Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Contos, de Raul Pompéia


Edição de Referência:

Biblioteca Virtual de Literatura

ÍNDICE

14 de Julho na Roça

50$000 de Gratificação

A Andorinha da Torre

A Batalha dos Livros

A Cruz da Matriz

A Mona do Sapateiro

A Pomba e a Estrumeira

À Tona D'Água

Amor de Inverno

Antes e Depois

As Festas de Reis de Minha Prima

Caricaturas Reais - Estou Roubado

Caricaturas Reais - O Piano

Caricaturas Reais - Um Vizinho Original

Cavaleiros Andantes

Clarinha das Pedreiras

Comércio de Flores

Como Nasceu, Viveu e Morreu a Minha Inspiração

Conto de Fadas

Correspondências Íntimas I

Correspondências Íntimas II

Decotes de Quinze Anos

De Madrugada

Dia de Gala

É Morto Pulcinella!...

Fora de Horas

História Cândida

Idílio Retrospectivo

Maladetto Francesco!

Mocinha

Milina e o Turco

Niente

No Mar

O Fruto da Formosura

O Hino Auriverde

Olhos

O Perfume dos Bolos

Os Gatos e os Cães

O Mal de D. Quixote

O Modelo do Anjo

Os Parricidas

O Tapacurá de Cendi

Quase Tragédia

Rogério, O Rude

Tílburi de Praça

Último Castelo

Violeta

 

14 DE JULHO NA ROÇA

(A.G. da S.)

14 de julho é a grande data. Ecoa na história com as mesmas vibrações que deve proferir sobre o mundo a trombeta de Josafá, em plena consumação dos séculos.

A Marselhesa é o gemido humano chamado às armas.

A queda da Bastilha é o pavoroso esboroamento do passado, batido pelo futuro.

A pirâmide da opressão tinha por base o grande cárcere e por vértice a coroa do rei; o povo devasta a pirâmide de alto a baixo; arrasa o alicerce, aniquila o píncaro.

Cai a Bastilha, morre Luís XVI.

Do cataclisma ergueu-se sangrenta a grande mão do direito humano saciado, e abriu os dedos sobre aquele caos, como as irradiações de uma estrela grandiosa e serena.

À luz deste sol, começou a desfilar a procissão dos séculos...

Curvado um dia sobre essas páginas épicas da lenda das gerações, inclinado à beira vertiginosa do báratro onde revoluteiam os fantasmas indistintos e medonhos daquele terremoto social, refletindo na humanidade e nos seus destinos, foi assim que o Dr. Salustiano da Cunha descobriu que era republicano.

Muito republicano; republicano de coração. De coração e de cérebro.

Um homem da época.

Na qualidade de Campineiro abastado e farto, tinha por si a força do ouro: o elemento moderno do poderio. No século XIX, mais do que nunca, o ouro é o metal dos cetros e das alavancas: só existe para o mando e para a força...

Ia-lhe próspera a fazenda. As suas vastíssimas terras sumiam-se, sob as ramas escuras dos cafezais, plantados em linha, através de infinitas colinas.

As canas formavam-se por milheiros ao longo das várzeas, imitando tudo respeitáveis fileiras de incógnita milícia. As folhas do canavial refletiam o sol, como se fosse o aço de cem mil baionetas; as plantações de milho sacudiam belicosamente os penachos roxos, como as insígnias gloriosas de um imenso estado-maior

Tudo ali estava perfilado e firme, como se faltasse apenas o grito de marcha, para os batalhões precipitarem-se...

O Dr. Salustiano, com as mãos nas cadeiras, por baixo do pala de brim, contemplava, ufano, aquele exército fantástico que tinha sob o seu comando absoluto e despótico.

O próprio céu parecia fugir para cima, com o seu azul e com as suas estrelas, amedrontado por aquelas hostes, mais arrogantes, sem dúvida, que as dos bárbaros do norte, que tinham lanças para escorar o próprio firmamento.

Era um homem forte, portanto, o nosso doutor.

Podia soltar gargalhadas às barbas da prepotência corruptora do rei; podia rebelar-se, como Lúcifer, e rir do paraíso perdido; podia gritar que viesse abaixo a tirania, e recusar um arqueamento da espinha à majestade sagrada do direito divino.

Viva a República!

A santa causa encontrava nele um pulso valente para o combate.

Cada golpe da sua durindana democrática e demolátrica seria uma vitória para o grande partido dos direitos do homem canonizados!

O Dr. Salustiano era entusiasta. Estava disposto a declarar guerra a tudo que não fosse democracia republicana. Só curvaria a fronte ante a aristocracia do talento.

Para isso verdejavam-lhe os cafezais pingues; para isso, o canavial afiava as folhas umas nas outras, como espadas, e o milho cabeceava empenachado como um marechal.

Daí vinha-lhe a força.

Não havia pois motivo para espanto, quando, por uma bela manhã, saindo o doutor a passeio, montado, como um príncipe, no soberbo alazão, foi impressionado por um fenômeno estranho.

Lembrava-se que a aurora fora mais rubra naquela madrugada; o sol nascera vitorioso no meio de uma explosão de sangue e de fogo; as nuvens se lhe haviam figurado momentos desmoronando-se. Todo o oriente parecera vibrar, abalado por uma tragédia titânica...

Agora, fato interessante, prescrutando os cantares do bosque, parecia-lhe que, das folhas frementes, choviam as notas aclarinadas da Marselhesa.

Ora o sabiá entoava heroicamente o solo do

Allons enfants...

ora o coro da passarinhada replicava em tom de guerra:

Aux armes citoyens!...

Recomeçava o solo pungente do sabiá.

As árvores estremeciam.

As nuvens paravam para escutar.

Recomeçava o coro imponente. Parece que então a natureza inteira abria a boca para cantar. As notas graves vinham do horizonte, nascidas nas grotas ao longe, e vazadas sonoramente através de gargantas de pedra.

Que solenidade naquele conjunto! O alazão marchava como se cadenciasse o passo pela vasta orquestração da natureza.

O doutor extasiava-se.

Caminhava para diante, sorrindo e surpreso. A grande música seguia-o como um préstito invisível de sons guerreiros e formidáveis.

O Dr. Salustiano quase erguia-se sobre os estribos, para descobrir-se e urrar:

— Viva a República!

O coração pulava-lhe! O homem sentia que uma força, esquisita levantava-o acima da cavalgadura...

Vinte vezes quis soltar o brado; mas tinha medo.

Podia não ser entendido pela natureza e ficar sem resposta.

Quis entrar no coro. Já não se continha mais.

No primeiro aux armes citoyens!... ele meteu-se, e fez coro com os estranhos cantores daquela maravilhosa manhã.

Ainda estava pedindo, com voz atroadora, o sangue impuro dos tiranos, quando sentiu estacar o alazão, forçando o cavaleiro a debruçar-se-lhe sobre as crinas.

Um grupo de pessoas aparecera na estrada. Três escravos e um feitor mal encarado.

Tinham a cara espantada, e pareciam perguntar se o matutino passeador endoudecera.

— O que temos? indagou bruscamente o doutor, engolindo um resto de Marselhesa.

— Venho comunicar ao senhor, respondeu o feitor, que o Emídio fugiu...

— Terceira vez!... o cão... Há de pagar! Hum!... Desta vez eu o ensino, se o pego.

— Havemos de pegá-lo hoje mesmo, garantiu resolutamente o feitor.

— Peguem-no... peguem-no, que havemos de ver para que se inventou o viramundo...

E o alazão continuou a marchar pela estrada adiante, deixando ficar o grupo que interrompera-lhe os passos.

Com o sacudir da andadura, acomodaram-se no espírito do doutor as idéias momentaneamente desarranjadas pela brusca notícia da fuga do Emídio. Tendo o espirito mais calmo, observou que a orquestração da natureza, subitamente suspensa, recomeçava em surdina, e zunia-lhe ao ouvido como se longínquas fanfarras eólicas começassem a ressoar.

Recomeçava a canção de Marselha. O doutor tornava a achar tudo vermelho e belicoso. Volviam-lhe à imaginação os seus ardores republicanos.

Nessa ocasião um grito chamou-o à distância:

— Cidadão!...

O doutor não voltou-se. Era incrível! Reconhecia a voz de Danton...

— Cidadão! repetiam.

Não! Era talvez Desmoulins, Robespierre, Marat... com os diabos!... Seria sonho?...

— Cidadão!

Seguí-lo-ia porventura a coorte dos homens fantásticos do Terror?...

— Cidadão Salustiano! Doutor!

Ah! o doutor logo vira... Era o compadre... vizinho ali de algumas léguas, um companheiro fazendeiro, apatacado e gordo, e, mais que tudo, republicano.

Vinha a cavalo, em busca de Salustiano. Havia uma grande festa em casa dele. Um aniversário. Celebrava-se pomposamente a queda da Bastilha, a hecatombe das tiranias. Em vez de reis e tiranos, degolara-se para a solenidade uma infinidade de leitões e patos. Lucullo ia festejar a trucidação da realeza!...

Um banquete digno de servir-se através das páginas da Ilíada.

14 de julho!

Estava explicado o sonho harmonioso do Dr. Salustiano: esplêndida miragem acústica, que pintara-lhe aos ouvidos todo o panorama canoro de oitenta e nove!

Aquela manhã era a gloriosa manhã do grande dia.

À noite, a fazenda do compadre estava em festa.

Todos os republicanos de vinte léguas em roda concorreram entusiasmados.

Chamou-se de Campinas uma filarmônia particular, muito ensaiada em sonoridades rubras e gargalhadas de Offenbach.

Quando apareceu na estrada o Dr. Salustiano, a banda de música saudou-o com um Roger de l'Isle mais real que o da manhã e não menos ardente.

Os foguetes crepitavam no espaço, como a fuzilaria dos assaltantes da Bastilha.

A massa estúpida dos escravos alinhava-se em dois renques, ao longo da estrada, sustentando archotes na mão. Tinham a expressão besta de quem nada compreende do que vê. A luz dos archotes clareava-lhes os peitos hercúleos, onde, sobre o branco do algodão das camisas, brilhava o desenho encarnado de pequenos barretes frígidos sobrepostos ao número de cada um.

Salustiano pasmava diante daquele aparato.

Quando entrou no salão do festim, chegou mesmo a sentir no íntimo uma picada de inveja. Porque não se lembrara primeiro de levar a cabo aquela solenidade?... Ficaria para o ano...

Para o ano o 14 de julho seria dele.

O salão estava imponente. Uma extensa mesa, coberta de iguarias custosas e abundantes, desenrolava-se luxuosamente, com a carta geral da gastronomia. Por cima, cristais e flores, luzes e inações. Ao fundo do salão, quase à cabeceira da mesa, uma grande figura da Liberdade, em gesso, alçava, garbosa, uma lâmpada sobre o banquete.

Dir-se-ia o Anfitrião daquilo tudo.

Foram chegando os convidados, e abancando-se. Só homens.

Em pouco, a mesa regurgitava. Ao doutor coube um lugar aos pés da estátua.

O assalto aos manjares foi medonho. Os trinchantes desapareciam no bojo dos assados, como se fossem punhaladas raivosas. As garrafas estouravam, como fogo nutrido de atiradores destros.

Comia-se, como se ali só houvesse guisados bofes de monarcas; bebia-se, como se houvesse engarrafado o sangue das dinastias.

Pantagruel e Gargantua esgaçavam os lábios, como sansculottes embriagados.

Os garfos eram chuços, as facas eram espadas. A demagogia do ventre arremessava-se doudamente contra a imponência régia dos acepipes.

Enquanto a comida abarrotava as bocas, ia a música abarrotando os ouvidos.

Tudo em grosso, abundantemente, desvairadamente.

Em certa ocasião começaram os brindes.

Brindou-se a este, que era um dos mais puros advogados da causa republicana; a aquele, que defendera no parlamento provincial os sagrados direitos do povo (povo era com P grande); a aquel'outro, que constituía uma das mais legítimas esperanças do partido regenerador...

Houve uma pausa solene, no meio da qual uma voz trêmula e vibrante levantou-se:

— Cidadãos!

Uma agitação moveu o auditório, e o silêncio caiu cem graus abaixo de zero.

— Concidadãos!...

Falava um jovem ex-deputado, famoso pela violência com que usava agredir os tronos.

... É hoje o dia em que o mundo comemora um dos grandes acontecimentos da sua história...

(Alguns apoiados surdos.)

— ... Na grande era revolucionária, foi no dia de hoje que o povo, compreendendo a grandeza da sua soberania, alçou alteroso o colo das suas iras, e resolveu afogar em sangue a tirania infame da torpe realeza!.

(Muito bem, muito bem!)

— ... Já era demais!... Por tantos séculos havia a pata da injustiça calcado o livro dos direitos do homem... a exploração dos fracos pelos potentados... o roubo iníquo do salário ao proletariado... a realeza usufruindo desaforadamente o suor do povo e sugando sofregamente, para a manutenção das suas orgias, o generoso sangue dos pobres, o sangue daqueles mesmos que sustentavam-lhe as indústrias do seu estado, daqueles mesmos que lavravam os campos da sua nação...

(Bravos! bravos!)

— ... Já era demais... Tudo preparou o terrível desabamento social que se chama queda da Bastilha!...

"A onda popular rodeou espumante, etc., etc...

O eloqüente tribuno orou por longo tempo, e concluiu em tom religioso, no meio das aclamações dos circunstantes:

— ... Mas ainda não estão por terra todas as Bastilhas; ainda existem muitas realezas, e cada realeza é uma Bastilha temerosa...

"Abaixo pois as realezas!...

"Por terra as Bastilhas!...

"Plante-se a bandeira republicana por todo o mundo!... Que o orbe terráqueo apareça aos olhos dos outros planetas com a forma cintilante de um barrete frígio!...

(Bravôh! bravôh!...)

... Expulsemos, pois, da nossa pátria o velho chaveco da monarquia, ainda que tenhamos de oferecer, para a sua retirada, um rio do nosso sangue rubro!...

(Bravôôôh!)

E saudemos agora, neste brinde, como a síntese dos nossos votos, das nossas aspirações, a próxima fundação da república brasileira!...

E um brinde estrondoso como um furacão, subiu daquela tempestade de aplausos e garrafas, para sujar de vinho a cara impassível das instituições...

Naquele momento mesmo, quem se afastasse da fazenda em festa, até meia distância da fazenda do Dr. Salustiano, ver-se-ia apertado num contraste pavoroso.

Atrás da escuridão dantesca de uma noite tempestuosa e feia, ouviam-se perfeitamente, de uma banda, rumores orgíacos, inextinguíveis, como os risos de Homero; de outra banda, lastimosos gritos cruciantes, que pareciam pedir socorro às feras da mata...

De um lado, 14 de julho; do outro, a punição de Emídio, o negro fugido...

Uma coruja passou... Se estivesse presente, o Dr. Salustiano perceberia que a coruja ia cantando a Marselhesa.

Sentia-se realmente nas trevas do ar o grande anjo da igualdade roçando com a ponta das asas brancas os dois extremos do horizonte.

Depois, do discurso, a festa do compadre continuou; o delírio do prazer recrudesceu.

As libações caíam em cascata sobre a toalha da mesa. As imaginações catavam estrelas para o símiles dos brindes, a retórica já não tinha mais tropos.

Quando ia falar o Dr. Salustiano, que, por uma especial consideração, fora encarregado de pôr o fecho de ouro ao banquete com o grande brinde à Liberdade, acercou-se dele um sujeito que entrara, havia pouco, e por trás da cadeira disse-lhe ao ouvido:

— O Emídio bateu a bota... não resistiu ao viramundo...

Era o feitor que conhecemos.

O doutor atirou-lhe enfadado as cinco letras de Cambrone, e tomou uma garrafa do melhor champagne.

Todos os convidados tinham o olhar sobre ele, e gritavam todos:

— O brinde à Liberdade! o brinde!

O doutor ergueu-se vagaroso, solene; segurou corretamente o fuste de cristal de uma taça finíssima que enchera.

A estátua de gesso. acima dele, com a cabeça inclinada e a lâmpada ao alto, fitava-o, parecendo esperar o brinde, espantada...

— Cidadãos!... O futuro... pertence à idéia republicana...

(Falava um profeta)

— ... Nós somos os sagrados preparadores do futuro. A pátria de amanhã é a concretização da nossa idéia.

"A nossa missão não é a simples propaganda de um partido: é o desempenho heróico de um sacerdócio.

"Às armas! A nossa existência de cidadãos deve ter este programa: Às armas!...

"E neste momento, que nos reunimos todos para solenizar o grande dia republicano, neste momento, mais do que nunca, os nossos entusiasmos de pontífices da liberdade devem fundir-se em uma saudação que seja mais um pacto de aliança para as nossas lutas!...

"Um brinde à liberdade!..."

O salão estourou, como se uma vasta explosão de picrato o tivesse arremessado às nuvens; estourou ao brado de duzentas goelas de bronze, aclamando a Liberdade...

Circunstância mínima:

O doutor, arroubado de entusiasmo, levara tão alto o seu brinde, que partira o cristal nas faces da estátua.

O vinho caíra-lhe pelos seios abaixo, prostituindo a casta brancura impoluta do gesso.

São Paulo, 21 de abril de 1883.

 

50$000 DE GRATIFICAÇÃO

Fugiu no dia 11 do corrente o escravo Lino, pardo claro, de 27 anos de idade pouco mais ou menos, estatura regular, bons dentes, porém maltratados, pequenos bigodes e alguns cabelos no queixo, tem o olhar vivo, unhas roídas e é atrevido. É muito conhecido por ser cocheiro há muitos anos do Dr. Peçanha. Levou calça branca, paletó de brim pardo, chapéu preto pequeno e anda às vezes calçado.

Protesta-se com o vigor da Lei contra quem o acoutar e gratifica-se com a quantia acima a quem prendê-lo e levá-lo à alguma estação policial ou à casa de seu Senhor, Rua Do... N....

Sr. Anunciante.

Mirando-me ao espelho, reconheci, no frontispício da minha obscura cabeça, os vigorosos traços descritivos, com que encheu este anúncio a pena abalisada do seu anônimo e simpático escritor. Linha por linha, incidente por incidente, lá vem a minha fotografia. Isso não é um anúncio, é um retrato! Mirando-me ao espelho e no anúncio, entrei a hesitar, até, sem saber qual dos dous era o anúncio e qual era o espelho...

"Pardo claro..." Sou pardo claro.

Quando Deus pintou-me, por sinal estavam no atelier, à espera da sua brochadela, alguns companheiros, que, mais tarde, no mundo foram exaltados pelo destino, aos quais, à medida que subiram na escala da grandeza, foi-se-lhe o colorido gastando, de sorte que não são mais, agora, os pardos claros que nasceram... Eu, infelizmente, fiquei tal qual.

"27 anos..." É a minha idade.

"Estatura regular..." Bem regular... gabo-me disso.

"Bons dentes..." Oh! obrigado! Isso me lisonjeia em extremo...

"Porém maltratados..." Lá isso, protesto!... Eu não sou porco!... Aqui há engano com certeza... Sempre tratei carinhosamente a minha dentadura!

"Pequeno bigode..." Sim senhor, não é muito grande.

"Alguns cabelos no queixo... Justinho! Rari nantes...

"O olhar vivo..." Apoiado! Vivíssimo!... Olho vivo é a melhor regra de bem viver.

"Unhas roídas!..." Roídas! que horror! Trago-as simplesmente aparadas rente. Há sempre um meio de se obscurecer, na linguagem, os predicados alheios. Aparada rente é a nossa unha roída, roída a unha aparada dos outros.

"Atrevido..." Com licença: atrevido é mais quem chama.

Verificada a identidade dos tipos, vamos ao resto do anúncio.

"É muito conhecido por ser cocheiro há muitos anos Oh, qualidade rara!... "do Dr. Peçanha..."

Exatamente! Sou muito conhecido. O Larousse cita-me o glorioso nome, no volume da letra L. E com razão! eu guiava certo as minhas parelhas, em direção à Posteridade, quando a conveniência urgente de tomar ares obrigou-me a cortar a bela carreira. Apesar disso, o anúncio não mente. Sou na verdade conhecido, sou um homem universalmente popular! Dou-me muito com o Pão de Açúcar; o Corcovado fala comigo; já tive estreitas relações com o Himalaia; a coluna Vendome, quando me vê, cumprimenta-me; as pirâmides tiram-me o chapéu; as esfinges já me ofereceram cigarros uma vez; os crocodilos da Índia têm sorrisos amáveis para mim, pedem-me fogo com intimidade... Quanto aos homens, não falemos. O meu nome monopoliza perpetuamente a atenção do público, no Cairo, em Malta, em Nazaré, no Egito...

Este precioso anúncio, que me chegou às mãos inesperadamente, veio despertar-me saudades do Rio de Janeiro. Neste remoto asilo da paz onde habito, só muito raro chegam notícias do bulício do mundo. Planto café e gozo a existência bucólica e sossegada de quem tem certeza de que não faltam céus nem serras para a vida. A sede do ouro não me exaspera a garganta.

Este anúncio, todavia, que me veio lembrar a grande corte, abriu-me um pouco o apetite do ganho.

Pensei num negócio e o proponho.

Se os 50$ são oferecidos em letras gordas a quem me pagar, metade, pelo menos, o amável anunciante cederá, sem dúvida, àquele que disser ao certo o lugar onde me acho.

Vou informar eu mesmo. Tenho direito à gorjeta. Mande-a pelo correio.

Estou no Ceará, vulgo Terra da luz!

Acoutou-me a hospitaleira serra de Baturité. Proteste-se contra ela com todo o rigor da chapa.

E olha esse cobre que saia!

Serra de Baturité... de... de 1885.

Lino, agricultor.

Chegou do Norte a esta folha essa curiosa carta acompanhada do anúncio transcrito. Vinha no envelope um pedido de publicação; publico a cópia fiel.

O referido anúncio é um avulso que se distribuiu há tempos, nesta cidade, sem responsabilidade do autor, sem declaração de tipografia, à maneira desses pobres papéis pornográficos impressos que conhecem o seu estado e não o lamentam como Nise.

 

A ANDORINHA DA TORRE

Cada um tem no seu espírito as suas recordações, classificadas, arranjadas, superpostas, as mais recentes por cima, as mais antigas por baixo, numa ordem admirável, que apenas ligeiramente é perturbada pelo decurso de um grande tempo, suprimindo-se algumas lembranças ou deslocando-se outras. Basta, porém, que uma causa desperte a adormecida reminiscência, para que venha por assim dizer, à tona do espírito a mais antiga imagem do passado. Esta causa pode ser qualquer, uma harmonia que se ouviu outrora e que novamente se ouve, um lugar por onde algum dia, passou-se e que se torna a ver, um painel, uma voz, uma fisionomia, um aspecto... que lembram-nos pela semelhança ou pelo contraste um aspecto, uma fisionomia, um painel que noutro tempo nos impressionaram...

Sempre que ouço a música de bronze que as torres derramam pelo espaço, turbilhões de uma sonoridade grave, solene, religiosa, ou alegres, esfuziadas, frescas e agudas como gritos de criança, caprichosas e várias como vôos de andorinha; sempre que chega-me a voz dos sinos, cantando saudosamente na linha azul do horizonte, como um vago psalmear flutuando ao vento, não é da missa que eu me lembro, nem das suntuosidades católicas de veludo franjado a ensanefarem as arcarias do templo; nem da fita de fumo com que o turíbulo vai escrevendo cousas fantásticas no ar; nem do dorso do padre recamado de florões de ouro sobre cetim branco ou roxo; nem da coroinha feita a navalha, redonda como as hóstias mostrando a pele branca veiada de azul, que sobe e desce, à medida que dobram-se ou levantam-se as reverências do oficiante; o sino de nada disso me faz lembrar, nem mesmo das carinhas pálidas das meninas que cantam ao coro, nem do semblante desenxabido e choramingas das santas de pau mal talhado...

Desde muito tempo que o serviço da torre da Igreja de X estava confiado ao velho Emílio...

Era aquele homem de barbas longas e brancas, espécie dessas figuras com que se costuma fazer a imagem mítica dos grandes rios, era aquele velho que via-se de tarde, à janela da torre sob a cúpula enorme do sino grande, olhando vagamente para o espaço, sem dar atenção ao burburinho da cidade, que circulava nas ruas lá embaixo...

Os mais antigos moradores do lugar lembravam-se de que Emílio fora sempre o mesmo homem de barbas longas e brancas, o mesmo, como a ruína consagrada pelo tempo, que nunca fica mais velha. Respeitava-se muito ao velho sineiro. Era o mais honrado dos homens e, além disso, era o avô da mais galante criança que se tem visto.

Por aqueles cinco quarteirões em volta não havia quem não gostasse da andorinha da torre. Festejavam-na muito, davam-lhe doces e beijos que não havia mãos a medir; sentiam só que ela fugisse tanto a meter-se na torre com o avô e esquecesse pelos velhos amigos de bronze que moravam lá no alto as pessoas da cidade que tanto a queriam.

Mas como havia de ser se ela amava perdidamente os seus sinos e o seu avô?... Achava os sinos frios demais e pachorrentos como uns homens de idade, mas, em compensação, admirava-os, quando vovô Emílio despertava-lhes a sanha e os fazia pularem, voltearem como clowns, precipitarem-se no espaço como se fossem desabar e ressurgirem para o alto, com a boca largamente aberta, como um sorriso de gigante satisfeito.

Pareciam mudos, no silêncio do repouso, como pareciam imóveis e inabaláveis; a um gesto, entretanto, do velho Emílio, toda aquela imobilidade movia-se em viravoltas céleres e vertiginosas, toda aquela mudez vociferava, em sonorosos estampidos e envolvia a torre numa trovoada de harmonias gigantescas.

A pequena Rita admirava os sinos. Esta admiração transformava-se em amorosa simpatia. Estranhava no fundo do espírito aqueles monstros boquiabertos que sabiam ser igualmente a imobilidade e o turbilhão, o silêncio e a trovoada; ajudava o avô a tratá-los, limpar-lhes o bojo profundo e escuro, clarear-lhes os dourados de fora, esgravatar-lhes os interstícios dos relevos que os enfeitavam...

Havia amor de família naquele pequeno mundo que vivia na torre.

Uma vez, na Semana Santa de 18..., a pequena Rita, a andorinha da torre (como lhe chamavam, pelo seu costume de passar os dias no alto da igreja em companhia de Emílio) adoeceu gravemente.

Caiu de cama, prostrada por uma violenta febre, na quarta-feira de trevas; exatamente quando emudecem os sinos.

Do quarto onde ela estava, na casinha do avô que ficava a trinta passos da igreja, via-se por cima dos telhados o perfil a prumo da torre. Rita, aos intervalos da febre, olhava com saudade para a janela do sino grande, onde tantas vezes estivera a seguir com os olhos a revoada dos passarinhos, que cortavam o ar de mil modos e enfiavam-se por um lado da torre para sair pelo outro, gorjeando risadas joviais.

Sofria a nostalgia da altura e do horizonte imenso; queria tornar a ver de perto os queridos sinos.

Por maior infelicidade, havia dous dias que os sinos coaservavam-se desesperadamente calados...

Emílio não saía um só instante da cabeceira da doente. Apavorava-o a idéia de perder aquela criança, que era a recordação viva da filha e do genro que a fatalidade lhe roubara. Este pensamento enlouquecia-o.

No Sábado de Aleluia, Rita sentiu-se extraordinariamente bem. Sentou-se no leito, para ver melhor a torre...

Uma alegria sobretudo agitava-a deliciosameate.

O sacristão viera prevenir o avô de que a Aleluia romperia ao meio-dia em ponto e que era necessário que o velho fosse tomar o seu posto.

Rita ia ouvir novamente a voz dos sinos!...

Certo de que eram reais as melhoras da netinha, tranqüilizado pela afirmação de um médico que dissera que a menina estava salva, sorrindo à idéia de que a neta se havia regozijar com os repiques da Aleluia, o velho Emílio beijou amorosamente a testa da criança, deixou-a entregue aos cuidados de uma boa mulher que lhe fazia de caseira e foi alojar-se na torre.

Da janela do sino grande, avistava o interior da área da sua casinha e a janela do quarto de Rita.

A vidraça descida e o escuro do aposento não permitiam que ele distinguisse o leito da neta. Emílio estava, entretanto a vê-la com todos os seus sorrisos bons e brandos; parecia-lhe até que ela acenava-lhe para romper a Aleluia antes da hora.

Eram onze horas e meia. Emílio estava impaciente. Os minutos passavam longos, como se em vez de minutos fossem horas...

Do alto da torre, o sineiro olhava para o oceano de telhados, que ondulava-se lá embaixo em agudas cumeeiras que repetiam-se indefinidamente pela cidade afora. As ruas cobriam-se de multidão vestida de preto que corria aos ofícios religiosos; por entre os telhados que vistos de cima pareciam enormes livros de capa entreaberta e lombo voltado para o céu, devassavam-se os quintais e os terraços, com grandes montes de lixo; coradouros alastrados de roupa branca onde o sol brilhava deslumbrante, o olhar indiscreto via em flagrante os interiores desarranjados e obscuros, as mocinhas em roupas caseiras, correndo daqui para ali, as cozinhas em movimento, muito pretas de fumo; um formigueiro de atividade doméstica, especial, muito distinto do formigueiro das ruas, reproduzindo-se por todos os lados até onde a vista alcançava; cobrindo tudo o tênue nevoeiro alimentado pelas chaminés fumegantes e um vago perfume de assados e fermentos que subiam da cidade como o anúncio evidente de que estava a findar à última hora dos magros dias da quaresma.

O velho Emílio passou distraidamente a vista por todo aquele conjunto indistinto e complicado de minuciosidades que os altos pontos de vista desvendam numa cidade, e voltou a fixar os olhos na vidraça do quartinho de Rita...

Um movimento de espanto fê-lo recuar da janela...

Estava suspensa a vidraça do quarto da netinha. A mulher a cujos cuidados ele confiara a criança estava à janela e agitava desesperadamente um lenço em direção à torre.

Acenava-lhe, sem dúvida.

Mas o que significava o aceno? Talvez ela estivesse gritando; Emílio, porém, era quase surdo em virtude da sua profissão; talvez tivesse no rosto uma expressão qualquer que explicaria tudo; mas, com a idade, a vista de Emílio era fraca demais para reconhecer essa expressão.

O lenço frenético significava alegria? significava terror?... Urgia saber-se!

Emílio ia correr, esquecendo o toque de Aleluia, quando emerge ofegante pela escada da torre o sacristão a gritar:

— Olha o sino!... Olha o sino!... já passa da hora... Já cantaram a Glória!

Emílio, atordoado, desvairado, precipita-se sobre o feixe das cordas que punham em movimento o carrilhão. Toma-as, desvairado, e agita os sinos como um doudo, confundindo o dobre de finados com os repiques alegres, badalando precipitadamente, sem compasso, levantando na torre uma tempestade de detonações incríveis, infernais.

— Não há memória de uma Aleluia tão ruidosa e alegre, dizem as pessoas que ouviram-na.

Depois de um quarto de hora de frenesi, o pobre Emílio inclinou-se na janela do sino grande e observou a vidraça do quarto da netinha. Estava suspensa como antes da Aleluia e ninguém mais se via.

— Quem sabe se o lenço fazia-me sinal para tocar os sinos?... pensou o velho...

E, mais tranqüilo, embora prostrado pela comoção que sofrera e pelo excesso que acabava de fazer, Emílio desceu da torre. Na escada, teve de sentar-se muitas vezes, antes de chegar ao último degrau.

— Vamos ver a Ritinha, dizia consigo, deve estar satisfeita comigo... Nunca toquei tão forte...

Em casa, encontrou morta a pequena Rita.

— Morreu sorrindo e atenta ao rumor dos seus queridos sinos, disse a mulher a quem Emílio confiara a guarda da criança.

O velho apertou o peito com ambas as mãos, lançou um olhar seco, terrível pela janela do quarto para a torre e para o espaço profundo, e caiu.

Na rua e no céu, reinava a ruidosa alegria das Aleluias e a tirania deslumbrante do sol.

É esta pequena história que conheci casualmente no quando chega-me aos ouvidos linha azul do horizonte como passado que me vem à mente, a voz dos sinos, cantando na um vago psalmear flutuante...

 

A BATALHA DOS LIVROS

Foi um sábio, Aristóteles de Souza. Recebera na pia batismal um nome significativo, vaticínio de encomenda dos pais, sem grave ofensa à modéstia porque vinha logo atenuar, os compromissos a restrição chué do sobrenome.

Aristóteles, entretanto, ficava sendo, embora de Souza. Dominava-o a avidez de conhecer como um vício insaciável. Tinha sede de idéias, fome de páginas; havia alguma cousa de traça no seu apetite. Oh! não lhe ser dado viver entre a compressão erudita de dous capítulos de um livro fechado, tranqüilo e só, roendo, roendo as saborosas folhas

Dormia pouco, comia menos, não bebia nada, excetuando o abuso da água do pote a que se entregava periodicamente em cristalinas orgias de asceta. Não tinha afeições pessoais, porque a aplicação o distraía de ter sentimento; detestava o bulício do mundo e a preocupação dos negócios.

Pura massa de sábio: nos livros, dos livros, para os livros.

Muito rico, confiara a direção inteira dos seus interesses a um raro procurador honrado e, alto, no platô das Paineiras, sobre os rumores da cidade e sobre as intrigas dos homens, desfrutava a sensualidade espiritual dos estudos, encerrado em um grande prédio que lá mandara construir.

Com Aristóteles, morava um sobrinho, o Sancho, rapaz amável, bem apessoado de carnes, com um ventrezinho de jovialidade cativante, pouco inteligente, falador, encarregado de receber as visitas, entretê-las com a melhor hospitalidade e despachá-las atenciosamente, antes que lhes ocorresse a idéia de ir perturbar o sábio na sua sabedoria.

Aristóteles falava raramente ao sobrinho. Não se dignava. Sancho, em compensação, venerava-o, acatando profundamente essa desdenhosa reserva como o nicho do seu ídolo. Aos criados o sábio não dirigia palavra. Gesticulava os seus desejos e era compreendido às maravilhas.

Uma vez por semana dava audiência, para quem o quisesse consultar sobre elevados motivos técnicos.

Traço complementar: era fisicamente a ressurreição magra do velho Littré.

Um

LEXICON

Dos esdrúxulos portugueses seguido de um breve tratado dos adjetivos científicos derivados do grego, e vantagem do seu emprego no discurso, para o fim de dar precisão, sonoridade e prestígio às frases.

Granjeara-lhe a reputação unânime de profundo em que era tido.

Tinha publicado também uma monografia entre industrial e científica sobre as Cidades peixeiras do Brasil, ou piscicultura nacional e futuro deste ramo de aplicação da indústria humana com a continuação do tempo e o progresso da navegação. Esta segunda obra, que lhe valera um diploma de membro do Instituto Histórico, provava, jogando com as estatísticas dos mercados de peixe, que o incremento da atividade náutica fazia desaparecerem os peixes, afugentados pelo rumor das rodas e hélices dos paquetes, para regiões afastadas e mais tranqüilas do oceano.

Apesar do diploma e da nomeada, Aristóteles não estava satisfeito consigo. Aclamasse-o o mundo inteiro, posteridade inclusive, aclamasse-o sábio, com hipoteca segura sobre uma dúzia de centenários glorificadores, Aristóteles, no seu bom senso, estava a contragosto, desconfiando que não passava de uma besta. Aristóteles... ora, ora! - de Souza!...

É que, de todos os seus estudos copiosos nunca lhe fora possível fazer um organismo unificado e harmonioso: o Problema da classificação dos conhecimentos escapava-lhe ao cérebro, intangível e sutil, em meio de todo aquele tumulto de noções anarquizadas, como o espírito do Senhor no caos dos primeiros dias do mundo. O espírito onipotente da síntese, obstinava-se em recusar o fiat às trevas daquela desordem.

Que desespero! Ter consciência de que sabia, de que lhe haviam entrado de enfiada no cérebro os conhecimentos matemáticos, lingüísticos, históricos, geográficos, astronômicos, e a física, e a química, e a história natural, desde a investigação microscópica até ao reconhecimento hábil e prático dos mais difíceis espécimes dos três remos da natureza; conhecer descritivamente todas as filosofias, desde Aristóteles, o outro, até Aristóteles, ele mesmo, ter meditado, uma por uma, as crenças e as religiões de todos os tempos e lugares, sem falar de uma leitura completa impossível de todas as literaturas em original, desde os poemas da neve escandinava até os poemas do sol do Himalaia, que desespero ser erudito, erudito, erudito! e não poder ligar, na rapsódia de uma concepção cosmogônica do universo, tanto retalho precioso!

Os sistemas filosóficos eram engenhosos, lógicos, concatenados. Mas não serviam porque, sendo razoáveis, eram diversos! O que é múltiplo em opinião não é verdadeiro. A luz é uma só e indiscutível. Aristóteles tinha por falsos todos os princípios debatidos. E, como a filosofia é uma polêmica, lá ia ele atordoado por entre as escolas como um bêbado.

Mas ardia por ver em que ficavam os pensadores para então filiar-se em remorsos à escola unânime e universal dos perfeitos sábios. Quando chegaria para esta solução o Messias mestre?

Infelizmente, não dispunha da necessária força, ele, Aristóteles de Souza, para fazer a paz entre os princípios. Só havia talvez resignar-se a morrer, dolorosa contingência! sem conhecer o advento bendito da Luz indiscutível e única.

Para compensar a tristeza da decepção, Aristóteles atirava-se aos livros com redobrada fúria, tentando embriagar-se com a contemplação dos fatos isolados.

O cenáculo dos seus excessos de erudito esfaimado, era o templo.

Templo chamava Aristóteles à biblioteca, situada no centro da casa. Estava-se aí em um retiro de completo sossego. A luz penetrava verticalmente por uma clarabóia de vidros foscos, e se dispersava, silenciosa e igual, descendo pelo lombo colorido dos volumes ao soalho tapetado, onde caía maciamente, como receando perturbar a paz absoluta do interior.

A sala era hexagonal, de uma arquitetura graciosa e opulenta. Seis estantes uniformes de madeira lavrada e fosca encobriam as paredes e cercavam o local, tocando os frisos do teto com os emblemas do estudo que as adornavam, globos terrestres, teodolitos, lunetas, tinteiros, troféus de penas e réguas artisticamente arranjados, panóplias completas dos combates do espírito, sobre alfarrábios amarrotados de páginas enormes - tudo primorosamente talhado em carvalho.

Duas portas comunicavam a biblioteca com os outros aposentos da casa. Sobre as portas desabavam amplos reposteiros da cor da madeira das estantes. A cada um dos seis ângulos, formados pelo encontro das estantes, havia uma estátua.

Quatro destas pequenas, ladeando as portas.

D. Quixote, de ponto em branco, magríssimo, sentado, espada de cavaleiro à cinta, heróico, cravando, na encadernação inofensiva dos livros do lado oposto, o desafio do olhar nobre e triste de vingador de agravos.

Hamleto, de pé, um gracioso descanso sobre um quadril, em traje ligeiro de jovem fidalgo, deixando ver até à coxa as longas meias do tempo, a mão esquerda sobre a espada, a direita fechada à altura do queixo, em gesto de fervorosa contensão meditativa.

Pela colocação da estátua, o olhar do príncipe sombrio ia direito às faces cavadas e aos longos bigodes desanimados de D. Quixote.

Fausto, o pobre filósofo, preocupado simultaneamente pela decepção espiritual e pelo amor intenso à vida, simbolizada em Margarida.

Mefistófeles, ao lado de Fausto, perseguindo-o ali mesmo na ornamentação da biblioteca, inseparável mentor das trevas, com o seu vestuário de pajem, o gorro, e a petulante pena oblíqua, e a ironia satânica.

As duas outras estátuas eram colossais. Aristóteles e Shakespeare.

As quatro primeiras descansavam sobre colunas de ferro negro, as duas últimas sobre peanhas quadrangulares de madeira pintada de branco.

Todas de bronze.

A de Aristóteles envolvia-se nas dobras simples e majestosas de um manto grego. Shakespeare trajava, segundo uma gravura muito conhecida que o representa perante a corte de Inglaterra.

O cone luminoso, baixando da clarabóia, chegava em toda luz aos nomes gravados nas peanhas. O corpo das figuras desenhava-se num crepúsculo que escurecia gradualmente para o teto; a fronte delas mal se distinguia no círculo de sombra que rodeava a clarabóia.

Em meio dessa sombra, como dentro de uma nuvem, percebiam-se confusamente rostos que olhavam para baixo fixamente - retratos de homens ilustres, obra rara de arte, pintados no teto sobre medalhões apensos às volutas do estuque, frondosamente distribuído para todos os lados, em torno do foco luminoso da clarabóia.

No centro da sala achava-se uma grande mesa cercada de divãs.

Aí se entregava Aristóteles aos seus furores de aplicação.

Como lhe sabia o estudo, ai na calma do isolamento, não ouvindo, sequer, o murmúrio farfalhado das árvores da serra, na íntima convivência dos livros, aspirando o cheiro das encadernações novas, ou a sagrada emanação dos infólios, perfume dos séculos!

Como era agradável passar as horas absorto, com as suas obras prediletas, ferozmente excitado pela febre de conhecer; ou, por desenfado, reclinar-se em um divã e permutar olhares de inteligência com os rostos vivos do teto, Dante, Petrarca, Moliêre, Klopstock, Cervantes, Byron, Guttemberg, Kepler, Beethoven, Miguel Ángelo, Kant, Cesar, Sócrates, Lafontaine, Ariosto, Hegel, Descartes, Darwin, Leão X, Spencer, cem figurões do espírito, com os quais privava o nosso sábio!

Que nobre entusiasmo lhe produziam então as estátuas! Como se entendiam bem Aristóteles e aqueles homens de bronze, que representavam a imortalidade do gênio e das obras geniais! Em êxtase de vaidade, mirando as esculturas, o sábio chegava a sentir-se digno também de uma transfiguração. Encontrava mesmo em si alguma cousa que o aproximava da natureza daquelas estátuas. O destino de um sábio é acabar estátua tarde ou cedo. No meio daquelas figuras, Aristóteles sentia-se um pouco monumento, como elas. Uma dormência estranha tomava-lhe as pernas, beribéri da glória! e ele sentia-se já metade bronze, bronze até à cintura, como aquele personagem das Mil e uma noites!

De súbito caía em si. Como pensar em estátua, um pobre diabo que não chegara a consolidar em um sistema os próprios conhecimentos, o triste sábio dos retalhos, avesso à síntese?!

Assaltavam-no assim inopinadamente dolorosos momentos de desânimo, no meio das preocupações do estudo.

Ele queria escapar à obsessão... Lã estava a síntese impassível, a rir sarcasticamente no Mefistófeles de bronze, a rir para ele, o espírito da classificação, como a zombaria da própria inépcia, fechando-lhe a estrada das aspirações!

Por mais que tentasse não foi possível a Aristóteles de Souza dominar a preocupação enferma.

A grande obra estava por fazer... Ele sentiu-se arrastado a acometê-la.

Estava perdido. Galgara a Babel do saber, e a ciência, a altura incalculável dos problemas, talhados a pique como precipícios, produzia vertigens tais ao seu espírito, que lhe fora preciso cerrar os olhos ao pensamento, para escapar ao desastre.

Bem o tentou, mas não foi possível. A idéia fixa escravizou-o. A dificuldade teimosa da solução passou a acabrunhá-lo como uma desgraça.

Até que um dia as cousas mudaram.

Ultimamente, à noite trancava-se Aristóteles na biblioteca, a meditar até muito tarde.

Certa noite, como de costume, dirigiu-se ele para o seu lugar de trabalho. A biblioteca estava fechada. Aristóteles parou à porta.

O sobrinho Sancho que, desde a hora do jantar, notava modos extraordinários no tio, viu-o espiar pela fechadura como se quisesse lobrigar alguma cousa no interior da biblioteca, cousa impossível aliás, por estar a sala sem luz e o reposteiro corrido.

Convencendo-se de que nada poderia ver, o sábio colou o ouvido ao orifício da fechadura. Esta nova observação não foi infrutífera; porque Aristóteles ali ficou um tempo imenso, curvado, dobrado, com as mãos nos joelhos, imóvel naquela auscultação absurda, como na observação tenaz do mais interessante fenômeno.

Vendo que se fazia tarde, incomodado pela insistência do sábio, o sobrinho acercou-se dele e receoso de causar desagrado perguntou muito docemente:

— Não deseja descansar, meu ti.?... Já é tarde...

O velho não ouviu; Sancho repetiu o convite.

Como se lhe disparasse dentro uma mola elétrica, Aristóteles empertigou-se bruscamente contra o sobrinho; e, rijo, teso, imperioso, formidável, apontou com a mão magra para a saída da ante-sala onde se achavam, rangendo entre dentes, com a voz surda e as sílabas trincadas:

— Retira-te!

Meio amedrontado, meio compadecido, o moço afastou se. Tinha certeza de que o tio era vítima de um desarranjo cerebral. Conservou-se à distância, observando-lhe a atitude.

Quase ao romper do dia, Sancho o viu retirar-se da porta da biblioteca, passar em silêncio como um espectro e recolher-se vagarosamente ao dormitório.

No dia seguinte um respeitável médico, chamado às Paineiras por Sancho, observou a repetição do estranho fato e constatou-se a loucura do sábio.

— Tanto esforço mental... explicou o facultativo com proficiência.

E um ano passou.

A loucura de Aristóteles, traduzindo-se por uma inofensiva mania, não tornara necessária a mudança do enfermo para um hospício. Limitava-se o velho a passar os dias embrutecido em um idiotismo inerte, contristador, desenvolvendo a ação da sua vontade unicamente para impedir, por meio de uma proibição assombrosamente enérgica, que se abrissem as portas da biblioteca.

À noite, invariavelmente, postava-se junto da porta do templo e levava horas e horas imóvel, extático, manifestando, na fisionomia, o gozo de um prazer imenso.

Conformados com a desgraça, o sobrinho de Aristóteles e os amigos adotaram o estado patológico do sábio como uma simples metamorfose das esquisitices do velho; e não viram, afinal, diferença nenhuma entre a nova mania de escutar à noite o silêncio da biblioteca e a antiga avidez maníaca de ciência e literatura. Dous capítulos coerentes da história vulgar de um sábio.

Em compensação, que profundíssimo desdém lhes votava Aristóteles! Espíritos rudes e escuros, não lhes era dado se quer desconfiar em que vertiginosas alturas andavam os condores do seu pensamento. E certo não valia a pena comunicar-lhes as grandes cousas que lhe vibravam ao ouvido, nas preciosas horas contemplativas.

Aristóteles sentia-se engrandecer.

Um clarão novo convulsionava-lhe o cérebro como uma batalha de relâmpagos. Rebentava uma florescência de estrelas, na escuridão caótica das suas idéias. Venturosa primavera de irradiações! Era ele! era ele o predestinado!

