Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Narrativas militares, do Visconde de Taunay


Texto-fonte:

 Narrativas militares. Rio de Janeiro: Garnier, 1878. 

NARRATIVAS

MILITARES

(CENAS E TIPOS)

POR

SÍLVIO DINARTE

( A. d'E. T.)

AUTOR DA MOCIDADE DE TRAJANO, INOCÊNC1A, HISTÓRIAS

BRASILEIRAS, ETC.

RIO DE JANEIRO

B. L. GARNIER

LIVREIRO-EDITOR

65 — RUA DO OUVIDOR — 65

___

1878

AO CORONEL

ANTÔNIO TIBÚRCIO FERREIRA DE SOUZA

uma das mais brilhantes personalidades dos

valente exército brasileiro,

oferece

este livro

O AUTOR

Rio de Janeiro 20 de Abril de 1877.

UM IRMÃO

(HISTÓRIA VERDADEIRA)

Le frère aidé de son frère est

semblable à une ville forte.

BOSSUET

Un frère est un ami donné

par la nature.

LEGOUVÉ

ÍNDICE

Um irmão

A vingança de um recruta

O capitão caipora

Um dia de paixão

O tio Hilário

 

UM IRMÃO (HISTÓRIA VERDADEIRA)

I

O CAMARADA.

A bem de algum sossego de espírito e comodidade de corpo, quem viaja pelos fundos sertões deste imenso Brasil precisa ter em primeiro lugar um bom camarada.

Sem ele tudo é tropeço, tudo estorvos e dificuldades; com sua presença, perspicácia e experiência, nada se torna insuperável, nada impossível, ou desremediado.

Um camarada, enérgico e inteligente, traquejado nas labutações da vida do deserto, observador cuidadoso das menores particularidades da natureza, é quem substitui, embora em esfera limitada, as regalias que a comunhão social e civilizada proporciona ao homem nos centros de população.

Dele quase unicamente depende esse bem estar relativo que o viajante pode e busca com a prática conseguir em jornadas tão dilatadas e, senão rodeadas de perigo, cheias pelo menos de canseiras e necessidades, como sejam as que se fazem pelas vastas terras do interior.

É ele quem marca com antecedência o pouso e o prepara, desbastando-o das ervas mais altas; quem levanta a barraca ou arma o toldo e suspende a rede; quem acende o lume; vai ao córrego buscar água; trata da comida; cuida dos animais; pensa-lhes as feridas; atalha* as cangalhas; arreia os cargueiros, os tange, os socorre nos tremedais; nos atoleiros, derruba a carga; torna a levantá-la, e tudo isto que representa incessante atividade nos inesperados episódios de um dia inteiro, de sol a sol, sem a mais ligeira demonstração de impaciência, sem o mais leve vislumbre de aborrecimento ou de fadiga.

Suas horas de descanso são tão bem aproveitadas, seus minutos tão bem calculados, que, mal aponta a primeira barra da madrugada, já estão, quando tudo corre a seu sabor, os cavalos e bestas à soga, comendo em embornais a ração de milho, apanhados que foram em distante pasto. A água ferve na tripeça para o café da manhã, e ao chamado do amo é logo servida a modesta e matutina refeição.

Nada o surpreende. Hábitos arreigados lhe não consente a vida vária e agitada. Há ocasiões em que as coisas vão às mil maravilhas; outras em que desandam e se baralham como que propositalmente.

Desapareça, por exemplo, um animal. É preciso então revolver grandes extensões, estudar o rasto, segui-lo às vezes léguas e léguas, bater matos e capões — afanoso trabalho, tanto mais de infernizar quanto parar a viagem é um dia perdido, levantando-se com sol alto o pouso, para ir-se pernoitar pouco adiante. E se na manhã seguinte se repetir o fato, como é usual, recomeçam as mesmas pesquisas, reproduzem-se peripécias idênticas, cada vez mais desesperadoras para a paciência mais experimentada e sofredora, e que entretanto em nada abalam a imperturbável serenidade do sertanejo.

Silencioso no mais das vezes, outras tagarela e cantador, depressa cria afeição àquele a quem ajuda mais do que serve e que, por pronta solidariedade, cimentada pela solidão, chama também de camarada. Cresçam os obstáculos, acumulem-se contrariedades sobrevenham desgostos d'alma ou enfermidades do corpo, e ele tornar-se-á carinhoso companheiro, amigo fiel, auxiliar precioso, sem o qual em muitas ocorrências prosseguir fora de todo impossível.

Se tiver cavalgadura, escancha-se nela e vai tocando os cargueiros que põe na estrada por diante; senão, caminha atrás deles de pés no chão, com passo firme, desde os primeiros albores da risonha e rósea aurora até aos últimos clarões do melancólico e roxeado crepúsculo.

Largo e caudaloso rio corta o caminho, e o viajante não sabe nadar. Vestígio de ponte não existe; canoa nunca houve. Que fazer?

Não vacila um só instante o camarada. Amarra os animais a um pau ou touceira; tira-lhes arreios e cangalhas; despe-se; abre o couro que dobrado serve de ligal às cargas; levanta-lhe as quatro pontas; prende-as com embiras e cordas, e num ápice improvisa uma embarcação, de certo, frágil, mas na ocasião meio único de transpor a corrente.

É o que se chama uma pelota.

Enchê-la de carga, cair n'água e bracejar para a outra margem, levando entre dentes a cordinha a que está presa a pelota, é coisa de minutos.

Depois volta, rápido como um poraquê; ganha a praia e, aproveitando o tempo enquanto o couro está duro, carrega passageiro e malas e selim; faz duas ou três viagens redondas e por fim tange para o caudal as bestas e cavalos que compõem a tropinha, dirigindo-os com gritos e varadas na difícil transposição.

No pouso, tomadas todas as providencias, dispostas as coisas para a viagem do dia seguinte, não descansa de todo o camarada.

Se pia uma jaó na mata próxima, lá se vai ele de gatinhas dar um tiro proveitoso; se passa volitando uma abelha e depois outra, lá começa uma sagaz revista dos troncos de árvores, e daí a pouco ressoa o machado, baqueia o madeiro, e enchem-se os cornimboques* de saboroso mel, sobremesa inesperada e que rompe a monotonia da diária e habitual pitança.

Se a abelha for manduri, os olhos do meleiro** interrogam só a bifurcação dos troncos; se jataí, cujos favos guardam os perfumes das flores amalgamando-os, então ele estuda a base das árvores, bem junto ao solo e não tarda em descobrir um conezinho de terra preta e dura, que é a porta do cortiço.

À simples vista, conhece logo pelo comprimento se vale ou não a pena trabalhar de machado.

Quando o funilzinho não tem mais de polegada de altura, o camarada dispensa o excesso de serviço, mas, para não perder as passadas, derruba alguma palmeira e volta com o palmito doce, tão grato ao paladar, ou com o amargoso que os entendidos ainda apreciam mais.

Se o dia está calmoso, não se esquece o camarada de preparar para o patrão a refrigerante jacuba: parte um pedaço de rapadura, dissolve-o n'água e junta-lhe farinha de mandioca ou de milho, se for bem fresca.

Esteja encoberto o tempo, meio incerto, e trata logo de fazer ferver água. Apanha umas folhas de congonha do campo, tosta-as ligeiramente e de pronto arranja uma infusão de sabor agradável e que lembra o mate, se lhe não é superior.

Quando a estação é de chuvas, apenas levanta o toldo, com previdente cuidado estica as alças, bate bem as estacas que as prendem, reforçando-as com cunhas para que o pano resista ao esforço do vento e cava em torno um rego que dê fácil escoamento às águas, preservando o interior do alagamento e umidade.

No inverno, então, sem receio de aguaceiros busca os lugares bem planos e arma uma espécie de tenda frouxa que serve quase unicamente para abrigo do abundante sereno.

Assim faz o camarada que entende de viajar; assim procede, com espírito calmo, cauteloso, e sempre refletido, em qualquer emergência que possa dar-se.

Levar, pois, consigo um homem desses é não só verdadeira felicidade para quem não está habituado aos padecimentos de uma viagem terrestre, como até condição de bom êxito nas arriscadas explorações de ínvias solidões, como tive pessoalmente ocasião de verificar numa expedição de que fui encarregado, bastante curiosa e cercada de circunstâncias especiais e contrárias que por vezes parecerão dar-lhe foros de inexequível.

II

QUE EXPEDIÇÃO FOI ESSA.

Antes do mais, convém lembrar que no mês de fevereiro de 1866 as forças mandadas de Goiás, S. Paulo e Minas Gerais para Mato Grosso e oficialmente declaradas, já então, em operações no Sul dessa província, estavam desde 17 de Dezembro de 1865, em número de 2.000 e tantos homens, acampadas um pouco para lá da confluência dos rios Coxim e Taquari no lugar chamado Beliago, onde existira um insignificante núcleo colonial que, destruído pelos paraguaios, foi novamente restabelecido, logo depois de terminada a guerra dos cinco anos e constitui hoje a freguesia de S. José de Herculaneia.

Dividiam-se em duas brigadas: a 1.ª com 1.157 praças, composta do batalhão 17 de Voluntários mineiros, do 21 de infantaria de linha (paulistas) e do corpo de artilharia do Amazonas*; a 2.ª com 914, praças, do esquadrão de cavalaria de Goiás, do 20.° de linha da mesma província e dos voluntários policiais de S. Paulo e Minas Gerais.

Comandava a coluna o coronel José Antônio da Fonseca Galvão (pouco depois brigadeiro graduado), o qual tinha sob suas ordens as repartições dos deputados do ajudante general, e do quartel mestre general, uma comissão de engenheiros, outra de saúde, e mais um auditor de guerra, o simpático e inteligente Gonçalves de Carvalho.

Eram ao todo 34 oficiais do estado-maior, número sem dúvida superior às necessidades do serviço, mas que as moléstias, as retiradas e a morte em breve deviam diminuir e demasiado reduzir.

Foi o acampamento do Coxim a primeira das muitas e cruciantes estações da atribulada peregrinação que pelo recanto meridional da província de Mato Grosso fez durante dois longos e penosos anos aquela coluna expedicionária.

Rodeado por todos os lados de imensos sertões, não podia o local, de si inculto e já devastado, que o egoísmo e a inconsideração haviam declarado chave das estradas de Cuiabá, oferecer recursos para a alimentação de quase três mil bocas, senão desde logo famintas, pelo menos precisadas de diariamente comer.

Assim pois, enquanto vinham, com o vagar do passo do boi, chiando pelas estradas, os carros de mantimentos que a energia e a atividade do presidente de então de Goiás Ferreira França enviavam às forças, sofriam elas a mais cruel e dolorosa míngua.

Aqui e em qualquer parte hei de proclamá-lo bem alto. Se não fora a incansável dedicação daquele distinto brasileiro, a expedição teria infalivelmente se dissolvido em Coxim, depois dos mais tremendos horrores; e como esse serviço de tão elevadas consequências não foi ainda devidamente reconhecido e aquilatado pela nação e pelo governo, no livro histórico ou no romance buscarei sempre trazê-lo à luz.

À frente dos comboios, despachava Ferreira França pontas de gado o qual, embora chegasse ao nosso acampamento, depois de centenas de léguas, esquálido, e quase sem fôlego, era assim mesmo derrubado logo e distribuído à tropa.

A carne enegrecida espumava ao fogo, mas por enquanto se dava algum alimento a essa infeliz gente.

Em tão desconsoladora emergência, estranhavam ainda os generais e políticos de Cuiabá e do Rio de Janeiro que mais depressa não avançasse aquela coluna, empreendendo rápida campanha a fim de expelir os paraguaios para além do Apa e levar as armas até ao coração da república inimiga.

Mas como, senhores do gabinete, cujos olhos se prendem unicamente às enganosas facilidades da contemplação de um bonito e bem colorido mapa geográfico, como mover uma força pelo deserto adentro, sem municiamento de boca, sem linhas de abastecimento, sem depósitos à retaguarda?! Como metê-la em pantanais de dar nado numa época de chuvas constantes e torrenciais?! Como romper através de obstáculos quase insuperáveis, até para o homem escoteiro, por muitas e muitas dezenas de léguas?!...

Já se fizera, em todo caso, sentir a estranheza, pelo que ansiava o coronel Galvão, ofendidos os brios de velho militar, alcançar pelo menos a vila de Miranda, no distrito daquele nome.

E nessa ocasião era sem dúvida o mais difícil.

Imagine o leitor uma região larga e baixa que se estende desde as margens do Taquari até aos campos do Aquidauana, confluente do Miranda, região de cinquenta léguas em quadro, limitada ao O. pelo rio Paraguai, a L. pela serra de Maracaju e que, anualmente, do mês de dezembro a princípios de maio, é em toda a extensão alagada pelo transbordamento do gigantesco caudal e dos seus menores tributários. Então o caminho que a corta, ligando o ponto do Coxim à vila de Miranda, seco e de bom trânsito no tempo frio; desaparece todo, submergido que é pela formidável inundação.

Conhecida por pantanal de Miranda e uma das porções meridionais daquilo que os mais abalizados geógrafos com impropriedade chamam a lagoa Xaraes, constituía essa vastidão de águas um empecilho à marcha da coluna até que o grande rio se retraísse, entrando também cada um dos afluentes em seus mais modestos leitos.

Pois bem, o que só em fins de maio, ou melhor princípios de junho, podia ser tentado, foi crido praticável em meados de fevereiro; e, como figurava nos mapas do pessoal uma pomposa comissão de engenheiros, antes de outra ponderação, ao cuidado dela cometeu-se a incumbência de achar passagem, fosse lá como fosse, onde era absolutamente impossível passar.

O programa tinha o seu quê de grandioso, deixando larga margem ao desconhecido: explorar toda a zona inundada; procurar torneá-la, fraldejando a serra de Maracaju; abrir picadas pelas matas, etc. e, na sua parte mais clara e positiva, dar de tudo ao comando em chefe circunstanciada informação, acompanhada de desenhos topográficos, com determinação exata das distâncias e pousos para a marcha futura da coluna, dos trechos de caminho a melhorar, pontes e bueiros que lançar, canoas que construir e um sem número de recomendações mais, como é de estilo em instruções formuladas por qualquer repartição brasileira no exercício de suas funções gráficas.

III

COMO RECEBEU A COMISSÃO DE ENGENHEIROS A ORDEM.

Quando no barracão de palha em que nós, oficiais engenheiros, morávamos em comum, quase defronte da confusão das águas do Taquari com as do Coxim, chegou a ordem apressada para que incontinente o chefe da comissão nomeasse dois de seus ajudantes que em cumprimento daquelas instruções fossem transpor os pantanais até ao rio Aquidauana, ocupado, ainda por cima, pelo inimigo, singular pasmo apoderou-se de todos.

Os primeiros instantes foram de silêncio e concentração; depois surgiram reclamações e protestos.

Pois era possível naquele tempo de chuvas diárias, no rigor da quadra das águas expor assim dois homens, dois oficiais, atirá-los para a frente da coluna, a esmo, sem rumo, quando havia ignorância total da posição, dos recursos e vigilância dos paraguaios? E aquele pantanal medonho, abismo de vasa, imenso lodaçal nunca revolvido? E aquela serra bravia, ínvia, como transpô-la, como estudá-la, sem guia, sem rota? Com que víveres far-se-ia uma exploração de 50 léguas? Onde os animais, quando a peste os aniquilara todos? Que força de proteção para acompanhar os infelizes exploradores?

A todas as interrogações contrapunha-se inflexível resposta: era a urgência de cumprir as determinações do comandante em chefe; era a disciplina militar com todas as suas inquebrantáveis exigências.

Manda quem pode, obedece quem deve, diz o soldado, e esta regra é a base, a força de um exército.

Naquela hora, porém, as perguntas que se cruzavam de todos os lados e, satisfeitas como era natural, sempre no sentido negativo, mais nos entenebreciam o espírito.

Também caíra já o crepúsculo, e o chefe da comissão não ousara, ou melhor, não tivera ainda a coragem de indicar os nomes dos que deviam partir e dar execução às imperiosas instruções.

No nosso barracão, já então às escuras, que o luxo da iluminação fora, há muito, radicalmente abolido, reinava, depois de todos aqueles protestos, o silêncio; fora, roncava a trovoada habitual às tardes da estação quente, e a chuva caía a cântaros.

Cada um de nós estava deitado em seu jirau ou rede.

— É preciso, observou por fim um dos companheiros, decidir quem segue ou quem fica.

— Considero, disse o chefe, a empresa tão difícil, que não me animo a apontar o nome de nenhum dos meus colegas.

— Entretanto a ordem é terminante, ponderou alguém.

— E há de ser cumprida, acrescentou outro.

— Pois bem, lembrou um terceiro, entreguemos à sorte a custosa designação. Assim ninguém poderá queixar-se.

Aceito o alvitre, nossos oito nomes, tantos eram os ajudantes da comissão, escritos em quadradinhos de papel, igual e cuidadosamente dobrados, caíram no fundo de um chapéu.

Quem do bojo da improvisada urna tirou com solenidade dois dos papeizinhos foi Chichorro da Gama, um infeliz camarada, cujo corpo devíamos, poucos meses depois, entregar à terra.

Com explicável ansiedade abri-o e... li um nome.

Era o meu.

Ocasiões solenes já tem tido minha vida. Uma delas foi essa.

Num instante, rápido como o pensamento, vi que meu destino ia depender do companheiro que me reservava o outro misterioso canto do papel. Se enérgico e prático, estávamos salvos; se menos bem dotado, ambos não daríamos conta da mão, sucumbindo talvez, antes de concluído o temeroso cometimento.

O nome que anunciei, mais animado logo, foi além de minha expectação — Pereira do Lago.

Lago — isto é, a prudência, a força, a reflexão, o sentimento apurado do dever; Lago — a personificação do bom senso, mas ao mesmo tempo a tenacidade levada ao extremo da teima.

Alto, gordo, então simples capitão, mas com proporções para ser general, tem ele fisionomia franca e simpática. Possui inteligência, ilustração e sobretudo consciência. Reto e leal, é amigo às deveras, mas também inimigo decidido.

Eis porque esse nome tanta influência teve em meu espírito, e como a imaginação, em idades mais tenras, de bom grado se inclina para o otimismo, aquela viagem, há pouco tão terrível, afigurou-se-me digressão que, se bem penosa, serviria contudo para quebrar a insipidez da vida estacionária que levávamos no Coxim.

— Então somos nós, disse Lago com aspecto risonho. Pois bem, amanhã me ocuparei dos mantimentos, e você — dirigia-se a mim — irá entender-se com o coronel comandante.

No dia seguinte, com efeito, compareci no quartel-general e lá não pude colher informação que me agradasse; muito pelo contrário.

A cada instante reaparecia o dizem.

Diziam por exemplo que a travessia dos pantanais era possível e até fácil; diziam que uma serra corria à esquerda, tão contínua e elevada que não deixava errar uma criança e com fralda por tal modo limpa, franca e boa de seguir, que os fugitivos de Miranda por ela se tinham escapado com a maior segurança; diziam que os paraguaios estavam muito longe, perto já do Apa; diziam enfim mil coisas consoladoras, mas ninguém afiançava nada.

O que era positivo é que deviam servir-nos de guia cinco ou seis soldados do antigo corpo de cavalaria de Mato Grosso dissolvido em Nioac por ocasião da invasão da província em 1865 e que, após um ano de estada nas matas entre índios e refugiados, tinham vindo apresentar-se, atravessando, é certo, os pantanais, mas na estação em que estavam perfeitamente secos e davam livre passagem.

Pairava sobre essas praças uma suspeita que nos foi, à última hora, obsequiosamente comunicada: é que eram uns grandes sicofantas e assassinos, que, depois de enormes tropelias, tinham vindo buscar a impunidade de medonhos crimes na proteção da vida militar.

IV

A VIAGEM.

Debaixo desses auspícios, no dia 12 de fevereiro de 1866 partimos, pois, do Coxim, acompanhados até ao porto de embarque no Taquari por nossos companheiros que durante a transposição daquele majestoso rio nos saudavam, contristados e melancólicos, com os lenços e chapéus.

Nessa mesma tarde arrebentou violenta trovoada, e passamos a noite em uma barraca esburacada que parecia proteger-nos mais intencionalmente do que na realidade.

Enfim com mais ou menos peripécias, próprias de toda marcha por terra, fomos seguindo a rumo Sul e numas 25 léguas encontrando senão terreno perfeitamente enxuto, pelo menos transitável e até com sinais de bastante frequentado uns meses atrás, pois a trilha era seguida e um tanto batida.

De vez em quando víamos uma ou outra bonita perspectiva: o portão de Roma, por exemplo, grandiosa aberta numa linha de montanhas já bastante empinadas ou então os campos dos rios Claro e Verde, mas a chuva infalível, mal se inclinava o sol, pelas três ou quatro horas da tarde, constituía um sofrimento diário, tanto mais penoso quanto ia entender com a noite, molhando nossa resumida guarda-roupa.

Sem maior novidade, pois, alcançamos o rio Negro, alem do qual se espraiava a zona mais funda dos pantanais, pelo que devíamos trilhar a base da serra de Maracaju.

A direção da cordilheira constitui com efeito seguro meio de caminhar sempre para o Sul, mas o que se torna de todo o ponto impossível é não só acompanhar as dobras extremas da aba, como buscar alcançar a chapada, se porventura existe, pois o maciço de montanhas mergulha para assim dizer os pés na vasa e tem as fraldas orladas de uma faixa larga de taquaris tão entrançada e resistente, que num instante gastaria quanto machado tentasse romper por ela estreita vereda.

Começou então para nós um período de padecimentos que descrevi minuciosamente num livro*, e que, justificando as temerosas previsões do nosso conselho no Coxim, toma hoje, apagado em parte pelos anos, certos visos de inverossimilhança.

Repelidos da serra pela impenetrável cintura, não tivemos remédio senão procurar as terras baixas: caímos no pantanal; perdemo-nos em breve, e patinhando dias inteiros no lodo ou dentro d'água e buscando, a muito custo, uns cômoros de terra mais altos e secos para passarmos as noites ou enxugarmos as roupas, camas e bagagens, caminhamos durante quase três semanas à toa, sem rumo, desanimados e sem esperança de salvação.

De mais a mais, a pelota, que na passagem do rio Negro transportava nossa diminuta matalotagem, tinha virado, de maneira que seguíramos, confiados só no muito gado que diziam — sempre o célebre diziam — abundante nas regiões empantanadas.

Dessa vez também não andavam longe da verdade: reses havia e muitas, mas tão ariscas e velozes como o bicho mais selvagem da mata; isto mesmo nos lugares menos úmidos, porque da região inundada fogem todos os animais, e nela só se avistam garças, socos e tuiuiús.

Forçoso era, pois, vencer a natural repugnância e para não morrermos à míngua chupar miolo de palmeiras macaúbas, tão visguento e desaçucarado que o estômago o acolhe com desgosto,

A mim e à comitiva, composta daqueles soldados mal considerados — sete homens e um sargento — sustentavam mais a coragem e sangue frio do Lago do que a repulsiva alimentação que nos proporcionava aquela ingrata zona.

Entretanto íamos sempre, já não digo por diante, mas vendo de achar passagem ou para voltarmos para o Coxim ou para seguirmos até ao Aquidauana.

V

UMA ONÇA BENEFICENTE.

Uma noite, atingiram os nossos sofrimentos extraordinária violência.

Num pouso improvisado e todo encharcado, que com boa razão denominamos da Aflição, caiu sobre nós, quando emergia do pantanal esplêndido luar, tão condensada nuvem de mosquitos e pernilongos que, embora abatidos pela fome, buscamos a toda a pressa os galhos extremos das árvores, donde só descemos com a madrugada.

Imagine-se agora a luta para resistirmos ao sono e ali mesmo naquele elevado abrigo nos defendermos dos ousados e malditos insetos?!

Quanto aos nossos animais, esses corcoveavam de dor, atados a grossos troncos e desesperados esticavam a mais não poder as cordas que os vinculavam.

Afinal, depois de esforços furiosos, romperam as prisões e num galope vertiginoso desapareceram do infernal local.

Nele tivemos que ficar três dias, três dias que me pareceram anos, sentados, eu e o Lago, um ao lado do outro, à espera das turmas em que se haviam dividido os soldados, uns para procurarem alguma coisa que comer, outros a campearem os animais fugidos.

E com a noite voltavam desalentados, prostrados de fadiga; e com a noite, surgiam daqueles campos alagados, numas dez léguas em torno, legiões, miríades de sangue-sedentos mosquitos, cujo ferrão, atravessando a mais espessa baeta, se nos entranhava sequioso pelas carnes adentro.

Suplicio indescritível!

Debalde fumegavam fogaréus que nos abrasavam de calor; tal era a fúria dos assaltantes que não havia senão recorrer às árvores e, trepados em cima, agarrarmo-nos com força, aos galhos no meio de cochilos homéricos.

E a lua cheia, imensa, a iluminar com brandos e azulados raios aquela paisagem chata que aos olhos da fome e da angústia parecia sepulcral.

— Então, perguntei a um dos soldados, não há esperança de se acharem mais os animais?

— Por enquanto, não, respondeu-me ele, mas os dois Campos Leite foram seguindo o rastro, e se eles não os trouxerem, ninguém mais os apanha nesta vida.

Aí, a todas as preocupações que tumultuavam em nosso espírito, acresceu mais esta: E se os tais campeadores, justificando a reputação de que gozavam, desertassem, montados em nossas cavalgaduras?!

Para abrandar a violência dessa ansiedade, deu-nos a sorte inesperado resfôlego. Por volta do meio dia, apareceram no pouso dois soldados carregando um enorme pedaço de carne, resto de um banquete de onça, a qual, achando sem dúvida o repasto demasiado duro — era carne de touro — com pouco se contentara. O mais havia ficado quase intato para uns mal-aventurados homens perdidos inconsideradamente naquelas solidões.

Sim, abençoada onça!... única na tua espécie! O que, graças a ti, se devorou naquelas horas, o que se devorou durante a noite toda, apesar de teres mais que razão quanto à qualidade da carne, apesar do alvoroto e sanha das muriçocas, passa os limites da imaginação da tua raça e com tal sofreguidão que o alimento apenas ingerido era logo rejeitado pelo enfraquecido estômago e naquele instante mesmo substituído por pedaços cada vez maiores.

Era de enjoar uma onça um tanto mais civilizada.

Embora!... comia-se... comia-se!

VI

NÃO HÁ MAL QUE SEMPRE DURE.

Nessa mesma tarde, voltaram os campeiros com o magote de animais, que só havia parado umas boas dez léguas atrás, quase junto ao rio Negro. Faltava unicamente um burro de carga, morto por uma onça, essa de instintos por sem dúvida muito menos dignos e louváveis que os da ilustre e humanitária companheira.

Enfim... há de tudo!

Quando no dia seguinte achamo-nos a caminho, éramos outros homens, e como a felicidade do mesmo modo que a desgraça tem quase sempre uma evolução determinada, foram nossos inglórios infortúnios decrescendo em consoladora proporção. Um dos nossos conseguiu matar a bala gorda e possante rês, e, no momento menos esperado, surdiu de entre as águas, buscando as lombas da serra, uma trilha seguida, que nos livrou para sempre dos horrores e incertezas do pantanal.

— Estamos salvos! bradou com segurança um dos soldados. Agora piso terra conhecida.

Dera esta grata notícia um homem que nos havia prestado, como camarada, durante os dias angustiosos daquela custosa exploração os mais assinalados serviços.

Era ele quem à frente de nossa resumida e merencória tropinha ia sempre rompendo a marcha com água muitas vezes pela cintura e abrindo um sulco por entre os capins do pantanal; era ele quem, à menor suspeita de corixa*, nos fazia parar; quem ativava a passagem, puxando as pelotas, dirigindo os cargueiros e animando os camaradas; quem, de machadinha em punho, corria as árvores em busca de cortiços de abelhas; quem derrubava os coqueiros; lhes conhecia as qualidades; lhes tirava o miolo, quando não tinham palmito, voltando pressuroso a nos trazer o resultado de suas pesquisas; quem campeava os animais e lhes batia sem errar a fugitiva pista.

Chamava-se Alexandre de Campos Leite, sertanejo por índole e educação, mas por enquanto soldado do corpo de cavalaria de Mato Grosso.

Era caburé, isto é, mestiço de negro com índia e um magnífico tipo do cruzamento destas duas raças.

Alto, bem proporcionado, de musculatura enérgica e elegante, tinha cor de chocolate carregado. Cabelos negros, mais crespos que encarapinhados, olhos grandes e meigos, nariz fino, quase aquilino, boca um tanto rasgada, dentes excelentes, e mento acentuado, formavam um todo fisionômico agradável e sobretudo muito característico.

Por ocasião da dissolução do corpo a que pertencia, em dias de Janeiro de 1865, quando os paraguaios invadiram o distrito de Miranda, ficara Alexandre oculto entre, os índios terenas, até que julgou de necessidade ir apresentar-se às forças Brasileiras acampadas então [em] Coxim.

Razão ainda mais forte que o dever militar a isso o havia levado. É que nessas forças servia também um irmão, seu irmão mais velho Martinho, que, depois de debandado o corpo de cavalaria, por circunstâncias talvez alheias à sua vontade, acompanhara o comandante e a bandeira até Santana do Paranaíba, na fronteira de Mato Grosso, seguindo dali para Uberaba, onde se reunira à coluna expedicionária que marchava com direção ao norte do distrito de Miranda.

Pela vez primeira se achavam aqueles dois homens separados.

Também logo que Alexandre, por um índio que fora ter ao Coxim, soube da chegada do irmão, sopitou o desejo de continuar a viver livre e independente na qualidade de extraviado e, reunindo quatro ou cinco companheiros nas suas condições, veio espontaneamente oferecer o corpo ao jugo da disciplina e tomar novamente lugar na fileira ao lado do querido Martinho.

Pardo bastante claro, e filho portanto doutro pai, era este baixo e reforçado, tinha fisionomia balorda, pouco inteligente, mas benévola e um tanto simpática.

Homem de quase quarenta anos, há muito terminara seu prazo de engajamento; entretanto, à espera que o irmão muito mais moço houvesse concluído o tempo de serviço obrigatório, ainda não requerera sua baixa, a qual, pelo péssimo e, digamo-lo francamente, desleal sistema introduzido na nossa administração militar, mui naturalmente não lhe havia de ser concedida.

Os dois, como mais conhecedores dos pantanais e daquelas regiões, ajudaram-nos sempre com dedicação ilimitada, prestando-nos, como já dissemos, importantíssimos serviços, Martinho com sua força de trabalho, robustez e indomável constituição, Alexandre com seu atilamento e vivacidade de espírito para de tudo tirar recursos, aproveitando em tempo as menores circunstâncias que podem auxiliar o homem entregue a si no meio do deserto.

Em geral aqueles seis homens, que nos tinham sido dados para guarda de proteção com as mais singulares e aterradoras confidências e conselhos de desconfiança, portaram-se de modo a merecer de nós verdadeira gratidão.

VII

CONTINUA A VIAGEM.

Exaustos de forças, mas alegres e quase orgulhosos por havermos superado os tropeços que a cada passo se levantavam como que para nos deter a marcha, chegamos à zona chamada boca do pantanal e distante umas 40 léguas do Coxim. Aí corre o rio Taboco, espraiado e quase sem margem do lado direito, do outro contido por empinada barranca que as enchentes jamais podem galgar. É o limite da região firme e nunca inundada, a qual se estende, alargando-se muito, para O. até ao rio Apa e descamba pela república do Paraguai adentro, formando as extensas planícies do Aquidabã, próximas da vila da Conceição.

Inexcedíveis em dedicação haviam sido os dois Campos Leite.

Nada lhes passava sem reparo pelo caminho; de instante a instante estudavam o viso do arvoredo ou as pegadas dos animais para fugirem de medonhos tremedais cobertos de capim tão verdejante e mimoso quão traiçoeiro, metendo-se pelo contrário confiadamente por veredas escuras e encharcadas, cujo solo, porém, é firme e sem as perfídias daquelas ridentes clareiras.

A menos de meia légua das margens do rio Taboco, tive prova mais notável dessa cautela de observação.

Como de costume, caminhava Alexandre na frente, Martinho logo atrás.

De repente o primeiro parou e com ar de admirado voltou-se para o outro.

Trocaram rápidos acenos e ambos pareceram escutar.

Perguntei-lhes por quê.

Vinha então a nossa tropinha por trilha alagada e aberta em campos de juncos piripiris; viajar diário, ainda quando fora do verdadeiro pantanal.

— Os quero-queros, disse por fim Alexandre, estão gritando à beira do rio.

— E que tem isso? observou Lago com impaciência.

— É que há lá gente, respondeu Martinho.

— E quem poderá ser? indaguei.

— Paraguaios, quem sabe? replicou Alexandre.

A tarde vinha descendo apressadamente.

Tudo era triste.

Nenhum ponto que cintilasse no céu; na terra, ao redor de nós, só charcos e negrejantes maciços.

Ameaçava chover e mais se entenebrecia o tempo.

Entretanto impossível era recuar; imprescindível marchar para diante, e talvez daí a pouco esbarraríamos com... o inimigo!

Aos Campos Leite ordenou Lago que avançassem por desvios e atalhos a explorar terreno até ao rio.

Partiram, e nós ali ficamos à espera.

Cerrou-se de todo a noite; começou a chuva a cair, e parados, silenciosos, formávamos compacto e melancólico grupo, ao passo que de vez em quando os animais batiam com as patas n'água.

Depois de uma hora talvez dessa cruel expectação, em que o peito se nos apertava de inquietação e tristura, ouvimos um grito prolongado de agonia... e depois uma gargalhada estridente.

E um corujão dos pantanais passou por cima de nossas cabeças.

Acredito que naquele instante todos sentiram frio na medula dos ossos.

— Cruz! exclamou um soldado exprimindo em voz alta a impressão geral, este bicho do diabo veio rir-se da nossa desgraça!

Quando, cansados já e ralados de impaciência, pensávamos em prosseguir, apareceu o Martinho.

— E então? perguntou Lago.

— Alexandre lá ficou...

— Que novidades há?

— Há pouco, gente grossa*; agora ninguém mais. Assunte**: os quero-queros calaram o bico.

De fato nada se ouvia.

Avançamos então, indo, meia hora depois, parar na margem direita do Taboco onde, sem bulha e apenas com uma fogueirazinha que mal nos aquecia as roupas ensopadas da chuva, esperamos com sobressalto pelo que nos diria a madrugada.

Se a noite foi má, e durante ela deram-nos as formigas saúvas na barraca que até cortaram as correias do talim, espicaçando tudo quanto era pano, se a noite foi má, repito, o raiar da aurora trouxe-nos consoladora compensação.

Os róseos e decantados dedos de Eos de par em par abriram as portas à esperança agora fundada, agora quase certa, de vermos terminados os trabalhos da nossa terrível comissão.

Uma partida de índios terenas, índios mansos, amigos, aliados nossos e cujo aldeamento nas brenhas da serra do Maracaju, a poucas léguas do rio Aquidauana, era um dos nossos objetivos, fora quem lá estivera.

Não havia duvidar.

Frescas estavam as pisadas e Alexandre em reconhecê-las, ou, como tecnicamente se diz, em levantá-las, era mestre.

— O índio, ensinou-me ele, pisa de banda e não gruda o pé todo no chão.

Do Taboco fomos fraldejando a serra até uma ponta que se adianta no meio de campos pouco dobrados; depois, seguindo a volta, encaminhamo-nos para o seio que ela forma em reentrância.

Aí é que se haviam abrigado os índios da tribo guaná, depois de expulsos de seus aldeamentos de Miranda.

Passado um bonito córrego, deparou-se-nos larga e batida avenida com mostras de muito frequentada.

— Se nos apresentarmos assim em grupo, ponderou Alexandre dirigindo-se para nós, arriscamos alguma descarga. Vou adiante e daqui a um nada volto com os terenas.

Tão judicioso alvitre não podia deixar de ser aceito.

O recebimento que, minutos depois, tivemos na aldeia da Piranhinha foi de verdadeiro entusiasmo. Aqueles nossos amigos, vestidos muitos deles só com sua pele cor de cobre vermelho, pasmavam, embora índios, de nos verem para cá dos pantanais.

Se de seu lado nos olhavam com respeitosa admiração, por nossa parte não menos estranheza nos causavam aqueles grupos de homens, cuja epiderme cor de telha queimada se não repugna às vistas, pelo menos as impressiona singularmente. Eram com efeito os primeiros índios que víamos assim em liberdade nas matas e sertões do Brasil.

VIII

UMA GALINHA COM ARROZ APARECE E DESAPARECE.

Pensar e falar de contínuo em manjares delicados, em suntuosos banquetes e profusas refeições, é uma das curiosas alucinações daquele que, alquebrado de forças pela fome, sente aos poucos a imaginação ir desvairando. O fenômeno que se dá em sonho, quando dormimos em jejum, reproduz-se com vivaz intensidade em quem, embora acordado, se sinta desfalecer por falta de alimentação.

Se a medicina — o que duvido — não assinala o fato, posso eu assegurá-lo com todo o fundamento, pois o verifiquei não só em mim, como nos companheiros que sofreram a agonia dos três dias no pouso da Aflição.

Entre nós era o único assunto de conversação, o único estímulo para trocarmos palavras um pouco mais animadas. Fazíamos como que uma minuciosa recapitulação de tudo quanto outrora nos acariciara o paladar, e a divergência de opinião sobre esta ou aquela comida constituía um ponto digno de controvérsia e mais minucioso esclarecimento.

Fato natural — enchiam-nos de grata recordação, não tanto as finas iguarias, as apuradas combinações da cozinha delicada e meticulosa, senão os simples e substanciais pratos do uso diário e corriqueiro.

Como nos sabia, — em imaginação está subtendido, — uma feijoada, uma panelada de canjica!!

Numa ocasião Lago levou o requinte, o sibaritismo a ponto de idear uma galinha metida inteira em arroz. Quanto a mim, contentei-me com o cereal e declarei saboroso a mais não poder esse modesto grão, cozido simplesmente n’água e adoçado com um pouco de açúcar.

Não sei pelo quê, tornou-se-me aquela mistura como que um ponto fixo na cabeça, de modo que por vezes, ainda depois de comidos bons e suculentos churrascos, insisti na necessidade de verificarmos a excelência do singelo arroz açucarado.

Também, chegados à Piranhinha, vendo Lago de relance a grande quantidade de galinhas que por ali cacarejavam, com toda a seriedade me propôs:

— Já que você quer, mande preparar para seu jantar o tão apetecido arroz, ficando reservada para mim a galinha,

Bastou essa alternativa para que de pronto me desse por convencido e, uma hora depois, com tal ânsia nos atirávamos ambos à legítima palangana que nos apresentaram que, apesar de preparada com graxa de boi, só deixamos ossos em pratos rutilantes de limpos.

E fique aqui de passagem assinalado para exemplo e escarmento de futuros viajantes: aquela canja, ou pelo modo por que fora preparada ou pela quantidade ingerida, fez-nos terrível mal.

IX

UMA SUBIDA DE SERRA DÁ FIM À VIAGEM.

No dia seguinte com grande acompanhamento de índios, saímos da Piranhinha e tomamos a trilha que comunicava o aldeamento com a localidade em que se achavam, na chapada da cordilheira de Maracaju, os refugiados do distrito de Miranda.

Para penetrarmos no recôncavo, havíamos caminhado completamente a E.: desfazendo pois a volta, isto é, tomando rumo O., chegamos à ponta do morro, de que acima falei, e dirigimo-nos para a serrania.

Em breve começou a ascensão. Tornaram-se as matas mais densas, o declívio mais agro.

De repente descíamos; logo após subíamos cansativa rampa.

Entaliscada entre fileiras de altos rochedos, seguia duvidosa a trilha, ora por baixo de taquaruçus, ora num meandro de matagais.

Que era caminho de fugitivos se via logo.

Paisagens lindíssimas, umas dilatadas, outras mais restritas, nos esclarecia a meiga luz de serena tarde; ora quebradas de montanhas que deixavam os olhos prolongar-se por sobre ricos docéis de verdura, pelos declives além; ora cristalinas águas que, escapando de entre grossos matacões, se despenhavam aqui, ali, borbulhantes cascatas riscando de branco a negra pedra, sumindo-se em escuras fendas ou sem mais ruído caindo de imensa altura, como se devoradas pelo abismo.

As sombras cobriam já as profundezas do vale que muito ao longe, lá embaixo, de quando em quando, divisávamos; galgavam apressadas as primeiras dobras da montanha, ao passo que alguns raios descorados de sol tingiam de purpurinos reflexos as franças das árvores no topo da serra.

Havíamos caminhado mais de três léguas e temíamos que a noite nos apanhasse nessas brenhas.

