LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Adelaide de Sargans, de Caetano Alves de Sousa Filgueiras
Edição de base:
Jornal das Famílias: Paris: Editora B. L. Garnier. Tomo 7,
março de 1869, p. 69-825.
Adelaide de Sargans
romance Histórico
PRÓLOGO.
Pelos fins do ano de 1849 concluía eu na cidade de Olinda o curso do meu quarto ano jurídico, quando um amigo, que tanto tinha de adiantado em janeiros, quanto em conhecimentos variados de ciência e de literatura, convidou-me para passar alguns dias das minhas férias na sua chácara, ou, como se diz em Pernambuco, no sítio do Manguinho.
Esse amigo, hoje falecido, desgraçadamente para as letras do Brasil, era nesse tempo uma das glórias literárias do Império, e debaixo do pseudônimo de Carapuceiro merecia o conceito do escritor mais castigado e chistoso daquela quadra.
Era na verdade um companheiro de amabilíssima sociedade, e havia tudo a ganhar em frequentá-lo, porque sabia entretecer em suas variadas conversações o utile dulci do velho Horácio, enxertando com digressões e anedotas facetas as profundas lições de sua imensa erudição.
Aceitei pois com verdadeira satisfação o obsequioso convite, e em uma bela manhã do mês de Novembro partimos da antiga Mari no seu cabriolet e tomando a estrada velha, única transitável naquele tempo, chegamos ao Manguinho por volta de uma hora da tarde.
O resto do dia passou-se em passear pela situação e conversar com a família do meu nobre hospedeiro, e a primeira parte da noite foi consagrada ao recebimento dos vizinhos, os quais à semelhança de um bando de mariposas, apenas anoitecia, atraídos irresistivelmente, acercavam-se daquela verdadeira luz.
Ora, como o meu velho amigo conhecia o meu caráter de independência e amor à verdadeira comodidade, deu-me para aposento uma sala apensa à casa e que servia ao mesmo tempo de capela, pois junto à parede do fundo, que fazia é porta de comunicação com a sala, erguia-se um altar de usual dimensão, e sobre ele um enorme oratório de jacarandá dentro do qual figuravam três venerandas imagens.
Nunca me hei de esquecer da viva impressão que senti quando, ao escutar as últimas passadas do meu amigo que se retirava depois de desejar-me as boas noites, me achei só naquele solene e silêncioso recinto.
A luz de uma lâmpada de prata suspensa do teto e fronteira ao oratório permitia-me examinar aos seus fracos e plácidos raios todos os objetos que me cercavam, e no meio daquela muda solidão eu distinguia com notável lucidez os olhares fixos e graves dos três santos! A cruz negra que sobrepujava o oratório reluzia de uma maneira insólita, e o bater monótono e seco da pêndula de um relógio, encostado à parede paralela ao meu leito, juntava um que de tristonho àquele noturno isolamento.
Quantas ideias esquisitas, quantos rumores indecifráveis, quantas extravagâncias me esvoaçaram pela mente! Como andou veloz e fecunda a fantasia em criar-me sombras, preocupações e terrores infantis!
Procurei debalde no sono um supremo contra a minha pobre situação. O sono fugira-me das pálpebras a bom fugir. Contei mil vezes as tábuas do teto e as flores do papel que ornava as paredes. Mas por fim cansei porque sabia a conta de cor.
Um livro seria naquele caso uma verdadeira salvação; mas debalde tinham os meus olhos perscrutado em todas as direções do aposento.
Fechei por longo tempo os olhos e provoquei por esta forma a vinda de Morfeu. Mas decididamente o deus zombeteiro ou dorminhoco se esquecera de destilar para mim o líquido narcótico de suas papoulas. Foi preciso resignar-me à insônia.
Aborrecido da posição horizontal em que me achava há mais de três horas, levantei-me e comecei uma severa e minuciosa inspeção por todos os recantos do meu pequeno salão.
Eureca! Entre um pequeno móvel que servia de banqueta, e a parede, servindo àquele de calço, descobri um volume de estragada e negra encadernação. Mas era um livro, e isso era tudo.
Atirei-me a ele e retirando-o com jeito do serviço que prestava voltei às primeiras folhas, e procurei-lhe no rosto as ideias e sentimentos que continha. Baldado esforço! Rosto já o não tinha ele. O frontispício e as primeiras folhas tinham tidos sorte análoga à de outras muitas, isto é, tinham sido destruídas por mão profana.
Mudei o caminho das minhas indagações; abri num começo de capítulo e tratei de compenetrar-me do assunto.
Era sem dúvida alguma um livro de história velha, de anais ou crônicas da Helvécia.
Começava a despontar o dia quando caí por fim em profundo sono, e este duraria talvez ainda se por ventura o padre Lopes Gama, meu venerando anfitrião, não entendesse que as dez da manhã eram uma hora excelente para almoçar, e se neste intuito não me tivesse vindo despertar.
O livro havia-me caído ao lado do travesseiro no ato da súbita invasão do sono. Vendo-o meu amigo não deixou de perguntar-me:
— Onde achou este livro?
Narrei-lhe tudo quanto se tinha passado. Então, enquanto me preparava para o almoço, disse-me ele o seguinte:
— Este livro é uma das obras mais interessantes que se tem escrito em matéria de história. É um repositório fiel e sistemático de todas as tradições importantes da Suíça. Seus principais acontecimentos, pela maior parte profundamente dramáticos, aí vêm narrados com elegância e verdade, e a prova é toda esta história (disse-me ele designando certas páginas) do infeliz regicida conde de Wart e de sua ainda mais desditosa esposa Adelaide de Sargans. É tão fértil de interessantes episódios, que constitui um dos períodos mais importantes dos anais da Helvécia, e como o senhor tem tendências romanescas, emprazo-o a que o leia. Não perderá o seu tempo, e talvez daí lhe resulte proveito. Veja se escreve sobre estas bases um romance histórico; afianço-lhe que há matéria para isso. Escreva-o pois e dedique-o ao amigo que lhe suscitou essa ideia. Terei assim, concluiu ele sorrindo, parte na glória que conquistar.
Deu-me o livro e levei-o para Olinda dias depois.
Isto foi, como disse, em fins de 1849. Anos depois, bem poucos anos, morreu o meu ilustre amigo, por quem hoje ainda choram as letras pátrias.
Os diferentes vaivéns da vida não me deixaram até hoje desempenhar o tácito compromisso que aceitei com o ilustrado autor das Lições de eloquência nacional. Cumpro hoje o meu empenho, e grato à memória do meu velho mestre e amigo a ela consagro o romance histórico que nestas páginas ofereço às mimosas leitoras do Jornal das Famílias.
Desculpem-me elas se, obrigado a traçar quadros e situações tão vivas e coloridas, a pena do romancista novel ficou muito aquém da eloquente e enérgica verdade histórica.
O atual cantão dos grisões, e parte da Valtelina, do Tirol e da Baviera formavam no país hoje conhecido por Confederações da Suíça a famigerada Bécia, província da Gália Cisalpina, que, situada entre a Helvécia e a Nórica, aquela a oeste e esta a leste, era limitada ao norte pelo rio Danúbio e atravessada por uma alta cadeia de montanhas denominada por isso Alpes Réticos. Compreendia toda a Vindelícia, que constituía sua parte setentrional, e é daí que parece certo haverem saído os Rasenas que povoaram a Etrúria.
No século décimo terceiro existia e dominava sobre grande parte destes Alpes uma nobre e poderosa família de senhores. Dispondo de imensas riquezas e governando inúmeros vassalos, vivia em contínuas guerras com seus vizinhos, e sobretudo com os ilustres e poderosos abades de São Gal, cuja fama histórica a nenhuma de nossas leitoras pode ser desconhecida.
Os condes de Watz e de Sargans, que tal era o nome da família a que me refiro, eram considerados senhores de dez jurisdições, o que demonstrava a extensão do seu poder; mas sobretudo eram temidos pelo seu desabrimento e valentia, e execrados pela série de crimes e de tiranias que assinalavam dos seus brasões.
Não é nosso propósito contar aqui a sanguinolenta história de Gualtério Watz, chefe da casa de Sargans, nem a dos horrores cometidos por seu filho Donato de Watz, terrível e miserável instrumento do ódio e ferocidade implacáveis que a tradição recomenda à posteridade debaixo do nome de Lucrécia Deodati. Direi apenas de passagem, para não voltar mais a esta célebre italiana, cujo coração ulcerado pelo abandono verteu no do filho todo o veneno que continha, direi, repito, que era esta a progenitora do anjo que tomei para heroína deste romance.
Desde os mais tenros anos Adelaide de Sargans revelou a bondade inata do seu coração, e essa excessiva sensibilidade que fez dela uma mártir e uma santa.
Quando Lucrécia Deodati, nos tremendos paroxismos do seu ódio contra Gualteiro, aguçava ao mesmo tempo o espírito e a adaga do bárbaro filho, Adelaide atirava-se-lhe de joelhos e exclamava olhando alternativamente para a mãe e para o irmão com o lindo rosto banhado em lágrimas:
— Oh! mas ele é nosso pai!... Mas ele é seu esposo! Minha mãe, perdoe-lhe, perdoe-lhe por mim!...
— Nunca! bradava a hiena, serei implacável como ele foi comigo. Não há pena, nem perdão possível, e se tu me tornares a pedir ou uma ou outra coisa amaldiçoo-te!
Adelaide emudecia e chorava, mas nem por isso tinha a ameaça o poder de impedir a renovação dos seus lamentos em favor do pai, todas as vezes que se dava ensejo para empregá-los.
Lucrécia não viu realizar-se a vingança. A morte arrebatando-a por meio de um desastre deixara essa satânica tarefa ao tigre de quem fora mãe.
Este acontecimento colocou a nossa heroína sob a tutela do conde Donato, seu irmão e tirano. Era, porém, impossível a convivência e a harmonia entre caracteres tão opostos; não porque Adelaide de Sargans não tivesse bastante resignação e docilidade do seu lado; para o próprio Donato a presença da irmã, anjo baixando do céu, e emprestado à Terra, era uma espécie de remorso vivo, de consciência personificada a lançar-lhe em rosto suas ações infames e a fazer terrível paralelo entre tanta inocência e uma alma como a sua, votada às potências infernais.
Adelaide de Sargans compreendeu tudo isto e instou com o irmão para que a deixasse tomar ordens em um dos conventos de Zurique, fundado por sua própria família.
Não era este porém o desfecho que desejava Donato para aquela situação incômoda. Retirando-se a um claustro, e duplicando de pureza, o remorso mais vivo se tornava, a consciência mais alto falaria. Casá-la, e casá-la para bem longe, era tudo quanto almejava o conde de Sargans, ansioso por largar a brida ao corcel de suas fogosas paixões.
No entanto a sociedade que o cercava não podia oferecer a Adelaide um digno consorte. Era exclusivamente composta de mancebos devassos e malvados, sobre os quais não exercendo Donato a mínima força moral, davam eles largas às suas péssimas qualidades, e assim alienavam de si todas as hipóteses de uma afeição da parte da angélica órfã.
Um acaso, porém, como muitos outros que figurão na história cavaleiresca daqueles tempos, pôs em contacto com Adelaide de Sargans um nobre mancebo, jovem, belo, rico e de alto nascimento. Caçavam uma manhã no bosque quando o cavalo de Adelaide, tomando o freio nos dentes, precipitou-se em vertiginosa carreira para um abismo. Rodolfo de Wart, que é o mancebo de quem acabei de falar e que atravessava precisamente por aqueles lugares, não só esbarrou o cavalo furioso, como salvou gentilmente a cavaleira de um perigo iminente e terrível.
Para uma alma tão sensível como a de Adelaide de Sargans, cada dia ulcerada pelas repulsivas tiranias do irmão, não era preciso mais do que isso para que pagasse em afetos o preço de tão grande serviço.
Aconteceu, portanto, o que devia acontecer, e o que sempre aconteceu em idênticas circunstâncias: Rodolfo de Wart e Adelaide de Sargans amaram-se reciprocamente desde esse dia. Rodolfo morava distante, e por sua enorme fortuna aliviava duplicadamente a Donato o peso da irmã.
Foi, pois, com bem sentido júbilo que ele recebeu e aprovou o pedido do pretendente, o qual foi imediatamente autorizado a dar parte desse consentimento à sua desposada e a fixar também o dia das bodas.