Narrava a Bíblia o conflito meteórico dos átomos conflagrados, antes da gênese divina da Ordem. Aristóteles sentia fabulosas as dimensões do seu crânio. Dispersos, odiando-se mutuamente, cercados de uma escuridão compacta, flutuavam-lhes as idéias adquiridas nos longos labores do estudo, rebeldes a qualquer tentativa de harmonização filosófica. Repentinamente toda essa escuridão se crivara de astros cada vez mais numerosos e mais brilhantes. As células educadas do seu cérebro, outrora inimigas, sorriam umas as outras, com a chegada da luz. Havia um ano essa tendência simpática progredia em intensidade no seu espírito.

Devia ser ele Aristóteles de Souza o pregoeiro bendito da paz universal do pensamento! Era impossível que depois de tanta exacerbação mental não lhe saltasse da cabeça, a Minerva armada e invencível da sabedoria única e evidente.

Por isso ouvia no templo aquela epopéia de rumores, cada noite mais assombrosa e mais vasta.

Maravilha! Os livros que Aristóteles descera das estantes para os estudos preparatórios da confecção de um fabuloso dicionário dos conhecimentos humanos e dispersara em desordem, cobrindo o tapete da biblioteca, subindo dous palmos pelo pedestal das estátuas, todo esse mundo de volumes abriam as páginas como mandíbulas e vociferavam. Aristóteles escutava extasiado o concerto estupendo das vozes.

Clamavam as filosofias, clamavam os apostolados da crença, estertoravam os mártires. Cadenciando o vozear desordenado das opiniões ardentes, ouvia-se a palavra calma dos livros didáticos, a proferir preceitos. Os geógrafos narravam viagens; os astrônomos revelavam descobertas. Prestando bastante atenção percebia-se o desmoronar longínquo dos impérios; de momento a momento uma página repetia as palavras de Baltazar; ouvia-se caírem os dias e os acontecimentos como as folhas das árvores: era o rumo da História.

À primeira noite Aristóteles de Souza fora impressionado por um ligeiro barulho. Encostando o ouvido à fechadura, pareceu-lhe sentir um tropel desordenado de ratos, folgando na biblioteca em trevas. Continuando a escutar, o rumor avolumou-se como o brado crescente de um trovão nos espaços.

Cresceu e transformou-se, ganhou modulações, ramificou-se em tumultos parciais confundidos por fim em uma erupção incalculável de clamores, como se uma batalha estanha se empenhasse entre os capítulos e as doutrinas.

Aristóteles gozava, exultando, a inaudita impressão daquela sinfonia de vulcões a contorcer para todos os lados os tentáculos da lava rugidora e espantando o universo com o bramir anárquico das crateras.

Sobre o turbilhão das ciências, dos princípios, das opiniões e dos fatos, reinava a soberania das artes. Pareciam estranhas à tempestade inferior. As obras de arte exalavam harmonias arrebatadoras, dominando às vezes a peleja colossal dos fatos e das doutrinas. Inteira bonança, lá em cima. As estrofes serenas pairavam na altura, como garças sobre o oceano revolto.

Às vezes um artista descia, destacando-se da suprema placidez; então baixava como um arcanjo vingador, esgrimindo um estardalhaço de raios e reerguia-se à eminência, deixando a desolação no torvelinho das opiniões, das tiranias, ou das vergonhas.

Esta contemplação estupenda acabrunhava Aristóteles. Não era impunemente que ele fruia esta audição de assombros. Cada vez que saboreava o seu estranho deleite, uma prostração mais pesada obrigava a procurar o leito.

Mas entregava-se a acessos de furor, se alguém tentava dissuadi-lo da fatigante penitência que se impusera.

Um belo dia, a debilidade não permitiu mais que ele se fosse postar no seu observatório do costume. O velho sábio implorou com lágrimas de desespero que o carregassem até à porta do templo.

Arranjaram-lhe aí uma cadeira confortável e Aristóteles ainda uma vez pôde chegar até o seu querido posto de observação.

Entretanto o sobrinho, um médico e alguns amigos presentes não viram mais acender-se o olhar do sábio como nas noites de entusiasmo. Ele colou o ouvido à fechadura, mas uma expressão dolorida de desapontamento foi o único ritos que lhe agitou a face.

Voltou para a cama mais abatido do que nunca. Com o olhar fixo e morto, os lábios entreabertos e os membros abandonados em contristadora flacidez passou ele o dia seguinte. Embalde lhe foram proporcionados excitantes, Aristóteles parecia extinguir-se de uma vez irremissivelmente.

À noite levaram-no carregado até à porta da biblioteca. Este recurso extremo foi sem resultado. O templo, dias antes, povoado pelo rumor incrível da batalha dos livros, estava silencioso agora. Tristíssimo silêncio.

— Ah! exclamou Aristóteles em um hausto de agonia, agitando a cabeça que lhe tombava em abandono para o peito. Nada mais ouço! nada, nada mais!...

A voz fraquíssima saía como soluços.

Poucos momentos depois, ali mesmo na cadeira expirou, abraçado com o sobrinho, que o cobria de lágrimas.

Expirou, coitado! quando provavelmente ia resolver o grande problema da paz das escolas. Porque não era crível que, de tão luminosa febre cerebral, não explodisse a verdade decisiva, mediadora eficaz do conflito dos espíritos.

Quando, depois das cerimônias fúnebres, abriram-se as portas da biblioteca, que por mais de um ano jazera trancada, encontraram-se os livros em miserável estado. Uma turma diligente de ratos devastara a livraria. Meia dúzia de volumes, se tanto, haviam escapado à sanha dos roedores.

Pobre Aristóteles! Não lhe sobreviveram os queridos livros!

Lá estavam esparsos, fragmentados, pulverizados, desfeitos, os seus companheiros de cinqüenta anos de trabalho.

Lá estavam os seus problemas aos pedaços, as suas teorias, feitas poeira de papel roído!

Lá estavam aos montes, conspurcados e miserandos, os destroços do vigor cerebral dos homens e da sabedoria dos séculos.

Sobre aquela devastação erguiam-se inalteráveis as estátuas com a mesma expressão que lhes dera o escultor à face de bronze, Hamleto, tenebroso e irônico, Fausto meditativo e preocupado, D. Quixote a fitar bravamente as estantes vazias, Mefistófeles, de riso cruel, e as figuras colossais do Filósofo e do Poeta, com a fronte perdida no escuro do alto, em meio da ramagem florestal do estuque e dos retratos admiráveis de grandes homens.

 

A CRUZ DA MATRIZ

A igreja Matriz de *** está distante uns cinqüenta passos do povoado...

É um edifício pobre de arquitetura, mas rico dessas arborizações cor de limo, que a humanidade pinta pelas paredes velhas, como que para suavizar o colorido deslumbrante de uma caiação primitiva. Tem por campanário uma espécie de sótão. Este sótão sobressai no vértice do ângulo de duas cornijas oblíquas, que sobem a unir-se aos pés de uma cruz de ferro escalavrado por uma oxidação antiga. À janela anterior dessa torre está suspensa uma sineta, que atira badaladas alegres aos ecos do sertão quando soa a hora da missa.

Galga três pedras amontoadas, como degraus, quem pretende ter ingresso no santuário. Vê-se então, em uma nave modestíssima, que os esforços dos fiéis conseguiram assoalhar sofrivelmente.

O altar-mor levanta-se fronteiro à entrada. Em nada destoa do aspecto geral da matriz. A cada lado desse altar existe uma portinha. A da direita dá para. um terreiro; a do lado oposto comunica com a sacristia. Triste sacristia que é! Calçada de ladrilhos desnivelados, tem por mobília dous bancos, a que o tempo tirou quase todo o verniz, e um armário, sobre o qual se vê uma imagem poeirenta da Virgem e dous castiçais azinhavrados, de cujas bordas pendem longas estalactites de cera amarela.

A sacristia tem uma janela e uma porta, que se abrem para um terreno plantado de girassóis.

Entre a janela e a porta está um dos bancos de que falei. É aqui que o velho vigário C... passava as suas manhãs e tardes. Manhãs e tardes de tranqüila meditação, inspirada menos pelos segredos da ciência, que pelos mistérios da fé. Nesse lugar era visto, os olhos no chão e o pensamento no céu, deixando cair dos joelhos as mãos abandonadas, ou mergulhando os dedos por meio das franjas argentinas, que alguns dissabores e alguma idade lhe haviam feito brotar da fronte.

Ao lado do pároco aparecia às vezes o sacristão. Brício chamava-se ele. Era um rapazola travesso. Os seus treze anos nutriam nele pronunciada disposição para a brejeirada, que, conquanto inofensiva, desgostava bastante o bom do vigário. Diziam uns que o sacristão era afilhado do respeitável sacerdote; outros, porém, os maldizentes, em maior número certamente e, porventura, menos longe do verdadeiro, afirmavam que os afixos do qualificativo eram mero disfarce de um velho pecadinho do vigário.

Milhado, ou não, o certo é que Brício era paternalmente amado pelo padre. Este, não obstante o seu amor, via-se freqüentemente forçado a apertar-lhe a orelha, quando o pequeno por qualquer forma fazia conhecer a decidida preferência que dava a um alçapão sobre a campainha. De fato, o menino gostava mais de espreitar, no mato, qualquer volátil do que responder ao Dominus vobiscum, no altar. Era mais passarinheiro do que sacristão. Isto causava certo desgosto ao pároco e o fazia murmurar:

— O brejeiro é levado.

Estes termos traduziam a irritação do sacerdote, pequena trovoada que, descarregando-se às vezes pelas orelhas do brejeiro, se desfazia logo no mais bonançoso esquecimento.

As vezes que as travessuras de Brício ficavam impunes, devia-as ele a um refúgio que possuía, inacessível às punições, pelo menos às do vigário. O refúgio era a torre, ou antes, o sótão da Matriz. Com efeito, o padre C... não era muito idoso, mas... sofria de um reumatismo, que não consentia que ele, na torre, ouvisse de mais perto o repicar do bronze. Uma vez, pois, no campanário, tinha Brício as orelhas livres dos dedos do vigário.

Pela manhã, quando aparecia o padre na sacristia, se o sacristão era detido, passava este os mais desagradáveis instantes da sua existência. Além da missa, que ele ajudava com alguma paciência, outros tormentos lhe eram marcados. Ora, eram dois pombinhos que chegavam a ligar-se perante Deus, ora, um pequeno candidato a um lugar na arca da salvação... E Brício era forçado a postar-se estupidamente ao lado dos pombinhos e ao lado do candidato.

O sacristão vingava-se. Resmungava contra matrimônios e batismos, que tanto tempo lhe roubavam à caça de passarinhos. Se lhe metiam nas mãos alguma vela, partia-a em pedaços, que só o pavio não deixava cair. Estas vinganças eram as brejeiradas com que o vigário menos simpatizava. Eis porque, depois de qualquer ato religioso, uma cabecinha esperta mostrava-se nas janelas do campanário... Lá estava o sacristão esperando que o padre C... esquecesse o seu delito. E pouco esperava.

À tarde, já feitas as pazes com o vigário, Brício o deixava no banco da sacristia. Trocava então o ambiente de flores em decomposição, que tresandavam as melancolias da Matriz, pelo ar puro dos descampados, tão cheio desse perfume indefinível das últimas como das primeiras horas do dia. Ia para o campo armar esparrelas aos pássaros ou rachar taquaras e fazer gaiolas para os íncolas miúdos das selvas.

Uma vez, era ao descair de um belo dia. As cambiantes roxo-negras do crepúsculo vinham ganhando o anilado celeste. As tintas de ouro do Ocaso expiravam afogadas em róseos vapores...

Nessa hora alguns campônios contentes seguiam pela estrada de.... Iam da povoação para a matriz. Havia entre eles duas mulheres, uma das quais carregava risonha uma criança nos braços. A criança ia batizar-se.

O préstito caminhava... De repente parou... Uma exclamação de raiva partira do meio dos silvados, que margeavam o caminho.

Os campônios olharam em redor, talvez assustados. Um menino lhes apareceu então, mergulhado até a cintura em montes de mato rasteiro.

— Ora! dizia ele irado. Espantaram o meu passarinho!

Os rústicos que, sem o saber, haviam afugentado uma avezinha, no momento em que se ia deixar prender pela armadilha do pequeno caçador, riram-se da exclamação e seguiram para a igreja.

Entretanto, o menino aproximou-se da sua armadilha. Estava intacta; porém o passarinho, prestes a cair, voara embora.

Franziu o senho e pôs-se a olhar alternadamente para o seu alçapão vazio e para o grupo de camponeses, que seguia para a matriz.

Ah! uma boa pedrada!... murmurou ele, com os dentes cerrados.

— Mas não! disse, depois de refletir. Vão batizar o filhote. Não é assim?... Muito bem... Ficarão sem sacristão.

Brício, pois o caçador não era outro, tinha formado o seu plano. Na ocasião em que o batizado chegava à igreja, o sacristão entrava no povoado.

Encaminhou-se este para a casa onde moravam ele e o vigário. Não quis entrar. Assentou-se na soleira da porta e aí ficara alguns minutos, quando um seu amiguinho chegou correndo e gritou-lhe.

— Brício, fuja! O Sr. vigário está lá em casa a perguntar por você e provavelmente virá aqui, vá esconder-se... Ele está furioso... Diz que você o deixou sem sacristão...

Brício soltou uma gargalhada franca e ruidosa:

— Ah! disse ele. Não tiveram sacristão. Nada mais justo...

O amiguinho do sacristão arregalou os supercílios com um ar pasmado.

— Não me entende. Não é?... Eu te explico... Um passarinho, antes de recolher-se ao ninho, pousou no meu alçapão... lá no caminho. Estava a cair, quando uns tratantes apareceram, levando um pequeno para batizar-se. Espantaram-me o passarinho e riram-se de mim... Agora eu rio-me deles... Espantando o passarinho, espantaram o sacristão... Bem feito! Não acha?

— Bem feito! Bem feito... Mas o mau é que os tais do batizado brigaram com o Sr. vigário, por faltar o sacristão, e juraram que se haviam de mudar da freguesia para não voltar a uma igreja tão...

— Oh! oh! Que logro!

— Sim! mas o Sr. vigário está seriamente zangado por isso... com você... E fuja, Brício! Aí vem gente!

Brício sumia-se por um lado, quando por outro mostrou-se o padre C... voltando uma esquina.

Ao ver o amigo do sacristão, o sacerdote dirigiu-se a ele:

— Você viu o Brício?

— Não, senhor, respondeu o menino.

E se afastou do padre, que ficou mordendo o beiço, ante a mentira do pequeno.

— Este é outro, disse ele, a meia-voz. Pensa que eu não ouvi-lhes a conversa...

Tinha já Brício chegado à igreja e se acomodara na torre.

Dentro em pouco avistou, caminho da matriz, o vigário

Vinha devagar, por causa da sua moléstia. Brício teve então umas das suas lembranças... E com elas havia várias vezes apaziguado o sacerdote.

— Bom, disse consigo, ele me há de avistar... Se me mandar descer, eu direi que apanhei um reumatismo que não me deixa andar quase... Ótima razão!

É a mesma que ele tem para não subir. O reumatismo que não o deixa subir, porque não me impedirá de descer?... Mais tarde descerei sem receio...

No princípio de uma cólera, qualquer cousa que devera fazer rir, irrita mais ainda. No fim sucede o contrário: extingue-a de todo.

Parece que o sacristão sabia disto, que cuidou em preparar-se no campanário. Saltou pela janela da frente curvando-se para não esbarrar na sineta, e passava para cavalgar no ângulo das cornijas do frontispício da Matriz, onde seria facilmente visto, apesar da noite que entrava...

Então, debaixo da estrada, se fez ouvir um grito de terror.

Era o vigário C...

Sucedera uma cousa horrível.

O pobre sacristão escorregara para fora e, fiando-se demasiado na segurança da cruz de ferro, agarrara-se a ela. O ferro oxidado vergou, inclinando-se para a frente, e depois abaixando-se.

Brício, com as mãos pregadas na cruz com uma energia desesperada, pedia socorro... suspenso no ar.

A cruz se ia entortando lentamente. Se Brício fosse pesado, o seu suplício não duraria tanto.

O ferro começou a rachar-se.

O menino, aterrado, via como avançava a morte, e ouvia os gritos do pároco abaixo dele...

O mísero vigário estava fora de si. Tinha querido subir ao campanário. Não pudera. Colocara-se então por baixo de Brício e, com os braços abertos, esperava neles recebê-lo.

— Brício! Brício! gritava.

E o ferro da cruz, primeiro devagar... depois, rápido... partiu-se.

Daí a pouco estava no adro da Matriz de*** um pequeno cadáver... A cabecinha, descansada nas lajes da escada, pendia um pouco para trás, com os cabelos a nadar em sangue... O corpo estendia-se inerte sobre a terra, uma das mãos encostada aos olhos, a outra segurando-se a uma cruz de ferro... Era o sacristão Brício.

A porta da igreja estava aberta. A noite enchera de trevas o santuário... Apenas no fundo luzia o clarão baço da alampada, com essa expressão sepulcral e triste que se descobre no olhar do moribundo... E este clarão, flutuando naqueles negrumes, deixava ver no meio da nave uma sombra negra.

Dir-se-ia um espectro...

Mas o espectro falou:

— Malfadada criança!

E depois com entonação soturna.

— Eu pecara, meu Deus... E tu me puniste!

Estas vozes perderam-se pelos recantos do templo, e a luz da alampada tremulou como em soluços.

 

A MONA DO SAPATEIRO

I

Ela servia bem...

Era redondinha, rosada, bonita. Sobretudo era nova, novíssima mesmo...

Uns dezesseis anos se tanto.

Fernando e Emílio espiavam-na. Viam-na à porta da lojinha do pai, o sapateiro Cândido, um Cândido preguiçoso, ébrio e pobre. Achavam tentadora, ó diabo! a melancolia da menina, com o rosto colado ao portal da loja, observando quem passava e seguindo com um olhar expressivo as mocinhas de sua idade que transitavam de carro, ou vinham pelo passeio, a pé, apanhando garbosamente a seda farfalhante das saias para não roçarem pelo vestidinho enxovalhado e sujo, que lhe caía dos quadris.

Não trabalhava quase a filha do sapateiro. A ociosidade do pai a escusava ante a própria consciência e a opinião pública, isto é, o veredict da vizinhança.

Demais, a Joaninha vivia desgostosa. O pai, quando se embebedava, (e isto era freqüente) maltratava-a muito, injuriava-a desabridamente; chamava-a descarada, cadela... Mortificava aquilo. E ela não tinha gosto pelo trabalho. Levava as horas num farniente lânguido, aborrecida, dissolvendo-se cm mórbida tristeza, ou erguendo castelos de ouro, sobre as suas ilusões de menina ambiciosa...

Fechava-se, por exemplo, num biombo escuro existente nos fundos da loja, seu quarto de dormir; despia-se de alguns dos panos mal asseados que a cobriam, e punha-se a olhar para o corpo. Um sorriso estranho ressaltava-lhe, palpitante e ardentes, as maçãs do rosto. Joaninha deitava timidamente olhares em roda de si, como a gazela, antes de mergulhar o focinho na fonte para saciar-se; depois, cheia de feminino orgulho, passava os dedos pela epiderme velutínea dos braços e do seio. Entretanto, segredava de si para si que não ficaria mal naquele corpo uma camisinha fresca, mole, transparente, toda enfeitada de rendas... Cingia o pulso com o polegar e o dedo médio, em forma de pulseira, e imaginava o efeito de uma argola de ouro luzente, cavando-lhe ali uma cintura na carne...

E nada tinha para si, além dos maus tratos do pai e dos galanteios de alguns vagabundos atrevidos!

Os castelos perdiam-na numa ficção azul, donde a realidade a tirava com uma violência semelhante à do menino que deixa voar a avezinha atada pelo pé, e puxa então o cordel para fazê-la bater no chão e atordoar-se.

Por mais cruel entretanto, que fosse a realidade, jamais se dissipava do cérebro da moça o pensamento de melhorar de condição no mundo, subir...

Tinha ouvido dizer uma vez que a mulher tudo alcança pela formosura. Ela não era feia. Consultara o seu pequeno espelho a esse respeito e vira lá dentro uma carinha a rir de satisfeita. Era chic, bem chic. Então de corpo!... Quem seria mais elegante do que ela? Que braços mais lindos do que os seus; que cintura mais bem talhada?...

Não era sem motivo que certo moço da vizinhança lhe dava tanta atenção. Este moço não passava pela porta da loja, quando ela aí estava, que não lhe deitasse um olhar significativo - não chegava à janela da sua casa, pouco distante da loja, sem verificar se havia certa pessoa à porta daquela sapataria...

Ela era querida. Ser querida, eis a questão. Joaninha sentia-se no princípio da carreira...

Quase sempre as suas meditações eram interrompidas pelo pai.

Ou ele entrava da rua com a cabeça aquecida e a língua ardente pela ação do álcool e gritava:

Oh, Joaninha!... Onde se meteu esta peste?!... Oh, endemoninhada!...

Ou, sem estar embriagado, sentia acessos de amor paternal e chamava Joaninha, para acariciá-la, e dar-lhe conselhos. e, se estava trabalhando, deixava tudo, ia em busca da moça, bater à porta do biombo.

A Joaninha não fora possível dizer quando lhe era mais desagradável o chamado, se para a repreensão, se para o afago. Tinha contudo a necessária paciência para suportar uma cousa e outra.

Sofria tudo, confiando no futuro e adorando no fundo do peito ao jovem vizinho, como o alicerce das suas esperanças.

II

O sapateiro Cândido gostava muito de palestra. Era o seu natural... que fazer?...

Aos domingos, quando não se achava toldado pelo vinho, sentava-se à entrada da oficina, no seu banquinho de pano listrado e pernas em X, e esperava o primeiro conhecido para a prosa.

Os conhecidos vulgares não eram os mais apreciados pelo sapateiro. Ele preferia conversar com gente de gravata lavada, como um militar, uma autoridadezinha de polícia, um estudante, etc. Gente que percebesse as considerações mais ou menos digeridas que ele desenvolvia a propósito disto, ou daquilo, ou mesmo sem propósito nenhum.

Esta preferência revelava a face principal do caráter de Cândido. Não era homem de afazer-se à sua posição social. Dizia-se degradado pela necessidade. Não nascera para aquilo que era. Por isso estimava as palestras com gente boa. Tinha até predileção pelos homens ilustrados. Sim, porque ele não era qualquer ignorantão. Em pequeno, chegara a aprender geografia; e os quarenta anos que lhe pesavam nos ombros o tinham feito um tanto entendido na ciência...

Daí a amizade que ele travou com dois moços estudantes que moravam nas imediações da sapataria.

Um desses jovens era alto, magro, amorenado, cabelos negros, olhos negros, bigode vasto e queixo rapado; o outro de estatura vulgar, cheio de corpo, sangüíneo, bigode recurvado para cima, pupilas ameigadas, maneiras de conquistador; quanto ao mais trajavam ambos rigorosamente e gozavam da fama de ricos...

O moreno chamava-se Emílio; o alvo era seu companheiro de casa e colega; chamava-se Fernando.

Temos falado de ambos ao leitor.

Insinuante mancebo que era Emílio! Modos afidalgados, mas corteses, sorriso bom sempre a correr nos lábios. Fernando era insinuante como o outro, porém de gênero diverso. Derramava em torno de si uma chuva de olhares qual mais eloqüente e dizendo tanta cousa que uma mulher honesta e casta não podia afrontá-los. Punha de alcatéia os pacatos burgueses; e, mais de uma vez, o simples fato de sua passagem por junto de uma mocinha fizera agitar-se o pretropolis de honrado papai.

Fernando simpatizava com a Joaninha. Dize-lo basta para fazer evidente a atração que ligava o sapateiro e o estudante.

Travaram, pois, conhecimento Cândido e Fernando; Emílio por intermédio do amigo, entrou também na roda...

Era uma satisfação para o primeiro ter à sua porta os estudantes... Sentia-se menos sapateiro, lidando com os doutores. Pobre homem!

III

Certa ocasião, num dia santo (dia de... S. Sebastião, por sinal) os dois moços pararam à porta da sapataria; perguntaram a Cândido como ia da saúde, etc. O pai de Joaninha convidou-os a entrar. Sabia que eles eram democratas, não coravam de transpor o limiar de uma humilde oficina... Os democratas acederam ao convite. Era fim da tarde e já os lampiões da iluminação pública salpicavam a meia sombra crepuscular com as chamas esbranquiçadas do gás. A rua toda parecia respirar na sonolência inexprimível dos dias desocupados. Pouco movimento, nenhum rumor notável. No céu, nevoeiros empastados, prenhes de chuva, anunciavam uma próxima mudança de tempo. Pelo ar, espalhava-se alguma eletricidade, que impressionava os nervos, predizendo trovoada.

Os estudantes e o sapateiro conversavam. Davam à taramela a respeito de tudo, primeiro a respeito da atmosfera; depois, de S. Sebastião; em seguida, das festas de Igreja; por tocarem nisso, meteu Cândido as botas nos padres, especialmente no vigário da paróquia, um patife tão baixo para com os ricos, quanto arrogante para com os pobres, um bandalho, etc...

Entretanto, passou o caixeiro da venda do Manoel corcunda.

Escurecera completamente, mas o sapateiro tinha acendido o lampião de querosene, a cuja luz trabalhavam os seus empregados em dias de serviço. Conquanto amortecida, essa claridade enchia a oficina, desenrolando uma toalha avermelhada até ao meio da rua...

O caixeiro espiou, sorrindo de ver na oficina o Dr. Fernando R. e o Dr. Emílio ....

— Querem alguma cousa? perguntou.

Os estudantes cruzaram um olhar...

— Queremos, disse Fernando. Traga cerveja e...

— A branca!... completou Cândido.

E Fernando atirou ao caixeiro uma nota de cinco mil-réis...

O caixeiro abriu a boca, mostrando os dentes sujos, num riso malicioso, e foi-se...

Minutos depois, estava tudo aí: troco dos cinco, cerveja, a branca, bebedeira.

Os moços deram o exemplo. Dois copos e uma caneca fizeram de cristais. Começou a orgia. Saltavam as rolhas e a cerveja surgia espumosa como a saliva de um gotoso à beca das garrafas...

... As negrinhas estão babando! gritava Cândido, e estendendo o copo para colher aquela espumarada atraente...

— Vamos bebendo! diziam os estudantes.

Note-se que Fernando bebia moderadamente.

O sapateiro entusiasmou-se. Descompôs a sociedade que o maltratava, e o destino, que o perseguia; maldisse de tudo, em altas vozes, revelando raros dotes de uma oratória inchada e de má gramática.

Os moços discutiam com ele, e o faziam beber cada vez

Principiou então a perder o fio das idéias. Dissertando sobre a conveniência da instrução, apostrofava subitamente os seus empregados que lhe comiam o dinheiro sem trabalhar.

— Corja de bêbados! urrava...

Iam-lhe as palavras tornando pegajosas de mais a mais, a língua pesava-lhe sobre os dentes inferiores, e os estudantes a ministrarem-lhe copos sobre copos...

O bêbado afastava os cantos da boca num sorriso bestial, as pálpebras caíam-lhe como bambinelas e, nos olhos semicerrados, moviam-se languorosamente as pupilas, como se estivessem também embriagadas.

Emílio e Fernando riam gostosamente, oferecendo ao sapateiro mais cerveja e mais aguardente. O infeliz, encantado pela transparência brilhante dos copos, deixava-se atordoar e ia bebendo... bebendo.

Numa porta que se rasgava como um paralelogramo negro ao fundo da loja, assomou um vulto. Parecia uma coluna de fumo alvacento a flutuar nas trevas. Os moços sentiram-no. Emílio voltou a cabeça; Fernando voltou a cabeça. Era a menina!...

Joaninha percebera os rumores da orgia. O que seria? Convinha ver...

Estivera espreitando.

O estado do pai confrangia-lhe o coração, à força de causar-lhe nojo. Aquilo já não era beber! Porque nascera ela daquele homem? Deus não podia ter-lhe dado um pai menos borracho? E tinha de amá-lo!... E ela o amava, mesmo; sentia-o às vezes... Que miseráveis eram aqueles que ali estavam a escarnecer do pobre homem?

Devia verificá-lo e censurar os malvados. Quis entrar na loja...

Os homens, porém, tinham voltado o rosto e ela que já os suspeitava viu que eram os dois vizinhos, aquele que lhe dava muita atenção, e o companheiro...

A figura do pai, com a cabeça pendida, balanceando à toa como a de um morto; as pernas distendidas e os braços caídos como pedaços de chumbo, desfez-se-lhe, com o deslumbramento que lhe causou o olhar de um dos moços, de Fernando.

Fernando era o seu namorado, isto é, o moço que podia servir-lhe. Um belo rapaz; tanto melhor. O que a dispusera para amá-lo, para notar-lhe as feições, fora o ser Fernando um moço de fortuna como revelava pelo rigor do traje e pelo seu modo de vida. Demais o estudante gostava dela, não havia que duvidar. Disso possuía mil provazinhas galantes que o moço lhe dava e que ela compreendia sem custo. Com Fernando se casaria.

Por que não?

Ela pobre, mas bonita; ele namorado e rico...

IV

Adiantara-se muito a noite. A rua ficara sem viva alma. Alguns trovões pouco intensos abalavam de longe em longe o ar. Na loja do sapateiro Cândido são havia como lá fora pessoa alguma, a não ser o indivíduo que dormia sobre um assento, encostado à parede. Era o bêbado. Os estudantes tinham desaparecido.

Emílio propositalmente deixara Fernando só e fora-se para a casa. O namorado de Joaninha, tendo recostado como melhor pôde o sapateiro, adormecido na mais absoluta embriaguez, encaminhara-se para a porta onde vira a Joaninha mostrar-se.

A mocinha não estava mais aí. Fernando olhou para trás, como temendo que o pai da sua querida despertasse e adiantou-se para o interior. Sabia que Joaninha era órfã de mãe, e, naquela casa, residia com o pai unicamente. Não eram, pois, de recear encontros.

Barafustou por vários aposentos, onde não se distinguia um só objeto, na massa compacta de negruras que havia neles. O coração palpitava-lhe violento como se não estivesse a gosto no tórax. O cheiro de couros e graxas que corrompia o ambiente incomodava-lhe o olfato...

Sem saber como, viu-se o moço em uma saleta mais clara (menos escura, fora melhor). Uma janela envidraçada apresentava um pedaço de céu sombrio, um pouco menos, contudo, que as paredes da saleta. Relâmpagos brancos, demorados, iluminavam os caixilhos da vidraça como clarões brincando num painel fantástico. Estes clarões faziam uma rápida solução de continuidade em a noite. Um dia veloz penetrava na saleta e fugia num instante, mal permitindo que se visse no centro da sala uma mesinha coberta de objetos insignificantes e um velho sofá vizinho da janela.

Neste sofá estava sentada Joaninha. Quando um relâmpago mostrou-lhe o namorado a entrar, ela sorriu e baixou o rosto acanhadamente.

— Até que enfim meu anjo! disse Fernando, com voz um tanto comovida.

O moço estava habituado às entrevistas; mas aquela era de ordem excepcional. Fora tão longamente preparada, que, quando a grande hora chegou, o herói sentiu-se abalado. A filha de Cândido gozava um sobressalto delicioso. Havia se retirado da loja, para ser seguida pelo dileto do seu coração. Ali estava ele.

A um segundo relâmpago, a mocinha viu junto de si o mancebo e, apenas voltou a escuridão, sentiu um braço musculoso enlaçando-lhe a cintura, apertando-a com arrebatamento contra um peito largo, onde havia palpitações que eram marteladas.

Joaninha pendeu a cabeça para o ombro daquele homem.

Caiu numa dormência povoada de visões. A noite pareceu-lhe sulcada por mágicas irradiações de esquisito fulgor, a cruzarem-se no espaço, como para circundar uma figurinha de criança que lhe sorria de longe, agitando as mãos...

Quando terceiro relâmpago clareou a saleta, os dois namorados cingiam-se num abraço de despedida.

— Meu noivo!... dizia a moça com os lábios sobre a face de Fernando.

— Minha noiva! ciciava este ao ouvido dela...

E lá fora o trovão rufava com força, fazendo estremecer a vidraça.

V

Em seguida Joaninha conduzia seu noivo até à porta da rua.

Na oficina jazia o sapateiro estendido no chão, a dormir como um porco. Escorregara do assento, em que o tinha deixado Fernando.

Chovia bastante, àquela hora, e a água, entrando pelo vão da porta da loja, inundava o chão. Cândido parecia boiar num lago.

Os noivos não lhe deram atenção... Apertaram-se as mãos e Joaninha perguntou graciosamente:

— Como se chama, mesmo, você?...

— Felizardo... flor...

— Bem... Agora, Felizardo, até...

— Logo, Joaninha...

Dando esta resposta, Fernando abriu o guarda-chuva que trouxera.

— Adeus! atirou-lhe a filha do sapateiro.

— Adeus! disse ele, sorrindo.

E partiu.

.......................................................

Pouco depois, Fernando e Emílio conversavam em sua casa.

— Com que, graceja Emílio, conseguiste, meu felizardo, plantar uma lança em África!...

— Sabes que sou decidido, observou Fernando, pavoneando-se... Mas o principal é que temos de nos mudar desta casa, já e já... não quero que a pequena me torne a ver...

— Fazemos a mudança amanhã mesmo; olha, o Z mudou-se há dois dias; temos a casa dele...

— O diabo é esta chuva... parece que o céu está chorando...

Todo estudante é mais ou menos poeta. A frase de Emílio inspirou-lhe uma idéia.

— Deixa estar, Fernando, que hei de dedicar-te um soneto com este título: a queda de um querubim, onde farei o céu deplorando uma virgem...

— E eu, replicou o companheiro distraidamente e rindo, hei de dedicar-te um com este outro titulo: a mona do sapateiro.

 

A POMBA E A ESTRUMEIRA

Eu quero um noivo rico... Que não seja formoso!... Formosa já sou eu... Quero um noivo de ouro, de ouro como o bezerro. Adoro tudo que é de ouro: as jóias, as moedas e o bezerro mosaico. Quando durmo, sobre o meu corpo os sonhos entornam douradas cascatas... As auroras são belas para mim, porque têm diademas de ouro. Ama-se geralmente a montanha pela verdura basta e frondosa, que a reveste; eu amo a montanha, porque sinto lá dentro da crosta granítica, o espesso filão dourado. Há quem adore o ciciar do córrego, cachoeirando-se pelas pedrinhas afora; eu acho apenas adorável o ribeiro, quando rola palhetas de ouro nas areias do leito... Com o ouro faz-se o domínio e funde-se o trono. Os imperadores romanos faziam esculpir em ouro as próprias figuras...

Os raios do sol são de ouro.

Enfim, eu serei conquistada pelo ouro... A formosura tem a glória de valer o grande metal e de poder trocar-se por ele.

A mulher que se deixa conquistar pelo ouro passa a ser conquistadora; a fraqueza da formosura transfunde-se na onipotência do metal... De que serviria a nós outras, mulheres, a beleza, se a beleza não fosse ouro no mercado da vida e se o ouro não exigisse o formoso róseo da nossa carne para mais fino realce?!... Os homens dominam pela matéria, que é o ouro, nós dominamos pelo ideal, que é a sedução. A aliança dos dous domínios faz o domínio supremo... Esta é a verdade. Por isso, eu quero um noivo rico. Um noivo de ouro; de ouro maciço como o bezerro do velho testamento... Pertenço a quem mais der!... O calão vulgar da canalha chama isso vender-se...

Eu vendo-me!

Eu estava horrorizado. E ela dizia a brilhante catadupa de blasfêmias com aqueles mimosos lábios, que eu supusera feitos para o murmúrio doce das santas confidências da virtude e do amor...

Como era horrível a lagarta amarela do ouro, a sair por entre as rosas daquela boca!

.................................................................

Diante de nós, lá embaixo, no jardim, haviam acumulado a um canto uma grande porção de estrume.

Sobre o estrume, uma pomba branca, de lindos pés sangüíneos e sangüíneo bico, revolvia com as unhas o monte infecto, procurando alimento...

Fez-me estremecer o epigrama da casualidade.

 

À TONA D'ÁGUA

I

Há crepúsculos que parecem desmaios. Olha-se para cima e vê-se o firmamento pálido; o ocidente apresenta a expressão vaga do olhar da criança que se faz mulher e que sofre a transição. Parece que uma nota de espanto percorre a natureza... Segue-se depois a noite, a escuridão, o desfalecimento da luz.

A alma compreende que a noite é uma ausência. Vai além: apalpa esta ausência. É deleitoso. Tem-se os olhos abertos e sonha-se. Os espetáculos são panoramas de fumaça; e sempre nessa confusão de escuros e meias sombras, destaca-se um ponto. Quem vê este ponto é o coração. Perguntem-no aos amantes.

Rosália estava vendo um crepúsculo assim; e esperava ansiosa pela noite... à praia.

II

Resvala a canoa, macio como a nuvem à flor do céu... Rosália já está com ele. Só quem os vê é a noite. O remeiro canta distraído uma barcarola por trás do estofo que os encobre. E vão...

III

Trocam olhares que os prendem como elos de doces cadeias. Apertam-se as mãos e sentem que possuem alguma coisa de comum que lhes circula pelo corpo deliciosamente. Parece-lhes que possuem o mesmo sangue, porque possuem o mesmo fogo, vivificando a dormência que os acalenta. São dous que se amam de um só amor; mas conhecem-no apenas, porque se sabem amantes e o amor exige duplicidade.

IV

A quilha do barquinho rasga sem ruído a toalha alisada do mar e os gravetos flutuantes vão lhe ficando na esteira. Por essa hora, vai a imergir no ocaso um estilhaço de lua que dissolve ainda pelas trevas uma claridade morta. Rosália vê à proa do barco uma pequena lâmina. Vê não exprime bem. Os olhos passam pelo objeto e não atentam. Mas a canoa vai e vai...

Rosália foge à casa paterna, nos braços do amante.

V

Pela segunda vez depara com o ferro; mas agora com atenção. Aquele aço não brilha, entretanto cai sobre ele o luar. A jovem estende languidamente a mão e o segura. Violento palpita-lhe o coração.

Pressentimento... Ela fita profundamente o semblante amoroso do companheiro e murmura:

— Sangue?!...

O mancebo faz um movimento brusco. A canoa estremece. O remeiro vai cantando...

O moço, que se afastara da jovem, pega-lhe nervosamente nos formosos braços, apenas velados por brandos filós e diz-lhe, com os dentes cerrados, fora de si:

— Teu pai vinha matar-te, desgraçada!

E Rosália atira-se sobre ele e solta um grito de furor:

— Assassino, eu te amo!

 

AMOR DE INVERNO

Ora, para que havia de dar-me a mania!... Lembrei-me de amar uma velha!...

A gente chega a saciar-se de tudo, até do vinho quente da juventude. Em amor, uma das cousas apreciadas é o amor que custa; pelo menos, o amor que precisa que o busquemos para vir: mil vezes mais apreciado que o amor que vem ao nosso encontro. Maomé, com certeza, não se arrependeu de ir até a montanha. Ora, a juventude é assim. Tem o defeito, em amor, de vir ao nosso encontro. Há o instinto, nos seios rijos da virgindade, que os impele a esmagar-se, amassar-se, emolir-se, de encontro ao peito que se lhes acerca.

A grande idade é já esquiva.

O verão passou. Tem uns dias de sol, como o inverno os tem. Mas, são sugestões tranqüilas da saudade. Os sóis, Os grandes sóis passaram.

Quem sabe? Haverá, talvez, um vivo prazer em ir a gente abrir uma réstea estival de claridade no firmamento nublado desses dias! Espera, S. Medardo, padroeiro dos dias úmidos... guarda o aguaceiro um pouco... que eu vou mandar àquela pobre, de presente uma nesgazinha de bom tempo...

Tomei a sério a minha intenção.

Logo ao terceiro dia, aliás à noite, achei o meu ideal.

Velha, velha, velha, velha...

Imaginem um belo ideal de cabelos brancos, curvo e tremulo, de carnes tenras entre galantina e faisandé.

Dous olhos negros brilhavam como alcaparras em cima daquela iguaria branca.

A minha atenção fervorosa atraiu a dela. Daí a Pouco, seguíamos, trocando olhares. Os dela - de curiosidade, naturalmente.

Mais de perto, com a iluminação pública pude ver-lhe dous cachinhos em espiral gamenha de saca-rolhas, que lhe faziam voltas de S aos lados da fronte.

Com a vista firme, percebi que aqueles caracóis prolongavam-se sutilmente pela velha adentro; enrolavam-se num sorriso que ela tinha nos lábios e iam até à alma, envolvendo-a como a cauda cansada de um velho demônio aposentado.

Abordei-a.

— Não vê que sou respeitável? replicou ela com certa gravidade benevolente.

Respeitável, até veneranda... disse eu comovido, recuando um cumprimento.

E pus-me a caminhar em silêncio ao lado dela (que não se apressou) olhando para a ponta dos meus sapatos que alternadamente eu batia com a ponteira fina da bengala.

Os lampiões iam passando... Embaixo de cada lampião, eu aproveitava o gás, para ver a minha velha. Não estava de má cara.

— Acredita na simpatia? perguntei.

— O que chama simpatia? perguntou-me.

— E a aliança que prende duas pessoas a um simples encontro, sem porquê nem porquê não... Vem do grego syn, com pathos, afeição.

Este grego foi de uma infelicidade a toda a prova; mas, com uma velha, em amor, não há perigo mesmo em falar grego.

Depois, novo silêncio. Os bicos de gás. da calçada vinham de tempos a tempos iluminar o nosso silêncio. Eu estudava de esguelha a minha aventura.

Aventura, vejam lá! Quem me visse ao lado daquele camafeuzinho com quem eu ia, supor-me-ia, entretanto, um numismata a passeio com o seu museu, ou algum jovem fidalgo (permitam) que estivesse a arejar a sua árvore genealógica.

— Então o senhor simpatizou mesmo comigo?

— Sim, respondi-lhe eu, que andava a mil léguas com a imaginação. Sim, minha senhora: do grego syn, com pathos, sentimento.

Ela repetiu a pergunta. Eu respondi-lhe com um sorriso tímido. Daí para diante encaixamos definitivamente um no outro, dous silêncios afetivos do melhor efeito. E fomos.

A minha árvore genealógica, depois de muito tempo, voltou-se para mim e, a meia voz, como se concluísse uma doce frase, cujo princípio lhe ficara no espírito, falou:

— Vou para casa...

Não lhes posso fazer o retrato da fisionomia que, naquele momento, um bico de gás iluminou-me. Era a ternura, a. gratidão, a surpresa, o prazer, e mesmo a lascívia, quem o diria!... Eu senti, oh! vulcões extintos! o corpo inteiro da velha flamejar num incêndio que lhe passava a saia de seda, que me passava a roupa, como um bafejo de fornos, que me bafejava a carne.

Era isso mesmo que me enchia a imaginação havia momentos. Tinha encontrado o sonho. Uma mulher que passava, na sua velhice, esquecida do amor, esquecida do sexo, na idade positiva e anestésica das desilusões. Quando a criatura não é mais que um tubo digestivo por corpo e um terror por alma, o terror da morte que ai vem; quando, ao abandono de cousa imprestável, em que todos nos deixam, soma-se o raivoso egoísmo com que nos agarramos a nós mesmos, esquecidos dos semelhantes, porque a nossa questão não é mais com a vida, que lhes diz respeito, mas apenas com a morte, que só diz respeito a nós; quando a febre religiosa é a única energia moral e o calor cibário o único entusiasmo físico; quando a descrença e o egoísmo multiplicam-se para abrir, em roda de nós, um espaço desesperante de solidão e tristeza... Eu aparecer-lhe, fitá-la, pescá-la no fundo da lagoa frígida dos seus anos; inventar então para mim um amor novo de ressurreição; criar outra vez a mulher e fruir aquela segunda virgindade; cuspir no adjetivo venerando, incendiar de paixão o amianto rebelde dos cabelos brancos; assistir da torre do meu capricho triunfante, a vasta conflagração do país das neves, ver, por um momento, renascerem os enlevos, os êxtases, os delírios mortos surgirem, como fantasmas, dos próprios restos, para saudar ainda uma vez o mundo, num último clamor supremo do que vai perecer em pouco para sempre...

E colher para mim, aquela vasca do último entusiasmo, ouvir nos mais distantes recantos da alma, ouvir e guardar na memória das sensações raras todo aquele coro delicioso dos cisnes em agonia.

Velha, velha, velha, velha...

Ela era feia, pequenina, trêmula, muito branca, muito molezinha, muito crespa de rugas, como a nata de leite soprada, fraca, e de andar vacilante, certo andar balançado de patinha, que mal lembrava uma vivacidade possível dos quadris de outrora.

Num momento, o andar consolidou-se. Ela começou a dar passadas grandes, rijas, nervosas. Tomou-me o pulso. Dir-se-ia levar-me à força para a casa, como um menino fujão. Eu era dela.

Perdeu as considerações. Passou bruscamente a prescindir da minha vontade. Nem mais olhava-me. Levava-me ali como um objeto, quase brutalmente. Havia de ser naquela noite mesmo, na bebedeira do momento. Amanhã tudo estaria perdido. Era preciso não dar tempo à religião de falar; não dar tempo aos cabelos brancos de pensarem em si; não dar tempo ao moço de esfriar a fantasia. Era ali, naquele instante... Tinha muito tempo para se arrepender... depois.

Quando chegamos à casa, depois de andarmos não sei quantas ruas, devia ser tarde. A casa foi uma rótula de venezianas, que eu vi recuar para um buraco negro. Entrei. Faltou-me o pé. O soalho era mais baixo que a rua.

— Não caia! há um degrau, disse-me a velha.

Eu não via mais a velha. Na imperceptível claridade que chegava da rua, entrevia o meu braço, a minha mão, um pouco de outra mão, e depois a escuridão espessa. Parecia que a escuridão puxava-me.

O ar frio encanado denunciou-me um corredor. Deixei-me conduzir pela escuridão no ar frio.

De repente, do fundo de um aposento invisível, alguém tossiu.

Eu estremeci na mão da velha.

— Não faça caso, balbuciou-me ela ao ouvido. É a minha filha... que sofre de asma...

Pouco adiante, uma porta de vidraças vagamente clareada fez-me deter o passo. Um homem escarrou.

— Não faça caso, segredou-me a velha... Meu neto dorme aqui com a mulher...

Adiante ainda rangeu manhosamente o choro de um menino.

— Não faça caso... É o meu bisnetinho...

Outra criança rompeu em choro para acompanhar a primeira.

A velha não me disse se era o tetraneto...