Com o cair do crepúsculo, subimos rampa tão íngreme que tivemos de pôr pé em terra e fazer quase como nossas cavalgaduras, vencê-la de quatro patas.

Era também o último degrau antes de alcançarmos o planalto que coroa nessa parte a extensa cadeia.

Pouco depois, na verdade, pisávamos terreno plano, silicoso, coberto de cerrados, pelos quais ia meio apagada e cheia de voltas medrosa vereda.

Cercava-nos enfim noite fechada, quando por entre a folhagem vimos brilhar umas fogueiras...

Era o final da nossa viagem; era o repouso, não para uma noite, mas para dias, semanas e talvez meses.

Era o descanso, a tranquilidade, a vida! Era o sossego depois de tantas atribulações; a quietação, depois de tamanho movimento!

Como nos foi grata aquela chegada!

Havíamos cumprido com nossas instruções e cumprido a poder de sacrifícios penosos, verdadeira abnegação da existência.

Demos tudo por bem empregado.

Essa gente, coitada refugiada há mais de ano naquelas anfractuosidades, depois de horrorosos padecimentos, sem notícias do resto do mundo, crendo-se diariamente ameaçada em sua vida, sem esperanças de socorro, sem imaginá-lo possível, acolheu-nos como anjos baixados do céu.

Rodeavam-nos, apertavam-nos as mãos, indagavam mil coisas, queriam todos a um tempo contar suas desgraças, abraçavam-se uns aos outros, e, felicitando-se pela próxima salvação e volta aos usurpados lares, mostravam-se pasmos por termos transpostos os temidos pantanais.

Já presa do sono, ainda balbuciávamos respostas a sôfregas perguntas.

X

O RIO AQUIDAUANA E SUAS BELEZAS.

No dia seguinte, depois de uma excelente noite,começamos logo o relatório que devíamos enviar ao coronel comandante.

Narrando-lhe todos os transes por que tínhamos passado, declarávamos absolutamente impossível o levantar-se o acampamento do Coxim antes dos primeiros dias de maio e sem se ter reunido alguma cavalhada para a pega do gado, abundantíssimo em todos aqueles pontos, mas completamente alçado, bravio, ou como lá chamam, orelhudo*.

Metida a correspondência dentro de um tubo de taquaruçu bem lacrado, despachamos os irmãos Campos Leite para que, seguindo as nossas pisadas e retificando-as, alcançassem em 12 dias o rio Taquari.

Três semanas depois estavam de volta. Nossos esforços haviam merecido o mais lisonjeiro aplauso, manifestado em brilhante ordem do dia da coluna, ficando-nos determinada a estada nos Morros até que as forças conseguissem transpor, na época aconselhada, a linha dos pantanais.

Assim, pois, fomos com vagar explorar o rio Aquidauana; com todo o segredo preparamos canoas para a passagem do caudal, limite então da região ocupada e vigiada pelos paraguaios e recolhemo-nos ao sossego, hospedados no rancho de palha do nosso amigo João Pacheco de Almeida.

Quão belo é aquele rio Aquidauana!

Confluente volumoso do Miranda, rola águas puríssimas entre margens alcantiladas e cobertas de vigorosa vegetação na qual avultam os elegantes taquaruçus a formarem pitorescos maciços, donde se alteiam elevadas macaubeiras.

As mais belas paisagens mostram-se em seu percurso; as mais animadas cenas formam-se em suas vizinhanças, povoadas de toda a casta de animais.

Há perspectivas de uma novidade de aspecto encantadora.

Na porção ainda encachoeirada e acima do porto, onde os paraguaios tinham o seu primeiro posto de observação, porto denominado do Souza — que tal se chamava o dono da fazenda usurpada — o rio, descendo em rápida corredeira, morre de repente numa larga bacia, aberta com singular regularidade no côncavo de barrancas cortadas a pique.

Ali dormem as águas: círculos ligeiros mal encrespam a superfície — impulsos últimos da correnteza — e em ondulações concêntricas, cada vez mais apagadas, vão desaparecer de encontro à margem.

Ora a brisa geme na delicada folhagem dos taquaruçus e brinca sobre as águas; ora é o vento que, vergando os flexíveis colmos, aviva aquela cena com harmonias mais grandiosas.

Quando, acompanhando o rio, nos dirigíamos para o porto do Souza, ora embarcados, ora pelas matas, mas sempre com a maior cautela para não acordarmos as suspeitas dos paraguaios, assim a vimos.

Então no alto da escarpada borda estremeciam as árvores aos embates de forte sopro: as flexuosas canas enroscavam-se umas nas outras; emaranhavam-se; torciam-se frementes, levando às vezes os topos às copas das macaúbas, outras abatendo-os até ao chão.

Perturbado em sua serenidade, de quando em quando refletia o lago o sombrio das nuvens que orlavam o azul celeste das abertas por onde o sol estirava raios destacados e de brilho ofuscador.

Centenares de pássaros esvoaçavam; uns tocados pelo vento com as asas meio encolhidas; outros cortando com voo firme os revoltos ares. Brincavam muitas marrequinhas n’água, sobre a qual velozes deslizavam-se brancas garças, ao passo que lontras faziam reluzir ao sol o lustroso pelo, mergulhando de contínuo e nadando com ligeireza.

Tudo aquilo gritava, tudo aquilo piava, unindo mil vozes diversas, produzindo mil sons diferentes, que combinados davam ao quadro a animação e vida só próprias dos painéis saídos das mãos do Supremo Artista.

Outra vez vimos essa bacia debaixo de novo aspecto.

Tudo era calma, tudo silêncio: as águas não se moviam; as árvores não se mexiam.

Luz deslumbrante penetrava tudo; calor abrasador abatia e enervava as forças.

Iluminada em seus mais sombrios recantos, não tinha a mataria mistérios; no lago as areias reluziam como que em imensa taça de esmeraldina linfa, que cardumes de dourados e prateados peixes — símbolo do mutismo — cortavam d'um lado e d'outro.

Explorado o Aquidauana numas 12 léguas, e escolhido o ponto de passagem para entrarem as nossas forças na zona ainda invadida, voltamos aos Morros e aí nos conservamos, conforme as ordens, até 2 de julho de 1866.

XI

INFLUÊNCIA DE UM PÉ DE MAXIXE NA AMIZADE DE DOIS HOMENS.

Deveras divertida e boa foi a vida que desfrutamos no; meio daqueles refugiados, cujas plantações de milho, arroz, feijão, abóboras e hortaliças, feitas no seio da mata virgem acudiam a todas as necessidades com providencial feracidade.

As casinhas encravadas na floresta e junto a copioso córrego eram de palha de carandá, feitas às pressas e como que a medo, entretanto que palacetes, comparadas com nossas esburacadas barracas!

Depois de muitos terrores, e rebates de inimigo repetidamente falsos, que, com tudo, faziam às carreiras abandonar o que com tanto custo fora encetado, gozavam então de mais calma de espírito e sossego os moradores da suspeitosa povoação.

Logo em princípio, quando, fugidos da vila de Miranda se meteram pelas matas, seus padecimentos haviam sido inúmeros; esfarrapados, quase nus, homens, mulheres, crianças e velhos, acostumados ao bem estar, viviam dos alimentos que parcamente lhes dava a natureza silvestre ou do que podiam a peso de ouro comprar aos índios.

No meio do desânimo geral, houve, porém, alguns mais decididos que cuidaram logo de fazer roçados e preparar elementos para melhorarem de existência, e não contentes com o que podia oferecer-lhes simplesmente a terra desciam à noite do alto da montanha e iam na planície apanhar reses para o corte.

Numa dessas arriscadas expedições, João Pacheco, o nosso hóspede, agarrou uma galinha e logo após um galo.

Quando a petulante ave soltou pela primeira vez no acampamento dos refugiados o estridente cocoricó, houve tal pânico, que vários trataram logo de buscar mais fundas brenhas.

Uma velha exclamou:

— Este galo é paraguaio e está chamando os patrícios. Se não o matarem já, estamos todos perdidos.

O horóscopo não se cumpriu, e um ano depois a prole daquele primeiro casal de galináceos era coisa de pasmar. Havia mirandense que tinha mais de duzentas cabeças de criação, de uma variedade notável só conhecida em S. Paulo e Mato Grosso e chamada pampa. A plumagem é toda branca, de alvura puríssima com reflexos metálicos, destacando-se aqui, acolá sobre esse fundo uniforme uma pena negra ou avermelhada, muitas vezes única na cabeça, cauda ou asas. É coisa lindíssima.

Como havia fartura, costumava à nossa mesa figurarem quase diariamente os descendentes daquele histórico galo, acompanhados de variadas hortaliças, de que há tantos meses havíamos estado radicalmente privados. De fato recebíamos frequentes presentes de abóboras, chuchu, quiabos, couves e até certos condimentos.

O sal custava caro: oito mil réis uma colher rasa de sopa.

Numa ocasião ofertaram-nos um grande prato de maxixes. Presenteava-nos o Sr. Cardoso Guaporé, coletor da vila de Miranda, quando se dera a invasão paraguaia.

João Pacheco de Almeida, em cujo rancho nos hospedávamos, ao ver aqueles maxixes, descorou de despeito.

Saiu como um corisco e daí a minutos discutia calorosamente com o coletor:

— O pé de maxixe é meu: fui eu quem o plantou.

— Concordo, replicava o outro, mas alastrou para meu lado.

— Pois amanhã vou rebatê-lo para o meu.

— Não pode fazer isso.

— Oh! se posso...

— Não pode...

E as vozes se erguiam ao diapasão de formal altercação.

Tive que intervir e dirigir-me ao local, onde verifiquei que com efeito o maxixeiro nascera na roça aberta por João Pacheco, mas, passando por baixo do cercado de Cardoso Guaporé, caminhara por terras deste.

Decidi que ambos tirariam razoável usufruto. Aceitaram a sentença... mas nunca mais voltaram às boas. Era uma amizade rota para sempre!

Aos índios terenas ficara incumbido darem-nos carne. Alta noite desciam da montanha com um ou mais bois mansos; percorriam a várzea; laçavam reses bravias e, encambulhando-as com as outras, vinham tocando pelas fragosidades da serra as juntas até ao nosso acampamento.

Aí as amarravam pelos chifres às árvores mais possante e, degolando-as sucessivamente com intervalo de um dia, preparavam a excelente carne que tem o nome de carne de vento ou de sol, pois ao vento e ao sol secam as finíssimas tiras e mantas que sabem cortar.

XII

ENQUANTO FRUÍAMOS VIDA REGALADA, PATINHAVAM AS FORÇAS NOS PANTANAIS DE MIRANDA.

De fevereiro a abril correra firme e seco o tempo, de modo que o caminho do pantanal fora se desalagando e permitindo trânsito mais ou menos cômodo aos estafetas que, de quinze em quinze dias, despedíamos para o Coxim.

À vista de tão boas notícias, o comandante Galvão, já então brigadeiro graduado, não duvidou demorar mais a marcha para o distrito de Miranda e, dividindo a coluna em duas brigadas, à frente da primeira partiu do acampamento do Coxim a 25 de abril. Chegado no dia 8 de maio à margem direita do rio Negro, esperou pela 2.ª brigada, mas infelizmente já então se haviam de todo mudado as condições atmosféricas.

Romperam chuvas inopinadas, chuvas torrenciais de dia e de noite; os pantanais subiram; as águas cresceram, e em meados daquele terrível mês de maio, a coluna reunida toda e reforçada de mais um batalhão de voluntários vindo de Goiás*, achou-se ilhada num teso mais enxuto e cercado de banhados invadeáveis.

O que ali sofreram de fome, desespero, prostração, ansiedade, moléstias e terror, não pode ser imaginado.

Vagens de jatobá e cocos foram o alimento exclusivo de quase 3.000 pessoas durante oito tremendos e intermináveis dias.

E nenhuma esperança luzia ao longe.

Mais dois engenheiros, Chichorro e Fragoso, atiraram-se pelos banhados afora a procurar saída para tão horrorosa situação e nada puderam conseguir. Retrocederam; ambos atacados de beribéri, um para nunca mais se levantar, outro mais forte tendo que buscar dois meses depois na pronta retirada o único meio de escapar da morte.

Escoou-se assim o mês de maio; assim decorreram os primeiros dias de junho. Os aguaceiros foram escasseando; raiou sol violento, mas os pantanais continuavam impraticáveis.

Galvão não pode resistir a tantos abalos e a 13 de junho exalou a alma de velho e pundonoroso guerreiro.

Cumpria tomar uma resolução qualquer. A 24 daquele mês a coluna deu um verdadeiro arranco; meteu-se pela água e capinzais, e veio rompendo seu caminho.

Num ponto encontrou umas trinta braças de vasa sem fundo: era o pantanal da Madre. Por todos os lados era lama, lama visguenta, traiçoeira, lama fétida, negra e insondável.

Por cima de um estivado coberto de feixes de capim que os engenheiros foram atirando à medida que avançavam, passou a testa da coluna, mas a cauda... essa encontrou tudo atolado, perdido, desmanchado e, louca de desespero, sôfrega, irrefletida, atirou-se num verdadeiro pélago de lodo. O que se passou ali foi indescritível. Gente ficou enterrada até ao pescoço dentro do lamaçal e nunca mais de lá se moveu; carretas afundaram-se; mulheres perderam seus filhos, e o lúbrico abismo devorou calado mais de uma centena de vítimas.

Adiante reproduziram-se as mesmas cenas: era o pantanal da Cangalha.

Afinal, depois de dez dias dessa marcha verdadeiramente fantástica, pode a coluna alcançar o suspirado Taboco, a bota do pantanal, mas... em que estado, Santo Deus de Misericórdia! Homens quase nus, esquálidos, mortos de fome e de cansaço, verdadeira tropa de maltrapilhos!...

E viam-se pelo acampamento soldados imundos, andrajosos, mendigando... sim, mendigando de seus oficiais alguma roupa com que se cobrirem — alguma coisa que comer!

A disciplina cedia o passo à compaixão, mas, que gente aquela da expedição de Mato Grosso!...

Bastava um mês de abundância, um mês de descanso e alegria, e todas as desgraças há pouco suportadas eram esquecidas, eliminadas do pensamento; retemperava-se a fibra patriótica, e os projetos mais ambiciosos, de mais difícil realização, de pronto nasciam naqueles homens, que a mão da desgraça nunca pode de todo acurvar e abater.

Honra a esses Brasileiros!

Honra aos filhos de S. Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso!

XIII

REAPARECEM OS IRMÃOS CAMPOS LEITE.

No Taboco, reunimo-nos, eu e o Lago, à coluna e durante muitos meses, sem perder de vista os irmãos Campos Leite, pelos quais sentia quase que grata afeição, não me achei em imediato contato com eles.

De vez em quando, nas marchas que as forças fizeram do Taboco ao rio Aquidauana, daí à vila Miranda, de Miranda a Nioac, descendo sempre para o Sul da província e fronteira do Apa a ir atacar em seu território os paraguaios, nessas marchas que nos consumiram mais de dez meses, quando eu passava pelo intitulado corpo de cavalaria, via Alexandre e Martinho, juntos, caminhando um ao lado do outro mui galhardamente, apesar das enormes trouxas, que como mochilas carregavam às costas.

Nas funções de engenheiro militar que até certo ponto me dispensavam do rigorismo da vida de fileira, pus sempre tal qual empenho em conseguir a simpatia dos soldados que se achavam mais chegados a mim.

Eis porque quando em marcha os chamava pelo nome, colhendo um tanto as rédeas ao animal que cavalgava, para mim se voltavam ambos e, depois da continência, me encaravam senão risonhos — os homens da solidão dificilmente sorriem — pelo menos com ar de quem encara um rosto que lhe não é desagradável.

— Então, Alexandre, olá Martinho, disse-lhes eu um dia, vamos com gosto para o Apa?

— Pudera, Vossa Senhoria, respondeu por ambos o primeiro, chegou desta feita a vez do castelhano.

Essa hora havia com efeito soado.

A fazenda da Machorra, os fortes de Oliva, Rela-Vista e Rinconada, tomados e entregues às chamas, a fronteira devastada, o Apa transposto, foram justas represálias levadas da zona brasileira ao território paraguaio e que marcaram os primeiros passos da nossa coluna, por seu turno invasora. Uma vez conseguido aquele resultado que assinalava agressão, e na incerteza do que lá ia pela grande guerra do Sul, — que notícias do resto do mundo, não tínhamos uns bons cinco meses atrás — fora de prudência retroceder.

Outros destinos, porém, nos aguardavam e, penetrando mais de 3 léguas em terras da república e perdendo quase um mês de irreparável tempo, foram nossas forças acampar na invernada de uma fazenda do ditador Solano López, chamada Laguna.

Ali decorridos ainda seis dias em vacilações, reconheceu o comandante* a indeclinável necessidade de quanto antes tocar em retirada. Mal nos chegava o gado para duas semanas de marcha sossegada; impossível nos era buscar outro, e, perseguidos pelo inimigo, como tudo fazia presumir, muito mais tempo havia de ser preciso para a conclusão do movimento retrógrado, começado para lá da fronteira.

Antes, porém, de recuar, quis o coronel Camisão desmascarar a força inimiga que nos observava, acampada légua e meia para lá da Laguna e dispôs tudo para um ataque vigoroso e repentino.

Tinha sido marcado para a manhã do dia 5 de Maio, mas medonha tormenta, tão violenta que a todos assombrou, fez adiá-lo para o dia seguinte.

XIV

METE-SE DE PERMEIO O TEMPORAL.

Quem assistiu ao furacão da noite de 4 de maio de 1867: naquelas solidões do norte do Paraguai, há de por força ter dele imorredoura recordação.

Fora o dia abrasador, sucedendo a outros de profunda calma, em que se respirava um ar rarefeito e incômodo aos pulmões. O sol ardente, algumas semanas atrás, aparecera de manhã como rubro disco, iluminando uma atmosfera incinerada e turva e produzindo um mormaço de encadear os olhos e para o qual não havia sombra possível.

Os pastos estavam requeimados, o chão calcinado, os dois córregos, entre os quais ficava nosso acampamento, reduzidos a fios lânguidos de morosa linfa.

De repente, no meio do dia ergueu-se um vento forte e cálido, como baforada de gigantesco forno, que, limpando o firmamento, deixou ver um acúmulo de nuvens enormes, bronzeadas, compactas e que, formadas de há dias, agora vinham, como cedendo ao peso, a descer sobre a terra.

Expandindo-se e ganhando espaço, quais temerosas falanges a se prepararem para a luta, não tardou que por trás delas se ocultasse o sol, cuja luz radiosa fimbriava de cores rutilantes as bordas recortadas daquele monstruoso véu.

Contraste grandioso! Ao oriente, o azul puríssimo, esse azul que deixa o olhar como que perscrutar o infinito; ao ocidente uma cordilheira negrejante de contornos arredondados, que se erguia, empolava, bojava com sinistra lentidão, a ocupar toda a abóbada celeste.

Amainou o vento, caiu de todo, e um ronco longínquo ecoou, enquanto os bulcões mais se aproximavam de terra com viso ameaçador. Às 5 horas da tarde, tudo escureceu, não com as trevas suaves, que o crepúsculo insinua gradualmente, porém de súbito, como que por imposição.

Entretanto o ciclone não arrebentou logo, e nessa espera, que durou horas, a natureza sentia-se angustiada, ofegante debaixo daquela terrífica ameaça. Lufadas de vento sopravam com intermitências; as árvores tremiam, e as barracas oscilavam com violência.

A escuridão tornou-se intensa, o calor um sofrimento atroz.

Afinal uma língua de fogo correu de um ponto a outro do horizonte e grossas gotas de chuva bateram no solo compassadas e pesadas.

Foi o sinal.

Daí a minutos estavam os elementos todos em conflagração.

Uma ventania furiosa, ondas de chuva, relâmpagos medonhos, trovões incessantes, formavam um conjunto pavoroso.

Os raios caíam bem no meio do acampamento, atraídos pelas peças de artilharia; fulminavam soldados e com os contrachoques nos derrubavam por terra, embora sentados e encolhidos debaixo do capote varado pela chuva. Não houve barraca que aguentasse, quando árvores possantes eram torcidas, arrancadas do solo e atiradas como projetis. Tudo voou pelos ares.

Daí a instantes, aqueles córregos, que antes eram ressecados valos, rugiam furiosos e, não podendo dar mais vazão às águas, transbordavam, inundando o acampamento e levando em desordenada carreira pedras enormes e alentados troncos.

Para aumentar o horror, nossas guardas avançadas, vendo ou pretendendo ver à luz dos relâmpagos que se cruzavam e como que se despedaçavam uns de encontro aos outros, desfazendo-se em deslumbrantes faíscas, vendo os paraguaios avançar, no meio daquele embate de clarões puseram-se a fazer fogo, de modo que a fuzilaria dos homens enchia os raros intervalos, em que se não ouvia o ribombar ensurdecedor dos céus.

Debaixo daquela descomunal tormenta, formaram-se à pressa os batalhões, ficando muitos soldados com água pela cintura.

E assim se esperou a madrugada.

E quando luziu o dia, toda aquela natureza, sacudida, revolta, esmagada, abatida, parecia como que atônita de ver o final de semelhante convulsão.

Também daí a horas, os caudalosos córregos foram diminuindo, diminuindo de volume e turvos e barrentos reduziram-se pouco mais ou menos ao que eram na véspera. Na tarde de 5, houve repetição das mesmas peripécias, mas com muito menos violência, de modo que o ataque projetado ao misterioso acampamento paraguaio foi definitivamente marcado para a alvorada seguinte.

XV

AVANÇAR PARA RECUAR.

Por esplêndida manhã, a 6 de maio de 1867, fez-se o reconhecimento até ao ponto em que se mantinha de observação o inimigo.

Foram o batalhão 21 de infantaria e o corpo de cavalaria de Mato Grosso, 400 homens no máximo, que, imprudentemente arriscados, tiveram que arcar com o grosso da gente paraguaia, talvez superior a mil cavaleiros bem montados.

Todas as fases de tão desigual encontro, presenciei-as eu do alto da colina que dominava ao longe as cercanias, e era deveras de entusiasmar, era de abalar o coração mais frio, de inflamar o mais inerte temperamento ver aqueles dois quadrados apoiados um no outro por um canto, como dois dados de jogar, a se moverem compassada e sistematicamente numa vasta campina ondulada e envolvidos por massas de cavalaria.

De vez em quando serpeava uma faísca em torno deles, e uma nuvem azulada coroava os dois pequenos grupos. Não se ouvia estampido algum, mas os cavaleiros abriam espaço e à disparada corriam de um lado e de outro.

Então os quadrados ganhavam terreno.

À distancia de meia légua, nós, do cume do outeiro, interviemos no pleito e, debaixo da parábola das granadas La-Hitte, os batalhões brasileiros, carregados de despojos e cumprido plenamente o seu fim, recolheram-se ao nosso acampamento.

Os irmãos Campos Leite pertenciam a um dos corpos atacantes.

Foi tal o procedimento deles que conseguirão menção honrosa na parte do combate, e quanto esforço não precisam desenvolver simples e obscuros soldados para sobressaírem do comum dos companheiros?!

A vitória pertencera-nos sem contestação, mas urgia, partir.

Escasseavam os alimentos, e em derredor avultavam os inimigos.

Na madrugada de 8 de maio, pôs-se a coluna em movimento.

Começava a retirada.

Se houve porém operação de guerra que se iniciasse debaixo de excelentes auspícios foi sem dúvida essa. O moral dos soldados estava exaltado, possuídos todos do que era a exata expressão da verdade: havíamos avançado, quebrando resistências e recuávamos por nossa muito livre vontade.

O corpo de cavalaria fazia a vanguarda.

Encetava-se então essa anabase gloriosa e lúgubre que em outro estilo, em condições e circunstâncias diferentes, deixei já narrada e que, sob o titulo de Retirada da Laguna, será pela história registrada entre os feitos de coragem e resignação que honram a humanidade.

Ali o plano era vasto, subordinado a um pensamento primordial: salvar da niilificação do esquecimento atos de heroísmo praticados por brasileiros — aqui, no desenvolvimento deste episódio, verídico em todas as suas partes, mas sem pretensão histórica, antes desataviada e singela narrativa, a intenção é mui diversa: contar àqueles que me leem — e poucos serão sem dúvida — um sublime rasgo de dedicação fraternal de que fui testemunha e que me deixou profunda e eterna impressão.

XVI

OS COMBATES.

O primeiro ataque dos paraguaios à frente da coluna em retirada foi violento e bem combinado.

Emboscados em cerrado matagal que guarnecia o declive de uma chapada cortada pelo caminho, aí esperavam nossa vanguarda, acolhendo-a quase à queima com roupa com nutrida descarga, cujas balas, foram empregar-se num grupo lateral de mulheres e crianças, que nos acompanhavam, gravando o peso da bagagem.

Não tiveram porém tempo de carregar as armas. Os brasileiros atiraram-se para dentro do mato e os desalojaram com inesperada prontidão.

É que esses infantes de ocasião corriam a buscar os cavalos guardados no alto da chapada pelos companheiros.

Chegam; apressadamente cavalgam, ao passo que os nossos, em linha desordenada e impelidos pelo ardor da perseguição, continuam a tiroteá-los, já então em campo raso.

Debalde o comandante grita: debalde brada, alto!

De propósito cedem os paraguaios terreno; juntam-se; formam esquadrões; voltam rédeas; novamente recuam, até que de repente se precipitam em furiosa carga mais de duzentos cavaleiros sobre uma linha singela, sem apoio nem consistência.

Foi um movimento terrível.

Não esmorecem os nossos: compreendera de relance o desastre: alguns congregam-se em círculo, outros em grupos de cinco e seis; estes fazem fogo isoladamente, aqueles correm para os centros de resistência; aqui caem lanceados; ali lutam de baioneta em punho, e a grita selvática dos paraguaios sobreleva por cima do crepitar intenso do tiroteio.

Muitos brasileiros regam com seu sangue o ingrata solo do Paraguai.

Não faltam rasgos de valor destacados.

Uma mulher apanha a clavina do marido morto e, disparando-a por vezes, defende a vida de um filhinho de colo que depositara no chão.

Os dois Campos Leite haviam ficado perdidos no campo. Uns paraguaios vinham a meio galope sobre eles. Felizmente a macega era muita, alta e seca.

Fora insânia resistir — não tinham senão dois cartuchos — melhor talvez correr, aproveitando a distância que se interpunha ainda.

Então se abaixa Alexandre, e lança fogo ao capim requeimado dos ardores do sol e faz incontinente irromper ingente labareda — muralha ígnea — que, alargando-se logo, caminha ao encontro dos atacantes.

Estes param, mas no mesmo instante dois rolam de cavalo abaixo, fulminados pelas balas certeiras dos sertanejos.

Colunas de fumaça enovelam-se densas e, a poder delas, esgueirando-se de gatinhas, rentes com o chão, vão os dois ter aos núcleos de maior resistência e com sua presença aumentá-la ainda mais.

Logo após chegava reforço: a artilharia metia-se em posição e varria o campo de paraguaios.

Assim começou o trabalhoso dia de 8 de maio. Sempre a combater, foi que chegamos à noite.

No dia seguinte, nova peleja, encontros repelidos, mas a coluna brasileira acampou em Bela-Vista, margem esquerda do rio Apa, mostrando ao inimigo que sabia romper caminho através das balas e passando por cima dos cadáveres daqueles que procuravam embargar-lhe o trânsito.

XVII

CONTRAPOSIÇÕES.

No dia 11 de maio, depois de transposto o Apa, os paraguaios fizeram um esforço decisivo.

Reuniram toda a cavalaria de que dispunham e a jogaram francamente sobre os nossos quadrados.

O choque foi violento; a luta durou menos de um quarto de hora, mas tanto bastou para que alastrassem o campo, em que nos conservamos unidos e firmes, perto de duzentos corpos, cinquenta brasileiros, o resto paraguaios.

Ah! esses dias de combates, de carnificina eram também os de animação e esperanças!

Poder lutar corpo a corpo, braço a braço com o inimigo, repeli-lo, trocar balas, ouvir a voz sonora dos bronzes da artilharia, enviar a morte e senti-la esvoaçar por perto, tudo isso, toda essa tormenta, todo esse fragor abala, incita, atordoa e avigora.

O espírito agita-se; tudo é novidade; os episódios multiplicam-se; subdivide-se a atenção; todas as fibras d’alma retesadas pela comoção vibram enérgicas; mil sentimentos encontrados a empuxam, a torturam, a exaltam, a sublimam, e uma venda de sangue escurece-nos os olhos.

Os momentos são solenes.

O hino nacional que retumba como voz ingente da pátria; as bandeiras desfraldadas, os tambores e cornetas que ferem o ares com agudo estrugido; a pólvora que embriaga; o exemplo dos companheiros; o orgulho em sentir no peito coragem, quando a vida depende de um pedacinho de chumbo e milhares deles voam por todos os lados, tudo forma um conjunto que de modo indelével impressiona a quem entra pela primeira vez em fogo e recebe o batismo de sangue.

Parece até que o céu se ilumina de súbitos fulgores e que de lá vem baixando a glória.

Ilusões! Tristes ilusões!

Quem de relance as perde, é o ferido.

Pobre dele!

Clama, ninguém o atende; geme, ninguém o consola. Atirado no meio do campo, de rosto, quantas vezes! voltado para o sol, curte os horrores de uma sede intolerável e repentina. Semi-morto, receia morrer de todo; conta as balas que lhe passam por perto; ouve-lhes o sinistro sibilo e de cada vez seu corpo mutilado estremece de dor e de medo. Procura escapar da morte que o abraça e, se lhe restam forças, tenta arrastar-se em busca de socorro, sobre as mãos, se já não tem pés, sobre o ventre, se já não tem nem pés nem mãos.

Com igual pavor vai seu olhar desvairado do amigo para o inimigo. Com efeito ambos o pisaram na ocasião; calcá-lo-ão às patas de seus cavalos, quebrar-lhe-ão os ossos com as rodas de suas artilherias.

Então aquele céu que para o combatente rutila e deslumbra, para ele, infeliz, que se esvai em sangue, é o tenebroso fundo em que se destacam os vultos queridos de uma esposa, uma mãe ou chorosos filhinhos.

Debalde atroam os ares hinos ferozes e guerreiro: ele não ouve senão a canção ou a prece que aprendera em criança e que repete dentro d'alma: último eco do lar a que não voltará mais!

Na rigidez da morte guardam os que tombam fulminados o cunho dos sentimentos que os dominavam: sobrecenho cerrado, lábios contraídos e narinas dilatadas.

Os que morrem, depois de feridos, tem todos, além da expressão do sofrimento último, uns toques sensíveis de calma e benevolência.

Uma vez, percorrendo um campo de ação para ajuizar das perdas inimigas, parei defronte de um moribundo paraguaio.

Era um mocinho branco, imberbe e bem parecido. Tinha ambas as pernas esfrangalhadas por uma bala de artilharia.

Deitou-me um olhar de meiga melancolia e com voz distinta clamou: madre, madre mia!

E no rosto lhe pairava um sorriso de íntima expansão...

XVIII

SUCEDEM-SE OS HORRORES.

De animação e esperanças eram esses dias de lutas e combates!

Depois, chegaram outras, temerosos, em que a desgraça parecia vir de parceria caminhando conosco, como nós também em retirada.

Vieram os dias da fome!

Vieram os dias da sede!

Os dias do fogo na macega dos campos!

Os dias do extravio no sertão desconhecido!

Os dias das dissensões!

Por fim os dias do cólera-morbo!

Todos esses males, numa gradação crescente e depois reunidos, combinados, tremendos em seus golpes, conspiravam para a destruição de todos.

Tantos e tamanhos meios de aniquilamento contra um punhado tão pequeno de homens perdidos no deserto!

O cólera, que horror!

Que propagação!

Que violência! Que sofrer desesperador! E onde os remédios?! Onde os lenitivos para tamanhas dores?!

Era curvar a cabeça e ir andando, andando sempre, que ali estavam quatro bandeiras e quatro canhões que para essa coluna de míseros representavam a única coisa que convinha salvar: a honra.

Atopetados de doentes, agonizantes e mortos iam os carros de artilharia; a cada instante caía gente atacada; não havia mais como levá-la, e entretanto para cima de cem padiolas formavam uma lúgubre procissão que marchava ao som do tiroteio, dos gemidos e lamentações.

E ainda era preciso ir abrindo caminho com os pés pela macega cortadora: varavam-se campos, chapadas, cerrados e matas.

Numa feita fui transmitir várias ordens ao comandante do corpo de cavalaria.

Vi ao braço de uma padiola Alexandre de Campos Leite, em cima estendido seu irmão Martinho.

Perguntei-lhe como ia.

— Mal, respondeu-me ele sombrio.

E acrescentou:

— Como os mais... como todos.

— Desde ontem, disse-me o comandante José Rufino, Alexandre carrega o irmão. Não pede descanso; a cada momento revezam os companheiros, ele não arreda pé.

XIX

COGITAÇÃO TREMENDA, DECISÃO EXTREMA.

Chegou o dia em que todos pareceram condenados.

Já se não contavam os coléricos; era aos centos.

Prender a vida dos ainda válidos aos moribundos ou de um golpe cortar esse laço que para todos era a perdição, tal o problema aterrador que se ergueu, exigindo solução, ante os olhos do coronel Camisão.

Repelir desumanamente do seu seio os infelizes coléricos, brasileiros como nós, companheiros de trabalhos e combates, nossos amigos e irmãos de armas, entregá-los a todo o horror de sua sorte para que ela se completasse fria e implacavelmente; abandoná-los semivivos ao relento, à chuva, ao sol ardente, à sede, ao inimigo, aos urubus, ou esperar que a morte ceifasse a todas, depois de improfícuos esforços, cada vez mais angustiosos — tal o dilema que se apresentou, nas horas de meditação, claro e irremediável ao espírito do comandante.

O coronel Camisão levou uma noite inteira a pensar.

Pensou, ouvindo o tiroteio que de noite as linhas avançadas sustentavam.

Perto da madrugada, mandou chamar os comandante dos corpos.

Tomara sobre si abandonar todos os desgraçados que tolhiam os passos da coluna — doentes e feridos.

Há resoluções que matam.

Dois dias depois também ele expirava...

A fúnebre notícia do abandono correu logo o acampamento, mas por uma espécie de pudor, uns com os outros, falávamos em voz baixa e sumida.

À esquerda demorava frondoso bosque: abriu-se uma clareira larga, para a qual cada batalhão teve que mandar os seus enfermos.

No meio daqueles dolorosos preparativos, sentia o egoísmo renascerem-lhe as forças. Os soldados estavam animados e trabalhavam, com desacostumada atividade. .

— Vocês vão para uma enfermaria nova disse, um deles a modo de consolo a um colérico que inquiria o que lhe iam fazer.

E talvez se risse!

— Estes ficam arquivados, acrescentou outro — e o dito teve aceitação.

Mais de duzentos homens encheram a clareira; mais de duzentos homens que, a se estorcerem de cãibras, pressentiam o funesto plano!

Ao primeiro clarão do dia 26 de maio — que dia! — a força brasileira deu um arranco e deixou o malfadado acampamento.

O que se ouviu então, o que todos nós ouvimos de gritos, imprecações, gemidos, uivos, brados de agonia, de compaixão, clamores sem nome, sem conta, sem fim, o que ouvimos, arrepiava as carnes, fazia sangrar os corações.

E lá íamos, como réprobos, de cabeça baixa, tangidos pelo desespero de ganhar terreno, uma vez aliviadas, da nefanda carga.

Nesse dia fizeram-se três léguas quase de um só fôlego.

No pouso o comandante da cavalaria deu par falta de um homem válido — Alexandre de Campos Leite.

Havia desertado.

XX

UM IRMÃO AO LADO DO OUTRO.

Não podia Alexandre abandonar o irmão. Fora ele quem o levara para o funéreo arquivo, mas de lá não voltara. Oculto por trás de umas árvores, esperou na clareira que só ficassem os moribundos.

Mal deixavam os brasileiros o acampamento, irromperam os paraguaios e, depois de passados uns segundos de espanto, começaram — obra de caridade, ou indigna carnificina — a espingardear os desventurados coléricos.

O espetáculo era atroz.

Uns levantavam-se hirtos e caíam traspassados; outros coziam-se com o chão e de rastos procuravam meter-se pela mata adentro.

Aqui um grupo aos brados pedia a morte; ali, outros imploravam misericórdia; uns tentavam defender-se, atirando pedras e insultos; estes corriam loucos de medo, aqueles rolavam nas vascas da agonia... o tiroteio fervia bárbaro e medonho!

Alexandre sé teve tempo de suspender nos braços o irmão e embrenhar-se no mato, curvado ao peso daquele corpo querido.

— Água! Água! bradava Martinho. Dê-me água e salve-se você.

Ali perto felizmente lentejava um lagrimal. Com folhas largas apanhou Alexandre uma boa porção de pura linfa que os lábios do enfermo, gretados de ânsia, acolheram com sofreguidão.

Depois lhe veio o frio, e o irmão despiu-se quase todo para lhe dar as roupas e procurar manter o calor que fugia dos membros retorcidos pelas cãibras.

As horas, porém, iam passando.

No fundo daquele bosque não se ouvia mais que o arfar do colérico abraçado ao irmão; ambos silenciosos, mudos, mas compreendendo-se intimamente. Numa dor profunda, imensurável; noutro a gratidão e a consciência de que ele também assim faria se os papéis se houvessem trocado.

Martinho sossegou um pouco.

Alexandre foi, então, observar o campo.

Saiu da mata e suas vistas ao longe devassaram o descampado.

Tudo era tranquilidade.

No ponto onde fora ter, um cordão de capões orlava extensa várzea.

Então lhe fuzilou pelo espírito uma ideia que fez brilhar de orgulho e alegria os negros olhos: salvar o irmão só por si; buscar novamente a coluna e surdir no meio dela com aquele que havia sido tão cruamente repudiado.

Voltou ao lugar em que deixara Martinho e, sem lhe dizer palavra, levantou-o e carregou-o aos ombros.

Começou a caminhar; entrou em campo raso e, rasgando trilha com os pés pelo capim alto e cortante, lá se foi de bosque em bosque, arfando de cansaço.

De vez em quando, depositando a carga, ia reconhecer os sinais da retirada; um cadáver aqui, outro acolá, gente que fora ficando à retaguarda e que o inimigo matara logo.

Sem comer, nem beber, caminhou o dia inteiro e nem uma légua venceu. Ao cair da tarde, tomou fôlego à beira de um límpido córrego.

Naquela imensidade, iluminada pelos reflexos rubros do sol que já se fora, só ele vivo.

Martinho agonizava.

Estava, porém, calmo e com o olhar acariciava o rosto do irmão inclinado sobre ele.

Afinal exalou o último suspiro.

Então do peito daquele homem do deserto, daquele sertanejo que nunca havia chorado, rompeu um golfão de lágrimas...

XXI

ÚLTIMO DEVER.

Alexandre com o sabre abriu uma cova funda, e depositando nela aquele a quem tanto havia estremecido e respeitado no mundo, fincou em cima uma cruz de pau tosco, mas durador.

A noite de todo caíra...

*

*    *

No dia seguinte o desertor alcançou a coluna junto ao rio Miranda e foi logo apresentar-se ao comandante do corpo, diante do qual, estando eu presente, em breves palavras contou o que fizera e pediu singelamente castigo para sua falta.

FIM

 

A VINGANÇA DE UM RECRUTA

NARRATIVA DE UM SARGENTO DE VOLUNTÁRIOS DA BAÍA

I

Cruz, minha Nossa Senhora da Puríssima Conceição! Vida de recruta é pior que de cachorro magro e sem dono. Parece mesmo que a gente fica mais perrengue do que bicho gafento: tudo ataranta, tudo tonteia!... E depois, todo o santo dia, desde a primeira barra da madrugada, quando o toque de alarma arranca o soldado do mais gostoso do sono, até horas de silêncio, é uma gritaria de meus pecados: Anda, recruta! A marche-marche! Recruta para cá, recruta para lá! Quando não é: Ó diabo, ó cachorro e uma máquina sem conta de xingamentos e palavradas.

Qual! meus amigos, é coisa de virar de uma vez o juízo mais seguro, e sempre digo e direi que se pusessem aquelas doutorezinhos da corte do Rio de Janeiro na escola de passo e na barafunda de um batalhão, nos primeiros tempos haviam de ficar tontos e assarapantados que nem morcegos ao meio dia.

Olhem, não é para me gabar, pois não sou dado a pacholices, mas nunca passei por tolo; aprendi a ler e escrever corrente: sei as quatro regras assim, assim; tive alguma educação que meu pai e minha mãe puderam dar-me, nem meto vergonha à Bahia que é terra de rapazes sacudidos; pois bem, naquela temporada de serviço, eu andava tão assustadiço e anarquizado* que a mim mesmo mal conhecia. Também é coisa de soberbar um homem de estudos ...