Estas tiveram lugar pouco tempo depois em uma soberba e esplêndida vila, que Donato habitava sobre as margens do Brenta.
Toda a população nobre dos arredores foi convidada à festa. Por espaço de quinze dias Donato pôs em contribuição a imaginação dos seus agentes e o talento dos seus artistas para inventar e dispor festejos sobre festejos. Lutas, caçadas, jogos, surpresas, iluminações e bailes sucederam-se sem intervalo e à porfia. Mas sobretudo primaram os torneiros, nos quais, para recompensar a galhardia e o valor dos contendores, figurava sempre como rainha a formosa Adelaide.
Deleitava-se Rodolfo com estas solenidades; era moço e ardente, e tinha todas as qualidades e todas as fraquezas da mocidade do seu tempo; Adelaide, porém, via com desprazer o seu Rodolfo no meio daquelas alegrias que ela considerava não só pérfidas, como corruptoras do excelente coração do seu esposo. Quisera vê-lo aplicado a mais nobres empresas, e dar-lhe mais digno assunto ao seu ardor juvenil e a essa atividade inquieta que o caracterizava e consumia seus dias.
Ora, como Rodolfo não via, nem praticava senão por Adelaide, a cousa era fácil. Bastava que ela lhe desse o impulso e a máquina andaria por si só. Conhecia bem a força de sua iniciativa neste casos; aproveitou-a portanto, e preparou tudo para uma próxima viagem.
Qual era o destino dessa viagem? Adelaide, entregue à direção dos preparativos, sorria angelicamente para o marido e não falava desse destino; Rodolfo, de todo entregue à direção do seu anjo tutelar, confiava nele, e bem pouco se lhe dava de saber em que novo céu ia ele habitar, porquanto estava certo de que seria um céu qualquer lugar em que tivesse de morar ao lado de sua Adelaide.
Estava então o par na cidade das lagunas, e muitas vezes as águas azuladas do canal haviam refletido as formosas feições da encantadora condessa. Tudo parecia de acordo e longe de sofrer o menor embaraço ou demora, quando chegou o dia da partida e Adelaide convidou o esposo a montar no seu corcel favorito.
No momento em que ia firmar-se no estribo, o conde Rodolfo de Wart voltou-se sorrindo para a esposa, e com o modo mais natural do mundo perguntou-lhe:
— Por minha fé que é singular que um viajante não saiba ao partir o destino que leva. Graças à minha confiança em ti, não sei ainda para onde vou. Poderás tu dizer-me, Adelaide?
— Nada mais fácil., meu Rodolfo; vamos para o lugar onde te esperam honras, fama e glória; vamos para a corte do imperador Alberto.
A estas palavras Rodolfo estacou repentinamente, e tornando-se extraordinariamente pálido murmurou surdamente:
— Oh! isso nunca, nunca!
E era notável o modo decidido e enérgico pelo qual pronunciara essa negativa.
Adelaide não desanimou, nem mesmo alterou-se. Pelo contrário abeirando-se do marido, tomou-lhe as mãos nas dela e disse-lhe com sua costumada voz cheia de doçura:
— Por que não, meu amigo? O imperador Alberto é nosso soberano...
— Sim! interrompe o jovem conde no cumulo da exaltação. Sim, é nosso soberano. Mas como? Por meio de um assassinato! O campo de batalha de Worms ainda fumega por causa do sangue não há muito derramado das profundas feridas de Adolfo de Nassau, meu desditoso, porém meu verdadeiro soberano. Meu pai morreu defendendo-o, e as últimas palavras do soberano foram a nossa bênção e a ordem de punirmos o assassino. Não sabias, Adelaide? concluiu o conde em voz baixa, com os olhos desvairados e agarrando a esposa pelo punho.
O conde de Wart nestas palavras aludia, sem dúvida, à celebre batalha que se travou junto de Worms e Spire, entre os imperadores Adolfo de Nassau e Alberto d'Áustria, na qual estes dous monarcas bateram-se em duelo e Adolfo foi morto por uma estocada no olho direito, sendo certo que muitos historiadores opinam pela deslealdade e traição havidas neste combate singular.
Era tal o gesto afogueado do marido e tal o seu espanto, que Adelaide de Sargans, pálida e muda de terror, só pôde responder por um sinal negativo.
— Pois bem, continuou Rodolfo aproximando-se do seu ouvido; meu pai legou-me a missão de vingar o nosso imperador na pessoa do seu matador. Debalde procuraria esquecer-me tão sagrada missão, porque pela calada da noite vem sempre recordar-ma... Vejo-o perfeitamente ainda mesmo quando estou a teu lado. Falo-lhe, como te falo. É uma díivida de honra.
E proferindo estas palavras encostou a cabeça ardente sobre o seio de Adelaide e chorou como uma criança.
Que terrível revelação foi esta para a sensível Sra. de Sargans! A primeira vez que encontrava Rodolfo rebelde aos seus desejos, era num assunto crivado de dificuldades e de perigos, e no qual sua influência salutar e branda era eficazmente combatida por uma profunda e enraizada superstição.
Mediu com delicada lucidez o abismo que aquela prova de fanatismo abria entre o conde e seu projeto. Só o tempo e sua contínua solicitude poderiam tirar àquela situação o que ela tinha de perigoso e de funesto; decidiu-se portanto, como dizem as palavras textuais da crônica, a cortar pela raiz uma planta venenosa, cujos frutos só poderiam produzir desgraças e mortes.
Não era mais possível insistir na ideia de conduzir o conde à corte imperial. Mudou de plano, e como quem cedia às veementes observações do esposo, dirigiu a pequena caravana para um delicioso retiro situado em uma das margens do lago de Guarda. Era uma deliciosa vivenda, e a condessa contava com a suavidade do clima, com a placidez da existência e com a ausência de influência estranha, para fortificar o império que já exercia sobre o coração, espírito e faculdades de seu marido.
Começou então uma empresa que seria por certo superior a outra qualquer mulher, que não fosse aquele divino complexo de amor e de dedicação. Não houve ensejo que ela não aproveitasse para arrancar do espírito de seu marido os preconceitos horríveis que o dominavam, e com efeito, graças à sua constância e tenacidade, cada dia que se passava lhe trazia uma prova de que não trabalhava em vão.
O ponto sobretudo que mais a peito tinha era convencer ao seu Rodolfo de que a morte de Adolfo de Nassau não passara de um fato natural, resultado de um combate ordinário. Serviram-lhe de muito nesta tarefa a haver o papa levantado a excomunhão que lançara sobre o presumido assassino, e achar-se submetido o Império Germânico.
Enfim, a voz adorada de uma mulher provou-lhe e convenceu-o daquilo de que não o havia podido despersuadir sua própria razão. De maneira que um belo dia confessou que podia entrar ao serviço de Alberto d'Áustria e consentiu em partir para Viena.
Imaginem as nossas leitoras a soma de alegria que estas palavras derramaram no peito da nossa heroína, a qual via assim coroados seus esforços e vencidas por tão brilhante vitória as terríveis causas do seu desassossego e dos seus terrores no presente e no futuro!
Adelaide não sabia como retribuir ao marido a ventura que lhe proporcionara, e por isso foi um caminhar para o céu aquela curta viagem para a capital do império.
E digam que há corações pressagos!...
II
Era por uma noite tenebrosa do mês de novembro, e as trevas que envolviam o céu, envolviam também com seu véu de fuligem Viena, a cidade dos imperadores. Reinava então sobre o império d'Áustria o conde Alberto desse nome, e corriam então os primeiros anos do século décimo quarto.
Não era tranquilo e isento de sérios perigos o reinado desse monarca.
Além dos númerosos partidários da casa de Nassau, despojada, segundo eles por um assassinato, da coroa e do cetro imperiais, o conde reinante contava contra si todos aqueles a quem seus violentos caprichos e tremendas desconfianças iam ferir profundamente na pessoa ou nos bens. A história consagra repetidos exemplos de vexações, confiscos e barbaridades cometidas por este soberano sob aqueles ignóbeis pretextos.
Entre as mais ilustres vítimas destas tiranias, figurava especialmente o conde João de Suábia, seu sobrinho e pupilo.
Alberto sabia, ou adivinhava, que esse mancebo havia de ser necessariamente o centro ou chefe de todos os seus adversários; porquanto, não só era moço, belo, bravo e nobre, como reunia em si o interessante que inspiram os oprimidos, e o sangue hereditário da raça espoliada. Era portanto o jovem conde a esperança dos partidários de Adolfo de Nassau, morto à falsa fé, e não podia tardar por muito tempo o dia em que tinham de fazer explosão os elementos de ódio e de vingança que se acumulavam no espírito público desde os primeiros anos do reinado de Alberto d'Áustria.
A consciência destas verdades e destas previsões tinha o poder de tornar o monarca. cada vez mais sombrio e violento. Só via em roda de si disfarçados inimigos, e não podendo descobri-los a todos, concentrava sua cólera sobre a cabeça do seu jovem tutelado.
Foi assim que tentando aniquilar-lhe toda a influência apossou-se a princípio do seu patrimônio, e por fim de todos os seus bens, praticando para isso confiscações ilegais e violências de toda a ordem.
A justa indignação que tais atos deviam necessariamente produzir em espíritos já tão dispostos para a rebelião, havia aumentado não só o número, como a coragem dos adversários do imperador. Começava-se a tramar francamente contra seu poder e sua legitimidade, e a consciência pública excruciada pelo exemplo de tantas atrocidades parecia absolver de antemão aqueles que pronunciavam em voz baixa a palavra regicídio.
As cousas estavam neste pé quando o céu, parecendo compreender o luto da terra, se enlutara também na noite a que me refiro.
Fazia além disto um frio insuportável, e ao abrir dos rápidos relâmpagos via-se apenas atravessar ligeiramente algum habitante que a tempestade surpreendera fora. De reparar que, com pequeno intervalo, entravam muitos vultos numa casa de mesquinha aparência.
Usando do privilégio de romancista introduziremos o leitor no recinto desta casa, e com ele, mudos e metidos na obscuridade, veremos e ouviremos o que ali se passa.
Era num salão desta casa que se reuniam os partidários do sangue de Nassau e os mais encarniçados inimigos do conde Alberto.
Nessa noite achavam-se presentes uns trinta cavaleiros, cujas feições ser-me-ia dificílimo descrever atento o cuidado com que achavam embuçados nas suas longas capas.
Em virtude porém do alegado privilégio, e do intuito de poupar a descrição de cenas que pouco interessariam as nossas leitoras, direi que a reunião era presidida pelo jovem conde João de Suábia em pessoa, e que a seu lado dirigia os trabalhos da grande conspiração Rodolfo de Wart, o ditoso marido de Adelaide de Sargans!
Como era isso possível? perguntará sem dúvida o leitor lembrado das últimas cenas descritas. Cumpre explicar-lhe essa aparente contradição.
O fanatismo, já o disse alguém, é um óleo tão espesso e coesivo que não deixa subsistir nem poros nem fendas.
O fanatismo tinha entrado na alma de Rodolfo de Wart; era portanto mais fácil suprimi-la do que arrancar-lhe as lançadas raízes. Como um cancro ou pólipo implacável podia ser demorado na sua ação devastadora, mas não cortado em seu princípio roedor.
As palavras melífluas e sedutoras da esposa tinham tido a virtude de aplacar-lhe as iras e entorpecer-lhe os ímpetos. Chegaram mesmo a atordoá-lo, mas nunca puderam cicatrizar-lhe a ferida que lhe sangrava no coração eivado da crença supersticiosa que seu moribundo pai lhe legara com tremendo encargo.
Com efeito, apenas fora apresentado na corte, apenas contemplou os reflexos dessa coroa imperial que ele supunha usurpada, apenas viu-se rodeado dessas pompas que lhe pareciam compradas com o ouro da vítima cruenta, Rodolfo de Wart sentiu pulsar-lhe de novo o coração vingativo, e a imagem de seu pai ainda não obedecido começou a aparecer-lhe todas as noites à cabeceira do seu leito.
Sua vida desde então ressentiu-se dessa dupla influência, e os pensamentos que o preocupação durante o dia transformavam-se à noite em terríveis pesadelos que lhe agitavam o sono e sobressaltaram por fim a esposa.
Esta circunstância, junta à não menos expressivas de ver que o marido, de novo sombrio e triste, parecia fugir muitas vezes de sua companhia, convenceu a sensível Adelaide de que a razão de seu marido, mal segura ainda, cambaleara outra vez, e estava prestes a perder-se de todo.