Pois, senhores, fala-se em juventude... primavera... primavera... fala-se em verão... Não acreditem, meus amigos, não acreditem no inverno.

 

ANTES E DEPOIS

O salão entornava luz pelas janelas. No sofá, bocejava a boa gorducha d. Maria, digerindo sonolentamente o quilo do jantar. O seu digno consorte, o desembargador, apreciava o fresco da noite à janela, sugando com ruído a fumaça de um havana, com os olhos nos astros e as mãos nas algibeiras. Perto do piano, arrulavam à meia-voz Belmiro e Clara... Já se sabe: dois pombinhos...

O Belmiro estudava; tinha futuro, portanto; Clara... tocava e cantava...

II

— Belmiro, disse o desembargador, atirando à rua a ponta do charuto, manda Clara cantar...

— Cante, d. Clara, pediu Belmiro.

Clara cantou... Cantou mesmo? Não sei. Mas as notas entraram melífluas pelos ouvidos de Belmiro e foram cair-lhe como açúcar no paladar do coração...

— Esplêndido! esplêndido! dizia ele, fazendo chegar a umidade do hálito à face rosada da meiga Clarinha...

O desembargador olhava outra vez para os astros...

III

Rola o tempo...

Numa casinha modesta de S. Cristóvão, mora o dr. Belmiro com sua senhora d. Clara... Os vizinhos dizem cousas... ih!

IV

— Como vais, Belmiro?

— Mal!

— Mal?... disseram-me que te casaste com a tua Clarinha...

— Sim! sim!... mas, queres saber... de amor ninguém vive; é de feijões...

— Então...

— Devo até a roupa com que me cubro!...

— E o dote?

— Ah! ah! adeusinho...

V

É noite.

D. Clara está ao piano. Um vestido enxovalhado escorre-lhe da cintura abaixo, sem um enfeite. D. Clara está magra. No chão arrasta-se um pequenote de um ano, com uma camisolinha porca amarrada em nós sobre o cóccix.

Clara toca; e não canta, porque tem os olhos vermelhos e inflamados...

O dr. Belmiro vem da rua zangado.

— Não sei o que faz a senhora, gastando velas a atormentar-me!... Mande para o diabo as suas músicas e vá-se com elas!

A Comédia. São Paulo, no. 66, 21 maio 1931. (Da série "Uma história por dia".)

 

AS FESTAS DE REIS DE MINHA PRIMA

Conheci muito o dr. Sinfrônio.

Nunca lhe achei cara de poeta... Pois ele o fora!

Uma única vez na vida, às escondidas, como se tivesse vergonha... Mas fora... Vim a sabê-lo, alguns anos depois da sua morte.

Não quero dizer que este póstumo achado lhe valha a glória. Poeta, é modo de escrever. São umas linhas execráveis, sem metrificação nem graça, em que bela rima à toa com janela ou com singela, como no "Era no outono..." de B.Pato...

São versos de paixão, espécie de carta de namoro a linhas curtas, começadas em letra maiúscula.

Mostrou-mos o filho, um velho amigo de colégio que me ficou da infância; mostrou-mos, fazendo considerações a propósito de certas ingenuidades que todos têm e certas fraquezas em que todos caem. Aquele homem prático, prosaico, impregnado de negócios do foro e alguma política rasteira, empírica de mais, sem horizontes largos, aquele burguês redondo tivera um dia de pieguice aguda na sua vida! Lá estava o corpo de delito, descoberto em meio duma aluvião de rascunhos de correspondências, contas, recibos, papelório forense, traças e poeira.

Era uma página da mocidade incontestavelmente.

O papel estava cor-de-palha e a letra extinta. Mas sentia-se ainda, naquele fragmento de papel, a frescura juvenil de uma alma ardente, embora um tanto avessa à música das liras.

Nada me entristece mais do que um verso apaixonado, e errado! Parece-me a pomba do sentimento, rolando no chão de asas e pés quebrados... Pés quebrados!

Ora, imaginem que pena - Cupido cambaio e trôpego!

Quando um homem furta-se aos afazeres positivos da vida e arroja-se ao cometimento de uma estrofe, certo de que não tem veia, nem teve apurada educação literária, contando apenas com um raio celestial de inspiração, guiando-se apenas pela bamba norma fundamental da letra grande, por princípio, linha curta, por base e rima alternada, por fim; quando um mortal faz isto, é que tem todas as vísceras escalavradas de paixão! O amor roeu-lhe já o coração fibra a fibra e começa a morder-lhe as células do cérebro. É um heroísmo que se enternece.

Respeito estas desventuras literárias, quando as descubro, principalmente percebendo que elas queriam ficar sempre escondidas na obscuridade tímida das fraquezas humanas.

No momento em que o meu velho amigo mostrou-me o pecado literário do pai, não foi preciso esforço, para eu conservar-me sério.

"Quando te vejo, ó gentil imagem...

Começava assim a poesia e prolongava-se pelo papel abaixo, exaltando os dotes da minha prima Isaura.

Isaura contava nesse tempo quatorze ou quinze anos e não era absolutamente feia, conquanto ja tivesse, em meio da cara o mesmo pedaço de nariz que hoje distingue a maturidade dos seus trinta e oito. Menos crescido, talvez.

A prima Isaura sempre foi namoradeira e nunca achou casamento. Não sei se os namorados espantavam os casamentos, ou se a falta de casamento excitava os namoros. Nunca achou casamento, eis o fato. O único marido que lhe andou ao alcance da mão foi o dr. Sinfrônio.

Sinfrônio teve a fantasia de se apaixonar pela Isaura. Esta, porém, que estreava nos esplendores da puberdade, entendeu que toda a vida os Sinfrônios haviam de ameigar para ela a pupila e desprezou o primeiro à espera de outro mais bonito, senão menos esbodegado.

Sinfrônio era feio e pobre. Acabava de formar-se em direito e queria fazer família, para entrar regularmente na vida prática. Abstraindo-se-lhe o nariz, a Isaura não era detestável. Sinfrônio deitou namoro. De repente, com grande surpresa sua, reconheceu que estava caído perdidamente pela menina... Sempre nariz à parte, suponho.

Neste período, cometeu, fora de si, algumas poesias (entre outras a que eu vira) que, durante as reuniões da família da minha prima, cuja casa ele freqüentava, conseguia fazer chegar-lhe às mãos. Isaura deu corda, a princípio. Pouco depois abandonou o pobre Sinfrônio por um pelintra que fingia fazer caso dela.

A ingratidão da menina exasperou o dr. Sinfrônio, que, a modo de desfeita à gentil imagem dos seus malogrados arroubos poéticos, tratou de casar-se logo com outra; e fê-lo sem dificuldade.

Muito arrependeu-se Isaura, tempos depois, do desdém com que tratara o dr. Sinfrônio. Os Sinfrônios não se repetiram...

E, por maior desdita, foi o nariz avultando com a idade e descrevendo uma órbita insensível em direção ao queixo, que saiu-lhe amavelmente ao encontro...

Ainda hoje cresce o nariz; cresce, e Isaura não desanima. A esperança foi sempre a sua força.

Lá vai uma história que prova evidentemente que a prima Isaura não desanima.

A nossa família retine-se toda para os dias de Natal, Ano Bom e Reis.

Há sempre uma festa em nossa casa, por ocasião dos três grandes dias. Uma festa que dura semanas...

A prima Isaura não falta nunca; vem com a mãe, os cunhados, a melhor gente deste mundo, folgazãos, despretensiosos e amigos de agradar a todos.

No dia de Reis do ano passado, a prima obsequiou-me com um trabalho da sua agulha, uma cousinha chic.

Já não me lembro bem o que era... Desde essa época, observo que não sou indiferente à minha estimável Isaura. Não havia, entretanto, documentos comprobatórios, salvo uns olhares que notei, sorrisos que apanhei no ar, atenções que me cativavam - pura cortesia, em última análise, temperada naturalmente por um afeto vulgar entre primos...

Mas, como qualquer afeto, por mais vulgar que seja, toma caráter grave, quando se trata da prima Isaura, eu esperava tudo...

Dous dias antes do seis de janeiro deste ano, a minha amável Isaura, enfeitada com os pés-de-galinha dos seus trinta e oito e um ligeiro sorriso enrugado nos lábios, acercou-se de mim, meio acanhada...

Tomou-me entre os dedos os berloques do relógio, com uma graça infantil e meiga...

— Temos coisa, pensei.

— Edmundo, disse ela, quando me dá as festas... deste ano?...

— E você? prima... perguntei igualmente.

É o que ela queria.

— Depois d'amanhã bem cedo, você há de achá-las... no seu quarto... há de gostar, afianço... E não seja ingrato!

Dado o recado, Isaura deixou os berloques e afastou-se, confusa como uma noiva, levando diante de si, como um belo fruto maduro e longo, o magnífico nariz, ruborizado de velhos pudores virginais.

Álea Jacta!

No dia de Reis, ao levantar-se, de manhã, observei, através da meia treva do quarto fechado, que, sobre a minha mesa, havia alguma cousa.

Eram flores elegantemente apertadas em bouquet e uma carta, um pequeno enveloppe fechado.

Flores! carta! Bravíssimo, senhora minha prima!

— Ah, meus pressentimentos negros! suspirei.

E suspirando abri a janela. A luz alegre da manhã caiu sobre as flores, palpitantes de frescura, rociadas de brilhantes gotas d'água. Que esplêndida coroa de cravos rubros e que formosa camélia branca ao centro!

Admirei de uma só vez as flores e o bom gosto da minha Isaura. Que mimo!

E a carta!... E o enveloppe! Uma jóia de papelaria! Pombos em cromo, entretecidos com malmequeres e rosas...

Tive pena de rasgar aquilo.

Uma letra bonita desenhava em sobrescrito - Primo Edmundo.

Eram as festas efetivamente da Isaura; quase posso dizê-lo já - da minha namorada Isaura!

Quando abri o enveloppe, foi como se quebrasse um frasco de perfume... A carta era uma poesia!

Com certeza a intensa nuvem de aromas que me povoava o quarto vinha das flores daquelas estrofes!

Versos de amor! Santo Deus! Acordo em dia de Reis, entre os braços parnasianos de Safo!

De repente, estremeci... Era possível?!... Mas eu conhecia aqueles versos!...

Li-os outra vez:

"Quando te vejo, ó gentil imagem

Ora, ora! Eram os versos, os cambaios versos do dr. Sinfrônio, impingidos em segunda edição, e assinados sobre aquele delicioso papel de cetim pelo doce nome de Isaura!...

Tu, só tu, puro amor!...

Uma vez, um pobre apaixonado armara umas palavras desconcertadas, parecendo, de longe, versos... Vinte e tantos anos mais tarde, uma apaixonada, amorosa até o crime, plagia ousadamente a cousa e a impinge como sua, masculinizando-lhe devidamente o sentido!...

Mistos de ousadia e fraqueza que amor prepara.

Notável coincidência fora aquela de ter visitado, dias antes, o filho do falecido Sinfrônio!..., que eu tanto conhecera, sem nunca descobrir-lhe vestígios do fogo sagrado que um dia lhe acendera no cérebro a paixão violenta e que o levara a urdir trabalhosamente a epopéia dos encantos de Isaura, para muitos anos depois, esta respeitável senhora, mutatis mutandis, converter em mavioso hino de amor (por este seu criado!) e festas de Reis, acompanhando o hino de uma coroa de cravos rubros com uma camélia branca ao centro!...

Triste destino dos poetas!

Malvadas tentações de Cupido!

Incansável Isaura!

Janeiro 1884

 

CARICATURAS REAIS

Estou Roubado!

Estou roubado! exclamou o Tancredo num dia de expansões.

Ele tinha expansões. Era do seu caráter exibir-se de vez em quando voltado ao avesso. Punha na rua todas as franquezas. Franquezas ou fraquezas, como queiram, porque no caso vertente Tancredo era franco a respeito de si próprio.

Há no Norte o costume grotesco de andarem os cafajestes, durante o entrudo, com os paletós virados, mostrando o forro e as costuras, por causa do polvilho que se arremessa aos transeuntes. Tancredo fazia uma cousa assim, mais ou menos. Quando estava de lua, lá saía... Todas essas intimidades que o recato encobre, todo esse estofo que forma o avesso das aparências sociais, ele punha à mostra. Inventava, no gênero cômico, o extremo oposto de Tartufo. Exibia desabridamente o forro de si mesmo.

Alguns dias depois de casado encontra-se ele com o primeiro conhecido. Era por um dia dos tais. Falam do consórcio.

Estou roubado! bradou Tancredo.

— Pois esse casamento não era o teu sonho de ventura?!

— Ah! meu amigo. Enganei-me redondamente... Sabes o meu gênio... Eu sonhava um amor de fogo. Chamas, chamas, chamas, um amor vulcânico, feito de incêndio e lava, um inferno de amor que me calcinasse o peito... Imagina lá que me saiu uma esposa fria!... Fria, meu amigo!... Estou casado com o polo Norte em pessoa!... Lembras-te do Capitão Hatteras de Júlio Verne?...Minha mulher é aquilo... Ora só a mim sucederia uma destas... Casado com um iceberg!

Pois não a conhecias?

— Ora, qual! ver, amar, casar, foi o que fiz...

"Sonhava uma mulher ardente, com pólvora nas veias, capaz de voar pelos ares ao fogo da minha paixão. Qual explosão nem nada!... Aos meus afagos, boceja! Desarma os meus carinhos com uma frieza revoltante... Não sei a que expediente recorrer...

— Mas a tua esposa não te ama?

— Eu lá sei!... As mulheres frias amam alguém neste mundo? O que afianço é que a minha cara-metade me congela... Não sei como, a estas horas, não estou sorvete, exposto aos rigores daquele inverno!... Inverno, meu bom amigo, inverno para mim que sonhava um matrimônio de primaveras e verões. Quem diria! quando eu me inflamava ao fogo daquele olhar... que naquele olhar não havia fogo! Tanto viço, tanta mocidade! e uma frieza tamanha.

Ao vê-la, eu acreditava na embriaguez do amor, na febre do sentimento, no vinho de Hebe e nos seus efeitos. Qual vinho de Hebe! Puro Fritz, Mack & C. Ainda em cima, frappé!...

"Estou roubado! roubado nas minhas ilusões!... Queria uma mulher... E o senhor meu sogro serviu-me uma cajuada! Ora, cajuadas tenho eu no Leite Borges!... Banhos frios, de igreja... quando tinha o meu chuveiro!...

— Homem, Tancredo, não acredito muito nessa história de mulheres de gelo... A questão é achar-se a corda sensível...

— Qual corda sensível!... Minha mulher não tem corda sensível!...

 

CARICATURAS REAIS

O Piano

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Grande cousa o piano!

Os dotes da educação, pensava Maria das Dores, suprem perfeitamente a falta de dotes físicos... Por que não? Cada um caça como pode.

Pois, uma insinuante escala cromática não valerá um requebro de olhar, uma semicolcheia não valerá um sorriso, o pianíssimo não poderá fazer vezes de um traço de meiguice diluído pela fisionomia?!

A arte poderosa inventa beleza. Uma donzela desprestigiada pela boa fada da formosura bem pode salvar o deficit, adquirindo um dote artístico. A música... a música, por exemplo, impressiona, cativa como os belos olhos!

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... re... dó...

Maria das Dores era feia.

Cara comprida, o queixo a estender-se-lhe para baixo como se quisesse alojar-se entre as clavículas; o nariz, delgada lâmina em forma de leme, erguida no meio do rosto, com receio talvez de que se vissem um ao outro os implicantes olhinhos; os olhos negros, miúdos, brilhantes, encravados em fundas órbitas; testa larga, cabelos rareados... Feia incontestavelmente.

Os dezessete anos sugeriram a arrojada hipótese do casamento. Arrojada é bem dito, porque Maria das Dores tinha a difícil franqueza de se achar feia. Feia de cara, pior de corpo..... uma carcaça.

Aos dezessete anos encontraram-se de frente a carcaça e a hipótese.

Maria das Dores, a principio, recuou espavorida como se houvesse visto um espelho. Em nossos maiores desalentos, porém, encontramos sempre a saída falsa de uma esperança. A donzela lembrou-se oportunamente da arte. Sabia que algumas moças haviam inspirado até paixão sendo feias, graças aos sedutores recursos do talento musical, muito capaz de acordar sentimentos simpáticos que só um belo semblante, em geral, produz.

De combinação com o pai, a moça atirou-se ao método de Huntem.

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Alguns anos rodaram.

Maria das Dores ficou mais velha.

O pai dava festinhas em casa. Os rapazes apareciam.

A menina tocava piano.

Não fizera muito progresso, é certo; mas a arte é longa, já o disse Goethe, e o piano custa.

Maria das Dores, animada por um dito amável de qualquer rapaz, fantasiava logo ideais castelos... sonhos deleitosos de ménage... vida de família... filhinhos... ternuras... Quase esquecia o nariz e os olhinhos pretos muito unidos e o queixo.

Era já a influência da arte!

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Entretanto, bate a bota o velho.

Morreu ab-intestato, mas a partilha do espólio era fácil. Deixou viúva e filha por herdeiros; como herança, um piano usado de Bord e um nome sem mácula.

Ficou o nome imaculado para a viúva em meação e o Piano de Bord para a filha.

Passados os meses de luto, Maria das Dores voltou ao querido instrumento. Voltou com gana.

Precisava agora, mais do que nunca. Quase na miséria, vivendo dos milagres de recursos da mãe, era preciso apressar os preparativos do casamento. Está entendido que o preparativo era o estudo do piano. Armava-se a rede, depois era só precisar o noivo.

Fazia gosto vê-la a estudar.

Dó... re... mi... fá... sol.

Passa o tempo..

Maria das Dores envelhece. Aos desagradáveis traços fisionômicos, junta-se agora o incidente. pé-de-galinha. Maria não desanima... Ataca pós de arroz... e corre ao piano.

Ainda hoje, que ela dobrou o cabo dos trinta, passem-lhe pela casinha, ali na rua... passem por lá bem tarde, na hora em que os arrabaldes ressonam, ao barulho das primeiras vassouradas da limpeza pública, à hora em que se fecham os teatros, passem que hão de ver, através das venezianas da rótula e da bandeira envidraçada, luz na sala e hão de ouvir o piano.

É Maria das Dores que até aquelas horas estuda. É Maria das Dores a esperançosa, embevecida na sua fé.

Não há mais festas em casa; os rapazes não aparecem mais. Ela espera ainda, espera sempre, confiada na onipotência da arte e do merecimento da educação das donzelas...

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

 

CARICATURAS REAIS

Um Vizinho Original

Eu tive um vizinho original.

Era magro, comprido, poeta e tísico, tudo em grande dose. Poeta da velha idolatria das brisas, tísico do terceiro grau.

Quem o visse, à rua, enfiado no velho croisé como num tubo, espirrando para baixo as mirradas canelas, para cima, um pescoço de garça, nodoso e interminável, frágil apoio da cabecinha viva e inquieta, projetada para a frente, com o longo cavaignac de poucos cabelos e os olhos fúlgidos arregalados, quem o encontrasse hesitaria em tomá-lo por um oficial de justiça, por causa do olhar extraordinário, e ver-se-ia reduzido a não formar opinião sobre aquele estranho transeunte, malvestido, delgado, célere, como se tivesse medo de chamar atenção, fugitivo, quase fantástico.

O nosso poeta tinha uma filha moça, digna filha! Alta como o pai, como ele magra, alvíssima, talvez tuberculosa, provavelmente poetisa. Representava os restos de uns amores do poeta que deram em casamento, de um casamento que dera em droga.

Vivia das esperanças fugazes de uma cadeira de professora pública que lhe prometiam, havia anos, e que lhe não davam nunca. Além disso, tocava piano.

Tocava piano não exprime bem. A donzela, repetia, várias vezes ao dia, repisava, remola, uma certa e determinada música, invariável, pertinaz, uma espécie de balada, lânguida, desafinada, medonha!

O piano era um memorável tacho, de não sei que fabricante, diabólico. Produzia sons novos, inauditos, fenomenais, que davam idéia de fabuloso armazém de ferros velhos em revolução, harmonias assombrosas, não sonhadas por Wagner. Por um efeito incrível de contágio, parece que a enfermidade dos donos se comunicara ao piano. Eu era capaz de jurar que aquele piano estava tísico, tão perfeitamente ético como o magro vizinho. Havia notas tossidas, havia escalas escarradas... Ninguém imagina!

Deste monte de horrores, o pianista tinha a habilidade de extrair a sua música, a tal peça eterna e desesperadora.

Era um prodígio desafinado de doçuras, enxame de moscas sonoras zumbindo na clave de fá sobre pieguices requebradas e sentidas da clave de sol, como sobre compotas. Via-se na música da filha, o gênio do pai. Estava presente todo o alfenim da magra sentimentalidade dos vates da antiga escola. Era uma melodia a pingar melado; a enjoar de doçura.

O poeta adorava essa música. Alimentava o seu estro na beterraba e na cana daquele açúcar. Fecundada por essa inspiração de confeitaria, o referido estro dava à luz estrofes idiliais, onde o leite e o mel corriam pelos regatos e as cordilheiras eram legítimos pães de açúcar alinhados como na Serra dos Órgãos.

Estas obras-primas de lirismo lacrimejante e apaixonado apareciam, como sonâmbulas, a bracejar desvairadas, pelas colunas ineditoriais das folhas.

Não se calcula o sacrifício que se impunha o trovador para exalar em público, por glória de seu nome, os suspiros de sua alma a seis vinténs a linha.

Um belo dia o piano calou-se. Mau agouro! E o poeta não saía à rua...

Quando já a vizinhança se dava parabéns, pelo feliz desaparecimento do tal piano e da tal música, eis que de novo ressurge a melodia!

Desta vez, custava-se a ouvir. As janelas fechadas da casinha do poeta cobriam a música com o abafador de uma espessa surdina.

Nunca me pareceram tão profundamente irritantes aqueles sons. Possuíam, então, uma ternura estranha, pungente, revoltante! As notas não cantavam mais nem suspiravam - estertoravam. Era como uma série arquejante de derradeiros suspiros, ao longe. Uma agonia longínqua e interminável.

Fazia raiva aquilo! Terrível conspiração daquela pianista com aquele piano, daquela música com aquelas vidraças descidas... para me darem cabo dos nervos naquele dia!

Felizmente, a agonia acabou. A música subiu, num crescendo de círio expirante e morreu de chofre, como se lhe houvessem faltado as cordas do piano.

..................................................................

No dia seguinte, me explicaram o significativo da casa fechada e do reaparecimento da música. Adoecera e morrera o poeta lírico. Adivinhando a morte, mandara a filha ao piano tocar a melodia querida.

E adormecera o grande sono, ninado por aquela música, a dulçurosa irmã do seu estro.

Lirismo e tísica, escreveu o médico na certidão de óbito.

 

CAVALEIROS ANDANTES

Ao meu amigo J. Capistrano de Abreu

I

Pode ser que o dia histórico de amanhã, desfeitas às brisas da madrugada a noite de tempestade que se anuncia no oriente do futuro, acamada em firme cristalização de paz toda essa fervura vulcânica de aspirações infrenes que estremecem no subsolo do edifício social do nosso tempo, destruída a linha das fronteiras, após o desmembramento dos impérios, como se destruíram os castelos do feudalismo; reorganizando-se a humanidade sobre uma topografia nova. graças à justiça civil da dinamite, graças ao direito internacional dos canhões; pode ser que traga o dia de amanhã da evolução o advento feliz das esperanças realizadas, dos que crêem na Providência latente dos fatos.

Até ao presente século, serenamente julgando, triste tem sido a jornada dos homens através da vida. O oásis da eleição e do venturoso privilégio para alguns; para a multidão indistinta, o amplíssimo deserto, a marcha forçada do trabalho e do sofrimento, ao sol inclemente de um céu sem eco para os clamores, sem misericórdia para as lamentações.

A par dos fatos, como por uma errata de idealismo, desenvolveram-se as formas da meditação. Teogonias, religiões, filosofias, propagandas morais, reformas humanitárias, a hipocrisia dos comícios e as sínteses francamente artísticas da literatura; criou-se um mundo imaginário, buscou-se ao azul do infinito, na metamorfose dócil das nuvens, os aspectos consoladores que faltam à realidade rasteira. Surgiram os Heróis, os Deuses baixaram à terra, para contrastar a pureza. olímpica de sua essência com a grosseria humana das vulgaridades.

Extasiados na contemplação que nos arreda da natureza crua das cousas, pobres mortais, entregamo-nos facilmente à história do ideal. Vazadas no molde dos sonhos, as concepçôes visionárias encarnam-se; sentimos a ilusão, gozamo-la, sofremo-la, palpamos a sombra, amamos, adoramos a miragem interior do nosso delírio, desequilibrado o critério da opinião, doudos que estejamos da anagogia do instinto artístico das almas.

A história é a mesma, desde a conquista de Roma, desde aquele. passado heróico em que o pomo da discórdia confundiu. os deuses na disputa dos homens, até às loucuras cavalheirescas dos cruzados, até às campanhas mais recentes cm nome das crenças, até às revoluções modernas do igualitarismo, assopradas pela tuba enfática das proclamações.

Os ideais variam, o engano permanece. Os mesmos desatinos em nome de princípios diversos.

Primeiro foram as concepções da arte consubstanciadas com as crenças religiosas; em seguida uma época de transição, o divórcio dos ideais, delimitados o campo da arte propriamente dita e os domínios da religião; finalmente, a religião vencida e o ideal artístico em triunfo.

O princípio, os poemas eram os livros sagrados; a estrofe era o veículo da prece. Filhas da mesma disposição espiritual contemplativa, as duas irmãs separam-se. De parte a parte, exaltam-se, independentes, por muitos séculos, os entusiasmos artísticos e os entusiasmos religiosos. Os deuses são meros pretextos para os artistas; as estátuas são meros ídolos para os crentes. Dante escreve a Comédia, o leitor piedoso a diviniza. Surgem as rebeldias lítero-filosóficas e preparam a última fase que recalcou para o escuro a rareada legião dos crentes e glorificou os artistas. Ganhou predomínio a ilusão literária. A retórica foi a alma dos últimos conflitos históricos. Armou-se o gesto de Mirabeau com o sabre de Bonaparte.

Em nossos dias a frase declina. O livre exame requintou-se em desalento; não sei que sombrio niilismo preocupa o enlevo das contemplações humanas. Dir-se-ia que vai naufragar o instinto artístico no mar das trevas; que a transmigração do ideal baixou progressivamente, da concepção enganosa das teogonias até à religião dos desesperos. Confunde-se a necessidade brutal da existência, ananckhe, com a prostração desanimada das fantasias. Desabam os santuários; a imaginação morre aos pés do industrialismo ovante.

Indústria é a grande palavra - capital e servidão, tirania e esbulho. Só a indústria marchou em progresso ao rodar do tempo, a indústria, que é o egoísmo, o individualismo, contra a solidariedade, que é poema; o fatalismo da força maior triunfante, o fato positivo, indiferente à moralidade e à estética; a economia política da iniquidade, avessa à pragmática do belo e do justo, feições similares da mesma idéia inane.

Às vezes, sucedeu ser tão viva a exacerbação da fantasia concorrente que a evolução da força das cousas mostrou ressentir-se. É o caso da caudal encrespada à superfície pela viração em contrário: no fundo a correnteza é a mesma regular e invencível. Também Maquiavel ensina, o mestre sem piedade das duras lições, "que vemos em triunfo os profetas armados e acabando desgraçadamente os propagandistas inermes . E refere o exemplo de Savonarola. É que os profetas armados triunfam pelas armas, não pelas profecias. Não vence o justo; convence o ferro. A justiça é ideal; a força é fato.

Na época presente, entretanto, chegamos à dissolução. A fórmula da luta pela vida deu carta branca a todos os abusos; definitivamente poder é poder. Desapareceu mesmo a hipótese dos profetas armados. Os inermes embucham, quando não fazem, para que não sucumbam, da profecia um mercado.

Ao passo que a emulação dos tiranos e a rebeldia crescente dos oprimidos, sem fé, sem esperança, vai espalhando na atmosfera da civilização o pavor negro de uma expectativa, como não conheceu jamais a história dos povos.

II

Aos grandes ciclos do Ideal corresponderam paralelamente, nos domínios do Fato, três espécies de atividade psicológica. Época das religiões; época das filosofias; época das constituições e dos códigos. Delírios sucessivos da mesma febre.

Destas crises, a mais duradoura e a mais grave foi a primeira; período agudo: as Cruzadas, os mais belos dias do desvario beato da humanidade; personagem típica - S. Luís. A segunda complicou-se por muito tempo com a primeira até acentuar-se; período agudo: reforma e guerras de religião; tipo - Lutero. A terceira perdura em manifestações fugitivas até aos nossos dias: período agudo: Revolução Francesa; personificação - Danton.

Hoje que, o ideal expira, entramos por uma idade nova, rumo trágico do futuro à luz de um astro misterioso, em noite de desolação. Os últimos sonhadores, olhar fixo no relógio parado das ilusões, vão desesperando da quarta hora de Justiça de Proudhon.

Estudando sem preconceito a sociedade moderna e a filiação histórica das datas, verifica-se que, excetuando o esforço dos tiranos e conquistadores, que recortaram à ponta de espada as linhas geográficas do mapa-múndi e sedimentaram as camadas sociais, segundo a mecânica do egoísmo - todas as grandes lutas dos homens nada mais foram que a gênese ensangüentada de mil vocábulos: nulas variantes fônicas das expressões: Deus, Verdade, Liberdade, trilogia sinistra da eterna ignorância.

Mas ao artista deve ceder o historiador, para o estudo das tragédias do Ideal no passado. É a missão contemplativa do moderno idealismo. Deus, Verdade, Liberdade, são os três cantos da melancólica epopéia das aspirações humanas, cujos versos de sangue vêm entrelinhando a história, desde às obscuras tradições do Oriente. À luz da arte erige-se o severo monumento das audácias, dos desesperos, Ossa e Pelion sobrepostos em direção ao céu; e a grita desordenada dos entusiasmos e das decepções vibra na abóbada como uma sinfonia profunda. Ao redor da concepção do Belo e do Justo agrupam-se os heróis. Cada século faz galgar um certo número a escadaria, e organiza-se o conjunto peça a peça, avultando com o tempo, harmônico e admirável.

Suprema Bondade foi a mais sublime criação do instinto artístico. O Bem é ao mesmo tempo o belo, o justo, o verdadeiro: Ideal dos ideais. Contra a tirania dos egoísmos, que é o Mal, lavrou este protesto o coração humano.

Conforme os diversos graus de cultura intelectual dos homens variou-se a maneira de conceber a Bondade. Para cada fase do desenvolvimento uma hipótese antropomórfica

— Hércules, Cristo, D. Quixote. Hércules é a bondade heróica e mitológica; Cristo é a bondade medieval e católica; D. Quixote é a bondade moderna idealizada na ironia do livre exame. Três imagens dolorosas, geradas de estranho pessimismo. Hércules tem a púrpura abrasadora de Nessus; o Nazareno tem a Cruz; o cavalheiro de Cervantes tem o carnaval das armaduras e o pelourinho implacável da gargalhada.

III

Hércules enche o passado. Concretiza a alma dispersa das resistências. Vive na Pérsia, no Egito, nas Gálias a tradição herculana, como símbolo da força propícia contra a força adversidade. Hércules é o amparo e a defesa. O chão é rebelde e estéril, - Hércules é o sol que cria a nuvem e a fecundidade. A humanidade está cercada pela conspiração dos monstros, hostilizada pelas forças ocultas da natureza e pelas sugestões da maldade, a iniqüidade devastadora campeia em auge - Hércules faz a justiça de Talião. Monstro de Neméia, hidra de Lema, corcéis de Diomedes, touro de Creta, Anteu, Lacínio, Gerion, Cacus, Buziris, sob qualquer fisionomia que se manifeste a tirania e a violência,. Q herói a chama a combate. Zombou de Juno, que era a cólera celeste, e libertou Prometeu, que era o sofrimento humano. Carregou aos ombros o firmamento, por alívio de Atlas, que era o trabalho forçado, e destruiu a necessidade cosmegônica, abrindo à expansão ampla do oceano a clausura do pedrado Mediterrâneo, erguendo às portas do Atlântico padrões eternos do cometimento - as poderosas colunas.

Missionário do sacrifício, era a lei dos fados que o herói sucumbisse. Armou-se a intriga maldita do amor da esposa com a vingança do centauro e Ele foi vencido, o bom, o forte, o justiceiro, o sempre vencedor - pela traição do Destino. Sofreu como deve sofrer o sol envolvido no esplendor flamejante da própria glória e, como o sol, vestindo a túnica da sua tortura, Hércules fez a jornada do dia, caminho do ocidente, atravessando o teatro das grandes empresas, direito às nuvens sobre o monte, escuras como o pressentimento dos amores de Iola, e foi pedir sossego à morte na fogueira do Oeta, simultaneamente incendiada com a rebentação rubra do crepúsculo.

Cristo é a mitologia nova. Veio aperfeiçoar o mosaísmo no sentido do coração e substituir o ideal fatigado das aras pagãs. A fatalidade fluvial dos fatos reconquistara o primitivo andamento. Haviam renascido os monstros do sangue derramado dos monstros. O egoísmo, filho da Terra como Anteu, ressurgia da última derrota, válido e potente. Era preciso ensaiar de novo a Redenção do Cáucaso. Nasceu, então, o filho de Maria, por graça do Espírito Santo, como outrora o filho de Alcmene por obra de Júpiter. Repetiu-se o sagrado mistério da encarnação do Ideal na humanidade: veio à luz o inimigo da serpente do Gênesis, esmagada como as de Juno.

Mas estava transformado o mundo. Começava a civilizar-se o mal, perdida a feição rudimentar de brutalidade da natureza nascente, vegetando outro, sobre a geologia tranqüila do planeta constituído; entrava até a decair a grandeza romana. O novo campeão, em vez da hercúlea dava teve o ânimo da propaganda e um ramo de oliveira. Paz entre os homens na terra, como a beatitude dos anjos na altura. Guerra ao demônio apenas, com as armas da fé e da graça. Crer e esperar. Guerra ao demônio sensualidade, guerra ao demônio ambição - inimigos da ventura calma do bem. Abaixo os altares do terror e do sangue! Façamos a eucaristia incruenta do amor.

Arranquemos a espada às mãos da velha Justiça, em nome da Justiça nova do perdão. Contra as vaidades, desprezo; contra as tiranias, paciência; contra as injúrias, silêncio: Jesus tacebat. Amor ao homem por amor do Ideal divino.

E espalhou-se pelo universo a doutrina do pregador Nazareno; ora, terrível de energia como no evangelho de ferro de São Mateus, com o estribilho tenaz dos prantos e o estridor dos dentes e o nervoso conselho: quem tiver ouvidos - ouça! ora, triunfal e radiante, como em São João.

À semelhança do seu antecessor da Grécia pré-histórica, Cristo acabou no suplício. Falharia, entretanto, a verdade do poema humano dos séculos, se, vitimados os heróis, não fosse salva a apoteose da Idéia. O Bem é imortal. Hércules ressurge:

Quem pater omnipotens inter cava nubilaraptur Quadjugo curru radiantibus intulit astris.

Cristo ressurge: Ascendo ad Patrem meum, ad Patrem vestrum. Cristo para a Bem-aventurança eterna do Paraíso; Hércules para o consórcio de Hebe, a eterna juventude.

D. Quixote é a decepção; é o retrospecto cômico da cavalaria andante de todos os tempos. Diante do descalabro miserando da angelitude prática, o livre exame fez a sátira do riso.

Colhei no ar a psicologia abstrata dos antigos empreendimentos, o espírito desolado que chora talvez na noite murmurosa dos salgueiros, no segredo dos pinhais dolentes, espectros de luar, que falam de Yorick na sombra e vão sobre as alvas campas; inspirai, depois, o sopro dessa vida às articulações crepitantes de um manequim de fragilidades; carregai os heroísmos todos das lendas mortas ao lombo do Rocinante, magro como a abstinência, fraco como os inocentes; dai-lhes por arma o lanção impossível, por glorioso arrebique o elmo rútilo de Mambrino; animai essa criação com a investidura galvânica do gênio de Cervantes. Agitai a virtude num cenário de anacronismo e desastramento; ao lado, como uma tinta de realce: a figura obesa de Sancho, chamando pela barriga, em contraposição à idealidade esgalgada do enamorado senhor e amo. Pronto o poema moderno das vinditas e dos desagravos, a epopéia atual da solidariedade.

Hércules é o ideal forte, animado pela exuberância audaz da adolescência virgem, do espírito embriagado de sonho. Hércules vence sempre, com a onipotência positiva do braço. Cristo é uma concepção hesitante já, como salteada de suspeitas filosóficas. Cristo transige com a ordem das cousas opressiva, e iníqua; fantasia de valor a fraqueza, denominando-a paciência, a derrota faz vezes de triunfo com o rótulo de sacrifício, humilhação chama-se humildade, impotência finge de superioridade; o seu Reino não é deste mundo; os últimos serão os primeiros. D. Quixote significa, em derradeira apuração, a crítica da bondade cristã e da bondade hercúlea. Cervantes fez obra de maldição, contando talvez escrever um livro desopilante de galhofa.

No âmago do caráter nenhuma divergência entre os protagonistas do romance histórico da Moralidade.

Quixote quer a Redenção dos homens como o Nazareno, como Hércules; por ela combate, por ela morre. Quer a consagração da mulher, estímulo nobre do seu brio; seria capaz de salvar Hesione, como o herói grego, se encontrasse O monstro da Frígia, e proporia a santificação do matrimônio, como Cristo, se não achasse a cousa feita no seu século. Tal qual o paladino mitológico, ele declara guerra aos gigantes; tal qual Cristo, prega e exalta as doutrinas da perfeição. Estote vos perfecti, reza o Evangelho; Dichosa edad, suspira Quixote, y siglos dichosos aquellos a quien los antiguos pusieran nombre de dorados... entonces los que en ella vivian ignoraban estas dos palabras de tinyo e mio.

As próprias aventuras da vida se assemelham. Há o prestigio feminino de Onfale, de Madalena; há o madrigal castíssimo da Sin par Dulcinéa. Se Hércules tem as ovações da Traquina, se Cristo tem as palmas da Páscoa de Jerusalém, Quixote tem a entrada em Barcelona. Um tem o retiro contemplativo da Lídia, outro os quarenta dias do deserto; Quixote tem a penitência platônica da Sierra Morena. Baixam aos infernos Hércules e Jesus Cristo; Quixote afronta a cueva de Montesinos.

O mesmo amor os absorve, do mesmo amor são mártires. No critério moral, o mesmo erro os vitima. Pecam por anacronismo os três. Ao anacronismo retrospectivo de D. Quixote, que perde a noção de atualidade para entregar-se à imaginação das medievas cavalarias, corresponde o anacronismo prospectivo dos cavaleiros andantes da Grécia e da Judéia, desvairados até ao extremo pelo idealismo da corrigenda e do aperfeiçoamento. Vai-lhes o coração através da existência real, como um fantasma, braços abertos, olhos no céu, sorrindo aos astros...

O anacronismo prospectivo é sério, respeita a gravidade dos heróis, deixa-lhes a pose de tragédia, aprumada e veneranda; o retrospectivo entrega o herói às cambalhotas e aos desastres da loucura patente.

O elemento real do humorismo de Cervantes é a extemporaneidade da segunda espécie. O seu personagem contempla o sétimo céu dos antigos sonhadores. O êxtase de Quixote anda de costas. Daí os trambolhões e a triste figura.

Não se trata de um anacronismo superficial de fardamento. Como encenação de ridículo isto já é uma utilidade eficaz. Cristo, por exemplo, que nos entrasse agora pela cidade em figurino de cartilha a evangelizar as massas de cima do burrico de Betphage, de dentro de uma amostra das alfaiatarias da Galiléia. No batalhador manchego a caricatura é mais odiosa e mais profunda. O escritor o concebe em alma e vestuário na idade de ouro do cristianismo, ao tempo em que a espada era a força, mas o punho da espada era a cruz. E toda a memória sagrada daquelas eras vive pungente nos traços carregados do grotesco; e com as vaias de riso que envolvem o herói, roda de mistura todo aquele sonho sublime de virtude ultrajado pela nossa compaixão.

O livro é cruel. Não foi poupado ao pobre louco nem o suplício final da desilusão: fitar do leito de morte a vacuidade da sua existência de nulos combates e esforços vãos. Ele viu no terrível momento, que vivera enganado e triunfara sonâmbulo; que as palmas de Barcelona valiam antes o convulso alarido da populaça do Ecce Homo. Só então morreu, sob as lágrimas da sobrinha, sob o olhar sereno do cura, para reviver em espírito, da vitalidade invencível do Ideal, na pátria azul altíssima dos que sonham.

D. Quixote é o símbolo moderno do Bem. Todos os ideais vão passando. D. Quixote fica. Nesta idade de pessimismo e de ironia, vive; porque D. Quixote é o Ideal-sarcasmo. Sua filosofia ri, como se nascesse de Voltaire.

No fundo do cárcere a que o levara a ingratidão dos homens e a calúnia, Cervantes quis forçar às alegrias o honesto despeito de uma alma cruciada. Quis compor um poema de risos e produziu um libelo de vingança. Não há resistir à lei de unidade lógica dos cérebros. Outra não podia ser a resultante dos desesperos concentrados de uma vida inteira de heroísmos esquecidos e sacrifícios, outra a explosão do seu espírito soberano, gênio e bravura, acanhado nos melhores dias sob o favor de Mecenas que lhe impunha a gratidão como uma libré de casa nobre. Vítima do egoísmo e da prepotência, descrendo talvez, prelibara os desgostos de uma sociedade de um século por vir, em que não fosse mais possível o recolhimento e o amparo de uma instituição de caridade como ainda ele alcançou. O poema nasceu assim, saturado de fel, o molho das agonias, tão grato ao paladar moderno dos espíritos.

D. Quixote é nosso contemporâneo. E o simbolismo será tanto mais expressivo, tanto mais presente, quanto mais espessa for a atmosfera moral dos desânimos, quanto mais longe forem os tempos da vesânia generosa da humanidade.

No Vaticano, metrópole vastíssima e brilhante da Crença, onde se encontra também por toda a parte estampada a visão do Cristo na Cruz, vencido e agonizante, ou então feliz e transfigurado na glorificação fácil do colorido, exibe-se a mais bela memória de Hércules que nos deixou o passado. Lá está, respeitável ainda e temeroso, o Torso de Apolonius, o torso mutilado do Herói, vergando num desespero de musculatura, por arrancar-se à paralisia de pedra em que o esculpiram: sem pernas, sem braços, como o despacharam para a posteridade - o Leão mitológico da Justiça enjaulado na impotência da morte.

Triunfem as panacéias sociológicas, quando em remoto futuro, lavrada a superfície do globo pelo ferro de muitas civilizações, São Pedro e o Coliseu confundidos na fraternidade niveladora do acabamento - curioso há de ser a melancolia do investigador, comparando no Museu das Antiguidades, em meio dos destroços restos da velha Arte, o ideal de um tempo em que a Bondade era Hércules, o Torso, e o extenuado simbolismo do cavaleiro de Cervantes.

E a humanidade da época descerá, colhendo as asas de anjo da regeneração, a estudar nesse paralelo um terrível capítulo de história moral, e há de aprender quantas dores suaram os séculos para que perpetuamente não fosses, oh! criatura! ao lado das imagens dolentes da Suprema Bondade - a imprudência apaixonada de Dejanira, a vacilação covarde de Pilatos, a gana esfaimada do Pausa, trincando ao espeto a gorda vitualha de Camacho.

 

A CLARINHA DAS PEDREIRAS

Capítulo X

A Flor Vermelha

Uma pedreira representa nada menos que esse bichinho vil da terra, como chamava o rei-harpista do Velho Testamento, o átomo inteligente, arcando com a majestosa enormidade do granito. Diante daquela muralha vasta, branca a doer nos olhos, ligeiramente veiada de negro, sonha-se com os dias infernais, em que as erosões vulcânicas rasgavam a virgindade do solo do planeta em formação, encarreirando as serranias, como dentaduras arreganhadas para o céu; e se imagina depois que um pobre diabo de homem, com alguns punhados de pólvora na mão e uma simples agulha de ferro e uma caçamba d'água, sem ouvir os cânticos sangrentos da corneta, sem avistar os acenos eletrizantes das cores de uma bandeira, marcha tranqüilo a destruir a construção formidável dos cataclismos do passado...

Também o trabalho das pedreiras é feroz; é a luta pela vida, sem figura de retórica. Ai se dá combate ao sol reverberado nas faces alvacentas da rocha talhada; dá-se combate à vertigem que, do fundo erriçado dos precipícios atira uns olhados de Medusa; dá-se combate à pedra, que se defende com as chispas que queimam e as lascas que cegam. A morte está sempre perto: ao fundo dos cortes a pique; na grimpa dos rochedos que se levantam ameaçadores e deixam apenas um ângulo encravado no saibro movediço.

Da insolação não se fale...

Sente-se uma impressão profunda, à vista dessa catadupa grandiosa de blocos imobilizados na queda.

O desabamento estatelado!...

Por isso é que o gênio impressionável de Alexandre o levava a passear freqüentemente, à tarde ou ao alvorecer, pelas pedreiras da Assunção, as mais altas talvez e as mais arrogantes do Rio de Janeiro. Era um prazer para ele, abandonando o caminho de subida, agarrar-se às arestas cortantes das grandes pedras e alar-se a boa altura para ver...

Ao por-do-sol, os penhascos esticavam para a esquerda umas projeções longuíssimas de sombras; que lhes ficava o astro para a direita, descendo os contornos verticais do Corcovado. Para baixo desenrolava-se a rampa do precipício. Um precipício esplêndido. Mil reentrâncias e mil saliências ásperas, agudas, abruptas, denteadas, que faziam arrepios à imaginação afigurar-se um desgraçado em degringolada por aquelas unhas. Além, cobrindo o horizonte, o cone do Pão d'Açúcar e as montanhas verdes de Botafogo e Copacabana, prolongadas até às eminências da Gávea e dos Dous irmãos. Mais próximo, a enseada, como uma vasta placa de anil, margeada pela casaria do arrabalde fidalgo, batido de flanco pelas espadas vermelhas e rútilas do sol poente.

Era a hora em que terminava o serviço dos cavouqueiros. Ficava a pedreira sem viva alma.

Por entre as pedras insinuava-se um cão rateiro e esfomeado. E ouvia-se, como o toque significativo de uma sineta, o ruído metálico e tilintante da última alavanca, atirada do alto pelo derradeiro operário a retirar-se.

Ao romper do dia a cena era outra.