Melhormente que eu sabem todos vocês, como foi aquela história de voluntários da pátria. Parecia que no Brasil se levantava um furacão tão forte que sacudia os homens mais pacatos das comodidades da vida e num redemoinho os pinchava para terras que quase ninguém conhecia, nem sequer de nome. E cá para mim tenho que o López com tal nunca contou, pois se malmente tivesse desconfiado, não se metia de gorro conosco. Mas, qual! precipitou-se; deu com a cabeça pelas paredes e a baianada do norte e mais os guascas do Rio Grande botaram-se pelo mar afora a ir dar cabo do Paraguai.

Não padece dúvida que sofremos o inferno em vida, comemos o pão que o diabo amassou, que muitos e muitos coitados nunca mais viram o Brasil, nossa boa terra, mas com a breca! digam lá o que quiserem, aquilo deveras foi bonito. Ferviam discursos e versalhadas; repiques de sinos e foguetes enchiam os ares; o hino nacional urrava por dá cá aquela palha, tudo parecia ter perdido a cabeça de entusiasmo, e a mocidade, dando vivas ao Imperador, corria de chusma para a campanha.

Não, por Deus, nem que eu viva mais cem anos, nunca hei de ver coisa assim!

É verdade que uns, calculistas, torciam o corpo; outros, medrosos, disparavam para o mato, mas a maior parte mostrava que o homem sempre é homem.

Muito bem. Nesse tempo de confusão, que havia de ser princípios do ano de 1865 de Nosso Senhor Jesus Cristo, concebido sem pecado, estava eu em Itapororocas, para as bandas da Feira de Santa Ana onde nasci e recebi as águas do batismo como bom cristão e baiano que sou, pois pode haver outros de mais talentos e leitura, mas de mais amor e patriotismo duvido, porque pela minha terra dou de barato sangue e dinheiro, como já provei; estava eu cuidando da rocinha da minha boa velha e ninguém se intrometia comigo por ser corrente na lei que, como filho único e por cima bem procedido de mulher viúva, tinha isenções e proteção e de qualquer recrutamento estava livre e bem livre.

Lá quanto a isso estava.

Também quase todos os dias ia a meu gosto e muito desimpedido à povoação, que moramos arredados umas duas léguas, por sinal que de beiço, e só ouvia falar em guerra, guerra e mais guerra. Diziam que os paraguaios — aí é que comecei a ouvir falar nessa gente — tinham entrado pelo Brasil adentro do lado do Mato Grosso e naquela nossa província pintavam o padre Simão, matando velhos, mulheres e crianças, queimando pessoas vivas, degolando enfermos, arrasando povoados, roubando gados e botando as igrejas ao chão, sem temor de Deus nem dos homens.

Aquilo a princípio me deu tamanha sacudidela e, para falar a verdade, me meteu tamanho susto que por vezes de noite cheguei a pular do jirau em que dormia, todo frio de medo como se visse a casa de meus pais já cercada por aqueles malvados, minha mãe morta e as irmãs desrespeitadas; mas depois, aos poucos, fui me possuindo, me enraivando, e quando do povoado voltava para o sítio, vinha com os ouvidos numa zoeira e a cara em fogo.

Tudo que me contavam, eu logo contava à velha.

— Ah! gente desalmada! dizia ela com muitos suspiros e fazendo o pelo sinal, Deus há de dar-lhes o pago. Do céu é que virá a vingança...

— Nós também, lhe retruquei duma feita, temos que tomar desforra por nossas mãos. Bem certo não mente o ditado: Fia-te na virgem e não corras e verás o tombo que levas. No meu entender, tudo quanto é brasileiro devia pegar em armas e ir enxotar aquela canalhada dos terrenos do Império.

Aí a mãezinha, coitada! teve um estremeção.

— Tonico, Tonico, disse ela já chorando, não fales deste modo; não penses mais nessa maldita pendência. Desarmem os que a armaram. Nós cá nada temos com isso.

— Ué, minha mãe, então como? Pois havemos de deixar nossos irmãos daquela província morrerem a patadas de cavalo e nós metidos na redinha, a desfrutarmos a vida?! E se o inimigo estivesse batendo na Feira de Santa Ana?

— O caso é outro, filho de minha alma. Não deves buscar barulho onde não és chamado. Tens que cuidar de tua família, que já não é pouco. Tuas irmãs vão ficando moças e eu cada vez mais quebrada. Que queres fazer? Partir, não é? Deixar-nos ao desamparo para ir batalhar, com aqueles homens que não tem fé nem lei? Entrar por esses fundos sertões a buscar gente com quem puxar briga de morte ou meter-te em barcos de vela como eu vi, da vez que fui à Bahia de S. Salvador... e depois levar uma bala. Ah! Tonico! Tem pena de mim!

Fiquei cismando e respondi:

— O que for, soará. Deus Nosso Senhor é quem sabe!

Daquela vez, porém, ou pelo abalo que me fizera a mãe ou por qualquer outra razão, pus-me mais sossegadinho e, para fugir à tentação, uns meses áfios* não saí do sítio.

Deitou o milho espigame grosso; recolhi feijão a valer, arroz de encher a tulha; limpei o laranjal todo da erva de passarinho e cortei o canavial, trabalhando com pouco descanso de sol a sol, porque via que a terra ia ajudando-me a boa vontade.

Nessa ocasião, tendo uma bonita carga de bananas de S. Tomé que vender, dei um pulo até Santa Ana.

Pasmei de uma vez.

Estava tudo num rebuliço. O estafeta da Bahia acabava de chegar quente naquela hora, e os boletos vinham cheios de combates, tiroteios, mortes de brasileiros e bravatas de paraguaios.

Ora vejam só... Aí é que eu soube que a guerra roncava ainda e cada vez mais no Sul, que muitos batalhões de voluntários já tinham marchado da Bahia e de todas as partes do Brasil, mas que a gente não chegava, que o governo e o Imperador pediam mais e mais, dizendo que o inimigo era muito, que ninguém tinha contado com tanto, e mais isto e mais aquilo, enfim um nunca acabar.

E todos se admiravam de ver-me tão fora de novidades que giravam já até pelos sertões brabos* e entravam por toda a parte.

Também o canto em que eu vivia era tão quietinho!...

Podia o mundo meter-se pelo fundo dos mares a dentro que, se as águas lá não chegassem, o sítio do Fortunato (assim se chamava defunto meu pai, filho legítimo de Domiciano da Silva por alcunha Cabeça de nós todos) não dava fé da desgraça.

Mas ao ouvir tudo que me liam nos jornais, meu sangue fervia! Pois aqueles malditos ainda faziam das suas e nos desfeiteavam?

Oh! a coisa era séria, tão séria que o Imperador, o próprio Imperador, tinha saído de seus paços e da Corte, deixando cômodos, família, negócios do Estado e o mais, para correr em socorro de outra província atacada, invadida e estraçalhada!

Aí eu disse com os meus botões.

— Tonico, veja bem que até o monarca marchou para a guerra... Ou você é homem ou não é... Isto assim não vai bem...

Por enquanto porém nada resolvia.

Eis senão quando aparece em Santa Ana uma ideia de formar duas companhias de voluntários, só de filhos daquela boa terra. Ui! o governo prometia mundos e fundos, moeda de prata e ouro, honrarias, empregos, mil coisas em suma e a um tempo; só faltava dizer que quem de pronto se apresentasse, acabada a guerra, havia de ser comendador ou barão. Os graúdos do lugar davam dinheiro, roupa, montaria, comezaina; engabelavam a gente; obrigavam-se a tomar conta das famílias; dar-lhes proteção e, no caso de desgraça, até pensões... sobretudo trabalhavam de língua que era um Deus nos acuda.

Coisa assim nunca vi.

Entrei a parafusar cá comigo e pelo caminho todo fui batalhando com o pensamento; vou ou não vou? Às vezes tomava uma resolução firme, mas daí a um nadinha passavam-me pela lembrança a mãe, as irmãs e até a prima Joaninha e ficava fraco e mole que nem pau de acajá.

Nessa luta entrei em casa com cara de quem quer fazer alguma coisa que remói na cachola, mas não pode decidir-se, e assim por muitos dias.

A velha, no meio de suas falas e amorosos ralhos, deitava lágrimas sem conta e trazia o oratório aberto e alumiado, porque já me via perdido, furado de lado a lado, sem pernas, sem braços nem cabeça.

Numa bela manhã surdiu-nos no terreiro D. Tomásia, nossa vizinha umas duas léguas além e meio apatacada, que vinha visitar-nos e, que mal apeada do burrinho em que se encarapitava, pôs-se logo a bater língua no negócio de voluntários da pátria. Deixei-me ficar fora de casa, mas botei todo o sentido no que estavam lá dentro conversando.

Dizia D. Tomásia:

Este ano, minhas ricas, é ano de calamidades. A guerra está cada vez mais acesa e vamos todos caminhando para uma grande desgraça...

— Minha Nossa Senhora, gemeu a família toda.

— É o que lhes digo... Marcham os homens para bater os inimigos e nós mulheres cá ficamos ao desamparo, sujeitas a muitos desaforos...

Reparem vocês que a cuja, além de velha, era feia que nem um bando de corujas.

— Há de haver grandes desordens. Quanto a mim, mudo-me quanto antes para a Cachoeira. Ao menos numa cidade não hão de, assim com duas razões, faltar-me ao respeito, como de certo acontecerá por cá nestes buracões.

— E seu sobrinho? perguntou minha mãe.

— Quem? O Valentim? Nem me fale nesse patife. Aquilo é um ingratatão: criei-o com tanto mimo e carinho  — era mentira — para que o malvado saísse de casa às escondidas e fosse, muito de seu agrado, apresentar-se voluntário... Voluntário da pátria!... bonita carreira!... Leve ele o diabo!

— Isso, D. Tomásia, é da mocidade...

— Qual mocidade... diga vadiação, peraltice... sem vergonhismo!...

— Pois meu filho, que sempre foi bem procedido, anda também com essas caraminholas na cabeça e agora...

— Que me diz? Seu filho?... atalhou a bruxa. Ora mais esta!... Então não há mais consideração alguma? Os criançolas de ontem metidos a rabequistas! Sabe a senhora o que deve fazer? Agarre-o hoje mesmo e mande-o já e já para longe, para bem longe daqui... Fosse o Valentim filho meu, que havia de ver... A senhora não tem um irmão em Campo Largo, além da Vila da Barra? Pois bem, empurre-o para lá com uma carta de recomendação... Quero ver se o governo e as influências de rapaziada hão de tirá-lo daqueles socavões...

Minha mãe, que em toda a sua vida mostrou muito juízo, respondeu:

— Qual, D. Tomásia, Tonico tem vinte e três anos... é já um homem.

— Então fique para nos proteger... Não quero ver-me em termos de ser insultada... Quem sabe se os carcamanos que cruzam estas estradas não hão de vir aos magotes fazer das suas, roubarem e... nem em tal falemos, Santíssimo Sacramento do Altar!

A coisa noutra ocasião dava deveras para tomar-se uma barrigada de riso, mas naquele momento levantou-se dentro de mim uma raiva, uma raiva tão grande, que de um pulo me achei na Feira de Santa Ana.

Parece que tinha asas nos pés.

II

Nessa tarde, abri de mansinho a porta de casa, dei um passo para dentro, quis falar, mas não pude.

Sentia um nó na garganta.

A velha — ainda me lembro como se fosse hoje — estava cosendo, as manas faziam crivo, e no fundo prima Joaninha arrumava a louça na prateleira, pois, à espera do ingrato que tanto as amofinava, tinham demorado a merenda.

Minha mãe levantou os olhos, topou comigo e soltou, um grito.

— Meu filho! Meu filho! Tu vais para a guerra!

E atirando a costura para longe, correu para mim.

— É verdade, mamãe, segundei logo aproveitando a vasa, já sou soldado.

Boca que tal disseste! Pobrezinha da mãe! Pegou-lhe um vágado tão forte, que, se a não amparo nos braços, caía a fio comprido no chão. Depois agarrou num pranto de choro abraçada com as manas e a Joaninha, que era de rachar o coração.

— Que fizeste, Tonico? perguntou ela no meio dos soluços. Quem te mandou ouvir aqueles homens? São uns enganadores e querem a tua morte. Santo Deus de Misericórdia, Nosso Senhor do Bom Jesus da Cana Verde, que vai ser de mim? De mim, sem meu filho, o filho único que vós me destes!

Aí me pus de joelhos a seus pés e com a cabeça no colo dela, juntos choramos um tempão.

Foi então ficando mais quietinha.

Olhem uma coisa, meus camaradas. Isto de pátria parece uma invenção dos homens, uma mentira ou coisa que não existe, nem nunca existiu; mas lá chega uma ocasião e de repente não se sabe como, nem por quê, surde por causa da pátria no coração da gente uma força tão grande que ninguém pode resistir-lhe: o mofino cria coragem; o velho deita esforço de moço; a criança faz-se homem e até a mãe, a própria mãe, manda o filho para a morte.

Tenho cá para mim que a velha sentiu aquele abalo lá dentro. O certo é que, depois de um fartão de choro e lamentações, me encarou já doutro modo e, com os olhos ainda rasos d’água, mas voz quase firme, me disse:

— Tonico, seguiste a tua inspiração; não posso te levar a mal. Deus há de proteger-te. Quanto a nós ficaremos dia e noite rezando para que o Senhor do Bom Fim, o milagroso Senhor, ampare a ti, aos baianos e mais brasileiros. Peço-te porém uma coisa, como filha desta terra da Bahia... Tem a toda hora presente no teu espírito que ela há de sempre ser honrada, custe o que custar... até o sangue todo que te corre nas veias... Tua mãe deita-te a bênção!

E voltando-se para as raparigas que choravam agarradinhas umas as outras:

— Basta de prantos, disse. Agora é tratar da roupa e da matalotagem do homem. Guardemos as lágrimas e preces, para quando ele estiver no meio dos inimigos, batalhando pelo Brasil.

Dito e feito. Nos dias que depois vieram, só se via ela costurando, lavando roupa, engomando, pregando botões, calada, triste, mas de olhos enxutos e eu, todo encolhido como se tivesse feito um crime, com o coração apertado vagava ora pela roça, ora no bananal, ora na estrada de Itapororocas. Parecia que a morte vinha se chegando, se chegando e que eu precisava ir despedindo-me de tudo que me cercava, de tudo que desde em criança conhecia e estimava,

À noite fugia-me o sono da cabeceira e só tinha algum consolo perto de uma nascida d’água muito fresquinha que brota entre palmares por baixo de uma grande pedra.

Numa dessas ocasiões. ia eu saindo devagarzinho, quando ouvi um soluço abafado. Era a velha que estava acordada.

Ah! minha gente! aí não pude conter-me. Chorei como um desgraçado o resto da noite, mas, que coisa esquisita! nem um instante me arrependi do passo que tinha dado.

À mesa do almoço, da janta ou da merenda, mais agoniados ficavam todos. Diante de mim a mãezinha com o rosto tão abatido; ao lado as manas, contra o costume, sem tagarelarem e Joaninha a me olhar ressabiada e com os olhos vermelhos.

— Que será da hora derradeira? pensava eu aturdido.

Essa hora chegou.

Cheia de roupa tinha já a mala, até de lenços bordados; numa toalha, enroladas em farinha de mandioca, duas galinhas assadas; a licença estava a findar... força era partir.

A velha mostrou então ânimo que me pôs pasmo.

Deu-me depressa um abraço e, como que repartindo coragem com quem não a tinha, afastou-me com ternura.

— Vai, Tonico, disse ela tremendo toda, quem cumpre sua obrigação, tem sempre Deus por si.

Apertei-a bem junto ao peito, fiz o mesmo com as raparigas que estalavam de chorar e saí apressado e como tonto.

No terreiro parei e, voltando, corri a beijar a mão daquela que me botou nesta vida.

Aí fui-me embora de uma vez.

III

No caminho andei a princípio um tanto choramingão e macambúzio; depois fiquei mais distraído; pus-me até a cantarolar e no fim ia ligeiro e alegre como passarinho que topa com a porta da gaiola aberta e musca-se fino por estes ares de Cristo afora.

Ingrato bicho é o homem, ingrato sim, porque eu bem sabia que no sítio do Fortunato a tristeza e o desgosto tinham ido assentar pouso... mas que querem? esta é a lei do mundo; todos somos assim e o que a pai e mãe fazemos, hão de os filhos a nós fazer.

Depois de sair da Feira de Sant’Ana, passei pela cidade de S. Amaro, onde muita gente me veio visitar e festejar, como se fosse pessoa conhecida e de importância. Deixei passar meio ganjento aquelas barretadas, mas fui vendo, entre desanimado e satisfeito, que por toda a parte a rapaziada tinha posto o pé adiante de mim e, há muito, estava ganhando um nome ilustre na campanha. A lufa-lufa de voluntários ia já diminuindo, mas assim mesmo muitos ainda se apresentavam, uns assarapantados da decisão, outros influídos e valentaços como eu, até que o peso das armas a todos quebrou o entusiasmo, e a coisa ficou só de ou dente ou queixo.

Afinal chegamos em troça à cidade da Bahia, isto é, de S. Salvador da Bahia de Todos os Santos e aí nos receberam como se faz a figurões.

Aquela gente não cansava de levar voluntários ao embarque, o que eles chamam bota-fora, mas, como finórios, deixavam-se ficar em terra, que é sempre mais segura. Era aparecer um voluntário, e todos punham-se a olhar para ele como para novidade nunca vista. Alguns lá consigo faziam este cálculo: “Bem, enquanto houver desses, não mexem comigo. É preciso entusiasmar os marrecos.” E punham-se a berrar e a dar vivas que por milagre não arrebentavam os bofes.

Muitos capitalistas e pessoas de gravata lavada vinham apertar-me a mão, saber minha graça, indagar de meus negócios particulares, que eu não tinha, querendo ainda mais pagar-me hotel e cerveja e agasalhar-me era suas casas, mas por enquanto fui marchando para o quartel, onde estava o depósito.

Agora, é preciso que eu lhes diga uma coisa: aquela capital de S. Salvador da Bahia de Todos os Santos é coisa de fazer pasmar! Também não admira que meta inveja a tanta gente no mundo e, sem ir muito longe, aos tais senhores pernambucanos que estão sempre a inticar conosco.

Que igrejas, rapazes! E umas ladeiras todas calçadas e casas e mais casas! A vista para o mar é de pôr um homem embasbacado. Ninguém sabe onde acaba aquela água, nem que fundura tem.

A Bahia é dos baianos, sim, senhor! e temos defendido aquela terra e havemos de defendê-la, custe o que custar, contra todos, contra bicudos e gentes da estranja ou sujeitinhos que queiram escravizar o nobre povo do 2 de julho!

Vamos, porém, adiante.

Com os meus botões eu cá dizia: Homem, isto de guerra vai por ora muito bem. Até hoje tem sido pagode grande e vou tirando bem bom proveito, que não é pouco vir ver esta capital assim de meia cara e cheio de honras e rapapés.

Nesse tempo vinham chegando muitos outros voluntários, uns, influídos como eu e que pareciam querer engolir brasas, outros, meio jururus e com um chorozinho no canto do olho.

Tudo ia para o depósito, e lá a gente vivia de mistura com a oficialada numa pândega e só a contar proezas. Havia uns exercícios, mas de cacaracá, pois o tempo era pouco para a parolagem. Também os mais mofinos iam tomando pé, ficando mais consolados e se entusiasmando, de modo que todos o que pediam era atracarem-se a ferro frio com os paraguaios.

E agora lhes digo; alguns mostravam-se valentaços de boca que depois no combate fizeram figura triste; assim o Anacleto, da Cachoeira. Isso era um Roldão na conversa; ninguém lhe punha o pé adiante; prometia dar cabo do López a rasteiras e cabeçadas, que capoeira era ele; mas, chegada a ocasião, quando as balas pipocavam e roncava a artilharia, o bicho ficava branco como cera e por dá cá aquela palha disparava para trás que nem veado campeiro. Levou por isto dos oficiais e sargentos muita pranchada e afinal uma granada furou-o bem no meio das costas. Nem sequer quis a morte olhar para ele.

Chegou, meus amigos, por fim o dia da partida.

O batalhão formou na praça de palácio em linha e fez martelo, por que não cabia todo. Ui! era um nunca acabar de povo e vivas e vivas e mais vivas! Discursada a mais não poder, muito verso, foguetes do ar e repiques de sinos!

Havia uns sujeitinhos de óculos de ouro, barbas lustrosas, cabelo repartido ao meio e metidos numas calças muito apertadinhas, que perdiam a fala de tanto gritar e no papel que liam tragavam o López vivo e inteirinho.

Outros desgrenhados e sujos, enrolados nuns sobretudos e casacões velhos, oravam quase no mesmo sentido, aproveitando a vasa para pedirem que voltássemos da guerra republicanos. Ora, essa só lembra o diabo! Se íamos dar a vida pelo Império...

Levantada estava toda a liberalada, e eu que sempre fui conservador na minha freguesia e a gente de meu lado que é quase toda aquela terra da Bahia, tirando este ou aquele, o Sr. conselheiro Dantas por exemplo, íamos com ela.

Quando o comandante do nosso batalhão viu que a doutorada não queria acabar com suas lengas-lengas e que a lhes fazer a vontade, ficávamos ali empacados dias inteiros, pôs a mão diante da boca e gritou: Batalhão, sentido! Braço armas! Coluna aberta de pelotões frente, à direita! Sobre a esquerda à retaguarda rodar! Ordinário marche!

Hoje para todos nós isto é uma brincadeira. Como sabem, à primeira voz, os comandantes dos pelotões passam logo para a frente; os piões esquerdos volvem à direita, ficando firmes os cerra-filas; os sargentos vão tomar suas posições; rodam os pelotões sobre a retaguarda um quarto de círculo até à voz de alto giram, à frente; perfilam-se pelo primeiro pião e, sem mais matinada, enquanto o demo esfrega um olho, está pronta a coluna aberta de pelotões, direita em frente, frente à direita.

Isto é hoje, meus camaradas; mas naquele tempo tudo era atrapalhação e balbúrdia. Corríamos de um lado para outro: uns rodavam à direita, outros à esquerda, faziam meia-volta estes, aqueles contramarchavam; enfim era uma mexida dos meus pecados. Houve pelotão que quis enfiar pela porta de palácio. Os oficiais berravam: “Ó soldado, vem para cá. Manoel, toca à retaguarda. Tonico, passo adiante!” e aumentavam a confusão porque ensinavam errado, e, coitadinhos, queriam saber muito, quando nada pescavam ainda do riscado, que isto de militança é preciso estar na quitanda para poder ter garbo às deveras e dar vozes de comando com acerto.

IV

Enfim depois de muita trabalheira, arranjou-se o batalhão como pode em coluna de marcha, desfilou e lá se foi para o trapiche de embarque, onde muitos choraram grosso tanto os que partiam, como os que ficavam.

Nem aí desanimaram os doutorecos lustrosos ou os bacharéis cabeludos; prorromperam numa pendência de discursos que cobriam o barulho das músicas, a gritaria dos catraeiros e os assovios dos vapores.

Safa! Aquela gente tem bofes de bronze! E cada qual que acabava olhava para os mais, como se tivesse ali mesmo reduzido a farelo todos os inimigos do Brasil.

Afinal partimos.

Eu mesmo, amigos meus, que lá não tinha parentes nem aderentes, com o que me dei por muito feliz, eu mesmo quando vi o vapor começar a bater o mar e a terra da Bahia, como que recuar, recuar, e depois ir desaparecendo na nevoada distância, fiquei com os olhos escuros e o peito apertado.

Lembrei-me logo da minha gente, da Joaninha, do sítio de meu defunto pai onde sempre vivi sem necessidades nem desgostos, de Itapororocas, da Feira e, apesarado como pomba rola que perdeu o companheiro, fui esconder-me num cantinho.

Tudo andava-me à roda: o estômago parecia subir-me à boca; o coração batia com força, as pernas tremiam, e um suor frio nascia-me da raiz dos cabelos e corria pelas costas abaixo. Era o enjoo.

Houve cristão que não levantou cabeça todo o tempo da viagem, estendido sem movimento, como morto... eu não. Dois dias mais de tontura e fiquei prontinho da Silva. Agora veremos, fome como o diabo! Davam-me comida, pão grande e canecões de café, mas nada me fartava.

Lá numa bela manhã, de repente anunciaram: “Estamos no Rio de Janeiro!”

Oh! Senhor! Quando olhei ao redor de mim, deixei cair o queixo. Que vista! Que montanhas! E à esquerda uma cidade com casarias pelos morros abaixo e acima, e o Sol, que vinha nascendo, parecia estar sacudindo pó de ouro em cima de tudo aquilo, desde a ponta do Corcovado até à serra dos Órgãos, que azuleja lá bem no fundo.

Naquela mesma hora pulou a bordo Sua Majestade, o Imperador. Quando vi chegando aquele homenzarrão, senti um estremecimento grande, porque se somos livres, e já se acabou o tempo da tirania e dos capitães generais, também somos monarquistas. E demais ele é muito boa pessoa e sabe ser brasileiro às direitas.

Depois, nas batalhas, quantas vezes ouvi soldados valentes gritarem na agonia: “Viva o Imperador!” dizendo assim, num brado último àquele homem, adeus para sempre a pai e mãe, à família e à terra em que nasceu!

No Rio de Janeiro... oh! aquilo é que é cidade. Não quero, nem por sombra, desfazer na Bahia, que de tal não sou capaz, nem que me rachem de meio a meio, mas a Corte... é mais bonita, muito mais bonita. Também pudera! os homens que serram de cima lá se empoleiram e, à custa de favores e rios de dinheiro, fazem daquilo uma coisa imensa. Dessem a estátua do largo do Rocio à Bahia; a Misericórdia a Pernambuco; o Hospício de Pedro II à Paraíba; a Casa da Moeda ao Ceará, e veriam se o Norte não punha tudo num chinelo!

V

Mas — como ia contando — no Rio de Janeiro, o batalhão de voluntários que vinha embarcado, foi logo para o quartel da Armação. Quanto a mim e mais cinquenta companheiros avulsos e agregados, mandaram-nos para o depósito de recrutas no Campo de Sant'Ana e aí o negócio começou a mudar de figura.

A oficialidade era apertada, e a gente pouco descansava.

Andávamos numa dobadoura de serviço e meio bambos.

— Também, dizia eu para o Valentim — o sobrinho de D. Tomásia que encontrei daquela feita e para animá-lo um bocadinho, que o cujo era bem fraquinho — também guerra não é pagode. É preciso aturar muita coisa... e isto agora ainda não é nada.

Nessa temporada, muitos rapazes arrependeram-se das patriotadas; não havia, porém, mais remédio. Qualquer coisinha levava a gente para dentro do xadrez, quando não era faxina dobrada, ou correr duas horas a marche-marche com a mochila cheia de areia ou fazer sentinela de sarilho de armas às costas. Chegou-se até a falar em quadrado e espada de prancha. Cruz!

Quanto ao filho do velho, andava fino como lã de cágado, Não cochilava um minuto e de noite bem podia dizer que fechava só um olho para dormir. Era ver um oficialzinho, por alferes que fosse, dava logo um pulo, de pé, perfilado, com o braço esquerdo caído e a mão direita na aba do meu chapéu de voluntário.

Comigo não queria histórias, nem dúvidas. Sem andar com risotas nem — como se diz — com o caniço sempre n’água, a todos mostrava cara alegre desde o anspeçada até o brigada e o vago-mestre, sem esquecer meus sargentos de companhia.

Desde a manhã até à noite não havia tempo de enxugar o suor do rosto: exercícios e mais exercícios. Escola de passo, de pelotão, manobras de batalhão... era um nunca acabar.

Aí embarcamos de uma vez para o Paraguai num vapor que era um mundo, mas onde a gente ia que nem sardinha em tigela. Mas, enfim, como ainda não tinham aparecido aquelas moléstias que a bordo fizeram depois tanto cidadão esticar a canela, sem que o cirurgião soubesse ao certo de que, se tifo, se cólera-morbo ou febre perniciosa, o geral parecia mais ou menos contente, embora alguns se queixassem.

Uns resmungavam que o café andava frio; outros que a bolacha de tão dura quebrava os dentes ou que a ração era pouca; este que lhe tinham furtado o capote, aquele um dinheirinho, porque no meio de nós havia de tudo, mas isso mesmo era baixinho e não como na viagem da Bahia à Corte em que todos falavam grosso, como oficial de divisa graúda.

Agora é preciso que lhes conte um caiporismo meu e mais do Valentim e de meia dúzia de camaradas da Feira de Sant’Ana. Quando saímos de S. Salvador, o batalhão baiano de voluntários estava já completo, de maneira que vínhamos, nós outros, como agregados. Aí pegaram a dizer que havíamos de ir para a 1.ª linha e um churrilho de coisas que eu ouvia com cara de riso, mas cá por dentro me alvoroçavam bastante.

Quanto ao amigo Valentim, esse perdeu logo os estribos.

— Que será de nós? perguntava-me ele assombrado. Se nos botam num batalhão de linha, estamos perdidos sem remissão.

— Ora deixe-se disso, lhe respondia eu. O diabo não é tão feio como se pinta, e demais ninguém sabe do futuro. Na 1.ª linha ou nos voluntários, a coisa é não afrouxar nas suas obrigações...

— Qual, Tonico, me disse uma vez o Valentim depois dessas conversas, tenho um pressentimento; não volto mais para a Bahia. Vim buscar minha morte...

— Então para que veio? Não foi por vontade de D. Tomásia...

— Mas foi por causa dela. Nunca tive jeito nem gosto para a vida de soldado; andava, porém, tão amofinado em casa de minha tia que, dia e noite, me atirava à cara o agasalho e a comida que me dava, que aproveitei esta ocasião.

— E fez muito bem. Não tem de que se arrepender. Tome coragem; não seja criança.

— Qual... eu morro mesmo.

Como sempre fui decidido, retruquei logo sem dar vasa a choradeiras:

— E que tem que morra? Pode ser que sim, mas pode ser que não. Então o Sr. Valentim queria ficar para semente, não é? Ora, faça pela vida, e a morte verá que não somos uns carneirinhos que se levam aos trambolhões para o matadouro.

Mas eu...

— Qual, mas! Ponha o coração à larga e deixe correr o barco.

VI

Tanto correu que chegou a Montevidéu, pátria dos gringos e cidade bonita e grande, mas que naquela ocasião vimos por um óculo. Disseram-me uma coisa que a princípio não quis acreditar, mas que depois vi com estes olhos que a terra há de comer. É que aquela gente toda tem uma raiva de brasileiro tão acesa que nada pode apagar. Nascem com essa raiva; com ela se criam, ficam velhos e morrem e sempre danados conosco. Podem dizer-se amigos nossos quantas vezes quiserem ou quantas lhes for de vantagem; no fundo está fervendo aquele furor, aquela ojeriza e malquerença, ajuntadas, como dinheiro a prêmio, desde em criancinhas. Pois eu cá nunca me importei com eles. São republicanos, lá se entendam; não devem querer meter o bedelho em país de monarquistas. Cada qual manda na sua casa como quer e a governa a seu sabor e como melhor lhe convenha: o mais é desaforo e pouco respeito.

Na volta da guerra, amigos, pus pé em terra e pude apreciar assim por alto Montevidéu, porque para conhecê-la bem, só depois de muitas semanas de estada descansada. Ali é que vi pela primeira vez os tais serenos, que andam à noite pelas ruas a gritar: são 10 horas, 11, meia-noite, e assim por diante, tempo bom, tempo mau, isto aquilo, aquilo outro! tudo num berreiro que não deixa a gente sossegar. Assim é que fazem a polícia de lá.

Parece que é um arranjo para não dormirem. Como eles tem obrigação de ver as horas a cada instante e de avisar o povo do que se passa lá por cima no céu, ficam alerta, achando distração naquela maçante cantoria. Contou-me um gaiato que, quando vão ficando velhos, se reformam; mas assim mesmo, tanta é a força do hábito, que, ainda deitados em suas camas, de momento a momento levantam a cabeça e gritam as horas, erradas, porém, e desencontradas.

Sabem o que há de mais bonito naquela terra? Pois são as senhoritas, que assim se chamam as moças solteiras. Caramba! como lá dizem, é de a gente não ter bastantes olhos. São umas raparigas, alvas como espigas de capim, desempenadas e sacudidas, cheias de laçarotes vermelhos, azuis e verdes, com um andar muito chibante e um cabecear de pôr os homens tontos. E andam pelas ruas sozinhas, noite e dia, rindo-se para os tafuis, entrando nas confeitarias, comendo doces e balas, saindo aos bandos, todas com uma mantilha muito chic na cabeça e ombros, leques muito grandes na mão, todas lindas, coradas e com cinturas finas como marimbondos. Pai e mãe nunca se os veem: os velhos estão na campanha fazendo revoluções contra o governo; as mulheres de mais idade em casa preparando o puchero, que é uma palangana de ossos e legumes um tanto gostosa... quando a gente tem fome.

Voltando à vaca fria, a propósito do tal prato, mal tomei tento na navegação, e o vapor que nos levava já estava batendo o Paraná, cujas águas se abrem largas e azuis que nem águas de mar alto. Disse-me um mineiro, homem aliás de palavra e sisudo, que ele em Guayaz passara esse mesmo rio pulando umas pedrinhas aqui e acolá, mas não me dei por convencido... só vendo!

Toca, pois, a viajar; toca a viajar! Deveras o Paraguai pôs-se longe para brigar.

A vida não era, para que digamos, má. Comia-se menos mal; o tempo estava sereno e calmo, e o vapor, nem que quisesse, poderia jogar; mas aquela certeza de que a gente ia, minuto por minuto, chegando-se cada vez mais do perigo e depois a conversa com o Valentim me giravam tanto na cachola que alta noite me aconteceu, nem uma nem duas, mas muitas, perder o sono de todo e então pôr-me a cismar horas seguidas, encostado à amurada do navio, o que não era de reparar, pois dormia no chão, bem encostadinho a ela.

Que saudades me ralavam o coração naquelas horas! O luar parecia-me embaciado e triste, e o céu claro e sem nuvens não me falava senão de agonias.

Deveras ali é que fraqueei. Nunca, nunca mais, nem no entrevero ou no fogo, nem nas avançadas, nem nos hospitais de sangue e de coléricos, nem sofrendo injustiças, nem curtindo sedes e fomes, nem ao frio, à chuva, ao sol de rachar, nunca, nunca mais senti aquele abatimento, aquele desgosto de tudo, aqueles arrependimentos e desassossego.

Também quando me vinham esses acessos, forcejava por não entregar o espírito à tristura. Disfarçava, assoviava baixinho alguma chula engraçada e tratava de agarrar o sono, mal me passasse pelos olhos. Melancolia é como doença em tempo de epidemia; quem cede com o corpo de pronto deve ir cuidando do testamento.

Num dia ouvi um oficial de marinha dizer: “Aqui é que foi a batalha de Riachuelo.“

Arregalei o olho e botei os lúzios na barranca. Parecia que estava vendo toda aquela imensa trabuzana.

Que pena ter perdido tão boa ocasião! Paciência! Paciência! Estávamos todos assanhados, como que com fome de paraguaios: depois veio a fartura, e a festança durou muitíssimo mais do que queriam os convidados. Chegou inimigo para quem quis vê-lo de perto, e muitos que falavam em varar o mundo com a baioneta, ficaram varados e lá se foram desta para melhor, fazendo caretas ao diabo.

VII

Um dia afinal chegamos ao exército. Deixem ver se me lembro, pelo menos do mês. Foi... foi em dezembro daquele ano de 1865, em que López tinha vindo puxar briga conosco.

Estavam os brasileiros acampados no lugar chamado Lagoa Brava, para cá do grande rio Paraná que devíamos atravessar para irmos conversar a ponta de lança e tiros de canhão com os tais amiguinhos do Paraguai, também republicanos como os sujeitos do Rio da Prata, naquela ocasião muito nossos aluados e coisas e loisas, porque queriam encher-se com o dinheiro do Brasil que ali corria a rodo.

O general em chefe era o nosso Osório, pois nunca fiz conta do tal Sr. Mitre, um argentino alto, magro, de pernas e cabelos compridos, que andava de um lado para outro sem rumo, montado todo curvo num cavalão tordilho-queimado.

O Osório, sim, era o homem para tudo, sempre na frente de todos, homem do fogo, da ação e que parece mesmo ter nascido para levar tropa ao ponto mais renhido dos combates. E no meio de toda a sua nobreza, que no seguiria campanha o fizeram barão, visconde, marquês e não sei mais o quê, sempre muito dado com todos, sem soberba nenhuma, sem impostura, às vezes até coisa demasiada.

Numa feita estava ele revistando os postos da vanguarda —  isto muito depois de minha chegada, tanto que eu era já 2.° sargento — e parando no lugar em que ficávamos, bem na linha da frente, começaram os paraguaios a fazer fogo, não às tontas e com muito barulho, mas pausado e certeiro, coisa mais perigosa que um bombardeio de cinco horas a fio. Aí o Osório — diabo do guasca! — pôs-se a olhar a cavalo como viera, muito sossegadinho. Como estávamos fora da forma, eu por abelhudo lhe disse: “S. Ex., os paraguaios estão lhe vendo e fazendo pontaria.” Que me havia de responder o velho? “Então, Sr. tolo, você acha que não mereço essa honra?“ O certo é que nenhuma bala acertou nele e quem pagou o pato foi o Chico Fernandes, um cearense, que levou um chumbaço bem no meio da testa e virou de pernas para o ar.

Tornando, porém, à nossa história, mal desembarcamos, foi a gente baiana espalhada pelos batalhões 46 de voluntários, comandada pelo tenente-coronel Lourenço de Araújo e 16.°, também de voluntários, do nosso Joaquim Maurício Ferreira, que a Bahia toda conhece e aprecia.

Quanto a mim, fui cair no 26 do Ceará, voluntários todos e filhos do Norte. Fiquei meio desconsolado, longe de minha rapaziada; mas vi logo que os companheiros pela maior parte eram de mão cheia, sérios e bons, bons para brigar. Também tinham à sua frente o Sr. tenente-coronel Figueira de Melo, que Deus haja, comandante carrancudo, mas justiceiro e que no fogo nunca encolheu os ombros. Coitado! Morreu de bala brasileira, quando voltava da ronda às linhas avançadas. Vão ver que a sentinela que lhe disparou o tiro ou estava cochilando ou alerta de mais.

Pois bem, quando na primeira noite que passei no acampamento e que por exceção e fora da quadra era bastante fria, me achei dentro da barraquinha que me deram para repartir com o Valentim e que, se não fosse um cabo de esquadra velho, nós dois nunca chegaríamos a pôr de pé, ou como lá dizem, a armar, tive deveras pena de ter chegado tão tarde.

Por todos os lados, só se viam batalhões de voluntários luzidos e de encher o olho, e eu... não passava de um recruta...

O Valentim estava todo encarangado de frio e medo.

— Ó Tonico, me perguntou ele, você ainda não está arrependido?

— Qual, homem, nunca! respondi-lhe.

— E este frio... como há de ser?

— O Estado não lhe deu um capote grosso? Embrulhe- se bem...

Ah! Tonico, recomeçou ele depois de uma pausa. Que barulho! Estou com uma zoada na cabeça! Nunca pensei que um acampamento fosse assim!

Eu mesmo estava bastante atordoado, mas para dar força ao rapaz me fiz de valentaço.

— Então como havia de ser? No fogo é que serão elas. Por enquanto é só pancadaria de músicas e tambores.

Dizia a língua o que o coração não sentia. A verdade é que naquele dia de desembarque andei também com a cachola numa roncaria, num zumbido, como se fosse um cortiço de abelhas mandaçaias.

Aquele movimento de tropas, aqueles chamados contínuos de cornetas e clarins, aqueles rufos de tambores, oficiais a galope, batalhões a manobrarem, bandeiras por toda a parte, e ao longe assim uma trovoada surda que era artilharia, tudo me atordoava por tal modo que duas ou três vezes tonteei, como se fosse a perder os sentidos.

No comércio então o zumzum não parava. Havia barracas de madeira que pareciam armazéns de uma grande cidade com muita coisa bonita exposta à venda, até sedas de preço e leques de senhoras, e as chinas por ali andavam, muito bem aparamentadas e arrastando as barras dos vestidos no lodo e no pó. Mulheres à-toa, um bando...

— O que me mata, continuou o Valentim, são as saudades da Gertrudes. Você não a conhece, Tonico. É tão bonita que não há quem lhe ponha os olhos em cima sem ficar logo rendido.