Em virtude desta convicção a condessa não pensou mais senão em tirar seu marido quanto antes dessa situação que se lhe antolhava prenhe de perigos, e conduzi-lo outra vez para seu doce retiro do lago de Guarda, virente ninho onde gozara os melhores momentos de sua curta existência.
Propôs-lhe portanto a volta para a linda vila. Estava certa de que lá cessariam as visões e os fantasmas, e assassino!... vingança!...justiça!... sangue!... e todas estas medonhas palavras que o sono de Rodolfo deixava escapar, como outras tantas revelações do estado de sua alma.
Quanto a mísera Adelaide lamentava ter concorrido para de lá sair!
Vendo, porém, pouco desejo da parte do conde em aceder a seus rogos, ela retraçava aos olhos do esposo as deliciosas cenas de que fora objeto e todas as minudências do paraíso em que vivera.
Todos estes quadros achavam no coração do conde o mesmo apreço e afago. Rodolfo amava a sua Adelaide com o mesmo ardor dos primeiros tempos; mas, suspirando embora pela repetição daquelas inefáveis venturas, Rodolfo recusou positivamente deixar a corte de Alberto d'Áustria.
A mísera condessa ignorava que novos laços prendiam seu marido a um destino terrível, e que sua sorte estava definitivamente fixada.
E eis aí a razão por que Rodolfo de Wart se achava no clube secreto dos conspiradores e ao lado de João de Suábia.
A sessão tornou-se dentro em pouco calorosa. A maior parte dos conspiradores achavam que já era soada a hora da vingança, e que toda a demora não era mais do que uma culposa cumplicidade com as novas tiranias do imperador, que se repetiam cada dia requintando de atrocidade.
João de Suábia sobretudo, levado ao desespero pelas últimas violências do conde reinante, ardia impaciente pelo momento em que devia embeber o seu punhal vingador nas entranhas do bárbaro usurpador dos direitos da sua família.
Rodolfo acompanhava-o de perto, porque, além dos motivos políticos a que já me tenho mais de uma vez referido, impelia-o ao regicídio a afeição que votara à interessante vítima do despotismo do monarca., esse João de Suábia que seduzia a todos por seu amável caráter e por seu imenso infortúnio.
Ligara-se a João de corpo e alma e jurara à sua causa uma fidelidade da qual o chefe bem viu que tudo podia pedir e tudo esperar. Verdade é que sua idade, muito mais avançada do que a do jovem conde, dava -lhe direito a aconselhá-lo; mas como fazê-lo se ele era o primeiro a detestar profundamente Alberto d'Áustria, e se a ideia de cravar-lhe um punhal no coração fazia brotar-lhe dos lábios um sorriso?
Outros conspiradores, porém, não julgavam o espírito público bastantemente exaltado, e previam com terror a reação popular. Infelizmente havia demasiada eletricidade acumulada para que pudessem deixar de haver relâmpagos e tempestade.
Nessa noite pois de trevas e de horrores, ficou assentado que o déspota devia morrer às mãos dos legítimos representantes do sangue traiçoeiramente derramado, aproveitando-se para este ato libertador da pátria a primeira ocasião.
Um túmulo armava assim as destras vingadoras de João de Suábia e de Rodolfo de Wart, e estes homens, no exaltamento de suas paixões, esqueciam que a vingança, se alguma vez é um direito, este só pertence a Deus!
III
Alberto d'Áustria sabia, como já disse, que os horizontes se enegreciam e que as vagas do oceano ameaçavam embora surdamente, tragá-lo. Confiava, porém, de mais em seu poder e perspicácia para que tratasse de prevenir ousadias que oportunamente saberia punir e reduzir a pó. Por enquanto limitava-se a educar no seu espírito prevenido o plano do castigo que concebera, castigo tremendo e exemplar que havia de deixar vestígios imorredouros nos anais de sua dinastia.
Desta terrível fermentação só vinham à superfície olhares significativos de sinistra expressão e um silêncio ainda mais terrivelmente eloquente.
Escusa dizer que estes olhares abrangiam no mesmo anátema o sobrinho detestado e o súdito rebelde; porque ambos estes lhe apareciam como ministros naturais da vingança dos mortos.
Adelaide de Sargans, unicamente preocupada com a felicidade do seu Rodolfo, não podia deixar de pressentir logo a força iluminadora daqueles olhares e daquela reserva ainda mais funesta.
Alvorotada por dolorosos pressentimentos, abalada por terríveis sonhos nos quais via seu marido ensanguentado e moribundo, Adelaide atirava-se ao colo do seu marido e dizia-lhe muitas vezes chorando e trêmula:
— Ah! Rodolfo, meu Rodolfo... fujamos, fujamos depressa!... Lembra-te de nosso amor, de nossa felicidade.
Mas o conde ou não respondia, ou então abraçava-a ternamente e levantava-se dizendo:
— Logo!
Outras vezes ela empregava todos os meios de sedução para arrancar-lhe o desejado consentimento; mas devia de ser bem firme a resolução do conde para, amando como amava sua esposa, resistir na ocasião em que lhe declarou que ia ser mãe dentro de pouco tempo e queria que o fruto de ambos viesse à luz entre as veigas floridas que adornavam a sua formosa vila das margens do Guarda.
Nesse dia Rodolfo de Wart apertou-a com efusão sobre o coração, e beijando a na fronte disse-lhe colocando um dedo sobre os pálidos lábios com gestos de silêncio:
— Ainda não é tempo!
Mas uma noite, pouco tempo depois da doce confissão, mudou-se a cena, sem que se mudasse a situação atribulada da mísera consorte.
Estava-se então nos últimos dias do mês de abril de 1308.
Adelaide, cada vez mais triste e abatida, começava a perder a esperança de arredar seu marido do abismo a que ela mesma o conduzira. Esta ideia trateava seu escrupuloso coração, e por isso sentindo o peso da maternidade recolhia-se repetidas vezes ao seu Aposento, e aí de joelhos perante sua imagem de devoção orava a Deus e aos anjos pelo consorte e pedia-lhes um raio de luz.
Nessa noite duas perolas de inefável compunção pendiam-lhe dos cílios e rezava fervorosamente quando Rodolfo de Wart assomou à porta.
Vinha pálido e açodado; mas ao contemplar a mulher em tão recolhida e santa posição parou um instante e sorrio. Depois correu para ela e ajoelhou-se a seus pés. Contemplou-a assim longo espaço de tempo, beijando-lhe as mãos e deixando cair sobre estas algumas lágrimas ardentes.
Já Adelaide ansiosa e sobressaltada ia pedir-lhe a explicação daquela cena quando Rodolfo preveniu-a dizendo:
— Adelaide! dentro de muito pouco tempo vais ser mãe. É preciso partir, e partir quanto antes para Ospone...
— Partir...oh! sim! exclamou a moça um instante iludida pela esperança. Partamos e já, não é assim? Rodolfo encarou-a fixamente sem a princípio responder-lhe; porém, depois soltando uma risada selvagem falou-lhe assim:
— Comigo? não ... não! ...Eu fico... é preciso que eu fique! Mas tu, tu, Minha Adelaide, deves partir... Convém que partas, ouviste?...
E depois de uma pequena pausa acrescentou com um modo rude e peremptório de que nunca usara para com a esposa:
— É indispensável, e hás de partir, porque eu quero!
Adelaide baixou a cabeça e procurou conter as lágrimas. Sentia-se ferida no coração e prestes a morrer. Lutou, lutou muito com os impulsos do seu peito que lhe dizia que ficasse, mas era humilde e era santa... disse, embora como um soluço:
— Pois bem, partirei!
E em verdade no dia seguinte a condessa de Wart encaminhava-se rodeada de alguns vassalos fieis para a cidade de Ospone, afastando-se daquele de quem nunca se devera separar, porque era seu anjo da guarda.
IV
Maio! Mês da primavera e das flores... eu te saúdo! Tu abres um sorriso perene na terra, embalsamas os ares e mandas ao céu a mais pura e fragrante das oblações!
Teu influxo refocila a terra e os homens. Ao aspecto do véu matizado que estendes sobre a superfície dos campos, trinam às vezes, amansam as feras e regozija-se em jubiloso êxtase o rei da criação. O próprio céu, cedendo ao filtro que exalas no espaço, é mais azul, é mais límpido, é mais sereno. O sol, mais brando e mais apaixonado, esquece-se de queimar para colorir, de deslumbrar para embelecer!
Tudo se sujeita docemente ao teu benéfico domínio, e não se compreende como durante o teu reinado possa a mente pervertida dos homens sonhar e resolver atrocidades e manchar as esmeraldas dos teus campos com o sangue das vítimas de suas implacáveis paixões!
O teu primeiro dia em 1308 foi esplêndido e opulento de luz, de brisas e de flores. A última tempestade do mês de Abril purificara a atmosfera e ativara por suas chuvas o frio das brisas vernais. A viração sacudia as caçoulas odoríferas das flores, e enrugava a cristalina superfície do formoso Reuss. Tudo convidava à alegria e à festa, e os campos refletindo todas as cores do seu prisma vegetal, reclamavam a preferência para templo ou área da festividade.
Os reis não deixam, ainda mesmo os desumanos, de serem homens. Alguns mesmo têm sido poetas. Não era pois de admirar que o conde reinante Alberto d'Áustria, no meio dos cuidados e perigos de seu império, se lembrasse de festejar de maneira íntima e gostosa a volta da primavera.
O rei o disse e o seu dito foi feito. Mal pensava ele que enquanto olhava para as flores. da terra, sua estrela se nublava no céu!
Dispôs-se tudo para a festa. Alberto d'Áustria queria regalar com esplêndido banquete seus mais distintos cortesãos, e para que a etiqueta não viesse roubar ao regalo o seu melhor predicado, a liberdade, ordenou que a festa campestre tivesse lugar em uma ilhota do rio Reuss, perto de Wendesch na Argóvia. Os convivas deveriam atravessar o rio em batéis expressamente construídos para conter os cavaleiros e seus corcéis, e deviam todos assistir ao banquete coroados de flores, isto é, de rosas, que tais eram as mimosas representantes da estação que se solenizava. A ilha converteu-se nesse dia em pequeno paraíso. Músicos e bardos deviam lembrar com dulcíssimos hinos e sonorosas harmonias o Olimpo, e para que nada faltasse os escanções ficariam encarregados de imitar com os mais soberbos e esquisitos vinhos a famigerada Hipocrene.
Assim se projetou e assim se fez.
O festim foi esplêndido e a alegria correu em ondas entre os convivas, Destes sobressaíam João de Suábia, Gualteiro de Dicchenbach, Rodolfo de Balme e Rodolfo de Wart, os quais a política e não a amizade aproximava da pessoa do soberano. Eram vassalos poderosos e nobres, e posto que o rei não os contasse por amigos, senão por disfarçados adversários, não lhes podia fazer guerra aberta e direta, e mais lhe convinha tê-los por companheiros e ao alcance de sua vista e do seu braço.
Esta confiança perdeu-o: a política é, como todas as cousas, falível. Se não fora ela o próprio monarca divisaria as frontes sombrias e os olhares ambíguos que lampejavam sob as grinaldas floridas, que mais pareciam tecidas para ornar a vítima do que os sacrificadores da festa. Ele mesmo não iria ao encontro dessa ocasião oportuna e segura que o Clube misterioso almejara no dia em que se decidiu de sua sorte. Pobre Alberto d'Áustria, não te valeram teus guardas eriçados de ferro, teu formidável poder, e nem mesmo teu braço valoroso, esse braço que derribou e atravessou o valente Adolfo de Nassau! O punhal traiçoeiro zomba de todas estas barreiras e penetra nas carnes através das malhas das mesmas cotas de aço!
Começava o sol a declinar no horizonte quando o imperador, saciado de canções, de música, de louvores, de iguarias e de vinhos, deu o sinal para a partida. Tudo se pôs logo em movimento. Os pajens correram a seus postos e cada cavaleiro galgou sobre seu corcel, ainda enfeitados de flores murchas. Conservavam ainda suas coroas, e era assim que deviam atravessar o rio.
Essa passagem fez-se sem o menor acidente; era um lindo espetáculo ver deslizarem-se sobre a espelhada superfície do Reuss aquelas gentis embarcações tripuladas por cavaleiros coroados e cujas cores diferentes prestavam um matiz especial ao bando ruidoso que procurava entre hinos e brados de alegria a margem oposta.