Geralmente, quando Alexandre chegava, ainda o cobria o céu com a sua coma azul empoada de estrelas. Dançavam no oriente as primeiras brancuras do dia, passando pela cortina esburacada de qualquer nevoeiro negro achatado sobre o firmamento. Aos pés do mancebo dormia o panorama de Botafogo, velado por um lençol tenuíssimo de vapores. Através dos vapores se distinguia a massa pardacenta da casaria entremeada de um negro-esverdeado pela perspectiva dos jardins e das chácaras, com um ou outro ponto luminoso brilhando a esmo.

Quando, por tudo aquilo, se espraiava o luar da alvorada, percebiam-se as notas assobiadas de alguma cantiguinha popular; e lá vinha subindo um homem pelo declive que levava até certa altura da pedreira.

Era o primeiro operário que chegava. Depois deste, chegavam outros, em pequenos grupos, calados ou mastigando meias palavras, sem olhar para os lados; jaquetão atirado ao ombro e em cima do jaquetão umas ferramentas brutas, pesadas, cheias de ferrugem. Era o exército do trabalho.

Em cousa de poucos minutos, dispersavam-se para todos os pontos. Este havia que passava mão a um cabo, cuja extremidade se perdia pela pedreira acima, e desaparecia na altura, arrastando uma barra de ferro; aquele sentava-se a um lajedo, sob uma coberta de estopa, armada cm taquaras, e punha-se a picar a pedra com o dente de um ponteiro ou o corte de um escopro batido a macete; um outro elevava acima da cabeça e fazia desabar com todo o peso o picão agudo, fragmentando pedras para o fabrico dos macacos, muitos armavam-se de longas agulhas de ferro e iam brocar a rocha com as minas destinadas ao alojamento das arrobas de pólvora que tinham de fazer voar o granito.

Nisso apontava no horizonte um estilhaço de sol.

Já então ressoava a encosta, aos golpes de cem martelos e os - passarinhos despertados fugiam espavoridos por entre a mataria das montanhas.

Escapando-se aos ardores do dia, Alexandre ia para casa. No caminho, aguardava-o certa insignificância graciosa, que era também para o moço um atrativo daqueles passeios; sem chegar, diga-se a verdade, a ser o principal, como bem podiam insinuar as lingüinhas da malícia.

Em saindo das pedreiras, tinha-se de passar por uma estrada, rasgada numa rampa de esmeraldino capim de Angola, juncada de cordões de frade com os seus nós de espinhos e floritas roxas, balouçando-se ao lado dos matacões que os tiros da pedreira semeavam na planície.

À margem desse caminho, listrado de sulcos pelas carroças a serviço dos cavouqueiros, havia (se existe ainda, - não sei) uma habitação edificada no estilo pitoresco e barato da miséria. Teto chapeado de zinco, com declives íngremes arrimados em tábuas podres e paredes de barro crivado de grandes furos; três janelas abertas para a estrada e uma porta para um cercado de bambus secos, em T, com meia dúzia de estacas de pinho.

No cercado havia couves e tinas d'água. Por cima das couves voavam reflexos de borboleta; no teto de zinco passarinhos cantavam, nos rombos do barro, aninhavam-se pombos. Não era exatamente a essas cousas que Alexandre dava atenção.

Era a um par de mãos níveas, pequenas, às voltas com uma costura, mimosas extremidades de braços modelados por... qualquer chapa de poeta lírico. Estes braços, nus como a inocência, até aos cotovelos, enfiavam-se timidamente pelas mangas curtas de um corpinho de musselina que em outro ponto comprimia com força duas resistências esféricas, de uma geometria provocante a mais não poder. Para cúmulo, rasgava-se, das resistências acima, um modesto decote, donde, fresca e jovial emergia, desabrochava uma cabecinha peregrina. Um camafeu delicado, róseo, transparente, rodeado de pequenos cachos negros em delicioso descuido, com muito sorriso na dobra dos lábios, muito fogo nos largos olhos e nas palpitantes narinas...

Era arrebatadora na sua janela, essa costureira! A estrela d'alva à sombra de um reles teto de zinco.

Alexandre variava. Chamava a sua estrela d'alva, só quando a via de manhã; pela tarde chamava-a de Vésper.

Uma vez, voltava o moço do seu habitual passeio quando teve de assistir a uma cena que espinhou-lhe a curiosidade.

Na ocasião em que passava pelo casebre de zinco, viu um molecote dos seus sete anos, vestido de riscado, cabeçudo como um feto, preto como o diabo, salientes os olhos, como se já não lhes houvesse lugar dentro do crânio. Sem se preocupar com Alexandre, o demônico, que levava na mão um objeto oculto, foi até à janelinha de peitoril, carcomido, onde, como era freqüente, cintilava a estrela Vésper e entregou-lhe... uma camélia vermelha.

Pouco lido na filologia das flores e em simbolismos de namoro o mancebo não adivinhou o sentido daquilo. Bem possível era que nada mais significasse do que simples oferta delicada de um galanteador, talvez mesmo de qualquer amiga da mocinha do casebre. Não sei que palpite o fazia pender para a primeira hipótese. Não havia dúvida! Com ou sem explicação gramatical, aquilo era uma frechada de Cupido!... Tinha notado que a mocinha se debruçara na janela, espiando para os pilares que abrem passagem do terreno pertencente às pedreiras para a rua da Assunção.

Aí devia encontrar a verificação da sua desconfiança. Enfrentou de repente com um rapagão alto, robusto, moreno, fisionomia farta de satisfações, tênues bigodes negros, lábios risonhos e grossos; tudo sob um pequeno chapéu de palha e acima de um peito largo, apertado casemiras. Trazia na mão um chicotinho com argola e corrente de prata ao cabo.

Alexandre ficou sombrio; e seguiu para sua residência, absorto em solilóquios mentais...

Três ou quatro dias depois, também à tardinha, de volta às pedreiras, Alexandre deparou outra vez com o tal rapagão, pouco distante do casebre da moça contemplando atentamente a muralha de granito.

— Que imensidade! Murmurava, quando Alexandre passou.

Implicante sujeito! Esse marmanjo era uma ameaça terrível para a costureirinha.

Alexandre pensou em intrometer-se no romance, tomar contas ao marmanjo. O nobre mancebo estava possesso de ciúme; mas o ciúme generoso que se sente, ao ver um garoto arrancando uma rosa ao pedúnculo para depois abandonar ao esgoto. Se era tão agradável apreciar-se a flor...

E bem garoto lhe parecia o marmanjo.

Desta ocasião em diante, o habitué dos pedreiros não tornou a ver, nem a sua Vésper, nem a sua estrela d'alva...

Isto causou desgosto a Alexandre. Os seus costumados passeios foram deixando de ser freqüentes. A vista daqueles lugares trazia-lhe à mente tristes recordações da rapariguinha do pardieiro de zinco, de quem Alexandre egoisticamente não se quisera lembrar.

Contudo, o moço de vez em quando lá ia...

Assim foi que, por um dia tempestuoso, ele se abalou de casa a visitar o sítio antigamente de sua predileção. Alexandre freqüentara a pedreira como quem freqüenta um jardim público, que não lhe fica longe de casa. Era um hábito adquirido, um hábito na verdade excelente como higiene.

O mancebo, porém, se desgostara um tanto com o seu hábito...

Eram cinco horas ou mais. O céu estava carrancudo como um homem perverso. Cúmulos enormes estampavam-se na abóbada. Moviam-se lento. Formavam monstruosos leões de escancaradas fauces que iam derramando pelo ar negras jubas de proporções fabulosas; formavam gigantes, que engordavam, avultavam a olhos vistos e dissolviam-se por fim em conglobamentos informes.

Ouviam-se uns estremecimentos sonoros, que chegavam das nuvens, como se lá em cima se afinassem os tambores da trovoada.

Apesar de tudo, Alexandre saiu a passeio. Se a tempestade desabasse, ele gozaria um espetáculo admirável nas pedreiras.

No fim de dez minutos estava o moço à raiz das colossais muralhas de macacos, dispostos como os lances de cantaria de uma fortaleza respeitável. Concedeu dous olhares a essas pilhas de paralelepípedos, aqui e ali desmoronados pelas alvanias, e tomou a ladeira de saibro grosso o cangica que, pelo meio de duas carreiras de lajedos, servia para a subida de veículos até dous terços da elevação das pedreiras.

Por fim, sentou-se num dos lajedos e olhou em torno. Tudo estava deserto. Apenas sentiam-se ao longe as marteladas férreas de um picão.

No espaço encontravam-se as eletricidades, abraçando-se em trovões e se beijando em coriscos. Na planície, em Botafogo, havia poucos rumores e muita escuridão difusa. As negruras do firmamento vazavam na terra uma noite precoce.

De improviso, caiu a chuva.

Pingos grossos como cusparadas, que num momento multiplicaram-se fazendo um aguaceiro cerrado, abundante, torrencial.

Alexandre abriu o guarda-chuva e abrigou-se por baixo de um penhasco cavado. Ouviu então o ruído de um desmoronamento.

— Mau! Mau! Murmurou, vamo-nos embora que ainda a casa nos esmaga...

E saiu correndo do abrigo que escolhera. Desceu a ladeira até que avistou uma espécie de barraca, feita de esteiras, debaixo da qual havia alguém.

— Oh! Exclamou a pessoa que lá estava: o senhor anda aqui, por este tempo?! Deixe chover um pouco mais e verá como aí vem tudo pela pedreira abaixo... deixe encharcarem-se as cunhas...

O mancebo lembrou-se do desmoronamento que ouvira e do costume que têm os cavouqueiros de encher de cunhas de madeira as fendas da rocha, para se aproveitarem da chuva.

— Olhe! Gritou o homem da barraca, que pareceu ao moço ser o trabalhador de cuja ferramenta ouvira as marteladas antes da chuva. Olhe as cunhas já começam!...

Algumas pedra acabavam de rolar à distância.

A chuva foi aumentando.

Fortes esfuziados do vento foram obliquando os pingos d'água, de sorte que na barraca já não se estava a salvo de um banho.

— Aqui não estamos bem, disse a meia voz o cavouqueiro.

— Na verdade, vamos ficar pingando.

— Está vendo ali aquela casinha? É onde eu moro... Quer abrigar-se... Vamos...

O cavouqueiro apontava exatamente para o casebre, onde outrora o moço via cintilar a sua estrela.

Pela primeira vez, examinou Alexandre a pessoa de seu companheiro. Cabelos e cara formavam-lhe como que uma bola de estupidez. O queixo tinha barba, uma cousa inculta, esquálida, os olhos não tinham expressão, a boca não tinha sorrisos.

Mas parecia um estúpido bom.

Acabando de falar, enterrou a cabeça num enorme chapéu de feltro que apanhara no chão, cobriu os ombros com uma jaqueta grosseira e atirou-se precipitadamente à chuva, direito para o casebre.

Atrás foi Alexandre.

Dentro de um instante, viu-se o moço abrigado em casa do cavouqueiro, isto é, ali mesmo onde residira a deslumbrante criatura que tanta graça comunicava aos passeios doutro tempo.

O cavouqueiro, que entrara antes do moço, tinha desaparecido, este ficara só, num compartimento de tabuado que parecia servir ao mesmo tempo de sala de recepção e de jantar, com as suas quatro paredes forradas de espessas camadas de fumaça e com a sua mobília constante de caixões, velhos bancos, cadeiras negras de idade, tendo apenas no assento buracos barbados de fiapos de palhinha lastimáveis como bocas de mendigo, ferramentas amontoadas. Uma fumaceira de fazer espirrar. Por volta, abriam-se quatro portas; uma era a de entrada, outra dava para um buraco negro, fundo e fumegante, talvez uma cozinha; a terceira estava cerrada e a última deixava entrever uma alcovinha que pela posição devia ser a mesma a cuja janela costumava trabalhar a estrela d'alva. Parecia estar se vendo aí dous olhos negros e grandes, espiando para fora.

Nisso pensava Alexandre, quando moveu-se a porta cerrada para dar passagem a uma pessoa.

Era uma mulher; trazia na mão uma pequena candeia de pouca luz e muito fedor de azeite.

Deu boas noites ao moço e pendurou a candeia num ganchinho à parede.

— Permita-me que espere aqui pelo fim da chuva... Desculpe-me se incomodo...

— Ora, meu bom senhor, isto até dá alegria a gente... fazer-se uma boa obra... Olhe, eu já na minha terra ouvia do padre: dai pousada aos peregrinos... Então? É o que Nosso Senhor manda... e quem...

Como dava de língua aquela senhora magra e comprida! Era um achado para o moço. Ele esperava apenas que passasse o temporal, mas não quisera retirar-se sem levar boas notícias da costureira sumida.

Aquela mulher as daria necessariamente. Falava muito e parecia simpaticamente ingênua.

Enquanto tagarelava ia ela fechando as janelas, para resguardar do vento a luz da candeia. Quando por cima da casa rebentou um violento trovão, a velha rezou a Santa Bárbara e deixou de falar.

Ao trovão seguiu-se um estrondo assustador, sonoro como muitas descargas de mosquetaria simultâneas.

Alexandre correu à porta do casebre. Pela encosta da pedreira, desabava, rolava, saltava, despenhava uma cachoeira faiscante de pedras e estampidos. O casebre tremia como se tivesse medo. O fracasso cresceu atroador e foi cessando depois no prolongamento surdo dos ecos.

— Que terrível desmoronamento! Exclamou o moço, voltando-se para a mulher ou cousa que o valha do cavouqueiro dono da casa.

— São as cunhas, disse ela... Isto já não me faz medo como os trovões. No princípio, sim... eu me assustava, mas há tantos anos que vejo isso, sempre que chove,..

E passou a linguaruda a explicar o emprego das cunhas, etc.

Alexandre interrompeu-a:

— Mas, a senhora está aqui há muito tempo?...

O mancebo não deixara escapar a entrada que lhe dera a mulher.

— Oh! Se estou!... Respondeu ela, e...

— Então, conheceu uma linda rapariguinha que...

— A Clarinha das Pedreiras!... Para sinal que aqui mesmo morava... aquele anjinho!...

— Essa mesmo... Que fim levou-a?

— Ah, meu senhor, que saudade!... Aquele anjinho abandonou a gente... Que ingratazinha, valha-me Deus!... E eu não dou muito pela sua felicidade agora... Nós a encontramos atirada ai pelas pedreiras, quando ainda tinha uns quatro anos. Já era lindinha; mas estava tão mirrada!... Ainda não falava que se entendesse. Não se sabia quais eram os malvados pais daquela criança desventurada. Trouxemo-la para casa. Tinha fome a pobre!...

Estava sujinha, que chorei de pena!

Pois nós demos de comer, demos de vestir, fizemo-la nossa filha. Eu e o meu homem cuidamos dela como do pequerrucho que nos dera Deus e nos tomara há tempo. Sustentamo-la por mais de dez anos, trabalhando como burros para ela não ter de que chorar. A Clarinha, ela nos dissera chamar-se assim. a Clarinha, em compensação, era uma santa criança. Tinha tanta graça que nós a adorávamos, com perdão de Deus...

E agora, de repente, há uns dois meses desaparece-nos de casa... Tenha compaixão dela Virgem Maria!... Toda a gente aqui das pedreiras se pôs a procurá-la por todos os cantos. Não havia quem não gostasse da Clarinha das Pedreiras, como a conheciam. Sei de muito rapaz que andava caído por ela. O senhor, que pede-me novas da menina por tê-la visto, aposto que já gostava dela. E era um anjo mesmo!... Abandonou a nossa casinha. Procurou-se por ela; o administrador das pedreiras falou ao inspetor do quarteirão. Quando menos a gente esperava, um criado todo bem vestido veio nos dizer que a Sra. D. Clarinha não queria mais viver conosco, e ia se casar com um moço rico que por aí anda... Deus queira que ela seja bem feliz, a pobrezinha; mas... eu não digo nada...

Esta breve história, interrompida várias vezes pelo rumor de um desmoronamento lá fora, não surpreendeu a Alexandre, porém abalou-o profundamente.

Diante dos olhos dançavam-lhe as recordações de um moleque fetal, uma camélia vermelha e um rapagão bem trajado, com seu chicote de cabo de prata.

A chuva cessara.

Ele despediu-se da boa mulher, agradecendo o abrigo que lhe dera contra as fúrias do temporal e as informações sobre a sua estrelinha, e saiu para a estrada.

A lua, nascida durante a tormenta, estava a brilhar sobre o firmamento limpo. Espalmava-se em toda a largura de uma boa gargalhada.

 

COMÉRCIO DE FLORES

Flores! Quem quer as flores?

Todas as noites ali, principalmente às invernosas, quando são mais belas às flores, todas as noites à porta do teatro.

A alegria passava. Cavalheiros brilhantes de alvos peitilhos, pontuados de pedras rútilas, senhoras sérias, coradas de sangue feliz e rico, as beldades desordeiras, de uma em uma picando o passo com os finíssimos borzeguins feéricos, deixando na areia do átrio vestígios mínimos como os pés das corças, outras em atropelo, tossindo risos de bacante, permutando palavras confusas de estranhos idiomas, confusas e quentes como um hálito de alcova, como o rápido fulgor das cabeleiras louras que se agitavam na passagem, felizes e louras como a madureza dos trigos e a opulência das messes.

Quando a chuva caía, eram ainda alegres.

— Flores! Quem quer as flores?

Como são belas as flores quando chove!...

E elas passavam, as mulheres louras, confortadas nas mantilhas espessas, veludosas, que lembravam as friorentas ovelhas despidas.

— Quem quer as flores?

Todas rápidas a fugir do inverno que lhe não compravam um ramalhete. Entretanto, a pequenina mostrava, no tabuleiro de folha de dous fundos, que lindas cousas! As violetas, perpetuamente murchas como o sorriso dos pobres, mas que vão tão bem à mão das luvas claras, com o segredo artístico dos contrastes... Quando não: tinha, para os menos contemplativos, as rubras rosas como gargalhadas presas, vivas, rorejadas da chuva, luzindo ao gás como de um orvalho de topázios, bebendo a frescura d'água, no tabuleiro verde de flandres, vivas, à noite, como se guardassem nas pétalas todo o esplendor de um dia.

Ninguém comprava. Apenas o tentador, o mau! aquele elegante dissimulado, que olhava, falando, para outra banda, e torcia o bigode... Comprava tudo, mas que lhe fosse vender à casa... De que maneira ter às mãos tantas flores, se as comprasse ali?

Quem sabe, tem a miséria um encanto próprio? Talvez fosse a menina sedutora, de algum sabor amargo, novo, que os saciados prezam, variedade descendente que convida.

Ah! O tentador, o mau! Voltava sempre, como um pêndulo que tonteja!

Era bela a mercadora. Quinze anos. Miúda como de doze, feita porém como as mulheres em ponto.

Ao nariz, às faces, três sinais sangüíneos. Bela desse capricho, às vezes, de formosura que parece uma ironia da necessidade, redonda como as camélias dobradas, que às vezes tinha; diríamos nutrida, se não fosse a fome.

Tinha os dedos roídos de agulha. À tarde, uma senhora dava-lhe flores para vender.

— Quem quer as flores?

Até que uma noite ele veio; ela foi.

Ninguém comprava; tinha mãe doente, um incêndio de febre à testa, delírios, desmaios. Ninguém comprava!

Quando voltou à casa, tinha morrido a enferma.

E ela não teve uma flor para enfeitar a morta, que o tentador comprara todas.

 

COMO NASCEU, VIVEU E MORREU A MINHA INSPIRAÇÂO

Página arrancada ao livro de lembranças de um futuro Esculápio.

Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplendida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de um estudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá... Ela desculparia.

Que noite ia eu passar! Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha...

Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc. Conclusão: estava chic. Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... o que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?... Impaciência e dúvida; dois tormentos a me angustiarem...

Eu passeava pelo meu quarto, deitando vagamente uns olhares pelos meus desconjuntados móveis: aquelas minhas cadeiras, lembrando a careta de um choramigas a entortar o queixo; a mesa, gemendo sob um mundo de livros desencapados e sebentos; o meu toilette, quero dizer um velho compêndio de anatomia com uns frascos por cima e um espelho pequeno pregado na parede; a minha cama, com a coberta a escorregar languidamente para, o chão... Continuava a passear. Olhei ainda uma vez para o espelho e sorri-me, vendo lá dentro a minha gentil figura partida em quatro por duas rachaduras cruzadas no vidro... Que fazer?...

Debrucei-me na janela... Embaixo a rua, a atividade prosaica das cidades de alguma importância: idas e vindas e mais vindas do que idas, por causa da hora que era de jantar, (por tocar nisto... Eu não tinha ainda jantado. É o que me cumpria fazer; mas o meu plano era economizar um jantar, vingando-me à noite nos buffetes da menina...) Meus olhos corriam pela rua como andorinhas brincalhonas. Depois de percorrem o quarto, andavam pela rua em busca de resposta à minha pergunta: - que fazer?...

Por fim foram esbarrar no frontispício da igreja de... Começaram a subir... Brincaram nas janelas; contaram quantos vidros havia; examinaram os enfeites de arquitetura... Subiram mais, percorreram os sinos, o zimbório e foram pousar no pára-raios.

Estavam quase no céu. Daqui para ali, menos de um passo. Os olhos lá foram. Mergulharam-se erradios no azul... Que fazer?

Ora... enfim! Estava achada a resposta! Por que não veio ela mais cedo não o posso explicar.

Os meus olhos estavam no céu.

Era por uma tarde encantadora. Que cor a do firmamento nessa hora! Que abóbada incomparável a cobrir a rua!... Depois, aquelas nuvens mimosas, desfiando-se nos ares, como brancas meadas de lá nuns dedos sedutores... O sol a descambar, batendo de través na poeira levantada do chão pelos carros, que magníficas cortinas desdobravam pelas janelas das habitações velando-as como que de douradas gazes. No horizonte, por sobre a última linha de telhados e chaminés fumegantes, como se ostentavam aquelas colinas de um azulado branco feitas vapores tênues; como se recortavam sem fazer uma só volta que não fosse demorada e graciosa como as curvas de esbelto corpozinho de donzela...

Oh! Do quarto para fora, tudo o que se prendia aos céus por um raio de luz ou por uma ponta de vaporoso véu, tudo respirava poesia...

Eu achara a resposta. Que fazer?... Versos!... Feliz achado!... Um soneto ou alguns alexandrinos... qualquer cousa que desse claro testemunho do meu amor. O laço de fita com que eu ia mimosear o meu anjo era azul... Ótimo! Sobre o laço, um soneto!... Ouro sobre azul! Com certeza não dançaríamos somente (eu e ela) trocaríamos o primeiro beijo! Não esse beijo insípido que se dá a carregar aos zéfiros, entregando-se-lhes nas pontas dos dedos, mas um ósculo açucarado de lábios ardentes sobre a macieza de uma face. Um ideal realizado. Uma cousa assim como o contato com um jambo que houvesse roubado o veludo ao pêssego...

— Bravo! Já estou quase deitando verso de improviso! exclamei eu, notando a minha exaltação. Venha papel! venha pena! Cérebro, soma-te com o teu companheiro, o coração! Não brigueis desta vez como é de vosso costume... somai-vos um com o outro e vertei nesta folha de papel alguma cousa que não horrorize a Petrarca... Espírito de Dante, eu te evoco! vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste Beatriz! Dirceu, corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi todos! Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a imortalidade na memória dos homens!...

Nascera-me a inspiração! Ia metrificar alguma cousa que devia maravilhar os críticos... (aparte a modéstia: isto que escrevo não é para o público). Mas eu me sentia um pouco acima de mim mesmo... Sem dúvida era essa sensação mística a que experimentam todas essas cabeças de gênio, um momento antes de dar à luz qualquer produção sublime...

Molhei a pena, com um movimento nervoso. A minha impaciência (confesso-o) não era então para chegar à casa do meu bem, era para gravar no papel aquilo que me ardia no crânio. Molhei a pena...

Oh! desgraça! A infame pena trouxe na ponta um pingo de tinta, trêmulo, ameaçador. Desviei-a violentamente... foi a minha perdição...

Olhei triste para o meu punho esquerdo... Estava descansado sobre a folha de papel, quando o pingo... Maldição!... Ainda havia pouco, tão alvo, luzidio como porcelana... então, com uma feia nódoa circular negra... negra, de quase uma polegada de diâmetro e ainda a infiltrar-se pelo linho, a tomar cada vez mais vulto!...

Pobre camisa!... estragada!... Mais pobre de mim... Esse pingo era uma catástrofe. Aquela camisa era a única. Única! Triste verdade, cujas conseqüências me desesperavam.

— Adeus, meu anjo! disse eu, sem poder engolir um soluço.

Já não me era possível ir vê-la. Nem um companheiro morava comigo. Se morasse, talvez o mal fosse remediável. Mas não! Não havia esperança!... Comprar outra? Onde? Era um domingo... Com que dinheiro?... Era num fim de mês. Não havia esperança.

Aquele beijo que sonhei num instante de ebriedade desfez-se-me no espírito como a má impressão de um R. Não era só isto. A minha ausência seria notada pela menina. O que pensaria ela?... Talvez que eu, por mesquinho, quis poupar-me a despesa de oferecer-lhe qualquer cousa...

— Quando, gritei eu, aí está o meu laço de fita de cinco mil réis...

Ainda mais. Um baile leva a uma casa tantos pelintras... quem sabe se ela não se agradaria de algum desses bolas, esquecendo-se de mim?... E teria razão. A abelha, se aqui não encontra mel, vai buscá-lo acolá...

Momentos dolorosos os que passei nessa tarde! Depois de todos os pensamentos que me assaltaram brutalmente à primeira reflexão, foi que lembrei-me do meu soneto...

— Soneto para onde tu foste?...

Mais este golpe: - a minha inspiração morrera. Eu não sentia mais a exaltação auspiciosa de alguns minutos antes. Tudo perdido! Fora-se tudo!

Eu vi e jurá-lo-ei, se me não acreditarem, eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-me do quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os idiotas irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas públicas, quando disparam pelas ruas, de ardósia ao sovaco...

Nessa mesma tarde, fui à janela outra vez. Estava aflito e superexcitado. Parece-me, até, que tinha os olhos molhados. Pus-me a ver os transeuntes. Cada um que passava, para os lados na morada do objeto dos meus devaneios parecia um convidado de baile. Tortura.

Em seguida avistei a maldita torre, por onde meus olhos haviam subido ao céu que me inspirava a negregada lembrança de poetar.

Para acabar. A desgraça de que fora vítima fez-me esquecer o jantar, que positivamente era só o que eu devia perder não indo à festa. Não comi e não reparei nisso. Tornou-se inútil vingar-me da minha economia. Se neste particular não perdi, no resto ganhei.

A minha querida (soube-o depois) nem perguntou por mim na festa. Esteve alegre. Encontrou quem lhe agradasse (um sujeitinho com quem se vai casar). Melhor. Já estou consolado da desgraça, um mal que me veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O aborrecimento que hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmaram naquela tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava. Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo; ergo: ganhei... Estou na expectativa de um fim de ano esplêndido.

Mais uma palavra. O laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.

A Comédia. São Paulo, n.0 28 e 29, 4 e 5 abr. 1881.

 

CONTO DE FADAS

Contra-sensos de atavismo. Algumas vezes nascem príncipes da poeira humilde das ruas. Não da espécie dos conspiradores felizes, que fazem da própria nulidade original arma de guerra e lutam e sobem, cobrejando através dos conhecimentos até campear triunfantes sobre o domínio dos homens, não: verdadeiros príncipes, que o são ao nascer; que têm a púrpura do manto diluída em glóbulos de altivo sangue, absolutamente a salvo da embolia mortífera que a impureza do ambiente da sua miséria poderia ocasionar; príncipes nobilíssimos, que têm a força do emblemático cetro vertebrada em espinha dorsal, inflexível às humilhações da sorte, e no olhar firme, sem jaça, que lhes clareia a testa, a majestade dos diademas.

Podemos encontrá-los, ao dobrar uma esquina, em andrajos, face cavada pela necessidade e pelo suor, - lágrimas de fadiga.

Pesa-lhes mais que a ninguém a fatalidade arquitetônica do edifício social, que obriga a superposição dos andares e a inferioridade do baldrame.

São oriundos desta raça os piores criminosos e os revolucionários sublimes. Entre estes extremos há, porém, o meio termo, mais comum, dos obscuros que sucumbem, bloqueados na vaidade inflexível da imaginária realeza.

"Impossível! monologava Aristo. Com os diabos! É uma solução arrebatada, que não me entusiasma. Suprimir-me! É boa! e o meu lugar no refeitório da vida? Então não há um talher para cada um nesta mesa redonda, como não há, no campo, um figo para cada pássaro. Quem me privou do figo nesta partilha? Implorar... Mas haverá pássaros mendigos? Há criancinhas que esmolam cantando; nenhuma outra miséria conheço que cante; não há lágrimas aladas; a própria chuva, porque parece pranto, cai na terra. Não será, pois, a vida como o espaço, e as aspirações como um vôo? Ah! mas reflitamos com justeza.

E o que pensarão os figos, desta vida? Que opinião a deles sobre os pássaros e sobre as aspirações? Também, pobrezinhos, têm um coração que palpita insensivelmente. Abri um figo; vereis a polpa ouriçada de pontas sangrentas... Como não? os frutos sangram! Têm todos os direitos da maternidade... Não respeitais a maternidade?... inclusive o Santíssimo direito da dor! Percebo, percebo. Há homens-figos, há homens-pássaros. Sim! mas eu, figo!... uma figa! É preciso que um degrau se estenda embaixo, para que outro degrau se estenda em cima, e a escada suba?...

Eu trabalhei o ferro. Como me compreendia o másculo metal, parente da energia inflexível de meu gênio! Não me valeu a força de operário: faltou-me a habilidade de mendigo. Trabalhei então o pano. Homens do dispêndio, mantenedores da indústria, não sabeis de que tecido se fazem as ricas vestes. Passaram fibras de coração pelos teares; tingiram-se os padrões com as cores escuras da miséria. Conheceis os rebanhos humanos encurralados nas fábricas. O carneiro dá a lã. Toda essa lã puríssima: sensibilidade, delicadeza, pudor, altivez, de que se faz a superioridade moral, se apara ao rebanho humano.

Este precioso estofo: vedes esta rosa entre folhas, labiada em pétalas esplêndidas sobre a trama da tecelagem? É a honra de uma operária, a infâmia feita tinturaria. Não quiseram que eu visse o que eu vi, nem que, vendo-o sentisse.

Passei a ser compositor. Ia encontrar de frente o pensamento, como encontrara a indústria. Maravilhou-me a infinidade dos tipos nos caixotins, palavras reduzidas a migalhas, idéias pulverizadas! Criei amor ao estanho dos tipos. O estanho vale mais que o bronze; porque se de bronze se pode fazer o glorioso escritor, de estanho se faz o livro. Ao metal do gloriado prefiro o metal da glória.

Deram-me a compor esta frase de um poeta: Filosofia do mar: os menores peixes, devoram-nos os maiores. Assim os homens.

E nesse dia não compus mais. E odiei o estanho; voltei definitivamente às velhas simpatias pelo ferro."

E Aristo amaciava na palma da mão o ferro de um punhal, com a alma varada pela meditação cruciante, sentindo rasgar-se-lhe aos pés a aberta por onde, mais dia menos dia, nos escapamos todos para a sombra.

— Aristo, vem comigo; disse-lhe alguém ao ouvido, - uma pequenina voz de mulher, áurea e musical.

Era uma visão de risos, trajando o vestido etéreo dos sonetos de Petrarca, maneando a haste leve de uma varinha de fadas. Donde vens, desertora gentil dos contos da infância, graciosa importuna do meu desespero?

— Anda comigo, Aristo. Partamos para a independência feliz.

E partiram, Aristo e a fada, para uma região fantástica e surpreendente.

Céu vasto, de transparência inexprimível. As alvas nuvens, por uma superfluidade de asseio iam, como esponjas, esfregando, uma a uma, as safiras limpas do céu. Cobria-se a terra de pedraria, poeira cintilante de gemas; erguiam-se taludes de facetado cristal. Estranha vegetação brotava. Perfeita floresta de ourivesaria. Troncos de ouro lavrado e folhagem soldada a fogo. Através dos ramos reluzentes, a viração ia e vinha, fria do contato metálico da selva, sem que o mais débil galho tremesse, sem que a mínima flor vacilasse no hastil. Às vezes, a um sopro mais forte, soltava-se um ramúsculo com um estalido seco de agulha partida, ou uma flor desarmava-se, e as pétalas caíam, produzindo o barulho de moedinhas pelo chão. Nenhum outro rumor, nem um perfume, nem uma vida, em toda a paisagem, imóvel e rutilante.

Desaparecera a fada com o rosto em risos e o vestido celeste, que descansavam a vista da crueza das cintilações.

Brilhava no ar, terrivelmente, a claridade verde dos reflexos combinados das safiras do céu e do ouro da floresta.

Horas passadas, Aristo teve fome; exacerbou-lhe a sede a secura cáustica do ambiente. Descobriu pomos no arvoredo, inchados de maturidade, e gotas de orvalho no cálice das flores. Mas, quando quis trincar os pomos, quebravam-se-lhe os dentes contra a rija resistência da casca dourada, e bebendo orvalho, puríssimos diamantes aliás, foram-lhe as arestas da pedra, ensangüentar o esôfago.

— Maldição! maldição! Que me trouxeram ao inferno da pureza e da inflexibilidade!

A fada, aparecendo:

— Eu sou, pobre Aristo, a fada Ironia. Guiei-te à pátria inexorável do teu orgulho.

 

CORRESPONDÊNCIAS ÍNTIMAS

I

Meu caro X

Estou casado!

Com certeza não acreditas. Casar-se é aposentar-se, casar-se é acorrentar-se. Pois eu, o teu amigo Z, o mais ativo empregado dos negócios da pândega, o mais ardente camarada da vida de liberdades, renunciei heroicamente a todas as pompas do Satanaz, que, tu não ignoras, tanto aprecio e... aposentei-me, acorrentei-me, casei-me!...

Refreia por momentos a tua impaciência, que saberás em pouco como foi que me resolvi, ou melhor, que me resolveram a tomar no mundo uma posição tão definida e, por isso mesmo, tão incômoda.

E a minha é duplamente incômoda. Imagina. Eu sou quem sou... Tenho de passar a ser quem não sou. Não será fácil, bem sabes. A menina não traz dinheiro... E pretende ser, entretanto, assim uma espécie de princesa de Golconda.

E eu que me agüente no balanço, quer dizer, no casamento.

Felizmente, parece não ser ciumenta a minha metade.

É porque a pobrezinha deposita em mim uma confiança cega. Também é o que faltava... Ciumenta, sem dinheiro... Abóboras!...

Tu ainda não te casaste, meu feliz X... Eu, a cavalo no minguante prateado da minha lua-de-mel, estou aqui, do meu céu estrelado, a invejar-te a sorte. Imagina o que não é o casamento... O casamento, digo mal, o casamento, sem dinheiro.

O dinheiro é um bálsamo dourado que cura tudo, até as feridas domésticas. Os laços de Himeneu feitos de ouro são elásticos bastantes para não manietarem um gênio como o que possuo. O teu Z, com uma esposinha rica continuaria a ser o teu Z só com algumas dívidas de menos. Eu dar-lhe-ia até licença de ter ciúmes. Sim; que o ciúme das moças ricas raras vezes é profundo.

As meninas ricas aprenderam nos romances a arte de ser esposa. Sabem ter o coração no peito, como uma flor na jarra. Dispõem dele à vontade e são felizes. Podem dá-lo ao marido no começo. Depois, com o tempo, libertam-no e o deixam voar, tão solto que nem Cupido no Olimpo. A vida do lar deve ser então um bosque divino, verdejante, respirando chilros de passarinho e murmúrios alegres. A mulher não tem ciúmes, o marido não tem peias. Um paraíso.

Mas falte o dinheiro...

E este é o meu caso...

A minha pequena não tem ciúmes; mas eu prevejo que as há de ter. Não sei o que será...

Por minha parte, não estou contente. O meu casamento pegou-me pela gola... Não admito.

Olha, meu caro X, talvez haja no tálamo uma coisa a sorrir-te sedutora: a lua-de-mel. Não te iludas, menino. A lua-de-mel é uma mentira inventada por um poeta que tinha filhas casadeiras.

No firmamento nupcial só há uma noite de plenilúnio. A minha lua-de-mel, que apenas começou, já está acabada... ora avalia... com uma esposa sem... dinheiro!

Adiciona a tudo isso o gosto que tem minha mulher de andar garridamente enfeitada, não esqueças que não passo de um quartanista que tem mesada fornecida pelo velho, proprietário de um pequeno sítio, e terás feito uma idéia de quão risonho é o futuro do meu lar...

Queres que diga tudo?... Ainda não fiz chegar ao meu velho a notícia!...

Tenho resmungado bastante. Agora vê a causa do meu cavaco.

A fim de tornar menos cínica a existência acadêmica, é costume, aqui, em São Paulo, entre a rapaziada fogosa levar a efeito certas empresas que não são verdadeiramente perigosas, é certo, mas erriçadas de pequenas dificuldades, em porção bastante para dar-lhes toda a graça.

São, por exemplo, as correrias noturnas pelos quintais da vizinhança, à cata de galinhas.

Isto é uma pândega que faz rir a perder. O furto, geralmente coroado pelo mais brilhante êxito, é reservado para banquetes, que lembram a decadência de Roma. Às vezes, convida-se a vítima, e ela comparece a tomar parte, a fartar-se num regalório que corre todo por sua conta.

Sou amigo declarado destas gatunagens que valem tão saborosas gargalhadas e tão belos serões de república.

Por isso, há coisa de um mês, estávamos, eu e mais três rapagões sacudidos, por uma noite de garoa espessa, saltando o muro que separa o quintal da república de um dos meus companheiros e o quintal de um vizinho. Este vizinho é um velho gordo e baixote que usa óculos e não usa barbas, vivendo dos interesses possíveis de uma loja de fazendas da rua de São Bento. Vai todas as manhãs para a cidade e volta à noite para sua residência da Consolação. O Sr. Campos mora numa boa casa e trata a família com largueza. Tem uma linda filha e excelentes galinhas. A filha é uma menina de dezesseis anos, róseas cores de paulista, dentes um tanto estragados de paulista também. Veste-se bem e melhor namora. Uma mezinha de truz. Há cinco meses, quando mudei-me para defronte da casa dela, a menina sorriu-me. De então para cá, este sorriso fez progresso. Começou-se a dizer pela cidade, que eu e a mezinha Campos éramos namorados.

As galinhas são esplêndidas.

Raça francesa, gordas, convidativas. Habitam um galinheiro bem gradeado de sarrafos e encostado ao muro que dá para a república donde partia a nossa expedição.

Não tivemos, pois, muito que fazer para nos vermos meio das sedutoras aves. As galinhas dormiam num quartinho, onde reinava um forte cheiro de estrume e muita escuridão. Barafustamos ousadamente, acendendo uma vela. A gente do poleiro bradou: alerta! Foi um cacarejo assustador... Arrebentávamos de rir.

De repente, ouvimos gradar lá fora:

— Quem está aí?...

Deviam ser duas da madrugada. Hora de sono. Entretanto, era evidente que tínhamos sido pressentidos.

Sauve qui peut!

A vela apagou-se. Os meus companheiros sumiram-se. Senti que trancavam por fora a porta que nos dera entrada e a mesma voz que pouco antes tínhamos ouvido:

— Fique trancado, que eu vou chamar meu senhor.

E fiquei eu com as galinhas.

Procurei, então, os meus camaradas de pândega, tateando nas trevas. Os meus dedos, só encontravam penas. Dei por fim um encontrão no poleiro de taquaras, fazendo que muitas aves caíssem gritando e batendo ruidosamente as asas. Algumas roçaram-me pelo rosto...

E nada de achar os companheiros. Os patifes me haviam abandonado!

Avalia, meu caro X, quanto me custava de arrependimentos a tal patuscada. Ia simplesmente passar por uma vergonha atroz. Apanhado como ladrão de galinhas pelo pai da namorada! A mezinha o que diria de tudo?...

Devia escapar-me! Escapar-me a todo o preço!

Dei uma volta pelo quartinho apalpando as paredes com essa energia angustiosa do prisioneiro que imagina que o deus ex machina dos condenados lhe vai rasgar uma saída através da muralha do cárcere.

Nada achei. As paredes eram inflexíveis como um tirano.

Até que afinal senti sob a pressão dos dedos alguma coisa que parecia tábua. Verifiquei. Estava em uma porta. Fiz força para abri-la. A porta cedeu dificultosamente, como se estivesse calçada. Consegui apenas fazer uma estreita abertura.

Em camisa e ceroulas, como me achava, coberto apenas por um prussiano de viagem, não tive dificuldade, insinuando-me como um gato naquela abertura. Passei.

Além da porta só havia escuro. Não saíra eu, portanto, por onde entrara. Em todo o caso, não me achava mais naquele cubículo infecto, donde me ia tirar o ridículo de uma família inteira.

Caminhei atrevidamente. Sempre na treva e sempre em frente. Levava-me a aventura.

Em certo momento, os meus cuidadosos passos pisaram um soalho. Ao mesmo tempo, percebi que falavam no galinheiro.

Eu acabava de entrar na casa do meu vizinho Campos. Não te posso explicar bem como o fiz. Naturalmente um feliz desencontro me entregara às portas de um corredor que por dentro levava ao galinheiro, das quais uma fora deixada aberta pelos meus perseguidores que me haviam querido cortar a retirada por fora... e a outra se achava simplesmente escorada.

O fato é que internei-me pela casa... Comprometia-me furiosamente; mas era possível que encontrasse uma porta ou uma janela por onde me esgueirasse para a rua.

Fui entrando... Não te conto as cabeçadas que dei, nem os móveis que pus fora do lugar. Não te falo da maneira porque palpitava-me o coração, ao passo que eu me perdia numa casa onde nunca entrara, ouvindo atrás de mim vozes ameaçadoras. Foi uma via dolorosa em que caí mais de três vezes e só achei o cireneu do meu medo...

Esbarrei de encontro a um obstáculo insuperável!

Era uma porta envidraçada, com umas cortinas sobre o vidro. Tentei abrir o trinco. O trinco abriu mas a porta não se moveu: estava fechada à chave!...

Entretanto, ressoavam dentro da casa os passos dos meus perseguidores. Distingui mesmo certa claridade de vela.

Não perdi esperanças.

Parecia-me estar em uma alcova. Acariciavam-se o olfato umas sensações agradáveis de perfumes de toilette.

Um relâmpago mal definido varou-me o cérebro.

— Parece que ele entrou aqui... dizia uma pessoa que julguei ser o meu vizinho Campos.

Iam entrar no aposento, onde eu me achava... Já não era possível fugir! Restava-me, porém, o recurso de me ocultar em qualquer parte. Dei dois passos e achei uma cama de amplos cortinados. Agachei-me rapidamente e entrei para baixo da cama. Pela hora presente, julguei-me salvo.

Acima de minha cabeça estalitavam, de vez em quando, as tábuas do leito, como se aí houvesse alguém a mexer-se. Ouvia-se ainda a respiração calma e ciciante de um ressonar tranqüilo.

Não tive grande tempo para perguntar-me quem ressonava ali sobre mim, naquela alcova de perfumes...

Uma voz de mulher, que devia ser a esposa do Sr. Campos, gritou de repente:

— Meu Deus do céu! o ladrão entrou ao quarto de Inez! Vejam que a porta não estava assim!...

E eu do meu esconderijo vi todos se precipitarem no quarto, onde eu viera parar.

Era chegado o momento de desesperar. Resolvi fazer rendição.

Antes que me puxassem para fora eu abandonei o esconderijo.

Não te posso, amigo X, dar uma idéia da cena que seguiu-se. Houve primeiro um desapontamento acabrunhador.

— Sr. Dr. Z! exclamaram em coro o meu vizinho Campos, sua mulher e um escravo.

Foi um grito estranho, impossível, que me apunhalou de vergonha.

Depois, aproximou-se de mim, com um ar solene e um robusto cacete na mão direita, o respeitável dono da casa.

— Como ousou o senhor penetrar na alcova de minha filha? disse com a voz trêmula e o gesto ameaçador.

Achei um pouco teatral a atitude do homem, mas afinal de contas ele tinha razão.

— O senhor que não tem vergonha de se apresentar aqui nesses trajos, acaba de comprometer gravemente a honra daquela pobre criança...

Olhei para o leito, debaixo do qual me havia escondido.

Através do cortinado entreaberto, via-se, em meio de brancos lençóis, a elevação de umas formas e um lindo busto de carne, meio afundado numa almofada macia.

Era a minha Inez.

Juro-te que nunca me pareceu mais sedutora.

— Pois bem, continuava, com ares de juiz, o pai da menina, se o senhor não se apressar em livrá-la da suspeita que vai deixar sobre a sua pureza, o senhor não passa de um miserável...

Ora, bem sabes, prezado X, que eu não sou um miserável. Além disso já me estava aborrecendo a duração da aventura.

— Faço o que quiser, disse.

— Case-se com a minha filha.

— Caso-me.

E me casei, isto é, aposentei-me, acorrentei-me. E o meu digno sogro não me falou em dotes.

Adeus. E põe de molho as tuas barbas que estão a arder as do teu sincero amigo.

 

CORRESPONDÊNCIAS ÍNTIMAS

II

Bom Amigo F.

Vai causar-te uma impressão estranha esta minha carta. Cheira a vinho e a sepulcro. Perdoa, caro amigo. Tenho diante de mim algumas garrafas, e aí na sala o cadáver de minha Ercínia...

Tu vias aquela criança viva, inteligente, engraçada, a brincar-me nos joelhos, linda como uma nuvem de aurora, puxando-me as barbas e beijando-me as pálpebras, fitando os meus sorrisos com os grandes olhos ingênuos e negros, sempre acariciadora, sempre boazinha...

Era a lembrança da minha chorada Maria, e o meu consolo...

Pois agora a fatalidade, o diabo, não sei quem... assassina-me cruelmente esse derradeiro vestígio da minha breve felicidade!

Calcula, meu amigo, que desespero!...

E deixa-me beber!...

O vinho é um grande lenitivo. Afoga as dores no esquecimento. Pode-se ver um cancã no cemitério, olhando através de um campo. Com certeza não conheces esta verdade.

É que não precisas... És um homem feliz; mas eu não sou mais que um miserável escolhido pela má fortuna para seu joguete... Deixa-me beber!...

Olha, esta carta, escrevo-a no meu gabinete, trancado num isolamento absoluto; não vejo os fúnebres preparos que vão levar à lama o anjinho rosado que ainda ontem me chamava papai... Endoudeceria se o visse... Não quero ouvir os pêsames gaguejados pelos amigos de ocasião, que não têm remorso de representar hipocrisia ante uma criança morta e as dores de um pai! Escondo-me, recalco-me no fundo da minha mágoa e no escuro do meu quartinho esquecido. Deixe-se o cadáver aos coveiros!...