— Bravo! Logo vi que nesse seu desespero entrava rabo-de-saia.

— Minha tia foi bem maldosa comigo. Nunca quis ir entender-se com o pai. Só dizia que eu não tinha ofício nem benefício.., que não me via préstimo para nada...

— A razão parece-me boa... E o tal pai era endinheirado?

— Quanto a isso não... a maior riqueza era mesmo a Gertrudes. Enfim, depois de casados, havíamos de ver meios de viver... Você não acha?

No escuro fiz uma careta.

— E agora estar metido nesta arapuca!... Se ao menos tivesse certeza que encontrava a Gertrudes ainda solteira, acabada esta maldita guerra!... Sabe você, Tonico, quanta tempo pode ela demorar?

— Quem? perguntei a modo de debique, a Gertrudes solteira?

— Não, não, pelo amor de Deus! A guerra, a guerra, esta malvada guerra!

— Nós dois ainda não demos um tiro sequer! Permita Deus que não finde sem que eu descarregue uns bons pares de vezes a reiuna que me puseram nas mãos.

— Minha Gertrudes! suspirou o pobre do Valentim. Feliz de quem não ama, como você, Tonico.

Pareceu-me assim no momento que a barraca ficava mais clara e que os olhos da Joaninha, entre sérios e caçoístas, estavam a fitar-me, como que à espera de resposta. Quis também abrir o meu coração, mas senti certo acanhamento e respondi meio enfarruscado:

— Nunca tive tempo para isso!...

Estávamos desse modo dando de língua, eu e o Valentim, quando tocou silêncio, que ainda não distinguíamos, nem pensávamos nunca poder conhecer, porque todos os sinais de corneta para nós se baralhavam numa confusão dos seiscentos mil diabos.

Nisso alguém de fora bateu com uma vara no pano da barraca e gritou:

— Calem a boca, recrutas. Não ouvirão o toque de corneta?

Aí ficamos quietinhos, encolhidos, sem dizer mais palavra, ambos, porém, acordados. Parece até que o Valentim entrou a chorar e a bater o queixo de frio.

Atentei então que o ruído dos acampamentos serenara de repente. Só de vez era quando se ouvia um tiro ou outro das sentinelas, que faziam fogo nos bombeiros* paraguaios.

VIII

No dia seguinte logo pela madrugada meteram-me na 6.ª companhia e para mal de meus pecados travei conhecimento com o sargento da mesma, Marçal de Araújo.

Comecei então num sarilho* danado. Faxina a todas as horas do dia, porque, na qualidade de recruta, todo o mundo fazia de mim seu criado ou, para falar às direitas, seu gato-sapato, desde os sargentos, passando pelo furriel, cabos e anspeçadas, até os soldados velhos, e, o que cheirava a desaforo, muitos, só por terem seis meses de praça, me tratavam como se tivessem feito com o Caxias a guerra do Rosas em 51.

Então o tal sargento não me deixava pôr pé em ramo verde, e, como tudo neste globo vai de simpatias e caiporismos, o Valentim caiu-lhe na graça e eu, o filho do meu pai, no mais tremendo desagrado.

A razão nunca descobri.

Esse homem, o Marçal, era de primeira linha e sabia escrituração e manobras de batalhão como gente, tanto assim que o comandante da companhia, o Sr. capitão Eulálio, não mexia uma palha sem consultar com o cujo, e vocês bem sabem que numa companhia o sargento é o tombo de tudo, quanto mais com voluntários. Não havia ninguém como ele para riscar um mapa e destrinchar uma relação de mostra. Era, numa palavra, um tebas e com o expediente que tinha, se quisesse podia atirar poeira nos olhos de muito sujeito de letras.

Comigo é que, apenas me viu, implicou logo. Tudo quanto havia de mais pesado no serviço caía por cima de  mim. Todo o santo dia era um cortar e carregar sem fim de feixes e mais feixes de macega seca, de ramos e galhos de árvores para as barracas e caramanchões dos senhores oficiais. Nem sequer me restava tempo para cuidar um pouco mais de minha comida e, como sempre fui quituteiro e amigo de petiscos, nisso é que sofria bastante.

Quando então me punham de sentinela, podia contar com o mofo* que me pregavam com toda a frescura e sem consciência alguma, e lá ficava o pobre do Tonico Maldonado horas seguidas nas armas.

Paciência do meu lado era mato.

— Hei de vencer este sargento de uma figa! dizia eu para me dar coragem.

Um dia por uma coisinha de nada, chamou-me ele de relaxado. Resmunguei, mas levei logo um berro que me pôs tonto.

— Diga mais uma palavrinha, gritou o Marçal, e você me paga com língua de palmo. Atrevido!

Abaixei os olhos e não piei.

— Ó recruta, avisou-me uns quinze dias depois o anspeçada Malagrida — praça de muita estimação e que morreu na batalha de 24 de maio de um lançaço no alto do peito — você tome tento; no andar que leva, o sargento Marçal bota-o no quadrado.

Fiquei com o coração miúdo e a custo perguntei:

— A mim, santo Deus? Que fiz para merecer esse castigo?

— Você é quem pode saber...

— Palavra que não sei, Sr. anspeçada; mas agora me diga, o Sr. que é homem velho nas fileiras, que diabo tem esse sargento comigo, que não passo de um coitado carregado de esteiras velhas. Mais do que qualquer oficial o respeito eu; não há ordem, por pesada que seja, que me faça respingar; trato de contentá-lo em tudo, e o malvado a me massacrar* sem dó nem piedade!...

— Ele tem gênio forte... não há dúvida... então ojerizando com a gente, cruz! Olhe... Se a coisa apertar muito e tomar assim feição de perseguição, então vá fazer queixa ao Sr. capitão Eulálio...

— Acha que é o meio, anspeçada?...,

O Malagrida que era pessoa de muita experiência voltou logo atrás no conselho.

— Não, me disse ele, bem considerado você por cima perdia, porque a corda arrebenta sempre pelo lado mais fraco. Se não fosse recruta, podia tomar esse expediente, mas novo no batalhão como é, saía-lhe a história às avessas. Vá aturando e deixe passar esta temporada que para todo soldado é de calamidades.

— Até para os voluntários da pátria?

— Ora, pois... Também sem esses sustos e atropelos, o homem não cria nervo de veterano.

— Bem me dizia a velha, mas agora que estou aqui por minha muito livre vontade e contra o juízo de pessoas mais sabidas do que eu, hei de levara cruz ao Calvário.

— É passar estes seis meses de recrutagem. Depois você toma com certeza mais gás, mais traquejo. Vá então pedir ao Sr. comandante Figueira de Melo mudança de companhia e, sem maior novidade, trocam-no logo...

— E se eu pedisse agora?

— Agora? Levava um vu! que voltava chiando para debaixo da canga do Marçal.

— Então esperarei... Seja tudo pelo amor de Deus!

— Espere... espere e ande fino!

Assim falou o Malagrida.

IX

É preciso, entretanto, que eu diga uma coisa: o sargento Marçal era mais ou menos duro com todos.

Muito vermelho, alto, mais gordo do que magro, com mãos e pés grandes, olhos pequenos, cabelos ruivos cortados rentinhos ao casco, uns grandes bigodes e uma pera de palmo e meio, tinha uma cara de poucos amigos. Ninguém podia ao certo dizer pelo quê, mas andava sempre embezerrado.

Alguns mais ladinos e bisbilhoteiros cochichavam que era por não sair oficial, apesar dos muitos anos de serviço na praça, da boa letra que tinha, aprovação no exame d’arma, etc., etc., enfim saber tudo que é do ofício na pontinha da língua, e se esses acertavam, razão de sobra tinha o sargento de viver, noite e dia, enfarruscado com tudo e com todos.

Os meninos bonitos, filhos e parentes dos ricaços e poderosos, iam sendo promovidos a alferes para daí seguirem os postos de oficial, com dois, ou quando muito quatro anos de sargenteação, e lá ficava o nosso Marçal marcando passo porque não tinha proteção nem padrinhos no Quartel-general da Corte, nem cartas de empenho para lembrar os seus serviços e capacidade. E o infeliz nem sequer podia queixar-se a Sua Majestade o Imperador, porque nessa primeira promoção a alferes não há direito que sirva: é só a vontade dos graúdos, o que eles lá chamam merecimento, de maneira que um padecente pode levar caronas e cangalhas* umas por cima das outras, ver o mundo inteiro passar-lhe a perna** e tem de andar com o bico fechadinho e cara de páscoa.

Deveras é para fazer revolução no sangue do ente mais pacato e sofredor, mas culpa não tinha eu, nenhuma, e nesses casos não há que desapertar para a esquerda. Até lhes juro, se estivesse em minhas mãos, aquele diabo  — Deus lhe dê o reino do céu! — aquele diabo era logo promovido, só para me ver sossegado e livre de seus maus tratos e gritarias.

Todo, o dia, todo o santo dia, não parava o bate-barbas.  — Recruta 71 — que eu já nem tinha nome, era número — vá dar água ao cavalo do Sr. major. (Ora o major tinha dois bagageiros; logo dois, contra a lei). N. 74, para a carneação! Anda, cachorro, eu te meto o pau! Toma sentido, malandra, ó safado, baiano sem vergonha... e uma máquina de xingamentos que me anarquisavam*, a mais não poder.

Esses modos foram depressa me desmoralizando, e os outros soldados, pensando que eu não era mais que um bobo, começaram, cada qual por seu lado, a malquistar-me, empurrando serviço para cima de mim.

Aí esturrei e já lhes conto como o caso foi.

Mas me deixem antes tirar uma fumaça.

Ora muito bem! Numa tarde — então o exército tinha avançado para mais perto do rio Paraná e não se falava senão na passagem — os encouraçados e mais navios nossos andavam meio tontos a sondar de um lado para outro e o forte de Itapiru não cessava de fazer fogo contra eles —  numa tarde, pois, mandaram-me, com mais três soldados e um cabo, cortar macega para camas de hospital e, aproveitando uma boa ocasião, tomei uma desforra de mão cheia.

Ia conosco o soldado Jatobá, um malcriadaço de conta, praça muito pernóstica e preguiçosa.

Em chegando fora das linhas do acampamento, como não havia mais medo de paraguaios por ali, cada qual tomou o rumo que bem quis e pôs-se a trabalhar e a cortar feixes de capim seco.

Estava eu a meio do serviço, com as mãos todas feridas, quando o Jatobá veio deitar-se ali mesmo perto e disse para mim, enrolando um cigarro de papel entre os dedos:

Sió reculuta, vancê corte macega para dois, enquanto vou puxando umas fumacinhas.

Ora se ele me tivesse pedido isso como favor e com bons modos, de minha parte não havia dúvida nenhuma, mas... com aqueles ares de mandão, logo lhe respondi:

— Quê?... Ora tire seu cavalo da chuva...

— Ué, retrucou Jatobá com ares de debique. Onde é que se viu reculuta atrevido?

— Pois se não viu, vê hoje...

— Olhe, 71...

— Qual!... é o que lhe digo...

— Faça dois feixes e grandes... e não se encrespe...

— Não faço.. já lhe disse...

— Quem avisa, amigo é...

— Guarde seus avisos e amizades... Quer estar na cancha* à minha custa...

— Tome tento...

— Ora, não me aborreça. Já basta quem pode trazer-me de canto chorado.

— Então, perguntou Jatobá sentando-se e encarando-me muito sério, vancê não corta mesmo macega para mim?

— Não, não e não!

— Veja lá o que diz... Depois não se arrependa...

— Arrepender de quê?...

— Da lição que vai tomar... Sei lidar com burros empacadores...

— E eu ensinar a machos brabos.

Dizendo isto, bambeei o corpo com ar de desafio.

Jatobá ficou olhando-me um bom pedaço, como que assombrado.

— Venha, senhor gabola! gritei duas vezes.

Então ele pulou como um tigre para cima de mim, mas quebrei para a direita e zás! assentei-lhe a cabeça no meio dos peitos com tão boa vontade que o atirei num bolo em cima do meu monte de macega.

— Ó reculuta do inferno, uivou Jatobá deitando fogo pelos olhos e espumando, chegou... chegou hoje o seu dia.

E puxando pela baioneta, avançou contra mim, mas não contou com o capim, e, quando deu o bote, escorregou e focinhou no terreno.

Não perdi tempo.

Tombei com todo o peso do corpo por riba dele e, agarrando-lhe no braço, torci-o com gana até ver cair a baioneta no chão. Aí esmurrei as ventas do canalha e dei-lhe muito pontapé.

Nisto chegou o cabo, que de meia distância assistira à briga.

Então larguei o Jatobá que, sem vergonha nenhuma e mentindo como um tambor relaxado, começou uma choradeira muito grande, dizendo que eu era um matador, e mais isto e mais aquilo, queixando-se da pancadaria que tomara, fazendo valer o sangue que lhe corria dos beiços e dando-se por coisa muito santinha e pacata.

Quanto a mim, deixei-me ficar calado.

— Qual! decidiu o cabo. Foi bem feito. Vancê gosta muito de fugir com o corpo ao trabalho e de puxar briga com os mais. Quis fazer o reculuta de besta e saiu-se mal.

— Não foi não, Sr. cabo.

— Bico calado! Vá para outro lugar acabar seu que fazer.

— Pois bem, dou parte ao sargento Marçal.

— Caia nessa, Sr. mestre, e depois torça as orelhas para ver se dão sangue.

Ah! meus amigos, que alegrão!

Também cortei tanta macega que voltei para o acampamento com um feixe alto como a torre da igreja do Senhor Crucificado, na Feira de Sant’Ana.

Era um mundo!

O sargento Marçal passou por mim; parou um pouco para conhecer quem carregava aquela montanha e disse para o cabo:

— Este recruta foi o único que trabalhou deveras.

Fiquei pasmo e mais pasmo ainda quando o ouvi acrescentar:

— Está dispensado amanha da faxina.

Ah! senhores, o repiquete durou pouco.

Uma semana depois estava eu de novo na berlinda, mas aí já ninguém na companhia queria engraçar-se comigo. O cabo contou a escovação que o Jatobá levara de minha mão, e nenhum soldado, por veterano que fosse, atreveu-se mais a vir pintar-me bigodes na cara com carvão.

O mais engraçado da história é que Jatobá perdeu a baioneta e teve de pagá-la um tempão, pois todos os meses o quartel-mestre descontava-lhe um tanto no soldo para indenizar o Estado, que, em negócios de dívidas nunca perdoa e chega sempre a receber, vintém por vintém, integralmente o que lhe devem.

X

Nesse tempo, como eu já disse, ou, se ainda não disse, digo agora, estava o exército acampado na margem de cá do rio Paraná. Era um mar de água doce, que azulava ou empretecia, conforme se punha o céu ou claro ou carregado. Tudo, comparado com ele, parecia miúdo e pequenino, até as matarias que vistas, contudo, de perto, mostram troncos agigantados e altura de perder-se a conta.

Por ali se estenderam os batalhões em lugar todo encharcado, como terra chata que acaba de ser alagada por enchentes. Montanhas ao longe que alegrão sempre um bocadinho os olhos e dão consolo ao pensamento, nem sinal. Só se via água, água e mais água; água do rio; água dos pântanos; água das lagoas e esteiros, esta às vezes fresquinha e boa, outras levada da carepa e com gosto de lama e ervas daninhas.

Os paraguaios estavam do lado de lá, emboscados no seu Itapiru e Passo da Pátria — como se aquilo tivesse pátria! — e de lá nos convidavam para desembarcarmos a gosto com todas as honras da guerra. O que os incomodava é que a nossa maruja pusesse-se a procurar outro lugar de saltarmos em terra, quando aquela praia era tão boa e comodazinha... para eles. Por isso faziam um fogo furioso nos navios brasileiros.

Aí é que pela primeira vez assisti — de longe — a um bombardeio. De princípio fica o homem assim tolhido, como que a dizer consigo mesmo: Que diabo vim fazer aqui? mas depois vê o arreganho e atrevimento do inimigo e sente uma vontade, um ímpeto tão forte de fazer calar aquelas bocas do inferno, que não pensa em nada mais.

Em combate acontece o mesmo. O que se quer é acabar, acabar de uma vez com a vida dos outros ou até com a própria, negócio sempre de dente ou queixo e de possuir por tal modo o soldado que ele batalha um dia inteiro sem saber como passam as horas, onde está, nem para onde vai. Agora apanhando um ferimento — assim um tanto grave — o caso muda de figura; foge o entusiasmo; sobrevém de repente uma ânsia medonha de sede; escurecem os olhos; suor frio como gelo corre pelo corpo todo, e o medo da morte no meio daqueles estouros, cargas de cavalaria, pó, fumaça, música, cornetas, tambores, rodar de artilharia, foguetes, gemidos e vivas, esse medo é horrível e não há lágrima que não chore o moribundo deitado ao sol na lama e estendido no sangue de um campo de batalha.

Por enquanto, porém, o negócio era pôr o pé na margem paraguaia, mas não no porto que nos ofereciam os tais sujeitinhos, que ninguém, a não ser louco ou deveras estonteado, pega o touro pelas aspas ou o cavalo pelo rabo.

Por isso também vinha todos os dias o general Osório passear perto do rio, onde estava o meu batalhão, e andava de um lado para outro, assim a modo de onça que cheira a praia, antes de se meter dentro d’água.

Quando ele saía do quartel-general e ia passando pelos corpos, davam logo sinal de comando em chefe as cornetas; rufavam os tambores; as sentinelas bradavam às armas e lá aparecia o velho, com sua cara meio risonha, bigode grosso, pera já sal e pimenta, um tanto socado de corpo, montando bem a cavalo, com um pala de listras e chapéu do Chile à cabeça, seguido de um piquete de cavalerianos armados de lanças com bandeirolas riscadas de branco e vermelho.

Ora agora deixe-lhes dizer, amigos, aqueles manos* do Rio Grande do Sul, com as tais lanças de bandeirolas fazem o diabo. Num abrir e fechar de olhos suspendem um cristão, como se fosse uma pena, e o atiram sem mais abalo nas funduras da eternidade. Basta uma pontinha de ferro nas carnes do padecente e lá se vai ele fazendo piruetas no ar, como folha seca ao sopro da ventania. Também o soldado de infantaria que tiver um pouco de sangue frio defende-se de um lançaço com toda a facilidade: é bater, de leve que seja, uma pancadinha e logo lança, cavaleiro e cavalo tomam outra direção e com tanta força que muitas vezes se aboboram era terra e então leva a fisgadela quem parecia querer furar o mundo até ao centro.

Quando o Osório passava pelos acampamentos, havia grande reboliço, e a gente punha-se toda debaixo de forma, à espera de qualquer novidade.

Uma feita, estava o batalhão 26 trabalhando em manobras e pela primeira vez ia eu metido num pelotão, meio aos “trambolhões, porque do riscado pouco entendia ainda.

Íamos marchando em linha, quando apareceu o general. Então o Sr. comandante gritou logo: “Batalhão, alto! Perfilar! Abrir fileiras, marche! Em continência, apresentar armas!”

Rompeu a música; as cornetas tocaram marcha batida; a tropa fez continência; mas a bandeira ficou perfilada e metida no suspensório, que só cumprimenta a Sua Majestade o Imperador e se abate ao Sagrado Viático.

O Osório ferrou então ambas as esporas no cavalo que deu um arranco para a frente, mas de momento estacou, dobrando-se nas pernas traseiras e encostando quase a anca ao chão pela força e mestrança do cavaleiro na rédea.

Levando a mão ao chapéu, perguntou:

— Que corpo é este?

O comandante, que estava com a espada abatida, levantou-a e respondeu:

— O 26 de voluntários.

— Não é do Ceará?

— Sim, senhor.

Aí o velho relanceou um olhar para todos nós e disse bem alto:

— Há de ser um batalhão valente. A gente do Norte deu sempre mui guapa infantaria.

Foi ouvirmos estas palavras, e um calafrio correu por todos nós. Por minha parte eu quisera naquele instante, logo, logo, mostrar que ele não truçava de falso e acabar com a existência ali mesmo aos seus pés.

Muito pode um homem sobre os mais!

A coisa, porém, era passar, e os paraguaios arreganhavam cada vez mais os dentes. Também balas caíam nos encouraçados brasileiros que era um Deus nos acuda, matando gente boa de brigar e estropeando outros muitos.

Ora, disse lá consigo o Osório, quem não arrisca não ganha. Se eu me ponho aqui a banzar, não se faz coisa alguma. Vou por enquanto mandar para aquela ilha que vejo ali no meio do rio cheia de macega e sarandis, uns sapadores, engenheiros e artilharia e eles que tratem de fazer calar os paraguaios. Apontem sobretudo para Itapiru.

Dito e feito, e lá se foi o batalhão de engenheiros, e mais o 7 de voluntários e mais o 14 que, em desembarcando, meteram logo mãos na areia; cavaram, cavaram como tatu que vê caçador pertinho e, num ápice, levantaram trincheiras com fosso, berma e o mais, além de boas bocas de fogo em cima. Bem fizeram, que cinco dias depois caiu-lhes nos ombros o inimigo e houve um entrevero feio como a morte e negro como a noite em que se deu.

Ali se distinguiu muito oficial valente; muitos morreram; a gente de S. Paulo ganhou fama que nunca mais perdeu; mas o coronel Tibúrcio, naquele tempo capitão, pintou o sete, andou e virou no mais renhido do fogo, como quem diz ou hei de ser promovido ou então me dão cabo da pele.

De madrugadinha, acabada a refrega e mergulhado tudo no silêncio, a gente brasileira arregalava na praia os olhos para saber que bandeira estava no topo do mastro grande lá na ilha.

— Vejam a cor, vejam a cor, diziam todos com o coração na mão. E como de propósito, o tempo não queria clarear.

— É verde! gritou de repente uma voz.

— É a nossa, bradamos todos.

E o exército levantou um tal grito que a terra tremeu ao longe.

— Viva o Brasil!

XI

Uma guerra, meus camaradas, não é decerto brincadeira nem gracejo: o homem tem trabalhos de gigante e, antes de perder a vida, quando a perde num belo dia, passa por tormentos, fomes e pestes que só se salva por ter de cumprir este ou aquele destino, marcado lá no grande livro de Deus; mas também só numa guerra é que se sentem daqueles abalos e alegrias. Vive-se pouco e às carreiras, mas é vida tão cheia de novidades, tão violenta e divertida que voa, não corre, gasta depressa e mata. Olhem, aqui lhes digo o seguinte: No Paraguai muito e muito padeci desde a hora em que desembarquei; entrei em muito fogo cerrado, sem contar a Linha negra* de gloriosa memória; bati terras que afinei a sola dos pés; curti frios de rachar; apanhei soalheiras de pelar a cabeça de um burro; levei chuvas no costado de ficar mole como macarrão dentro d’água; fui ferido duas vezes; assisti a muito bombardeio; comi muita coisa ordinária e até nojenta; gastei à toa todo o dinheiro que me deu o governo; enfim andei, para assim dizer, metido na panela de Pedro Botelho; mas se houver outra mexida daquelas, sobretudo lá com os nossos amigos argentinos da Silva, palavra de Antônio Maldonado, filho legítimo de Fortunato e de Emerenciana da Purificação, pulo para a frente e digo a Sua Majestade o Imperador: “Pronto, patrão: conte comigo!” e vou logo tomando mochila e espingarda e botando-me para os lados onde houver tiros e pancadaria.

Que querem? O homem é mesmo assim. Não é lá pelo cobre que recebi no fim de toda a história, parece — se bem me lembro — uns quatrocentos ou quinhentos mil bicos — nem pela data de terra que me deram nas funduras do Espírito Santo, onde nunca hei de pôr os pés, nem pela teteia da carnaúba* e medalhas de campanha que poucas vezes chimpo no peito, pois não sou tafulo, nem cheio de mim; não é por nada disso, mas só pelo gostinho de ir afrontar perigos e canseiras e como o jogo mais divertido é sempre aquele em que a gente corre mais risco, de que dão prova as raparigas que vão conversar com os namorados foras de hora, não há distração mais cheia, mais completa do que um tiroteio bem nutrido, tanto mais que se está cumprindo o seu dever e agradando aos chefes, aos generais, ao governo, ao Imperador e — até dizem — a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo. Corre, pois, por conta deles todo o sangue que derramei.

E depois um acampamento... Que coisa bonita! Que vida, que barulho, que movimento, que animação! Na frente, quando há terreno plaino, veem-se aquelas barraquinhas brancas dos batalhões com ruas largas e vielas tão bem alinhadas, tão limpas, que é um gosto andar passeando por elas. Mais atrás fica a linha dos senhores oficiais, no centro a barraca do comandante, e assim em todo corpo ou batalhão, dando cada companhia uma rua e metade de uma viela.

Em distância para trás e numa boa extensão ficam os estados maiores, quartel-general, transporte, hospital e, mais longe ainda, o comércio, que é uma barafunda de toldos, ranchos de palha, casebres e casas de madeira, umas escuras e sujas como vendas da roça, outras luzidas e sortidas como lojas da rua do Ouvidor no Rio de Janeiro. E ali vende-se de tudo, e formiga gente, soldados, gringos, oficiais e generais, uns a pé, outros a cavalo, tocadores de realejos, harpas e rabecas, chinas, mascates; um mundo enfim que, falando todos ao mesmo tempo levanta barulho capaz de pôr surda uma peça de artilharia de calibre 68.

E de dia em alguns barracões havia jogo de bilhar e à noite uns bailes chinfrins*, onde os oficiais caneados** dançavam com mulheres perdidas.

Ponham vocês agora por toda a parte bandeiras das cores mais vivas e variadas, de todos os feitios e tamanhos; bandas de músicas a tocarem a cada instante; pelotões a marcharem de um lado para outro; batalhões a manobrarem; parada todas as manhãs para se renderem as guardas e piquetes; revistas em ordem de marcha; alarmas; ordenanças correndo a galope em todos os sentidos; sinais de corneta; rufos de tambor; exercícios de fogo ou de tiro ao alvo; novidades e rodelas***, que é um nunca acabar; intrigas e falatórios; notícias da Corte; parolagens de valentia; gritos; gargalhadas; alegrias e tristezas; esperanças e fúrias, eis o que é um acampamento.

Quando o lugar é apertado, acampa então a gente como pode, uns quase por cima dos outros: barraca de tal companhia aqui, barraca de outra logo ao pé; cavalaria encravada na artilharia, tudo sem ordem nem consideração. Quantas vezes não tive que armar meu pedaço de lona por cima do molhado? Nesses casos tratava de fazer um jirauzinho para não dormir dentro d’água, como muitos que também iam pilhando moléstias graves do fígado e bofes, seguindo para o hospital e dali se botando para o outro mundo.

Se chovia, era então um inferno. O lameiro ficava de palmo e meio: a chuva atravessava tudo, e andávamos tontos, assim a modo de pintos peitados no coração do inverno, como aconteceu nas Palmas. Cruz, arrenego!

Logo que a demora ia a mais, e houve acampamentos de ficarmos encalhados anos inteiros, então começava a trabalheira de buscar capim seco, macega e galhos de árvores para casas e latadas dos Srs. oficiais. Até de pau a pique levantaram alguns moradas grandes, vistosas e bem arejadas e punham janelas e papéis pintados nos quartos. Era luxo demais!

Dali a um nadinha, queriam também os sargentos e mais inferiores ter sua ramada ou coisa assim, e os soldados que padecessem! Não havia porém que piar e toca a buscar, em distância de léguas e léguas, feixes de sapé ou galhos de árvores folhudas. Quando todos estavam acomodados à sombra ou livres da chuva, é que a soldadesca cuidava de si, e então uns lá metiam ramos secos por cima da barraquinha, outros levantavam um ranchinho de cacaracá, ou faziam um caramanchão ou uma história qualquer para quebrar o ardor do sol ou a força dos aguaceiros.

Nisso não cochilava eu. Era ter uma folgazinha, por pequena que fosse e melhorava logo o cantinho em que passava as noites, esporeando o Valentim que morava comigo, sempre bom companheiro, mas muito moleirão e choramigador.

— Vamos, Sr. moço, vamos, lhe dizia eu...

— Ora, Tonico, retrucava ele, ando tão desanimado! Nunca hei de dar soldado que preste... Tomara já acabar com esta vida.

— Nada de tolices...

— É minha ideia, que quer você? Depois vivo, se isto se chama viver, só com o pensamento na Bahia...

— Diga... na Gertrudes...

— Não. Agora tudo misturou-se assim num bolo que me enche o coração e mal me deixa respirar... É uma espécie de agonia que não me larga mais. Qual, amigo, meus dias estão contados, eu morro mesmo!

Assim dizia o pobre do coitado, mas estejam certos de uma coisa: o homem não morre, senão quando bate a hora que por destino lhe foi marcada. Então esteja ele no mais encarniçado de uma peleja, ou no quentinho de sua casa muito contente e sossegado, em batendo aquela hora fatal, vai raspando-se para o lado de lá da vida, tão seguro como dois e dois são quatro. E senão vejam o que sucedeu com o Veridiano da Encarnação, um cabra forte que deixou-se ficar na Bahia e por proteção de um senhor de engenho apatacado fugiu sempre com o corpo ao peso das armas; pois bem, estava ele sentadinho numa rede e temperando uns descantes na viola — que sempre o conheci afinado de voz — quando de repente... arrebentam-se os punhos e bumba! lá se foi o nosso Veridiano de costas ao chão e, esperneando um instantinho, revirou logo os olhos. Ora, digam: não era muito melhor que tivesse ido morrer de um balázio a servir o seu país?

Mas... com a breca! se vou assim cortando e recortando a minha história, não há mais como acabá-la: levo dias, semanas e meses, que palavra puxa palavra e a guerra do Paraguai durou cinco anos contadinhos.

XII

Repito mais uma vez e será a última: o que queria o exército aliado era passar o grande rio Paraná.

Para isso pediu o Osório reunião dos generais argentino e oriental, pois precisava marchar de combinação com os tais manos, e lhes disse:

— Senhores generais e amigos, não podemos ficar empacados — com perdão da palavra — aqui a olharmos para o Passo da Pátria e a comer sem vantagem gado argentino...

— Pero, que ganado! exclamou o Mitre.

— que nisto, continuou o Osório, tem ido umas boas patacas do Brasil. Devemos sem mais tardar atravessar este rio e cair em cima dos paraguaios sem tomar respiração.

— Apoiado, apoiado! gritou o Flores dando um pulo no ar e entornando com a ponta da bota uma chaleira em que fervia água para o mate. O tal Flores era um esturrado de conta, mas homem valente com as armas e muito amigo nosso, razão pela qual os patrícios o coserão às facadas numa das ruas de Montevidéu.

— Mas, Sr. general, disse o Mitre passando a mão pelos cabelos e levantando os olhos para o céu como quem está à espera do Espírito Santo, é preciso pensar no plano... no plano, Sr. general. Sem plano não se faz nada neste mundo.

— Qual plano, nem meio plano! resmungou o Flores. A coisa é avançar, avançar sempre... não deixar esfriar o entusiasmo.

— O plano é este, Srs. generais e amigos, respondeu o Osório. O exército que tem de invadir há de fazer isto, aquilo, aquilo outro, e tal, e coisas, e loisas, etcœtera, etcœtera, e mais isto, e mais aquilo.

E desembuchou com muita clareza e propósito tudo que tinha na cachola.

— Parece-me muito bom, apoiou o Flores esbugalhando os olhos. Muito bom mesmo. Toca a avançar... Eu...

— Sim, atalhou Mitre, mas é preciso pensar muito... E a execução, Senhores? A execução...

— Não se aflija us Ted, disse novamente o Osório, corre a coisa por minha conta e risco... Em pessoa hei de dirigir, o embarque e desembarque.

— Bravo, bravíssimo! urrou o Flores, eu também vou. Quero estar na vanguarda. Com dois mil orientais, debando os paraguaios do Passo da Pátria.

— Com dois mil hombresl chasqueou o Mitre. Ponham-me do lado de lá com quinhentos argentinos e verão o resto...

— Caramba! picou-se o Flores, se V. Ex., a quem Deus guarde, vai com quinhentos argentinos, para mim bastam dozientos homens.

— Meus Senhores, interveio o Osório como juiz de paz, não se trata disto; o que quero é que aprovem o plano que apresentei.

— Aprovo tudo, disse logo o Flores vendo se na chaleira havia ainda água para uma cuia de mate chimarrão.

— Eu tinha também uma ideia, falou o Mitre, mas preciso de mais um mês para amadurecê-la bem.

— Ora, ora, protestaram os dois outros. Vamos, sr. Mitre, aprove o plano, aprove...

— Pois bem, vá lá. Fazem de mim um Pilatos no Credo. Em tempo hei de lavar as mãos.

E nisto levantou-se a sessão.

— Esperem um pouco, retrucou o Osório. Bote-se tudo por escrito e com muito cuidado na redação.

— Apoiado! Apoiado!

E lá se foram, mas antes Flores achegou-se ao Mitre e disse-lhe assim rosnando:

— Sr. general brigadeiro, estou pronto para ir bater o Passo da Pátria com cento e cinquenta hombres... mas que sejam orientais!

Assim pois o general Osório, que é mais fino do que cobra, deu todas as ordens e providências e, no dia 16 de abril de 1866, pela madrugadinha, embarcou-se com 10 mil homens, no meio dos quais ia o 26 de voluntários, e portanto cá este seu criado.

Aí frechou ele direitinho pelo rio Paraná afora, dando as costas a Itapiru e como quem, de desanimado, queria tomar rumo do Brasil, mas, pilhando águas do Paraguai, quando se juntam os dois rios, mandou tocar a todo o vapor para cima até um ponto que ele lá queria e tinha combinado com os engenheiros. Então saltou o primeiro em terra e foi fazendo desembarcar a toda a pressa gente e mais gente.

— Pisamos o Paraguai! gritou ele.

— Viva o Osório! responderam-lhe os batalhões.

Mas já os paraguaios tinham percebido a manobra e embora acreditando pouco nela por causa do arrojo, López, todo assustado, disse lá na língua deles para os seus soldados:

— Meus camaradas, temos mouros na costa.

E fez avançar tropas para o lado donde vínhamos, atravessando uma imensidade de banhados e lagoas, tudo debaixo de chuva horrorosa.

Aí nos pegamos peito a peito, e pela primeira vez entrei em fogo. No começo abanei as orelhas assarapantado, mas quando com uma baionetada furei de lado a lado a um soldado que vinha sobre mim e que o sangue espirrou-me bem na cara, sarapintando-me de vermelho dos pés à cabeça, fiquei seguro de mim. Será isso que chamam batismo de sangue?

Não sei, mas o que é certo é que dias depois estávamos muito a gosto no Passo da Pátria, olhando por desfastio para a banda, onde tínhamos ficado tanto tempo parados, e para o mundo de navios, encouraçados, transportes, barcas, botes, chalanas, canoas, chatas e jangadas que andavam num sarilho a carregar gente, bagagens, mulheres, mantimentos, cavalos, artilharia, trens, alfafa, gado, munições, mil coisas enfim de uma margem para outra do grande Paraná.

E como por encanto, da noite para o dia, em cima das cinzas ainda quentes do acampamento inimigo, levantara-se uma verdadeira cidade de pano e pau de pinho.

Os paraguaios tinham já recuado para dentro do país, como onça que vai ser acuada.

XIII

Estávamos, portanto, no tal Passo da Pátria junto ao povo de Sant’Ana, e os paraguaios para lá de um ajuntamento de banhados a que chamam estero, dando a esse a alcunha de bellaco, por ser lugar de grossas velhacadas, tanto assim que noutros tempos, um general argentino, metido a tralhão, lá se deixou encurralar como gado em mangueira e teve que passar por grandes vergonheiras e calamidades.

Conosco, porém, fiava-se o negócio mais fino, embora fosse o tal estero traiçoeiro como judas. Vai tomar águas do Paraguai por uma enfiada de lagoas e furos e, à primeira vista, parece fundo de afogar um exército, mas, bem estudado, tem três passos: um, em frente de quem invade, mesmo na ponta do nariz; outro, à direita, chamado do Pires, naturalmente porque algum meco* desse nome costumava andar por ali, e o terceiro, à esquerda, das Carretas.

Ora muito bem; era ali que estávamos acampados a examinar aqueles terrenos que nenhum engenheiro conhecia, um terreno só de sangas, lameiros, carisais e o diabo, quando se deu o caso que eu lhes queria contar e que podia já estar acabado há anos, se as coisas não se entrançassem umas nas outras, pedindo cada qual explicação para ser entendida em regra e sem confusão.

Era numa tarde.

O batalhão 26 de voluntários que tinha sustentado o repuxo** dos dias 16 e 17 — combates danados em que perdemos uns rapazes desempenados e de mão cheia — homem, o tal sr. Valentim não se portou lá muito bem, saindo a cada instante da linha de fogo para levar feridos à retaguarda — o batalhão 26 agarrou uma folga, e todos sentiam-se tão moídos e estrompados que era um dormir sem conta.

Um único não mostrava nem sombra de cansaço, o sargento Marçal; parecia de ferro, e como continuava a quijila comigo, enquanto os mais ressonavam, de papo para o ar, crescia o serviço para o filho do meu pai.

Queixei-me que tinha levado uma contusão; mostrei até o lugar na perna ainda roxo, qual! fui tratado de manhoso, sem vergonha e mitrado. Seja porém tudo nesta vida de mentiras verdade como a coronhada que me assentou um paraguaio de coxa quebrada, quando passei por perto dele. Também desandei-lhe um baionetaço que o despachou sem passe nem guia de socorrimento* para o outro mundo.

Quando não havia outra coisa que fazer depois da carneação que me punha sempre pintado de sangue de boi, varria eu com uma vassoura de folhas a frente do abarracamento e a rua da companhia. Diziam lá que era obrigação de recruta. .

Numa tarde, pois, estando nesse maço**, ouvi uma conversa muito interessante do Marçal com o brigada Santos, praça também de linha e que de vez em quando saía do seu batalhão e ia dar uma trelazinha ao nosso sargento, por ser patrício, parece; pelo menos era o único que, fora do serviço, o procurava e lhe fazia algum agrado.

— É escusado, dizia o Marçal, já estou sem esperança! É um chorrilho de injustiças que dói. Chegou ontem mais uma promoção e como sempre nada... Minha fé de ofício é limpa de culpa e pena; tenho 18 anos de tarimba; estou em campanha desde Paissandu; cumpro com todas as minhas obrigações e com as dos outros que disso tiram proveito; sei-me capaz de comandar uma companhia, um batalhão até, e entretanto não há uma promoção, uma só, em que eu não veja passarem-me a perna uns sujeitinhos que por si nada valem, nada são, nunca hão de ser nada. Não, é duro, é duro deveras! Você, não acha?

— Mas, respondeu o Santos com uma falazinha macia, da sua parte há também culpa.

— Da minha parte?... Em quê?

— De certo, porque anda você sempre tão embezerrado?... Foge de todos. É muito bom ter direito... mas... certo jeitinho pode muito, e...

— Nunca adulei a ninguém, atalhou o outro como que roncando.

— Não é adular, homem de Deus! É um modozinho... um não sei quê... Não parecer enfim bicho do mato, sempre esquivo e desconfiado...

Se é meu gênio?! Trato de fazer o que é de meu dever e só vejo de todos os lados proteções e escândalos... há muitos anos que estou nesta luta e entretanto o maldito galão de oficial nunca há de chegar até ao meu punho.

Assim falava ele, e eu de ouvido alerta.

— Você pensa, continuou Marçal, que não me sangra o coração, quando tenho de cumprimentar uns alferezinhos, uns... — aqui soltou ele uma palavra cabeluda — que ganharam seus postos por muita bajulação ou por serem filhos e filhotes de ricaços e bons padrinhos! Minha paciência já vai cansando, e como isto de vida militar é visgo nos pés de passarinho que quanto mais forceja por se ver livre, mais se emaranha, o que desejo hoje... é que uma bala me dê quanto antes cabo da existência. Não foi por querer que escapei de 16 e 17... fiz o possível para ver se a morte me levava... Qual! até nisso entra caiporismo...

— Que bobices! tomou o Santos. Agora em campanha as promoções hão de tocar a todos. Tolo será quem se deixar matar...

— Sim, Senhor; é o que dirão por cima, quando acharem o meu corpo estirado no meio do campo.

— Mas, com mil diabos! porque não há de você fazer como os mais? Olhe, muito breve chega da Corte uma enxurrada de promoções e condecorações, e tenho certeza de sair alferes.

O sargento Marçal, que estava deitado no chão de barriga para baixo, sentou-se de, repente.

— Você? perguntou ele muito admirado.

— Sim... eu mesmo, o brigada Santos do 16 de infantaria.

— Mas como sabe?

— Sabendo...

— Deixe-se de graçolas.

