomodar-me por coisa alguma. Seu pai, há bem poucos momentos, concedeu-me a sua mão...
HELENA. Mas...
FERNANDO. Não se aflija. Depois de casados, havemos de nos dar perfeitamente. Eu continuarei a minha vida acidentada de gozos e prazeres. A Sra. fará o que quiser, o que lhe vier à fantasia fazer. Eu sairei para divertir-me com os amigos e as amantes. A Sra. ficará em casa para receber os amigos e os amantes, se quiser tê-los.
HELENA. (à parte.) Infame!
FERNANDO. Quando quiser sair, sairá, sem dizer-me para onde vai, nem o que vai fazer, porque, fique descansada, não lhe perguntarei nunca. O que eu quero é uma mulher formosa, e nada mais. Não acha que devo ser um excelente marido, isto é, um marido que fecha os olhos a tudo, e trata os amantes da mulher da mesma maneira porque trata as suas próprias amantes?
HELENA. (indignada.) Deixe-me sair, Sr.!
FERNANDO. Mais uma palavra. A Sra. ama verdadeiramente, segundo parece, o ex-caixeiro de seu pai. Porque não o toma para amante, se já não o tomou?... São conhecidos antigos e poderão viver como dois pombinhos apaixonados, no ninho da minha casa. Creia que isso em nada me incomodará. Paulo terá um lugar à minha mesa, um lugar em minha casa, e um lugar no seu coração — que é o melhor logar. Nunca se separarão... andarão sempre juntinhos como dois bons amigos... como Orestes e Pilades...
HELENA. Basta, Sr.! Nunca pensei que lábios de homem proferissem tantas infâmias! Vou prevenir meu pai de tudo quanto acaba de dizer-me, e depois veremos...
FERNANDO. Advirto-a de que se eu souber que a Sra. lhe disse uma única palavra, Paulo terá de haver-se comigo...
HELENA. Como?
FERNANDO. Matá-lo-ei!
HELENA. (recuando e encarando-o, assustada.) O Sr. o matará?...
FERNANDO. Matá-lo-ei! Juro!
HELENA. Oh! só falta isto... só falta matá-lo para consumar a sua miserável obra!... (Indo a ele.) O senhor é...
FERNANDO. (tomando-a nos braços.) Silêncio!
HELENA. Meu pai! meu pai!...
FERNANDO. (deixando-a.) Passou a tempestade! O Titã da inocência baqueou sem forças!
HELENA. (rápida e altivamente.) Saia, Sr.!... Se eu o desprezava, odeio-o agora! É inútil perseguir-me, porque o Sr. é indigno do meu amor!
FERNANDO. E Paulo?...
HELENA. Oh! o Sr. não o matará... É muito covarde para...
FERNANDO. Ah! ah! ah! Nem sabe como fica divina nesse desespero!... Parece uma leoa a que mataram os filhos!...
HELENA. Pois bem, senhor: a leoa vinga-se, e eu me vingarei!... (Sai rapidamente. Fernando acompanha-a com a vista até que ela desaparece.)
CENA VII
FERNANDO. Vinga-se... vinga-se... Como se vingará uma mulher bonita?... Chorando? — Que me importa lágrimas?... Ameaçando? — Oh! não temo ameaças!... — São inúteis os teus esforços, minha formosa esquiva! Jurei que havias de ser minha, e hás de ser... Tenho necessidade, não de ti, mas do ouro de teu pai. Nada tenho, e preciso viver à farta, à larga... As minhas amantes — encantadores monstros insaciáveis, abismos sem fundo — já me chama miserável porque não as encho de mimos e teteias, como outrora... Oh! minhas sedutoras sultanas, desde que o vigário da freguesia me entregue a chave da opulência de Helena, vós tornareis a ser opulentas também!... Oh! meu adorado pano verde, hei de cobrir-te ainda com o ouro cintilante do estúpido comendador Menezes! Viverei com Helena, enquanto Helena puder fornecer-me os meios de sustentar as minhas paixões... Acabados eles... adeus, Helena!... Quando a mina não oferece mais ouro, despreza-se a mina!... Tenho vivido de expedientes até agora... Ainda ontem escapei de ser descoberto em um roubo pelos meus companheiros de jogo... Mas esses sustos vão desaparecer de uma vez para sempre, e então...
CENA VIII
Fernando e Jorge
JORGE. Pensei que Helena estivesse aqui...