Apenas, porém, desembarcados no outro lado, estendia-se a perder de vista um campo que o arado havia recentemente transformado em uma espécie de oceano enfurecido, tantos eram os cômoros de terra, os largos valos e os destroços de vegetação que juncavam o solo.
Era dificílimo caminhar ainda mesmo devagar, sem perigo, por aqueles altos e baixos estorvados de galhos e troncos partidos. O estado em que ia a maior parte dos cavaleiros duplicava para muitos essa dificuldade.
O imperador sentiu logo tropeçar-lhe mais de uma vez o cavalo em que montava, e como houvesse algum perigo nisso chamou para junto de si Rodolfo de Balme.
Este, porém, dirigindo-se ao monarca , disse-lhe:
— Não tenha Vossa Majestade receio, vou conduzir-lhe o cavalo pela mão.
E proferindo estas palavras apeou-se, e entregando as rédeas do seu ginete ao pajem, correu em direção ao do imperador, como uma verdadeiro cortesão oficioso.
Neste instante, porém, quatro olhares de sinistra e terrível expressão cruzaram-se, como um relâmpago, entre João de Suábia, Gualteiro de Dicchenbach, Rodolfo de Wart e Rodolfo de Balme, e este aproximando-se respeitosamente de Alberto pediu-lhe as rédeas do Cavalo.
No momento porém em que o monarca se curvava sobre o cavalo para lhas entregar, Rodolfo de Balme erguendo rapidamente o braço cravou-lhe o seu punhal entre as espáduas.
O golpe foi rude e rudemente dado. O imperador caiu e foi apoiar-se contra um grande carvalho que lhe ficava naquele instante à direita. Quase ao mesmo tempo João de Suábia aproximou-se e atravessou-o com sua lança de maneira que o monarca ficou pregado ao tronco.
Foi então que Rodolfo de Wart, como os olhos desvairados e respirando um prurido de vingança que nada podia conter, atirou-se sobre o corpo do monarca, já quase moribundo, e com sua adaga saciou-o cruelmente nos jorros de sangue que fez brotar dos flancos de sua vítima indefesa.
A árvore, ou antes o poste do suplício, ficou inundado do sangue do mártir, e os assassinos exultando por um triunfo que tanto tivera de cobarde quanto de estéril, partiram para Viena, onde esperavam completar com o consenso do povo a obra nefasta que acabaram de encetar tão barbaramente.
V
Grande e cruel decepção os esperava na capital do império.
A opinião dos mais prudentes da conspiração era a única que merecia o apoio da verdade e da razão: o espírito público não estava profunda e geralmente preparado em favor dos direitos da causa que pretendia subir ao poder sobre os destroços da casa de Alberto d'Áustria.
Rei morto, rei posto, diz a sabedoria das nações por um provérbio.
Apenas constou oficialmente a morte do imperador, sua filha Inês de Hungria subiu ao trono e assumiu as rédeas do governo de seu pai.
Inês de Hungria era uma mulher talhada para governar povos durante as mais perigosas crises da vida das nações. Sua vontade era de ferro, e instrumento de uma razão fria e reta até a crueza. O coração não conhecia ternura e o seu amor era mais o rigoroso cumprimento de um dever do que uma lei de atração em sua alma. Era enfim o cetro e a coroa governando.
Subindo ao trono julgou-se na sagrada e imperiosa obrigação de começar o seu reinado por vingar de um modo solene e estrondoso a morte de seu pai.
Começou por mandar esquadrinhar todos os seus domínios em procura dos assassinos e seus mais decididos sequazes. Pôs a prêmio a cabeça dos regicidas, conseguindo logo para eles a excomunhão do Sumo Pontífice. Nestas manifestações de sua implacável perseguição encontrou um povo uníssono em apoiá-la e auxiliá-la a apoderar-se dos matadores. Estes foram-lhe caindo sucessivamente debaixo da alçada, e pagando com horríveis suplícios a atroz vingança que, usurpando o poder de Deus, haviam exercido sobre a pessoa do seu rei. Só um ainda não experimentara o rigor do seu castigo.
Era este Rodolfo de Wart, o nobre da infeliz Adelaide de Sargans.
Por quê? Ninguém sabia dizer onde parava; ninguém conhecia o antro em que se escondera. Mas dominada sempre da ideia do seu dever, a imperatriz não desanimava de empolgá-lo um dia, e por isso a cada notícia de uma decepção redobrava de atividade e duplicava as recompensas prometidas.
No entretanto mandara cortar pela raiz o grosso carvalho em que fora pregado o infeliz Alberto. De sua madeira, conservada a casca exterior ainda nodoada pelo sangue de seu pai, mandou construir um grande móvel (baú, diz a crônica) onde guardava todas as noites ao deitar-se o vestuário que trajara durante o dia. Assim tinha sempre diante dos olhos aquela cortiça manchada, que lhe alimentava constantemente no peito o braseiro da vingança.
Não ficou aí.
Mandou erigir no mesmo lugar onde perecera o imperador um grande mosteiro a que deu o nome de konigsfelden, palavra que bem recorda a sua origem.
E como talvez eu não tenha outra ocasião de voltar a este assunto, visto que não escrevo a história da imperatriz Inês de Hungria, porém sim a da condessa de Wart, acrescentarei aqui que esta célebre soberana veio a morrer aí o mais devotamente possível; segundo reza a crônica. Direi mais que esse mosteiro ainda existe, e que o viajante que por lá passa, e, cheio da impressão que estas quase legendas lhe comunicam, procura ver alguma prova sensível destes fatos, ainda encontra o celebre baú, religiosamente guardado e mostrando a seus olhos curiosos grosseira casca que se tingiu com o sangue do assassinado.
Enquanto, porém, prossegue a inflexível imperatriz nas suas tramas de perseguição contra o último dos assassinos de seu pai e senhor, voltemos para as solidões do castelo de Ospone, onde, como viram as nossas leitoras, deve estar encerrada a nossa interessante heroína. É tempo de ocuparmo-nos quase exclusivamente dela.
VI
Nesta parte as crônicas da história da Suíça são tão interessante e eloquentes que a simples tradução é mais poética do que o romance, e o historiador fidedigno mais merecedor de ser lido do que o escritor destas páginas.
Cingir-me-ei portanto o mais rigorosamente possível à verdade histórica, e dos diferentes Annales des Dames de Sargans, e das Chroniques de l'Helvétie, escolhei aquela em que a duquesa de Abrantes, ilustre literata por certo familiar às nossas leitoras, foi beber assunto para as suas páginas da história da Suíça.
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Adelaide de Sargans chegando a Ospone foi pouco depois mãe. Desde esse momento a solidão daquele lugar escondido no meio de alterosas montanhas tornou-se para ela animada pelo sorriso angélico de seu filhinho, e quebrada pelos incessantes cuidados que, como mãe. carinhosa, continuamente lhe prestava.
Por sua parte era ela também objeto dos desvelos de algumas mulheres, cujo nome a história da Suíça recomendou à posteridade, e eu seguindo tão nobre exemplo recomendarei às leitoras do Jornal das Famílias. Já se vê que quero falar da mãe. de Walther Frust, da mulher de Henrique Melchtal, e finalmente de Mathilde Staufacher, três matronas cujos honrosos apelidos se prendem pelos laços de sangue aos libertadores da Helvécia dignos companheiros de Guilherme Tell!
Habitavam todas o belo vale de Frontigue, vizinho de Ospone, e por isso estava Adelaide de Sargans todos os dias rodeada de amigas, sobretudo da última, Mathilde Staufacher, que nunca a deixava e a quem deveu mais favores em todo o período de suas desgraças.
A terna solicitude destas mulheres poupou-lhe amargas horas de angústia e de dor, impedindo que lhes chegassem aos ouvidos os rumores sinistros que penetraram o seio daquelas montanhas tão tranquilas e por assim dizer tão afastadas do mundo.
Os habitantes do vale de Frontigue souberam, cheios de terror, que o imperador Alberto d'Áustria havia sido assassinado em um passeio, e que caíra aos golpes vingativos de seus implacáveis inimigos. A fama chegou mesmo a declinar o nome de João de Suábia e dos três amigos. Mas eles guardaram profundo silêncio, e Adelaide de Sargans ficou ignorando o acontecido.
Uma tarde, porém, tudo devia ser transformado: assim estava escrito no livro do destino.
Fazia um tempo admirável e os últimos raios de um sol brilhante e sem nuvens, que descambava no horizonte, iluminavam ainda a mais encantadora paisagem.
Adelaide, assentada num terraço que dominava o pátio interno do castelo, cantarolava a meia voz uma terna canção a fim de adormecer o pequeno Rodolfo, a quem embalava nos braços.
O céu parecia comprazer-se naquele quadro de inocência e de amor materno, tão puro, diáfano e alegre estava. Tudo era calma e repouso na natureza que a cercava.
De repente ressoa à porta do castelo o som estridente de uma trombeta e a ponte levadiça desce para dar passagem a um cavaleiro armado de ponto em brando, porém sem pajem nem séquito. Entra, e apenas Adelaide o vê, solta um grito e corre ao seu encontro.
Era Rodolfo, o seu amado Rodolfo! Não se fartava de abraçá-lo e fazia-o com amor e com delírio, depondo-lhe nos braços o seu primogênito e pedindo-lhe que o abençoasse. E ele... o mísero por um instante feliz, e enlevado num voluptuoso e santo êxtase, entregava-se de corpo e d'alma à ventura de abraçar a esposa e o filho, esquecendo nesses amplexos que a desgraça não mais o abandonaria.
O céu se havia aberto de repente para a condessa de Sargans. Mas por fim o seu olhar cessou por um instante de embeber-se nos do esposo. Quis contemplar-lhe o nobre e formoso semblante; mas recuou imediatamente quase espantada ao vê-lo tão pálido, triste e transtornado.
— Rodolfo! exclamou ela tomada de súbito pressentimento, o que se passou? Ah! meu Deus! Porque este olhar tão abatido? Meu amigo... fala-me... conta-me o que sucedeu!
Rodolfo, mudo como uma estátua, aproximou-se dela automaticamente. Sua palidez era medonha! Tomou as duas mãos de sua esposa nas suas, e este contacto fê-la estremecer, como se lhe correra pelo corpo rápido calafrio. Rodolfo estava frio como um defunto!
— O que se passou? Pois não sabes? Pois bem; fez-se justiça! O sangue pedia sangue; sangue por sangue! Por fim de contas não se fez mais do que aquilo que se devia fazer!
Adelaide tremia e estava prestes a desmaiar.
— Mas, aventurou-se ela ainda a perguntar, o que é que se fez?
Mas no mesmo instante arredou a vista dele, porque Rodolfo fê-la tremer dos pés até a cabeça. Não era mais seu marido que tinha diante dos olhos! Os cabelos eriçados sobre a pálida fronte e gotejante de suor, os olhos desvairados e a quererem pular das órbitas, o semblante decomposto e as mãos crispadas tornavam o conde hediondo!
Adelaide só pôde chorar e gemer. Sentia o coração comprimido por um guante. Não ousava mais, nem falar, nem levantar os olhos.
Neste comenos terminara o dia e as sombras da noite já começavam a envolver a parte inferior do castelo. Rodolfo dando fé da noite pareceu ainda mais inquieto. Chamou com voz rápida um dos seus escudeiros e deu as mais severas ordens para que as portas do castelo fossem hermeticamente fechadas e levantada imediatamente a ponte levadiça.
— Para que todas estas precauções? perguntou docemente Adelaide quando ficaram sós. Nós não temos inimigos, meu querido...
— Ah! sem dúvida, interrompeu Rodolfo perturbado e com ar disparatado. Só tínhamos um, enquanto Alberto era vivo.... Mas agora.... temos mil!...Porque todos querem vingar a sua morte!...
E desatou a rir, como um louco.
— Alberto! exclamou Adelaide; o imperador... morto! morto!... E quem ousou, prosseguiu ela em tom mais baixo, feri-lo?
Rodolfo não lhe respondeu; apenas sua hedionda palidez do aposento, e sem quebrar o silêncio dirigiu-se lentamente para a porta.
Adelaide seguiu-se e repetiu, com voz quase extinta, a pergunta anterior. A esta insistência Rodolfo voltou-se repentinamente, e arrastando Adelaide para o centro da sala, gritou-lhe:
— Ah! queres por força saber o meu segredo? Pois bem, sabe que os matadores do tirano d'Áustria trazem nomes ilustre... gloriosos! Chamam-se João de Suábia.... Rodolfo de Balme... Gualteiro de Dicchenbach .... e ....