— Pois bem, não passe adiante porque por enquanto é segredo de comprometimento, mas meu irmão na Corte empenhou-se com um oficial de gabinete do ministro e escreveu-me que a coisa estava arranjada, pelo que podia sem receio mandar comprar os galões de ouro.

O outro ficou calado algum tempo com a cara muito fechada e olhando, de sobrancelhas cerradas, para um ponto fixo.

— Eis aí, disse por fim, sempre, sempre a mesma coisa. Sem padrinho não haverá salvação possível?... Nem mesmo perante o Deus de eterna justiça?

E, voltando-se para o Santos, acrescentou:

— Mas se há promoção que me alegre há de ser essa, amigo. Sem quererem... os homens lá de cima acertarão um dia...

— Também houve Espírito Santo de orelha.;.

— Boa dúvida, mas enfim... assim acontecesse sempre para bem do exército.

Eu continuava a varrer; não perdia, porém, uma palavrinha.

— Porque não há de você fazer o mesmo? tornou a perguntar o brigada.

— Ora, para quê?

— Não tem no Rio de Janeiro algum parente?

— Homem... nem sei.

— Longe que seja...

— Não me lembra...

— E na província?

— Ah! espere... o irmão da minha mãe é deputado... nas câmaras.

— É portanto seu tio... tio carnal...

— Sim... mas que caso pode ele fazer de uma pobre praça de pret? É motivo até de vergonha...

— Ora, Marçal, também é desconsolo demais... Escreva-lhe umas linhas... Esses homens gostam de fazer favores... servir a este ou aquele, só para mostrarem que têm influência... Logo um tio!

— Pensei e tenho pensado nele muitas, e muitas vezes... Mas falar de mim... dizer que tenho direito e merecimento... Custa muito a quem não é gabola...

Santos riu-se com gosto.

— Que grande ratão, o tal Sr. Marçal! Pois bem, deixe o negócio correr por minha conta... Vou escrever a esse seu tio e dizer-lhe tudo quanto você tem sofrido... Como se chama o bicho?

Marçal deu o nome.

— Vejam só, continuou Santos, logo esse que é um falador de conta... Com certeza cavalga os mandões da Corte... Pelo correio de depois de amanhã conto-lhe a história, assino a carta em seu nome e daqui a dois ou três meses mostro a você se é ou não oficial de patente.

O sargento parecia estar assim desanimado: tinha na mão uma vara fina e comprida com que fazia umas garatujas na areia.

— Sr. Santos, disse por fim, olhe se vou levar alguma desfeita... Esse homem nunca se importou comigo...tinha até medo que eu o procurasse no Rio de Janeiro. Uma vez — custou-me muito, mas fui — ao chegar ele da província, fiz-lhe uma visita num domingo. Achei-o numa sala de hotel muito rica, fumando e conversando com cinco ou seis sujeitos... Mal me apertou a mão e apontou para uma cadeira. — “Então, perguntou ele todo emproado, que há de novo?” E todos olhavam para mim — “De novo, não há nada, respondi suando frio e com o rosto em brasa. Eu é que vim cumprimentá-lo.”

— “E você já é oficial?” Aí fiquei branco como cera —  “Não, senhor“ — “E porque não foi ainda promovido? Extravagâncias, sem dúvida; mau comportamento!” —  E sem me deixar tempo de lhe explicar coisa alguma, foi logo dizendo com ar de pouco caso: — “Porque é que você anda com uma farda tão peluda? Que quer dizer essa tira vermelha de lã grossa? —“ Um deputado geral não sabia que aquilo era uma banda! Então perdi a cabeça; não sei o que retruquei, nem como achei a parta de saída. No corredor parei um instante e cobrei um pouco de sangue-frio. Ouvi ainda estas palavras: — “Coitado, é filho de uma irmã minha que casou contra a vontade de todos os parentes com um oficial reformado. Nunca há de ser nada... como o pai.” — Depois nunca mais quis saber de mim, se era vivo, se morto... que rumo tinha levado e o mais... Agora me diga... se ele não me der resposta?...

— Será um malcriadão de uma figa! Mas, qual! deixe-se desses sustos... Afinal o que perde você?... A tinta, o papel e nada mais... Aqueles modos com que ele o recebeu são de todo paisano bobo e cheio de si... Pensa-se uma grande coisa, quis fazer figura à custa de você e à vista dos outros toleirões... Agora, quando receber a carta, fica todo inchado, corre logo para o ministro da guerra e, só por partir o pedido de sua boca, há de querer impor e arranjar a promoção. Eu conheço essa gente toda... É saber viver com eles... Julgam que têm o rei na barriga e como nenhum mal provém condescender com eles, devemos ir tirando proveito dessa mania...

— Como são as coisas, dizia eu com os meus botões. Estarem a culpar este pobre homem e ele a sofrer, como sofre, morte e paixão. Coitado! é um caráter às direitas: sabe o que vale e padece injustiças e malquerença. Deus lhe dê paciência para aturar tanto caiporismo.

E, pensando nestas e noutras coisas, deixei cair a vassoura e, por trás dos dois, pus-me a olhar para eles como um pateta das luminárias.

Nisso virou-se o Marçal e deu em cheio comigo.

Oh! senhor! O homem ficou que nem jararaca, quando topa com um tição.

Levantou-se de um pulo e com a voz agarrada na garganta gritou:

— Recruta do diabo, que está fazendo aqui?

Só pude arregalar os olhos.

— Estava ouvindo a conversa, não é?

— Deixe o soldado, disse o Santos para sossegá-lo, não leve tudo a mal.

Mesmo que eu quisesse explicar-me, não podia.

Cara assim, boca e olhos como aqueles, nunca tinha visto!

Uma coisa me sacudiu, como se fora picado de cobra cascavel.

Foi...

Ah! meus amigos, quando ainda me lembro!. Enfim como ele já não vive...

Foi uma varada que me cortou o rosto... e enroscou-se-me até aos lombos.

Aí pulei para trás, com a vista escura e as pernas a tremerem.

Levei a mão ao cinturão, procurando a baioneta: não a encontrei... Estava desarmado!

— Saia já daqui, urrou Marçal, raspe-se... senão leva outra.

Quis atirar-me em cima dele, mas naquele instante tive medo e fui arredando-me devagar, tonto e sem saber onde punha o pé.

— Que desgraça! ia eu dizendo baixinho, que desgraça!

XIV

O que toda a noite sofri, de olho aceso e ardendo em febre e raiva, ninguém pode imaginar. Parecia que uma vara de ferro em brasa riscava o escuro e me marcava para sempre.

— Ele bateu-me, repetia eu de mim para mim e como que delirando, ele bateu-me na cara... E por quê?... só com sangue é que se lavam afrontas dessas... Só com sangue...

Então me passou pela ideia a necessidade de matá-lo e senti-me mais aliviado.

— Está dito; é um homem morto. Chegando o alarma... dou cabo dele...

Com a mão examinei o fio do refle: estava que nem navalha.

Quando menos cuidava, lembrei-me, naquele furacão de sofrimentos e torturas, de minha mãe, de minha velha mãe e a um tempo fiquei mais consolado e como que corrido de vergonha.

Pareceu-me que eu lhe merecia menos amizade depois daquela desfeita que ficara sem desforra, mas também à lembrança dela desceu sobre mim branda e fresca como o sereno da tarde sobre plantinhas tostadas por um sol de dia abrasador.

Não pude então conter o pranto que me alagou as faces.

— Pobre, pobre da velha... quando lhe anunciarem que seu filho morreu fuzilado como matador... coitada! Que será dela?

E uma máquina de pensamentos pôs-se a girar dentro da minha cachola, que por vezes julguei perder o juízo.

Aí começou a raiar a madrugada e a corneta do quartel-general tocou as primeiras notas da alvorada.

Estremeci como se ouvisse a trombeta do juízo final e agarrei com força no punho do refle.

— Acorde, acorde, disse eu sacudindo o Valentim que tinha o sono duro, olhe o alarma.

— Cheguem à forma! cheguem à forma! gritava lá fora o sargento Marçal com sua voz de cão de fila.

Foi deitar os olhos naquele homem e, não sei como, nem pelo quê, minha intenção virou de repente:

— Não o mato agora... fica para mais tarde.

Quando tomei o meu lugar na fileira estava ainda meio duvidoso. Cerrei os olhos para não enxergar aquele malvado e, quando o ouvi chamar-me pelo número, quase que não tive forças para responder: pronto!

Cruz, meu Deus! Muito se padece neste mundo de Cristo!

Daí a duas horas, já de volta os exploradores do campo, rompeu-se a forma e cada qual foi cuidar na sua obrigação.

Entrei então de guarda e durante todo o tempo das sentinelas só pensei no desagravo que tinha que tomar.

— É preciso por força matar esse cachorro... é preciso! Mas quando há de ser?

Nessas dúvidas e vacinações que me roíam o coração, lembrei-me de umas histórias que contava o cabo Xisto, da 4.ª companhia, de oficiais e inferiores mortos em combate e pelas costas por soldados que andavam por implicância sendo perseguidos e maltratados.

Com certeza foi o espírito maligno que me assoprou ao ouvido esse expediente, porque vendo que eu podia com o tempo escapar-lhe das unhas, queria facilitar-me o empenho amaldiçoado.

— Assim você derrama o sangue do seu inimigo, tira vingança inteira e não corre o risco do arcabuz, dizia o tal maligno escondido num cantinho da minha consciência.

— Meu filho, aconselhava a lembrança de minha mãe, atura com paciência esses maus tratos... Tu és um soldado, valente...

— Por isso mesmo, atalhava o maligno.

— O castigo do superior, ainda que injusto, não desonra a ninguém...

— Uma chicotada na cara de um homem é desfeita que só sangue pode lavar.:.

— Nada, nada, decidi eu, no primeiro dia de combate, o sargento Marçal morre infalivelmente. Pode ir agarrar-se com todos os Santos e Santas do Paraíso!

O maligno cantou vitória.

XV

No dia 2 de maio rompeu uma grande batalha.

Os paraguaios saíram de repente de detrás do estero e, passando pelos vaus, atiraram-se em cima da nossa vanguarda que debandaram em pouco tempo, abafando a artilharia e esparramando os batalhões de proteção.

Verdade é que a linha da frente estava mal guarnecida por facilidades lá do Sr. Flores, que as nossas peças ficavam quase desamparadas e sem munições, que os comandantes da vanguarda andavam arrufados uns com os outros e que muita culpa nos cabia por descansarmos tanto e tanto na divina Providência.

Os inimigos, aproveitando esse descuido, depois de um fogo pipocado* que por disfarce nessa manhã sustentaram como de costume, avançam com uma fúria imensa tendo água pela barriga, embrulham logo o 7.º de infantaria, destroçam o 21 e 38, carregam uma bateria do 1.º regimento de artilharia, apesar das façanhas do tenente Cardoso de Melo  — que Deus haja! — e correm para cima do 1.° de Voluntários.

Este resiste que nem aço.

Um contra seis! Valentes peitos aqueles cariocas e fluminenses!

Como mar em fúria atirava-se a cavalaria; como rochedo repelia o batalhão. E uma imensidade de gente era, de lado a lado, derrubada para nunca mais se levantar.

Aí o Osório pôs todo o exército de pé... Mais um pouco, era tarde.

Abalam-se todos; fuzila a infantaria; ronca a artilharia, e a terra treme e ecoa... Tudo é pó; tudo fumaça; estruge o hino nacional como voz da pátria; correm batalhões a marche-marche; atacam estes em linha; aqueles em coluna; chocam-se as cavalarias; relampejam as lanças e no meio de tantos horrores os homens, paraguaios e brasileiros, vão caindo, uns feridos rolando-se no chão e dando gritos de angústia, outros hirtos e em silêncio com a boca fechada pela mão da morte.

Começaram então os paraguaios a recuar. Tinham avançado demais e conheceram, ainda que tarde, que quanto mais terreno haviam tomado, mais lhes custaria a volta até aos tais pântanos e lagoas.

Nesse momento o comandante Figueira de Melo —  bom oficial! bom oficial! nunca hei de falar nele sem lhe fazer essa justiça — bradou:

— Batalhão, a passo acelerado, marche! Ninguém para sem voz de alto!

Isso foi um arranco medonho. Fomos varrendo tudo diante de nós a ponta de baioneta.

Quanto a mim, estava que nem louco. Tinha ânsia de furar, varar, matar e sempre ao meu lado via o Marçal, sério, com a cara chamuscada de fogo e a espingarda fumegando.

— Olhem à direita, recomendava ele de vez em quando com voz compassada.

Ouvi um grito:

— Tonico! Tonico!

Era o Valentim que tinha levado uma bala bem em cheio no peito.

Nem me importei; continuei para diante, porque a corneta do batalhão só fazia sinal de fogo! fogo!a marche-marche!

Nisto chegamos à beira das tais lagoas e, como um bando de antas, caímos n’água, bem nas costas dos paraguaios. Gente que se afogou, um monte.

A cavalaria carregou sobre nós; o batalhão dividiu-se, uma ala para aqui, outra para acolá, mas sempre fazendo frente e resistindo; andou de um lado para outro; entrou novamente no lameiro; saiu; botou-se pelo campo afora; recuou; avançou e, destacado de todo o exército, fez proezas do tempo de Oliveiros e Roldão. Aí foi ferido o capitão França Leite.

Quanto a mim, nem sabia onde estava.

XVI

Envolvido na fumaça e num campo de macega alta, achei-me perdido, sem poder atinar donde tinha vindo, para onde devia seguir, que fim levara o batalhão e o mais.

Além disto estava deitado.

Levantei a cabeça.

Senti-me atordoado e vi sangue fresco na roupa.

Oh! então? estava ferido!

E minha gente, e o batalhão?

Aí sentei-me e não enxerguei ao redor de mim senão capim seco ou em parte queimado.

A tarde vinha descendo e corria um frescozinho tão bom, tão puro e cheiroso que duas ou três vezes tomei respiração com gosto.

A vida deveras sabe a gaitas, quando a gente escapa de uma dessas.

— Então estou ferido? disse eu cá comigo mesmo. Em todo caso parece que o chumbaço não foi de matar... Creio que posso, levantar-me.

E de um pulo pus-me de pé, levezinho, alegre e bem disposto.

Sacudi os braços; estirei as pernas; apalpei-me: estava tudo no seu lugar.

— Bom... a coisa foi na cabeça.

E com cuidado esfreguei os cabelos. Senti um ardorzinho no casco.

— Ora isto não passa de um arranhão. Não valia a pena perder os sentidos... Então é sujeito a faniquitos, Sr. Tonico?

E pus-me a rir, como quem debica um companheiro.

Minha espingarda estava no chão, carregadinha ainda, mas com figura de quem tinha dado bem bons tiros, antes de focinhar no terreno com o dono.

Levantei-a e mudei-lhe a espoleta.

Aí olhei por cima do capim, pondo-me na pontinha dos pés. Não vi ninguém; escutei, nada ouvi.

— Ui! agora é preciso tento, Sr. mestre, e não ir esbarrar no acampamento paraguaio.

Saí com cautela do meu ninho, como perdiz desconfiada e fui seguindo meio abaixado e abrindo um rasto na macega.

Topei logo com o corpo de um camarada, o Manuel Pereira, que parecia estar olhando para mim com olhos vidrados e arregalados e uma boca muito arreganhada, como que a rir e a chorar.

— Deus te receba lá em cima, disse eu em voz alta e fazendo o pelo sinal.

Lembrei-me então do meu infeliz Valentim e acrescentei:

— Coitado! Bem lhe batia a passarinha!... Senhor meu Deus, deixai-o também entrar no Vosso Reino com o Manuel Pereira e os mais brasileiros.

Tomei então o meu rumo, deixando o sol à esquerda e enveredando bem em frente, e, com as mãos cortadas pelos gumes afiados do capim que ia afastando, caminhei talvez quase uma hora com passozinho curto e cuidadoso.

De repente avistei um cavaleriano todo vestido de encarnado.

Era um paraguaio.

Agachei-me depressa, mas o maldito já me tinha bispado e vinha para cima de mim, botando o cavalo a meio galope, que a macega era muita.

A falar a verdade, eu estava tão moleirão, tão quebrado de ânimo, tão sem vontade de brigar e de matar um homem, meu semelhante, que nunca me tinha feito mal, nem conhecia, que o deixei chegar bem pertinho de mim.

— Rende-te, macaco! gritou ele.

E sem querer saber se eu me rendia ou não, atirou-me um lançaço aos peitos.

Pulei para o lado, desviando o corpo e, como o negócio era de matar ou ficar morto, disparei-lhe a espingarda à queima-roupa.

O paraguaio abriu os braços e rolou do cavalo abaixo, como uma trouxa de roupa.

Esse nunca mais lanceava ninguém.

Entretanto não sei se do sangue que ainda me corria da cabeça, se do abalo, por ter contra gosto dado cabo daquele mortal, senti-me todo atordoado e não tive remédio senão me sentar um bocadinho.

E perto do cadáver do paraguaio, pus-me a cismar num bando de histórias, quando o sol já vinha descambando e a deitar sombra dentro do capinzal.

— E o meu sargento? pensei eu.

Então dei uma sacudidela em mim mesmo.

— Nada, nada! É preciso viver... A hora não é de fraquear... Falta ajustar contas com o meu Marçal... Porque não o matei?...

Levantei-me; carreguei novamente a arma e dei mais uns duzentos passos na direção que tinha tomado.

Fui encontrando bastante gente nossa estendida pela macega: o combate tinha sido renhido.

De repente no meio daquele silêncio que aterrava ouvi chamarem-me, e as carnes se me arrepiaram de horror.

— Ó recruta!... ó recruta, dizia a voz.

Procurei com a vista e dei com o sargento Marçal, o terrível, sargento, sentado e com uma perna esbandalhada por um tiro de metralha. Ao redor havia uns quatro ou cinco mortos.

Fiquei sem saber o que fazer.

O meu primeiro movimento foi acabá-lo de uma vez, vingar o agravo e fugir para bem longe, mas assim como veio essa lembrança do inferno, assim também se foi e pus-me a olhar para ele com ar de espanto e de terror.

O sargento não soltava um gemido.

— Recruta, disse por fim, veja se me arranja uma pouca d’água... Estou, há mais de três horas, grudado aqui... sem me poder mexer.

Duvidei, mas, qual! me venceu o coração.

Perto havia um cantil de soldado; sacudi-o, estava cheio.

Marçal bebeu tudo com uma ânsia imensa.

— Agora, disse tomando respiração larga, hei de morrer... a sede não deixava. Você, recruta, siga sempre em frente e daqui a um nadinha está nas linhas brasileiras... Adeus!

E deitou-se no chão como quem queria dormir, com o rosto sereno e sossegado.

Tomei o rumo que ele me apontara e caminhei alguns passos. Depois voltei, porque afinal um homem é... um homem.

— Então, perguntou-me Marçal, que é que espera? Não vê que a noite vem descendo?

— E o Sr., perguntei, fica.aqui?

— Porque não? A morte não pode tardar... Já se tem demorado demais...

— Não... mas isso não pode ser assim... É preciso fazer algum esforço...

— Para quê?

— Para se salvar, boa dúvida! Em todo caso quero tentar...

— Deixe-me, recruta. Agradeço a sua lembrança, é de um bom coração... mas a minha hora já bateu... Você também foi ferido...

— Nada... sigo a minha ideia... Havemos de ir juntos para o acampamento...

— Deixe-me, homem; a vida para mim acabou... e felizmente... Deus sabe se falo a verdade.

E ele, peito de ferro, alma de bronze, pôs-se de repente a chorar.

E eu também, sem saber pelo que, desatei cá do meu lado num grande pranto. Aquele sargento que, algumas horas antes, era para mim pior que satanás, parecia-me agora um amigo de muitos anos, um parente, um irmão quase.

— Adeus, filho, olhe que já vai escurecendo... í

— Agarre-se a mim, Sr. Marçal.

— Não quero que por minha causa o batalhão perca um homem são e valente...

— Deus há de proteger-nos... Isto é comigo. Nem que seja à força, hei de fazer tudo para levá-lo até ao acampamento. . . E quer saber pelo quê? Porque o Sr. me maltratou sempre, porque foi comigo injusto e mau, chegando a ponto de me bater, de me enxotar com varadas como se eu fosse um cachorro leproso...

Marçal abanou duas vezes a cabeça.

— Não me lembra, disse olhando para mim bem em cheio, pela salvação de minha alma, tão perto de sair deste mundo, de nada me lembro...

— Pois bem, retruquei, eu de nada me esqueci e salvá-lo... será a minha vingança.

Oh! Senhor! quando soltei estas palavras, nasceu dentro de mim uma força tão grande que me senti capaz de levantar uma montanha.

Suspendi o ferido, botei-o no colo, e dei os primeiros passos devagarinho... devagarinho...

A cabeça girou-me a roda; os olhos escureceram e correu-me um suor frio pela espinha, mas a pouco e pouco fui melhorando, melhorando e andei com segurança.

Tenham isto por certo, meus amigos, quando a gente pratica uma ação boa, o espírito de Deus sopra dobrada valentia ao coração.

Era eu tomar de quando em quando uma golfada de ar e pelos pulmões entrava-me uma coragem imensa, e as forças voltavam-me cada vez mais rijas; contudo o Sr. Marçal pesava o seu tanto.

A tarde estava desmaiando nos braços da noite: era lusco-fusco, mas o céu tinha tanta luz que quando eu levantava a cabeça parecia estar lendo a proteção que me prometiam lá de cima.

Entrei num banhado, em lugar desconhecido: a água veio-me até à cintura, mas me deixou passar.

De vez em quando Marçal, que ia com os olhos fechados, dava um gemido fundo, e aquela perna, um molambo, balançava para aqui e para acolá.

— Está sofrendo muito? perguntava-lhe eu..

— Muito, mas não importa, era sempre a resposta.

Nisso ouvi diante de mim um grande rumor. Estávamos chegando a um acampamento.

— É o nosso, disse o sargento.

— Então... estamos ou não salvos?

— Agora, avisou ele, é preciso dobrado cuidado. Podem as sentinelas fazer fogo em nós.

Andei mais um bom pedaço, já muito cansado.

Depois vi assim ao longe um vulto.

— Quem vem lá? Bradaram.

Respondi com o fôlego que ainda me restava:

— Brasileiro! Brasileiro!

Mas debalde. Fuzilou um tiro e levei tal estremeção que quase fui à terra de costas. .

Uma bala viera dar no ombro do Marçal.

Um esguicho de sangue borrifou-me a cara e tive que deixar cair o corpo.

Aí corri para a frente, gritando com toda a força:

— É brasileiro, é brasileiro!

Formou a guarda, e uma patrulha veio reconhecer-me. Estava escuro que nem buraco de tatu.

Contei às pressas o caso, e fomos então uns quatro, buscar o sargento, por sinal que custou bem achá-lo.

Afinal veio uma padiola e o estendemos em cima.

Não falava; estava branco como um pano, com o rosto fechado e carrancudo e respirava com esforço.

De repente abriu os olhos.

— Que batalhão é este? perguntou ele.

Disseram-lhe o número.

— Que é do comandante?

— Morreu.

— E o major?

— Morreu também.

— Quem comanda então?

— O capitão Malaquias.

— Pois me levem quanto antes à sua presença... Tenho que lhe falar.

Foi satisfeito.

— Sr. capitão, disse Marçal já arfando, ponha... na parte de combate... o seguinte que o soldado Maldonado... mais conhecido... por Tonico... do brioso 26... de voluntários... bateu-se como... um homem... e apesar... de ferido... procurou... salvar o seu... superior. . . carregando-o... ao colo... por mais de uma hora... Diga isto... e terá dito... a verdade!...

Voltando-se então para mim, entendeu-me a mão e acrescentou:

— Adeus, recruta! Adeus!

Revirou os olhos e... foi-se.

Deus lhe fale n'alma!

Reparem agora que uma única vez me tratou ele por soldado.

Também o tal capitão estendeu-me na parte com muitos palanfrórios, e lá apareci no Brasil como um bravo assim e assado, um homem nunca visto, um herói, como chamam os amigos doutorecos. Pegaram logo fogo os jornais da Bahia, e o governo de Sua Majestade o Imperador mandou- me o hábito da Rosa.

Eis porque, sempre que olho para esta teteiazinha, me lembro do sargento Marçal e não posso deixar de pensar que aquele homem valia alguma coisa, pois do contrário não havia de merecer da malquerença da sorte a terrível perseguição que sofreu em todos os momentos da sua infeliz e amofinada existência.

FIM

 

O CAPITÃO CAIPORA

I

Eu conheci-o, coitado!

Era excelente homem; muito estimado dos soldados; querendo bem à sua companhia quase como se fora a família; de natural bastante frouxo, mas honesto e serviçal; já velho; um tanto impaciente; esquecido de todos; queixando-se de vez em quando, sem acrimônia, porém, nem desespero; gozando de uma saúde de ferro, embora franzino e magricela; sempre de cabelo à escovinha que nos momentos de aborrecimento coçava frenético, e de óculos que mais serviam para a testa do que para os olhos; de sobrancelhas bastas e grisalhas como a barba e os bigodes, ambos erriçados e incultos; montando a cavalo, como se de cada vez tomasse a primeira lição de equitação; de gestos, enfim, meio encontrados e ar quase continuadamente distraído e alguma coisa assustado. Modesto e limitado em suas aspirações, tinha uma única ambição: ser promovido a major para incontinente se reformar, aproveitando as vantagens do Alvará de 16 de dezembro de 1790 da Senhora Rainha Fidelíssima D. Maria I.

Rastejava os seus sessenta anos de idade e contava de serviço nas armas trinta e sete, pois só alcançara a promoção de alferes de infantaria depois de longo e penoso tirocínio como oficial inferior.

Se pelo menos fora, como chefe de classe, isto é, o primeiro do quadro dos capitães, graduado em major, para contar a efetividade desse posto e ter a graduação do imediato, tudo na forma da Provisão de 24 de janeiro de 1824, que ele não se fartava de repetir e lembrar, com mais paciência decerto esperara os quarenta anos da Lei, mas, qual! acima do seu nome havia um companheiro mais antigo de praça um dia, e esse ou tinha as mesmas intenções e projetos ou queria, de pacto feito com a morte, pirraçar indefinidamente o nosso velho e desditoso capitão.

Chamava-se Antônio Francisco Pitaluga e andara sempre por Goiás e Mato Grosso, com exceção de uns meses de destacamento na província do Amazonas. Já se vê, só por isto, que o homem não dispunha de poderosas proteções e no mais das vezes servia para tapar as vagas que se davam naqueles longínquos batalhões.

Por muitas vezes pedira transferência para se aproximar do litoral, essa extensa orla donde irradia a civilização brasileira e também o empenho, uma das grandes manivelas do nosso movimento social; mas por isso mesmo que não tinha nem boas, nem más amizades, nada pudera conseguir, não merecendo nem sequer solução contrária os requerimentos que tratavam daquela razoável pretensão.

Propusera troca de batalhão a quanto companheiro em suas peregrinações encontrara; tudo, porém, em pura perda.

Nessa luta inglória e incessante, contraíra com os anos uma verdadeira mania, inocente sem dúvida, mas de consequências particularmente enfadonhas para quantos com ele se achavam em contato e tinham de conviver: a mania de lavrar por escrito extensíssimas reclamações a propósito de tudo; dirigir intermináveis memoriais ao governo e encaminhar petições que, quase sempre, não tinham pés nem cabeça. Da menor coisa armava uma dúvida, originava uma contestação, organizava um protesto que fazia chegar, se lá chegava, ao conhecimento do ministro ou do ajudante general da Corte, esteado em uma cópia imensa de Avisos, Leis e Decretos de todas as eras, sem esquecer os do tempo da Rainha Mãe, para os quais tinha decidida predileção.

Quanto é possível conhecer a legislação militar no acervo informe de disposições confusas e contraditórias que a constituem, ele a conhecia, pelo que também andava sempre metido em conselhos de guerra — como juiz, está entendido  — pois na quitanda ninguém lhe levava as lampas, coisa corrente em todos os corpos em que servira.

Sabia o Titara e o Cunha Matos de cor e salteado, abrindo-os de relance nos trechos que precisava consultar; anotava-os cautelosamente, enriquecendo todos os claros das páginas com observações suas, tão judiciosas quanto escritas de modo ininteligível; guardava em caderninhos, cortados ad hoc, preciosos pedaços do Diário Oficial colados com verdadeiro esmero; criticava este e aquele autor; folheava com mão segura a legislação portuguesa e, levado de leitura em leitura, fora internando-se pelo estudo dos códigos, e regulamentos de modo a se tornar especialista não só na matéria da profissão, como em outras fora da órbita de sua competência, contanto fossem divididas em títulos, artigos e parágrafos. Nas horas vagas estudava por exemplo a lei eleitoral, o código do comércio e até as posturas de muitas câmaras municipais do Brasil.

Quanto à Constituição do Império, sabia-a na pontinha dos dedos, exercitando-se em contínua sabatina consigo mesmo a citar de repente e em voz alta o parágrafo de tal ou tal artigo, esta ou aquela disposição relativa a muita coisa que costuma ser simples letra morta. Se pilhasse um regimento interno da Câmara dos Deputados, provável é que em poucos dias pudesse dar bons quinaus a quase todos os augustos e digníssimos representantes da nação que tem como que por timbre ignorar as mais comezinhas determinações da lei diretora a que são sujeitos em seus trabalhos parlamentares.

Apesar de tão vastos e pouco comuns conhecimentos, não adiantara o nosso Pitaluga um passo na carreira. Fora obtendo as promoções anteriores ao posto de capitão por antiguidade rigorosa, como é de lei para quem não tem estudos e só para antiguidade rigorosa devia apelar, pois, na própria frase, que diariamente repetia ao comandante do batalhão desde aí até ao sargento da companhia, merecimento nunca havia de chegar para o enjeitado da fortuna.

Frouxo, já ficou dito, era sem contestação e bastante. Os papéis da companhia andavam sempre em dia, prontinhos, limpos, irrepreensíveis, mas quanto à disciplina... muito tinha que se lhe dizer.

Os soldados estimavam-no, mais do que o respeitavam e, abusando sem o menor escrúpulo dos seus amiudados acessos de distração, pediam-lhe com o maior desembaraço dinheiros adiantados fingindo no dia de mostra, quando recebiam seus soldos e mais vantagens, não dever um real a quem quer que fosse neste mundo de honestidade e boa fé.

Ou por acanhamento, ou por indiferença, nada reclamava o bom do homem, pelo que conseguira, como prova de especial apreço a tão rara qualidade, o apelido, pouco lisonjeiro sem dúvida, de capitão moleirão, por contração molão.

Dias havia em que acordava com uma espécie de frenesi de falar e ameaçar, prometendo a torto e a direito às praças da companhia conselho peremptório, quadrado e espada de prancha, ameaças que no seu entender deviam aterrar os mais ousados mas que de fato a ninguém abalavam; outros em que aturava, sem o menor reparo, da boca dos sargentos e furriéis respostas inconvenientes e que cheiravam a atrevimento.

Quando achava motivos para suscitar uma questão, uma interpretação, uma dúvida, cuja solução ficava fora da alçada do comandante, então de nada mais se importava nesta vida. À maneira do caçador de vocação, ali concentrava toda a sua atividade; mal comia; dormia pouco; andava abstrato e, como tinha redação penosa, prolixa e muito confusa, enredava-se num sistema de argumentação tão difusa e atrapalhada que dela dificilmente podia safar-se, como se penetrara num labirinto.

Quantas folhas de papel não gastou, quantas horas de meditação não empregou, quanta citação não fez, puxando à luz meridiana Alvarás e Avisos, alguns enterrados há muito na obscura sepultura do nosso corpo de leis, unicamente para reclamar quinhentos e vinte e três réis que o Estado ficara a dever-lhe, em ajuste de contas, por umas horas de fiscalização do batalhão no caráter de capitão mandante?!

Houve certa ocasião em que uma representação sua, depois de viajar largos meses e ser informada por dezenas de autoridades que todas fizeram o histórico daquela extensa perlenga e opinaram nos sentidos os mais diversos e extravagantes, em que essa representação provocou afinal um Aviso, sim, Senhores, um Aviso Circular do Ministério da Guerra!

Protestara o nosso capitão, com o respeito e acatamento devidos aos seus superiores, contra o emprego no fardamento das praças de pret de botões de massa em lugar de botões de metal e nessa palpitante questão desenrolara razões valiosíssimas, chegando a consequências que iam até entender com a honra e a integridade do Império. Escavando exemplos que, entre parêntesis, nada vinham ao caso, mostrou com emaranhada eloquência o exército nacional vítima da ganância dos fornecedores e por aqueles desalmados, privado, depois de curtíssimo tempo de uso, de objetos tão indispensáveis para o garbo e a boa compostura do militar brioso. Quantos inconvenientes daí se originavam, nem era dado calcular; também se tornavam precisas prontas providências. Quanto antes devia o poder competente, inspirando-se nos acrisolados sentimentos do patriotismo, arrancar com resolução a máscara aos indignes comerciantes que impunham aos servidores leais do Estado aquela massa frágil, símbolo de exagerados lucros e de deslealdade, e dar sem mais demora triunfo irrecusável ao botão de metal, único digno de brilhar no peito do soldado brasileiro.

Correram os meses, mas por fim o Governo Imperial, após prolongadas consultas ao Conselho Supremo Militar e até ao Conselho de Estado, depois de informada a questão por diversas seções da Secretaria de Guerra e ouvidas as opiniões de pessoas estranhas àquela repartição, mas abalizadas e que nessa ocorrência puseram bibliotecas abaixo; o Governo resolveu de acordo com o pensamento do capitão Pitaluga, e expediu o Aviso Circular de 28 de outubro de 1857, derrocando para sempre o império dos botões de massa e, substituindo-os, como homenagem [...].

Que dia aquele em que chegou a Goiás o correio, trazendo a notícia de tão importante decisão!

Palavra de honra! É de duvidar que a tão suspirada promoção a major, milhões de vezes embora mais profícua em suas consequências, maior e mais completa alegria causara a Pitaluga. Verdade é que imaginou logo que o acesso em posto devia ser o resultado natural e imediato de tão esplêndido e inesperado triunfo.

— Agora é infalível, murmurava ele em suas cogitações. Numa das próximas malas arrebenta a coisa. Também os mandões lá da Corte verão que aqui há gente que entende do ofício e sabe onde tem o focinho.

Passou-se o mês de dezembro, que a 2 se faziam então as promoções; entrou janeiro; chegaram malas umas após outras; vieram muitos caixões de fardamento com botões de metal; acesso, porém, para o pobre do capitão nem sombra. Pelo contrário com toda a frescura passou-lhe a perna um camarada muitíssimo mais moderno, mas que tinha o curso d'arma.

— Décima quinta carona, protestou Pitaluga consigo mesmo. Paciência! Decididamente apelo agora só para a antiguidade absoluta. Nem devia ter um minuto pensado em mais nada!

E repreendendo-se com severidade:

— É bem feito, Sr. ambicioso das dúzias. Encheu a cabeça de caraminholas e está hoje com cara de asno. É muito bem feito!

Em nada, porém, se alterou o furor de escrevinhar e requerer; muito ao invés se apurou.

— Quer queiram, quer não, dizia ele como que iniciando um sistema de resistência e vingança, hei de mostrar-lhes que valho alguma coisa e vejo uns palmos adiante do nariz.

Com o espírito aguçado pela contrariedade, parafusava, dia e noite, à cata das mais meticulosas interpretações, buscando até relações e conexões entre a legislação puramente militar e códigos de matéria muito diferente.

Quanto à companhia, andava cada vez mais relaxada. Os soldados viviam a queixar-se dos sargentos e inferiores; estes, se bons não se sentiam apoiados, se maus abusavam com a mais larga impunidade, de modo que tudo ia mais ou menos à matroca, como aliás se dava com o geral do batalhão.

Também o comandante era, antes do mais, amigo dos seus cômodos.

Todas as quintas-feiras anunciava em ordem do dia, que numa das seguintes semanas começariam exercícios regulares de manobras, fogo e tiro ao alvo, mas nunca chegava a decantada semana.

Quando muito trabalhava a escola de pelotão, essa mesma dirigida por instrutores pouco habilitados e nada zelosos.

Aquele que devera, como chefe e primeiro responsável, dar o exemplo da vigilância e atividade, contentara-se, por desencargo de consciência, com informações vagas e colhidas de momento. O tempo era pouco para se lamentar do calor e da exiguidade de vencimentos numa vida tão dura e cheia de perigos como é a do soldado. Falava também na campanha do Rosas, onde por pouco estivera a entrar em fogo e jurava aos seus deuses que se jamais o Brasil declarasse guerra a qualquer nação, pediria logo sua reforma, porque não queria sacrificar-se por gente ingrata e indiferente.

Era aliás bom chefe de família e pai de dez filhos, cinco dos quais, criados no batalhão, tinham, à medida que atingiam quatorze ou quinze anos, assentado praça, levando para o serviço nacional os hábitos de energia e amor da pátria do seu distinto progenitor.

Uma glória tinha esse comandante.

— Nunca cursei aulas, dizia com certa ufania, nem entendo que haja tanta necessidade de estudos. Basta bom senso.

II

— Então como vai indo sua companhia? costumava ele perguntar entre dois bocejos ao capitão Pitaluga como aos mais oficiais.

— Perfeitamente. Agora porém vou representar ao Governo Imperial, pois há seis meses não recebe fardamento.

— Homem, é verdade... O Sr. lembra bem; faça a representação para todo o batalhão. Eu assino...

— Não preciso entender-me com o major?

— Qual! Aquilo não passa de um formidável trapalhão.

De fato o major Fonseca levava o dia inteiro a gritar, a mandar, a ganir, a levantar-se, a sentar-se, a roer as unhas, a correr de um lado para outro, embarafustando a espada e a pasta entre as pernas, a enxugar o suor do rosto, a gemer como um perdido do excesso de serviço, a ameaçar céu e terra, mas no fundo pouco fazia.

Os soldados chamavam-no lambanceiro*, de lambança que na gíria deles significa baralhamento, confusão.

— Soldado, eu te mato! gritava ele. Camarada, dou-te um tiro!

E assim por diante.

Cumpre porém dizer que Fonseca nunca matara uma galinha e em certa ocasião de levante de presos no xadrez não dera cópia muito brilhante de si.

Tinha porém muito orgulho de sua sabença em manobras, e quando com voz fina e esganiçada ordenava um movimento, por singelo que fosse, terminado com um marche! agudo e estridente, acreditava-se capaz de dirigir diante de ousado inimigo grandes operações militares, veleidade que não tivera ainda tido ocasião de realizar.

Entre esse major e o capitão Pitaluga eram as discussões incessantes e sempre renascentes.

A pedra de toque, era a argumentação em datas de Avisos e Decretos.

Quando se pegavam os dois, só havia retirarem-se todos e deixá-los perder a voz a poder de berros.

Havia uma coisa que o capitão não perdoava ao fiscal: ter sido promovido a major por merecimento, havia já uns dez ou doze anos.

— Saiu com menos de dezoito anos de capitão! dizia ele. Que proteção!

De seu lado tinha Fonseca atravessada na garganta a superioridade incontestável com que o outro jogava com toda a legislação.

— O Sr. anda sempre a me citar leis do tempo do onça! disse ele um dia furioso.

— E por elas não me teria V. S. preterido.

Aí o Fonseca perdeu a cabeça.

— Sr. capitão, uivou o major, não queira desmoralizar-me... O Governo Imperial...

Ora... ora...

— Não me interrompa, Sr. capitão; não sou nenhum mosca morta... Está abusando da amizade que lhe tenho... mas fique certo que saberei sustentar a minha posição, custe o que custar. Não faço valer os meus galões... mas preciso ser tratado com mais consideração. Ora... pois...

— Mas eu...

— Mais respeito... mais respeito... Lembre-se que sou, antes de tudo, seu superior... sou um major do exército!

— Quem lhe contestou isso?... O que digo é...

— Nada, nada... estão cortadas as nossas relações... não quero mais saber do Sr... Só lhe dirijo a palavra em serviço... É escusado... só em serviço...

E retirou-se bufando de raiva, mas daí a duas horas estava consultando o capitão sobre uma dúvida de que não tratara Cunha Matos, nem haviam cogitado as autoridades na matéria.

Assim viviam os dois.

Num ponto se entendiam sem discrepância.

Pitaluga tinha um almanaque militar, já velho, mas tão bem anotado que servia para as alterações e o movimento de todo o exército.

Morria um oficial de qualquer arma, zás! uma cruzinha o eliminava dentre os vivos e portanto do círculo dos concorrentes às promoções, subindo logo a numeração dos que lhe ficavam abaixo e aproveitavam a vaga.