FERNANDO. Retirou-se incomodada para o seu quarto.
JORGE. Doente?
FERNANDO. Sim; moléstia passageira, do coração, que o tempo cura...
JORGE. Como?... Sabes?...
FERNANDO. Ora, meu amigo... para que tenho eu olhos e ouvidos?
JORGE. E o que pretendes fazer?...
FERNANDO. Tua irmã é uma criança, Jorge. Sonha ainda. Quando acordar, terá tudo esquecido. Depois de casados, iremos viajar. Sabes que as viagens são o melhor medicamento para a moléstia de que sofre tua irmã. Irei à França, a Portugal, à Inglaterra, à Espanha, à China até, se for preciso, para que tua irmã esqueça o passado.
JORGE. Talvez não seja necessário semelhante sacrifício.
FERNANDO. Por quê?
JORGE. Meu pai já mandou chamar o miserável que enlouqueceu minha irmã...
FERNANDO. Para que?
JORGE. Para propor-lhe o seguinte: — dar-lhe três contos de réis com a condição de ele deixar para sempre o Rio de Janeiro.
FERNANDO. E se ele recusar?
JORGE. Aceitará. Se não aceitar, não nos faltam meios para nos livrarmos dele... Quando somos agredidos por um cão, matamo-lo. Ficas?
FERNANDO. Fico. Preciso falar com teu pai.
JORGE. Até já. (Sai.)
CENA IX
FERNANDO. Muito bem. Chega o momento de dar o ultimo combate. O que dirá o comendador?... Esperemos...
CENA X
Fernando e o Comendador
COMENDADOR. Oh! meu amigo, julguei que tivesses saído com meu filho...
FERNANDO. Senhor comendador, preciso falar-lhe. Pode conceder-me um momento de atenção?
COMENDADOR. Fale meu amigo.
FERNANDO. Tenho dois pedidos a fazer-lhe, e espero ser atendido em ambos. Quanto ao primeiro, trata-se de...
COMENDADOR. De minha filha.
FERNANDO. Sabe?
COMENDADOR. A mocidade sempre supõe iludir a velhice, mas sai sempre iludida.
FERNANDO. Pois bem, Sr. Comendador: amo sua filha, e só do senhor depende a realização do meu maior, do meu único desejo...
COMENDADOR. Já esperava por isto, mancebo. Mas se eu recusar?
FERNANDO. Como? Por quê?...
COMENDADOR. O que fará?
FERNANDO. Nada, mas sinto que serei muito infeliz...
COMENDADOR. Quer saber a minha resposta?
FERNANDO. Sim; uma resposta decisiva, franca.
COMENDADOR. Pois bem: abro-lhe os braços e considero-o meu filho.
FERNANDO. (apertando-lhe a mão.) Obrigado, Sr. Comendador! De novo encontrei o pai, que há tantos anos perdi... (À parte.) E que não sei que cor tinha!
COMENDADOR. Minha filha não tarde. Consultemo-la. Vamos ao segundo pedido.
FERNANDO. O senhor comendador não ignora que o seu ex-caixeiro...
COMENDADOR. Não ignoro. Isso fica por minha conta.
FERNANDO. Pela segunda vez, obrigado. Tirou-me um peso enorme de sobre o coração. Agora posso ficar tranquilo, porque vou ser o mais feliz dos homens. Oh! não pode calcular como o meu coração palpita!
COMENDADOR. Calculo, calculo, porque por aí já passei...
CENA XI
Os mesmo e Helena
HELENA. (vai entrar, mas para ao ver Fernando.) Meu pai...
COMENDADOR. Aproxime-se. O meu amigo Fernando da Cunha acaba de solicitar-me um favor, que não posso recusar-lhe...
HELENA. Fale, meu pai... (À parte.) Meu Deus!
COMENDADOR. Fernando solicita sua mão.
HELENA. (altiva.) A minha mão!... Nunca!...
COMENDADOR. Helena!
HELENA. Nunca, meu pai!... O senhor Fernando da Cunha é muito infame para merecê-la!...
FERNANDO. Ah!
COMENDADOR. Helena!
HELENA. Meu pai, quer saber o que não há muitos momentos me disse este homem?...
FERNANDO. (baixo.) A vida do Paulo está em minhas mãos...
HELENA. Senhor!... meu pai!... Oh! isto é um inferno!... Não!... Nunca serei sua!... Nunca!...
FERNANDO. Minha senhora...