Aí estacou o desgraçado. Lançou em roda de si um olhar desvairado e passou a mão trêmula sobre a fronte úmida de um suor glacial...
— E mais quem? perguntou brandamente Adelaide, procurando cingi-lo com os braços, porque já resfolegava mais facilmente, não ouvindo o nome do seu Rodolfo mencionado entre os dos assassinos.
— E mais quem, meu querido?
Rodolfo lutou um instante consigo mesmo; mas vendo o olhar súplice da esposa inclinou-se para ela, e chegando-lhe a boca ao ouvido pronunciou uma só palavra, um nome só... Adelaide de Sargans soltou um grande grito e caiu redondamente sobre o tapete, pálida e fria como um cadáver.
— E agora, Adelaide, exclamou Rodolfo lançando-lhe um torvo olhar, já sabeis por que nome me deveis chamar!
E saiu desabridamente.
[...] Hungria transpuseram os países quase inaccessíveis que pareciam ocultar Adelaide em suas profundíssimas solidões.
A imperatriz regente em pessoa apresentou-se em frente ao castelo de Ospone, e intimou à sua guarnição que se lhe rendesse imediatamente.
A condessa de Wart recusou aceder à intimação e procurou resistir, fiada na bravura e lealdade dos seus vassalos e na segurança e posição do seu castelo. Mas algum tempo depois, completamente sitiada por tropas numerosas e privada da maior parte dos seus defensores rareados pela morte, pediu capitulação.
Inês recusou todas as condições propostas e entrou no castelo de Ospone sobre os cadáveres dos servos fieis da condessa de Wart.
— Parece-me, dizia ela àqueles que a acompanhavam, que caminho sobre rosas!...
As portas do grande vestíbulo caíram diante da triunfadora e deixaram-lhe ver Adelaide de Sargans caída sem sentidos sobre o berço de seu filho, quase escondido em riquíssimas roupagens.
Naquela posição, e pálida da palidez da morte, Adelaide de Sargans estava bela de inspirar compaixão e amor aos próprios demônios do inferno. Mas Inês era também uma mulher moça e bela, e sê-lo mais do que ela era para a rainha de Hungria acrescentar um crime aos outros.
— Quem é esta mulher? perguntou a imperatriz mostrando a formosa estátua de alabastro que se destacava do tapete.
— É a condessa de Wart, Adelaide de Sargans, respondeu-lhe alguém.
— Ah! A mulher do regicida! E este menino que dorme no berço?
— É o filho único do conde de Wart, exclamou Mathilde Staufacher arrojando-se suplicante aos pés de Inês, cuja mão já se havia apoderado da inocente criatura, a qual, despertada tão rudemente do seu sono tranquilo, começou a soltar agudos gritos.
— Oh! senhora ... dizia a boa Mathilde, dai-me este menino... É um inocentinho... Não vedes como se estorce, como sofre...
Os gritos do pequeno Rodolfo tiveram mais poder para fazer voltar a si a mãe, do que todos os cuidados que lhe haviam sido prodigalizados para esse fim. Abrindo os olhos correu cambaleando para o berço, e então avistou-o nas mãos da fúria real que lhe dardejava olhares de morte.
— Meu filho! bradou a pobre mãe desesperada. O que quereis fazer a meu filho!...Ah! meu Deus! para que o apertais assim? Sois capaz de feri-lo, de molestá-lo!... Ele é tão fraquinho...vede... sois capaz de matá-lo...Ah!
— Sim, sou capaz de matá-lo, e vou fazê-lo, para que não seja um dia regicida, como seu pai...
— Oh! meu Deus! soluçava Adelaide no cumulo da aflição. Oh! meu Deus! meu Deus tende piedade de meu filho...
E voltando-se para Inês perguntava-lhe com pungente ansiedade:
— O que é que ele vos fez?
— Nada, senhora, retorquiu Inês fulminando a pobre Adelaide com um olhar de bárbara irônica. Por compaixão mesmo é que eu quero despedaçar de encontro ao mármore a cabeça deste filhote de víbora... Ah! se o mesmo tivessem feito com o pai, vosso marido, assassino e regicida, não estaria ele agora condenado a morrer num cadafalso depois de sofrer os mais atrozes tormentos da tortura.
— Rodolfo! no cadafalso! a tortura! Ah ! meu filho... meu filho! Meu Rodolfo! exclamava a desventurada arrastando-se pelo assoalho e rojando aos pés da implacável Inês.
E proferindo estes lamentos faltaram-lhe as forças e caiu rudemente, partindo a fronte sobre o ângulo da base de uma estatua. Da larga brecha aberta pelo choque brotou em jorros o sangue precioso da mártir, e inundando-lhe as faces e os seios foi tingir as vestes roçagantes dessa rainha, dessa mulher que repudiava naquele instante a mais bela parte de sua natureza... a compaixão e a bondade.
Um cavaleiro de sua comitiva adiantou-se então do grupo que a cercava, e aproximando-se da imperatriz, tomou-lhe a criança das mãos com um gesto de autoridade que parecia não lhe poder ser contestada. Em seguida entregou-a Mathilde Staufacher, o dirigindo-se a Inês disse-lhe em tom sério e seco:
— Vós também, senhora, esqueceis demasiado que sois mulher!
A imperatriz corou e empalideceu alternativamente; mas não proferiu uma só palavra e nem ousou resistir.
Adelaide foi atirada em um dos cárceres mais profundos do castelo de Ospone. A desditosa mãe, a desgraçada mulher, cuja razão estava transtornada, soltava horrorosos gritos, que pareciam abalar os muros de bronze de sua masmorra. Gritava pelo filho, pelo marido, falava-lhes, chorava com eles, e depois desta luta insana, entre soluços e arquejando recaía moribunda sobre a terra úmida.
Por volta da tarde a rainha desceu ao ergástulo, sob o pretexto de cumprir um dever de soberana visitando os prisioneiros. Semelhante visita, porém, não foi mais do que um requinte de crueldade, indigno de um ente humano; não foi mais do que uma hedionda entrevista entre o carrasco e a vítima.
Em vez de palavras de alívio ou de consolação, Inês de Hungria não dirigiu à infeliz Adelaide de Sargans senão ameaças de morte e revelações horríveis. Contou-lhe que Rodolfo de Wart era já em seu poder. Com selvagem minuciosidade narrou-lhe a maneira por que tinha sido preso, julgado e passado pelas torturas, chamadas preliminares. Descreveu-lhe em seguida as outras por que ainda tinha de passar, e até não lhe escapou à malvada imaginação o horrendo quadro do suplício final.
Como débil caniço vergado e sacudido em todas as direções pela frenética fúria do vendaval, Adelaide de Sargans erguia-se, curvava-se, rolava aos pés da rainha, beijava-lhe a fímbria dos vestidos e entre soluços e prantos bradava-lhe:
— Perdão! Misericórdia ! Perdão para ele!
— Tiveram-na, porventura, com meu pai? prorrompia a rainha repelindo violentamente a suplicante. O teu Rodolfo teve misericórdia quando com a mão parricida e com a ponta do seu punhal foi arrancar a alma de meu pai nas suas próprias entranhas? Não sabes que se exprimiu assim: “ Eu não cessei de ferir, senão quando meu punhal não teve mais sangue que fazer sair do corpo do regicida!” Não! não! não há perdão para tal crime... E cada gota do precioso sangue de meu pai há de ser resgatada por ondas do do teu marido! Perdoar a Rodolfo de Wart....prosseguiu a rainha soltando uma gargalhada estridente, — não, não é possível! O monstro deve morrer, e é preciso que morra duas vezes, sofrendo duas agonias!
Ao escutar estas últimas palavras, Adelaide fora de si, gelada e pálida como a morte, caiu redondamente no chão aos pés da fera imperial.
Inês de Hungria levantou-se e contemplou-a alguns instantes. Vendo sua vítima imóvel e sem vida, sorriu... com um sorriso que lhe devera ter sido ensinado por Satanás. E julgando não deixar mais do que um cadáver, afastou-se lenta e compassadamente da masmorra.
Sua missão infernal estava consumada!
IX
Na terrível entrevista que serviu de assunto à conclusão do nosso capítulo anterior, o algoz coroado não só falou positivamente da prisão, julgamento e martírio de Rodolfo de Wart, como anunciou, o que por acaso olvidei mencionar, que o suplício final do marido de nossa heroína estava marcado para o primeiro domingo depois da Natividade de Nossa Senhora.
Nossas leitoras, porém, que o viram são e salvo envergar o trajo de peregrino e empunhando o cajado do romeiro seguir caminho de Roma, e mesmo mandar-nos de alguns pontos notícias que vinham confortar a atribulada esposa, têm toda a razão para dar margem às revelações da rainha, e voltando-se para o romancista, perguntarem qual o grau de crédito que merece tão desagradável versão.
Reconhecendo humildemente esse direito, buscaremos satisfazer prontamente tão justa curiosidade, e não o podemos fazer por melhor modo do que acompanhando o próprio Rodolfo de Wart no dia de sua chegada à cidade eterna.
Depois de uma viagem penosa e arriscada, em que o peregrino se via forçado a dormir, como se diz em frase vulgar, com um olho só, vendo em cada tronco do caminho um espião, em cada viandante um inimigo, em cada interlocutor um emissário do governo, pôde por fim salvo de todo o perigo chegar às primeiras alturas que cercam a cidade dos papas e avistar seus edifícios monumentais.
Na sua doce persuasão Rodolfo de Wart julgava o ponto em que se achava o limite da terrível alçada dos seus inimigos, e, lembrando-se de que horas depois (assim lho antolhava a fantasia) estaria erguendo-se dos pés do Santíssimo Padre livre e escoimado da tremenda excomunhão que passava sobre sua cabeça e as de toda a sua geração, não pôde deixar de curvar contrito o joelho, e numa fervente prece, agradecer ao Onipotente a graça assinalada de que era objeto e rogar-lhe o auxílio do seu braço.
O miserando assassino do imperador Alberto esquecera no seu momentâneo egoísmo que os decretos da Providência são imutáveis e sua justiça tremenda! Almas pervertidas pelo veneno das paixões, peitos que pulsam entusiastas ao cheiro do sangue derramado, corações que abrigam com amor, apesar dos anjos, apesar dos rogos, o ódio e a vingança, não são turíbulos donde se possam elevar nuvens de incenso aos pés do Criador, fonte de todo o bem, foco de todo o amor!
Naquele mesmo instante a destra da justiça estendia-se no espaço sobre a cabeça do infeliz, e a espada da lei pendia sobre ela, como a legendária de Dâmocles. O fio... cumpria ao próprio Rodolfo de Wart parti-lo.
Terminada a oração o conde respirou ruidosamente, e pondo-se de novo a caminho desceu a encosta do outeiro e entranhou-se pelos subúrbios de Roma. Se não fora a negra inscrição do livro do seu destino, prosseguiria sem parar até as colunatas do Vaticano, estrela e meta de sua romaria, e uma vez aí insuspeito e inobservado, estaria fora do alcance dos tigres que o perseguiam.
Porque não o fez? A fatalidade, ou melhor a justiça incompreensível que devia realizar-se exacerbou-lhe a sede e levou o peregrino, levianamente confiado na sua aparente segurança, a entrar numa tasca onde destacavam das negras e derrocadas paredes uma dezena de indivíduos de diferentes classes do poviléu.
Bebiam e conversavam bebendo e gesticulando.
Formavam diferentes grupos, e em cada um deles versava a conversação sobre assunto especial.
Rodolfo de Wart compôs a expressão do semblante que convinha à ocasião, e lançando humildemente a bênção sobre os circunstantes, sentou-se a uma tosca mesa e pediu ao bodegueiro que lhe servisse sobriamente com que matar a sede de tanto caminhar.
O anfitrião deu-se pressa em obedecer-lhe. Naquele tempo era extremo o respeito consagrado pelo povo aos membros das ordens religiosas, e sobretudo aos peregrinos, que julgavam sempre de ida ou volta da Palestina.
Tudo pois se passaria do melhor modo possível se porventura o acaso, muitas vezes instrumento da sabedoria divina, não fizesse com que o grupo que mais próximo ficava do foragido estivesse conversando sobre o assunto do dia, os castigos exemplares que a rainha de Hungria e a rancorosa viúva do imperador Alberto infligiam aos matadores e seus sequazes.