Reformavam-se ou demitiam-se outros, um traço cobria o nome do que deixara não totalmente a existência, mas a vida ativa, sendo indicadas minuciosamente todas as modificações que dali decorriam.

O major não cessava de consultar esse livro, ficando a estudá-lo bons quartos de hora, com a cabeça metida entre as mãos e os cotovelos fincados na mesa. Apesar de boa vontade em achar alguma lacuna, engano ou transposição, via-se obrigado a declarar que, sobretudo na arma de infantaria, o trabalho era perfeito. Havia verdadeira encravação de dois ou três almanaques naquele velho e manuseado volume.

— Nestes dois anos, dizia o Fonseca, você pode estar major...

— Pelo menos conto...

— Assim fosse eu tenente-coronel...

— Pode ser...

— Não posso...

— Pois já não teve uma promoção por merecimento?... há agora duas vagas: os princípios estão equilibrados e uma deve ser preenchida por antiguidade e outra por merecimento, segundo a Lei n. 585 de 6 de setembro de 1850 e §2° do artigo 11 do Regulamento que baixou com o Decreto n. 772 de 31 de março de 1851.

— Se o Sr. diz isto para me ridicularizar... repilo a insinuação.

— Não, decerto.

— Veja lá... Sou muito bom, muito pachorrento, mas quando me chega a mostarda ao nariz... Sei fazer-me respeitar...

— Não duvido...

— Sei, sim Sr. sei...

E levantando cada vez mais a voz:

— Sr. capitão Pitaluga, não consinto que o Sr. queira tirar-me a força moral...

— Pelo amor de Deus...

— Nada, nada acabou-se... Cada macaco no seu galho, acabou-se...

E o lambanceiro lá saía, vociferando, ameaçando e falseando, para daí a um nada procurar Pitaluga, consultá-lo e pedir-lhe conselhos, completamente esquecido de que pouco antes declarara, quando menos, rotos para todo o sempre os laços de amizade e estima que porventura podiam ter existido entre os dois.

III

Em certa ocasião teve o nosso modesto herói por um conjunto especial de circunstâncias, de assumir papel mais ou menos conspícuo entre os companheiros e, contra o voto íntimo e a opinião geral, de sopitar veementes sentimentos que só poderiam ter tido completo desafogo numa representação ao Governo Central. Como o caso por seu caráter excepcional merece atenção e em seus resultados e peripécias apresenta uma das faces da vida íntima de quartel, não é possível deixar de narrá-lo com alguma minudência, embora só devam agradar esses desenvolvimentos aos que enverguem a farda e conheçam mais ou menos exatamente os episódios que se dão na existência pacata e monótona, mas também por vezes agitada de um batalhão em tempo de paz.

Toma o sucesso maior vulto quando se souber que unicamente nas mãos de Pitaluga esteve não só encabeçar atos de resistência legal, como até redigir uma monumental peça que deveria subir à consideração das primeiras autoridades do exército, formulando sérias queixas contra irregularidades de ordem grave praticadas pelo comandante do corpo, em que ele servia naquela memorável conjuntura.

Deu-se o fato por ocasião da reunião do conselho econômico que tinha de eleger o agente do batalhão, por haver terminado seu prazo de administração o alferes que exercera aquele melindroso cargo. Acontecia que outro oficial, que dois anos antes servira de modo a provocar contínuas reclamações da parte de todo o pessoal do batalhão, propalando-se até boatos nada lisonjeiros para a sua reputação de probidade, apresentava-se candidato ao lugar que ia vagar.

Visitando com antecedência um por um os membros que deviam formar aquele conselho e que, pelo Decreto de 6 de outubro de 1855 são os oficiais superiores, efetivos, agregados ou adidos e mais os comandantes de companhia, em todos achou o ousado pretendente decidida e franca oposição.

As lembranças das tropelias que praticara eram ainda tão vivas e o procedimento como simples subalterno tão pouco o abonava que alguns, mais condescendentes, julgaram dever aconselhar-lhe a desistência de uma ideia, cuja simples apresentação causava mais que estranheza, indignação.

Não desanimou, porém, o homem e, em ocasião que lhe pareceu mais azada, desmascarou as baterias, declarando com toda a segurança que sua iniciativa era não só vista com bons olhos pelo comandante do corpo, como até podia contar com todo o bafejo e amparo daquela elevada autoridade.

— Pode ser, pode muito bem ser, exclamou Pitaluga com inesperada força; não se vê isso, pela primeira vez num batalhão. Votarão pelo Sr. os amigos do Sr. comandante, se é que lhe dispensa sua proteção, mas nós, os amigos dos soldados, havemos de repelir com energia o seu nome que é uma ameaça à regularidade do serviço.

Estas palavras foram aplaudidas.

Estabeleceu-se, pois, quase de repente um conflito real que, minando durante algum tempo surdamente os espíritos, poderia produzir perigosa explosão.

Deu-se logo um resultado, que a muitos admirou, mas que o homem prático na vida devera esperar: alguns timoratos declararam-se em tempo desligados da promessa de votar contra o ex-agente, e outros por pendência abstiveram-se de tomar atitude que os comprometesse demasiado.

Entretanto os comandantes das companhias mantinham-se firmes em seu propósito, e Pitaluga, primeiro que todos, por espírito de retidão e talvez teima, sem intenção nem manejos, tornou-se centro da cabala que devia expulsar da urna o pretendente que não inspirava confiança a ninguém.

Durante muitas semanas apresentou o quartel desusada animação, e os oficiais que em tempos normais dificilmente apareciam para ouvirem ler a distribuição do serviço diários saíam de suas casas de manhã cedo e só voltavam às vezes alta noite.

Cochichava-se em grupos, consultando-se este ou aquele e formando-se listas com indicação dos votos contrários, seguros ou vacilantes. Os mais graduados em postos falavam, às escancaras, dizendo o modo por que haviam de proceder; vários alferes empertigados ou imprudentes, contavam horrores do protegido do comandante e mostravam-se resolutos e capazes de resistir às maiores imposições; outros subalternos, mais cônscios de sua precária condição, andavam esquivos e amedrontados; outros, porém, sem alarde nem gritaria, tinham-se decididamente manifestado pró ou contra a candidatura.

O major girava de grupo em grupo, ora dando razão a um, ora a outro, afirmando com a mão na consciência que não tinha ainda estudado a questão, que fazia muito bom conceito do alferes acusado, mas que se lhe dessem provas de seus hábitos de prevaricação, não contasse com seu apoio, que o negócio era muito melindroso e deviam todos obrar com a maior prudência, tapando os ouvidos ao empenho e julgando só pelas regras da mais severa justiça, que ele ia pesar todas as razões e que o seu voto exprimiria tão-somente a verdade, coisas enfim, muito sensatas, mas já de antemão era corrente que o tal catão não faria senão o que lhe mandasse o comandante.

Este procedia com estratégia. Tratando a todos os oficiais com dobrada urbanidade, em conversa particular ia sondando-lhes a opinião e deixando transparecer o seu desejo, rodeado de todas as exigências da prudência. Era preciso, dizia ele, ter em consideração que neste mundo muito trabalha a calúnia, parecendo-lhe da maior importância não atirar, por meio de uma manifestação coletiva, o labéu sobre um companheiro; que o alferes fulano — chamava-se, parece-me, Estulano — fazia dessa eleição questão de honra, sendo ocasião de apelar para todos os seus amigos; que, depois do que se espalhara de conchavos com fornecedores, era de necessidade dar uma demonstração especial de apreço; que, obrando assim, ele, comandante, não fazia mais do que cumprir com os seus deveres morais, procurando zelar o melindre dos seus camaradas, fazendo cessar intrigas que impediam a cordialidade que deve existir entre os militares; que o candidato guerreado com tamanho ardor mostrava- se muito magoado e desejoso até não só de abandonar o disputado cargo, como também de pedir transferência do corpo, fugindo para bem longe de seus rancorosos e gratuitos inimigos; que daí proviria, decerto, desar para a fama do batalhão, sendo os seus oficiais qualificados com cabimento de briguentos, insubordinados e invejosos, razões todas essas que ele ia desenvolvendo com jeito, apoiando mais, numas do que n'outras conforme a disposição do oficial com quem conversava.

Por quê, porém, tomava esse chefe tamanho interesse pela mal parada causa do seu subordinado? Falavam os maldizentes em proventos, comandita e o mais, apontando ocasiões em que haviam entrado pela casa a dentro do protetor carregamentos de víveres, latas de goiabada, objetos, enfim, de origem bastante duvidosa. É de crer que esses dizeres pela exageração pecassem ou até que totalmente lhes faltassem base de verdade, mas que havia decididas simpatias pelo ex-agente e lhe passavam a mão pela cabeça, era impossível negar, inclinação aliás explicada por um motivo muito natural e aceitável: estar já tratado o casamento do alferes com uma das filhas do comandante, devendo ter ponto final um namoro começado desde o tempo em que o rapaz era cadete e a menina ia de calcinhas curtas à escola régia.

Chegou por fim o dia da eleição e pelos cálculos estatísticos de Pitaluga a votação correria muito disputada e, se à última hora, não se dessem defecções vergonhosas, era certa a vitória por dois ou três votos. Tudo estava calculado; todas as hipóteses previstas. De manhã porém andara o major muito atarantado, falando já mais às claras a favor do pretendente, recusando ouvir as provas que exigira para poder formar o seu juízo e mostrando os inconvenientes de quererem desfeitear o comandante, pessoa tão séria, tão merecedora, tão amiga dos seus subordinados, tão cheia de virtudes e qualidades.

O alferes Estulano podia ser tudo quanto quisessem, uma peça, uma peste; mas não se tratava mais dele. Era caso da bandeira cobrir a carga. Enfim fizessem o que bem entendessem, sua responsabilidade de fiscal estava salva.

E tudo isso era dito no meio de muitos trejeitos, bufando e cuspinhando o terreno umas duas braças em torno.

Essa propaganda que podia prejudicar a eleição, ia sendo contraminada ardentemente pelos comandantes de companhia, de modo que, como dizia o tenente Espiridião — o gaiato do batalhão — fervia a cabala que nem juízo de moça em vésperas de noivado.

Os próprios soldados não deixavam de experimentar os efeitos pelo menos morais desse insólito movimento e, ainda que não penetrassem bem no âmago da luta, em poucas palavras davam a síntese de todos os esforços empregados para a vitória do candidato oficial.

— Parece que o grilo* é grosso e vale a pena.

A reunião do conselho econômico fez-se com particular solenidade. O comandante estava risonho, embora um tanto pálido; o major roía o sabugo das unhas, e muitos oficiais mostravam-se acanhados e como que receosos. Quanto a Pitaluga parecia, como sempre, meio alheio ao que se lhe passava em derredor, mas diante de si alteava-se uma ruma de volumes da legislação que deviam ser abertos e consultados em muitos e muitos lugares, marcados com tirazinhas de papel anotadas.

Procedeu-se à votação, correu o escrutínio secreto, e foram cuidadosamente contadas e recolhidas as cédulas. Antes da apuração, suscitou-se uma questão de ordem levantada por um major adido barulhento e amigo do ex-agente, e só depois de réplica e tréplica é que se passou à leitura.

Como em tudo quanto se prende a eleições, tão apreciadas do gênio brasileiro, era vivíssimo o interesse. De pescoço teso, cada qual marcava num papel à parte o número de votos dos dois litigantes, e mais se acentuavam a agitação e curiosidade, à medida que as probabilidades de ganho ou perda se equilibravam e as cédulas diminuíam.

Afinal só restavam duas que ler para dar definitiva vitória ou empate formal, quando novamente se levantou o major adido e bulhento que, com assentimento do comandante, armou uma dúvida, a qual não tinha cabimento algum, ou melhor, nem pés nem cabeça. Pitaluga começou a citar Avisos; uns davam apartes estrepitosos; outros pediam silêncio; era enfim tudo confusão e anarquia, que o presidente do conselho muito de propósito não se dava pressa em reprimir.

Dizem que foram então abertas as cédulas, recaindo os dois votos últimos no antagonista do alferes Estulano, derrotando-o assim galhardamente; o que é certo, porém é que o comandante de repente suspendeu a sessão por turbulenta e, contra enérgicos protestos de muitos, marcou nova reunião para daí a oito dias.

IV

Com a arbitraria decisão do comandante, tomou a questão vulto um tanto sério. Havia grande agitação na oficialidade, e discutiam-se os meios mais próprios para tornar conhecido o procedimento violento que havia nulificado uma eleição regularmente encaminhada. Voltaram-se logo todas as vistas para Pitaluga que, compreendendo a gravidade da situação e apesar de intimamente lisonjeado daquelas provas de confiança, não deixava de sentir-se alguma coisa sobressaltado. Entretanto esboçava já uma representação e corria pelo quartel que dali havia de sair um trabalho monumental.

Como homem prudente, que era aconselhava aos exaltados muita calma e, fiado no resultado do novo conselho, acreditava que tudo ficaria sanado com a derrota decisiva da candidatura Estulano.

Alguns companheiros mais descrentes ou atilados, começaram, porém, embora sem razão positiva a recear que as contínuas advertências do major fiscal e repetidas conferências com o comandante abalassem a resolução do capitão da 6.ª Companhia Peregrino, vulgo Pelo molhado, homem fracalhão e muito medroso de comprometimentos, mas avoado* e cheio de repentes.

Findo o prazo de oito dias, deram-se as mesmas formalidades e, reunido o conselho, chegou-se ao mesmo resultado de empate dos pretendentes; antes da apuração das duas últimas cédulas. Imaginem-se a ansiedade e inquietação daquelas encontradas opiniões; alguns suavam frio.

O secretário leu um nome: era o do alferes Estulano. Os membros do partido contrário trocaram rápidos olhares — a estatística começava a falhar: segundo nome, ainda Estulano.

Fez-se aí um grande silêncio. O comandante declarou em voz alta eleito o mais votado e, depois de outras providências sem importância, encerrou os trabalhos do conselho econômico, retirando-se com um sorriso de triunfo nos lábios.

Mal voltara as costas, rompeu a indignação que o desfecho da eleição comprimira, dando-se violentas altercações entre diversos oficiais. O agente novamente empossado do cobiçado lugar não ocultava o seu orgulho e, teimoso e malcriado como era, foi provocando barulho com alguns dos seus desafeiçoados. Disse tanto despropósito e portou-se tão inconvenientemente, que o capitão da 6.ª, vulgo Pelo molhado, declarou-se arrependido de ter votado por ele.

Apesar da quase certeza do modo por que se portaria o Peregrino, aquelas palavras causaram sensação. Rodearam o homem que, levado por um de seus repentes, contou tim por tim a maneira porque lhe haviam arrancado o voto e de mais um seu sobrinho sugestões, promessas e peditório, nada' de muito grave na essência, mas enfim a intervenção menos leal do comandante patenteava-se sem véus nem rebuço, tanto mais quanto o medroso de comprometimentos, impelido por um desses ímpetos de coragem próprios dos poltrões, dizia-se pronto para exarar por escrito tudo quanto acabara de contar.

O alferes Estulano viu que se tinha excedido; safou-se depressa, e os mais oficiais, conversando ruidosamente acerca dos curiosos incidentes daquele notável dia, retiraram-se do quartel para à noite se reunirem, menos o Pelo molhado, em casa do capitão Pitaluga. Convinha, de fato, concertar no modo de tornar efetivo e eficaz o protesto contra a interferência do presidente nas decisões últimas do conselho econômico, invalidando resultados legais e manifestos, para produzir efeitos obtidos por meios pouco dignos e reprovados.

Como são proibidas no foro militar as queixas coletivas, devia alguém assumir a responsabilidade de acusar o comandante, assinando sozinho o libelo denunciador.

Muito naturalmente e sem discrepância caiu sobre os ombros de Pitaluga esse honroso encargo, ficando ainda incumbido da redação do tal documento e da exibição das provas deponentes, missão sem dúvida grata à sua índole, ocasião incontestável de chamar sobre si e sobre o seu saber a atenção publica, mas também espinhosa tarefa que poderia e deveria acarretar-lhe numerosos incômodos de variada natureza.

Durante muitos dias vacilou Pitaluga entre essas considerações, mas pesando bem os prós e contras, lembrando-se que afinal o chefe de um corpo tem, como lá dizem, a faca e o queijo nas mãos por meio das notas semestrais e que provavelmente qualquer solução prejudicaria ainda mais a sua célebre promoção a major, deu de mão às instigações da vaidade e, procurando um por um os seus colegas, desculpou-se por não poder dar cumprimento à incumbência, principalmente pela dificuldade de conseguir documentos que comprovassem os hábitos prevaricadores do agente eleito pela cabala e imposição do comandante.

Este, dissipada aquela tormenta, teve o espírito de não se mostrar sabedor de coisa alguma e nas informações do semestre teceu ao capitão Pitaluga pomposos elogios, fazendo especial menção de suas habilitações extraordinárias e da vocação para a carreira das armas, de que dava diárias provas.

Nem por isso saiu ainda naquele ano promovido a major o tão gabado oficial.

V

Por esse tempo mais ou menos arrebentou a guerra do Paraguai, e o batalhão teve ordem de marchar para o sul da província de Mato Grosso. Seguia de Minas Gerais, S. Paulo ou Goiás, não vem a pelo saber com exatidão.

A viagem em todo caso foi longa, mais do que era de prever.

O major gritava noite e dia como um possesso. Quando chegava ao pouso, recomeçava com o berreiro que durante a marcha não cessara de fazer, tudo porém em pura perda, pois lhe conheciam a balda e gênio, e já ninguém dava importância às intermináveis imprecações.

O capitão Pitaluga ia pacificamente montado num burrinho, deixando-se levar pela corrente dos acontecimentos e calculando quanto tempo ainda o obrigaria a sorte a essa vida errante, longe do sossego da sua casa e do remanso da querida família.

— O Sr. está hoje muito pensativo, disse-lhe um dia o major Fonseca passando por perto dele numa de suas idas e vindas desde a guarda da frente até à extrema retaguarda.

— E Sr. muito aforismado*.

— Ora tudo anda tão mal!... Não fosse eu!... O comandante depois que pediu reforma não vê nada... Mas no que vai pensando?

— Numa coisa muito simples... É que houve inconvenientes em acabar com os dias certos de promoção. Antes de 1863, sabia-se que a 14 de março ou a 2 de dezembro saíam as listas, mas o Sr. conselheiro Melo...

— A lei foi do Melo?

— Sim, Sr.; Decreto n.3168 de 29 de outubro de 1863, modificado hoje em parte pela Resolução de 22 de dezembro de 1865.

— Creio que está equivocado... Em 1863 o Melo não...

— Pelo amor de Deus... Nem discuto... Hoje se faz, como sempre se fez, uma promoção geral dentro do ano, a diferença é que o oficial não pode ter base certa para seus cálculos.

— Repare porém que a lei não é do Melo... Tenho toda a certeza, tanto assim que...

E, interrompendo o que ia dizer, atirou-se quase do cavalo abaixo sobre um soldado:

— Não jogue a arma no chão, camarada, bradou ele logo fulvo de raiva, isto é do Estado!

— Eu não joguei, Sr. major, contestou a praça com mau modo.

Fonseca ficou rubro que nem uma pimenta malagueta.

— Sr. capitão... prenda este homem... prenda-o já... Faltou-me ao respeito... Soldado, eu te enforco!... Sr. capitão, a culpa é sua... a companhia anda insubordinada.

E, esporeando a cavalgadura, no meio de muita gritaria ia, vinha e girava como um furioso.

Pitaluga interveio.

— Cabo, ordenou ele a um inferior, leve o 24 para a guarda da frente.

— Leve, leve, urrou o major. Está preso à minha ordem... à ordem do comandante!

— Mas eu não fiz nada, protestou o soldado.

— Caluda! disse o cabo com imposição, em frente ordinário, marche!

E lá se foram os dois.

— Então, perguntou depois de algum silêncio Pitaluga ao major que estava ainda fora de si, que diz o Sr.?

— Digo que a sua companhia não vai boa... Soldados, assim alçados* constituem um verdadeiro perigo...

— Não falo disso... Falo na lei do Melo...

— Mas se contesto...

— Seja ou não, acha que estou major antes de entrarmos em Mato Grosso?

— Oh! se acho...A propósito, ao chegar ao pouso, mande soltar aquele praça, ouviu? Gosto de sustentar a disciplina, ser até severo, mas não quero também massacrar os pobres soldados, já tão carregados de trabalhos e misérias.

Depois de reunidas no Coxim as forças que deviam operar no sul da província de Mato Grosso, passaram-se alguns meses sem que se recebessem cartas da Corte, nem direta, nem indiretamente.

— A esta hora, pensava Pitaluga a todo instante, estou com certeza major. Maldito sertão! Se tivéssemos pelo menos o Correio de Goiás!

Afinal num belo dia chegou a mala.

Trazia notícias atrasadas e entre essas uma promoção monstro nas armas arregimentadas, sendo todas as vagas preenchidas por atos de bravura praticados em combate, por ocasião dos dias 16 e 17 de Abril, 2 e 24 de maio de 1866. Eram ainda mais confirmados os postos dados no campo de ação pelo comandante em chefe do exército, de modo que Pitaluga recebia de chofre uma avalanche de preterições.

Aí saiu da calma habitual.

— Mas isto é uma iniquidade! exclamou ele no auge do furor. Que culpa tenho eu que me mandassem para estes ermos em que só temos que lutar com febres e sezões?!

— Culpa decerto não tem, ia concordando Fonseca, mas...

— Mas o quê?... E a lei?... Então não temos mais regímen? O princípio de antiguidade é sagrado... Nada... hei de proceder com energia... há o precedente do Cantuária com o Cunha Matos... Leia a consulta do Conselho de Estado...

— Mas o Abaeté...

— Qual Abaeté... nem meio Abaeté... Levo as coisas ao último extremo... Apelarei para o corpo legislativo... Tomar cangalhas como sendeiro velho e que querem inutilizar debaixo do peso... Desaforos não aturo, Sr. major... É demais! Estou servindo a uma nação que não conhece o que é justiça.. Não aturo! Não, mil vezes, não!

Fonseca, vendo a exaltação do homem, julgou dever tentar acalmá-lo.

— É preciso ter paciência... Eu também...

— Ora, o Sr. é dos tais para quem foi feito o merecimento... é menino bonito... tomou águas de batismo... eu não, sou mouro, sou judeu, sou excomungado, sou o diabo.

Seguiu-se um barulho tal que retumbavam os gritos longe.

O major gasnia como um perdido.

— É preciso ver com quem fala!

— Lá me importa!... Não tenho mais paciência para aturar o Sr., o governo, os homens!... É uma infâmia!...

— Veja que... sou major.

— Seja até imperador da China! . . Filho do sol e neto da lua! ..

— Está preso, Sr. capitão, está preso!

O outro replicava no mesmo tom e zombava da prisão.

Os soldados que passavam por perto do ranchinho de palha em que disputavam os dois, riam-se maliciosamente.

— O bate-barbas está hoje feio, observou um.

— Ora, disse outro, daqui a pouco estão tomando café juntos.

Não foi café o elemento conciliador, mas uma cuia de infusão de congonha do campo açucarada.

No correio próximo seguiu a reclamação do capitão Pitaluga em dez laudas de papel holanda, todas cheias de uma letra miúda que só lê-as consumia a paciência de qualquer cristão desocupado, quanto mais a de um ministro atarefado com centenares de assuntos da mais instante e transcendente importância e elevação.

Ia pomposamente informada.

VI

Contar por miúdo as decepções por que passou durante os cinco anos da campanha do Paraguai o capitão Pitaluga, fora um nunca acabar. Basta dizer que se davam a cada chegada de correio. Todas as promoções referiam-se tão somente ao exército que operava na território da república do Paraguai, e as forças de Mato Grosso, quer em luta no sul da província e fazendo prodígios de valor e de constância, hoje conhecidos do mundo inteiro, quer estacionadas em Cuiabá, ficavam á margem até nas listas de prêmios honoríficos e condecorações.

Pitaluga entrou em fogo com certa galhardia, ainda que abstrato e indiferente; curtiu sem queixumes os horrores da retirada da Laguna, caminhando descalço e rompendo com os pés a trilha dolorosa que o destino impôs àquele punhado de valentes brasileiros como meio único de salvação; chegou ao rio Aquidauana depois de perder tudo quanto possuía, menos o célebre almanaque; foi mandado para Cuiabá com os esfrangalhados restos, da coluna; caminhou mais uma centena de léguas, sempre, porém, capitão; capitão como fora, capitão como devia morrer.

Uma só esperança lhe restava: era ver terminada aquela longa e penosa guerra, para fazer valer o seu direitos de antiguidade, sempre de pé.

— Promovam quanto quiserem, não me tiram do número 2. Voltem as coisas ao estado normal e imediatamente eu e fulano — o teimoso n.º 1 dos capitães — havemos de ter o acesso que, há tantos anos, nos sonegam. Quanto à antiguidade que temos perdido, veremos... hei de reclamar... É uma questão da maior importância. há de ser consultado o conselho de Estado... teremos barulho grosso...

Desejos sempre vãos; reais só dores!

Terminou a guerra; desapareceu da face da terra o perverso que a alentava; regressaram os batalhões ao seio da pátria; emergiu a doce paz das densas sombras da luta e da destruição: entraram todas as coisas em seus eixos, mas, oh fatalidade, surgiu ao mesmo tempo para o pobre do capitão esse monte Nebo, que tantos nesta vida de decepções e amarguras têm de galgar para tão-somente de longe contemplarem a realização de suas mais ardentes e justas esperanças!

Querendo o governo solver as dificuldades que para a regularização do serviço tinham introduzido os muitos postos de comissão dados durante a campanha com caráter temporário, pedira e obtivera do corpo legislativo autorização para serem todos os oficiais, comissionados com posto imediatamente superior, considerados como graduados em seus respectivos quadros. A lei trouxe a data de 6 de outubro de 1870.

Assim de chofre caiu sobre Pitaluga uma carga tal de cangalhas e caronas que ele, precipitado do número 2 em que se alcandorava ainda com certo orgulho exigindo justiça, foi pisado e magoado, rolando todos os degraus da escala até a um ponto, onde a decantada antiguidade tomava visos de verdadeiro escárnio.

Tão fundo e imprevisto golpe trouxe por fim o desânimo.

Incontinente e sem barulho pediu Pitaluga mui laconicamente sua reforma, inspecionou-se de saúde e, tendo conseguido voltar para Goiás a fim de esperar aí deferimento da sua última petição ao governo, recebeu sem mais abalo nem comoção a notícia de que não pertencia mais à parte ativa do exército.

Podia enfim descansar rodeado da idolatrada família, fazendo embora amargas reflexões, não tanto sobre a injustiça e inconsequência dos homens, como sobre o caiporismo que o acompanhara em todas as fases de sua obscura existência

Nem sequer pôs mãos ao trabalho que destinava para a vida de reformado — O índice cronológico da Legislação Militar —. Minado pelo aborrecimento, arrastou os dias enfadonhamente até que foi chamado por Deus a prestar-lhe contas e perante o Qual é de crer narrasse pela última vez a história da falhada promoção ao suspirado posto efetivo de major do exército Brasileiro.

FIM

 

UM DIA DE PAIXÃO

Caro Sílvio

Queres então por escrito aquilo que, entre boas fumaças de puro havana, te contei numa noite de esplêndido luar e era horas de confidência? Obedeço-te, mas sê cauteloso e sobretudo severo na correção das linhas que te envio e atenue bem, que, entregando-te estas ligeiras páginas, procuro tão-somente satisfazer um capricho de amigo. Militar como sou e muito ocupado com a carreira que para mim começa e abracei por vocação, atreito ainda mais a certa ordem de leituras e estudos positivos e áridos que me consumirão — talvez sem nenhum proveito para a vida prática — bons pares de anos, não posso decerto manejar a língua com essa leveza de estilo que comportava o caso, esse apuro gracioso, essa correção de frase, esse acabado de forma, esse esmero, enfim, sem o qual ninguém devera saltar, de viseira alçada, na arena da publicidade, como cavaleiro que ganhou legitimamente as suas esporas de ouro.

Sem mais explicações, porém, enceto o meu conto, a que não acrescentarei o mínimo ponto. Dando-lhe, contudo, a importância de um mero post-scriptum, consente que antes me assine

Teu amigo

Eugênio de Melo

Capitão de artilharia.

Recife, 10 de Maio de 1875.

I

Calmo, fundo, largo e de límpidas águas era o rio; por entre verdejantes margens corria o vapor, ora quase a roçar as franças das árvores, ora bem no meio da corrente; o dia, a princípio nublado, fora destoucando-se das brumas da manhã e resplendia viva e alegremente; a brisa soprava fresca e contínua; reuniam-se numa palavra todas as condições precisas a fim que a bordo reinasse sincera satisfação e daí cordiais disposições entre os passageiros para imediata e recíproca harmonia.

A viagem devia durar um dia.

Em 24 horas iam prender-se relações, iam formar-se simpatias, inclinações, conhecimentos que deviam durar a vida dos efêmeros bichinhos de que nos fala a mimosa fábula de Lessing.

Embora!... Convinha tanto mais não perder tempo.

Lancei os olhos em torno de mim.

O convés estava abarrotado de caixotes e volumes, e, trepados em cima deles mais ou menos grotescamente, conversavam já com animação vários viajantes, uns logo a cômodo e, contra a expressa regra inglesa, de chinelas de tapete e paletó branco, outros, mais cerimoniosa ou convenientemente, de sobrecasaca preta e até chapéu alto.

Senti de pronto que ali não era o meu centro de atração. Fiz então como a maçã de Newton e... fui cair num grupo de moças.

Formosas, na verdade, desembaraçadas, espirituosas e de ótima sociedade.

Havia... havia uma bela menina de olhos negros, nariz aquilino, boca breve e cabelos bastos. Solteira e com 18 anos mais ou menos. Cabeça altiva, condenada já por sentença do coração ou conveniências de família — não averiguei este ponto — ao pesado jugo do matrimônio.

Havia uma loura... que loura! De 28 ou 30 ou talvez 35 primaveras. Casada e sem filhos; tinha um modo de olhar todo seu e — sinceramente — perigoso para quem busca viajar por este imenso e inquieto mundo, sossegado com a sua consciência e de acordo com o nono mandamento da lei de Deus.

Havia duas lindas morenas, entre menina e moça. Coravam a todo instante de acanhadas, mas às vezes fitavam a gente como mulheres feitas. Encantadoras borboletas há pouco saídas da crisálida, mas com as cambiantes asas demasiado débeis para desprenderem com segurança o caprichoso voo.

Passando por alto outros dois interessantes tipos, com grata surpresa se me deparou essa graciosa viuvinha de quem tanto se falara na cidade donde saíramos; viuvinha de 25 anos quando muito, arrebatadora, mas... inconsolável.

Perdera, já tempos atrás, um marido como, parece, não se encontra segundo, pelo que trajava sempre vestidos de cor mais ou menos sombria, que, denunciando as tendências melancólicas de seu espírito depois da irreparável perda, lhe assentavam, contudo, como uma luva, fazendo valer a graça, o donaire de seu esbelto corpo e as elegantes curvas do colo e bem torneadas espáduas.

Que quebrar d'olhos tão lânguido, tão insinuante! De minuto a minuto como que se acendiam chamas entre aquelas cansadas pálpebras! Parecia entrever a sombra do chorado esposo e dardejava-lhe então um olhar repassado de amor e loucas promessas, estivesse quem estivesse entre ela e seu impalpável objetivo.

Sem razão especial, foi por essa que me senti mais atraído. No dia seguinte tinha de deixá-la, que tomar rumo oposto, seguir para o Rio de Janeiro, sulcar as ondas do oceano, ao passo que uma cidade do interior da província era o fim de sua viagem; no dia seguinte tinha que vê-la, quem sabe, pela última vez... mas em vinte quatro horas bem se podem reunir elementos de suave e inocente recordação para muitos e muitos anos.

Daí a pouco conversávamos todos como conhecidos velhos; isto é, peguei a palavra e pus-me a falar, senão espirituosamente pelo menos com extraordinária volubilidade, sobre tudo quanto me passava pela cachola um tanto exaltada. Toquei nos mais variados assuntos: bailes, guerra do Paraguai, teatros, modas, romances, livros profanos e de piedade; critiquei aqueles senhores e senhoras que ambos devíamos conhecer, verificando previamente com jeito se havia ou não algum parentesco; descrevi uns episódios patéticos da campanha última; narrei outros jocosos; fiz rir louras, morenas, casadas e viúvas; contei proezas que nunca sonhei praticar e — com certa dor de consciência —  cortei largo no rol das aventuras, viagens, contratempos e coincidências.

Vencidos — graças ao meu desembaraço — os primeiros óbices do constrangimento, estabeleceu-se entre nós invejável intimidade. Cada qual, menina ou moça, trouxe à baila o seu caso; disse sua palavrinha; emitiu seu juízo mais ou menos certo, mais menos justo, mais ou menos malicioso e maldoso sobre fulano e sicrano, simples conhecidos ou até amigos de infância.

E as horas voavam deliciosas!

Do nosso elegante círculo fora eliminado o sexo feio. Perdoem... havia um único representante: era eu.

Achava-me tão enlevado, tão feliz, que não quisera dar preferência a esta mais do que aquela, mas o destino ou o acaso ou o que quer que era, impelia-me para uma determinada direção, e como sabem, nem a Júpiter, nem ao mesmo Júpiter, pai dos deuses e dos homens, era dado resistir aos ditames irretratáveis do fado.

Pois não é que a viuvinha lembrou-se de me interpelar direta e positivamente, fazendo com sua voz insinuante, cristalina e musical penetrar em meu coração, de seu natural predisposto — em boa hora o confesso — o orgulho mais insano e descomedido?

— Se não fora o Snr., disse-me ela com um sorriso encantador de faceirice e sinceridade e compendiando num relancear de olhos a gratidão coletiva que queria expressar, se não fora a sua animação e amabilidade, estas horas ter-nos-iam sido bem penosas.

E todas concordaram com um murmúrio de vozes suave como a brisa a sussurrar entre os folíolos das casuarinas.

Levei a mão ao peito. Não posso afiançar se a posição não tinha o seu quê de ridículo.

Em todo caso balbuciei, corando talvez um poucochinho;

— Que direi eu então?

E inclinando-me para quem me fizera o elogio, acrescentei baixinho, mas com expressão:

— Assim iria ao fim do mundo e ao paraíso!

Como moça de espírito, compreendeu de pronto que meu voto intencional era eliminar radicalmente a companhia, apesar dos seus encantos, e encetar sem detença um dueto que nós levasse serenamente aos confins da terra, antes de penetrarmos no eterno e divinal Éden!

— Lisonjeiro! acentuou ela encrespando ligeiramente os róseos lábios — e, como que respondendo a uma pergunta íntima, um tanto demoradamente me examinou dos pés à cabeça.

Não sou feio e até tenho pretensões a elegante, mas, cumpre declarar, para todo homem é sério esse momento, máxime nas circunstâncias em que eu me achava. Quantas vezes esbarra um Adônis, um Antínous, onde outro muitíssimo menos ou em nada favorecido da natureza, lá por um palpite, um capricho ou uma futilidade, encontra estrada franca para ir ter ao rendido coração!

Não sou alto, nem baixo; mais magro do que gordo; tenho 27 anos, bons dentes, olhos pretos bastante vivos; inclinação de espírito algum tanto folgazona; cabelos negros, lisos, quase acaboclados; tez morena, nenhuma barba, bigode bem arqueado e um ar de santinho que às vezes sei com algum proveito adaptar às ocasiões.

Ia-me esquecendo: a farda de artilharia assenta-me bem, fazendo valer a cintura que é fina.

Não se pode ser mais puerilmente fátuo, não achas, Sílvio? Mas estou contando tim por tim o que me sucedeu, o que pensei, o que fiz naquele dia memorável e não me é dado deixar de lado circunstância alguma que justifique a precipitação com que caminharão os acontecimentos de ordem, quer moral, quer física.

Quem, um tanto conhecedor das coisas deste mundo, ignora que um pé bem talhado, uma mãozinha mimosa, uma cintura delgada, um sinal de nascença, um defeito até, em certos casos críticos vale mais do que centenares de argumentos concatenados pela hermenêutica mais cuidadosa e cerrada?...

Continuemos porém.

Com esse arzinho modesto, a que me referi e que me diz bem, sujeitava-me eu alguma coisa acanhado ao meticuloso exame, quando ao grupo se achegou alguém que naquelas vinte e quatro horas podia de todos nós merecer o tratamento de amigo e amigo íntimo.

— Não sabem, minhas senhoras? exclamou ele com modos de quem ia dar uma notícia do mais subido alcance. O Sr. capitão toca muito bem piano, e aqui a bordo temos um instrumento menos mau.

Oh! um capitão tocando piano! A novidade causou verdadeira sensação. Ainda se fora um bacharel em ciências jurídicas e sociais, vá feito; eles podem e sabem fazer tudo à perfeição, invadindo todas as especialidades, todas as atribuições, todas as esferas, decidindo e discutindo todos os assuntos de qualquer espécie e natureza que seja, dominando tudo do alto de sua sapiência ilimitada e quase sempre infusa, tudo dirigindo desde os mais árduos e intrincados negócios do Estado até ao cotillon das salas, mas um oficial do exército... rara avis!

Apesar dos protestos, negaças, desculpas e relutância, achei-me, daí a minutos, sentado diante de um Pleyel bem sofrível.

A viuvinha declarou-se louca por música; cantara outrora romances sentimentais, mas desde o falecimento do esposo nunca mais soltara uma nota. Fechara a garganta aos ímpetos do peito.

— E Adélia tem uma linda voz, anunciou-me a loura.

— Se me fora dado ouvi-la! exclamei com imenso lirismo.

Quando preludiei em surdina, como pássaro que experimenta e afina a laringe, vi que empalidecia ligeiramente!

— O Sr., observou ela, é um maestro.

Maestro ou não, percebi que o instante era decisivo. Invocando Anfion a fim de comover os corações pétreos que por ali houvesse, ataquei com resolução uma fantasia sobre não sei que tema de ópera — meio improviso, meio plágio. A coisa era em lá bemol e levava endereço direto à viuvinha.

Depois de uma sucessão de acordes que procuravam, com a possível discrição, saber se a lembrança arraigada do defunto não permitiria nunca, nunca, a insinuação de um sentimentozinho pequenino, pequenino como a unha rosada do dedo mínimo da fada Titânia, pintei-lhe nas largas frases de um dueto em adágio, que pertencia a Donizeti e à inspiração do momento, a felicidade da convivência de duas almas criadas para se entenderem. Abusando do assunto e exprimindo as inquietações de um ser ávido de amor, terminei num pianíssimo vaporoso.

Calorosas palmas cobriram os últimos sons da minha súplica.

Ela, mais do que ninguém, mostrava-se enlevada, arrebatada.

— Pelo amor de Deus, implorou com entusiasmo, não se levante. Toque mais, toque tudo quanto souber. Ouvi-lo-emos extasiadas e gratas.

— É verdade, confirmou uníssono o coro feminino.

De posse novamente do teclado, perguntei por meio de altivas cromáticas se era intenção sua inabalável não render mais culto à paixão, rebelar-se contra o influxo do mitológico Cupido.

E com que direito? interrogou sombrio um repentino ponto de órgão. Porventura a sombra de um marido enterrado há tantos anos, pasto de vermes, eco morto, esvaído —  grupetos irônicos — porventura essa reminiscência anacrônica, importuna, impertinente, devia aniquilar tudo, mocidade, inteligência, beleza, fogo, esperanças de futuro, fé no porvir, alegria e felicidade?

Não, decerto!...

Vi perfeitamente que se o espírito do tal cidadão viesse àquela ocasião pairar por ali, teria cruéis e inesperadas decepções.

A viuvinha não pensava senão em si. Isto é, concentrada, abalada, nervosa, procurava indagar o que sentia e indecisa não encontrava explicação que lhe agradasse à turbada mente.

Antes que a achasse, levantei-me do banco do piano. Era acolchoado, e o calor aconselhava de preferência uma simples cadeirinha de palha.

II

À mesa do jantar, aplicando algumas regras de tática elementar, achei-me colocado junto dela.

Na impossibilidade de continuar a manifestar por música o veemente sentimento que em mim surgira, procurei com ousadia a pontinha do pé da bela vizinha.

Encontrei-o inerte, quase inflexível.

— Porque tanta frieza? perguntou minha botina Meliès com timidez e fazendo um lento movimento retrógrado.

Silêncio completo.

Depois de nova e menos dúbia investida, apresentando a interrogação sob diversas faces, respondeu com acanhamento e dúvida:

— Ora... comprometer-me!... E quem é o Sr.?... Daqui a pouco temos que nos separar!...