COMENDADOR. Há de ser. Já comprometi a minha palavra, e hei de cumpri-la.
HELENA. (caindo de joelhos e ocultando o rosto nas mãos.) Ah! meu pai!...
ATO III
Uma mansarda toda esboroada. O comendador, cadavérico e exausto de forças, está deitado em uma enxerga. Ao pé da enxerga, um banco sobre o qual se vê uma carteira aberta e vazia, uma vela, já em meio, presa à boca de uma garrafa, e um canivete-punhal. Helena, pálida, desfeita e com os vestidos rotos, está sentada no chão, com o rosto oculto nas mãos. É noite. A tempestade ruge fora. Vento forte, relâmpagos e trovoada ao longe, que vem, pouco e pouco, se aproximando. O Comendador dorme, mas o sono é agitado. à luz de um relâmpago, Helena, assustada, dá um grito abafado e ergue-se.
CENA I
Comendador e Helena
HELENA. (erguendo-se assustada.) Ah!
COMENDADOR. (como que sobressaltado.) Filha!...
HELENA. (indo a ele.) Meu pai!... (Chora.)
COMENDADOR. Sossega, filha... Mais cedo ou mais tarde... agora ou logo... que importa?... Tinha de ser assim...
HELENA. Não pensemos n’isso agora, meu pai...
COMENDADOR. Pensemos, filha... pensemos... Não me pesa morrer... porque já nada espero do mundo... Só me pesa deixar a vida com o remorso de ter sido o causador da tua desgraça...
HELENA. Não, meu pai... O senhor sonhou a felicidade para mim naquela união... Enganou-se... Quem não se engana?...
COMENDADOR. E sonhei... sonhei, filha... Mas Deus não quis que o meu sonho se realizasse... Oh! aquele homem!... aquele homem!... E não haverá castigo para aquele homem!... Maldito!...
HELENA. Oh! meu pai!
COMENDADOR. Depois de tamanha opulência... esta miséria tamanha. Uma mansarda toda esboroada e quase a desabar... um pedaço de vela quase a acabar-se... uma carteira vazia...
HELENA. Meu Deus!
COMENDADOR. Oh! custa muito, meu Deus!... custa muito!... E Deus não punirá a quem nos lançou neste abismo de fome e de horror, sem que um sentimento de piedade lhe comovesse o coração!... Piedade... não por mim, mas por ela, meu Deus!... por minha filha, tão boa... tão meiga...
HELENA. Perdoa-lhe, pai!
COMENDADOR. Perdoar, filha!... perdoar!... perdoar o crime, é cometer um crime ainda maior... Não! não perdôo!
HELENA. Mas Deus perdoou, meu pai!
COMENDADOR. (agitado.) Água, Helena... dá-me água... Sinto a cabeça arder-me... Estou tão fraco...
HELENA. Vou buscar, meu pai... Mas descanse. Procure dormir... (Sai.)
CENA II
COMENDADOR. Foi um crime!... Jamais coração de homem concebeu igual sentimento... Jamais o céu amaldiçoará mais ignóbil criatura... E o coração não lhe estremeceu no peito, e o remorso não lhe mordeu o coração... Com o sorriso nos lábios e os olhos enxutos, contemplou, tranquilo e calmo, a apoteose infernal da sua obra maldita... De opulento, que eu era, reduziu-me à mísera... de tão feliz que era minha filha, tornou-a desgraçada... Depois — quando fundiu nos lupanares e nas bancas de jogo a minha última moeda... abandonou-nos... fugiu... não sei para onde... deixando-nos assim... a mim — quase a expirar... a Helena — quase sem pai!...
CENA III
Comendador e Helena
HELENA. (com uma caneca de folha.) Aqui está a água, meu pai.
COMENDADOR. (bebe. Forte trovão. Estremece e entrega a caneca à Helena. Assustado.) Tenho medo...
HELENA. (recuando.) Ah! por acaso...
COMENDADOR. Não deliro, não, filha... Tenho medo... não da tempestade que fora ruge, porque Deus é bom... mas dele... dele... do miserável que nos roubou.. Oh! se soubesses a ideia que tive agora...
HELENA. O que foi, meu pai?
COMENDADOR. Pensei que ele tinha descoberto o nosso paradeiro... que veio... e que...
HELENA. Oh! fale! fale!
COMENDADOR. E que terminou a sua obra maldita... assassinando-me...
HELENA. Meu pai!