Ouvindo as primeiras proposições o conde não pôde deixar de prestar toda a atenção ao que diziam nessa mesa. Fingindo pois a maior indiferença e vagar em beber o líquido refrigerante que lhe haviam trazido, não perdeu, mais uma só palavra da conversação dos seus vizinhos.
Corria já há alguns minutos a conversação com alternativas de interesse e contrariedade para Rodolfo, quando um indivíduo, que parecia pertencer ao exército, pelo trajo meio militar que envergava e pela fisionomia rude e tostada pelo sol, lembrou-se de dizer:
— E dizem que não fica aí. Que a rainha há de dar cabo do último partidário de João Suábia, e que o cutelo do carrasco só há de descansar quando a sombra do pai lhe aparecer e lhe disser — basta.
— Histórias! disse um outro indivíduo que pela limpeza do vestuário e pela delicadeza relativa das feições parecia pertencer a uma classe mais abastada. — O que é certo, acrescentou abaixando a voz, é que o castigo tem já excedido a culpa, porque é impossível que não tenham pago muitos inocentes pelos pecadores!
— Nós dizemos isto, interrompeu um terceiro, homem de má catadura e olhar de lince, porque não foi conosco, nem com pessoa que nos doa pelo sangue. Quanto a mim eu não sei que castigo será bastante para punir uns miseráveis cobardes, que a titulo de nobres e cavalheiros viviam à custa do imperador Alberto e que com o pretexto de vingarem uma sua presumida traição o assassinaram ainda mais vil e traiçoeiramente...
— Mentes! Bradou Rodolfo indignado e batendo com força sobre a mesa.
Já estimulado pela linguagem ferina dos conservadores a respeito dos fatos políticos em que tomara parte, Rodolfo, que dificultosamente pudera conter-se até então, sentiu às palavras injuriosas e aceradas do último interlocutor formar-se-lhe dentro do peito uma tempestade gradualmente subindo e que ao contacto elétrico da palavra vil desfez-se numa nuvem que obscureceu a vista, e num raio que lhe prorrompeu dos lábios. — Mentes! disse ele fora de si e esquecendo por um momento o papel que representava e os perigos que o cercavam, para só se lembrar do orgulho cavalheiresco de sua condição.
Pobre Rodolfo! quebrara o fio da espada de Dâmocles! Subscrevera a inscrição do livro do destino!
Fora tão repentina e inesperada aquela exclamação, que os homens do próximo grupo voltaram-se subitamente e encararam todos o encolerizado peregrino. Alguns indivíduos do outro grupo menos distante viraram-se também procurando a história de tão desabrido — Mentes!
Rodolfo (como sempre aconteceu) tornando imediatamente a si, corrigido pelo pernicioso efeito que produzira, mediu de relance o perigo a que se expusera, e como homem de gênio e a idéia em sua Adelaide tratou de tirar todo o partido da embaraçosa situação em que se achava.
E então procurando dar ao tom da palavra que proferira o caráter do zelo religioso de um missionário e não o da explosão inevitável do orgulho aristocrático, Rodolfo de Wart, aproveitando habilmente a palavra pronunciada, prosseguiu, como que animado de um zelo santo pela verdade.
— Sim, mentis... e corrijo-vos porque a mentira não pode agradar a Deus, sobretudo quando se trata da sorte daqueles que, embora sendo grandes criminosos, não deixam por isso de ser homens, filhos do mesmo pai, criaturas do mesmo Senhor! O nosso amado rei, que Deus tenha em sua santa glória, acrescentou o conde curvando-se piamente e aproveitando a posição para esconder uma careta, foi morto no meio de grande número dos seus mais fieis vassalos, e os matadores eram apenas quatro. Isto, meus filhos, não tira cousa alguma à maldade do ato, que nunca deixará de ser um assassinato; mas se todos os assassinos são criminosos, nem todos são vis e traiçoeiros. A própria rainha de Hungria, concluiu ele com dupla intenção, melhor do que ninguém sabe.
Terminando este discurso o fingido romeiro persignou-se e puxando o capuz sentou-se de novo a murmurar não sei que palavras de prece ou contrição.
A conversação, porém, não se reatou na mesa vizinha. O homem da mediana abaixou triste a cabeça e não mais bebeu nem falou. O militar continuou a beber em silêncio e a lançar de vez em quando olhares oblíquos para o romeiro. Só o terceiro companheiro, o homem dos olhos de lince, aproveitou-os para tentar ler através do capuz que cobria o peregrino, e poucos momentos depois de haver sorvido o último trago do seu copo, despediu-se mais naturalmente dos seus dous convivas e saiu da espelunca, sem mesmo lançar um olhar para o lado de Rodolfo.
Esta completa indiferença pela qual esperava ansiosa a tranquilidade do Rodolfo, restituiu-o de novo à confiança, e calculando, pelo que via, o bom êxito que produzira o seu estratagema, levantou-se por sua vez, e depois de abençoar os que ficavam, saiu da locanda, tomando o caminho do Vaticano.
Tocava já sem acidente algum nos primeiros degraus do grande vestíbulo do palácio, e portanto na própria salvação, quando sentiu de repente que lhe batiam no ombro. Voltando-se Rodolfo de Wart reconheceu sem custo o homem dos olhos de lince a quem chamara na locanda de mentiroso. Um grande aperto do coração anunciou-lhe que a sua hora estava chegada e começava naquele instante a escala dos seus martírios.
Não obstante, porém, esta certeza, procurou dominar os ímpetos de sua cólera que lhe aconselhavam que estrangulasse o importuno, serenou o semblante e a voz, e perguntou-lhe brandamente:
— O que me quereis?
— Pouca cousa, disse o recém-chegado com certo ar de zombaria; quero merecer-vos, Sr. romeiro, a graça de tirardes um instante o vosso capuz. Creio que não há favor fácil de ser satisfeito de boa vontade.
Rodolfo de Wart viu claramente que estava perdido. Tinha caído nas unhas de um emissário da policia a quem só faltava a verificação de identidade de pessoa, se é que já não a tinha e só procurava dar alguma formalidade aparente ao ato da lei. Se tirasse o capuz não melhorava em nada a sua posição. O conde preferiu resistir e lutar. Era resolução audaciosa e cheia de perigos; mas pelo menos oferecia-lhe alternativas de bom êxito, que outro qualquer procedimento lhe negava.
Voltou-se, pois, de todo para o esbirro, e tomando um tom resoluto, disse-lhe:
— E se eu não o quis esse tirar?
— Então, retorquiu imediatamente o agente da lei, ver-me-ia forçado, como me vejo, a prender-vos, como vos prende em nome da lei, porque sois Rodolfo, conde de Wart, um dos assassinos do imperador Alberto.
Rodolfo dispunha-se a atirar-se sobre o seu adversário para fazê-lo engolir de novo as últimas expressões, quando mais rápidos que o raio caíram sobre ele mais quatro esbirros saídos naturalmente do centro da terra, pela prontidão e imperceptibilidade com que se apresentaram tão a tempo. Em um abrir e fechar de olhos o conde foi amarrado e amordaçado.
As autoridades romanas entregaram o pobre excomungado aos ministros da feroz Inês. E no dia seguinte Rodolfo de Wart, entre os apupos de uma populaça infrene, partia no meio de uma numerosa guarda para Zurich, onde o esperavam um processo apaixonado e uma morte afrontosa.
A rainha Inês de Hungria recebeu a grande notícia de ter-lhe caído nas mãos o único assassino de seu pai que lhe escapara até então, exatamente no dia em que o castelo de Ospone, reduzido pelo cerco aos últimos apuros, pedira capitulação.
Eis aí porque perfeitamente instruída do que se passara não só em Roma como em Zurich, nos primeiros dias da chegada do conde a esta cidade, pôde como a pantera brincar com a presa moribunda comprazendo-se em contar a Adelaide de Sargans os minuciosos pormenores deste lúgubre episódio.
Satisfeitas assim as perguntas de nossas leitoras, encaminhemo-nos também para Zurich, onde vamos encontrar não só a inflexível rainha, como o fio dos fatos que nos interessam para a continuação do nosso romance.
X
Zurich! Encantadora Thurica dos Romanos, para que deu o Criador face espelhada ao teu lago, doçura inalterável ao teu clima, verdor perpétuo aos teus bosques, e te livrou das geleiras e das neves eternas que acabrunham tuas vizinhas? Para que oferecem teus bairros o mais risonho aspecto aos olhos do viajante? Para que a fertilidade de teu solo e as belas margens do teu lago, cultivadas e frutíferas, formam uma série de quadros do mais lindo pitoresco? Para que a providencia situou-se tão alto, a meio caminho da terra para o céu?
Ah! Zurich! Não foi decerto para que te transformassem em enorme matadouro, onde os lamentos dos mártires atroassem os ares e clamassem vingança aos céus!
E no entanto Zurich, cidade livre e imperial, como te chamavam, tu foste um circo romano, um medonho matadouro nos lutuosos tempos que se seguiram à morte do teu imperador Alberto!
O sangue que corria dos teus cadafalsos tingia de carmim as águas azuladas do teu lago, e o braço do carrasco cansou! A desconfiança, a espionagem, o furor da vingança derramaram um véu de luto sobre ti e teus arredores, e o próprio céu escondendo as límpidas estrelas, pareceu recusar-se a refletir-te as hediondas cenas!
Não pensem nossas leitoras que exagero quando assim me exprimo. A história oferece aos curiosos exatos pormenores de todos os fatos e acontecimentos daquela época, e são tão preciosos os dados, e acordes os historiadores, que não é licito duvidar da veracidade do que contam.
É fora de dúvida, por exemplo, que subiu a muito mais de mil e trezentos o número de vítimas oferecidas em holocausto sobre o tumulo de Alberto de Áustria, por sua filha Inês, rainha de Hungria.
Para que nossas leitoras avaliem pela ferocidade do impulso, pela perversão da cabeça, a selvageria dos instrumentos, a crueza do braço, narrarei aqui uma anedota em que figura a viúva do imperador Alberto, tão cruel como sua filha nos seus expedientes de vingança.
Cansado de ver correr tanto sangue, e querendo suspender as torrentes do que ainda tencionavam fazer jorrar os ódios destas duas rainhas ou jaguares coroados, Frederico o Belo, filho da primeira e irmão da segunda, dirigindo a ambas um solene pedido de suspensão e de misericórdia.
A mãe, enchendo-se de indignação por semelhante ideia do príncipe seu filho, bradou-lhe cheia de ira e de ameaça:
— Bem se vê que não contemplaste, jazendo imóvel e frio a teus pés, o cadáver sanguinolento e mutilado de teu pai... Perdão? nunca! Pelo contrário, vingança por toda a eternidade da raça dos assassinos!
De Inês de Hungria já nossas leitoras conhecem bastante para apreciar devidamente o caráter de que era dotada. Antecipando, porém, um pouco a minha história, aproveitarei o ensejo para contar-lhes que no dia em que foi executado Rodolfo de Wart, foram também justiçados de morte sessenta e oito dos seus mais notáveis vassalos.
A rainha assistiu a todas as execuções no meio de sua corte com toda a pompa da realeza e trajando os seus mais ricos vestidos. Presidiu as torturas sentada em um trono que se havia levantado de propósito para esse fim. Sorria e dirigia os excruciantes [...] dos torturados [...] ela cantarolava o estribilho de uma antiga legenda de Santa Isabel que diz assim:
“Je me baigne à présent dans la rosée de mai.”
Obedecendo portanto a semelhantes impulsos, os agentes, ministros e executores da ira imperial porfiavam em atirar a barra aos companheiros no excessivo zelo e no requinte da ferocidade.
Os juízes não era mais do que carrasco disfarçados sob a toga judiciária. Na balança de Astrea uma das conchas nunca mais permitiu à outra o equilíbrio. Inês de Hungria, a exemplo de Breno, lançara nela o cutelo do algoz. Os processos tornaram-se por essa razão verdadeiras forçadas em que se jogavam rindo a vida e a honra das mais ilustres casas. As delações sucediam-se com medonha frequência. As artes, as indústrias, o comércio e as próprias relações da vida ordinária, cedendo à pressão funesta do terror e da desconfiança, deram a Zurich a aparência de uma cidade abalada por um recente cataclismo. As vinganças individuais acobertaram-se com o manto vastíssimo da imperial, e por todas estas razões não admira que se elevasse a tão alto o número das hostes imoladas.