Estás vendo?... É para o que serve o vinho...

Beba-se, e já não nos faltarão as forças para trancar um filho num esquife. Beba-se, e pelas cinzas dos meus pais! como qualquer covarde terá coragem bastante para soltar uma gargalhada às portas do inferno ou às barbas de S. Pedro!

— O que dizes?... Não terias esta força, aposto: - Deixe-se aos coveiros o cadáver da filha!...

Bate-se ao ombro de um daqueles bandidos de camisolão azul e grita-se:

— Oh lá! diabo, despedaça-me aqui em mil fragmentos o coração, rasga-me em tiras a felicidade!...

Ai! caro F, isto vale bem mais que um suicídio... Deixa-me beber!...

E reflitamos. Um ébrio pode refletir... reflitamos.

Deus fez a desgraça e Noé fez o vinho. Os infelizes como eu conhecem terrivelmente quanto foi bem achada a invenção do patriarca. Também só assim o famoso velho conseguiria remir a sua memória do crime de haver construído a arca.

Não imagino como o grito da humanidade se levantaria formidável do meio do inferno, dos sofrimentos da vida, para maldizer o nome daquele que continuou-lhe a existência e a dor, se o construtor da arca não fosse o tanoeiro da primeira pipa...

Ah! meu amigo, tenho para mim que Deus bem sabia que, ao lado da embarcação que transportou aos nossos séculos o sangue adamita, flutuava um tonel. A arca seria talvez da salvação; o tonel era das consolações.

Nem se me diga o contrário.

Sem isso, o que seria a Providência divina... Para cegos, já bastam os homens...

Noé é benemérito pelo vinho.

O seu nome é abençoado na taverna, essa imundície sagrada, onde se vazam as dores e as garrafas. Aí vive Diógenes com a sua filosofia e a sua pipa; mas a pipa está cheia, e Diógenes parece um Cristo de doçura e suavidade.

Desgraçados, à taverna!

Talvez não me compreendas, meu feliz amigo; a desgraça não te bateu ainda familiarmente aos caixilhos. Espera um pouco...

A embriaguez é o esquecimento, e não há consolação que não seja um simples fato da memória. Afianço-te que o coração não tem parte no negócio.

O coração não se consola; a memória é que se esquece; e, quando quiseres esquecer, bebe!

O princípio não é novo.

Quem se vir um dia nas minhas condições, ensaie-o.

Dizem que os bêbados são desprezíveis... Isto é asneira e blasfêmia. Há duas espécies de bêbados: os bêbados por prazer e os bêbados por desesperação.

Uns são simplesmente tolos, os outros são dignos de respeito.

Confundir tolice e desespero com infâmia, não sei como se qualifique...

Mas isto se explica. Os senhores moralistas olham de cima para baixo. Este é o erro das filosofias. Ninguém define o fundo dos abismos.

Quereis saber o que é? Ide vê-lo.

Eis o que não querem fazer os filósofos de sorriso nos lábios e no coração.

Para vingança dos que sofrem, o Judeu errante do infortúnio tarde ou cedo toca com o bastão a todas as portas. Há muito valente que sonha fantasmas à meia-noite.

Deixa que eles falem, meu amigo. Peço-te apenas que não cuspas sobre o sono avinhado das esquinas.

É o caso de dizer-se: esse cuspo cairá sobre vós e vossos filhos.

Quando a sorte nos crava sete punhais no peito, vai-se estendendo a mão para a torneira do batoque. Impedir movimento instintivo é uma crueldade desarrazoada. as dores fez-se o calmante.

Eu entendo que o remédio é uma conseqüência do mal. São dous fatos correlativos e complementares. Mal e remédio, isto é que é a vida. Lutar não é outra cousa senão remediar.

Toda a atividade humana cifra-se nisso. O mal e o remédio existem necessariamente, subordinados um ao outro, impossíveis de haver independentes. Estão ligados como a ação à reação. Combatem-se. Mas combater-se é uma palavra contraditória: é chamar e repelir, é a união na desunião.

A força centrífuga e a centrípeta combatem-se, e ambas se fundem no equilíbrio. Assim a vida.

O mal e o remédio arcando um com o outro, imóveis na igualdade do esforço, a peleja eterna: a confusão épica sublime oferecida em espetáculo aos deuses dos homéridas.

Como querer uma só vez impedir o recontro? Quando a desgraça chegar, deixe-se que o adversário apareça.

E o adversário da desventura é o consolo, e o consolo é o vinho.

Ah! que amarga suavidade existe no sono dormido sobre a tempestade!...

Os trovões ecoam como os pandeiros de dançarinas, rodopiando ao longe. O relâmpago tem cambiantes azuis que afagam a vista, derramando reflexos de apoteose. As ventanias passam como pânicos acordes através da verdura brincalhona de mimosos bosquetes...

Se um madeiro desmorona-se da sua arrogância secular, não se ouve mais que uma delicada harmonia, ou o rumor de flores que caem. Se ruge o mar, abalando o promontório e fazendo chorar a penedia a golpe de açoute, sente-se apenas um marulhar mitológico, coroado de espumas, lançando à praia, entre beijos, mil sombras de Afrodite, que fogem nuas por meio de dunas de cândidas areias.

Tu me dirás, meu F, que és o meu verdadeiro amigo, e que desgraçadamente estás tão longe de mim, qual a consolação que isto valha? Que lenitivo estúpido é esse dos amigos diplomatas, que nos vêm cá mentir, todos contritos: agora é resignar-se... E outras ironias. Alando-as ao diabo, as mentiras!... Vejo a consolação.

Dizem que o maior amigo do homem é o livro. Admito, porém exijo que se reconheça que, se o livro é o amigo do homem, o vinho é o amigo do desgraçado. E parece-me preferível aquele que nos visita na hora da adversidade ao outro, que, nessa hora, pudera ser-nos importuno.

Eu ainda ontem não pensava como agora. Começava a penetrar a verdade, ao passo que a desventura penetrava-me o peito. Ainda não chegara o período agudo da minha crise de sofrimento. Hoje tudo está passado.

O desabamento não esmagou-me, porque eu tinha vinhos em casa. Salvaram-me, acredita!

O ensaio da prática deu-me a convicção da teoria. Todo o convencido é um apóstolo. Dizendo-te o que penso, desabafo.

É por isso que vazo neste papel a minha alma e confio-ta.

A sorte provou-me que a parreira que dá-nos a folha para as vergonhas, dá-nos o cacho para as dores.

Foi há um mês. Não terminara ainda o período despótico em que se é obrigado a fazer espetáculo das próprias mágoas. A minha pobre Maria fechara os olhos havia menos de um ano...

Eu perdera completamente o gosto de passear, que tanto me divertia outrora. Vivia encerrado em casa, triste como tiveste ocasião de ver... Mas ainda tinha sorrisos. Eu possuía ainda a minha Ercínia. Restavam-me os seus afagos infantis e a deliciosa tarefa de valer-lhe de mãe. Distraía-me ocupando-me com ardor em prevenir e satisfazer-lhe os inocentes caprichos; vê-la brincar esquecida no jardim apertadinha num princesa branco com uma facha de crepe à cinta; recolher, no mais santo beijo, as lágrimas sentidas que ela misturava à impertinência com que perguntava-me quando mamãe chegaria da viagem... Até este abençoado engano, que tem iludido a tantos órfãos de quatro anos como Ercínia, chegava a se apoderar de mim...

Eu começava a crer no dolo, que inventara... Chorava com a minha Ercínia e iludia-me com ela.

Foi há um mês... por uma esplêndida manhã. Voavam insetos através dos arbustos e andorinhas através do sol. O meu jardim acordava num sossego paradisíaco. O arvoredo encobria a rua. Mal se ouvia o rodar crepitante longínquo de um carro de pão. A casa ficava mergulhada em um ninho verde e silencioso. Via-se tudo a gozar de uma bonança profunda.

Entretanto, eu sentia-me opresso. Chegava à janela e recuava. Era repulsiva a alegria daquela natureza.

Nessa manhã, Ercinia não quisera deixar o leito. Perguntei o que ela tinha. Disse-me que nada. Mas os olhos tinham-lhe uma ternura doentia. Ercínia costumava, ao acordar-se, abrir os olhos para o dia e um sorriso para mim. Nessa manhã, os olhos não se abriram nem o sorriso...

A pobre criança sofria. Por fim saiu da cama. Agasalhei-a. Levei-a ao jardim. Mostrei-lhe o sol, as andorinhas, as flores... Sempre triste.

Trouxe-a então para dentro. Ela pediu a cama...

Ah! meu amigo, chorei muito nesse dia.

Daí em diante a moléstia persistiu atroz. Até... Não posso, não quero falar-te desse mês que foi-me a página arrancada a algum calendário do inferno. Cada dia passou como um suplício de doze horas, e cada noite como uma tortura de um século. Eu ia perder a razão. Achei o vinho. Estava salvo!

E Ercínia morreu.

Fui um herói. O golpe falseou pela couraça sem derribar-me. Incrível. Quando há muito devera ter morrido, eu permanecia com forças! Ainda me sobrou ânimo para correr ao leito branco fantástico, onde jazia a lívida estatueta que fora a minha Ercínia; tive energia para sugar num beijo sôfrego, intenso, todo o amor de que nutrira aquela carne inocente. E só o resíduo deixei para o túmulo.

Pobre filhinha!...

Assim foi a minha catástrofe. Amor de esposo, amor de pai, tudo rolou como um desabamento.

As catástrofes são os maiores mestres. Não discutem: provam e impõem; têm argumentos de aço e de chumbo, cortam e esmagam. É a dialética dos assassinos. Não há quem se oponha.

A minha catástrofe ensinou-me o recurso que me ficava.

Sou agora um infeliz, porém um infeliz consolado.

Entretanto, meu bom amigo, não deixes de compadecer-te de mim. Ter de consolar-se é por si uma grande desgraça. O náufrago, agarrando-se aos mariscos afiados de um rochedo, não se acha tão bem como se estivesse a brincar sobre moles coxins do levante... A minha consolação toda é acremente dolorosa no íntimo.

Consigo entontecer-me, perturbar-me, fechar ouvidos aos gritos do meu próprio coração...

Consigo escrever estas linhas sacrílegas no dia de hoje...

Mas... sei que aí está na sala, entre velas e rosas, entre a hipocrisia dos homens e a indiferença das flores aquele corpo que é meu e aquelas poucas gotas coaguladas de sangue, que saíram do meu próprio peito!... Sei que vão fechar o caixão onde encerraram a minha Ercínia: sem o meu protesto!... Roubam-me tudo o que me restava de risonho na existência, e eu não reluto.

Despacham para o cemitério toda a minha ventura: conservo-me inerte...

Sinto no peito um vazio: percebo que extraíram-me o coração para sepultá-lo antes de mim.

Ah! ah! É porque estou bêbado! Não é porque seja feliz...

Deixo que o façam!

— Venha! venha a bebedeira! Vinho! vinho!... Ai!... Vinho!...

Levem-me a filha, mas não me deixem sem vinho...

..................................................................

Já nem sei o que escrevo... nem sei o que escrevi. Sinto peso no crânio e peso nos braços. Vai desculpando, meu amigo, as idéias e a letra. Isto não é bem carta... Não sei como chame, senão sacrilégio; porém, já... não respondo por mim... Vejo um tremor estranho agitar os objetos que me cercam... Sou eu talvez que estremeço. Voa um nevoeiro escuro pelo meu quarto... Não posso continuar. É também impossível examinar o que escrevi.

E... para quê?... Estou incapaz de corrigir... Se houver por aí alguma blasfêmia, deita-a por conta do vinho...

Também começo a ouvir uns rumores horrendos... Vão levá-la...

Não posso continuar...Reina movimento na sala do esquife... Tenho a cabeça a arder, como se um incêndio me lavrasse os cabelos... Neste instante bateram levemente à porta do meu quarto! Não abro! Não abrirei!

Ainda há o que beber aqui...

Bateram de novo... Que tormento!... Não abrirei!...

Perdão meu generoso F, eu sou um perverso... mas não te incomodes. O gargalo de uma garrafa pode valer o cano de um revólver... A morte é um grande ponto final. Termina. Não me desgosta: criminoso estarei punido; desgraçado estarei livre.

E bem que se morre num tonel de Malvasia!...

.................................................................

Conserva, meu precioso amigo, esta carta. Nunca mais escreverei. Adeus.

Teu F.

Niterói, 12 de outubro de 188...

 

DECOTES DE QUINZE ANOS

Curiosa coincidência, pensava Otília, debruçando-se à janela com a carta que lhe escrevera a prima, curiosa coincidência, aquela carta e aquela situação!

Do outro lado da rua em frente, erguia-se em grande prédio de dois andares. Na última janela do segundo andar, à direita, lá estava ele, o impertinente vizinho, que não lhe tirava os olhos de cima, uns vivos olhos vorazes de meter medo.

Com ela, com a sisuda Otília aquele rapaz perdia o seu tempo.

Mas era interessante a coincidência... Ela e aquele sujeitinho ali... e o assunto da carta, da terrível carta!...

Sob a fuzilada de olhares que lhe chegavam da última janela à direita do 2.o andar fronteiro, a mocinha tornou a ler.

"... Nada conheces, na tua idade de inexperiência e de surpresas.

Sou do número das trintonas de Balzac, um escritor que ainda não leste, entendido nos mistérios da alma feminina, sou do número das educadas do amor, mulheres de curso completo na ciência do coração.

Mas já tive a tua idade, os deliciosos quatorze ou quinze anos de criança, quando o sexo nos revela apenas pela prevenção desconfiada do pudor, essa tolice adorável do sangue.

Amanhã, muito breve, saberás o que valem as flores de fogo que às vezes te abrasam o lindo rosto. Então na hora do amor, compreenderás os vagos temores, indefinidos sustos que te assaltam, como um rebate, de extraordinárias cousas. O coração fugir-te-á do peito, a internar-se como um herói de balada, pela floresta das fantasias. Sonharás o eleito dos teus afetos.

Instintivamente entregar-te-ás à impaciente urdidura de quantas armadilhas imaginares para a caçada do ideal.

A propósito, conto-te uma historieta dos meus quinze anos. Uma lição que te dou de experiência galante.

Eu morava na rua dos Arcos, naquela casa assobradada, de seis janelas, onde hoje habita a família da R . C.

Enclausurada na rede de solicitude, com que nos cercava, a mim e às manas, meu pai, avaro dos seus tesouros (tesouros éramos nós) arredada severamente do comércio da sociedade, ardia-me o desejo curioso de uma aventura, fora do círculo conhecido dos carinhos domésticos.

Diante da nossa casa morava um moço moreno, esbelto... circunstância propícia! Um belo companheiro para a minha escapula.

Ser amada por um rapaz como esse, eu não queria mais! Um só olhar de amor que ele me dirigisse, arrebatar-me-ia às sonhadas viagens azuis.

Dezoito anos parecia ter; sobre os lábios começava a acentuar-se-lhe o desenho volteado de um futuro par de bigodes; grandes olhos negros, exprimindo mansidão, pupilas que se moviam devagar, oleosamente no corte das pálpebras.

De manhã, cedo, aparecia à janela do sótão que lhe servia de quarto e, com um copo-d'água, regava amorosamente o vergel de madressilvas que diante dele se espraiavam pelo telhado até envolver as goteiras prolongadas sobre a rua em bocas de corneta.

Banhava as flores e as flores enviavam-me baforadas de doce perfume.

Mas só as madressilvas se apercebiam de mim. Cândido demais, ou demasiado altivo, o vizinho não me ligava importância.

Ora eu tinha veleidades de beleza; avalias o meu despeito.

Dizem que a melhor maneira de atrair o olhar é olhar. Eu olhava, olhava e perdia o esforço. Cheguei a supor que o inflexível moreno, já não era senhor do seu coração e caprichava em manter a lealdade dos seus compromissos.

Era para desesperar.

Felizmente, um dia, eu o surpreendi a observar-me.

Oh, júbilo! Mas era preciso cativar de uma vez aquele olhar que me podia fugir para sempre, esquivo como a ocasião. O demoninho dos quinze anos soprou-me um expediente. Devia ser aquele beija-flor que me passou pelo rosto zunindo.

O pudor é uma grande força.

Esse tesouro de graça saibam-no despender as mulheres.

Loucas as que distribuem, cegamente, o seu patrimônio de rosas. Tolas as que o soterram no segredo desnaturado da inteira reserva, revelando-o quando muito às frias confidências de cristal do espelho.

Toda esta teoria endiabrada do decote ocorreu-me num segundo.

Na tua idade, eu adivinhava os homens!

Resolvi afrouxar o laço de vexame com que me estrangulava, nos vestidos afogados, prescritos por minha mãe.

Fingi que desdenhava o olhar do vizinho, voltando o rosto para outro lado. E atrevidamente soltei um... dous... três... botões da gola do meu princesa!

Ora, minha bela Otília, dai a pouco, eu guardava no seio submisso, rendido o olhar rebelde do meu moreno; acolhia-o no tépido decote dos meus quinze anos, como um pombo no vinho, friorento, trêmulo.

Assim, no dia seguinte, e no outro e no outro...

E começaram a secar de ciúmes as madressilvas..."

Neste ponto, sem saber como, viu Otília que um... dous... três botões do paletó branco, tal qual na história da prima, se lhe haviam desprendido.

Que horror!

E, sob a fuzilada de olhares da última janela do 2.o andar fronteiro, as abas de fustão, como grandes pétalas, abertas num desabrochar audacioso de magnólia, entremostravam colorações de carne virgem e fugitivas sombras, rendilhadas, ao fundo, por encantadora desordem de crivos claríssimos de camisa.

 

DE MADRUGADA

I

Top, um lindo perdigueiro malhado, era o cão de um meu vizinho; e o meu vizinho um esquisito, desses homens que fazem não se sabe o que, e vivem não se sabe como, isto é, cosendo o manto das aparências ricas, com as misérias íntimas. Via-se-lhe a família a rir nas soirées, enfaixadas nas sedas, e não se via se chorava, quando a chitinha doméstica substituía os tecidos faustosos. O meu vizinho Ricardo, por seu lado, era alegre, de uma alegria frenética, nervosa; isto em sociedade. Concentrado em seu gabinete, era um abstrato meditador e um meditador triste.

II

Top não o abandonava nessas horas de melancolia; o generoso cão entrava no quarto do dono e, pé ante pé, ia enrodilhar-se junto da poltrona de Ricardo. Punha-se a fitá-lo, imóvel e interrogador. A melancolia do dono parecia influir na existência do pobre animal.

Top ia perdendo visivelmente o curvilineado elegante das formas e começavam a emergir-lhe na pele umas saliências ósseas de mau desenho.

Era uma pena ver-se aquele homem e aquele cão, cruzando às vezes um olhar morno e cheio de tristeza, isolados na meia sombra do quarto. Felizmente ninguém surpreendia tais cenas.

III

Esta noite, um rumor despertou-me. Era a minha pêndula que dava horas. Não me foi possível contar as pancadas. Saltei do leito e com um fósforo iluminei o mostrador do relógio. Eram quatro horas. Boa hora de levantar-se para quem gosta de o fazer bem cedo. Contrariei com esforço a preguiça da madrugada, que me entorpecia, e preparei-me para um passeio. Devia ser agradável. Ao menos divertido. À hora em que o Rio de Janeiro salta n'água da Guanabara, para os seus mergulhos higiênicos, sempre se tem o que ver...

IV

Saí.

V

Uma hora mais tarde, a minha curiosidade de passeante foi atraída por uma coisa extraordinária.

Eu costeava o cais da praia d... Num ponto em que o pequeno muro de cimento faz uma entrada, recolhendo o mar num remanso onde as algas apodrecem e dormem as ondas, vi uma sombra saltar do chão para o muro e do muro para o chão, de um modo aflitivo, soltando como que gemidos, espiando para o mar, tentando pular e com medo. A luz do dia que chegava e as estrelas que fugiam deixaram-me ver. A sombra era um cão: o perdigueiro malhado do meu vizinho. Uma pancada forte senti no peito.

VI

Encaminhei-me com pressa para o lugar. Antes de lá chegar, vi o cão atirar-se para o lado do mar e sumir-se.

Corri. No ponto em que estivera Top eu inclinei-me. Descansei os antebraços no cimento do cais e examinei o mar. Fazê-lo e recuar foi coisa de um segundo. Lá embaixo boiava um cadáver de costa para cima, com os braços abertos. Perto dele, o perdigueiro debatia-se tentando puxá-lo.

VII

Entretanto, brilhava a aurora vermelha como uma chaga, derramando nas ondas as cores da tragédia.

Eu vi sobre o parapeito do cais um objeto branco. Era um envelope.

Fugi.

 

DIA DE GALA

Era duplamente dotada de fibra e de imaginação; com este aparelho arma-se uma criatura terrível; terrível ou deliciosa: pontos de vista. Para completar, moça e viúva.

A viuvinha sofria, assim, de uma viuvez carnal, saudade orgânica do esposo (esposo aqui em gênero, não em caso) como deve padecer a roda dentada, da ausência absurda da engrenagem conjugante.

Era religiosa. No êxtase da crença, oferecia aos numes do oratório o sacrifício difícil dos seus desgostos.

Na restrita pobreza dos recursos de costureira, por meio de vida, faltavam-lhe divertimentos. Ela morava ali, no largo do Paço, naquela casa de perspectiva secular que parece como uma boa velha antiquíssima a debruçar-se para a gente a contar histórias do Sr. D. João VI, que Deus tenha. Valia-lhe de prazer o panorama do mar e por exceção, na monotonia da vida, as procissões do Carmo e as paradas de grande gala

As procissões produziam-lhe um meio enlevo beato, agradável como uma baforada de incenso, mas triste no fundo: como em geral nas solenidades eclesiásticas parecidas todas com um funeral. O seu melhor prazer eram as paradas. Fazia-lhe gosto à viuvez solitária ver em massa tantos homens fortes.

As dragonas, sacudindo ouro aos ombros de alta patente, as baionetas cintilando à grande gala do sol, percorridas de frêmitos incertos, como uma seara metálica, os penachos cor-de-rosa da oficialidade, arrufando as penas como aves guerreiras sobre as barretinas e a temerosa cavalaria, mascando impaciência, transpirando espuma sob os arreios, os possantes corcéis apeados de estátuas eqüestres. E o tinir seco das bainhas contra as esporas e as vozes nervosas impertinentes de comando, na boca de capitães obesos e as salvas à hora do beija-mão, na marinha de guerra e nas fortalezas. O rumor, o espetáculo produziam-lhe estranho abalo. Ela pensava em combates, multidões armadas atropelando-se, desaparecendo em fumo, surgindo em sangue; pensava nos acampamentos cobertos de tendas e marmitas; deixava-se levar na meditação imaginadora a conceber a reação de amor selvagem dessas populações nômades sem família, depois de uma jornada de morticínio; pensava nas mulheres do campo dos lugares por onde passa um exército e nas vivandeiras moças; pensava com terror lascivo nas cidades entregues ao saque, em que os soldados acham que vale a pena poupar a vida às mulheres; ocorria-lhe um episódio da campanha russo-turca, citado no Jornal do Comércio: quarenta mulheres vitimadas por um batalhão inteiro, num paiol abandonado, entre elas uma de doze anos apenas... a medida que passeava ao longo das filas um binóculo de teatro, visitando a infinidade de caras, bronze fundidos na soalheira das marchas.

Não foi, porém, na predisposição comum que a surpreendeu aquela data: dois de dezembro. Sentia-se presa de um mal-estar indefinido, um alvoroço no organismo que a inquietava como a iminência de uma crise, um desassossego de espírito que lhe tolhia a atenção para o trabalho, impossibilitando mesmo que lhe morasse no cérebro por dois segundos a mesma idéia, ímpetos de choro sem causa, vontade louca de rolar no chão em assomos de convulsões.

Dois de dezembro, cortejo no Paço da cidade

Era um presente de céu aquela data, pensava ela desfolhando o calendário à parede. Pertencia-lhe a grande gala. O que em outra ocasião fora um divertimento, naquele dia era uma necessidade; naquele dia, distrair-se era um curativo.

Às onze e meia já lá estavam os pelotões em forma. Pelas objetivas do binóculo começou a passar a tropa sucessivamente, em revista sui generis da curiosidade feminina. Uma por uma sucediam-se as caras da soldadesca em cerrada continuidade de galeria numismática. E do sótão ignorado caíam, chuva de rosas sobre as fileiras, olhares de simpatia tão bons, tão expansivos que fariam esquecer o serra-fila ao galucho basbaque que os colhesse no ar.

Tinham decidida preferência as fisionomias duras, virís, douradas a fogo pelo verão das campanhas, riscadas de preto no vinco das rugas, indelével gravura do rictos de severidade marcial que é como o uniforme dos rostos. Mas, que interessante variedade! as faces deformadas por um gilvaz glorioso e devastador, outras picadas de varíola em caprichosas granulações de carne; cá, um semblante de criança grandes olhos negros sobre malares proeminentes do Norte, nadando em candura, ao lado da baioneta feroz; mais além, uma cara branca, crivada de sardas, sobrancelhas louras ásperas; algumas reclamando a baixa do serviço ativo na expressão mórbida; em compensação, algumas apopléticas, sufocadas na gravata de couro como no laço de uma forca.

A viúva olhava como se aspirasse de longe a emanação do pano grosso das fardas suarentas, úmidas às axilas e na constrição dos talins.

Depois o binóculo visitava os oficiais. Era outra cousa. A rudez militar suavizava-se geralmente em fisionomias elegantes, peles aristocráticas amaciadas na sinecura das comissões de paz, carinhas guardadas em algodão e perfumadas para a ostentação oportuna das paradas, altivas, sobre a plebe do exército, como lambrequins de luxo sobre uma torre de ferro, militares de salão meigos e amáveis que possuem palas de tartaruga para a rua do Ouvidor e frascos de brilhantina para a perpétua frescura do bigode; soldados queridos de outras mulheres, não dela, dessas mulheres masculinas que desejam no homem o desconto do que no próprio caráter há de mais. Ela preferia os oficiais de grosso trato, que lembravam o marido, um bravo do Paraguai, que lhe morrera nos braços não sei por que, talvez mesmo porque ela o amara muito.

Ia por estas conjunturas quando o binóculo parou sobre o rosto do capitão Mauro, do 13.o, formado ali, sob as janelas do Paço.

Fazia um tempo admirável. A pobre solitária bebia tentações no ambiente da praça, sobre a florescência de sangue dos flamboyants.

Formosa era ela. Não achava segundo marido por muitas razões, a primeira: por essa desconfiança que persegue as belas viúvas, muito razoável em teoria, mas injusta de fato. Muitas razões ou, pode ser, simplesmente para dar assunto a esta narrativa.

Foi um relâmpago.

— Emília!

Emília era a criada, trefegazinha e esperta. Discreta ou não, no momento convinha que fosse. Foi-lhe confiado este bilhete em letra miúda e nervosa, este lacônico bilhete:

"Hoje, às quatro horas, sr. capitão, espera-o alguém na rua... numero... para dizer-lhe duas palavras amáveis."

O lugar do encontro era a casa de uma amiga ausente, de que tinha a chave a viuvinha.

A nossa heroína esperou que a carta tivesse partido para arrepender-se, mas o arrependimento foi vivíssimo. Aterrou-se com a imagem da temeridade a que se arrojara. Ela conhecia o capitão Mauro, freqüentador da casa nos tempos do marido. Um homem atirado, audaz para todas as empresas, na sua construção de aço e saúde. Estava sinceramente arrependida. Tranqüilizou-a, felizmente, o alea jacta dos supremos apertos, acolitado pela ponderação de que não custava nada deixar o capitão bater com o nariz na porta.

Emília tinha ordem de acompanhar o batalhão no fim do cortejo e entregar a missiva no quartel.

A viúva avistou no largo a criada insinuando-se pela multidão. Viu sair o imperador, no coche de ouro, para S. Cristóvão, com os seus Polichinelos sovados de libré verde e galões largos à traseira e os empoeirados jóqueis, dirigindo a atrelagem, de corpete curto, camisa a mostra, sobre o cós dos calções e a cavalaria lascando a calçada com a violência do galope; viu afinal desfilar a tropa música à frente Nunca lhe pareceram tão verdes as bandeiras cobrindo os pelotões, abertas amplas ao vento do mar.

Depois, distraidamente foi ao guarda-roupa e tirou uma pequena máscara que lá estava, velha lembrança de um baile Com a tesourinha pôs-se a cortar o veludo, alargando o rasgão dos olhos o mais possível; deixando bastante pano, contudo, para que não a reconhecesse o capitão Mauro. Pobrezinha! Como se já não estivesse decidida a afogar brutalmente no peito mais aquele sonho culpado...

Apesar dos impedimentos possíveis da disciplina, o nosso oficial à noutinha, mandava apalpar as dragonas perguntando se não sentiam ainda o metal quente - da insolação do cortejo, é possível, mas provavelmente de um colar de braços nus que o haviam estrangulado. Agora é que sei, notava mais, o que é ter amor à farda.

E muito tempo depois, entre outras boas histórias de sacristia, um padre do Carmo contava, sem violação do sigilo, o que certa confissão lhe dissera de um dia de gala na monotonia triste da viuvez.

 

É MORTO PULCINELLA!...

Canzonetta de T08ti

A ALCEBÍADES FURTADO

Ideal, fleur bleue à coeur d'or, dont les

racines libreuses, mil fois plus déliees

que les tresses de soie des fées, plongent

au Iond de nôtre âme pour en boire la

plus pure substance; fleur douce et amêre!

on ne peut t'arracher sans faire saigner

le coeur, sans que de ce tige brisée suintent

des goutea rouges!

Era tarde.

A gosto, no pegnoir que vestira, alvo de neve, gentilmente enfeitado aos ombros por pequenos laços vermelhos pousados como borboletas, Amélia, a jovem viscondessa, aproximou-se da janela.

Fora, ampliava-se a noite, sem astros, densamente negra. Silêncio de cemitério - um silêncio negro, da cor da noite; distinguia-se a gotejar, em lágrimas pausadas, a linfa escassa de uma fonte perdida nas trevas. Um bico de gás a meia chama, mantinha brando crepúsculo na ante-câmara, boudoir da viscondessa. Pulverizava-se a luz em irradiações de pedraria nos cristais do lustre e passava ao jardim pelo vão das cortinas, projetando um triângulo de claridade sobre o arvoredo fronteiro. Dentro do triângulo, aumentada e deformada, a sombra de Amélia.

Depois do casamento, era a primeira vez que se encontravam a sós, Amélia e a sombra, a sua sombra, a discreta confidente dos sonhos idos. Estavam a sós; o visconde era detido a fazer sala a alguns amigos cerimoniosos e renitentes. Que diria ela agora, à querida irmã fantástica? Ali, recostado às árvores, trajando a eterna veste escura de melancolia, olhando-a, mudo, com os invisíveis olhos das aparições, ele queria saber alguma cousa, o amável fantasma. Não lhe havia Amélia contado, outrora, os sobressaltos do seu coração, as esperanças, os desalentos? não lhe havia mostrado misteriosamente uma flor que recebera; a seu lado não decorara a primeira carta inflamada de efusões?... Amélia não achou o que dizer à sombra. Apoiou os cotovelos ao peitoril, e, cobrindo o rosto, sufocou com as mãos uma tempestade de soluços. Dos olhos, por entre os dedos, corriam-lhe as lágrimas candentes.

Na abstração da dor, essa espécie de desmaio em que degenera o pranto violento, doce alívio final que adormece a consciência do desgosto, sem mortificar os sentidos, a jovem senhora percebeu, longe, longe, por cima da massa do arvoredo, além da rua, além da casaria do arrabalde, dispersa na escuridão, fugitivos acordes de piano. Dir-se-ia um prelúdio caprichoso e sentido. Elevava-se a música à distância, contorcendo-se doridamente como essas linhas tênues de fumo que se avistam, de dia, a desfiar-se no horizonte. Pouco depois, igualmente atenuada em surdina, pelo afastamento, casou-se aos sons do piano uma voz de barítono

Signore beile, voi mi dimandate

Qual nuova oggi vi porto?...

Amélia reconheceu a canção de Tosti, a original canção de Tosti, mais vulgarizada que compreendida, a elegia pungente de Pulcinella, crueldade do acaso! exatamente a elegia de Pulcinella que lhe recordava a mais saudosa das ilusões mortas!

Tirou as mãos do rosto; já não chorava. Pôs-se a escutar avidamente. A menor vibração do ar dilacerava o canto. Chegavam as frases indistintas, incompletas, como destroços de uma página rasgada ao vento.

Amélia ouvia com febre, reconstruindo de memória as palavras desfeitas. Aquela voz cantava-lhe do passado; a letra lamentosa era uma queixa irônica das suas recordações

La sapienza del sorriso

Se ne andó da questo mondo

Con quel nom dal negro viso...

Lembrava-se...

Seis meses não eram decorridos.

Moça feita, pensavam em casá-la. O comendador, seu pai, homem despótico e violento, habituado a comandar caixeiros nos armazéns, a levar as fazendas a pontapés, comunicou-lhe sumariamente que acabava de prometê-la em casamento ao visconde de N., um grande partido! Titular e milionário! A moça quis falar. O comendador deu-lhe as costas. Não estava acostumado a ouvir recriminações dos fardos, quando os consignava. Mas, como o casamento ocasionaria separação, aventou-se a idéia de mandar fazer a óleo o retrato de Amélia. O comendador queria muito bem à filha; o retrato seria uma lembrança viva e perene. E, depois, o retrato se havia de exibir com a declaração: por ordem do Sr. comendador...

Escolheram o artista para o trabalho.

A sorte remenda às vezes como pode o tecido das suas piores tramas. O pintor preferido foi Armando, o nobre artista, laureado na Europa, respeitado na pátria, Armando, o ídolo e o idólatra de Amélia (ignorava-o por certo o comendador), Armando, o bravo trabalhador que contava estar muito breve habilitado no conceito do pai a pretender a mão da filha por algum merecimento menos abstrato que a pura glória do seu nome. Desde crianças conheciam-se os dous. Amavam-se havia alguns anos. A esperança do casamento nutria-lhes um amor tranqüilo, de parte a parte, distanciado e discreto. A casa de uns parentes de Amélia, amigos íntimos da família de Armando, era o ponto de encontro. Nessa casa, ouvira uma vez Amélia a composição de Tosti cantada por Armando, com a bela voz de que dispunha, energicamente timbrada. E, daí em diante essa música envolvera o seu amor, como uma espiral de flores.

Oggi é morto il gran poeta

Daí satirico ardimento

Che mescé la goccia lieta

Nelia coppa d'ogni evento.

Para fazer o retrato, Armando vinha regularmente passar algumas horas todos os dias em casa do comendador, cuja estimável senhora, com a solicitude de mãe zelosa, durante as sessões não arredava pé da sala feita atélier.

Amélia acomodava-se a uma poltrona, sobre almofadas para ficar em boa posição. A alguns passos da poltrona Armando erguera o cavalete. Duas vidraças, as únicas abertas da sala, convenientemente veladas, iluminavam a três quartos, por cima, o modelo e a tela. Grande pano de basto veludo azul, suspenso a um cordão que atravessava a sala de parede a parede, servia de fundo, projetando ao rosto da jovem reflexos celestiais. Protegidos, modelo e artista, pela cumplicidade desta cortina de veludo, que os isolava numa solidão relativa, encobrindo-os às vistas da senhora do comendador, deliciosos momentos gozavam eles! Às vezes, Armando deixava cair o pincel e esquecia-se a contemplar o adorado modelo; às vezes, sob pretexto de endireitar a posição, aproximava-se de Amélia, tomava-lhe a mão, beijava-lhe furtivamente os dedos. Amélia consentia. Tudo estava perdido para ela; por que havia de repelir? Ele nada sabia, o pobre; e a Amélia faltava coragem para desiludi-lo. Demais, tão suave era o engano, que ela mesmo se deixava levar pela ebriedade do momento... Estava em vésperas de casar-se... Pois o seu noivo era Armando! E neste sonho, divertiam-se perdidamente os namorados. Permutavam frases de vago sentido, temperadas de paixão. Borboleteavam, a meia voz, sobre os assuntos, artes, pintura, música, segredos do colorido, preferências em matéria de cor: ela preferia o azul, a cor do infinito; ele preferia o vermelho, o vermelho vibrante, a tinta do sangue e da vida!

Egli, il re dell'allegria,

Soffri sempre um brutto male

Un 'orrenda malattia

Ché-si chiama-l'Ideale!

Quanto à pintura, o artista esmerava-se com verdadeiro fervor. Inebriava-o a idéia de se achar ali a imitar o cetim daquelas faces, a profundidade de abismo daquele olhar, o recorte caprichoso dos lábios, encrespados como pétalas de carne. Tinha ímpetos de cair e pintar de joelhos, como Fra-Angelico. E rejubilava de ver com que felicidade ressaltavam, sob o pincel, os encantos da fisionomia do modelo.

— Hoje acabo o retrato! disse Armando, ao entrar um dia, às horas do costume.

— Deve estar contente, observou a mãe de Amélia. Que o senhor tem trabalhado!... Já se vão dez dias! Mas pode abar-se de ter aproveitado o tempo... Não há quem veja, que não ache primoroso...

A última sessão foi triste. Amélia sentia-se possuída de um desespero surdo. Último dia, último dia das suas ilusões! Quisera deitar mão ao sonho que fugia. Baldado esforço! As névoas passavam, tocadas pelo vento. Armando esteve a ponto de gravar na tela uma lágrima que surpreendeu nos olhos da jovem; pintou-a mesmo, por fantasia e apagou depois com uma pincelada de sombra. Estampou, entretanto, com os últimos toques, definitivamente, a expressão de melancolia, a bela tristeza do seu rosto. Preocupado pelo desgosto do próximo fim da deleitosa temporada, pintava sem dizer palavra. A jovem não tinha ânimo de falar. Sentia que, se descerrasse os lábios, o pranto lhe rebentaria dos olhos. Mantinha-se em contensão nervosa, e o via pintar, carinhoso, trêmulo, como se temesse ofender a querida imagem, absorto, como se a alma toda lhe escapasse para a tela pelos fios louros do pincel.

— Pronto! exclamou afinal Armando. Já o dou por pronto!

— Já?! balbuciou Amélia.

E ergueu-se. O torpor da imobilidade lhe deixara os membros pesados. Ela inteiriçou o corpo, espreguiçando-se com um ligeiro frêmito felino e adiantou-se para o cavalete.

Com o seu ar enfadado de tristeza, os grandes olhos enternecidos pela fadiga da pose, obrigados a fitar numa direção invariável, apertada elegantemente na rica toilette de baile cetim pérola com que se fazia retratar, coberta de rosas, como uma alegoria da primavera, emergindo-lhe a mimosa cabeça de um decote talhado em ângulo agudo para as costas e sobre o colo, os cabelos apanhados com arte mostrando toda a alvura do pescoço, nus os adoráveis braços de virgem, desajeitados como no enleio de sentir a nudez, Amélia deslumbrava. Encontrando-a com o olhar, Armando teve um choque. Não sei se a ilusão da última hora que faz parecer melhor o que se vai perder, não sei se o véu de encanto que lhe vestia a ternura da tristeza, Armando senti uma impressão de novidade. Nunca a vira assim, como naquela última hora da última sessão, nunca o pintor a vira assim divina!

Ao aproximar-se a jovem, ele recuou como aturdido. Evolava-se das flores daquele vestido um perfume de entontecer.

Diante da pintura, de costas para o artista, Amélia parou. Um estremecimento de surpresa, quase de susto, agitou-a toda. Era ela! era ela! Ali estava em busto, perfeita! Os belos olhos pensativos de corça, a cútis branca, o fino traço das sobrancelhas ligeiramente oblíquas, os longos cílios negros sedosos, o corte da boca meio arqueado para os cantos, num sorriso indefinível, o cabelo castanho, seco, transparente, penetrado de luz como uma nuvem, com uns tons de prata que brilhavam, rodeando-lhe as feições, sobre o fundo de azul espesso. Estremeceu de pudor, vendo, ali no pano, a verdade com que o pintor soerguera o começo de seios que o ângulo do decote traia; estavam ali veias em que ela mesmo ainda não fizera reparo. Sentia-se, ao vivo, na tela como num espelho, mais ao vivo ainda; porque um sinalzinho da face esquerda que o espelho mostrava à direita, ela o tinha aí, no lugar exato.

Para apreciar o efeito à distância afastando-se da tela, a moça, sem o ver, chegava-se para Armando. O artista sentiu o sangue subir-lhe às têmporas em vertigem. A posição, junto da janela até onde recuara não permitia livrar-se. Em pouco, Amélia veio tocá-lo com o ombro. Ao contato inesperado, a moça exalou um gritozinho de surpresa. Quis fugir. Armando a prendera.

Rodeava-os a profunda tranqüilidade da sesta. Mal se ouvia sibilar a respiração compassada da senhora do comendador, além do pano de veludo, no fundo da sala, dormindo ao sofá curvada sobre si, como um pescador à espera, ou como se continuasse, de longe, a leitura do romance que lhe correra das mãos e que se abria agora no chão derramando inutilmente os seus episódios, entre as escarradeiras, pelo tapete. Tal qual a boa senhora, tudo em torno parecia adormecido, as franjas, as borlas da tapeçaria, à verga das portas, pendendo imóveis, os tinhorões artificiais das cantoneiras, os prismas das arandelas, como dragonas de vidro de marechais fantásticos perfilados, um galgo de faiança, deitado em rodilha, sobre um dunquerque, num leito de felpas chamejantes, dous retratos de família, meio corpo, fidalgos de D. João VI, pasmados nas molduras seculares, de uma pasmaceira de defuntos, contritos, no seu papel inofensivo de múmias a óleo. As vidraças, que interceptavam os pequenos rumores do exterior mostravam muito verdes pendões de vegetação ramalhuda e vivaz; ainda lá fora, as árvores dormiam no ar morno. O próprio sol deixava, sonolento, aos ramos que lhe embalassem a indolência de ouro. Dous grandes espelhos da sala, inclinados, repetiam na profundidade do cristal a imagem de todo aquele repouso, fazendo eco ao silêncio.

Vencido o primeiro movimento de instintiva repulsa, Amélia se deixara enlaçar. Dobrando para trás a cabeça, pousou-a ao ombro de Armando; tomou-lhe o rosto entre as mãos e o comprimiu contra o seu rosto; confundiram-se os lábios, e os cabelos da fronte. A outra Amélia, a do painel, olhava-os, testemunha complacente daquele amor, com a melancolia do seu olhar, colada ao fundo de céu noturno.

Ouviu-se um beijo no silêncio.

Agora, ela era... a viscondessa.

Egli s'era innamorato

Ma sapea che il mondo intero

Scherno sol gli avria serbato

S'ei dicea quel suo mistero

Força viver com aquele homem. Visconde... visconde... Alma verde de azinhavre, como as suas moedas, como os seus brasões comprados! Mas era o esposo; ela era dele. Que fazer?! Dera-lhe em dote os despejos palpitantes das ilusões perdidas. Tudo passara, tudo passara!

Ed ei finse... e rise ancora...

Rise... rise... e non guari!

Invocò la morte allora...

E la morte lo rapi!...

Os sons daquela elegia atravessavam a noite, sob o luto do firmamento, como o funeral dos seus enlevos...

Pobre Pulcinella, morto de amor e de Ideal!

Morrem assim os corações!

E Amélia imaginava quantos, quantos! não trazem no peito o cadáver importuno de um coração que tiveram.

 

FORA DE HORAS

O último amor de Emílio foi uma viúva, antes um capricho feito viúva, ou melhor ainda um demônio feito capricho.

Mme. Lamour, Mme. Lamort, ninguém lhe sabia exatamente o nome. Inscreviam-na dos dous modos, na comédia do mundo alegre, e ela não se dava ao trabalho de expedir uma errata, deixando que vacilasse o apelido de amor ou morte, como o mistério da vida, que tão bem resumia: o incêndio do ditirambo onde as almas ardem e acabam.

Não cuidem, porém, que estragava a meditar simbolismos o ensejo de descanso poupado na agitação da vida impetuosa. Pertenciam-lhe ao egoísmo inerte, como um tesouro de indolência, as horas da sesta, as horas nuas da sesta, no ambiente resguardado do dormitório, quando estirava-se ao divã de veludo preto, fresca da reação do banho, vaidosamente deslumbrada da brancura da própria carne, gostando na epiderme a viagem leve, saltitada, de uma mosca atraída pelas migalhas da última ceia.

A imaginação sonolenta ia e vinha passivamente, na comparação da alvura absoluta das formas, onde se concentrava a luz toda das vidraças entreabertas - com o negrume intenso do forro do divã, das peles do tapete crescidas e retintas, da seda preta do pára-vento atravessado obliquamente pelo vôo pálido de cegonhas de prata, da estranha decoração negra das paredes, da madeira dos móveis, dos encostos de cupidinhos negros esculpidos em luta, enrolando-se, mordendo-se como filhotes de tigre.

Nada perturbava o repouso. Nem um pensamento, nem um ruído. As vidraças detinham fora o ramalhar múrmuro do jardim. Além do biombo, o relógio não batia, parado num longo minuto de felicidade material. Até que chegava o sono, lentamente, respirado na noute fictícia da decoração. junto dela, sobre uma cadeira, dormia a taça de ouro, objeto querido, que mandara fazer, moldada sobre o seio de uma rival defunta.

Estava ausente para todos; mesmo para o amante. Qualquer dos dous, que ela tinha dois, sempre e fielmente: por um exercício duplo de fidelidade, que lhe parecia dobrada virtude.

Às quatro horas, Emílio acordava-a aos beijos. Tinha dois amantes, disse, como tinha dois nomes. Amantes que não se viam, que não se conheciam, que não se encontravam. Manejava habilmente os dois corações, como bolas alternadas de um jogo malabar.

Prezava-os impessoalmente por predicados opostos e incompatíveis, que buscaria em outros amores, se os atuais faltassem. isolá-los reciprocamente era porém o meio de conservar a ilusão do prazer completo de duas existências.

Queria um amante que fosse dela, e outro de quem ela fosse.

Um devia ser delicado, adolescência franzina, temperamento febril e fraco, que se lhe entregasse como a uma tortura. Ela estenderia os braços como tentáculos de polvo e sugar-lhe-ia a vida com os lábios, devorá-lo-ia deleitando-se de o ver extinguir-se dia a dia, ele buscando-a sempre, ardente, trêmulo, sorrindo e sucumbindo. Queria também o amor forte de um largo peito, o desejo de grande fôlego, a carícia constringente da saúde, da força, que enlaça, que macera e afoga um amor brutal, que a punisse da perversa delícia do outro.

Emílio era o forte.

— Ciúmes de um cadáver! dizia ela, enigmaticamente, rindo, quando Emílio insinuava a queixa de uma suspeita.