COMENDADOR. Sossega, minha filha... Foi uma ideia de louco... Sinto-me tão fraco... A fome traz tantos fantasmas!...
HELENA. Durma, meu pai... Bem precisa de descanso. Hoje o tempo não permitiu que passasse gente na estrada, a quem eu pedisse esmola; mas amanhã, com o favor de Deus, seremos mais felizes...
COMENDADOR. (amargamente.) Felizes! felizes!
HELENA. Quando tomar algum alimento e recobrar as perdidas forças, há de ficar melhor... há de ficar bom...
COMENDADOR. Hei de ficar melhor, filha, hei de... mas na outra vida... nesta não... que a felicidade passou já para mim...
HELENA. Deus é grande, meu pai... Mas durma, durma, que o sono far-lhe-á bem.
COMENDADOR. Mas se eu não posso, filha!
HELENA. Pode; faça um esforço, que pode... (Batem.) Ah!
COMENDADOR. Quem bate?...
HELENA. Talvez Jorge, meu pai.
COMENDADOR. Abre; mas antes, pergunta...
HELENA. Nada receie. Quem mais pode ser senão Jorge?
COMENDADOR. Pergunta... Quem sabe?... Tenho medo... tenho medo... Estou tão fraco... Helena... minha pobre filha... (Adormece.)
HELENA. Meu pobre pai! (Abre a porta.)
CENA IV
Os mesmos e Jorge
JORGE. (pobremente vestido.) Minha irmã...
HELENA. Jorge, nada arranjaste?
JORGE. (mostrando um pão que tira do bolso.) Um pão!
HELENA. (tomando-o.) Um pão! É para nosso pai...
JORGE. Espera... Deixa-o descansar. Não o acordes agora.
HELENA. Mas ele tem fome!
JORGE. (amargamente.) Tem fome! Pobre pai!... (com raiva.) Oh! e não hei de matar aquele maldito!
HELENA. Jorge!
JORGE. Sabes?... O miserável anda foragido... Quando não teve mais ouro, roubou... A justiça procura-o... (Tomando o canivete que está sobre o banco.) Ah! se eu o encontro... desgraçado dele. Mato-o sem piedade!
HELENA. Meu irmão!
JORGE. (atirando a arma sobre o banco e aproximando-se do pai.) Meu pobre pai!
HELENA. Acordo-o?
JORGE. Não; vou sair.
HELENA. Outra vez, Jorge?
JORGE. É preciso. São apenas nove horas. Ainda posso encontrar alguém que me dê uma esmola para matar a fome de nosso pai amanhã.
HELENA. Como somos desgraçados, Jorge!
JORGE. Desgraçados... Dizes bem, Helena!... Hoje percorri a cidade em todas as direções, procurando quem me desse trabalho, e não houve um só homem que me atendesse...
HELENA. Por quê?
JORGE. Por quê?... A fatalidade, Helena... a fatalidade! (Pausa.) Fecha a porta. Mais tarde voltarei.
HELENA. Não tomaste alimento algum ainda?
JORGE. Não...
HELENA. Por que não levas a metade deste pão?
JORGE. (com sorriso amargo.) Não tenho fome...
HELENA. Como dizes isso, Jorge!...
JORGE. Adeus, Helena!... (Sai.)
HELENA. Por que não ficas?...
JORGE. Não. Preciso sair. (Sai.)
CENA V
Comendador e Helena
HELENA. Pobre irmão!... Tão felizes que éramos... e tão desgraçados que somos!... Este pão!... oh! quando meu pai acordar, como deve ficar contente!... (Rumor fora.) Meu Deus!... (Fernando impele a porta que Jorge deixara encostada e entra.)
CENA VI
Os mesmos e Fernando
FERNANDO. (pálido e em desordem.) Silêncio!
HELENA. (correndo ao pai.) Meu pai! meu pai!
FERNANDO. (reconhecendo-a.) Esta mulher!... Helena!...
HELENA. (reconhecendo-o, horrorizada.) Fernando!...
FERNANDO. Eu... sim... mas silêncio! Sou perseguido...
HELENA. Saia, Sr.!... Por piedade!... Se meu pai o vir aqui...
FERNANDO. Basta! Quero ocultar-me... Oculte-me... Eles não tardam... O roubo...
HELENA. O roubo?...
FERNANDO. Sim, o roubo... Roubei, e sou perseguido...
HELENA. Oh! saia!
FERNANDO. Por piedade, salve-me!