Quando retomo o fio desta história Inês de Hungria e sua mãe começavam a sentir a saciedade da vingança. Nesse mesmo dia, primeiro domingo depois da Natividade, haviam perecido, com o aparato costumado, os sessenta e oito companheiros do mísero Rodolfo de Wart, e este, sobre cuja cabeça se acumulavam mais graves acusações e maior ódio das rainhas, fora atado à roda infernal a fim de sofrer o horrível suplício deste nome, tanto mais bárbaro quanto não matando logo a vítima, prolonga-lhe de ordinário o martírio por espaço de três ou quatro dias.
Rodolfo de Wart foi atado de pés e mãos sobre a roda, em quatro raios formando uma cruz de santo André. A roda, colocada horizontalmente sobre um esteio que lhe servia de eixo, começou o seu giro infernal, e então o algoz colocado em lugar apropriado deixava cair, com horroroso compasso, sobre o corpo da vítima, o pesado cepo que devia fraturar-lhe os membros, decepar-lhe as extremidades ou esmigalhar-lhe o crânio ou o tronco, segundo a parte do corpo que o acaso lhe colocava de espaço a espaço debaixo de sua ação!
Este horrendo espetáculo tinha premeditadamente ainda mais horrendos intervalos, durante os quais os lamentos dolorosos dos vitimados, e o sangue e as carnes que lhes saltavam dos membros partidos enchiam de dó e de repulsão aos assistentes e àqueles que, ainda mesmo de longe, não podiam escapar a ouvi-los.
Quando, preenchido o tempo do estilo inquisitorial, a vítima achava-se suficientemente rodada, isto é, quase toda deslocada e moribunda, retirava-se o cortejo, e os espectadores disseminavam-se pela cidade ainda escutando os gemidos ou as imprecações do justiçado, que, preso à sua roda fatal, permanecia, enquanto vivo, exposto à intempérie do ar, ao ataque dos abutres, e ao escárnio da populaça apaixonada.
Tal foi a sorte do muito alto e poderoso conde de Wart, condenado pelos tribunais de Zurich como rebelde e regicida, e supliciado na praça pública pelo meado de setembro de 1308!
XI
Todas as crônicas do tempo, diz um acreditado escritor, falam dos horríveis padecimentos do desventurado conde de Wart, e muitas delas contam que durou ainda por três dias depois do suplício da roda em que foi justiçado.
Enquanto, pois, Zurich contempla ainda aterrorizada o tremendo sacrifício, e o miserando regicida exala para o céu a quem ofendeu seus últimos suspiros, lembrando-se sem dúvida com pungitiva saudade de seu querido filhinho e de sua terna Adelaide, aproveitemos estas tristes horas de agonia para sabermos o que é feito dela, e assistir, — quem sabe? — a não menos dolorosos transes.
Voltemos a Ospone, em cujos subterrâneos deixamos nossa heroína prostrada sobre a terra úmida do cárcere, sem revelar sequer um sinal de vida.
Abandonada, esquecida, e no estado em que se achava, Adelaide de Sargans deveria necessariamente expirar nas sombras de sua prisão, se porventura o seu anjo da guarda, personificado em uma das suas nobres e generosas amigas do vale de Frontigue, Mathilde Staufacher, não velasse sobre os seus dias e não tivesse recebido do Altíssimo a santa missão de conduzi-la mais tarde ao seio da Igreja.
Mathilde Staufacher apenas retirou-se Inês de Hungria, e o castelo de Ospone voltou à sua monótona existência, meteu mãos à empresa de salvar a amiga, e para esse fim desenvolveu uma atividade e uma dedicação só próprias daquela que trazia com nobre orgulho o apelido de um dos heroicos libertadores da Suíça.
Mathilde, diz a duquesa de Abrantes, a cuja eloquente narração darei aqui a preferência, empregou para introduzir-se na prisão da condessa de Wart a sedução sob todas as formas, e chegou a conseguir que as próprias sentinelas do castelo lhe prometessem não ver cousa alguma, quando ela saísse por uma porta falsa há muito abandonada que então se achava debaixo da sua vigilância.
Ao entrar, porém, na masmorra em que se achava Adelaide, a boa helveciana julgou ter dado um passo inútil, porque o corpo gelado que ela encontrou estendido sobre a terra, pareceu-lhe, como também havia parecido à rainha, inteiramente privado de vida. Foram seus cuidados e suas lágrimas, o conchego aquecido da amizade, que reanimaram a vida no coração despedaçado da desventurosa mulher. Mas essa vida não passava de um instinto, de uma vegetação, dúbio clarão de lâmpada próxima de extinguir-se!
Adelaide, extremamente enfraquecida, estava de novo quase alienada da razão, e posto que tivesse reconhecido Mathilde, foi apenas uma pobre idiota que a acompanhou ao vale hospitaleiro de Frontigue.
Adelaide vivia numa espécie de letargia profunda e contínua, da qual não a podia arrancar, nem mesmo os nomes mais adorados... sua existência estava como que suspensa.
No quarto dia finalmente Adelaide despertou de repente, e sentando-se no leito, chamou várias vezes por Mathilde. Seus olhos não estavam mais dilatados e sem expressão, mas estavam secos e ardentes, e tinha a voz quase sumida.
Lançando um olhar em derredor, e recolhendo-se um instante, reconheceu o lugar em que se achava, e compreendendo tudo quanto devia a Mathilde, disse tremendo ao sentir despontar-se-lhe a lembrança de um passado horrível:
— Então não foi um sonho, um pesadelo apenas... Tudo o que se passou em Ospone... foi verdade! Foi ontem, sim ... e já me parece ter decorrido tanto tampo... Ontem! ontem...
— Perdão, senhora, lhe disse Mathilde interrompendo-a, estais enganada. É verdade que só de ontem para cá habitais sob o meu teto... Mas os fatos de que quereis falar passaram-se há quatro dias... Na véspera de um domingo... pouco depois na Natividade de Nossa Senhora, e...
Adelaide não a deixou concluir. Soltou um grito estrídulo, e precipitando-se fora do leito, exclamou como louca:
— O que disseste? De que dia falaste?...
— Do primeiro sábado depois da Natividade de Nossa Senhora... repetiu Mathilde Staufacher tremendo porque a fisionomia transtornada da condessa era medonha.
Adelaide deixou-se cair de joelhos, murmurando:
— Oh! meu Deus! depois da Natividade de Nossa Senhora! Oh! Rodolfo! meu Rodolfo!...
E juntando as mãos orou longo tempo em silêncio e com grande fervor. Depois levantou-se, e chegando à pequena janela do seu quarto, abriu-a e contemplou o vale que se estendia em anfiteatro ainda envolvido na neblina da manhã.
— Ah! ainda não é tarde! O sol ainda vem aparecendo agora pela garganta do vale. Oh! como está vermelho! O dia de hoje deve ser um dia de sangue!
Dizendo estas palavras estremeceu, fecharam-se-lhe os olhos e a palidez da morte veio ainda uma vez marmorear-lhe a fronte. Mathilde tornou a colocá-la cuidadosamente sobre o leito, e durante algumas horas a condessa inspirou-lhe novos receios.
Pelo meio do dia voltou a si e quis levantar-se; deu mesmo alguns passos sozinha pelo aposento...Então, pôs-se a sorrir para todos e para tudo...
Mas esse sorriso de dous lábios lívidos pelo sofrimento e ressequidos pelo fogo da febre, e não correspondendo senão a um olhar de profunda desesperação, tinha uma expressão indefinível de horror e de loucura.
— Oh! agora sinto-me boa, disse depois a Mathilde. Traga-me meu filho... quero abraçá-lo ainda uma vez antes de deixá-lo... Porque... bem sabes que tenho de ir ver o pai... Meu filho! Acrescentou ela enternecendo-se, mas ele é tão pequenino... como posso deixá-lo?... Mas não... cumpre partir... Ah! Rodolfo! Rodolfo!
E ajoelhando-se segunda vez perto da janela aberta que o sol iluminava então com seus primeiros raios, orou, porém desta vez soltando soluços e gritos entrecortados que lhe vinham d'alma e demonstravam toda a angústia do seu coração desesperado. Poucos momentos depois levantou-se e pediu pela terceira vez que lhe trouxessem o filho.
Mathilde hesitou um instante, porém depois respondeu-lhe que a criança dormia.
— Pois bem, vou vê-la! disse Adelaide. Mas caiu logo ao leito; a fraqueza traía-lhe a vontade. Então cônscia de sua impotência e com uma impaciência estranha ao seu caráter, porque era, como sabem nossas leitoras, boa e dócil, exigiu imperiosamente que lhe trouxessem o filho.
A vista de semelhante insistência, e não podendo recorrer a mais nenhuma desculpa, Mathilde Staufacher viu-se obrigada a confessar-lhe que o pequeno Rodolfo tinha morrido no dia antecedente.
— Morto! exclamou a pobre mãe: meu filho morto!... e ao proferir estas palavras desenhava-se lhe no semblante uma expressão que é impossível descrever, mas que tanto tinha de terrível quanto de pungente. Era um coração de mãe trateado que dava os últimos arrancos.
Adelaide de Sargans entrou em seguida em um período de plácido idiotismo. Comprimiu com as mãos ardentes de febre os dous seios, como se quisesse dar de mamar a seu filho...
Mísera mãe! há quatro dias que a desgraça lhe havia secado o leite!
— Então morreu o meu Rodolfozinho? disse ela no fim de alguns minutos e com o tom de quem se começa a consolar. — Pois bem, assim foi bom... está no céu! Não é verdade que era um anjo? Tudo o que Deus faz é sempre para melhor... sim, mas eu quero vê-lo...
Trouxeram-lhe imediatamente o menino, a quem a morte não havia ainda roubado o doce sorriso. Estava pálido como o marfim, e sobre as facezinhas ainda arredondadas, as violetas haviam substituído as rosas.
Adelaide tomou-o nos braços e apertou-o convulsivamente contra o seu coração, que por um momento havia cessado de pulsar. Beijou-lhe a fronte, os olhos, a boquinha, que já sabia balbuciar o nome de mãe, e estremeceu toda ao contacto do frio glacial da morte que naquele corpinho querido encontravam seus lábios febricitantes. Tremia violentamente, e todavia não derramou uma lágrima nessa ocasião. Restituiu a Mathilde com os olhos enxutos o cadáver do seu primogênito, e pediu que a deixassem só, pois queria dormir algumas horas.
Mathilde, porém, não se deixou enganar por essa dor silenciosa que não se expandia em gritos nem em lágrimas, e não quis deixá-la; e assim, com a terna solicitude de uma mãe, velou todo o resto do dia à cabeceira do seu leito.
Por volta da meia-noite a natureza reclamou vitoriosamente os seus direitos, e Mathilde, cedendo ao peso que lhe oprimia as pálpebras, adormeceu profundamente.
Adelaide aguardava desde a manhã esse instante de liberdade com essa astúcia e pertinácia que empregam os alienados em efetuar uma intenção ou mania. Assim, pois, que viu Mathilde adormecia levantou-se cautelosamente, e sozinha, sem auxílio, sem conselho, cobriu-se à pressa com alguns vestidos e saiu da casa furtivamente em busca dessa outra parte de si mesma cuja voz tão imperiosamente a chamava através do espaço.
XII
Custa a crer como uma mulher moça, delicada e sofrendo há tantos dias os gêneros de martírio que tenho descrito, pôde fazer o trajeto dificílimo do vale de Frontigue à cidade de Zurich, alvo de sua fantasiada peregrinação.
Se não fora o critério irrefutável da história eu seria o primeiro a fazer coro com aquelas das minhas leitoras que começam a achar na minha heroína forças verdadeiramente sobre-humanas. Mas nem a elas nem a mim é licita a menor dúvida sobre este ponto, porque é certo que a pobre e desventurada esposa de Rodolfo de Wart atravessou aqueles caminhos pedregosos, aqueles desertos quase selvagens, aquelas serranias soberbas, guiada apenas pelo instinto de sua alma e fortalecida pela profunda comoção elétrica que lhe comunicara o amor descomedido e sem igual na terra.
No meio dos tropeços que pareciam brotar-lhe de debaixo dos pés, ela, a mísera, parava, e olhando para o céu estendia solenemente a mão na direção do norte e dizia:
— É ali!