Esta frase repetida, da excêntrica mulher, distraía-o do ciúme, aduzindo um traço mais de extravagância à sedução macabra daquela aliança.

Sonhou, então, que a viúva o traía com efeito; que ressurgia para trai-lo com ela, o falecido esposo, a letra morta do contrato conjugal. Ele a via nos braços do finado, dando-se-lhe toda com o prazer novo de uma lascívia de horror cingida contra a carne malhada de roxo, olhada amorosamente pela meiguice branca dos olhos extintos, sentindo o cheiro úmido da terra nos cabelos, vendo a língua negra através dos dentes fixos, ouvindo passar nos lábios um hálito empestado de sepultura, estremecendo de gozo a criatura incrível que ele amava - abraçada pelo pesadelo!

Entretanto, o outro vinha, nas ocasiões combinadas, pobre criança extenuada e exangue, sôfrego, ofegante, obedecendo à fatalidade, trazendo o sacrifício dos seus dias, trazendo dos desesperos do trabalho, da miséria, talvez dos recursos culpados, mimos de preço, pérolas, rubis, rubis principalmente, prediletos dela porque são como cristais de sangue...

Uma noite, que estavam juntos, Mme. Lamour e Emílio, muito tarde, no salão negro, ouviram bater à porta lateral do jardim. Os amantes cruzaram um olhar.

— Ciúmes? perguntou a viúva sorrindo.

Bateram de novo. Emílio quis abrir.

— Não abras! Deixa que batam!

Bateram ainda.

— Não abras!

Um abalo violento, como de uma ombrada, sacudiu os ferrolhos e o ar da sala. Depois não bateram mais.

Fazia um frio agudo. Adivinhava-se, lá fora, a chuvinha glacial, peneirada da noite. Os dous amantes esqueceram-se no conchego das efusões, mais estreito e mais vivo naquele inverno, em meio do pavor ornamental do aposento.

No dia seguinte, atravessado à porta, sobre o mármore do limiar, achou-se o corpo inerte de um rapaz, muito moço, imberbe ainda, belo, apesar da morte e da magreza extrema. Tinha sangue nos lábios e pousava em sangue a face lívida.

Ao redor, as roseiras, as begônias, na manhã clara, choravam as últimas gotas da chuva da véspera.

 

HISTÓRIA CÂNDIDA

Vou contar-lhes hoje uma história cândida, a história da Rachadinha. Cândida pela heroína, não tanto pelo assunto.

Rachadinha chamava-se assim por ser filha de João Vasco Rachado, correeiro, que por sua vez possuía esse extravagante apelido por causa de um traço de família que de pais a filhos distinguia a sua gente do resto da humanidade. A natureza, humorística que se diverte a rachar beiços, ranarizes, rachar queixos, como é tão comum, rachava-lhes a orelha ao nascer com um pequenino talho.

Vou contar-lhes a história de Rachadinha, uma pobre menina que perdeu, quer dizer, que perderam.

Era cândida, disse eu, antes ingênua.

Nada conheço mais arriscado, e logo arriscado para dous, nada mais arriscado do que uma menina ingênua. Rachadinha (não lhe sei outro nome) era ingênua. De sorte que se aplicava a fazer ingenuidades, enquanto o pai, correeiro, fazia correias.

Namorava, por exemplo, ingenuamente, quer dizer, deixava-se namorar. Passava horas e horas, numa tripeça de pinho à porta da loja, vadiando infinitamente, de saias curtas e tamanquinhos, sem meias, prendendo os calcanhares dos tamancos ao travessão da tripeça.

Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo de escola pública que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo. Lia muito jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos, baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma situação dramática que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e ia desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin.

Com uma tal facilidade de critério, não custa compreender como a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os dias sem atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal, abstruso e confundido. Um meio sono de preguiça e ininteligência, que lhe era suave, por isso que o pai, que não tinha recursos para dar-lhe gozos, caprichava esforços para poupar-lhe a mínima contrariedade.

Passava assim o melhor do tempo, ali, na tripeça, como um mostrador de porta, escandalizando, perturbando o trânsito com a presença de sua beleza, enchendo a rua, o arrabalde, com a irradiação perene da sua reputação de formosíssima.

E era bonita a valer, o diabo da pequena! Vasco Rachado, seu pai, era brasileiro e mestiço. A mãe era uma italiana, já morta, que alguns tinham conhecido na loja e que afirmavam ter sido bela. A Itália dera-lhe os olhos negros, onde morava a febre da campanha de Roma, onde vivia a lenta insônia do vulcão de Nápoles, onde nadava a onda tarda dos canais venezianos e a gôndola sonolenta; o Brasil fizera o resto: a pele de pêssego que lhe forrava as formas, mil frutos tenros despidos para vesti-la, e o sabor acre, de aguar a boca, que lhe transudava a beleza, como a impressão reflexa da pitanga, do tamarindo, do cajá dourado... Façam lá por sua conta um juízo como possam, daquela soberba moreninha a ponto de quinze anos, que um banho róseo de sangue e saúde fazia arder, sobre a tripeça, como um braseiro de corações.

O pai venerava-a, pobre operário sórdido, com acanhamento, como confundido de ser pai daquele milagre.

Ela, entretanto, ingênua, nada sabia disso. Sempre a mesma. Bela! Era a voz dos outros; pouco se lhe dava. Também, havia na loja um aprendiz levado, que, quando o mestre estava fora, vinha devagarinho, por trás dela na tripeça e repuxava-lhe o paletó para beijá-la na espinha, no meio das costas. E ela nem percebia a cócega. Que tinha ela com isso? O beijo era dos outros.

Havia tempo em que o pintor Juvenal, vizinho da frente, não lhe tirava de cima os olhos. Ela não percebera ainda. Mesmo por isso, não se dava ao trabalho de rebater a barra da saiazinha impúbere que ainda usava, quando a posição na tripeça descobria-lhe mais algumas linhas de canela.

Sucedeu que um dia, o pintor Juvenal, passou pela tripeça e entrou na loja de João Vasco. Vinha trazer encomendas.

Preparava-se para uma excursão artística no campo, donde pretendia tirar paisagens d'après nature. Queria que João Vasco lhe fizesse umas pastas ou bolsas especiais para o transporte de objetos de sua arte e, além disso, que lhe fixasse uma correia à caixa das tintas, de modo que fosse possível levá-la a tiracolo.

— Pregue-me aqui assim, assim... Olhe assim, deste jeito...

João Vasco observou que era melhor o contrário, parecia mais natural com as dobradiças da caixa para baixo.

— Ora, tem razão! Estava eu pedindo uma asneira...

E estava besta, efetivamente, o nosso Juvenal, sentindo Rachadinha a dous passos dele, respirando-a como um aroma bêbado, no cheiro das graxas da oficina, no fedor das grandes pelancas de couro curtido, que caíam tesas pelas paredes ao redor. Rachadinha, entretanto, nem sequer o vira entrar, preocupada com um rodapé muito interessante do Diário de Notícias, que tinha outro embaixo, do Novidades, que ia servir, daí a pouco, de continuação.

Depois desta entrada, houve outras visitas do pintor Juvenal.

Depois das duas bolsas da primeira encomenda, seguiram-se outras bolsas, uma série inacabável de bolsas...

E ele vinha saber do trabalho e tomava uma banca para admirar a perícia do correeiro...

As paisagens d'après nature, já se sabe, adiadinhas para o largo futuro. Na ocasião, muito mais o preocupava, d'après nature, um desenho de figura.

— Tento contigo! diziam as murmurações da rua inteira. Não dê cuidado, replicava ele, nós cá, pintores, é só plástica...

Quando o correeiro percebeu o sentido exato da encomenda de Juvenal, abriu-se-lhe um grande claro de alegria n'alma.

Desde muito lhe ocorrera a idéia de um noivo para a filha. E ele o desejava intimamente como um guarda para aquele tesouro que lhe não cabia nas mãos, alguém que o libertasse daquela esplêndida pessoazinha, cuja presença ali o envergonhava de ser humilde, daquele adorável trambolho que lhe vexava a liberdade de ser pobre.

Aceitou então o pintor, exultando. Passou a recebê-lo no interior da loja, na saleta de jantar, onde havia, perto de umas vidraças de área, uma mesa preta, de abas pendentes como orelhas de cão, que se erguiam para o serviço. Bebiam. Palestravam em boa companhia, Rachadinha presente sempre, em cândido silêncio ou cortando a palestra com disparates ingênuos.

Passou depressa a facilitar a qualquer hora solidões de noivados aos supostos noivos. Junto da mesa, ficaram os dous calados da primeira vez. A menina, abstrata, enrolando no dedo uma ponta de cordel, Juvenal, incendiado, na contemplação ardente da menina. Fora, na oficina, ouvia-se o correeiro batendo a sola.

Depois familiarizaram-se. Rachadinha mostrava a Juvenal bonecas antigas, malfeitas e sujas, trazia-lhe álbuns infantis para mostrar as pinturas, metia-lhe nas mãos agulhas de crochet e novelos para ver o que saía. Tudo a sério, com um sorriso quando muito, na sua maneira inocente de criança grave; sem reparar que o pintor beijava-lhe as mãos, os pulsos, pegava-lhe a cintura sem reparar que ela mesma tocava-lhe ao outro joelho com joelho, quando ensinava o chochet e pousava-lhe os seios nos ombros para mostrar estampas.

Juvenal bebia em êxtase toda aquela simplicidade deliciosa.

Uma noute que ela estava mais calada e mais distraída que de costume, Juvenal ouviu-lhe bruscamente:

— Não acha esquisito?... nós aqui sozinhos!...

Fora, na oficina, ouvia-se João Vasco, batendo a sola do serão.

Essa pergunta a Juvenal alvoroçou-lhe um fogo novo em toda a natureza.

— Não acho, não, disse em tom de grande calma... Demais, sabe... eu sou pintor...

— Ah, então os pintores?...

Juvenal foi deixando gradualmente a calma.

— Sim, sim... tudo!... Sou pintor, queridinha. Não sabes?... A pintura é inocente. Nós, pintores, temos para as mulheres uma admiração pura. Inteiramente pura, meu bem! Os outros buscam amor: nós queremos modelos. Uma menina... que fortuna para nós! Despimo-la, meu anjo! acomodamos num cavalete, num estrado, numa posição qualquer, e ficamos adiante, adorando a forma. Depois, temos a tela, tomamos um carvão, os pincéis... Vamos passando para a tela o feitio do corpo. Com a tinta fazemos caros cabelos, os bonitos olhos. Dai a pouco, em vez de uma bela menina há duas: a que fica no quadro para sempre, como uma cousa de se adorar, e a outra, que se veste e parte, com um beijo do artista na fronte... Estás aqui comigo... É como se não estivesses. Ah! um beijo do artista! Não sabes, anjo! anjo! o que é um beijo de artista? É sempre casto:. nós beijamos estátuas! Tens medo de mim, agora? da minha adoração platônica?!... Tens? tens medo?...

Rachadinha não entendia muito aquilo. Viu bem, contudo, que a cadeira de Juvenal caminhava para ela aos saltos, enquanto o pintor falava.

— Que é isto, exclamou surpresa, sentindo um braço brusco pegar-lhe a cintura com muita força.

— Nada de mal!... eu sou pintor, minha queridinha, murmurou Juvenal, prendendo-a e enchendo-lhe o ouvido de fios de bigode e repetidos beijos.

— Mas espere!... espere um pouco, pediu ela, relutando.

Mas o braço fechava-se cada vez mais rijo ao redor da cintura, e os bigodes ásperos arranhavam-lhe a face toda, colando cáusticos de beijos.

— Eu sou pintor!... eu sou pintor!...

Era tão sincera a veemência daquela desculpa, que Rachadinha começou a achar razão no rapaz. Desde que ele era assim pintor, ela foi cedendo...

Juvenal estava fora de si. Um lampião de gasolina no meio da mesa, de luz baixa, oferecia urna meia obscuridade cúmplice. Percebendo que a resistência decrescia da parte da moça, Juvenal, assaltou-a como uma fera. Dilacerou-lhe a roupa, para morder-lhe o seio.

— Eu sou pintor... eu sou pintor... balbuciava sem mais ligar sentido às palavras.

Do corpo da moça desprendia-se aquele cheiro de couros que o entontecera um dia; das roupas impregnadas do ambiente da oficina, crescia uma emanação grosseira, bestial de vernizes e curtume que o encarniçava.

O movimento da luta, o pudor do assalto, o calor da noute na saleta, a chama da gasolina purpureavam divinamente a carne morena da vítima. Juvenal estava perdido.

— Eu sou pintor, gaguejava em ofego. Queremos modelo... modelo... modelo...

A moça não lutava mais. Juvenal caiu com ela para o escuro embaixo da mesa, como para um abismo.

Soube ser pintor o platônico!

Na oficina, o correeiro continuava a martelar o serão.

Conclusão, a esperada. Ventre, fuga do pintor, desespero paterno, um pouco de polícia no meio, e a vida como dantes.

Rachadinha sempre a mesma... na sua tripeça. Quando alguma conhecida petulante pergunta rindo o que foi aquilo, ela apresenta uma trombinha de Santa Ingenuidade:

— Como ele era pintor...

Somente para o correeiro, ela perdeu um pouco aquela auréola de superioridade que o acabrunhava.

 

IDÍLIO RETROSPECTIVO

Jamais dous entes se amaram tanto.

Um era para o outro, e ambos para o amor; um amor egoísta, feroz, exclusivo, selvagem, adorável, único.

Tanto ardor era um perigo.

As fogueiras imensas correm sempre o risco de morrer depressa.

Mas aquele amor parecia inextinguível como o fogo de Vesta.

Durante o dia, viviam na comunidade do seu afeto, idolatrando-se mutuamente, com toda a energia de adoração que o olhar possui. Durante a noute, a ilusão do sonho prolongava deliciosamente a ventura dos dias...

Depois, separaram-se, por uma fatalidade... Cada um sepultou religiosamente no mais sagrado recôndito de sua alma a relíquia rara e santa daquela paixão...

Veio então essa cousa terrível que se chama o tempo...

Um ano... dous anos... quarenta anos passaram-se sobre aqueles peitos.

E cada ano que passa é uma túnica de pedra que reveste os corações.

Ela passara quarenta anos no Sul, ele os passara no Norte.

Agora encontravam-se os velhos.

Ela começava a ficar corcunda, a multidão dos netinhos comprimia-se-lhe timidamente nos joelhos, pedindo bênção. O formoso rosto de outrora era uma ruína então; sentia-se, a subir, a hora dos anos. Aqueles lábios que mal se viam, tinham saudade dos lábios de quinze anos, que tão lindos sorrisos souberam fazer... Apenas os olhos, macios como a luz da lua, os dous grandes olhos, eram os mesmos ainda.

Parece até que as sobrancelhas de prata os faziam mais belos. Restava essa compensação.

Às ruínas daquele rosto ficara a doce consolação do luar daqueles olhos..

O venerando sexagenário arredou afetuosamente as e magras da avó e colo crianças, tomou as mãos rugosas as longamente aos lábios.

Beijava, nas rugas daquelas mãos, a suave recordação dos bons idílios dos vinte anos.

 

MALADETTO FRANCESCO!

Houvera dois dias de chuvarada. As ruas tinham o calçamento lavado. Pelas sarjetas inundadas corria um burburinho d'água em direção aos esgotos. Os lampiões estendiam pela. calçada panos de fogo, enquanto as chamas de gás, engaioladas em suas caixas de vidro, debatiam-se doudamente a cada rajada... E o vento passava violento, furtando ao céu turbilhões de nevoeiro e guarda-chuvas aos transeuntes...

Francesco, que andava adoentado, havia dias, foi para a casa nessa noite muito mais cedo que de costume.

Para a casa... expliquemos.

Na rua... há uma portinha.

Isto é a boca de um corredor apertado entre altos muros, pelos quais escorre o sol branco e ardente do verão, ou, conforme o tempo, a chuva das invernadas, que os borra de luxuriantes paisagens feitas a capricho pela vegetação da umidade.

Passam por aí a viração encanada e uma multidão de sujeitos maltrapilhos, que chegam geralmente à tardinha, para saírem, no dia seguinte, à hora em que vêm os lábios rosados da. manhã osculando os cirros fugitivos do arrebol.

Estes indivíduos, com mais algumas mulheres que vivem a lavar roupas no pátio em que termina o corredor, são os inquilinos de umas coisas chamadas quartos, feitos de tabuado, onde o zum-zum das intriguinhas miseráveis e a algazarra das disputas dos moradores justificam o nome de cortiço que se dá às habitações da espécie. O cortiço está à esquerda do pátio das lavadeiras, no fim do corredor.

Nesta passagem entrou Francesco.

Havia uma lâmpada de querosene fixada na parede, à entrada do pátio. Apesar dos esforços dessa pobre lâmpada, cuja luz não conseguia varar a opacidade das suas três faces de vidro, não estava claro o lugar, Francesco lá foi, vacilante e cambaleando de tonteira.

Em um dos quartos do cortiço desapareceu.

Francesco Picolo era um pobre napolitano que nunca conhecera os pais e que viera para ao Brasil de envolta com um aluvião de colonos italianos importados para o Rio. Tinha seis ou sete anos; era louro como uma dessas figurinhas de Murilo que há espalhadas pela tela da Conceição e notavam-se-lhe abaixo dos olhos grandes e alegres, duas manchas róseas, destacadas na alvura pálida e quase sempre suja do semblante. Era miúdo e vivo, de uma vivacidade risonha e galhofeira.

Havia um ano que Francesco residia no Brasil, vivendo na companhia de Giuseppe de tal, um italiano maduro, focinho de calabrês, que viera de Nápoles com ele e se arvorara em seu protetor. Este protetor esperava os pequeninos lucros que o menino auferia de sua atividade e dava-lhe em paga maus-tratos.

Francesco vendia gazetas; e anunciava com tal graça a sua mercadoria, que era um gosto vê-lo na rua apregoando:

— A gazeta! a gazeta!... com a folha erguida na mão direita em gesto de Pedro I do Rocio. Quem o via, tão criança, tão gracioso e tão miserável, não resistia e... lia a Gazeta da Tarde ou a de Notícias do dia. Quando, à noite, esgotava-se a sacola de couro preto dos jornais, entornava ele a sua bolsinha num canto retirado do passeio, ou em alguma soleira, onde desse luz, e punha-se a fazer suas contas. Separava o cobre, com que devia comprar a 30rs. as folhas do dia seguinte; contava os lucros da venda, e exultava, se o ganho subia a 400rs; porque então podia esconder à ganância de Giuseppe dois ou três vinténs.

Estes vinténs furtados Francesco os arriscava na vermeIhinha, apostando sempre pela coroa das moedas atiradas ao ar. Seguia uma sua máxima: quase sempre ganha quem aposta pelas coroas. E ele ganhava freqüentemente. Esta fortuna fazia raiva aos garotinhos seus parceiros, de sorte que quase nunca o jogo acabava, senão pela fuga de Francesco Picolo, adiante da perseguição dos outros, que queriam tomar-lhe os ganhos, abusando de sua superioridade do tamanho e de força. Mas Francesco era ligeiro e sempre escapava.

Não era a vermelhinha a única distração do nosso birrichino; o pequeno Picolo tinha outros costumes da rua. Pendurava-se à traseira dos bonds, para enfurecer os condutores, vaiava a polícia; protestava contra as prisões gritando à barba dos urbanos: não pode! Assíduo como um repórter a todos esses grandes acontecimentos que enchem diariamente o noticiário dos jornais, não havia suicídio ou assassinato em cujo teatro não fosse vista a sua carinha loura, fitando os circunstantes ou a vítima, com o seu olhar azul, largo e compassivo. Não perdia incêndios. Era o primeiro a comparecer. Aproveitava a ocasião para brincar um pouco com a morte, mostrando-lhe de perto a sua vidinha alegre e miserável; arriscava-se dando risadas; expunha-se por pândega. E fazia tudo e tudo passava desapercebido. Pequeno demais para ser visto não encontrava embargos; barafustava por qualquer orifício e saltava em pleno perigo. A morte era o seu Polichinelo; Francesco brincava sem tropeços.

Muita vez prestou ele um bom serviço; em compensação, não lhe era raro levar do incêndio uma escoriação no braço, na cabeça, na perna, ou uma queimadura no pé. Sabem o que fazia? Ia fazer letras como as dos jornais ou riscar caricaturas pelas paredes caiadas de fresco, com o sangue das arranhaduras. O resto ficava por conta do seu médico: o tempo.

Tinha ainda o pequeno napolitano o costume de aproveitar os tumultos das festas populares, para furtar lenços e o mais que fosse possível. Uma vez furtou um grande guarda-chuva de alpaca burguesa, que o fez rir a perder. Este furto, mais incômodo que a famosa raposa do espartano, mereceu-lhe um puxão de orelhas do primeiro guarda urbano que o viu. O respeitável zelador da ordem pública deu ao menino o castigo e ficou-se com o guarda-chuva.

— Eu o deixo pra você, gritou-lhe Francesco à distância, porque é muito grande para mim.

E o urbano guardou conscienciosamente o objeto para si. Furtava o ladrão...

Não eram as façanhas dos incêndios, como não eram as escamoteações de prestidigitador da escola de Licurgo, o cúmulo do arrojo do menino.

Ia muito além. Ninguém imagina até onde. Pensam que se trata de pedras arremessadas à vidraças do chefe de policia ou outra coisa, como trepar no eixo de um carro de Nosso-Pai para bulir com o vigário pela abertura posterior do coupê?...

Nada, nada... O arrojo ia adiante. Assim que Francesco Picolo, do meio da rua do Ouvidor, ouvia, lá para as bandas da rua Direita, certo tropear de cavalaria, com a nota de um clarim, destacando-se por cima, quando lhe passavam por diante dois redondos ginetes de dorso em arco sob o peso de lustrosos e ofegantes caboclos, encasquetados em luzidas barretínas, espadas nuas à destra...

Ele já sabia. Aí vinha o seu homem.

Francesca abria as magras perninhas, firmava-se nelas como um Rodes em miniatura e esperava de olho vivo e gazetas ao sovaco.

Em pouco, chegava um grande carro a trote largo. No carro vinha um senhor de cabelos brancos e branquíssimas barbas, enfeixadas numas bochechas amplas e tintas de rosa. Toda a gente dobrava-se em zumbaias para aquele velho, a quem devia doer a espinha, tantos eram os cumprimentos que fazia para a rua... Pois ele não; Francesco Picolo era rebelde. Quando o velho do carro passava por ele e cabeceava-lhe um dos tais cumprimentos... Era tempo. Francesco, com o seu gorro no alto da cabeça, arregaçava as ventas para o velho e mostrava-lhe a língua insolentemente. Depois da careta, dava uma risada e saía a gritar:

— A gazeta! a gazeta! 40 réis!

Esta sua originalidade não degenerou, até que uma vez... Não vinha só, o velho de barbas brancas. Ao lado dele sentava-se uma velhinha de vestido roxo, os cabelos empastados à testa. Tinha um sorriso bom aquela velhinha.

Quando o carro passou por Francesco, o birrichino fez a costumada careta. A velha sorriu docemente para ele e demorou o olhar, até que o permitiu a janela do carro.

Francesco ficou gostando daquela pobre velha... Olhou para ele com tanta suavidade!... Houve uma revolução naquele pequenino cérebro. O revolucionário foi o coração.

Francesco tomou uma resolução: quando de então em diante passasse por ele o homem de barbas brancas, ele tiraria o seu gorro de veludo sovado ao marido daquela boa velha que sorrira para ele...

Apesar de seus costumes da praça pública, Francesco Picolo não era ainda um menino pervertido, mas o que nele predominava mais do que qualquer traço fisionômico do caráter era a bondade do coração.

A prova disso tinha-se, eloqüente, indiscutível, em uma tristeza profunda, que de tempos a tempos se apoderava do espírito do pobre menino.

Aquela almazinha, feita de garotagem inocente e risonha, tinha momentos de melancolia contraditórios com ela. Faziam-lhe o efeito de falenas voando ao meio-dia.

Essa tristeza, que podia parecer a abstração idiota das crianças enfermas, tinha uma explicação.

Explicava-se por uma história contada por Francesco a uma boa mulher que lhe dera remédios num hospital, onde ele estivera, havia meses. Era uma história pequenina, delicada e triste, uma nênia escrita numa pétala de rosa. Ei-la:

Ainda na Itália, Francesco Picolo tivera uma irmãzinha. Em Nápoles. Antonieta era mais criança do que ele... e tão bonitinha!... Como ele se lembra!... E como se lembra daquela noite de frio!... De frio e de morte; tudo o mesmo...

Ele e Antonieta vagueavam a esmolar longe, muito longe da mansarda onde os recebiam caridosamente para dormir, aos pobrezinhos que não tinham pais... Era tarde e caía muita neve. Umas toalhas brancas assustadoras estendiam-se pelas cumeeiras dos edifícios e pelas ruas.

Ia a noite se adiantando; urgia escolher um abrigo para a noitada, um canto aonde não chegasse a luz nem o olho da polícia.

Os meninos não gastaram muito tempo a procurar; que mesmo não o permitia o cansaço. Sentaram-se a uma soleira, num ângulo sombrio. Abraçaram-se as pobres crianças, apertaram-se, para que cada um aquecesse ao outro com a temperatura do próprio sangue e fecharam as pálpebras enregeladas e sonolentas.

— Que frio! murmurava Antonieta, tiritando.

Quando o dia seguinte se difundiu cor de leite por cima da espessura das neblinas do inverno, Francesco foi despertado pelo dono da loja a cuja porta dormira com a irmã. Reconheceu então, o desgraçado, que cingia nos braços um corpozinho branco, hirto e gelado.

Esse corpozinho foi-lhe arrancado pela polícia e...

Francesco não tinha mais irmã. O dono da loja, compadecido dos soluços que sufocavam o pequeno mendigo, acolheu-o dentro da casa.

Passados três dias, fê-lo embarcar-se com os colonos que iam partir para o Brasil.

— Além do Atlântico, não há inverno. No Brasil o frio não assassina e o pão não falta. Vai criança, e os olhos de Deus não te percam.

Trazido pelas auras desta bênção, chegou Francesco Picolo à América.

Nessa partida estava o segredo da sua tristeza.

Fora disso era um refinado traquinas e o mais ativo vendedor de folhas que se conhecia na rua do Ouvidor.

Giuseppe, o generoso protetor de Francesco, dormia cedo. Quando não passava misteriosamente a noite fora de casa, às oito horas, quem lhe entrasse no quarto vê-lo-ia preguiçosamente estendido numa maca improvisada sobre duas caixas.

Na noite em que Francesco voltou mais cedo, já o malandro roncava na maca. A entrada do menino fez rumor.

— Quem entra? perguntou Giuseppe com uma voz de ébrio, e remexendo-se todo na cama.

— Sou eu, disse o menino.

— Vamos fazer nossas contas. Chegue-se! convidou o dorminhoco erguendo-se a meio, com a mão a esfregar os olhos.

Francesco aproximou-se, com uns passos pequenos, vacilantes. O coração batia-lhe forte e ele sentia na fronte o calor de um diadema de fogo.

A luz do corredor vinha enviesada pelo quarto dentro. Giuseppe notou a dificuldade dos passos do pequeno.

— Então vens bêbado, Francesco? exclamou ele.

O menino não deu resposta.

— Aposto que não trazes hoje nem um vintém...

Francesco sem dizer palavra, tirou a bolsa de couro que trazia pendente do ombro e colocou-a sobre a cama do protetor.

Imediatamente em seguida, foi estender-se sobre um montão de roupas usadas, que jaziam ali para um canto.

Depois de recolher-se um outro italiano da laia do protetor de Francesco e que o auxiliava no pagamento dos poucos mil-réis do aluguel do cômodo, trancou-se a porta deste. A luz do corredor ficou lá fora e o quarto entregue às exalações da imundície que nele reinava e às trevas.

Começou-se então a ouvir uns gemidos apertados, uns arquejos contidos.

Passado algum tempo, bradou uma voz sonora:

— Até que horas teremos essa música?

A música durou pouco.

Minutos mais tarde o gemido calou-se; o arquejo foi substituído por um respirar violento, opresso, sibilante, até que mesmo estes últimos acordes da música se abafaram.

No dia seguinte, abriu-se a porta e a manhã entrou.

Um dos italianos foi para a rua e o outro, o protetor de Francesco, tendo se acordado também, viu o menino ainda a dormir e pulou da maca para despertá-lo. Giuseppe estava furioso. Pois aquele tratante ainda rolava na cama!...

Às cinco horas estavam já longe, as folhas estavam na rua a vender-se e o preguiçoso do Francesco dormia ainda!...

— Ó Francesco! Francesco!

O patife nem se movia.

Giuseppe atirou-lhe um valente pontapé.

— O Francesco!...

O menino, que se acomodara no alto do montão, rodou até aos pés de Giuseppe.

— Estará morto, este diabo? gritava ele com espanto.

Estava morto, sim...

Francesco Picolo morrera durante a noite.

Isto era um transtorno para os negócios de Giuseppe.

Nada menos que um desfalque de quatrocentos réis diários.

Maladetto Francesco! exclamou ele lançando ao pequeno morto um olhar raivoso, maladetto Francesco!

Não passou disto a oração fúnebre do pobre birrichino. Mais compassivo esteve o sol que penetrou no quarto e amortalhar aquele cadáver num raio generoso, vivificante.

Nessa hora, uns sinos ao longe rebentavam em alegres tintilações.

E havia no espaço uma dessas manhãs de cidade, luminosas, festivas que o beatério enche de badaladas e o sol inunda de claridade e de azul.

 

MOCINHA

"Deus me dê forças para ser calmo", pensou Arsênio, sentando-se depois de não sei quantas voltas pelo gabinete. Atordoava-o a terrível certeza. Esteve alguns segundos à cadeira, mãos pendidas como em delíquio, olhar imóvel, magnetizado numa pausa de estupidez pelo brilho fixo, vivo do verniz da escrivaninha, num ângulo que a luz feria.

Por fim bruscamente, como sacudindo o entorpecimento, levantou-se e foi buscar ao guarda-relógio uma pequena chave de ouro que usava na corrente, talismã secreto de namorado e perene intriga dos amigos curiosos.

Sentado novamente, diante da pasta do trabalho, abriu com a chave uma gaveta à esquerda. Estava cheia de cartas, cartas em desordem, algumas abertas, mostrando nas folhas de cores pálidas estampas mínimas de pombos e flores, palavras de ternura que outras folhas truncavam encobrindo, cartas de amor d'onde evolava-se uma nuvem de perfumes muito tempo guardado, como a saudade dos antigos beijos.

Arsênio debruçou-se sobre as recordações.

Casara pela razão profunda de que eram vizinhos.

Era impossível afrontar o narcótico das ordenações e do Melo, amenizadas ainda pela comprovação textual que tem o incomparável atrativo de ser latim. Dormir diante da preleção era escandaloso. Ao menos, no tempo das chamadas o terror alertava.

Só havia um partido: ficar em casa. Ver passar o Capiberibe debaixo do sol e os matutos pelas pontes brancas, abalados sobre os jacás, ao chouto dos cavalinhos magros, valentes, encrustados de estrume seco nas ancas; ouvir do catre bambo de lona e pinho os gritos do cargueiro, as chicotadas no ar, ou a lamúria inacabável dos mendigos: "Pelas cinco chagas de Cristo! meu devoto... Uma esmolinha pelo divino amor de Deus!..." vozes de cegos no fulgor da luz, que com a temperatura das horas eram de um efeito de aborrecimento sem nome.

No principio lia, mas o clima venceu e a madraçaria acadêmica apoderou-se dele com todos os sintomas de morbidez incurável.

O companheiro de casa falava-lhe dos dias frios de S. Paulo. Como seria bom dormir num dia frio... Ele tinha de padecer o suplício único da preguiça quente, sob o cancã de reflexos espelhados do rio para o teto.

Erguia-se sobre o cotovelo para sorver o refrigério do coco verde e recaía.

De espaço a espaço, vibrava o silvo de uma locomotiva partindo; às vezes o rugido longo de um paquete ancorado diante da Lingueta. Era o tempo a correr. Bem lhe importava; a preguiça não tem horário.

— Mala para o Sul, dizia-lhe da janela o companheiro, olhando para o mastro dos sinais da navegação, sobre a cidade.

Ele com um bocejo, sem mesmo abrir os olhos:

— Mala para o Sul?...

Mas havia uma área nos fundos, espaçosa, ladrilhada de tijolo, partida ao meio por um muro. Metade era o quintal da casa; a outra metade era o lavadouro de uns vizinhos de frente para o lado oposto do quarteirão.

Antes do jantar, enquanto punham a mesa ou depois, esperando a noite para correr às cervejarias, ou às famosas visitas de um inolvidável corpinho azul de setineta, risonho e fácil, Arsênio cruzava os braços sobre o peitoril e olhava.

No pátio vizinho, diante de um tanque negro de limo, batia roupa uma velha escrava com a saia em nó sobre a barriga, requebrando-se a cada golpe das peças. Quando a roupa era demais, estendia-se sobre o telhado fronteiro, onde uma siriema aparecia a passear em cima, parando a períodos regulares para soltar o canto metálico.

Acontecia muito vir falar à lavadeira uma mocinha clara de cabelos pretos. Aparições fugitivas. Trazia alguma roupa ou dava um recado e sumia-se como o relâmpago. O tempo suficiente para deixar a impressão da graça rara dos seus modos e animar para Arsênio com um encanto permanente a vista insípida do ladrilho vermelho, do lavadouro, do melancólico passeio da siriema sobre as roupas úmidas.

"Mocinha" exatamente chamavam-lhe.

Arsênio modificou um pouco os seus hábitos de preguiça depois que notou as aparições. E agora estremecia quando chamavam "Mocinha!" na vizinhança. Acudia à janela como se por ele chamassem, como perguntando:

Que querem com o meu sossego?...

Falavam dela, que era namoradeira e leviana. O estudante poderia atestar que percorreu os transes da mais difícil escala de concessões.

Primeiro a concessão dos cabelos, pretos, abundantes, tempestuosos, destrançados sobre o paletó de tiras bordadas. Durante muito tempo só lhe pôde ver à vontade os esplêndidos cabelos. Mocinha sentava-se perto da janela, mas propositalmente voltada para um livro ou para o crochet; de costas como em recusa, oferecendo entretanto o espetáculo complacente do seu tesouro.

Arsênio apaixonou-se pelos cabelos como se apaixonara pelas aparições preliminares.

Mocinha passou a mostrar o rosto. Apresentava-se com os olhos baixos sobre o lavadouro. Ao retirar-se, fazia uma viagem com o olhar, de maneira que fosse para o vizinho exclusivamente o derradeiro relance.

Arsênio apaixonou-se pelo relance.

Prolongava-se a terceira fase da benevolência, quando ocorreu um transtorno.

Por uma madrugada de exceção entregava-se Arsênio à toilette rudimentar das ablusões em trajes menores, descuidoso, no pátio da casa, confiando na hora e no crepúsculo discreto. Inesperadamente cai-lhe da janela dos seus amores como se caísse do céu e da alvorada uma vaia de risos franca, argentina e cruel.

O rapaz voltou-se, a tempo de ver ainda escapando para dentro uma grande sombra de cabelos soltos.

Estava desmoralizado! Visto de ceroulas! Visto por ela! De ceroulas a lavar-se, imaginem, em plena situação idilial do seu romance!

Arsênio protestou não tornar ao posto de esperanças, à adoração parva dos favores da vizinha. Uma gargalhada assim era o rompimento afinal, ditado expressamente a um tolo

Mocinha percebeu o retraimento.

Junto do tanque de lavagem havia o banheiro. Todos os dias, cerca de onze horas, ela e a irmã, uma criança loura de dez anos, atravessavam o pátio com as toalhas. Momentos depois, da porta verde, por uma trama de sarrafos, ouviam-se gritos de prazer e um barulho fresco de chuveiro, de águas batidas. As irmãs saíam coradas, alegres, rindo, agitadas por um frêmito de penas de ave.

Uma vez que as sentiu passar, Arsênio chegou à janela.

Logo, como uma surpresa, abre-se a porta do banheiro e surge Mocinha. Cabelos soltos, como quase sempre, mas em saia branca e corpinho apenas, um apertado corpinho decotando-se sem reserva na pele virgem, rasgando-se aos alvos braços, inveja de Juno, que a sedutora criatura deixava que vissem.

Esquecera o lençol e o foi buscar. Passou tranqüila sem olhar para cima. Voltou enleada no lençol de feltro como uma túnica de arminho, d'onde escapavam-lhe os passos, os miúdos pés despidos, rosados de pisar assim, rápidos como um páreo de flores.

O estudante imaginou que fora proposital tudo aquilo; porque, antes mesmo das águas frescas, ouviu no quarto de banhos uma festa de galhofa.

Riam-se dele ainda, não há dúvida. Meditando, porém, no incidente, compreendeu que a saia branca fora a recíproca das ceroulas. Uma declaração positiva e originalíssima - a permuta dos ridículos de intimidade, sutilmente e ousadamente proposta para consolar da humilhação da madrugada.

Ou não fosse. Verdade é que três meses mais tarde, diante do altar de mármore da Penha de Santo Antônio, permutavam-se entre ambos os compromissos da intimidade consagrada.

Arsênio foi feliz. Fez-se ativo, formou-se, montou casa e começou a advogar no escritório do sogro, um dos mais procurados juristas no Recife.

Dous anos completos, recebeu ele uma carta de intriga anônima.

Veria logo que era uma calúnia infame quem soubesse a calma dos beijos da esposa, quando o advogado entrava do escritório, e o pressuroso carinho que provocava a mínima sombra de preocupação suspeitada e o longo abraço que o estreitava à noite, forte como a virtude, firme como a fidelidade.

Desvanecera-se a impressão do primeiro assalto. A carta de intriga voltou. Agora formulada com uma energia mais severa de boas intenções.

Arsênio ficou aterrado. Figurou-se o anônimo como uma individualidade fantástica, onipresente, demônio indivisível, elevando-se no caminho da vida para matar-lhe a ventura.

Acusavam-na, acusavam formalmente a querida companheira.

Não quis pensar; resolveu precipitar, arriscar-se ao desastramento, contanto que se libertasse do peso da angustiosa dúvida.

O carteiro veio às oito horas. Mocinha estava ainda na cama.

Arsênio foi vê-la. Dormia sobre a face direita, um pouco torcida, adiantando os lábios. As pálpebras desciam serenas, denunciando, na transparência escura, a cor negra do olhar velado. Uma das mãos pendia-lhe fora do leito. Tinha quase de costas o tronco, e a pele alvejava, do colo e dos ombros, tão branca sobre os lençóis, na meia claridade do aposento, tão cândida que parecia azul a candura do linho.

Arsênio abriu uma janela devagar que não despertasse a esposa. Os lençóis brilharam como prata amarrotada. Mocinha continuou a dormir na intensidade da luz.

Arsênio sentou-se à beira do colchão. A vista parou-lhe eventualmente sobre o tapete onde dormiam como a dona os exíguos pantufos de marroquim cor de bronze. No desenho da lã, fugia tempestuoso o galope de um búfalo das savanas de sólidos chifres curtos.

Olhou para Mocinha. A claridade violenta não conseguira despertar o repouso. Será possível que durmam assim os remorsos? Arsênio debruçado procurou-lhe na face branca, nas espáduas, no seio descoberto, o vestígio da traição, a marca do beijo estranho, a cicatriz do adultério. Que imaculada pureza! Um busto de anjo, na inocência feita mármore.

O marido quis beijar a mão pendente, mas resistiu.

A esposa agitou-se afinal, sentindo a cócega da luz. Um longo inteiriçamento estendeu-se sob as cobertas como um espasmo vibrante.

Abriu os olhos e fechou-os no mesmo instante, tocados pelo dia. Abriu-os de novo e teve um pequenino grito admirativo com a presença do marido. Bocejou, esfregando as pestanas, um adorável bocejo de romã de vez. Apoiou languidamente o braço na almofada e ergueu o corpo. Desatados num gracioso gesto, os cabelos correram-lhe sobre a atitude, suntuosamente.

A jovem persignou-se para a oração da manhã.

Arsênio deixou que ela orasse, segundo o precedente de Otelo.

— Rezaste? perguntou então.

Mocinha encarou-o com certo espanto de mau humor imperceptivelmente acentuado, mas que fez tremer ao marido.

— Que quer dizer esta pergunta?

— Lê esta carta, respondeu ele com brandura, entregando o papel anônimo. É curioso que haja indivíduos que se entretenham com estas revoltantes brincadeiras.

Fitava a mulher, falando. Mocinha leu e o enfrentou com os grandes olhos pacíficos. Um traço de amargura crispava-lhe um canto da boca.

— Tu não me devias mostrar... disse unicamente.

Uma lágrima saltou-lhe da pálpebra e escorreu pelo seio até à camisa. E, sem uma palavra mais, Mocinha atirou-se sobre a almofada com o rosto para a parede.

Arsênio despediu-se naturalmente; mas sem que lhe ocorresse a conveniência de atenuar de qualquer forma a desagradável colisão do seu expediente. Sentia-se atordoado. A desconfiança que esperava destruir, procedendo franco, parecia haver crescido. Qual a significação daquela lágrima? Seria a dor da injúria grosseira a uma consciência limpa? Mas supunha ter distinguido mais que simples desgosto na expressão queixosa. Dar-se-ia caso de ser aquilo uma confissão involuntária, colhida ali ao acordar-se, no descanso físico, no desalinho da alma, antes da dissimulação carinhosa que não fora lembrada na oportunidade?

A suspeita fixou-se-lhe formalmente no espírito.

A vigilância malvada do anônimo sobreveio para o remate.

Trouxeram-lhe misteriosamente ao escritório, surpreendida não sei como, uma carta da mulher, duas linhas:

"Não venha! não venha; porque estamos traídos."

A letra era a sua, absolutamente a sua, horrivelmente a sua!

Arsênio, trêmulo, agindo automaticamente como um sonâmbulo, correu à casa. Procurou a mulher e estendeu-lhe a mão com a carta aberta. Tentou um supremo esforço e pôde dizer:

— Não devia ainda mostrar...

Mocinha estava sentada diante da cesta de vime das costuras. O pano em que trabalhava desprendeu-se-lhe dos dedos. Cobriu-lhe o semblante uma palidez de morta. Nem um movimento, nem uma exclamação. Levantou, só para o marido, um olhar indefinível, esse olhar de aço simultaneamente límpido e mortífero, com que as mulheres se defendem na extrema emergência.

Arsênio trancou-se no seu gabinete.

Tratou de impor-se toda a possível calma para encarar a situação.

Lembrou-se das soluções literárias, sorrindo dolorosamente, as saídas apresentadas para o caso pelos dramas, pela teoria... Teses... Propor um código aos temperamentos!... A julgar pela vertigem que lhe obscurecia o cérebro, o seu temperamento reclamava a solução violenta, o desenlace sanguinário... Mas ponderou imediatamente que a simples observação do próprio temperamento provava que ele não era dos adequados ao rompante teatral.

Tomou então uma folha de papel e escreveu para mandar ao sogro:

"Restituo-lhe sua filha. Por ela saberá V. S. os motivos que me induzem a proceder assim. Não venha daí tristeza à sagrada velhice de um pai. Não há infâmia nos desvios irresponsáveis do coração. O casamento é a aliança da lei, mas é a confusão do sangue e do sentimento. Desfeita a sinceridade desta união, a infâmia é exatamente persistir a prostituição do registro civil."

Formulou ainda algumas frases de cortesia e assinou. Ao concluir, sentia-se abatido, como se se houvessem rasgado as veias.

Impeliu vagarosamente a gaveta das cartas restantes do seu amor, com o cuidado que se tem para o esquife de um cadáver querido. Abriu outra para tirar um envelope.

Achou dentro o revólver, um brilhante revólver americano, que nunca servira. Empunhou-o distraidamente... Estava carregado... como quem tem confiança no seu temperamento de homem avesso às soluções teatrais, certo de que era incapaz de matar alguém, a si muito menos..

E o descarregou na fronte.

 

MILINA E TURCO

I

Estava a tarde feia, úmida, aborrecida.

Quem entrava, trazia os pés molhados; quem saia levava a certeza de se encharcar à porta. Dentro em pouco devia anoitecer. O sol caíra para lá das casas que fechavam a boca da rua ao ocidente...

Na estalagem, os quartos estavam já escuros, e esta escuridão vinha contaminando pouco a pouco o palco central, onde se amontoavam as tinas de lavagem e a roupa suja que ficara esquecida.

Emília, a pequenina Emília, com um saiote curto, que lhe deixava descobertos os joelhos, estava assentada na porta de um quartinho estreito e imundo. Aproveitava o luar do lusco-fusco para pegar na boneca. A pobre criança com os seus seis anos só trabalhava dia e noite. Feliz noite para ela, o lusco-fusco não é dia, nem é noite. A sua faina arrefecia naquela hora.

A boneca...

Digamos que boneca era: um saquinho de chita sem cor própria, cheio de trapos, comprido e apertado em uma das pontas por um cordão. Este cordão era a graça daquele miserável brinco. Representava de pescoço; era a beleza plástica forjada pela pobre imaginação de Emília para a sua Milina.

A boneca, ou antes Milina, caíra numa poça d'água e estava pingando...

A pequena, com o seu rostinho meigo e contristado, acariciava-a. Quem a visse teria pena.

— Emília! Emília! gritou uma voz arrotada.

A voz gritava de dentro do quarto. Lá na sombra entrevia-se o vulto de uma mulher espichada no chão sobre um monte de panos escuros e imundos, cheirando a vinho.

II

Emília, descalça, saiu da estalagem, correndo, com um regador amarrotado e ferrugento. Era tão grande para ela o regador que ia roçando pelos lajedos. Ia buscar água para a pocilga da senhora que a protegia.

E Milina?... Pobre Milina! Emília havia de lhe pedir perdão por tê-la deixado só, naquela hora que era a única em que a coitada dormia no colo de mamãe...

III

Um belo cão negro enfeitado de bastos pêlos reluzentes, orgulhoso em extremo, espécie de cão fidalgo, entrou pelo cortiço, com a cauda enroscada em penacho e as orelhas erguidas. Logo depois voltou, atirando ao ar as grandes patas, saltando alegre. De vez em quando, sacudia o focinho e via-se alguma coisa a balançar pendente. A pouca distância, o dono do cão, o filho do sr. Visconde, pequenote de calças curtas ainda, e já pelintra, soltava largas risadas, batendo com o pezinho bem calçado na soleira de mármore do palacete da família. Com um chicotinho fino fustigava o ar e ria-se... ria-se...

IV

Emília vinha da bica da esquina, arrastando o regador cheio a transbordar.

Aquele cachorro!...

Ao chegar à porta da estalagem viu o cão.

O animal galopava para o palacete e levava Milina nos dentes.