HELENA. Salvá-lo!... O Sr. já se esqueceu do passado?...
FERNANDO. Oh! mas isto é um inferno!...
HELENA. Senhor!
FERNANDO. Pela última vez, salve-me, ou...
COMENDADOR. (sonhando.) Helena... perdoa-me, minha pobre filha. Eu fui o único causador da tua desgraça... Mas Deus há de castigar o infame...
FERNANDO. Que diz ele?...
COMENDADOR. (sonhando.) Fernando... o miserável que...
FERNANDO. (com os punhos cerrados.) Oh! basta! Silêncio, velho!... ou esmago-te sem piedade!...
HELENA. O Sr. ameaça um moribundo... É um covarde!
FERNANDO. (segurando-lhe um braço.) Mulher!
HELENA. Deixe-me, Sr.!... Peço socorro!...
FERNANDO. Ninguém a ouvirá... Vamos... Oculte-me, ou mato-a!
HELENA. (correndo à porta.) Socorro!... socorro!
FERNANDO. (tomando-lhe a passagem.) É inútil... Não quer salvar-me, não é assim?...
HELENA. Salvá-lo?... Nunca...
FERNANDO. (subjugando-a.) Pois então...
CENA VII
Os mesmos e Jorge
JORGE. (aparece à porta, vê o quadro, atira-se para Fernando e obriga-o a voltar-se.) Fernando da Cunha!
FERNANDO. (recuando.) Ah!
JORGE. Finalmente nos encontramos, Sr.! Nem sabe com que ânsia esperava este momento.
FERNANDO. O que pretende?
JORGE. O que pretendo?... E ainda me pergunta o que pretendo?... Quero vingar-me!
FERNANDO. Vingar-se!...
JORGE. Veja esta miséria que nos roda... olhe para aquele velho que ali agoniza, quase sem forças para respirar... olhe para esta mulher... Esta mulher... Conhece-a... É minha irmã... é Helena... Repare na palidez que lhe cobre as faces... repare nos andrajos que a cobrem... E esta mulher já foi uma beleza... já trajou como uma rainha... Quem foi o causador de todas as nossas desgraças?
HELENA. Jorge!...
FERNANDO. Senhor!...
JORGE. Quero vingar-me!... É preciso que o Sr. morra!...
FERNANDO. Eu!... morrer! (Vê o canivete-punhal sobre o banco e avança para tomá-lo.) Veremos!
JORGE. (repelindo-o e tomando a arma.) Morrer, sim!... mas morrer como um cão!... (Fernando arroja-se sobre Jorge, que, fora de si, fere-o. Paulo entra a tempo de ver o ato de ferimento.)
CENA VIII
Os mesmos e Paulo
PAULO. (a Jorge.) O que fez?...
HELENA. Meu Deus!
FERNANDO. (caindo.) Ah!
JORGE. Era um cão: matei-o!
HELENA. Paulo!...
COMENDADOR. (despertando em sobressalto.) Que sonho!... que sonho!... Lutas... mortes... sangue... (Vendo os circunstantes.) Jorge... Helena... meus filhos... Paulo!... Também ele!... Um homem!... um homem morto!...
JORGE. É uma víbora esmagada, meu pai!... Mordeu-nos a primeira vez, e fugiu... tentou morder-nos a segunda, matei-a!
COMENDADOR. Fernando...
PAULO. Segui os seus passos e vi-o entrar aqui, Sr. Jorge. Peço perdão... Sr. comendador, prepare-se, que vamos partir quanto antes...
COMENDADOR. Partir?... Para onde?...
PAULO. Para sua casa... É impossível, fraco e enfermo, como está, continuar a viver aqui.
COMENDADOR. Para minha casa?...
PAULO. Sim: para sua casa. Leia. (Dá um papel.)
COMENDADOR. (depois de ler.) Perdão!... É um castigo, mas um castigo nobre, digno de uma grande alma... Eu expeli-o injustamente de minha casa, e o Sr. faz-me doação dessa mesma casa de onde foi expelido... Oh! é muito!...
JORGE. O que diz, meu pai?
HELENA. (ao mesmo tempo.) O que diz, meu pai?
COMENDADOR. (dando-lhes o papel.) Leiam, meus filhos, e aprendam.
PAULO. A sorte ajudou-me, Sr. comendador. Trabalhei durante dez anos... sofri privações sem contar, curti angustias sem termo, mas Deus protegeu-me e enriqueci...
FIM