E continuava a caminhar, a caminhar sem descanso, muda como uma estátua, pálida como um espectro. As torrentes, os espinhais, as grutas, os rochedos, nada a embaraçava na sua vertiginosa carreira. E todavia caíam-lhe as vestes em pedaços, e dos pés quase descalços e feridos gotejava-lhe sangue.
Era triste, era solene, era quase fantástico vê-la passar assim, ora aparecendo nas alturas, ora desaparecendo nas profundezas do caminho.
Pelo fim da noite, diz a cronista a que já me tenho mais de uma vez referido, alguns camponeses que iam chegando para o trabalho sentiram-se abalados por uma espécie de terror religioso vendo deslizar-se rapidamente, como um raio luminoso, como um meteoro, esse belo tipo de mulher com seus cabelos esparsos e os restos flutuantes de suas vestes bordadas de ouro, relampejando deslumbrantes aos primeiros clarões da aurora. Alguns ajoelharam-se involuntariamente e a invocaram como uma aparição divina... Mas ela nada via... escutava só essa voz gemedora que a chamava do horizonte.
E apontando sombria para o norte dizia:
— É ali!
E continuava a correr.
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O sol começava a dourar, escreve ainda a duquesa de Abrantes, os altos campanários da cidade de Zurich[1] quando Adelaide chegou ao pé das suas muralhas. Aí sua loucura pareceu aumentar e ceder ao mesmo tempo. Uma única ideia a dominou daí em diante. Era positiva, lúcida e firme, mas Adelaide a exprimia com gritos e lágrimas, e pedia o seu Rodolfo a todos que encontrava. Uns consideravam-na louca e passavam olhando-a compassivamente. Outros afastavam-se dela com horror, murmurando a palavra regicida! E a infeliz nem de uns, nem de outros obtinha a indicação que impetrava.
Errava assim pelas ruas de Zurich, ainda desertas em tão matutina hora do dia, quando avistou de longe um aparelho extraordinário levantado no meio de uma praça e em redor do qual uma multidão silenciosa parecia pasmada. Aproximou-se devagar, e então no meio daquele silêncio ouviu uns gritos, uns gemidos de morte que lhe penetraram no fundo d’alma.
Reconheceu-os; esta voz era do seu bem amado Rodolfo! A este apelo do moribundo, fadiga, desespero, mágoa, loucura, tudo cede o lugar a um sentimento de alegria indomável, e então Adelaide se precipita, afasta com uma força invencível tudo quanto lhe embaraça o caminho e vai cair de joelhos ao pé do corpo mutilado de seu marido, de Rodolfo, que há três dias preso à roda fatal continuava ainda a regá-la com seu quase esgotado sangue.
O desgraçado quis voltar a cabeça para ela, porque no meio das torturas que sofria a voz da sua Adelaide entrou-lhe no coração; mas não pôde fazer movimento algum. Estava desconjuntado... não tinha um membro são, um osso inteiro ou em seu lugar!
Oh! quanto devia sofrer... e quanto não sofreria ela também diante desse lôbrego espetáculo.
O que é certo, porém, é que não chorou. Ajoelhou-se sobre a roda, colocou no regaço a cabeça do seu Rodolfo, e ali mesmo molhada pelo sangue do poste infamante, passou as últimas horas de agonia do seu marido a falar-lhe do perdão de Deus, de sua infinita misericórdia, umedecendo-lhe de vez em quando a boca ardente com um pouco d'água fresca.
Viam-na ali, como um anjo baixado do Empíreo encarregado da palavra divina, que é sempre: Perdão! E era assim tão sublime no exercício de sua caridade e do seu amor, que os próprios algozes tiveram compaixão de sua vítima e dessa mulher tão bela e tão admirável na pratica da virtude.
Quanto a Adelaide, tranquila na aparência, não parecia mais pertencer à terra. Podia-se dizer que sua alma já se havia reunido a outra nos confins da eternidade. Seu olhar, atônico para tudo que a cercava, só tomava vida e luz quando se fixava sobre os olhos moribundos do seu querido Rodolfo, o qual já não tendo força para gemer, só tinha para buscá-la com o olhar!
Enfim ao descambar do terceiro dia Deus apiedou-se do criminoso e chamou-a à eternidade. Quando Adelaide viu exalar-se o último sopro do seu peito sanguinolento e despedaçado, curvou-se sobre seus lábios e neles pousou os seus como procurando em resto de vida e de amor. Mas tudo estava consumado!
Levantou-se, orou algum tempo, e beijando ainda uma vez os lábios já frios do seu idolatrado esposo, cerrou-lhe os olhos, e depois, apossando-se do crucifixo que para ela ficara santificado pelo sangue da vítima, afastou-se lentamente, porque uma vontade derradeira e sagrada de Rodolfo lhe impusera um dever rigoroso e imprescritível. Não lhe era licito morrer ainda.
Desceu a escada do patíbulo e começou a caminhar cambaleante e trêmula. As feridas de seus pés não tinham sido curadas e os vestidos grudados pelo sangue impediam-na de andar com segurança. Acrescente-se a isto a falta de alimento e a série de abalos morais por que acabava de passar, e ver-se-á que ainda mesmo admitida a estranheza do fato histórico, Adelaide de Sargans mal podia apoiando-se a cada instante arrastar-se pelas ruas de Zurich. No entanto era seguida e quase cercada por uma multidão curiosa e cruel, do meio da qual só lhe saíam expressões de ódio e palavras de anátema:
— É a mulher do regicida, meu filho... dizia uma mulher a seu filho que chorava por ver o lindo, porém decomposto semblante da condessa; sai daí... não te aproximes dela...pode pegar-te desgraça!
A condessa ouviu-a e dirigindo para ela um olhar de inefável doçura murmurou algumas palavras de perdão em pró da desentranhada, e depois reunindo tudo quanto lhe restava de força saiu da cidade.
XIII
Para se compreender a sublime e sobre-humana epopeia daquele extraordinário amor, que deixou tão luminoso rastro nos anais da Idade Média, é preciso reconhecer e avaliar devidamente a força irresistível da ideia fixa, do fanatismo, da crença profunda e inabalável.
Qualquer destes grandes impulsos, quais a centelha elétrica, galvanizam as organizações humanas, e quando estas recusam-lhes todo o auxílio físico imprimem-lhes uma vida, por assim dizer, puramente automática. Tudo mais no organismo subordina-se à pressão da ideia despótica e a própria morte esbarra ante aquela existência fictícia, só podendo cumprir a sua lei quando o termo da missão anuncia-lhe a reação da natureza.
Adelaide achava-se exatamente nestas condições, e por isso até certo ponto não admira muito que, embora martirizada e moribunda, pudesse vencer a distância que separa a abadia de Santa Plectruda da cidade em que vira expirar o seu querido mártir, cujo derradeiro voto tinha de ali cumprir.
O céu coberto de nuvens, e permitindo que os clarões da lua a custo chegassem à terra, protegia-a contra a curiosidade indiscreta e malévola, e ao mesmo tempo proporcionava-lhe a claridade bastante para mostrar-lhe o caminho, por cujas fráguas e ervas mais se arrastava do que caminhava, fechando por intervalos os olhos com medo de ver surgir-lhe em frente uma terrível aparição; e de que se temia igualmente.
Rodolfo, ao expirar, havia-lhe deixado um santo legado nestas sentidas palavras:
— Lego-te, Adelaide, a dor de minha irmã para que a consoles; assim como a ela lhe deixo a tua... Vai!
E ela se tinha posto a caminho, procurando no horizonte as torres do mosteiro de santa Plectruda, como procurava os cruzados zombórios de Jerusalém.
Mas suas forças diminuíam sensivelmente... já mal se podia suster em pé. Alquebrada e ofegante teve por fim de cair... Os grandes degraus do pedestal de um cruzeiro receberam-na na queda, e ela, a desventurada, ao cair cingiu com os braços o sinal da redenção, sorrindo à morte que devia reuni-la ao seu Rodolfo. Ia morrer...
De repente o dobre de um sino retine nos ares e quebra o silêncio solene da noite. Ao mesmo tempo cânticos sagrados entoados por muitas vozes chegaram até seus ouvidos, apesar do vento e do farfalhar das árvores.
— É aqui, murmurou ela, é aqui mesmo! Ainda um esforço... e cumprirei a ordem de Rodolfo... Meu Deus... ajudai-me!
E a certeza de que tinha chegado quase ao termo de sua santa peregrinação inspirou-lhe novas forças, e num arranco supremo conseguiu levantar-se e chegar quase de rastos até a porta principal do mosteiro de Santa Plectruda, de que era abadessa, como já o terão adivinhado nossas leitoras, a querida irmã de Rodolfo de Wart.
Adelaide puxou com as forças que lhe restavam o cordão da campainha do locutório, e caiu aos pés da sóror rodeira, que acudindo ao chamado lhe abrira imediatamente a porta.
No mesmo instante foram chamar a abadessa, e esta correndo compassiva recebeu na peregrina aflita que buscava o seu sagrado asilo mais do que uma mártir inconsolável, porque encontrou uma irmã moribunda.
— Isabel, murmurou Adelaide lançando-lhe um derradeiro olhar, trago-te... as últimas palavras de teu irmão... mataram-no... minha irmã! Assassinaram-no... e eu... vou juntar-me a ele... Adeus... orai por mim!...
E esta mártir de um santo e sublime amor entregou a alma ao Criador exalando com o último suspiro a constante aspiração de sua alma, que era não separar-se mais nunca do idolatrado objeto de sua afeição.
Não lhe restou tempo para descrever à irmã o seu tempo martirológico; mas aquele formoso e mutilado corpo, aqueles andrajos inundados de sangue e recamados de ouro e pedrarias, aquela mocidade transformada em momentos num enrugado cadáver, falavam bem alto e recomendavam ao céu a justiça dos homens e o coração dos reis!
EPILOGO
Era impossível que um raio da graça divina não resgatasse para o céu a alma profundamente tenebrosa da feroz Inês. Nessa infinita misericórdia consiste mesmo a maior prova do incomensurável poder de Deus.
Contam os historiadores que pouco tempo depois de ter imolado tantas vítimas sobre a sepultura de seu pai, a rainha e Hungria vira surgir-lhe desse fúnebre recinto uma terrível visão que lhe fizera quase perder a razão e chegar às portas da morte.
Levantada do seu leito de dores, notável mudança acusaram sua ideia e linguagem. Falava com horror do seu passado vingativo. Orava continuamente e pedia em voz alta perdão a Deus do sangue que fizera derramar.
Recordando-se então do nobre procedimento e das dolorosas desgraças da condessa de Wart, resolveu erigir-lhe um magnífico monumento na igreja do mosteiro de Konigsfelden, que acabava de fundar, e onde tencionava (como depois realmente aconteceu) terminar seus dias entregue de corpo e alma às praticas religiosas, ao cilício e ao jejum.
Em virtude desta resolução, algum tempo depois das cenas que acabo de narrar chegaram uma manhã ao mosteiro de Santa Plectruda os deputados da rainha de Hungria que iam pedir à veneranda abadessa o corpo da condessa de Wart.
Ao receber semelhante intimação, que outra cousa não era uma vontade da rainha, sóror Isabel recusou-se peremptoriamente a aceder ao pedido de sua soberana. E como os enviados insistissem pelo bom êxito de sua missão, a religiosa, cujo nome mundano eles ignoravam, conduziu-os até a nave da igreja anexa ao mosteiro.
Chegando aí e mostrando a pedra tumular que lhe ocupava o centro, a venerável abadessa voltando-se para os régios emissários disse-lhes com modo solene e cheio de nobreza:
— Sou irmã de Rodolfo de Wart, e agora que o sabeis, julgai se posso obedecer à vossa rainha, ou se devo mesmo ter para com ela a mínima deferência! E quanto ao monumento que me prometeis para os restos de minha irmã, sua glória e seu repouso não precisam dele; basta-lhes este que o meu amor inconsolável lhe dedicou.
E proferindo estas palavras arredava o véu negro que cobria a pedra tumular a que me referi acima. Então os enviados da rainha puderam ler sobre ela, a destacar-se em letras negras, esta simples inscrição: Adelaide de Sargans, condessa de Wart.
[1]. Variam os escritores a respeito da designação da cidade em que teve lugar o suplício de Rodolfo de Wart. São alguns de opinião que o regicida foi executada em Basileia, onde se acha sepultada a condessa. Outros em Zurich, versão que adoto.