Emília fora de si atirou o regador, que tombou na sarjeta e voou sobre o animal...

V

O filho do Visconde tomou-lhe a frente continuando a rir-se da brincadeira do seu Turco.

Mau! menino mau! gritou Emília, avançando para o pequeno.

O chicotinho zuniu três vezes...

Emília recuou, e levou as mãozinhas aos seus olhos tão belos e tão bons, soltando um longo:

—Ai!

Foi pungente.

Emília estava cega.

 

NIENTE

I

Ali num recanto esquecido, Elvira plantou, um dia, um galhozinho de rosa. O arbusto brotou viçoso e, bafejado pelo calor, enfeitou-se de folhas, engrinaldou-se de botões.

Elvira, cada manhã, cada tarde, visitava a plantinha. A roseira recebia o primeiro raio do sol e o primeiro sorriso de Elvira. À noutinha, a roseira tinha visto o derradeiro fulgor do sol, quando Elvira se vinha despedir dela, amparando com os dedos delicados um ramo que se inclinava demasiado, afugentando uma formiga de mau agouro.

Tanto afago e tanto sol era para fazer esperar uma florescência esplêndida.

Elvira esperava.

II

A primeira rosa já tinha dono.

Seria dele... Por que não?... Quem colhera o desabrochar do seu coração?... E Elvira estava convencida, vaidade de moça talvez, que o seu coraçãozinho valia mais que uma rosa.

III

O dia não estava longe.

As auroras influenciavam naquelas flores!... Os sepalozinhos dos botões como que estalavam, ao hálito da madrugada, e se preparavam para descolar-se.

Havia um então... Parecia-se com um amuo de criança prestes a dissolver-se em risos. Estava: abre... não abre...

Ah! quando abrisse!... Mas Elvira não sabia que alguém vinha mais cedo do que ela espiar o botãozinho.

IV

O sol semeava pela campina mil palhetas de ouro. As folhas de erva iriavam-se com as refrações multicores de infinitas gotazinhas de orvalho, estremecendo ao contato do frescor agradável que atravessava a manhã.

O botão, como a boquinha rubra do menino que se expande numa gargalhada franca e aberta, desabrochou a meio.

Em poucos momentos, o botão devia estar... rosa!

Uma linda mocinha, num alvo desalinho, veio correndo e espiou. Era Elvira.

— Até logo, disse à flor.

V

Quando voltou, a rosa não estava lá!...

Uma borboleta azul esvoaçava, batendo gentilmente no ar, com o pano das asas.

O bichinho cabriolava contente, dando viravoltas a esmo. Elvira estava bem irada...

Correu para a borboleta...

Fora essa malvadinha! Tambóm que não fosse pouco importava. O que Elvira queria era dar expansão ao seu desgosto. Mataria a borboleta... Pôs-se a correr pelo campo, agitando no ar o lenço, perseguindo o bichinho; a borboleta supunha que era graça e brincava, voando aqui e voando ali: borboleteando loucamente... Por fim, voou para cima e fugiu. Elvira mordeu o beiço com um gesto graciosamente estouvado e gritou imperiosamente:

— Borboleta!

A borboleta não voltou.

VI

Um mancebo que andava por perto correu à jovem e perguntou:

— Que queres com a borboleta?

Elvira deu um grito de admiração e, sorrindo, lançou-se aos ombros do moço.

— A rosa era tua! exclamou.

— Ah! pois eu te dou, respondeu o moço mostrando uma flor que trazia oculta.

— Então foste tu...?

— Para dar-te, furtei.

— Mau! tiraste-me o gosto... Pois vou dar-te outra

— Dá-me.

Elvira que enlaçava o pescoço do mancebo encostou-lhe à face os lábios e depôs longamente um ósculo.

O sol brilhava esplêndido e riam-se os prados.

 

NO MAR

I

Em volta de nós alargava-se um círculo d'água contornado pelo horizonte.

Era o Atlântico.

A noute caíra, uma noute esplêndida. O céu, recamado de cetim azul, cavava-se no alto, profundo e luminoso. Umas estrelas, de luz mortiça apareciam cintilando como cabeças de alfinete de prata e a lua desfigurada e enorme pela refração saía do oriente.

Havia oito dias que estávamos no mar, e cada noute fora para mim um espetáculo incomparável; nenhuma, porém, como a última. A pureza da atmosfera, o sossego das ondas, a tranqüilidade de bordo e o luar casavam-se tanto com o bem-estar de espírito em que me achava que eu me sentia impregnado de romantismo.

Estava sentado na coberta do vapor, sobre um caixão, que tinha (lembro-me ainda) as iniciais C.R. borradas com tinta preta. Levantei-me e me acerquei da amurada.

Firmei no parapeito os cotovelos e pus-me a olhar e a meditar. Por um tapete deslumbrante desenrolado por cima d'água, vinham até o vapor os raios de um luar branco delicioso.

Comecei a ver nesse tapete uns rostos conhecidos, digo, uns semblantes que havia gravados no meu coração. Eram as minhas recordações.

Reconhecia minha mãe, reconhecia meu pai, reconhecia meus irmãos.

Pensei neles e refleti que, dentro de uma semana, estaria eu na Europa, longe, longe dos seus carinhos. Entristeci-me. Súbito, porém, como que senti no cérebro uma chuva de estrelas; principiei a distinguir em meio da noute as grandezas que eu ia encontrar no velho mundo, tão novo para mim. O Brasil e a Europa apresentavam-se distintos na esfera das minhas reflexões. De uma parte, um hemisfério escuro, mergulhado na sombria tristeza da saudade; de outra, um hemisfério radioso iluminado pela minha sede do desconhecido.

O tempo que levei nessas cismas não sei. Fato é que, ao despertar-me delas, vi a lua elevada bastante e o isolamento em torno de mim. Os passageiros, que por ali andavam passeando ao luar, se tinham recolhido; um ou outro marinheiro necessário às manobras mostrava-se, neste ou naquele ponto, como uma sombra...

Ouvi, então, um suspiro abafado.

Cousa esquisita! Um suspiro ali pertinho, um suspiro que me pareceu escapado a um peito amante e a uns lábios formosos de moça poética...

Voltei-me para ver quem era.

A uns oito passos de mim, estava alguém, encostado à amurada como eu e olhando para o mar como eu estivera. Sonhei logo mil romances. O luar clareava um rosto de mulher, não deixando contudo ver-lhe a beleza. Do corpo, pouca cousa aparecia, oculto como se achava na sombra da amurada. Dirigi-me para a suspiradora.

Ela não mostrou perceber o meu movimento. Possível me foi examiná-la.

Era uma linda jovem de dezesseis anos presumíveis. Tinha uns olhos grandes, encantadores, voltados para o mar e uma pequenina mão encostada ao veludo rosado da face.

Trajava de azul, pareceu-me.

Lembrei-me de que, nas minhas cismas, não se me afigurava um rosto como o dessa visão, desse anjo.

É que meu coração não fora ainda penetrado pelas ternuras do amor e eu me habituara no Brasil a ver, nas mulheres, mulheres. Entretanto, naquela que ali estava eu via um anjo.

Esse anjo voltou os olhos para mim.

Vi de frente o mais belo rosto de menina que pudera idealizar.

Tinha cabelos castanhos e a tez entre o moreno e o alvo, isto é, da cor mais simpática do mundo.

O anjo sorriu-me furtivamente...

Eu vira aquela mulher uma única vez a bordo. Fora no dia seguinte ao do nosso embarque. Notara-lhe a beleza simplesmente. Desta vez, entretanto, um interesse excepcional levava-me para ela.

Sorri-me ao seu sorriso.

A linda criança envergonhou-se. Baixou o rosto. Eu estendi o braço e tomei-lhe a cintura. Ela não se ofendeu.

— Como se chama o senhor? perguntou com a voz comprida, balbuciante.

— Júlio, disse eu... E a senhora?

— Júlia, disse-me ela.

Oh! que não sei como referir ao leitor a doçura que me derramou no peito esta coincidência.

Júlia gozou também, com isso. Senti-lhe o braço redondo apertado pela manga do vestido cingir-me o pescoço com força. O meu corpo e o dela estavam achegados um do outro. As palpitações do meu coração encontravam-se com as palpitações do seu coração.

Saboreei num instante todas as alegrias de um amante feliz; e perante a presença da lua, como um namorado da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa Júlia um beijo... demoradamente...

Mais um aperto de mão e separei-me do meu anjo...

II

Dous longos dias se passaram, sem que eu tornasse a ver a minha Júlia, o meu primeiro amor...

Comecei a ter remorsos de não haver perguntado à mocinha quem eram seus pais, quem era ela, dizendo-lhe quem era eu também. Não quis informar-me para não despertar suspeitas. Resolvi esperar.

Debalde porém, postei-me à noute no lugar da minha entrevista.

Júlia não voltou.

Na terceira noute depois do momento mais feliz que tive na minha viagem, vi um homem dirigir-se para mim. Um marinheiro.

Vinha sério e como que tímido.

Cumprimentou-me, cumprimentei-o.

Eu estava à proa do vapor, vendo as ondas passearem à luz do luar, que continuava admirável como na noute de meu beijo. Era tarde.

— Sr. Júlio, disse o marujo, chamando-me pelo meu nome, sem querer, eu o vi, noutro dia, beijar uma moça... Queira acompanhar-me... vai ver uma cousa interessante talvez para o senhor...

Fui com o marinheiro para o tombadilho.

— Fique aqui e espere, mandou ele, indicando a entrada do beliche de um meu amigo de bordo... solteiro e folião...

Mal acabara o homem de falar, vi sair do beliche uma mulher...

Júlia!

O marinheiro olhava-me com um ar compadecido. Juro que tive ímpetos de dar uma bofetada neste homem de bem.

III

Momentos depois, pensa o leitor que estava eu resolvido a suicidar-me?...

Dei uma gargalhada.

 

O FRUTO DA FORMOSURA

Em princípio, ele era pequenino; uma ligeira elevação de carne infantil, macia como a polpa de um fruto esquisito; tinha um biquinho, rubro como uma cereja microscópica; tinha dous anos, então: recebia as carícias maternas de uns lábios ardentes e amorosos.

Foi crescendo... crescendo...

Já lhe notavam tendências para a bela forma redonda. A carne branca, polpuda, elevava-se pouco a pouco.

Foram-no cobrindo, zelosamente de cambraias e fitas.

Em pequenino, andava tantas vezes nu, gozando o contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme. Exatamente quando mais lindo ficava, é que o queriam esconder como uma cousa indigna.

Este escrúpulo avultava com o tempo.

Esconderam-no cada vez mais, e cada vez mais, do fundo do seu retiro de linhos e cambraias finíssimas, o indiscreto erguia-se, cercado de rubores incertos e nômades, que percorriam-lhe a epiderme, semeando calor; erguia-se como quem sabe que vai a fazer-se sedutor e deseja que o vejam e o adorem...

Mas a cruel cambraia subia também, com uma impertinência ciosa e avara; o pobre via-se condenado àquela prisão cálida e escura, que o sufocava ferozmente.

Ah! quem lhe dera sentir as auras frescas da tarde e os orvalhos da madrugada; viver à luz dos sóis e dos luares, despido, desembaraçado e nu, como os jambos rosados e venturosos!...

Despiam-no, é certo, mas unicamente para respirar o ambiente morno e viciado das alcovas.

Era nessas ocasiões que ele via como estava belo; mirava-se nas banheiras e nos espelhos, namorava-se como um narciso, o pobre...

E como torturavam-no, depois, aquelas faixas com que o comprimiam!

Parece que havia empenho em deformá-lo, contrariando a natureza que o aviventava. Entretanto, ele resistia e triunfava!

A delicada forma cônica dilatava-se-lhe, encurvava-se, sobressaía com a íntima energia de um botão de magnólia que vai desabrochar em largas pétalas. Sedutor cada vez mais.

Tornou-se tímido. O recato da cambraia que o contrariava agrada-lhe então.

O próprio ambiente morno da alcova parece feri-lo com um contato sacrílego.

O sofrimento que então o tortura já não é a contrariedade daqueles panos que o abafavam.

O sofrimento consiste em pancadas íntimas, violentas, que o agitam e mortificam.

Está amando, o pobre...

Por fim, expande-se.

Rasgam-se os linhos e as cambraias, e dous lábios impetuosos, sedentos, vão lá ao fundo violar o recato do amante misterioso e invisível.

Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena maturidade.

Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele como a parasita que vive da vitalidade alheia...

..................................................................

Então começa a decadência.

O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...

Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos, húmus fecundos da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das novas primaveras, vorazes, egoístas...

É quase a história comum de todos os frutos.

 

O HINO AURIVERDE

I

Era pelas últimas horas de uma tarde admirável.

A estrada torcia-se como uma serpente enorme, recolhendo-se cuidadosa às sombras vertidas pelo chão juntamente com as folhas secas escapadas aos fartos penachos do arvoredo.

O sol passava por cima da floresta, vergastando com chibatadas de fogo os grelos tenros da ramaria e os grelos deixavam-se cair exaustos sob o suplício.

Apareceu então na estrada uma espécie de mendigo. Seguia lento, cabeça inclinada; amparava-se a um pau mal desgalhado e trazia na mão um pedaço de corda. De vez em quando o sol furava os ramos e jogava-lhe à nuca um punhado de fogo.

II

O mendigo não sentia as garotadas do sol. Ia refletindo, remordendo meias palavras, nessa reflexão difícil de um espírito obscuro e selvagem. Pensava naquela infâmia de pele preta, que lhe haviam colado à carne; naquela robustez maldita, que parecia querer eternizar-lhe o suplício do cativeiro; recordava-se das chicotadas do cafezal, daquele trabalho cruel que mal rendia-lhe a farinha abjeta da ração... E que tempo havia!... Dantes, ele tinha o cabelo preto e a pele lisa; agora os cabelos estavam como paina, brancos, brancos, e a pele riscada de rugas... Só ficara-lhe dos primeiros anos o pulso rijo para o eito e a canela forte para as pernadas. O tormento da força.

III

De súbito, no meio dos sussurros indistintos do mato, feitos de chilros de pássaros e de marulho de folhas, ouviu-se um acorde que não era o canto das folhas, nem a conversa dos passarinhos.

O mendigo preto parou. Pôs-se a ouvir aquela música melancólica e agradável, que entrava religiosamente na mata, como a nota de um órgão.

A povoação estava perto. A música era um realejo que se tocava.

— Aqui está bom, disse o velho escravo.

E preparou com a corda um laço.

O realejo executava, então, uma outra peça. Tinha o mesmo tom vagaroso e triste, como se estivesse combinado para acompanhar os preparativos sombrios do escravo.

IV

À beira do caminho havia um tronco notável, que estendia acima da estrada um galho musculoso como um braço enorme, terminando como um punho colossal, fechado e ameaçador.

O escravo subiu e sentou-se tristemente sobre os músculos magníficos desse braço hercúleo. Lançou alguns olhares para o seu bastão, que ficara lá embaixo. O único companheiro e o derradeiro amigo.

Enfiou depois o pescoço no colar sinistro da sua corda. Prendeu-lhe a outra ponta ao punho arrogante, fechado para o céu...

V

O céu brilhava azul, como um pensamento de criança: e, no meio das bonanças harmoniosas daquela tarde serena, voava, macia como uma nuvem tênue, a solfa queixosa do realejo.

Aquela música!... aquela tarde...

O velho escravo levantou os olhos, do bastão, para o espaço; foi, sem tremer, até a ponta do galho que o sustinha, e escorregou...

VI

Naquele instante, o realejo tocava para os meninos da povoação as harmonias patrióticas do hino nacional...

 

OLHOS

Era um comprido velho, magro, de longos braços, pendentes como esses ramos dos pinheiros, que as gravuras representam debruçados às escarpas, sobre catadupas, ou sobre abismos. Rigorosamente trajado de preto, cismador e melancólico, produzia-me o mesmo efeito das lutuosas árvores das paisagens setentrionais.

Ao lado dele, em violento contraste de cor, vestida de branco, numa toilette refolhada de musselina, com um laço negro, a prender os cabelos, caminhava uma menina.

O velho acariciava a criança, sob um olhar de ternura; a menina com a cabeça muito voltada, porque o velho era alto, sorria para ele e segurava-lhe a grande mão descarnada nas suas pequeninas, alisando-lhe com amor os dedos, delicadamente.

Aproximaram-se.

O velho, apesar dos cabelos brancos, não o era tanto, de perto, como me parecera, à distância. Dir-se-ia encanecido pelas neves de um inverno precoce, adiantado pelos dissabores da vida; a que resistira, entretanto, a relativa frescura da fisionomia.

A menina era graciosa, mas feia. Devia ter sete anos. Aparentava trinta, com aquele arzinho de senhora e o rosto moreno, magro, de maçãs pronunciadas e os olhos rasgados, pensadores, como desiludidos há muito dos enganos da infância.

Passaram por mim; o velho cortesmente, cumprimentou-me com uma inclinação de cabeça. A criança imitou com graça a cortesia do velho. À primeira curva da alameda, sumiram-se, devorados por uma escura garganta de bosque.

Vi-os, essa vez, no Passeio Público. Tornei a vê-los no dia seguinte. Vi-os depois, todos os dias, por muito tempo, até que, mudando-me para longe, deixei de visitar, pela manhã, o deleitoso Jardim do Boqueirão.

Agora, há dias, dez anos decorridos, passando casualmente, de bonde pela rua do Passeio, às 8 horas, às horas do flânerie matinal do outro tempo, deu-me vontade de entrar no jardim.

Caminhando ao acaso, satisfeito de sentir a brisa do mar, que chegava muito fresca, através das árvores; e o festivo sol domingueiro peneirado dos ramos, traçando arabescos dançantes na areia, ao acaso, fui dar com o banco de pedra onde outrora sentava-me e do qual via passar o velho alto, de braços pendentes e ar melancólico de pinheiro das montanhas, com a criança de branco, de sete anos e grandes olhos pensadores...

Como fazia, outrora, sentei-me e fiquei a pensar nas cousas todas do meu passado que se ligavam à recordação dos passeios, tornando a ver, em toda a realidade representativa da cisma, o velho de preto a passar e a criança.

Assim estava eu, quando senti que alguém pousava a mão sobre o meu ombro.

Volto-me bruscamente. Um homem estava ao meu lado. Sentado como eu, olhava-me.

E quem havia de ser?! O velho!... o velho dos meus antigos passeios! O mesmo homem de preto, magro e alto com a mesma expressão desolada das árvores dos montes!...

— O senhor! exclamei, com um espanto fácil de calcular.

— Eu mesmo, caro senhor... Reconheço-o, tal qual o senhor me reconhece.

— Parabéns ao acaso, que me fez encontrá-lo... uma pessoa que conheci em dias agradáveis do meu passado!...

— O seu encontro, infelizmente a mim, só me desperta recordações amargas...

— Recordações amargas...

— Recordações dolorosas... Tão dolorosas que me levaram a importuná-lo... É quase doçura a confidência dos pesares... E o senhor que me viu com ela bem pode compreender-me... Lembra-se da menina?...

— Lembro-me... aquela gentil criança...

— Tão meiga, tão boa... morreu!... A minha Ema...

"Quando, outrora, nos encontrávamos aqui, eu vinha com ela a passeio... Queria distraí-la da lembrança da mãe, que tudo, tudo em casa recordava... a pobre morta que me deixara a inocente... Aquela filha era a minha vida. A luz daqueles olhos bania as sombras da minha sorte. Minha pobre alma vivia naquele raio de olhar como vivem as cores do íris, numa réstea de sol.

"Nasci na roça, muito longe do torvelinho detestável das praças... Os olhos da criança, profundo espelho das minhas saudades, mostravam-me o brilho das manhãs da minha mocidade... Eu via-lhe dentro das negras pupilas, a vivenda alegre de meus pais, a verde paisagem onde correram os meus folguedos de menino, a revoada das narcejas sobre a lagoa...

"Morava solitário e triste numa rua estreita e escura. Nos dias chuvosos, vivíamos num crepúsculo desagradável. A lembrança de minha mulher e dos dias felizes da família, cruciava-me especialmente, nesses dias anuviados... Pois, era bastante um olhar da minha adorada Ema, um olhar! e as tristezas fugiam; das nuvens de chuva coava-se para mim um dia claro... Que se espessasse a valer o teto de chumbo da borrasca!... Para mim fazia sol!... No ar vibravam sutilmente, ao longe, notas de música, oscilantes e vagas... Nos olhos dela eu via o céu imenso e as andorinhas, muito alto, em chusma, brincando como sorrisos no azul.

"Ema valia todo o meu passado... Eu que apreciei a leitura e que fui amigo de acompanhar, do meu sossego, a novidade dos acontecimentos, o rumor da vida, nada mais lia que os poemas daquele olhar, nada mais observava que a vida intensa daqueles olhos queridos... Ema era a minha vida presente, como o meu passado...

"Morreu!...

"Também foi bom... A pobrezinha era feia... Morreu aos dezesseis anos. Vivia triste de se achar feia: ninguém havia de amá-la; tinha-lhe amor o pai; mas, pobres das que não são belas! era isso bastante?... Ema gostou de morrer: morreu sorrindo...

"Entretanto, Deus sabe, que magia celeste lhes morava nos olhos, que paraíso inefável Ema guardava ali nas pálpebras, onde eu às vezes me perdia extasiado, como se, realmente, se me soltasse o espírito para uma região alheia a este mundo, vasta, ilimitada, suavemente iluminada por um clarão difuso de estrelas."

 

O PERFUME DOS BOLOS

Já lá vão seis anos...

Eu via sempre, por volta das dez horas, passar-me pela porta a pequena Berta.

Era a filha mais nova do meu vizinho confeiteiro.

Que linda Berta! Chamavam-na, por graça, a menina azul. Dava razão a isso o saiote azul, que ela trajava sempre, e o corpete de cabeção, azul ainda como a saia, e os olhos cor de céu e os louros cabelos quase brancos, com brilhos metálicos anilados, e, ainda mais, a coloração fina que sombreava-lhe a alvura da face, reflexo não sei se do corpete azul, se do azul luminoso dos olhos.

Perfeitamente encantadora, a criança...

À pequenina da minha rua, um freguês do confeiteiro comia bolos ao almoço.

Berta os levava.

Eu gostava de vê-la passar, trazendo nas mãos, à altura dos ombros, uma pequena bandeja, coberta por um guardanapo alvíssimo. Mais lindos sete anos, nunca vi, nem mais perfumosos bolos.

A menina passava, caminhando rápido; altiva e tímida como uma antílope. Os cabelos cortados rente, deixavam-lhe descoberta a nuca, móvel e branca como um pescoço de cisne. Após ela, ia o apetitoso perfume da massa tostada dos bolos, quentes e fumegantes ainda.

Berta atirava-me um sorriso de malícia inocente e ficava logo muito séria, quase ameaçadora. Eu lançava-lhe punhados de violetas, só para vê-la pisar as flores com o seu adorável desdém...

De repente, Berta desapareceu. Perguntei por ela. Morrera.

............................................................

O freguês da esquina ainda come bolos, ao almoço, como há seis anos.

O meu vizinho confeiteiro ainda os fornece como outrora.

Apenas já não os leva a menina azul.

Há seis anos que os portadores variam.

Atualmente, quem passa com os bolos, é um garotinho maltrapilho, que anda de cabeça baixa, desconfiado, olhando de través, com uns modos de cãozinho escorraçado...

Para mim, entretanto, apesar dos meus olhos, é Berta ainda quem os leva.

Quando o garotinho passa é a menina azul que eu vejo.

Aquele perfume de massa tostada e quente desperta-me ao vivo o risonho quadro das boas manhãs doutro tempo.

Distingo o olhar e o sorriso de Berta, os seus movimentos tímidos e altivos de antílope; vejo-a ainda pisando com o seu adorável desdém as minhas pobres violetas...

O garotinho, com certeza não sabe porque sorrio-me para ele, quando ele passa.

Responde ao meu sorriso com uma careta amável, ingênua e idiota...

Um destes dias, pediu-me um vintém...

Apesar de tudo, para mim, a portadora dos bolos continua a ser Berta, a menina azul.

 

OS GATOS E OS CÃES

(Psicologia cano-felina)

Desde o histórico amigo do bíblico Tobias, que acompanhou-lhe o filho à miraculosa torrente d'onde devia sair o peixe destinado a curar a cegueira do patriarca, até os celebrados cães de S. Bernardo, passando pelo cão que lambia as chagas de Jó e pelo desrabado animal de Alcebiades; desde o heróico e selvagem companheiro dos esquimaus, que arrosta as temperaturas, levando em turbilhão o trenó, por meio das regiões brancas e frias do ártico, até o mole e macio King-charles, saboroso companheiro dos longos ócios tropicais das cocottes, tudo tem sido poemas em louvor do cão.

Decantam-lhe a bravura; decantam-lhe a fidelidade; incensam-lhe a beleza; elogiam-lhe a obediência; apologiam-lhe a dedicação. Companhias de seguro gravam-lhe a efígie em douradas placas, para garantia contra o fogo; honrados burgueses erigem-lhe estátuas de barro vidrado sobre os capitéis de pedra e caldos portões da chácara: tudo é um aplauso unânime e universal.

Entretanto, o gato, o bravo vigilante das horas mortas, sentinela perdida da meia-noite, passeando à luz misteriosa do luar com os olhos faiscantes como baionetas, para tranqüilidade dos armários e para desgraça dos roedores caseiros; entretanto, o digno gato, o honrado gato, deixam-no de lado, no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas; caluniam-no, excomungam-no e o desamparam, quando muito, aos esqueléticos carinhos de alguma velha bruxa semifantástica, amiga dos morcegos, dos mochos e das caveiras de burro fatídicas.

Pobre gato!

Nos seus minutos de cisma, quando, pousado no peitoril claro de uma janela da casa que habita, lambendo as patinhas e as munhecas asseadas, o gato reflete nos destinos da vida, talvez esteja a pensar consigo, que muito pouco lhe custaria apanhar a glória do cão. Bastava-lhe o sacrifício da própria dignidade; bastava-lhe alienar a sua autonomia felina e pôr de lado os seus orgulhos de sangue.

A glória do cão vem somente disto; o cão escravizou-se.

O gato nunca teve um dono.

Nestor de Roqueplan escreveu que o gato não é animal doméstico do homem: o homem é que é o animal doméstico do gato.

Tinha razão o perspicaz e fino Roqueplan.

Quando se diz: - este gato é meu, diz-se: - eu sou deste gato.

E o motivo é límpido: quando o dono não agrada ao gato, o digno animalzinho deixa-o como quem abandona um traste velho.

Toda a fanfarronice trovejante do cão pode-se-lhe domar a chicote. Ensaie-se a violência com o gato...

O cão dedica-se, sacrifica-se por conta do seu dono, nunca por conta própria. O cão é fiel, bravo, dedicado, sublime; mas infamemente. Tem a dedicação, a bravura, a fidelidade, a sublimidade do infame, do escravo. No fundo das suas ações acha-se a vontade do dono; nas suas decantadas bravuras, o cão não existe.

O gato, ao contrário, é autonomista. É valente, heróico, sagaz, cheio de inteligência, mais talvez do que o cão, e tudo nobremente, convictamente; certo de que, antes de tudo, ele é Feliz.

Sente nas veias o sangue quente do tigre; lembra-se que os da sua raça terrível vagam pelas florestas, como reis, em guerra de morte com o homem, que lhes invade o império; recorda-se talvez do bafejo quente das soalheiras de Bengala, onde rejubilam-se os seus congêneres, olhando de frente, através da ramaria, o perfil religioso e enorme dos pagodes, arraial dos homens; esperando bravamente o combate, na mata virgem no arraial das feras.

O gato sabe que é um pequeno tigre; que podia embriagar-se de floresta como os seus irmãos de raça, e que, menos inflexível que os outros, quis entrar em aliança com o homem, por iguais interesses das partes contratantes. Possuída desta convicção, é que a digna criatura desenvolve os seus talentos, na casa dos homens. Incapaz de uma baixeza, vai vivendo à medida dos seus recursos. Se alguém o acaricia, ele aproxima-se, contorcendo-se mansamente, em afetuosas ondeações de espinha, e entrega-se confiado ao amigo...

Despreza solenemente o cão, ama lascivamente o sol e as claridões. Quando roça-lhe o pêlo de cetim um feixe de luz solar, enrodilha-se todo, dorme e ressona como um prior satisfeito. Não treme, à beira dos precipícios, como os cães.

A vertigem das cimalhas é o seu prazer. Não se deixa levar às feiras como qualquer botocudo idiota, ou qualquer cãozinho pretensioso e fútil. Tem habilidade, mas para o seu uso.

Não sabe cair grotescamente como um burguês gordo que tropeça, ou como um rei velho que escorrega. A sua queda é elegante como a de César. Cai sempre firme, sobre as quatro patas, venha de que altura for. Não conhece o estigma da coleira, nem a perseguição aviltante do fiscal.

Tudo diverso do cão.

A cadela é a charra odaliscazinha das sarjetas. O cão é o bandalho de esquina que vai, de pontapé em pontapé, acabar com lepra num cano de esgoto.

Entretanto, os amores do gato são trágicos como as punhaladas dos Bórgias. Passam-se à noute, como os grandes meteoros do céu e as cousas fantásticas da terra.

Podem ter por confidentes a estrela dalva e a cotovia matinal, como os amores de Romeu. Os gatos batem-se pela sua dama como os heróis da cavalaria e como os tigres da mata. São bravos e apaixonados até o sangue.

Os sete fôlegos que lhe atribuem, ele os despende sem avareza, quando em proveito da própria dignidade ou da própria paixão.

A morte do gato é quase sempre um mistério. Não morre; desaparece como o Rômulo sagrado da lenda. Não dá-se ao luxo canino de apodrecer nas praias.

Assim é que bem se consola o gato, nos tácitos queixumes das suas cismas...

O cão tem incensadores que o exploram e que o infamam.

Tem golilha, como um forçado; como um escravocrata, não tem vergonha.

Esta falta de brio e essa coleira levam-no a toda a parte, encadeado ao homem. Penetra no convento com a mesma cara com que barafusta pelo teatro; segue a trote miúdo o préstito triunfal das ovações, e vai depois acompanhar a mula do carvoeiro; visita os templos da virtude e os gineceus da vergonha, sorrindo sempre, baixamente, com a cauda e com a língua.

Adula sem fazer questão de lugar.

Ambiciona só isto: - um osso. Mas não desdenha os bons bocados dos banquetes, nem o sebo nauseabundo dos trilhos da rua...

Glória por tal preço... Antes a secular obscuridade nobre do gato. Faltam-lhe tradições, porque falta-lhe a escravidão e a infâmia.

Em última análise, o cão é um miserável.

Fora da linha dos animais, por uma degradante domesticidade, não conseguiu entrar pela fileira dos homens. O gato conserva orgulhoso o seu tipo definido de fera dócil. Não balança nas oscilações da natureza humana, porque tem as suas próprias, da natureza felina.

O cão, seja lícito dizer-se, é o homem através do temperamento canino.

O gato é simplesmente, nobremente, - o gato.

Por isso é que nas alegorias, entra o gato como pilhéria e o cão como insulto.

Enquanto um atravessa, risonho, à disparada, por uma página de caricatura, vai o outro de envolta com uma panela de lama para a cara de um tratante.

Há uma cousa entre os homens que chama-se cinismo: é a arte de ser cão. A arte de ser gato ainda não foi inventada; nem há de ser.

Em suma derradeira indenização do sempre olvidado gato - de todas as criaturas que podem ser atreladas a uma verrina crepitante e vingadora, burro, jumento, touro, tigre, hiena... nenhuma, nem uma só, leva mais longe do que o glorioso inimigo do gato.

— Cão!

Este insulto tem mais alguma cousa do que três letras; tem três pontas como o chicote siberiano.

Esta palavrinha curta, áspera, rápida, se ainda não é o faz o mesmo escarro, já passou de articulação.

Digam-na para ver se a garganta não quando cospe-a e quando cospe um escarro:

— Cão!

.................................................................

Damos publicidade a estas estranhas considerações que o acaso entregou-nos, para não desesperarem da justiça os raros amigos do simpático e sempre olvidado povoador dos telhados.

 

O MAL DE D. QUIXOTE

Foi um dia apresentado ao Dr. X..., alienista notável do Rio de Janeiro, um curioso enfermo, vítima de uma singular mania.

Singulares são, em última análise, todas as manias de louco; entretanto, a do caso a que aludo, possuía a notável qualidade de consistir numa cousa que tinha seus ares de teoria, através da qual uma sólida corrente de argumentação arrastava o espírito demente ao mais estranho disparate.

— É preciso extraí-lo, raciocinava o louco... O coração é uma víscera perfeitamente tola... Não passa de um estúpido fole, soprando sangue pelas artérias, em vez de ar... A ciência pode trocá-lo por um aparelho qualquer, que o substitua na função de centro circulatório, evitando, contudo, as regalias morais que goza a tal víscera da minha implicância.

"Ne sutor ultra crepidam, ouvi sempre dizer. Se o coração se contentasse com o papel fisiológico de fole, de bomba de compressão, e lá se conservasse modestamente, no fundo da sua gaiola de costelas, a trabalhar obscuro e honrado, nas suas diástoles e sístoles, eu não exigiria que mo extraísse como um obstáculo que estraga-me o organismo e a vida; mas o intruso esquece que nasceu para fole; mete-se pelos domínios da existência moral, a fazer concorrência com os sisudos miolos, e deita, então, quanta tolice pode fazer o sapateiro de Horácio.

"Talvez eu passe por doido, mas afirmo que, se tenho tentado arrancar esse músculo e se exijo a extirpação desse órgão nocivo, ainda que me arrisque a sucumbir, é que muito tenho refletido no assunto, e as minhas convicções contra o coração vêm de longa data, penetraram com valentes raízes no meu espírito.

"A vida dos homens é o positivo. Fora do positivo, existe, apenas, o vasto mar do ridículo. A pilotagem da vida consiste em evitar o naufrágio no grande mar.

"Todavia, o naufrágio é quase inevitável, porque o navio leva uma carga enorme e irrequieta, que faz variar constantemente o centro de gravidade e perturba a todo o momento a flutuação regular.

"Esta carga é a tal víscera.

"Carga ao mar, pois! libertemos a nau!...

"O positivo é o sério, é o grave, é o normal, é o burguês, é o vulgar, é o comum, é o tranqüilo, é o prudente, é o fecundo; é o almoço de todas as manhãs e o jantar de todas as tardes; é a herança para a prole. Fora disso, o exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idealista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente; o pão nosso de cada dia, no mais restrito sentido dominical; o tolo, o desfrutável, em suma.

"É sempre o mesmo abismo de ridículo, ameaçando o sério e o positivo.

"E procuremos o que nos faz pender constantemente para o abismo do desfrute... É a víscera; é a víscera fatal!...

"O coração produz, na família, o enamorado, um tolo; na sociedade, o herói, outro tolo; na literatura, o sentimental, outro tolo; na filosofia, o melancólico, mais um tolo...

"Enamorado, herói, sentimental, melancólico, tudo gira numa vertigem de ridículo, debaixo do grande olho positivo, que ri, como quem vê arder a barba do vizinho, e vai deduzindo em silêncio as gordas e proveitosas normas da experiência.

"Savoir vivre!...

"O coração é o pai do ridículo pungente. Há quem ache graça no idiotismo e na asneira. Isto é o ridículo banal e fútil.

"Ridículo miserável, profundo, é o das vítimas do coração. É o ridículo propriamente dito; é o ridículo humano.

"Pôr um termo a este mal parece-me um dever elementar da ciência. Sabe-se que a origem do mal aí está palpitando, por entre a quarta costela e a quinta.

"A medicina reflita...

"Tanto mais que não é só o fato objetivo do ridículo que condena o coração. É, ainda mais, o fato subjetivo dos sofrimentos rudes que causa a víscera a quem a traz, cada vez que dá em espetáculo às gargalhadas positivas uma fraqueza e uma tolice da criatura humana.

"Não há nada mais salutar do que o riso. Entre outras vantagens, tem a grande vantagem de não ser a lágrima.

"O riso é a mais agradável manifestação do positivo.

"Quem solta a gargalhada, tem a superioridade de não ser o palhaço.

"Riamos, com os diabos!... Vale mais mofar do que ser mofado.

"No circo da vida, a gargalhada ocupa as arquibancadas anfiteatrais. No meio, faz caretas e macaquices o grotesco, o ridículo, o náufrago da víscera.

"O homem que ri, está fora do picadeiro. Cuidado com a víscera, que ainda leva-te para dentro!...

"É preciso, portanto, que se resolva um meio de abolir o risco de rolar da arquibancada.

"É o que eu procuro.

"Quem sabe bem rir, não cria tropeços à própria liberdade.

"Há uma cousa que chama-se o amor, e uma cousa que apelida-se o ódio. A liberdade positiva tem os pulsos ligados por essas duas algemas. Descubram a outra ponta da cadeia, que hão de encontrá-la soldada ao maldito fole do sangue.

"O amor faz a fidelidade, a dedicação, o cativeiro voluntário e outras cousas que a linguagem, com o seu modo astucioso de resolver as dificuldades, denomina virtudes; faz também, transformando-se por movimentos reflexos, ou paralelos de espírito, o que se chama a indignação, a revolta, o ciúme, a vingança, o ódio, enfim; e certas cousinhas que ainda a linguagem, sem grandes argumentos, especializa com o rótulo de vícios.

"Tudo isso é uma série de algemas, que prendem duma ou doutra sorte. Apaixonado significa acorrentado. Quem ama, prende-se; quem odeia, prende-se. Só é livre quem ri.

"Por isso é que o riso é salutar e raro.

"A gargalhada é essencialmente filha do cérebro. É livre como o sátiro do bosque.

"Viva a gargalhada!

"Quem dá vaias, não as leva.

"É a grande garantia da gargalhada. Contra esta garantia existe a víscera-fole. Risque-se a víscera, em nome da liberdade, ou ao menos em nome da seriedade positiva da vida.

"Dizem que Molière é a comédia... Eu não penso assim. Moliêre escreveu o drama dos idiotas, encenou a parvoice fútil. Para mim, a comédia, a comédia real veio de Inglaterra com aquele pobre Romeu, que passava noutes a cantar serenatas embaixo da varanda da namorada, entoando com os galos; ou ia de madrugada subir por escadas de corda, sem pensar no papel que faria, se a polícia o agarrasse como um gatuno.

"Cômico, para mim, é o furibundo barba-azul do Otelo, que seria um tanto mais brando, se temesse o código. Cômicas são todas essas caricaturas de malucos, engendradas pelo poeta psicólogo inglês.

"A comédia de Shakespeare é na verdade triste. Mas é triste, porque é real; e é triste somente para quem não sabe rir dessa cousa tola chamada paixão.

"Comparados Romeu e D. Juan, o nosso Romeu não passa de um principiante, que não entende do riscado, e que ainda suspira, à luz de alvoradas, como a gata ao cio.

"É que D. Juan sabe rir.

"Certo é também que na comédia de Shakespeare há sangue; mas isso não obscurece o grotesco.

"Triboulet, que começa por fazer rir, acaba por fazer chorar.

"De mais, o sangue da comédia inglesa é a última conseqüência da ridícula soberania do fole circulatório. É requinte sui generis do desfruto.

"Quando aquela gente suicida-se, ou cai assassinada e mesmo quando assassina, ouve-se o bom senso positivo, burguês e prático dizer: - pobres diabos!

"O positivo é que é o verdadeiro. É preciso conciliar-se tudo com ele.

"As nevroses constituem a praga da humanidade.

— Guerra às nevroses!

"A cidadela das nevroses é a famosa víscera.

"Arrasemos a cidadela!

"Sim, meu caro doutor, já é tempo de lançar-se mão aos freios da estafada cavalgadura de D. Quixote, que vai desastradamente passeando a gesticulação ossuda do seu entusiasmo cavalheiresco, por entre a vaia das gerações!

"Já é tempo de suspender-se este espetáculo do cavalheiro da Mancha, eternamente bom, mas eternamente tolo!..."

...................................................................

O médico, que acompanhava extasiado a estranha dissertação do louco, concentrou-se por momentos, e disse-lhe:

— Esteja tranqüilo, meu amigo, não pense mais nisto; eu vou extirpar-lhe o coração... vou curá-lo.

S. Paulo, junho de 1883.

 

O MODELO DO ANJO

I

Estava aberta a exposição.

O bonito frontispício da Academia de Belas-Artes arregalava as janelas, como grandes olhos satisfeitos, e, com fome pantagruélica, ia devorando a multidão que se lhe enfiava pelo pórtico. A fachada despia-se de sua melancolia de pedra, e parecia abrir-se num vasto sorriso. E as flâmulas e bandeiras fincadas nas cornijas, com que atiravam das suas dobras multicores punhados de alegria sobre os que entravam.

Na área semicircular que existe diante do edifício apertava-se o povo, arquejando aos calores da mais límpida soalheira. Ali suava a impaciência, debatendo-se aos empurrões.

Acabava de ser franqueado ao público o ingresso no edifício.

O imperador, que assistira à abertura da exposição acompanhado dos visitantes de convite especial, tinha já ido embora, feita a sua visita às salas de trabalhos. Chegara a vez de todos. Todos queriam entrar.

Um homem, entretanto, se conservava à distância, e estava parado junto de uma das paredes do conservatório, olhando para o povo.

Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho. Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisticamente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica, e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de prata. Semeava olhares por aquela multidão sufocando-se para entrar no templo das artes. Um sorriso vago passeava-lhe nos lábios:

— Que entusiasmo! murmurou, não me é possível entrar hoje...

Estas palavras, ditas distraidamente, foram ouvidas pelas pessoas mais próximas, que viram-no depois retirar-se andando compassadamente, e desaparecer no Rocio.

O interessante personagem encaminhou-se para a rua do Ouvidor. No adro de S. Francisco de Paula um moço que passava, saudou-o, tirando o chapéu:

— Sr. comendador!...

Pouco mais adiante um homem parou-lhe em frente.

Era Vítor Meireles.

O nosso comendador fez um gracioso cumprimento ao pintor, que, sem preâmbulos, perguntou-lhe:

Então, caro mio, como vai a sua Visão?

Apenas desenhada...

— Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime... Já se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de rosas, meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, vai dar ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da menina e a túnica abundante e leve do anjo que arrebata a criança através da luz, prestam-se para um ensamble majestoso, não falando nas lindas combinações de reflexos que virão por .... Oh! eu imagino!.. O seu quadro vai fazer barulho... Vamos ver aqui no Rio um painel religioso digno da Renascença...

— Ora, Vítor!...

Qual ora!... Eu não o conheço e você não me conhece?... Quer ouvir o que eu digo?... Entusiasmo e perseverança, que você terá um sucesso...

— Qual! Não espero grande cousa..

— Verá... E depois mande-o à Itália, para experimentar...

— Que homem para dizer cousas bonitas!... Verdade é que você me está animando... Eu hei de trabalhar com gosto, fique certo... Olhe... além do croquis do schizzo que você viu... já executei estudos especiais das figuras... já fiz na tela o desenho do conjunto... Encontrei, porém, uma dificuldade. Falta-me um modelo... Quero dar ao meu anjo um rosto que seja ao mesmo tempo um reflexo deste mundo e do outro; um meio termo entre o idealismo do sobrenatural e a realidade terrena, que faça sentir que o anjo é do céu, mas acha-se na terra; em suma, a fusão da beleza etérea com a beleza que se apalpa. Quero um rosto que preste para receber os toques do meu ideal, uma carinha própria...

— Uma carinha de matar a gente, observou, rindo, Vítor Meireles...

— E não encontro...

— Não é fácil... não é fácil...

— Bem o vejo... Na Itália fora menos difícil. Há muita mocinha para modelo... Aqui está-se como num deserto... muita moça bonita... modelo... nenhum! Ninguém quer ser...

— Eu tenho um... talvez...

— Bonita?

— Admirável... da cabeça aos pés...

— Que idade?

— Vinte e três anos.

— É muito velha... Em todo o caso, se ela quiser...

— Pagando-se bem, ela quer.

— Se quiser e servir... Onde mora ela?

— Rua... número...

— Hei de vê-la... Preciso ver tudo... Ando sequioso como um conquistador...

— Tem motivos.

Algumas palavras mais trocaram os pintores; depois, cada um foi para sua banda.

O comendador, ou Giacometo, como o chamara Vítor Meireles, entrou na rua do Ouvidor e desceu até à dos Ourives, examinando com interesse o semblante das jovens transeuntes.

Pela rua dos Ourives dirigiu-se à da Ajuda, e lá entrou em um corredor do lado esquerdo.

II

Entremos. Tem-se primeiro que subir uma escada. No alto da escada há uma pequena sala de recepção, forrada de azul, bem arranjada, que dá para uma outra sala muito clara, muito arejada, com janelas para a rua e fisionomia de atelier. Grande mesa ao centro, coberta de pincéis, palhetas, tintas, rolos de tela, frascos de óleo e aguarrás, em ativa confusão. Por volta, as paredes encobertas sob uma nuvem de quadros bem acabados, mas sem moldura. Nos cantos, diversos cavaletes com pinturas por concluir, dos quais destacava-se um maior sobre o qual se via uma grande tela já riscada e com algumas pinceladas a esmo... Era a casa de Carlo Giacometo, um valente pintor, educado em Roma e Milão, que vira o dia na cidade do paganismo formidável e do catolicismo dos Papas, à sombra inspiradora do zimbório de S. Pedro.

Estava no Brasil, havia dois anos somente. O seu coração de artista o trouxera. Haviam-lhe falado de um grande país, onde o homem se compreende pequeno ante a grandeza esmagadora de tudo o que o cerca. Nesse país não se sonha o ideal, porque o ideal palpita no céu profundo e azul, nas matas ínvias, na rocha esfolada pelas cachoeiras e no sol que dá fulgurações a tudo. Ele quisera ver.

Sim, que Giacometo era um artista.

Tinha maneiras de olhar e movimentos que pareciam estudados à vista de um ensaiador. Estava sempre como que apertado num círculo de conveniências artísticas com que se dava perfeitamente. As próprias dobras do vestuário amarrotavam-se-lhe graciosas, tal qual se fossem corrigidas a dedo. Um artista, da periferia até o âmago.

Não admira, pois, que ele houvesse feito viagem para o Brasil por amor do belo.

Graças aos auxílios de Júlio Mill, um notável paisagista francês, que aqui viveu obscuramente e na obscuridade morreu, Giacometo estabeleceu-se. Fez relações com os artistas mais distintos da nossa roda de pintores; arranjou discípulos e encomendas, que davam-lhe bastante para levar a vida sem tocar na pequena fortuna que possuía na Itália..

Até à época da nossa narrativa, Giacometo não tinha executado senão pequenos quadros e retratos, muito apreciados pelos conhecedores, mas impróprios para fazer sensação. O seu sucesso devia ser a Visão, o belo projeto que conhecemos.