— Mas, replicou o Meliés com o fogo de que é capaz um couro curtido e engraxado, se eu chegasse a ganhar um cantinho... do seu coração... seria... para toda... a vida! Juro-lhe que deixo tudo... a viagem que levo... os instantes interesses... que me chamam... arrisco conselho de guerra... tudo, enfim, para... segui-la até onde quiser arrastar-me!...

— Não, balbuciou o sapatinho, tenho medo... dos homens...

— Confie em mim...

— Logo o Sr.?. militar quer dizer volúvel!...

— Protesto, disse de pronto minha botina acentuando com energia essa reclamação, em nome de toda... a classe... e apelo para a verdade dos fatos...

— Deixe-me... deixe-me em paz, implorou o acetinado e gentil calçado.

E recolheu-se, sob as amplas dobras do vestido a buscar inviolável guarida.

À vista disto não tive remédio senão cuidar de jantar, Apesar da elevada temperatura e das circunstâncias que obrigavam a muito comedimento na ingestão alimentícia a bem da poesia, dei conta cabal de tudo quanto me puseram no prato e... não foram asas de passarinho.

De seu lado não se conservavam inativas as mimosas mandíbulas de minhas companheiras e como felizmente já passou de moda aparentarem as moças inapetência e dispepsias, mais subiram no meu conceito.

Mal tomáramos café, que por sinal parecia ter sido preparado em cozinha inglesa, e a viuvinha pediu-me que voltasse ao piano.

— Só se ordenar, retruquei-lhe.

— A tanto não me atrevo, respondeu ela com faceirice.

— Pois de outro modo, ninguém e nada poderão levar-me a isso.

E principalmente em consideração à digestão que o abafado da sala tornava mais vagarosa e difícil, subi com elas todas ao convés, onde debaixo do toldo e apreciando a forte brisa que reinava, encaminhei a conversação para o variado campo da literatura.

Todas conheciam mais ou menos as letras, não João de Barros, Lucena, Frei Luiz de Souza, Goethe, Schiller, Corneille, Homero e Heródoto, mas em geral os romances franceses de Alexandre Dumas para cá. O autor predileto da inconsolável viuvinha era Octavio Feuillet e o livro de sua paixão — O conde de Camors. A loura, casada e sem filhos, declarou peremptoriamente que seu favorito era Balzac, o grande e incomparável historiógrafo da Comédia Social.

Ora nos meus primeiros anos de academia, nos intervalos que me deixavam o Lacroix, Bourdon, Regnault e Lefebvre de Fourci, eu consagrara-me à adoração desse escritor, de modo que devorara quase tudo quanto lhe saíra da fecunda e imaginosa pena. Não me achei, pois, como se diz, descalço e em rápida resenha mostrei de sobra que pisava em terreno conhecido.

— Não acha, Sr. capitão, perguntou-me languidamente a loura, que ele é sempre verdadeiro quando pinta a paixão?

— Não posso com segurança responder a V. Ex, porque Balzac muitas vezes falseia as situações com patentes exageros.

Pediram-me explicações dessa sentença um tanto metafísica.

— Vou exemplificar. No Lírio do Vale, uma das mais graciosas concepções daquele gênio — que gênio é  — logo no primeiro encontro de dois jovens que deviam amar-se com inaudita violência, o mancebo, sem mais preâmbulos, esquecido de todas as considerações dá, em pleno baile, uma dentada no ombro decotado da mulher por quem sente inopinado amor: Acho o procedimento, além de muito inconveniente, bastante brutal.

E lançando significativo olhar para as nuas e nitentes espáduas de minha interlocutora:

— Não é que faltem tentações.

A loura corou como uma pitanga, mas replicou com valentia:

— Pois acho que o Sr. não tem razão. A paixão instantânea não calcula; é cega; nada vê; nada respeita. Faz como a labareda, devora, estraga, aniquila.

— Bravo! bravo! aplaudiram as outras.Que animação!

A observação calou fundo e manifestou-se por novo e mais intenso rubor e por certo balbuciar.

— Isto é... não sei... deve ser assim. Acho decerto a ação censurável, mais debaixo do ponto de vista do romancista um tanto natural.

Decididamente aquele ombro deslumbrante de alvura, aquele ombro carnudo e roliço, deixar-se-ia criminosamente morder.

Nesse enlevo rápido como o pensamento, fiquei uns instantes calado.

— É o que o Sr. capitão, observou a viuvinha, não acredita em paixões repentinas.

Virei-me rapidamente.

Posso deixar de crer em combustões espontâneas, nas trovoadas artificiais do Sr. Marques de Carvalho ou no espiritismo do Sr. Melo Moraes, mas não crer em paixões súbitas, eu vítima de uma das mais inopinadas e abrasadoras?

Prontamente protestei com o ardor de quem arreda de si uma calúnia e, deixando à margem e de uma vez o louro tipo que me inclinava a infringir — por pensamento —  o nono mandamento, declarei-me capaz de ali mesmo, naquela hora, praticar as maiores loucuras por quem se parecesse com certa pessoa, cujo retrato coincidia exatamente com os sinais fisionômicos da senhora viuvinha.

Não sei como, desse ponto em diante, fomos nos isolando, como se devêssemos dar começo ao célebre dueto, a que se referira a fantasia musical.

E música era sua voz velada, tão doce e suave, tão cadente como barcarola cantada nas lagunas de Veneza em noite de amortecido luar.

De seus cabelos, de seu flexível corpo emanava um perfume de violetas murchas que me inebriava.

Disse-lhe muita coisa; só faltou formal declaração de amor que me pairava nos lábios mas não ousei arriscar, ou a clássica genuflexão.

E o vapor corria, corria, batendo monotonamente as águas como gigantesco palmípede.

E a noite descera serena e fresca, desdobrando o cintilante e misterioso manto. Era noite de luar, mas o argênteo astro não emergira ainda do esperançoso oriente.

— Gentes! observou ela de repente com familiaridade, não é que estamos sós no convés.

— Antes sós no mundo! exclamei travando-lhe da mão com ousadia.

Ela puxou com certo vagar a destra e, deitando-me profundo olhar, disse-me esta única palavra:

— Desçamos.

Na verdade descemos.

Fui novamente para o piano e sem interrupção toquei até às 11 horas da noite.

Aí a loura declarou-se com uma pontinha de dor de cabeça, pediu licença para se recolher ao seu camarote, arrastou consigo as outras, e não tive senão despedir-me do amável e risonho grupo.

— Adeus, Sr. Eugênio, disse-me a viuvinha um tanto zombeteira, durma bem... a sono solto...

— Quer que sonhe com as Sras.?... Com V. Ex.?...

— Conosco, não; nós lhe proibimos positivamente... sonhe com a sua namorada...

— Ou suas namoradas, emendou a solteirinha em vésperas do casório. Os Snrs. nunca andam desprevenidos.

— Que maldade! repliquei, e que injustiça!

E todas foram dormir.

III

Quando me achei deitado no meu beliche, estirado sobre um colchão de dois palmos e meio de largura, mas não muito duro, assaltaram-me dois sentimentos quase que igualmente fortes: um de extraordinário cansaço, como que um quebrantamento invencível de corpo e espírito; outro de desespero por ver findar um romance tão bem encetado.

Se eu me levantasse?... Se passasse a noite a rondar o vapor?... Quem sabe?...

Ah! mas a lassidão era tal, que a cabeça a custo se desprendia do travesseiro, e mal podia o corpo tentar qualquer movimento.

Nessa dúvida, nessa vacilação que me aumentava de modo doloroso a fadiga, estive talvez meia hora.

Apelei afinal para toda a energia de que dispunha ainda, fiz um esforço ingente, pulei da cama e, vestindo-me com certo apuro, embora na escuridão, por ter perdido a caixinha de fósforos, abri a porta do camarote.

Tudo jazia em trevas.

Esbarrei em meia dúzia de caixas, logo aos primeiros passos; quase que parti o nariz em um varão de ferro; pisei nas pernas de uns passageiros de 3.ª classe que por ali dormiam e que rosnaram surdamente umas pragas e queixumes; bati com a testa na quina de uma porta, mas enfim, depois de muitas apalpadelas e voltas, alcancei a escada de proa e subi ao convés.

Estava esplêndida a lua. Refletia-se num lado do rio, transmudando-o em deslumbrante lâmina de prata, ao passo que mergulhava a outra margem em fantástica escuridade.

Nas barrancas o arvoredo formava maciços compactos e sombrios, em cujo meio cintilava um ou outro galho, iluminado caprichosamente por vivíssimo raio de luz.

As rodas do vapor revolviam argênteos caixões d'água, deixando de cada lado uma esteira brilhante que mais longe se confundiam e se adelgaçavam como um fio luminoso.

Quanta poesia em todo aquele conjunto!

Distante, bem longe, erguia-se o canto intervalado das aves ribeirinhas, e o ruído da máquina acordava na floresta adormecida ecos e sons estranhos.

Olhei para o lado de ré; vi um vulto e vulto de mulher!

Não podia ser senão a viuvinha.

Dizer que corri para ela, fora fazer da realidade um sonho, pois não sendo o convés unido, entre a proa e a popa abria-se larga solução de continuidade que talvez nem o pulo aéreo de Blondin pudera transpor.

O que fiz foi, todo trêmulo, tornar a descer a escada, tornar a esbarrar em caixas, tornar a quebrar quase o nariz no varão de ferro e bater com a testa na tal porta, tornar a pisar nas pernas dos passageiros que novamente resmonearam surdamente e por fim atingir a escada de ré.

Subi devagar com o coração a bater como malho em bigorna. Parecia que o impressível músculo queria sair-me do peito afora e ir voando atirar-se aos pés da noturna visão.

Quando cheguei acima, ela não se mexeu: estava encostada à amurada a seguir com os olhos o jogo do luar nas ondas que o vapor cavava.

Sem ser, pois, pressentido, achei-me ao seu lado, tão comovido, tão perturbado que mal pude articular-lhe o doce nome:

— Adélia!... Adélia!... murmurei.

E sem pensar em mais nada, caí mais acurvado que de joelhos e como se fora fulminado.

Largos minutos decorreram antes que ela voltasse da surpresa, mas então de meus lábios ressicados pela emoção brotou um fluxo de palavras apressadas e ardentes, como se fugissem de uma fornalha.

Se alguma vez fui e hei de ser eloquente, foi naquela hora morta da noite, em que tudo me inspirava. Como únicas testemunhas presenciais dessas loucas juras de amor no céu, a silenciosa Febe que parecia contemplar-nos com risonha condescendência — no mundo e do outro lado do vapor, o comandante a caminhar gravemente no passadiço.

Vi que minha exaltação ia comunicando-se. Segundei os golpes; prometi cem vezes morrer e delirei, ardendo em febre.

Ela estava muda, queda e encarava-me com pasmo e terror.

Com o peito entumescido, presa às minhas palavras, embebia os olhares nos meus e estremecia de quando em quando, como tocada de centelha elétrica.

— Tu me perdes, balbuciava com voz sumida, tu me perdes, Eugênio! . ..

E assim ficamos horas.

Afinal, quando o pálido clarão da madrugada começou a esbater a cerúlea luz da lua e o oriente riscou-se de umas fitas róseas que aos poucos se foram mudando em purpurinas faixas, ela, Adélia, meu anjo adorado, minha vida, minha esperança, deixou pender a formosa fronte sobre o meu ombro e murmurou vencida:

— E eu... também te amo!

Então para nós dois desapareceu a natureza inteira. Eu e ela éramos o universo, éramos tudo! Aquele rio, aquelas matas, aquele vapor, aquele luar que morria, aquela aurora que nascia, tudo, tudo fundiu-se num paraíso eternal em que cada segundo valia uma vida inteira, cada minuto um século!

Quando irromperam os primeiros raios do sol e da floresta se erguerão mil alegres ruídos como cântico de exultação, acordamos daquele inefável torpor.

— Meu Deus, exclamou Adélia com desespero, que houve?... Estou perdida!... Que vai ser de mim?...

Tomei então suprema resolução.

— Tanta felicidade, disse no auge do arrebatamento, deve ser o ponto final de nossas duas existências. Fujamos, Adélia deste mundo de perfídias!... Deus há de ter pena de nós.

E, apertando-a com delírio nos braços, atirei-me à corrente, que se abriu voraz para nos receber em seu fundo seio.

.................................................................................................................................................................................

Surdo baque fez-se ouvir, e a âncora foi morder a vasa do rio.

Abri com espanto os olhos.

Estava em meu camarote.

O sol raiava alto e havíamos chegado!

Pulei do beliche furioso, furiosíssimo.

— Então tudo foi sonho? Tudo, sonho!...

E vesti-me às pressas com verdadeiro frenesi.

Saí do camarote com o colarinho meio despregado, a gravata torta, o colete mal abotoado.

Esbarrei com o comandante.

— Onde estão as senhoras que vêm conosco a bordo? perguntei-lhe com leviandade e precipitação que o fizeram sorrir.

— As senhoras?

— Sim, nossas companheiras de viagem...

— Ui! já devem estar longe! Às 5 horas da manhã passou por nós o vapor de Piraguaçu para onde iam; fiz sinal que atracasse e em 20 minutos baldearam-se todos os passageiros que tinham aquele destino. Pois o Snr. não ouviu o barulho que fizeram?

E vendo o ar com que fiquei, ar de acabrunhamento e estupefação, acrescentou:

— Meu amigo, a culpa foi sua... Por que tem sono tão duro?

Debaixo dessa formidável e irrespondível increpação, desembarquei com a morte n'alma.

Malvado Morfeu!

Seja uma vez amaldiçoado quem da humanidade merece [t]anta gratidão, hinos contínuos de sonolento reconhecimento.

Mas... deveras, devo amaldiçoá-lo?

FIM

 

O TIO HILÁRIO

Nunca tratastes porventura de perto com o nosso bom e chorado tio Hilário de Souza Cândido?

Pois deveras foi pena.

Velho assim, tão prazenteiro e obsequioso, amigo de fazer bem, pronto para desculpar as faltas e defeitos dos outros, de uma condescendência levada aos últimos limites, meigo e sempre de bom humor, com as mãos cheias de presentes e os bolsos de balas e confeitos para as crianças, divertido e variado na conversação, muitas vezes chistoso e feliz nos seus ditos, tipo mais ameno, bondoso e atraente, difícil é encontrar-se, sobretudo na sociedade atual, em que o desembaraço, a petulância e sem cerimônia da mocidade vão, com o cair dos anos, transformando- se em perene displicência, fundos desgostos e aniquiladora descrença.

Bastante acanhado, tímido até e esquivo com as pessoas a quem não conhecia bem, silencioso e retraído, mal se alargava o círculo da habitual convivência, tornava-se admirável de expansão e garrulice no meio dos íntimos e parentes, que incessantemente sentiam o doce influxo e os suaves efeitos do seu gênio excepcional. Inteligente, além disso, e não pouco lido, a ele devo, por minha parte, muito conhecimento importante em diversos ramos de ciência e literatura, colhido nas longas palestras que costumávamos ter quando a pé dávamos largos passeios pelos arrabaldes da nossa bela cidade natal, a capital da província de Santa Catarina.

Casado com a tia Lucinda, formosíssima moça em seu tempo e com quem fruiu durante 38 anos a mais completa e rara felicidade, vivera sempre de suas rendas, não quantiosas, mas suficientes para a modesta existência que aprouvera antes do mais ao seu espírito senão concentrado, pelo menos inimigo decidido de toda ostentação.

Era, há mais de oito lustros, simples tenente reformado do exército, condecorado com o hábito do Cruzeiro e a medalha da campanha cisplatina, o que eu só soube depois de crescido, pois nunca me lembro tê-lo visto de farda ou ouvido tocar em assuntos de sua profissão, embora filho e neto de homens que nas guerras do princípio deste século entre o Brasil e os países vizinhos haviam chegado a postos elevados. Ora como sempre tive mais ou menos inclinação para as armas, não me passou sem reparo, não só o fato daquela reforma em anos da mocidade, cortando súbito uma carreira que pudera ter sido brilhante, como também a tácita repulsão que manifestava por tudo quanto de perto ou de longe se prendia às coisas militares.

Uma vez feita comigo mesmo a observação, tratei com jeito de indagar qual a causa daquela antipatia em membro importante de uma família como a dele, em que eram tidas em alto apreço as profissões guerreiras, contando-se até entre os antepassados generais e almirantes, cujos retratos, a meio apagados pela ação do tempo, voltam-me ainda de vez em quando à memória, que os anos vão entibiando.

A princípio cautelosa, depois mais e mais insistente tornou-se a minha curiosidade, ao que com ar fino e bonacheirão sorria-se o bom do tio Hilário, até que um dia, julgando-me talvez já em idade de receber as confidências de um homem sério, com bastante sentimento e chiste me relatou a ligeira história que vou reproduzir, certo embora de que lhe tiro o principal encanto, despindo-a da linguagem ingênua e graciosa, com que a revestira o estilo do singelo narrador.

I

No ano de 1826 tinha o tio Hilário vinte e quatro anos feitos e na sociedade brasileira ocupava oposto, modesto sem dúvida mas cheio de promissoras esperanças, de alferes de um batalhão de infantaria ligeira estacionada na capital da província de Santa Catarina.

Filho da localidade, oriundo de uma família respeitada e que possuía alguma coisa de seu, encarreirado na vida, um tanto elegante de corpo e simpático de fisionomia, natural era que atraísse as vistas das moças do Desterro e fizesse pulsar mais de um coraçãozinho ansioso por achar a quem se render com armas e bagagens.

Um defeito, porém, e defeito de certa monta, embora remediável, impedia o completo desabrochar das qualidades, quer cívicas, quer guerreiras do nosso desejado alferes. Contra os estilos da profissão, sobretudo naquela época de mais ou menos preponderância militar, em que as espadas tiniam orgulhosas pelas calçadas de todas as cidades do Império, era ele de tal timidez, tão timorato e tolhido em seus modos e hábitos, que parecera haver sido educado entre as paredes de um convento de freiras.

Sem clausura, porém, nem tutela de santas mulheres, provinha tão singular acanhamento do sistema de educação travado de receios e carinhos, sobressaltos e retraimentos que recebera de sua mãe D. Felisberta, mulher do brigadeiro reformado Antônio de Souza Cândido, bom velho decerto, mas com um fundo de caráter irritadiço e impaciente, que contrastava com a pachorra e apatia habitual de sua esposa.

— Que quer fazer deste menino, Senhora? bradava ele amiudadas vezes presenciando os cuidados meticulosos e miúdos com que rodeavam a infância do nosso futuro tio Hilário. Está criando-o para trazer rabo de saia?... Com mil milhões de diabos!... Já lhe disse que ele há de ser militar!...

— Valei-me, minha Santíssima Mãe de Deus! murmurava logo meio lagrimosa D. Felisberta. E a guerra, Cândido?

— Que tem a guerra?... Pois lá não fui tantas vezes?... Afianço-lhe que é coisa divertidíssima... Então a Senhora já se esqueceu das choradeiras com que costumava molhar os meus embarques?

— Por isso mesmo, Cândido!... Quanto sofri!... Quanto tenho padecido!

— Mas não voltei sempre alegre e bem disposto? . .. Apesar do maldito reumatismo... não posso queixar-me...

— E se o menino não tiver vocação para a vida militar?...

— Não duvido... com o seu modo de criar rapazes... só para padre ou frade é que havia de servir... Pois se desengane... Da farda não escapa... Dê por onde quiser...

— Enfim, concluía D. Felisberta com um suspiro de profunda resignação, cumpra-se a vontade de Deus!

E à espera das determinações celestes, tratava, a poder de vigilância e impacientante solicitude, debelar os defluxos e catarrais que poderiam acometer o Hilariozinho, livrando-o a todo instante de correntezas de ar, ventos encanados e correspondências de portas e janelas, trancando-o no quarto dias inteiros, medicando-o em saúde, cercando-o enfim dessa rede de demasiadas e mal entendidas cautelas que os espíritos tacanhos costumam em sua medrosa afeição impor às crianças, empecendo-lhes muitas vezes o incremento e evolução a que estavam destinados pelas forças íntimas do organismo.

Apesar desse regímen de sujeição e constrangimentos, na idade de 15 anos, era Hilário um rapazinho, se não muito robusto, pelo menos de boa compleição e aspecto saudável.

— Que belo corte de cadete! exclamava o brigadeiro contemplando o filho com tal ou qual orgulho. Que diz, amigo Peres?

O amigo Peres da Silva era o comensal obrigado da casa e parceiro diário da indefectível partida de gamão. Reformado em tenente por ter perdido a perna direita no ataque de Serro Largo dado pelo coronel Marques de Souza no ano de 1801, por ocasião da guerra entre a Espanha e Portugal, e vítima, portanto, na juventude do embate das armas que tanto aterrava a imaginação de D. Felisberta, guardara dos gozos, encantos e esplendores da carreira militar e de suas campanhas do Sul um entusiasmo repassado de exaltação e animadas saudades, que nem a perda de tão importante órgão de locomoção, nem os incômodos de uma perna de pau, a exiguidade de minguada pensão e o progredir dos anos haviam podido fazer descer de tom.

Como é natural, tinha por assunto predileto de conversa as coisas da antiga profissão e por pouco que discordassem de suas opiniões, quase todas estrambóticas, zangava-se seriamente; acendia logo, deitando chispas, o olhar meio vesgo e empanado, colorindo-se-lhe o rosto habitualmente pálido e batia frenético no chão com a ponta da perna de pau. Era então de ver o chorrilho de generais que chamava à baila, misturando antigos e modernos, baralhando tudo, citando errado datas e episódios da vida de Napoleão que colhera em truncadas leituras, atribuindo a uns o que pertencia a outros, inventando façanhas que podiam no caso vertente confirmar suas teorias e asseverações, fazendo enfim uma salsada, inçada de reticências, bufidos e cortes de respiração

Seu forte eram as campanhas travadas entre portugueses e espanhóis na zona cisplatina e, como fora testemunha presencial da última parte daquelas lutas, ainda hoje mal conhecidas e estudadas, falava dos chefes e cabos de guerra daqueles tempos como de amigos tão ilustres quanto íntimos.

— Oh! o Bobadela, que homem! Que grande general!... E o Veiga Cabral! Peuh! peuh! gente assim não se vê mais!... Conheci o Marques de Souza tenente-coronel... O Curado... aquele goiano de nascimento... pois o vi tenente... Depois mostrou-se um guerreiro de mão cheia... . E o amigo Sr. Cevallos?... Peuh! peuh! castelhano valente... D. Pedro Cevallos, almirante em terra e general no mar... Não, com mil demônios... é o contrário... não me perturbem!... Conheço aquela gente toda na pontinha dos dedos...

E por aí ia que era um nunca acabar.

Quando o brigadeiro por demais perguntou um dia sua, opinião sobre a conveniência de destinar o Hilário à vida militar, ele respondeu, inflamando-se logo:

— Que dúvida, meu general! Nem há outra carreira... peuh! peuh! para um homem de vergonha!... Caramba! como dizem os tais senhores de Castelha... Ah! corja! se eu ainda pudesse, antes de morrer, disparar uma meia dúzia de pistolaços em vocês... Mas, qual! os tempos estão mudados... Peuh! peuh! Hoje não há mais homens.. . há coelhos... há lebres... Já desmaiam, quando sentem o cheiro da pólvora... E as injustiças?... O Napoleão não foi morrer numa ilha?... Não me contrariem, pelo amor de Deus!... A dignidade das nações tem baixado muito, como diz não sei quem... num livro que li há tempos... Agora... Peuh! peuh! quanto ao seu projeto, D. Felisberta, aplaudo-o com verdadeiro frenesi...

— Meu não, cruz! Meu nunca, protestou a digna senhora com horror e criando por amor ao filho forças para alçar a voz. Caia a responsabilidade sobre quem deve cair!... Deus me livre! Santa Maria, minhas ideias eram outras... outras muito diferentes!...

— Vamos lá ver que tais eram, interrompeu o marido com ar de mofa.

D. Felisberta vacilou uns instantes; depois atirando-se àquela espécie de luta, declarou com coragem:

— Cá por mim, mandava o pequeno para Coimbra.

— Para Coimbra, senhora?

— Para Coimbra? repetiu o tenente como eco.

— Sim... decerto, confirmou a mãe balbuciando já e descorando.

— Mas fazer o quê? perguntou Souza Cândido com sincera curiosidade.

— Estudar... boa dúvida!... Tornar-se um letrado... Então não é carreira a de licenciado... juiz de fora... ouvidor... e não sei mais o quê?...

Foram estas últimas palavras proferidas tão baixinho que difícil era ouvi-las.

O brigadeiro reformado trocou um olhar rápido com o tenente Peres, um só; depois ambos a um tempo desataram numa tremenda gargalhada.

— Meu filho bacharel!... O filho do militar!... O neto... o bisneto... o tataraneto do militar!... Ora, Sra. Felisberta!...

— O Hilário... bacharel! gritava Peres entre bons frouxos de riso.

E, enxugando os olhinhos úmidos de tanto rir, acrescentou:

— A Sra. tem cada ideia!... Fazer do leão... uma raposa!

E os dois recomeçaram a gostosa surriada que lançou a pobre da D. Felisberta na mais completa e justificada perturbação.

II

Aquela cena que da parte dos dois velhos companheiros terminara tão jocosamente, decidiu logo da sorte do jovem Hilário.

Na verdade uma semana depois, apesar do estado de prostração em que caiu a mãe como protesto mudo mas veemente, foi ele jurar bandeiras, levado ao quartel do Campo do Manejo pelo tenente Peres da Silva que, para dar mais realce e solenidade ao ato, escovara com especial cuidado sua velha farda, vestira umas calças brancas engomadas com apuro e pusera ao peito todas as condecorações e medalhas que atestavam os seus valiosos serviços de campanha.

O menino, desfeito e pálido, com as pálpebras cerradas e os ouvidos a lhe zunirem furiosamente, a custo retinha um mundo de lágrimas que lhe bailavam nos olhos. A tremer como varas verdes, estendeu a mão direita sobre os Santos Evangelhos, apertando convulsamente o cabo da bandeira nacional, enquanto lhe liam os tremendos e anacrônicos artigos do regulamento do conde reinante Schaumbourg de Lippe, repleto de mortes infamantes, arcabuzamentos e carrinho perpétuo.

Balbuciou um juro muito baixinho e saiu do quartel, trôpego e com a vista turva. Também quando se achou nos braços da mãe que, lavada em copioso pranto, o esperava à porta de casa, abriu os diques à comoção e chorou como um perdido, embora sem conhecimento exato dos motivos de tamanha desolação.

Em contraposição a tão claras demonstrações, o tenente Peres, ou pela condescendência natural, ou por ver tudo debaixo de seu ponto de vista exclusivo de entusiasmo militar, não se fartava de gabar a compostura, garbo e porte do novo cadete.

— Não tenha dúvida, dizia ele para o brigadeiro que abanava a cabeça com ar de incredulidade, nasceu para isso, peuh! peuh! Também pudera... é o sangue que fala!... Deixem o sangue falar!... A esta hora o pobre rei de Roma não estaria definhando... morrendo!... O filho do maior capitão do mundo, Sr. general! Olhe, quando assentei praça... ainda não se ouvia falar em Bonaparte... estava muito mais comovido que ele... o Hilário! Não imagina como jurou... voz boa... muito boa... E jurou sobre os Santos Evangelhos... isto lhe afianço... verifiquei eu mesmo... porque bem sabe, peuh! peuh! muitas vezes os cadetes e amanuenses... gente da pele!... trazem um livro à-toa... um tomo de Moraes... ou qualquer alfarrábio velho e sujo!... Aqui o rapaz fraqueou um pouco... Não se lembra do grande Corliano? — referia-se a Coriolano — Influência da mulher... O guerreiro, meu amigo, não deveria ter nem pai, nem mãe, nem filhos, nem irmãos, nem parentes próximos ou afastados... Assim é que eu penso e comigo os mestres da grande arte!... Peuh! peuh!... Já me tarda vê-lo oficial... vê-lo em Toulon como Napoleão...

E, voltando-se para D. Felisberta, com involuntária ferocidade:

— Quero agora saber quem há de livrá-lo de guerras e campanhas!... A escola do homem... peuh! peuh!...

E dispondo do rapaz como se fora seu filho, representou-o, apesar dos olhares e gestos de terror da acabrunhada mãe, marchando ao seu aceno e incitamento para os campos das mais sanguinolentas refregas, onde ganhava, de fato, rápidos postos por atos reiterados de bravura, mas também recebia a torto e a direito enormes talhos na cara, lançaços por todo o corpo, e tiros à queima-roupa que o varavam de lado a lado. Como merecida compensação de existência tão trabalhosa e acutilada, conseguiria, porém, a exemplo dos heróis da república francesa, as dragonas e bordados de general com pasmosa celeridade.

— Meu filho, armazém de pancada! gemia intervaladamente D. Felisberta. Socorrei-me neste transe, Senhor Bom Jesus da Cana Verde... Livrai o menino desses horrores e matanças!... S. Miguel e S. Jorge... Meu Senhor tenente-coronel S. Antônio... defendei o pobrezinho de tantos e tão encarniçados inimigos!

A nada atendia o homem. Excitado muito pelo contrário com os sinais de comoção que inspirava pelo vigor da palavra, continuou a desdobrar ante as vistas lacrimosas de sua ouvinte, confusos painéis, salpicados, é certo, do sangue dos feridos e vencidos, mas também iluminados pelos arrebóis da vitória e da glória.

Se pôs afinal termo às sinistras e cintilantes descrições, foi porque o brigadeiro lhe bradou, como todos os dias e quase às mesmas horas, lhe bradava:

— Sr. tenente... Desafio-o para um duelo de morte!... Ao gamão!

Ao que invariavelmente respondia Peres:

— É boa!... Sim, senhor, é boa! . ..

E dali a pouco, no meio das pragas, queixumes e gargalhadas do general e dos sonoros peuh! peuh! do velho mutilado, tiniam na tábua do jogo os tentos e dados tão alto que a boa distância se ouvia o estrondo da incruenta, mas disputada peleja.

III

Acalmado aquele choque violento, voltaram as coisas à primitiva tranquilidade, com a diferença que Hilário envergava a farda de 1.º cadete nas raras vezes que saía à rua, acompanhado, já se sabe, do soldado reformado que servira, durante as lidas da vida ativa, de fiel camarada ao brigadeiro graduado Souza Cândido.

Dispensado de todo e qualquer serviço que não o de crescer para acudir em tempo aos reclamos da pátria, ficara arredado da convivência de quartel, cuja lembrança tantas noites de insônia causara à sua mãe.

— Assim o pequeno nunca há de desembaraçar-se, avisava de tempos a tempos, o tenente Peres. Deem-lhe seis meses de vida solta... peuh! peuh!... O Bobadela fazia o diabo como cadete... Contou-me o velho Fábregas... um sargento do tempo dele... Que grandes generais... hem?... não o Fábregas... que se reformou em alferes...

— Se a mulher não quer! replicava o brigadeiro encolhendo com impaciência os ombros. Estou condenado a ter um filho que nunca há de ser nada!... Mal responde ao que se lhe pergunta... e todo corado... e todo atrapalhado...

— Enfim... vejamos os acontecimentos... O sangue há de falar... esteja certo, meu general...

— Como ele não pode mais ser formigão... esperemos...

Assim se passaram dois anos, findos os quais, por empenho e especial proteção de um companheiro de Souza Cândido, influente no Rio de Janeiro, foi Hilário promovido ao posto de alferes, distinção que demonstrava unicamente o préstimo de uma antiga amizade.

Na sossegada habitação de D. Felisberta arrebentou a notícia como uma bomba. A boa da senhora achou logo razões para sem detença prorromper em augustiosos soluços, apertando ao peito o novo oficial, como se o defendera da decapitação, do fuzil ou das balas argentinas; o general agastou-se de tanta choradeira e começou aos brados; o Hilário, estupefato, atônito, não sabia o que sentir, o que fazer, o que pensar... só o tenente Peres, exultando de alegria e, com os olhinhos vesgos a desferirem faíscas, batia no soalho com a ponta da perna de pau, pedindo atenção para o muito que tinha que dizer.

— Quem falou direito? Está o rapaz com uma carreira nunca vista! Peuh! peuh!... Alferes! — E aí ele engrossava a voz, como se fora a enumerar os pomposos títulos de um arquichanceler da Áustria — Alferes aos 18 anos!... Neste tempo!... O Napoleão em Toulon tinha... Que idade tinha, meu general?...

— Eu lá sei...

— Não sabe?... Também pouco importa... Era muito moço... basta saber isso... Olhe... o Chagas que fez tantas proezas nas Missões, aos 18 anos de idade ainda não era alferes... As coisas vão marchando divinamente... Peuh! peuh!

E calcando a mão no ombro do estatelado alferes:

— Olhe para mim bem firme, Sr. oficial!... Repare que está destinado para um grande futuro... digno de si e de seu nome e obre sempre de conformidade... O seu caminho é um único... Peuh! peuh!... a estrada dos heróis... Desembainhe a sua espada e caia nos inimigos como um raio... Não lhe digo mais nada... mais nada! Quanto à senhora — e voltou-se para D. Felisberta —  prepare-se! Daqui a uns 15 ou 16 anos está abraçando um general!... Peuh! peuh!

— Esse Peres, observou Souza Cândido, tem uma cabeça de fogo... Que planos! Que castelos!... Que felicidades!...

— Você então não tem confiança na sua prole?... E o sangue? Peuh! peuh!... A guerra está lavrando... as ocasiões abundam... naturalmente ele conquistará cada posto a ponta da espada... D. Felisberta... não lhe dou muito tempo e a senhora será mãe de um herói...

— Deus me defenda, tartamudeou ela enxugando umas últimas lágrimas, antes uma boa morte...

— Anda, Hilário, exclamou o coronel sacudindo o filho, sai dessa pasmaceira... Vamos, desperta! Que olhos são esses... esbugalhados! Vejam... vejam! O pateta não se pôs a tremer?!... No nosso tempo, hem, tenente? já estaríamos de galão no punho a correr por aí afora, procurando as sentinelas para termos continência... namorando as moças... fazendo o diabo e rachando de contentes... Que bom tempo aquele, meu velho camarada!... Que bela quadra!...

— Ora... nem me fale!... Peuh! peuh! Também leve o demo a educação que deram a este menino... Aposto que ainda não sabe namorar... Um latagão deste tamanho... E bem parecido... Vamos lá, amiguinho, você entende do negócio?... Gosta de olhar... assim para uma rapariga guapa... bem torneada?...

Aí D. Felisberta, interveio com certa autoridade:

— Sr. tenente, disse ela com voz entre chorosa e ofendida, respeite a inocência de meu filho... Podem torná-lo um dissoluto — um perdido... mas por enquanto deixem-no puro como é...

Tão grotesca era a cena que Hilário sentiu-se corrido das gargalhadas dos dois velhos militares.

— Agora que sou oficial, pensou ele consigo e mordendo os lábios, preciso não ser tratado como uma criancinha... Hei de procurar ser... também gente.

E como mostra inicial de emancipação, nessa mesma tarde e contra os protestos da mãe, saiu só à rua, embora transido de vexame, cozendo-se com as paredes, corando a cada passo e com os olhos baixos, como se fora cometendo uma sucessão de atos dignos da estranheza e reprovação pública.

IV

O tio Hilário, declaramos algumas páginas atrás, tinha nos começos do ano de 1826 vinte e quatro anos feitos e o galão de alferes que — no dizer do tenente Peres da Silva — pomposamente lhe abrira as portas das grandezas sociais.

Brioso e inteligente, pouco tardou que verificasse os inconvenientes e muitas vezes o ridículo que ao homem, que tem de meter-se no bulício e na agitação um tanto brutal deste mundo, acarreta o acanhamento levado pelo menos à exageração, e por isso também procurou ir reagindo contra os costumes de timidez que lhe haviam sido impostos pelo estremecimento materno.

O esforço não era decerto pequeno. De índole naturalmente modesta, ambicioso só de seu sossego, amante da casa e da família, dado a leituras, sem estímulos violentos, propenso ao retraimento e à obscuridade, não pouco lhe custou encetar essa luta contra todas as suas tendências e predisposições.

Ajuizado, mais do que fora talvez de esperar, observava as coisas com olhos justos e perspicazes e, julgando desde logo mal dirigida a educação que recebera, não deu contudo em tempo algum manifestação de menos gratidão pelos cuidados e afagos que deviam prejudicar-lhe irremediavelmente a carreira em que o haviam impelido.

Tomou a peito despir o invólucro pueril que o revestia, mas apesar da boa vontade, da tenção formal, de resistências não poucas vezes heroicas, da incessante cautela por ter mão em si, saber contrariar-se, vencer inexplicáveis terrores e desarrazoadas apreensões, não conseguira ficar senão a meio caminho, isto é, habilitar-se para viver no meio dos outros, conservando, porém, sempre esse cunho de desajeito e recato que constitui verdadeira inferioridade no feroz embate pela vida em que se empenham denodadamente os elementos pensantes da nossa organização social.

Uma das coisas que mais lhe custaram, foi sem dúvida o conviver barulhento do quartel, as familiaridades impostas de momento, as conversações livres, os gracejos pesados, as alusões ferinas e as pequenas intrigas que se dão e se desenvolvem naturalmente nessa existência em comum de pessoas tão diferentes nos gostos, paixões, origens e hábitos. Também desde os primeiros tempos merecera a alcunha de alferes mocinha que o rubor das faces, a perturbação e mal-estar ao ouvir qualquer dito mais picante ou anedotas apimentadas, plenamente justificavam, embora ofendesse a íntima altivez de uma alma varonil.

Fez estudo de impassibilidade, não pôde. Por elevação própria do pensamento, nunca chegou a encouraçar-se e sair totalmente da esfera em que o haviam criado, restrita sem dúvida, mas de verdadeira pureza de instintos e aspirações.

Estimado por suas qualidades, benquisto de todos pela cordura e meiguice de gênio, nem por isso escapava dos contínuos remoques e zombarias dos companheiros, que sem compaixão abusavam dos seus vexames e medrosa susceptibilidade, indo, muitas vezes sem intenção maldosa a ponto de magoá-lo moral, e até fisicamente.

— Não pisem o pobre moço, costumava gritar o major, quando o via alvo de brinquedos pesados.

— Qual! Isto não dói, respondiam-lhe. Ninguém estima mais o Hilário do que nós.

E como prova de especial simpatia, caíam-lhe em cima com toalhas, cujas pontas, amarradas em nó, tinham dentro moedinhas de cobre.

Hilário ria-se amarelo, defendia-se como podia, procurava responder à pancada que lhe doía mais particularmente, mas — era escusado — vivia acabrunhado, abatido, sem força moral para coibir as violências, afetuosas ou não, de que era vítima.

Também voltava quase sempre para a casa cabisbaixo e sombrio, achando só algum alívio nas amargas e repetidas queixas que fazia ao seu confidente o tenente Peres da Silva, de quem colhia mais ou menos animação num dilúvio de conselhos, imprecações, movimentos de indignação e sobretudo de peuh! peuh!

— Mas isto não se atura, exclamava ele ao saber de mais uma caçoada que haviam feito a Hilário, é caso muito serio, muito! muito! É preciso queixar-se ao comandante... E a disciplina?...

— Hei de vencê-los pela brandura...

— Qual, brandura, meu filho!... Noutro país já teria havido meia dúzia de duelos...  Está você como um cordeirinho entre lobos... sim lobos, peuh! peuh! . ..

Uma bela e cândida alma, essa do velho reformado!

Ouriçada aparentemente de asperezas, de esquisitices e ideias fixas, era no íntimo inesgotável tesouro de meiguices afeição e benevolência. Aconselhando sempre ao Hilário, a quem consagrara logo extremosa amizade e procurando de contínuo infundir-lhe o fogo bélico que, por falta de completa expansão, lhe girava ainda nas veias, começara a afligir-se, mais talvez do que requeria o caso, dos queixumes de seu jovem educando.

— Qual, Sr. tenente, dizia este a suspirar, eu não tinha vocação para as armas... Fui empurrado... Outra era minha inclinação...

Peres da Silva protestava com energia; acenava com os ouropéis da fama; apelava para o tempo, para a voz do sangue; falava, falava, mas, achando o futuro general cada vez mais frio e melancólico, sentia pungir-lhe o coração o acúleo do remorso, por haver mais do que ninguém concorrido para impor as penosas obrigações da vida militar a quem não se achava com forças para bem cumpri-las.

— D. Felisberta, resmungava ele com os seus botões, tinha razão... O rapaz nunca há de dar para a coisa... peuh! peuh!... Mas também que diabo fui eu meter-me a dirigir os filhos dos outros... E essa farda de soldado que é um casamento!... Vejam só, peuh! peuh! o Napoleão... Meu amigo, Sr. Peres, quem veste farda é para sempre!... Coitado do Hilário!... Mas também o que queria ser?... Letrado?... Cirurgião?... Pintor?... Poeta?... Não são carreiras... Imaginem o Vilitão — referia-se ao duque de Welington — bacharel em cânones!... Peuh! peuh! Nada, hei de sacudi-lo... arrancá-lo desse desânimo... desse torpor... É uma campanha que preciso levar ao cabo... e deveras para vencê-la dava de barato a perna que me resta.

E era tocante ver o cuidado, a solicitude, a pressurosidade com que buscava a companhia de Hilário, já puxando-o para a sua mais que modesta habitação, já fazendo com ele longos passeios nos belíssimos arrabaldes da cidade do Desterro, procurando sobretudo em suas intermináveis e ardentes histórias das campanhas cisplatinas e da colônia do Sacramento retemperar-lhe a fibra guerreira.

— Não vejo mais o Peres, observava Souza Cândido com certo azedume, pertence hoje de corpo e alma ao Hilário... Vão ver que os dois estão falando de Napoleão... E a Sra. D, Felisberta, que não queria vestir farda no menino!...

Conversavam é certo, e muito, isto é, Peres discursando sem cessar e Hilário distraído, absorto, a olhar para o céu ou para o mar, com o pensamento vagando longe, enquanto sussurravam-lhe aos ouvidos, como ruído distante, as palavras do seu velho amigo.

V

Por esse tempo caiu o jovem num tal estado de tristeza e abatimento, que não pode deixar de impressionar aqueles que o estimavam.

Contra seu sistema de mutismo, contra o evidente acabrunhamento moral, nada puderam os gracejos e chufas dos camaradas, de modo que aos poucos o foram deixando no sossego e retiro a que de bom grado se condenava.

Não encontrando no pai senão impaciência e rudes franquezas e na mãe mais do que chorosas e vagas condolências, a única companhia que lhe aprazia um pouco mais era a de Peres da Silva. E então lá iam os dois a pé, e com passo vagaroso por causa da perna de pau do tenente, ou em terreno sempre plano até à freguesia da Trindade, a uma légua do Desterro, ou galgando asperezas até ao Pau da Bandeira que, do alto de elevado cerro, domina a cidade e todas as cercanias.

E ali, descortinando em magnífico panorama parte da ilha de Santa Catarina, o estreito e o canal que a separam do continente; deixando as vistas pousarem já nos grupos de montanhas, que se alteiam de lado e doutro coroados de picos cintilantes, já nas recortadas linhas de terra a formar promontórios e cabos ou tranquilas praias orladas de finíssimas areias; embebidos na contemplação demorada dos acidentes daquela formosa e variada perspectiva, ficavam horas inteiras, ou absortos ambos, ou num como que diálogo, em que um desenvolvia a habitual loquacidade e outro respondia com a costumada distração e laconismo.

— Não te aflijas assim, Hilário, disse um dia o tenente com meiguice e afrontando de frente a dificuldade com que pretendia arcar, se a farda te pesa tanto nos ombros... atira-a para longe... Também não é caso de suicídio... peuh! peuh!... Agora preciso dizer-te, se já não to disse... ainda não conheces a parte mais divertida... da nossa profissão... a guerra... Sim, filho, a guerra com os seus numerosos e extraordinários episódios... Deveras há coisas terríveis... mas os atrativos são imensos... É uma vertigem, peuh! peuh! uma loucura... um estado indescritível... há de tudo, desde a tragédia até ao cômico mais extravagante... Oh! a guerra!... Eu quisera ver-te lá... Ah! Se soubesses que olhos têm as castelhanas!... Sem mentira... digo-te com sinceridade... deixei uma das pernas nos campos de Taquarembó... pois, bem, lá me ficou o coração inteiro!... peuh! peuh!

— Então o Sr. já amou? perguntou Hilário como que acordando de uma madorna.

— Como não?... Se amei? Pois é o sine qua non da nossa vida. É impossível ser soldado verdadeiro sem ter amado... e muito não uma, mas duas e mil vezes! Vênus e Marte andam sempre juntos... e para alguns também Baco!... .Agora só se ama deveras... em campanha... entre duas batalhas. Ah! como sabe ver a namorada depois de um dia de refrega!... Podia estar o homem morto, estendido no campo, entregue aos urubus... e sentir-se cheio de força e de paixão nos braços de uma mulher!... Peuh! peuh! Cria fôlego, Hilário; deixa-te de tristezas que só servem para amargurar-te a existência e sobressaltar teus pais, amigos e parentes... Que tens, afinal? Fala... Não sabes quanto me amofinas com esse desgosto constante, que é sinal de fraqueza... Acusa-nos, pelo menos, a mim e a teu pai... Prefiro ver-te agoniado e queixoso a tanta inércia, tanto marasmo e enervamento que depõem — declaro-te sem rebuço — contra as nobres tradições da tua distinta família, peuh! peuh!

O moço conservou-se por algum tempo em silêncio, enquanto Peres, ligeiramente comovido, parecia refrear os desejos de mais violenta interpelação.

— Que quer, Sr. tenente? disse ele por fim a princípio com pausa e depois mais rapidamente, tenho procurado subjugar-me... não está em mim. Esta vida militar aterra-me... Não nasci com os seus instintos... suas ideias... suas ambições, ainda poderosas, embora cortadas para sempre... Em mim nunca terá mais do que um oficial medíocre... sem entusiasmo... nem incentivos... Meus sonhos eram outros, mui diversos... completamente contrários ao ruído e a esse sangrento cortejo de glórias e renome que me apavora... e que entretanto ao Sr. torna-lhe, ainda hoje, a existência rica de miragens e de encantos... E depois sabe o que me aniquila... me tira toda força, todo gosto da vida?... Pois bem é a dúvida de mim mesmo.

— Como dúvida? balbuciou Peres preso às palavras do seu discípulo.

— Sim, continuou Hilário com animação e sem mais tropeços, é a dúvida, é o receio de não ser digno do nome que meu pai e meus avós me transmitiram honrado, quase ilustre, sustentando os brios de valentes militares... Bem sabe, a guerra lavra no sul do Império... há grande movimento de tropas e naturalmente tenho de marchar um desses dias... Pois bem... suponha que no momento culminante, diante do inimigo, eu me ache fraco, pusilânime... que na prova terrível dê má cópia de mim e nesse batismo de sangue — em que penso noite e dia —  tenha mais medo da morte do que da vergonha!... Suponha que todos os hábitos, contraídos numa educação de mocinha, como me chamam, influam por tal modo que me seja de todo impossível portar-me no campo da ação já não digo como soldado de brio e de pundonor... mas enfim como homem...

O tenente Peres encarava-o boquiaberto, atônito, pálido.

— Hilário!... Que extravagância!... Um filho de guerreiro!...

— Qual! Cada um nasce como Deus o fez!... A natureza, depois, está cheia de contrastes... Interrogo-me... indago em mim mesmo... encontro-me mofino, imbele... sem valor... sem forças... Não calcula quanto tenho aturado dos companheiros... quanto remoque engulo... quanto dito grosseiro que me fustiga o sangue... mas não consegue levantar-me o braço para castigar o ousado que mo dirige...

— Pelo amor de Deus, Hilário, não fales assim — peuh! peuh! tudo é efeito do acanhamento...

— Não, exclamou o moço com voz vibrante enquanto intenso rubor lhe cobria as faces, sabe o que é isso, Sr. tenente?... É o que o Sr. nunca sentiu em si... é... peja-me dizê-lo, mas é preciso... é... covardia...

E como o outro fizesse um gesto de denegação e repulsa, ele prosseguiu com febril agitação como que acumulando provas contra si.

— Não sou mais uma criança... sou já homem... Em mim vejo duas naturezas, uma — a do espírito, briosa e em revolta contra a outra — a do corpo, essa indigna, dominada pelo temor!... O apelido com que me torturam noite e dia... inocente na aparência, repetido até por meu pai... o que é senão um verdadeiro insulto? Contra ninguém ouso reagir... a ninguém pude até mostrar desgosto por me sentir machucado, pisado, pasto da chacota e do pouco caso...

E levantando-se impetuoso, com lágrimas nos olhos:

— Ah! se me fosse dado ter um dia coragem!... Deveras matava alguém!...

O tenente Peres também se erguera.

Parecia muito alterado e alisava com mão trêmula o bigode.

— Hilário, disse ele afinal depois, de algum silêncio, convém tomar uma resolução digna de ti, peuh! Peuh! Fizeste bem em abrir-me o teu coração e afianço-te com segurança: és um homem de honra. Cumpre porém pôr termo quanto antes a estas abusões da tua imaginação...

E percebendo um aceno de dolorosa contradita, com mais força prosseguiu:

— São... são meras apreensões do espírito, terríveis de feito para uma alma altiva, mas que se dissiparão com certeza. É preciso, correr à prova decisiva... cortar o mal pela raiz!... Do contrário estarias perdido. . para sempre entregue aos terrores que te assaltam!... Só tens uma coisa que fazer: pedir para marchar para a guerra já e já... Não digas nada a teus pais... mas se acreditas a um amigo leal, que sentirá o seu coração estalar de dor no dia de tua partida e que de bom grado daria a vida não só para salvar tua vida... como tua honra... faze sem demora o que te digo... Nada receies... Vê nesse conselho a confiança que tenho em ti... Conheço-te hoje bem. Compreendo que não nasceste para a carreira que nós te demos... mas ainda uma vez e muitas será respeitado o brasão de tua família... Hoje o que é imprescindível é derrubar esse fantasma que te não dará tréguas sem um passo glorioso para ti e para as tradições de tua gente... Força é que te convenças de que és homem... Marcha para a guerra!...

— Tenho pensado, replicou o moço com abatimento, mas não posso... não me vejo com ânimo... Deixar meus pais?... Minha casa?... Esta terra?...

— E se te mandassem?... Se o governo?...

— Oh! não sei... creio que morreria de dor e de vergonha... mas procuraria não seguir!...

O tenente suava frio.

— Que criançada! Hilário... Não digas isso... Felizmente estamos sós... ninguém nos ouve!... Só na tua apresentação voluntária havia uma vitória... A coisa é dar o primeiro impulso... Peuh! peuh! Irias daqui já com certo gás. Agora, custe o que custar, é de rigor que te conheças deveras... espancar ilusões... Verás uma batalha... é coisa muito simples... muito!... Não sei que grande general tinha um susto horrível de cada vez que ouvia o sibilar das balas... pois bem, ganhava vitórias como qualquer outro!... Olha, em muitas ocasiões, não se ouve ruído algum... e a gente acha-se morta ou vencedora... sem saber mesmo como... É uma surpresa.

O alferes refletia, mas pelas alternativas do rubor e palidez que lhe cambiavam no rosto, via-se a agitação que e dominava.

— Pois bem, amigo Peres, disse ele com esforço, agora devo contar-lhe tudo... sabe o que me torna o mais desgraçado dos homens?...

E aí ele parou, balbuciando quase:

— Eu amo... e amo loucamente...

Peres esbugalhou quanto pôde os olhinhos.

— Não sei como se deu isso... mas desde aí é que me veio o desprezo de mim mesmo... Foi a luz que irrompeu dentro de mim e deixou-me ver as misérias que lá se passam... Um belo dia acordei possuído de uma paixão imensa, que me consome todo sossego... me esmaga... me mata!

— E ela? balbuciou Peres.

— Ela?... Nem suspeita talvez que eu exista... Vi-a uma única vez... não tive nunca, nunca mais coragem de sequer... passar pela rua em que mora... Oh!... eu sou um miserável, meu Peres!...

E, atirando se nos braços do tenente, desatou em copioso pranto.

— Vamos, Hilário, disse o velho com afetuosa rabugice, deixa-te disso. E que tem que ames?... É da tua idade... Daí é que vêm todos os teus sobressaltos, não é?... Ora que tolices!... Quem é, porém?... Uma moça digna? Filha de boa família?...

— É , tartamudeou o moço, a filha do Gularte...

— A Lucinda?... Caramba!... Guapa, guapa!... Sim, senhor, um partidão!... Não tens mau gosto, meu brejeiro... Pois vejam só!... Com quem foi engraçar-se... Aprovo, aprovo muito... Mas vamos lá... olhe para mim com outra cara...

E levantando-lhe carinhosamente o queixo, como se fora a um menino, fez-lhe uma momice com tal trejeito que um sorriso embora triste pousou nos lábios do desconsolado mancebo.

— Ora, muito bem!... Assim é que quero vê-lo... Jogue para bem longe essas melancolias que não lhe assentam nada... Agora que aliviou o coração, há de por força achar-se melhor, não é?... Eu sei bem o que é isso! Então de que servem os velhos e bons amigos?... Deixe estar que um dia há de reconhecer que o Peres, reformado, perneta, coisa ruim, caco quebrado, ainda presta para alguma coisa... É o que digo... Não te lembras daquele general sem pernas... que fez proezas?... Chamava- se... chamava-se... Estuda, meu Hilário, a história de Napoleão... É verdade, não tens queda... isto é, dizes que não dás para a quitanda... É pena! É pena!... Mas vamos ao caso... Amas... amas muito, não é?... Perfeitamente... Assim é que a gente deve amar... ou então não se meter nisso, que o negócio é de comprometimentos... Mas amas a quem? A filha do meu velho camarada Gularte... Que coincidência, não achas?... Só falta, pois que vocês se entendam... E o que faz o Peres que não ajuda aos dois pombinhos? Contem-me... o que faz?

Hilário, sem dizer palavra, apertou-lhe com reconhecimento a mão.

O tenente, porém, continuou com imposição.

— Ah! mas antes de tudo... hás de marchar para a guerra... Sem um choque violento... sem uma campanha... nunca valerás um ceitil... nem aos teus próprios olhos... nem aos dos outros... Deves caminhar na sociedade de cabeça alta... e não como um maricas... curvado ao peso dessa opressão que te tolhe a liberdade de ação e pensamento... Tens hoje um único fim neste mundo, não é?... Conseguir essa moça... Pois bem é preciso merecê-la... disputar a posse a muitos que a desejam... e depois, meu caro, livrá-la de quantos hão de querê-la... ainda depois de ser tua... Segue para a guerra... farás no futuro o que bem quiseres... mas deves sacudir de cima de ti esse constrangimento que te acabrunha. Acabem-se os receios que tens de teu préstimo... sejas juiz de ti mesmo e verás que os mais valem tanto ou muito menos da que tu...

A quantidade de peuh! peuh! que salpicaram tão longo discurso era imensa, incalculável.

— Pois bem, concordou Hilário embora sem grande vivacidade, amanhã mesmo apresentar-me-ei para marchar... O Sr. diz bem... se eu não me portar... pelo menos com decência... farei por esquecer tudo e irei arrastar o resto da existência n’algum miserável canto da terra... distante... bem distante daqui... e de tudo quanto prezo e estremeço! . ..

VI

No dia seguinte o moço, sem mais hesitações nem comunicar, como prometera, seu intento a ninguém, foi resolutamente ter com o presidente da província e pediu para no mais breve prazo embarcar para o Rio Grande do Sul a reunir-se a algum dos corpos que estavam empenhados na protraída e malfadada campanha, cujo desenlace devia ser Ituzaingó.

Quando o brigadeiro Souza Cândido soube por terceiro do inesperado e súbito projeto do filho ficou pasmo, aborrecido e profundamente contrariado, mas não querendo nem podendo, na sua qualidade de velho soldado, dar a mínima demonstração de frouxidão, começou a aplaudir aquela iniciativa com gabos exagerados, como quem precisava fortalecer-se de qualquer modo em transe com que não contava.

— Bravo! O Hilário saiu-se!... Sim, Sr. É que o sangue falou, como profetizou sempre o Peres... Quem diria??... Um menino tão quieto... tão pacato! Fiem-se em aparências!... Quer tomar o voo... o tal passarinho... sente as asas robustas... Pois... que vá!... E logo para uma guerra dessas, que não se sabe em que pé está... Nada, desta vez o Hilário brilhou!... Assim pudesse eu fazer o mesmo... acompanhá-lo... porque uma coisa é ir... outra ficar... Passar misérias e calamidades não é nada... mas saber que um filho, as suporta... Enfim aprovo muito o que ele fez... Ora, Sra. D. Felisberta, deixe-se de prantos!... Com mil milhões de diabos!... O rapaz precisava dessa escola... E é-lhe muito honroso não esperar ordem de cima... Entretanto se ele me tivesse consultado... eu lhe diria: Filho, serviço não se pede, nem se rejeita. Assim é que fiz sempre... Enfim... outros tempos... outras ideias!...

E, vendo entrar Peres da Silva, recebeu-o com estudado alarido.

— Então sabe da grande novidade?... Adivinhe, se é capaz...

— A cidade já está cheia...

— Já? exclamou ele com um lampejo de orgulho nos olhos, ora muito bem!... O alferes mocinha vai para a guerra... Imitem-no, meus senhores valentaços! A mãe está numa choradeira imensa... Estas mulheres amolecem um homem!... É verdade que ver partir um filho... filho único... E essa... não é que estou também assim não sei como? Me diga, Sr. Peres, porque está tão triste?... Então, você também quer fraquear? Veja lá... Bem fez o Hilário de não nos ter avisado!... Ora, que diabo, o que é isto, Sr. tenente?...

E os dois veteranos contemplaram-se largos minutos em silêncio, um defronte do outro, enquanto umas lágrimas compridas lhes sulcavam os rostos tostados pelo sol dos combates.

Nisso entrou Hilário e eles trataram de ocultar a perturbação em que os encontrava.

O brigadeiro, recalcando o sentimento íntimo, deu um longo e estreito abraço ao filho e com voz serena e já firme fez-lhe uma verdadeira preleção sobre o modo de viver completamente novo e especial que ia encetar.

Entre muita inutilidade havia indicações e conselhos proveitosos e derivados da prática inteligente da guerra.

— Sobretudo, concluiu ele à maneira de um espartano, nunca vaciles entre o dever e a vida. Prefiro mil vezes saber-te morto ao ter que te obrigar sob meu teto desonrado e mareando o nome que é teu e meu!... Trata agora de embarcar mais depressa que te for possível... É o que mais custa ao militar... são as despedidas... de casa... os adeuses da família... é essa agonia da partida.

A dor de D. Felisberta nesse entrementes assumiu tais proporções que se chegou a recear ser o último instante de sua precária existência aquele em que Hilário transpusesse o limiar da porta.

Tal, porém, não foi.

O padecimento concentrado, mudo, o dilaceramento agudo e terrível que durante muitos dias só se manifestavam no decomposto da fisionomia e no tremor das mãos ao preparar as malas do querido filho, resolveram-se, à última hora, num dilúvio de lágrimas que salvou aquele dorido e torturado coração de fatal explosão.

Peres da Silva acompanhou Hilário até a bordo.

O moço ia muito conturbado.

Fardado e de espada à cinta, mas com os olhos rubros de tanto chorar, procurava as ruas menos frequentadas a fim de fugir das vistas curiosas e apertava com força o lenço à boca ou mordia os lábios como diversão ao quanto sofria.

— Ânimo, meu Hilário, dizia-lhe baixinho o bom do tenente. O pior já passou... Olha, esqueci quase de todo a escrita ... pois bem, mandar-te-ei com regularidade quanta carta puder garatujar.

E no abraço final:

— Vá tranquilo, balbuciou com a voz apagada em pranto, não me esquecerei um instante de ti... A Lucinda há de ser tua.. Não te deixes matar!

E o patacho em que embarcara o novel guerreiro abriu panos a propícios ventos.

VII

Em 1826 as comunicações postais, difíceis e irregularíssimas em todo o Brasil, tornaram-se entre a capital da pequena província de S. Catarina e o teatro da guerra travada nas regiões platinas por tal forma morosas e retardadas que as cartas e notícias daquela procedência só chegavam com atraso de muitos meses, tanto mais quanto a Corte do Rio de Janeiro, tendo interesse em guardar certo sigilo sobre as peripécias e sucessos da campanha chamava a si até a correspondência de caráter particular e a distribuía com calculada lentidão.

Raras eram, pois, as cartas recebidas do alferes Hilário, embora a extensão de todas elas compensasse de algum modo a pouca abundância. Via-se claramente que era o seu principal entretenimento, a única distração que tinha.

Aliás em todas mostrava perfeito tino e cautela.

As que escrevia para a mãe eram, no meio de muitos protestos saudosos e promessas de breve volta, animadas e até alegres. A vida de campanha não podia decerto ser de rosas, mas havia suas compensações. A saúde mantinha-se forte e evidentemente se avigorava com os trabalhos, marchas e canseiras. O apetite sobretudo desenvolvia-se até demais, pois em varias ocasiões faltava o que comer. Se não fosse a ânsia de regresso, que o esporeava noite e dia, ele se sentiria quase feliz daquele estado de coisas que podia ser tudo, menos monótono. Hoje dormia-se aqui, amanhã ali, a duas, três ou mais léguas; quando se cuidava do pouso para a noite, zás! levantava-se acampamento e marchava-se a noite inteira.

E neste gosto escrevia páginas e páginas.

As cartas ao pai, ainda que no mesmo tom, refletiam mais a verdade dos acontecimentos e o que lhe ia pela alma.

Então as do Peres eram confissões sem rebuço, desabafos completos em que eram minuciosamente individuadas as atribulações diárias de um espírito antes do mais refratário àquela existência de violências, desregramentos e inaturáveis excessos.

“Não imagina, meu bom amigo, escrevia ele, o que vai por aqui. É coisa sem nome. Estamos nos arredores da capela do Livramento, na coxilla de Santa Ana amontoados como carneiros e entregues, de mãos e pés, atados, às moléstias e à inação. Os soldados chegaram a um estado de miséria e degradação que parece incrível. há muitos meses estão sem soldo, sem fardamento, sem barracas, cirurgiões, e socorros médicos e espirituais. Parece que há sérias desinteligências entre o nosso comandante em chefe, o general Rosado, e o presidente da província general Gordilho*, de modo que não há esperanças de ver melhorar esse estado de coisas. Todos lamentam a falta do marechal Abreu, que pelo menos conservara a fronteira livre de inimigos. Hoje as incursões são frequentes, e entretanto espalha-se que nem sequer temos munições para entrar em fogo**. Tudo é desordem: fervem as maiores intrigas neste desgraçado acampamento em que estou rodeado dos espetáculos mais repugnantes ao meu caráter, hábitos e anelos. Reinam incessantes discórdias entre os comandantes de corpos, e não há muito tempo assisti a uma desavença entre dois coronéis, que se destrataram de um modo horroroso, atirando-se reciprocamente à cara um do outro acusações de covardia e prevaricação. Decididamente vim em má quadra, embora não me pareça que haja nunca bons ensejos numa guerra considerada aqui mesmo injusta e impopular***. Apesar do rigor mal entendido que acabrunha o nosso reduzido exército de menos de seis mil homens, queixam-se desbragadamente oficiais e soldados, falando e criticando sem recato do general em chefe, das autoridades e do governo. Uma das primeiras e fundadas censuras é a do ponto que ocupamos, do qual não nos querem tirar, sem vantagens estratégicas, econômicas, higiênicas, sem segurança, nem largueza, posição enfim que nem para bandos de índios vagabundos poderia servir* e que entretanto foi batizado com o pomposo titulo de — Acampamento da imperial Carolina**. O pior é que estamos perdendo tempo precioso e os argentinos de Alvear e Lavalleja concentrando-se, preparando-se com boa e fresca cavalhada para vir atacar-nos. — Ao menos é voz geral. Pelo que venho de expor-lhe, verá o Sr. que vou melhor da moléstia de que vim curar-me. Que violência porém de tratamento, meu caro médico! Relato-lhe essas misérias porque, apesar da minha reserva habitual, elas patenteiam-se até aos olhos dos que não querem ver. Cerro os ouvidos, mas a grita é tal que não posso deixar de saber o que proclama a voz da maledicência ou da verdade.

“No meio, porém, de muito enjoo de minha parte, de dias de horrível melancolia ou de acabrunhadora atonia, sinto-me melhor, vou me achando como os outros, e não menos de duas vezes tenho já impedido com certa energia que se iniciem aqueles gracejos que tanto me mortificaram, obrigando-me a este expediente violento da educação viril pela guerra.

“Que venha a gostar deste modo de viver, nunca! Cada vez lhe tenho mais horror, diariamente aumenta-se-me a repugnância. Anteontem deu-se a três léguas daqui um encontrozinho entre duas partidas de cavalaria. Tivemos dois mortos e seis feridos, quatro dos quais voltaram ao acampamento. Pois bem, não receberam o mínimo socorro. Nem água havia para lavar-lhes os ferimentos, nem um abrigo para resguardá-los. À noite sobreveio a um deles o tétano. Que gritos horríveis!... Da minha barraca os ouvi até de madrugada, amaldiçoando essa luta em que nos batemos inconsequentemente, sem razão, nem entusiasmo. E a geada caía; soprava o minuano como se no frígido hálito desferisse milhões de microscópicos estiletes, e os brados de agonia do mísero soldado de vez em quando cobriam os sons abafados de uma gavota que se estava dançando na casa do comandante em chefe. Entre parêntesis, sabe que ele tomou o apelido de general Massena Rosado?

“Vejo que tão cedo não sairemos daqui; é desenganar. Preciso, porém, quanto antes dar uma solução a esta minha situação. Vim para bater-me; quero à risca executar o seu programa e depois retirar-me do exército por qualquer modo. Fiz a vontade a meu pai e a mais alguém que o Sr. bem conhece; depois de completo o sacrifício, obrarei como entenda melhor. Dizem que marchará no mês seguinte uma brigada ao mando de Bento Manoel para ir dispersar em Corrientes a gente que está reunindo Aguirre. Pertenço a ela. Arrisco-me a tudo, até a ter a sorte do soldado que morreu do tétano. Felizmente tomou-se de simpatias por mim, por causa do nome que carrego, meu comandante de batalhão; assim pois tenho esperanças de que em caso de desgraça não ficarei atirado no meio do campo.“

Se fôramos a reproduzir os trechos relativos ao objeto de sua paixão, era um nunca acabar.

As respostas a essas alentadas missivas tinham tomado desde princípio quase invariável cunho.

As de D. Felisberta podiam resumir-se nestas simples palavras:

“Volta, volta, meu filho! Volta, depressa, senão não encontrarás mais tua desgraçada mãe! “

As de Souza Cândido, deixavam transparecer as inquietações que lhe iam pela mente, falando na necessidade de mais ou menos pronto regresso, não só para descanso das fadigas já experimentadas da campanha, como para impedir na débil saúde de sua mulher os desastrosos efeitos da ausência de um ente, sem o qual parecia impossível poder subsistir.

O que rabiscava o velho tenente Peres era impagável como produção epistolar. Fazendo esforços hercúleos para vencer as dificuldades da escrita há muito abandonada e sobrepujar, como podia, os tropeços da ortografia, enchia folhas e folhas de papel com notícias da localidade, citações de ilustres batalhadores, referências obscuras a guerras passadas, advertências e exortações, misturando a cada passo Napoleão com o general Curado, Militão — o duque de Welington transformado — com o marechal Arouche, tudo num estilo sui generis, caracterizado por inúmeras incidências, saltos e transições inopinadas.

Não se esquecia nunca de falar na bela Lucinda.

“Aviso-te, escrevia ele, que todos os dias vou dar réguas, digo, trela ao amigo Gularte... e suportar-lhe as maçadas... Aturo-o com bizarria e aperto o cerco à cidadela... Vale a pena... Os olhos são duas bocas de lobo, quero dizer, fogo... A pena não me ajuda, é o diabo!... O Gularte, a quem chamo Espadarte por causa do nariz... Que nariz, Hilário!... Contaram-me que o coronel Tobias, ajudante de ordens do Bobadela, tinha um ainda maior... A propósito, morreu o Simão, aquele mulato reformado que morava para as bandas do Menino Deus... Não te esqueças nunca do general francês que entrava em fogo a tremer... Mas como ia dizendo, o Gularte... Volta brigadeiro, se puderes... As mulheres gostam disso... Sejas como Napoleão, embora te reformes logo à chegada... No mais, sossega... A sentinela está alerta perto da rapariga... Cria desembaraço... O Militão que ganhou a batalha de Vastralos... era muito acanhado com as damas... dizem, não sei, nunca vi... Se o exército chegar até aos campos de Taquarembó... repara o lugar onde se foi minha perna... Morra Castelha! Era perto de um monte de cupim... É verdade que lá há muitos... Como a Lucinda é que não há muitas, não, Sr... Nos tais campos de Taquarembó não poucas vezes se pegaram à unha a nossa gente e a de lá... dos espanholitos... Aqui fico para te servir... No mais lembra-te do general Veiga Cabral, de quem ainda te não fatiei bastante... Um belo capitão... da escola antiga... Coragem, meu bom amigo... Acredito piamente que não haverá dificuldades para o teu casamento... Pudera... um bravo! Já falei com teu pai... Indaga pelo exército se alguém conheceu o Bobadela... algum soldado velho... Nunca soube se tinha olhos pretos ou azuis...”

VIII

Nessa correspondência cada vez mais penosa e truncada correram os meses. Quando escassearam de todo as notícias do Sul, tornou-se o interior da casa de Souza Cândido tão sombrio e monótono que mal se jogava uma ou outra partida de gamão, isso mesmo sem gosto nem interesse.

Peres da Silva fingia ter alacridade por todos, pondo sempre em discussão a conveniência do passo que dera Hilário, asseverando que sua carreira ia às mil maravilhas, e declarando nobremente que fora consultado e não se esquivara da responsabilidade do conselho, mas não raro acontecia já que o brigadeiro reformado punha-se do lado de D. Felisberta e fazia descarregar o seu mau humor sobre o pobre do tenente.

O que este sofria intimamente era, contudo, suficiente para sem mais gravame lhe amargurar aquelas tristes semanas.

— Se o Hilário, pensava ele a todo instante, tem a tolice de morrer por lá, não sei o que será de mim... Não me arrependo do que fiz... mas a recomeçar dava de preferência o pelo ao diabo!... Enfim agora é levar a cruz ao Calvário!... Estamos em Vastraloo... é formar quadrado!..., E lá voltava ele a enfrentar as recriminações ora tácitas, talvez as mais custosas de afrontar, ora loquazes de D. Felisberta que, gradualmente iam tomando certo caráter acerbo e rancoroso.

— Mas que motivos há de tamanhos desgostos? dizia ele cedendo terreno a custo. A esta hora talvez esteja o rapaz a se divertir...

— Ou passando fome... ou frio... ou estropeado para sempre, replicava e mãe com voz áspera.

— Qual! senhora! deixe-se dessas lamúrias. Peuh! peuh! A senhora não sabe o que é um homem entregue a si... Não é nenhuma ovelha nascida ontem... Com mil bombas!... Ele como os mais tem dois braços, duas pernas e vontade de viver!... há de saber defender-se...

— É verdade, mas o Hilário é tão acanhado, atalhava o pai.

— O Sr, também, meu general? Então já se esqueceu do seu tempo? Do que fazíamos? Peuh! peuh!

— De fato, mas não sei por quê, parece-me que éramos de outra massa... mais resistente... Olhe que são trabalhos grossos... É fraquinho o rapaz... Aqui qualquer coisa o indefluxava, e os frios do Sul não são de graças.

— Ora! tudo isso é coração de pai que está sangrando.

— Lá por isso não... Não nos devemos entregar à desconsolação... só por simples imaginação...

— Pois então!... Pois então!... Olhe, D. Felisberta... depois de amanhã temos mala da Corte e muito provavelmente saberemos do que vai pelo Rio Grande...

Chegou com efeito o navio esperado e, no meio de muitas notícias do resto do mundo, uma que encheu o Desterro de verdadeiro alvoroço.

Na guerra do Sul dera-se a 5 de novembro um encontro sério entre a brigada do general Bento Manoel e a força argentina de Felix Aguirre que, fugindo para Corrientes, obrigara os brasileiros a passar o rio Uruguai e a persegui-lo até Capilla del Rosario, onde se chocou um combate renhido, mas favorável às armas imperiais.

Dando conta dessa refrega importante pelas perdas do inimigo e morte do denodado caudilho D. Toríbio, referia à parte do comandante em chefe que no campo da ação fora promovido a tenente por atos de assinalada bravura o alferes Hilário de Souza Cândido, o qual arrebatara um estandarte das mãos de um oficial argentino, sendo nessa ocasião ferido gravemente, como constava das baixas ao hospital de sangue.

O imprevisto sucesso — pois ninguém dava nada pelo alferes mocinha — causou grande agitação na cidade, não falando todos senão na glória que do feito redundava para o lugar do nascimento de tão preclaro militar, congratulando-se uns com os outros e procurando a casa do brigadeiro para felicitá-lo como pai daquele prodígio de ardideza.

Souza Cândido oscilava entre a dor e a ufania. Sorria-se cheio de satisfação, mas dos cílios a miúdo lhe caíam lágrimas que não podia reter.

Quanto a D. Felisberta, sem um grito, sem um gemido, caiu num delíquio prolongado, que pareceu ir a levando insensivelmente para a morte. Cercada de amigas, não se movia: de olhos meio cerrados, feições trantornadas, mal se percebia que respirava ainda.

Peres da Silva não tinha um instante de sossego. Corria do porto para a casa; subia ao Pau da Bandeira, para descobrir algum navio do Norte ou do Sul; consolava o brigadeiro nas horas de confidência; espalhava por toda a parte a façanha do Hilário; pintava-o a bater-se, a princípio com o porta-bandeira inimigo, depois com quatro ou cinco cavaleiros e afinal com um esquadrão em peso; buscava analogias na vida de quanto general lhe ministrava a memória atrapalhada; roía as unhas de impaciência e andava numa roda-viva.

Torturas no imo curtia mais que o brigadeiro e quase tanto como a infeliz D. Felisberta.

Assim se passaram em angústias e ansiedade cinco dias, sem que notícia ulterior viesse adiantar o que já se sabia.

Numa tarde estavam Souza Cândido e Peres da Silva no quarto de D. Felisberta, estendida sobre a cama, imóvel e como que cataléptica. Fora peneirava uma chuva fina e miúda, de modo que as trevas da noite difundiam-se com rapidez, mais cedo do que de costume.

O brigadeiro estava sentado à cabeceira do leito da mulher: Peres, de pé, junto de uma janela, olhava cabisbaixo e merencório para a rua, seguindo o movimento de um fio d’água que ia rompendo caminho por entre as asperezas do terreno

Só se ouvia o tic-tac de um relógio de mesa.

De repente D. Felisberta estremeceu; abriu uns olhos muito grandes, sentou-se e estirando os braços, gritou com força:

— Hilário! Meu filho! Meu filho... está chegando!... Enfim, meu filho!

E levantando-se de um jato, quis atirar-se para fora do quarto.

Souza Cândido e Peres a custo a contiveram.

— Deixem-me, deixem-me, dizia ela com grande exaltação, quero vê-lo antes de todos... salvo, salvo!...

— Tenha paciência, senhora, replicou o marido. Um desses dias teremos notícias... Aquiete-se...

— Quero sair, quero já... Ah! quanto sofri, meu Deus de Misericórdia...

— Está chovendo, interveio Peres, sairei em lugar da senhora, a ver se há alguma novidade...

— Ah! Sr. tenente, o Sr. ia-me pondo doida... Mas lhe perdoo tudo pela alegria de hoje!... Enfim, chegou essa hora... Balbina, Manoela, venham cá, negrinhas; deem-me meu xale... meu xale!...

Os dois trocaram olhares inquietos.

— É um pressentimento fatal, balbuciou o general a custo.

— Não me acreditam? continuou D. Felisberta. Pensam que estou enlouquecendo, não é? Ah! felizmente não.

E às pressas procurava vestir-se.

Nisso ergueu-se um grande tropel. Correram do interior para a rua; portas bateram e Peres da Silva precipitou-se para fora, como que perdendo por seu turno a razão.

Apenas tocou o limiar, deu um brado ingente:

— É ele!... É ele... Aí vem! Viva! viva!

E uma multidão imensa prorrompeu em vivas.

Então viu-se D. Felisberta que em desalinho corria, debaixo da chuva, seguida do brigadeiro, cujo rosto sulcavam as lágrimas.

— Meu filho!... Meu filho! bradava a senhora. Não mo escondam...

— Aqui está! Aqui está, respondeu-lhe Peres e, rompendo o povo, apresentou-lhe Hilário, coxeando um pouco, mas crescido, forte, embora bastante pálido, queimado do sol e com a barba inteira.

Quando se abraçaram a mãe e o filho, fez-se, por um desses lances instintivos, de delicadeza que comumente têm as massas, imenso silêncio, mas quando D. Felisberta novamente desmaiou — desta vez de alegria  — estrondearam as aclamações com indescritível delírio.

— Então, meu amado filho, perguntou o coronel depois de acalmado aquele movimento todo, foste gravemente ferido?

— Sim, meu pai, na coxa. Estive entre a vida e a morte, mas por poucos dias. Salvou-me a amizade do meu comandante... Venho com seis meses de licença para me tratar... Depois...

— Nunca mais hás de deixar-nos, acudiu com vivacidade o pai.

— Obrigado, respondeu Hilário beijando-lhe a mão. Era o meu maior desejo... Só aspiro por quietação e obscuridade.

— Pois é pena, resmoneou Peres da Silva. Ninguém começou tão bem... Enfim veremos se a Lucinda... Peuh! peuh!

FIM DAS NARRATIVAS MILITARES[1]



* É técnico o termo — significa concertar, arranjar, costurar.

* Os CORNIMBOQUES são vasos feitos de chifre. Servem principalmente de copos e bocetas de rape, quando menores.

** Homem que sabe tirar mel, ou como dizem no sertão MELAR.

* Será assunto particular de uma narrativa contar como esse corpo foi parar em Mato Grosso e o destino que teve.

* CENAS DE VIAGEM. — Exploração entre os rios Taquari e Aquidauana, no distrito de Miranda. Rio de Janeiro, 1868.

* CORIXAS são depressões do solo que, cheias d’água pela inundação, não dão passagem senão a nado, tornando-se um dos perigos sérios das viagens por aqueles lugares.

* Muita gente.

** Ouça; atenda.

* Isto é sem marca, sem sinal de posseiro. É o gado que nas províncias do norte tem o nome de “barbatão”.

* Era um luzido batalhão de mais de 600 praças, que se organizava ainda na capital de Goiás, graças aos esforços do presidente Ferreira França. Tendo, logo ao chegar ao rio Negro, perdido o comandante, foi fundido no batalhão n. 20 de infantaria, depois de dizimado pelas enfermidades.

* Era então o coronel Camisão. Depois da morte do general Galvão haviam sucedido no comando das forças o tenente-coronel Guimarães, coronel Carvalho e tenente-coronel Juvêncio.

* Desmoralizado.

* Costuma a gente do povo fazer do advérbio " a fio " um adjetivo que pronunciam como esdrúxulo.

* Sertões ínvios.

* Espiões.

* Agitação, movimento.

* Os soldados chamam levar “mofo” quando não são rendidos, logo depois de completas as duas horas de sentinela.

* Acabrunhar de trabalho, maltratar.

* Ser preterido.

** Sofrer preterição.

* Desmoralizavam.

* Expressão rio-grandense muito usada no exército. Corresponde a gozar de comodidades; ser amigo de seus cômodos.

* Expressão rio-grandense, que na campanha servia para apelidar os filhos daquela província.

* Era uma das linhas avançadas do acampamento de Tuiuti, onde os tiroteios feriram e mataram muitos soldados.

* Havendo um cearense comparado espirituosamente a abundância dos condecorados com o hábito da Rosa aos carnaubais de sua terra, a essa vonera ficou no exército ligada a denominação de carnaúba.

* Ordinários.

** Desmoralizados, estroinas.

*** Balelas, boatos — palavra expressiva inventada na campanha.

* Sujeito, indivíduo.

** Suportar o maior peso, choque.

* Papéis do soldado em trânsito de um para outro lugar.

** Maçada.

* Tiroteio intervalado à maneira de pipocas a saltarem na areia quente.

* Não será corruptela de “lambareiro”, homem tarameleiro, linguareiro?

* Negócio desonesto em que se tiram proveitos.

* Estonteado.

* Atrapalhado por excesso de serviço.

* Altaneiros.

* Visconde de Camamu.

** Histórico. Vide a biografia do general barão de Serro Largo, magistralmente escrita pelo nosso distinto amigo Dr. J . M. da Silva Paranhos.

*** Consulte-se a curiosa notícia de J. I. Machado de Oliveira sobre campanha de 1816 a 1828.

* Coronel Seweloh.

** J. I. Machado de 0liveira.

 

[1]  Foram feitas, nesta edição digital, as correções que constam da errata inserida ao final do volume.