Era encomenda de um rico visconde, que queria ter no seu gabinete a lembrança viva de uma filhinha que perdera havia tempo. O visconde tomava imenso interesse pelo quadro, e não apertava os cordões da sua generosidade para recompensar o artista.

O motivo do quadro era delicadamente arrebatador, para uma alma como a de Cario Giacometo.

A recompensa era deslumbrante. Tudo convidava.

Carlo atirou-se à empresa com toda a vontade, com todo o fervor, com toda a consciência.

Não era para menos. Tratava-se da sua reputação em país estrangeiro, da sua glorificação talvez. Away!

Em pouco tempo estavam feitas as despesas urgentes: tintas, tela, pincéis novos. E Carlo preparava croquis, ensaiando-se para a grande execução. O fogo do seu entusiasmo foi vivamente atiçado pelo aplauso dos artistas de nota que examinaram os croquis. Houve até um pintor que pediu-lhe antecipadamente o pincel que rematasse o trabalho.

Giacometo começou. Traçou o desenho na tela. Apareceu-lhe então um sério embaraço. Faltava um modelo. Para a criança que ele queria pintar levada para o céu, possuía excelentes fotografias e as informações do visconde. Mas o anjo?...

Carlo daria à menina a expressão da felicidade metafísica de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível e doce das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos nos pequeninos sonos do berço...

A dificuldade era o anjo.

Para o rosto do anjo convergiam os esforços de Giacometo. Aí a sua verdadeira criação. Aí o momento estético da concepção, por assim dizer. Carecia-se de um modelo excepcional.

Giacometo saiu à caça.

Apesar dos seus cinqüenta anos e das suas octogenárias cãs, o pintor desenvolveu uma atividade de fanático.

Percorria as ruas observando atentamente, varava rótulas e sacadas com uns olhares sedentos. Nem uma só moça escapava-lhe. Era como D. Juan de barbas brancas.

Uma vez, andou escandalosamente atrás de uma criadinha. Não pôde falar-l. A criadinha desconfiou e apressou o passo para casa. Cano não insistiu. A criadinha, conquanto bonita, não era exatamente o seu ideal; além disso, não pareceu-lhe de um branco muito puro... Não servia.

Em outra ocasião, parou muito à vontade diante de uma jovem senhora, que na sua janela via os bondes e abanava vagarosamente um leque. Quando a moça deu com aquele sujeito todo elegante, de barbas cor de espuma, ficou admirada, e, retirando-se vivamente atirou-lhe uma risada. Giacometo não percebeu a desfeita, mas sentiu... Aquela rapariga aproximava-se bem...

Passou-lhe pelo cérebro o pensamento de apresentar-se à moça.

Por que não? O que lhe faltava era simplesmente uma pessoa que se quisesse deixar retratar em uma grande tela. Não se tratava exatamente de um modelo vivo... Que dúvida haveria...

Refletindo mais, lembrou-se da dificuldade em que se veria, caso um exame de perto lhe mostrasse que a moça não prestava. Com que cara havia de dizer:

— V. Exa. não serve para meu anjo...

Giacometo desistiu.

Desistir não é desanimar. E o pintor procurava... Visitou os arrabaldes, as ilhas da baía, fez mesmo algumas viagenzinhas... Entretanto, quando alguém que sabia da sua empresa perguntava-lhe:

— E o anjo?

— Não achei ainda!... respondia.

III

Por esse tempo abriu-se a exposição de Belas Artes. Giacometo mandara alguns quadros. Para ver que figura fazia o seu trabalho, no meio do dos demais expositores, Cano Giacometo foi visitá-la. No primeiro dia não pôde entrar. Três dias depois voltou à carga. Não havia a mesma afluência do primeiro dia. O pintor entrou...

Passou rapidamente os olhos pelas pinturas expostas na saleta fronteira à entrada, nessa onde se vê uma estátua de Pedro II, muito branca, de espada pendente à esquerda, fitando tranqüilo um cavaleiro de bronze, que galopa nos ares ao longe e acena-lhe com um rolo de papel.

Seguiu depois pelo corredor que leva à pinacoteca, e, na porta da primeira sala à direita parou. Tinha avistado um dos seus quadros.

Giacometo foi vê-lo de perto.

Entretanto, a vista encontrou-lhe uma grande tela pendurada à esquerda.

Um assunto delicado. Representava uma bela rapariguinha de quatorze ou quinze anos, braços e ombros nus, debruçada numa janela, tentando quebrar com os dedos o pedúnculo de uma rosa. A janela ou trapeira era do tamanho da moldura, de sorte que a figura parecia inclinar-se para fora do painel. Tinha uma execução magistral esse trabalho.

Giacometo sentiu-se preso pelo quadro. Esqueceu completamente os sentidos. Era o maravilhoso semblante da rapariguinha que quebrava o pedúnculo e ria para o espectador...

O pintor consultou o catálogo que lhe haviam oferecido na porta do edifício. Rezava assim:

— Sessenta e quatro. Cópia do natural; trabalho do Sr F.C. Rua da Ajuda n. ...

Que felicidade! F. C. era um pintor seu vizinho, que o tinha em muita consideração e se mostrava seu amigo...

Giacometo contemplou por mais algum tempo o belo quadro, e depois, esquecendo completamente a exposição, retirou-se apressado.

Um conhecido, que o viu andando muito precipitado, perguntou-lhe:

— Onde vai tão apressado, comendador?

— Já tenho o anjo! respondeu ele, sem saber se falava a uma pessoa que tivesse notícia de sua empresa.

Em poucos minutos chegava à rua da Ajuda e batia à porta de F.C.

Veio recebê-lo uma espécie de criada, raquítica, sem sangue e sem carne, metida em uma saia cheia de rugas verticais, que escapava-se-lhe dos ossudos quadris como de dous cabides. Parecia bem moça. Tinha, porém, o rosto escalavrado, o que duplicava-lhe a idade.

— O Sr. F. C. está em casa? perguntou Giacometo.

— Sim, senhor...

— Quero falar-lhe.

— Entre...

E a magra porteira, retirando-se pata um lado, deu caminho ao pintor.

Giacometo encaminhou-se logo para o atelier de F.C. e foi surpreendê-lo em trabalho.

— Oh! meu grande Giacometo, o que significa esta visita? Você custa tanto a aparecer...

— Sabe?... Venho aqui por causa do meu anjo...

— Ainda o teu anjo...

— É exato... Com certeza os do céu não custaram tanto trabalho a quem os fez...

— Mas em que posso eu servir-lhe...

— Vai dar-me o modelo...

— Como?!

— É muito simples... Quem é o autor do quadro n. 64 da exposição?...

— Oh!... Mas você não é homem de copiar...

— Sei... sei... O que eu quero não é o seu lindo quadro; é o precioso modelo que lhe serviu... Deve ser uma perfeição.

— É impossível achar-se cousa que mais satisfaça... É quase o meu sonho... Com algum fulgor mais na fisionomia... está feito o meu anjo... Diga-me quem foi o seu modelo... Juro-lhe que qualquer despesa que haja de fazer não me amedronta...

Um sorriso amargo, inexplicável, traçou-se no rosto de F.C.

— Ai, meu caro Giacometo, eu vou apresentar-te o meu modelo... É minha sobrinha, uma órfã que minha mulher acolheu... Está comigo há meses... Talvez você a tenha visto...

— Nunca! protestou fortemente Carlo... O meu anjo não passaria despercebido!

— Pobre anjo!...

— Não o compreendo...

— Vai compreender... Espere um pouco...

F. C. afastou-se da tela diante da qual conversava com Giacometo, e, oferecendo-lhe uma cadeira, desapareceu no interior da casa.

Instantes após, voltava, impelindo delicadamente pelos ombros a mesma pessoa que recebera o nosso comendador.

— Aqui está o modelo... disse em tom de tristeza.

— O modelo? perguntou Giacometo de um modo estranho.

F. C. afirmou com a cabeça.

A pobre mocinha curvava a cabeça com um acanhamento doloroso.

Esta cena foi de efeito fulminante para Carlo Giacometo. O desgraçado fixava na moça um olhar de louco.

— Ah! meu bom Carlo, as bexigas podem arruinar um modelo...

O artista da Visão deixou pender a cabeça e cobriu o rosto com a mão...

Parecia um condenado. As lágrimas passavam-se por entre os dedos e iam desaparecer-lhe na longa barba.

No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo encomenda da Visão recebeu uma cartinha:

"Meu caro Sr. visconde. - Com profundo pesar declaro a V. Exa. que não me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incumbência...

"Etc. - Cano Giacometo."

O visconde recorreu a outro.

 

OS PARRICIDAS

De um livro de M. Fornari, Professor

de Filosofia Hermética de Milão.

Atufado no grande leito, grande e suntuoso como um catafalco, do sombrio aposento, eu revia, na indecisão imaginativa que precede o sono, os incidentes da festa, meditando a legenda de mistério que envolvia o castelo, que o fazia negro, mais do que os anos, sobre os alcantis da encosta.

A câmara a que me tinham conduzido ficava situada num dos ângulos mais afastados do edifício. Era uma espécie de cela enorme de abadia, paredes de pedra, ladrílhada de pedra e cheia da atmosfera especial dos lugares fechados e baixos. Do teto, construído em abóbada de um mosaico colossal de madeira, pendia fixamente uma lâmpada de ferro. Apagada. Os clarões da lareira divagavam pelas imensas paredes, escuras de umidade, adamascadas de mofo, e, batendo por baixo as vergas de talha dos portais, formavam sinistras esculturas e lances de sombra que subiam obliquamente.

As cortinas do leito defendiam-me em parte da grandeza lúgubre do dormitório; mas era impossível que não sofressem as idéias do influxo daquela encenação.

Pelo menos a isso quis atribuir a impertinência de pesadelo com que me perseguia uma lembrança.

Correram, entretanto, animadíssimas as bodas e parecia voltar para sempre a alegria à vivenda principesca, por tanto tempo adormecida no encerramento secular e no silêncio, abrindo então as janelas incendiadas de luz, acima da massa de arvoredo da planície, esturgindo ao clamor festivo das músicas e dos brindes.

Pelos salões, a jovem noiva distribuía-se, feita a graça, o encanto, o movimento do prazer de todos. O noivo, o altivo de Sainville, distinto, correto, era apontado ao passar, e passava sobre um tapete de comentários amáveis. E bem certo merecia a sorte venturosa de possuir o coração e o futuro da criatura adorável que desposara.

Uma cousa, porém, observei que envenenava para mim a cordialidade das expansões: a expressão do rosto de Vildac, o senhor do castelo e pai da noiva. Mau humor talvez de hipocondria; era, contudo, insuportável aquele retraimento da testa, crispada de pequeninas rugas verticais, geralmente fixas, às vezes móveis como víboras, aquele olhar, relâmpago acerbo fuzilando a espaços, percorrendo a casa como a brisa da meia-noite nas festas macabras. Dir-se-ia odiar a alegria, aquele homem. A própria filha, a cândida noiva, não escapava à irradiação do olhar satânico detido mesmo sobre ela freqüentemente, como um auspício de maldições.

Bailava-me ainda no espírito o turbilhão dos pares sob os lustres, vertigem de cores e pedraria iluminada; mas a impressão dominante na memória era o olhar, aquele olhar duro e cruel.

As condições do aposento, vasto, onde os reflexos do fogão perdiam-se como fantasmas, frio, que mal podiam aquecer os toros em brasa, frio da umidade das lájeas, crescendo do chão, transpirando das paredes, ilimitado para cima com o teto de trevas d'onde a lâmpada saía como solta no ar, o pavor templário que eu sentia fora dos cortinados fazia avultar a indisposição nervosa que me criara a maneira fisiognomônica do estranho hóspede.

Pesava-me felizmente o sono e breve repousaria da obsessão incômoda.

Esquecia-me já a acompanhar visões mais raras, mais calmas, extintas e difusas, que me falavam ao ouvido a voz carinhosa da noiva, que desmanchavam coroas brancas, coando sorrisos num véu, que desfilavam silenciosas, parecendo-me ver a procissão austera dos antigos habitadores do solar, velhos fidalgos mortos, um depois de outro lívidos e majestosos, um depois de outro, infinitamente, cada vez mais vagos.

Ia adormecer, quando um rumor despertou-me. Excitação nervosa sem dúvida, julguei.

Não. Era por cima do leito, dentro da abóbada de madeira. Acentuava-se sensivelmente. Prestei ouvidos com a respiração suspensa.

Exatamente sobre o teto de meu aposento ficava a torre grande do castelo.

O rumor cresceu. Descia no interior da muralha de pedra. Era como passos por uma escada e um barulho de ferros ao mesmo tempo.

Instantes depois percebia mover-se uma porta. O ruído dos passos e dos ferros tornou-se distinto. Violenta horripilação sacudiu-me os membros. Levei instintivamente a mão à espada que deixara à cabeceira e esperei a visita.

A nesga do cortinado deixava-me ver. Naquele momento, acendiam-se pequeninas chamas na lareira perto da cama. Eu via adiantar-se um grande velho, descabelado, curvo, de barbas abundantes, sobre a nudez do peito espantosamente magro; o estômago fugia-lhe sob as costelas como um buraco, um andrajo inqualificável pendia-lhe dos rins. Trazia correntes nos pulsos e nos tornozelos. Pensei nas almas penadas.

O singular personagem, com um andar difícil, doloroso, acercou-se do braseiro, tiritando. Estendeu os braços para o fogo. Tinha frio o espectro.

— Ah! exclamou, este calor!... Há que tempo... há que tempo não me aqueço!...

A voz cavernosa tremia-lhe como um gorjeio de sensualidade inexprimível, debilíssima voz que parecia vir da terra ou de longe, do fundo de um século.

D'onde chegava, com efeito, aquele desgraçado? Ao meu primeiro abalo de temor sucedera a compaixão.

Vi-o olhar para o lado d'onde surgira sentidamente e longamente. Olhou depois para o chão, entregando-se a uma dor profunda. Ajoelhou-se e bateu muitas vezes com a fronte no ladrilho, soluçando como um louco.

— Meu Deus! meu Deus! repetia com angústia.

A um movimento que fiz no leito, houve um estalido. O velho ergueu-se.

— Quem está aí? gritou assustado. Há alguém nessa cama?

Respondi sentando-me e arredando bruscamente o cortinado:

— E quem me fala?

A minha presença foi de um efeito incrível.

Convulso, estrangulado pelos soluços, asfixiado pelas lágrimas, o velho ficou muito tempo impossibilitado de falar. Pediu-me com um gesto que esperasse. Faltava-lhe a voz.

— Sou, disse afinal, o mais desgraçado dos homens, o mais desgraçado... Nada mais devia dizer. Mas é tão bom falar.. Há tanto tempo que não vejo ninguém... Ah! eu devia calar-me; mas é tão grande a ventura de falar a um dos meus semelhantes!...

Não é possível caracterizar o sentimento, a miséria daquelas palavras naquela voz hesitante e longínqua.

— Nada tema, disse-me. Venha sentar-se ao pé do fogo... Compadeça-se de mim, de um miserável. Seria um alívio ouvir-me os infortúnios.

Sem hesitação fui sentar-me à lareira, bem perto do velho. Esta prova de confiança comoveu-o. Tomou-me as mãos e cobriu-as de pranto ardente.

— Homem de coração... Por que veio dormir nesta sala onde ninguém habita?... E que rumores foram os desta manhã e desta noite?... Que músicas?... Que novidade houve hoje no castelo?...

Quando informei que fora o casamento da filha de Vildac, o velho ergueu os braços.

— Então Vildac tem uma filha?! E hoje casou?!... Grande Deus! fazei-a feliz para sempre e... que sempre o seu: pobre coração ignore o crime!...

Saiba agora quem sou... Eu sou o pai de Vildac!... do bárbaro Vildac... Mas terei direito de queixar-me? Ah! Não me cabe a mim acusá-lo...

— Como! exclamei com espanto. Como, pois?!... Vildac é seu filho e o monstro o conserva preso?... Sem falar a ninguém... carregado de ferros?!

— A cobiça! a cobiça! Ah! não sabe o que pode a cobiça... Nunca houve sentimentos no coração selvagem do meu desgraçado filho! Insensível à amizade, foi surdo até à voz da natureza. Para tomar-me a fortuna, carregou-me de ferros...

Foi um dia visitar um dos nossos vizinhos que perdera o pai. Achou-o no meio dos vassalos, muito atarefado a receber o produto das rendas e das safras. Um pensamento diabólico apoderou-se-lhe da vontade. Fechou-me o rosto. Notei-lhe uma transformação sombria. Um mês mais tarde, alguns homens mascarados agarraram-me brutalmente, à noite, e seminu trancaram-me na torre.

No outro dia, os sinos dobraram, por minha morte. Aqui, do meu cárcere, ouvi os cânticos fúnebres, as preces, ai de mim que pediam ao céu o descanso de minha alma...

Ah! Como me penetraram de tristeza aquelas cerimônias!... Ao menos os outros mortos não ouvem... De então por diante, eu não existia mais... E há vinte anos represento a triste comédia... Só não sei para que algemas... Os mortos não fogem...

— Não! disse eu possuído de indignação, não há de ser assim!

O velho prisioneiro interrompeu-me:

— Não desejo fugir... Quisera apenas dizer a meu filho duas palavras... Os que trazem a comida consideram-me um criminoso condenado a acabar nesta torre... E assim deve ser.

— Não! Há de deixar o cárcere... Fui destinado pelo céu... hei de salvá-lo... Partamos... Todos dormem... Serei o seu amparo, a sua defesa...

— Ah! meu bom senhor, mudaram-se muito os meus princípios e as minhas idéias nesta soledade em que vivo. Tudo é opinião... Agora, que me conformei com o que a situação tem de mais cruel, para que trocar por outra? Que iria eu fazer pelo mundo?... Está lançada a sorte...

— Reflita! reflita bem! O dia vai romper... Não sobra o tempo... Venha! vamos!...

— Comove-me este zelo, mas tão poucos dias tenho para viver... a liberdade já não tenta... De mais gozá-la fora desonrar o nome de meu filho...

— Ele é que se desonrou!...

— Mas essa inocente, que dorme agora nos braços do esposo... Eu iria cobri-la de infâmia... Ah! quanto preferia eu apertá-la ao peito, cobri-la de lágrimas. Por desgraça minha não hei de vê-la nunca!... Adeus, generoso amigo... Vai amanhecer... Podiam ver-nos... Eu volto à prisão.

— Impossível! protestei, detendo-o. Não posso consentir. A reclusão enfraqueceu-vos o cérebro... Eu darei ânimo... Mais tarde veremos se convém dar-se a conhecer... Saiamos primeiro... Ninguém saberá; ocultarei ao mundo o crime de Vildac... Medo de quê?!

— Nada! Eu agradeço penetrado de reconhecimento... Eu o admiro; mas tudo é inútil. Não posso acompanhá-lo.

— Pois bem!... Escolha... Prefere que eu recorra ao governador da província. Revelarei tudo... Viremos arrancá-lo pelas armas à desumanidade de seu filho!

— Oh! não abuse jamais da minha revelação! Deixe-me morrer aqui...

E repentinamente, disforme, agitado, com uma voz medonha, concluiu:

— Saiba... Sou um monstro indigno da luz do dia! Há um crime, um crime que devo expiar... um crime infame... horroroso... Veja o chão... Está vendo essas pedras... têm manchas de sangue... as paredes também... Sangue por toda parte!...

Este sangue... é o sangue de meu pai... Eu o assassinei... Queria também como Vildac!!!... Ah! estou a vê-lo... ali! ali! Estende-me as mãos, os braços em sangue... Quer deter-me a fúria... Cai na pedra! Oh! visão horrível! Oh! desespero!...

O velho preso arremessou-se às lájeas, tirando punhados de cabelos brancos, contorcendo-se em convulsões de cólica, sacudindo o rumor tilintante dos elos. Não ousava mais encarar-me...

O terror aniquilou-me.

— Está agora horrorizado, disse o pai de Vildac, de pé, olhando-me atravessado. Adeus!...

E, com uma calma fantástica:

— Fuja de mim! Eu torno a subir para a torre...

Quando mais sereno busquei combinar as idéias e verificar se me iludira uma alucinação, o velho tinha desaparecido.

Ouvi ainda, mas quase imperceptível, na abóbada, o último rumor das correntes.

Clareavam-se as vidraças com a polidez azul das madrugadas de inverno.

Eu fugi do castelo, levando para toda a vida o espanto desta aventura sem nome.

 

O TAPACURÁ DE CENDI

(Fantasia Trágica)

I

A horda inteira embrenhou-se no espesso dos matagais... Se dava a aragem, a ramaria, abrindo-se, entremostrava, na meia escuridade do coração da mata os corpos nus dos guerreiros, sarapintados de rubras listas de urucu; mais adiante, se uma clareira rasgava o pano de verdura florestal, surgiam cabeceando os selvagens...

O sol cadente lançava-lhe frechas de luz aos feixes, como o velho combatente que não quer descansar no fundo da igaçaba antes de ter esvaziado o carcás. A multidão respondia, agitando alegremente os braços; saudavam em despedida o astro com as canções de guerra; e os hinos misturavam-se de um modo incrível aos derradeiros fogos do dia. O rumor crepitante dos maracás fazia crer que a tribo, em marcha, caminhava ardendo como serpente de fogo.

Depois, tudo se apagava e a vozeria e o chocalhar dos maracás arrefecia um pouco, somava-se com o uníssono vasto e rumoroso da natureza; por fim, na última colina, viam-se rutilar as penas vivamente coloridas dos cocares e das túnicas... E o sol a inundar balsedos e balsedas, sem mais ferir um guerreiro.

A horda andava já para além.

Ouviam-se ainda os sons do maracá, mas como sopros interrompidos que iam falar nas quebradas o adeus àquelas cabanas da aldeia que muitos não tornariam a ver.

II

Cendi ficou chorando...

No cimo de um penhasco, olhava. Todos tinham sumido e ela ficara no mesmo posto.

O vento levantava-lhe os longos cabelos e passava por eles como pela rama franjada da palmeira; o sol riscava-lhe o contorno esplêndido das formas com friso de ouro. O que esperas. Cendi? Louca, eles se foram. Para aquelas bandas vês somente a serra azul... azul. Eles se foram.

E a pobre Cendi desceu da pedra, chorando cada vez mais.

Os espíritos malignos gritavam-lhe aos ouvidos que ela perdera para sempre o seu dileto, o seu noivo.

Rompendo a brenha, ela partia os galhinhos secos e os galhos estalavam como a risada escarninha dos anhangás. Um presságio pesava-lhe no coração, e, com aquele sol que ia a deitar-se, fugir-lhe-ia a última energia para sofrer. A índia deixou-se cair abatida, derreada num velho madeiro que desabara com a última tempestade. Queria meditar; a cabeça pendeu-lhe, a vista foi-lhe pousar na epiderme macia e amorenada dos joelhos. Em torno desses joelhos, como em coroa, circulavam cintos primorosos de penas de guará brancas e róseas.

Dos grandes olhos negros da índia escorriam lágrimas que lhe molhavam os seios e gotejavam depois como o orvalho pelas extremidades dos limões. Cendi fitava aquelas penas, as penas do tapacurá.

— Tapacurá da minha virgindade, soluçou ela, morrerei contigo.

III

Eram ditas estas palavras quando ouviu-se um barulho estranho.

Não fora o trinar da passarinhada, pressentindo a noite, não fora o urro ameaçador da onça, não fora o guizo das cascavéis.

Cendi o conhecia.

— A voz do pajé!! murmurou estremecendo.

Em seguida acrescentou tristemente.

— Venha, venha esse mensageiro de desgraças e anuncie a minha viagem para a morada dos heróis!... Cendi há de ver-te querido Taigaíba! há de ver-te.

Vinha bem próxima a noite. Apenas uma poeira luminosa polvilhava o ocidente. O sol desaparecera. O pajé, mastigando rezas e evocações sinistras, abandonou o antro.

Cendi o viu apresentar-se horripilante.

— Cendi, disse ele, sem preâmbulos, em tom profético, os guerreiros juncaram o campo de batalha com os seus corpos, e os inimigos se hão de banquetear com eles. Taigaíba perecerá também; tu não podes pertencer-lhe.

— Cala-te! Cala-te, morcego! O sol entrou, e tu saís-te para desgraçar os guerreiros! Vai-te e deixa-me chorar!

— Não fales assim, Cendi!... não maltrates o eleito de Tupã, que é quem me anunciou estes males.

— Tupã sabe que eu sofro... que eu morro...

— Tupã diz que o tapacurá de Cendi deve cair a meus pés.

Assim falando, na sua toada de profeta, o sacerdote das trevas agitava horrivelmente as asquerosas peles que o cobriam, achegava-se para a bela Cendi com um vagar que afetava de majestoso e era repugnante.

Cendi teve medo. Levantou-se. Correu.

O pajé era velho, mas forte. Correu para ela. Cendi mergulhou-se nas brenhas, gritando. O pajé perseguiu.

Escurecia já e naquela hora as corujas, adejando pausadamente, cortavam o ar à cata das avezinhas retardatárias.

Cendi, és avezinha, foge do pajé.

Cendi correu muito, muito; saltou arisca como uma veada todos os espinheiros que lhe fechavam o caminho, todos os regos que as enxurradas rasgavam fundos no seio da mata. O pajé saltara os espinheiros, saltara os valados. Quando Cendi parou cansada, aí estava o pajé. Horrível!

Cendi estava perdida.

— Cendi, Cendi, rosnou o pajé, ouve a voz de Tupã! Paraste cansada? É Tupã que te prende. Tupã diz que me pertence o tapacurá de Cendi...

A índia, que se agarrara a uma árvore para não cair, ergueu o punho para o céu e cortou a frase ao pajé.

— Tupã mente!

IV

— Vais hoje morrer. Teus lábios ofenderam a Tupã, como a folha de urtiga ofende a mão que a toca. Antes de pratear-se a noite com o luar que vai nascer, deve estar morta Cendi.

A selvagem respondeu:

— Cendi morre sem desabotoar as penas cândidas do seu tapacurá. Quem podia fazê-lo voou para as colinas azuis...

O pajé precipitou-se sobre a índia.

Cendi caiu de joelhos estorcendo-se nas mãos do padre de Tupã; e este, fazendo movimentos vagarosos, cadenciados, lutava tranqüilamente com a resistência de Cendi.

Nas tranças do arvoredo, denegridas pela noite, gritava um passarinho, debatendo-se por certo nas garras de uma coruja.

V

Era treva compacta.

— Cendi, Cendi, onde estás?...

Um índio rebentava a rede espessa de cipós que amarravam uns aos outros os troncos da mata virgem.

— Cendi, Cendi! chamava.

Toda a floresta fazia um amontoado tenebroso. Um grito de doido desespero respondeu ao índio; partiu de lá como se aquelas negruras tivessem voz e falassem.

VI

Nasceu a lua.

Alguns raios começam a furar a folhagem como se a lua quisesse afastar com a mão os raminhos e espiar.

No lugar em que Cendi parara estavam agora o pajé e um guerreiro. Hirtos, cada um ao seu lado da clareira.

— Foi a vontade de Tupã, vociferava o primeiro. Cendi ofendeu a Tupã.

— Embusteiro cala-te! bradou o outro.

— Enganas-te, filho das selvas, eu digo a verdade!

— Não dizes! rugiu o guerreiro.

— Ofendeste também a majestade dos trovões... Prostra-te, Taigaíba!

O guerreiro apertava entre os dedos um pedaço de flecha e sacudia o cocar empenado, prestes a lançar-se sobre o sacerdote do seu culto.

O pajé sorria e a cara parecia-se-lhe com as escâncaras de um inferno medonho.

— Escuta, pajé, disse o índio a modo de sentença, eu suspeitava de ti; as tuas infames sugestões arrastaram os guerreiros ao campo do combate. Eu não acreditei. Ocultei-me. Fiquei. És sábio e não o percebeste; és adivinho e não me descobriste. Pois aqui estou, pajé... Treme, treme, porque o vento não soprará muito por estas balsas antes que estejas por terra!

O pajé ria-se, escancarando as feições diabólicas, remexendo-se as horrendas peles que o adornavam.

O guerreiro, altivo e iroso, media-o desde a pedra encravada no lábio até o grande artelho muito separado...

Avançava. Atirou-se, enfim, ao pajé. Fê-lo dobrar-se para trás, e, quase sem luta, enterrou-lhe no peito o ferro que empunhava.

O pajé repetiu:

— Tupã! Tupã!

E as árvores, ciciando, ficaram a murmurar:

— Tupã... Tupã...

Zombavam do profeta maldito. O guerreiro garganteava, como estertorando:

— Morre e vai-te, pajé!

E o cadáver do pajé foi estatelar-se no chão.

O índio feroz alçou então o braço armado, arrogante. Da ponta do dardo pingaram gotas de sangue sobre o corpo do pajé.

VII

O guerreiro fitava os céus por entre o enredado das folhas. Os olhos fulgurando encaravam duas estrelas que luziam por cima da mata. Dir-se-ia que esperava...

— Aparece, Tupã, que eu quero atravessar-te!...

Este brado varou através dos bosques e foi achoar longínquo.

O arvoredo, ciciando, ficou a repetir: - Atravessar-te!...

As folhas não zombavam já. Tiritavam apavoradas.

O selvagem fitou os céus... Tupã não veio...

— Estás vingada, Cendi!

O passarinho, que piava nas garras da coruja, não se ouvia mais...

O luar passava rasteirinho pela relva e lambia o corpo de Cendi morta... Esse clarão suave enleava-lhe o lindo cadáver num sudário de azul. Os cintos de pureza jaziam desbotoados, perto do corpo.

Cendi os perdera... depois de morta. O índio murmurou entre dentes.

— Covarde!

E baixou os olhos de lá, das estrelas, para Cendi.

— Adeus, sonho do meu amor, adeus, rolinha! Os guerreiros guardar-te-ão o corpo no invólucro de barro de igaraçaba... Mas eu irei contigo!...

VIII

Um rumor levantou-se ao longe. Taigaíba escutou.

Este barulho era seu conhecido. Ouvira-o já cem vezes, cem vezes isto fora para ele um hino de alegria. Então, porém, não passava de uma canção fúnebre que o atraía. Ele obedeceu:

— É a batalha que se aproxima!...

E embrenhou-se na mataria, gritando possesso:

— Taigaíba ao combate! À morte! à morte!...

1882

 

QUASE TRAGÉDIA

Conto da Lua-de-Mel

Quando se é recém-casado por esses primeiros dias velozes que fogem para o passado, com uma rapidez incrível; em que almeja-se ardentemente que a noute desça, porque se ama o recato das sombras; em que suspira-se pela manhã, porque a manhã traz aquela preciosa luz fresca que convida a esses passeios ricos de efusões e mútuas expansões amorosas; nesses rápidos dias que os europeus gostam de saborear à beira do Adriático, cobrindo-se com o céu da Itália, ou no meio dos lagos da Suíça, entre os nevoeiros que descem das cumeadas glaciais e brancas; nesse fragmento de vida que os Fluminenses passam refugiados nas alturas verdes e saudáveis da Tijuca, nos saborosos dias da lua-de-mel, há certas confidências murmuradas docemente entre os esposos, confissões muito em segredo, que só entre os dous pombinhos se dizem, e como arrulhos se perdem na ventania que a floresta manda...

E assim deve ser. Tal é a doçura estranha dessas conversações, tal é a intimidade religiosa, em que se confundem a expansão e a reserva, num mistério tão delicado, que é melhor, muito melhor que se percam no espaço, longe dos ouvidos indiscretos como o canto do pássaro na mata virgem...

Foi numa dessas entrevistas meigas e misteriosas, que a pequena Adélia pôde saber porque motivo, pouco antes do seu casamento, Eduardo deixara dous dias em seguida de ir vê-la à casa do pai e soubera também o motivo daquela palidez cruel com que ele reaparecera, rindo muito, jurando que aquilo fora um ligeiro incômodo; que já estava perfeitamente bem, sem conseguir entretanto, ocultar absolutamente que sofria.

Haviam se casado.

Aqueles dous dias e aquela palidez, foram a tristeza da sua alegria no casamento.

Eduardo estava pálido, dentro da casaca preta que mais pálido o fazia. Adélia ficara também pálida e melancólica.

Quando ela soube o motivo, quando descobriu a cicatriz recente que ele tinha pouco acima do calcanhar direito, foi então que a melancolia desapareceu-lhe; mas como não sofreu ainda de vê-lo doente da ferida que mal acabava de fechar-se!

Pôs-se a refletir no fato.

Teve medo de interrogar positivamente Eduardo. Fez conjeturas, todas as conjeturas, e tratou muito dele, maternalmente como uma irmã, como uma filha, muito empenhada em vê-lo completamente restabelecido...

Eduardo pelo contrário inebriado de amor por ela, não cuidava de si. Só queria beijá-la. Cobria-lhe de beijos as pálpebras, ambas as faces, os lábios, beijava-lhe até, cousa incrível! beijava-lhe a concha das orelhinhas rosadas de veludo! Pobre Eduardo!...

Afinal Adélia veio a conhecer tudo. Tudo... que poema! Escapara de ver na candura nívea das asas do seu amor uma triste mancha de sangue. A história do seu noivado por um triz que dava em tragédia e todos os sorrisos e juras por uma linha que não degeneraram em pranto e desespero.

Felizmente tudo ficara em riso, o sangue se reduzia a salpicos vermelhinhos, pontuando as asas de neve dos seus Cupidos.

Parece invenção. Entretanto, a cicatriz lá estava, pouco acima do calcanhar de Eduardo, como a prova palpitante.

Foi assim.

Moravam em Santa Teresa. Da casa de Adélia, no alto, avistava-se embaixo, numa das ruas da encosta do morro, a casa onde morava Eduardo.

Todas as tardes, depois que ele a pediu em casamento, o moço subia a ver a noiva e visitar a família do futuro sogro.

Raramente faltava. Quando ficou determinado o dia do casamento, as visitas de Eduardo tomaram-se infalíveis. Em todo o lugar falava-se do próximo enlace.

Repentinamente, com grande espanto de todos da casa de Adélia e principalmente desta, Eduardo falta um dia. Mandaram saber porque.

— Estava incomodado.

Falta segunda vez...

Duas vezes... Era incrível...

Um noivo como ele faltar duas vezes... era grave.

Nova visita.

— Vai melhor... mas...

Todos ficaram sobressaltados.

Quanto caiporismo!

Havia alguns dias que tudo acontecia naquela casa. Um telegrama viera, noticiando moléstia grave de um parente que estava em Cabo Frio, o padrinho de Adélia, para sinal; a estouvada da Joana quebrara uma dúzia de pratos, por querer carregá-los todos duma vez em pilha; ainda mais, entrara pelas janelas da frente, uma grande borboleta preta que fora pousar exatamente na caixa do enxoval da menina...

O cão do vizinho uivara toda a noute...

Acontecia tudo. Até na véspera mesmo da doença de Eduardo, a casa fora visitada à noute, pelos ladrões que haviam espatifado a hera de um muro que dava para a ribanceira de um morro por onde naturalmente os gatunos haviam passado. E isso não fora uma vez só. Primeiro, o pai de Adélia muito escrupuloso dos seus penates, examinando o jardim, como de costume vira o caminho aberto na hera. No outro dia achou a planta mais estragada... já começavam a desaparecer peças de roupa do quintal, por exemplo um lenço de Adélia que ficara no coradouro...

No outro dia, o velho esperou.

Pôde, apenas, distinguir uma sombra escorregando para o lado da ribanceira. Correu ao jardim com a decrépita espingarda, que representava a derradeira segurança do seu lar, mas não viu nada.

Ainda uma vez, esperou o tratante (que afinal parecia não ser tão bandido como se supusera a princípio, porque as galinhas não desapareciam do galinheiro, nem as roupas do coradouro). O velho pai de Adélia escorou-o, dedo no gatilho e olho na hera do muro. Logo que percebeu a sombra... fogo!...

Não se ouviu nem um grito, através da noute, mas o pai de Adélia não teve ânimo de ir verificar se acabava de fazer um cadáver...

Na manhã seguinte, achou-se sangue pela hera e pelo chão.

Contudo a preocupação de Adélia não era a borboleta preta na caixa do enxoval, nem o cão do vizinho uivando à noute, nem mesmo as suspeitas verificadas de que os ladrões visitavam o quintal... A sua preocupação era outra.

Havia dias, que ela encontrava, todas as manhãs, uma flor, no peitoril da janela do seu quarto.

Não acreditava em duendes, mas tinha medo de verificar qual era a mão misteriosa que depunha ali o matutino brinde. Depois, era tão bom não saber cousa alguma e adorar todo o dia aquela rosa, aquele cravo, ou aquele raminho de violetas que dir-se-iam cair do céu com o orvalho!...

Repentinamente deixam de aparecer as flores!...

E esta desgraça, que ela amargava de si para si intimamente, como nos dias anteriores, saboreara a contemplação dos brindes misteriosos, acabrunhava-a, mortificava-a.

Uma suspeita que minava-lhe o cérebro, avultou, ocupou-lhe o espírito todo... Aqueles ladrões... aqueles ramos de hera quebrada no muro da ribanceira... o sangue... o sangue sobretudo!...

.................................................................

Uma daquelas entrevistas deliciosas de mel veio trazer luz às apreensões. O gatuno era ele. Levara o lenço de Adélia com que santa intenção! o pobre... As flores era ele o duende que as depunha todas as noutes no peitoril...

E o tiro! o horrível tiro da paternal vigilância fora também para Eduardo!...

Eis aí como o noivado de Adélia teve uma quase tragédia e como os Cupidos do seu amor tiveram salpicos rubros na brancura das asas.

 

ROGÉRIO, O RUDE

E um velho apareceu. Muito velho; os cabelos brancos, encacheada coma desciam-lhe aos ombros, tão brancos, tão realmente prata, que todo o ouro do dia nascente não conseguia dourar. Perdia-se sobre aquele inverno, todo o esforço de um sol pujante de primavera.

— Vens, talvez ao meu apelo? Ninguém me pode valer. Queixo-me do passado irrevogável que me preparou esta vida de amarguras. Não há remédio.

— Nada desejo, entretanto, para mim; meu filho são as minhas aspirações e o infeliz, tão moço, é já um condenado. Eu o quisera iluminado e a escola o repeliu. Cresceu-lhe pêlos à beira da testa como orelhas de onagro e eu lhe quisera um perfil de medalha. Indico-lhe a cidade, o caminho largo do sucesso e o selvagem reclama o campo, o campo. Quisera vê-lo calcando aos pés o galanteio das princesas, tapete de corações!... e vou surpreendê-lo a desabotoar amor às virtudes campônias cheirando a estrume e a feno...

— Tranqüiliza-te. Teu filho está grande. Mas é preciso que me ouças. Deixa cair a fouce; o trabalho é a escravidão. Míseros, aqueles que se escravizam à gleba. O pedreiro acumula a alvenaria, sobrepondo custosamente as lascas de rocha; edifica o fundamento e o esqueleto da muralha. Vem o pintor e encobre a valia de todo aquele trabalho com a ligeira camada das tintas. E o arquiteto vem e debuxa a linha aristocrática do arabesco, que é como uma inscrição em que se recomenda ao futuro e à glória. E o estatuário sobre o monumento do pintor e do arquiteto apóia uma grande estátua, asas de bronze abertas para o céu, como um anjo insolente de gênio, presto a escapar-se para a apoteose. Quem vai lembrar-se, diante desta grandeza, do obscuro operário da muralha? O pedreiro trabalha; é o servo; os outros triunfam. Triunfar é fabricar aparências. O melhor pedestal da nossa vitória é o despeito da concorrência. A evidência fere o despeito com um deslumbramento. Fabrica a evidência e verás.

"Nada me perguntes. Bem sei do que digo. Sou muito velho. Chamam-me zombando o Experiência, e eu me chamo Século. Sou filho do Tempo e vou... meu destino é ir. Os dias são os meus irmãos; passam por mim, conheço-lhes o sorriso. Toma. Este é o cofre dos meus recursos. Retira a mão, cheia quanto precisares. Tudo terás para teu filho. O condão misterioso da caixa guarda expedientes contados pelos teus desejos. Tudo terá teu filho. Será grande, iluminado, poderoso. Vencerá distâncias sociais e altitudes de prestígio. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Ele será Papa! Chamar-se-á - Leão."

E o velho extinguiu-se numa evasão de sonho, desfeito em névoa, em nada, como uma forma de vapores no espaço, deixando apenas por momentos a impressão lúcida das alvas barbas, como a lembrança de um meteoro.

"Fabrica a evidência e verás, dissera o velho, fabrica e evidencia. Mas é incrível! A alma latente do mundo não se revela assim... mas este cofre é real, é positivo. Uma ilusão palpável?! E o que será então a realidade? Abramo-lo e ensaiemos."

Aberto o cofre, foi como um derramamento de Paraíso. Expandiu-se no ambiente uma sensação de ventura que chegou até às flores. Os pedúnculos dobraram-se vencidos, ternos da morbidez langue do ar.

— Que meu filho apareça.

E mal fora este desejo enunciado, que surgiu em pessoa Rogério, o rude, olhos oblíquos de selvagem, pêlos fartos à beira da testa, como orelhas de onagro:

— Que me quereis, pai?

— Que sejas nutrido...

E ali mesmo, a olhos vistos Rogério inchou como um balão, arredondou-se de plástica; exibiu-se às ambições paternas, bochechudo como um sopro de Éolo, alteadas as protuberâncias da carne em polpas de ádipe, avançando e ostensivo o umbigo em próspero ventre de Sileno jovem.

— Que sejas belo.

E no mesmo instante, sobre a gorda prosperidade de Rogério, abriram-se as rosas da formosura. Esvaíram-se os pêlos do onagro; o olhar oblíquo do selvagem endireitou-se em franca perpendicular, temperada de atrevimento. Fossem lá reconhecê-lo dentro daquela frescura macia de cores e de carnes, esgaravatar-lhe a minguadíssima parcela de boçalidade agreste que lhe servia de alma, nos interstícios da Ironia daquele sorriso de bailarina petulante.

— Que detestes convictamente o campo e todas as suas tentações.

E no coração de Rogério nasceu de súbito estranho mal-estar, a febre dos predestinados; espécie de saudade absurda de cousas desconhecidas, grandes ruas, vastas praças, tumulto e movimento durante o dia, luz e festas durante a noite; sede de viagens e fome de aventuras, avidez intensa por grandes tentativas e maiores êxitos. Apagou-se a memória dos primeiros anos, a meninice de poldro, a adolescência de bode farto. Fugiu-lhe de vez o aferradíssimo apego aos idílios do estrume e dos fenos.

"Parte, meu filho, e vai pelo mundo. Grande hás de ser, iluminado e poderoso. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Tu serás Papa! Chamar-te-ás Leão. Parte!"

E tantas vezes abriu-se o cofre dos recursos que, Rogério o rude subiu ao trono pontifical.

Mordei-vos, despeitados! Invejosos, imitadores e plagiários, basbaques das honrarias que levais a vida olhando para o alto, impotentes de todas as categorias, e de todas as ambições, mordei-vos! Ele triunfou. Entronizou-se no superlativo da pose. Tudo que se arma na terra de brocardo e ouro, tudo ele foi; hoje, é Papa e chama-se Leão. Dobrai o joelho; beijai-lhe as pegadas, que cada prego de seu calçado grava no chão um selo de santidade. O favor de um só dos seus olhares exalta-nos e nos enche com a munificência de Assuerus. Que se há de fazer ao homem a quem el-rei quer honrar? Ele olha e basta. Aquele olhar veste-nos do linho real, e, sobre opulentos jaezes de um corcel altivo, passeia-nos através dos aplausos de uma capital em delírio.

Roma é o cenário do seu triunfo, a herdeira universal do esplendor artístico das idades, do aparato ostentoso da humana vaidade no passado, metrópole arrogante de todas as ênfases do catolicismo, orgulhosa da glória dinástica das próprias tradições.

Lá está.

Diante, rojam-se os cardeais, fazendo agitar-se em mar de sangue a multidão dos ombros em cabeções vermelhos. Mais baixo, no escuro, a massa miserável de uma população prostrada. Dessa humilhação e dessa sombra, eleva-se apenas, medroso ainda assim de se elevar, um murmúrio de prece. Ao redor do trono, sob o docel, vistosa homenagem da Arte, imagens que passam com a expressão celestial dos rostos de Fra-Angelico, visões da capela Sixtina, academias funambulescas que se contorcem, acrobatas do terror, que se despenham de toda a altura do céu e da Fé - povoando o espaço de aspectos contraditórios em grandiosa desordem, enquanto vibra e avulta, solene na cúpula enorme, a música dos êxtases de Santa Cecília.

E ele no centro, Rogério, hoje Leão, nutrido e belo, em seda branca da cor das transfigurações, sob a tiara de ouro, pasmado de se ver tão grande, mal avistando ao longe, na multidão, o pai que o adora de baixo, acaçapado e satisfeito!

Até que um dia, notando-se-lhe espantosa imobilidade, como se pela magia transformadora das grandezas, acabasse por se consubstanciar o entronizado com o trono, alguém ousado subiu até a eminência a verificar...

Levantaram-lhe a tiara como uma tampa, e viram, maravilha! e viram, no fundo, seco, mirrado e reduzido...

Rogério, o rude, morrera havia muito, dentro daquela armadura de esplendor e de aparência, da nostalgia dos seus campos, represália terrível da boçalidade ludibriada.

 

TÍLBURI DE PRAÇA

Não encontraram por aí minha mulher?... É original. Desde que me casei... Eu por uma porta, ela por outra. Só nos encontramos uma vez frente a frente com vontade. Eu entrava por um lado, ela entrava por outro...

A nossa vida de casados é uma verdadeira questão aberta. Entrar e sair é tudo a mesma cousa. Acontece, porém, que ela está sempre fora e eu nunca estou dentro.

Já me disseram: Cuidado, João, tua mulher tem amantes... Eu estou de olho... Não há perigo. Olhem, aqui em casa eles não me passam a perna...

Na rua eu a espio... Onde ela entra entro eu atrás.

Casei, todos sabem, não foi por dinheiro: tenho os meus prédios. Casei por paixão, ou antes, por compaixão. Vi-a no seu véu tristezinho de viúva, com uns olhos pretos por baixo, que não tinham nada de luto, valha a verdade. Olhou para mim docemente. Eu tenho os meus prédios... Lembrei-me deles com orgulho, diante daquela formosíssima soledade. Comecei a gostar dela. Um homem depois de cinqüenta não namora; os dedos estão perros para o bandolim das serenatas, o luar dos balcões tem reumatismos. Desde que há meia dúzia de prédios, é logo casamento...

Foi o diabo... Logo na igreja, dei com a viuvinha olhando um convidado... Eu, viúvo de uma mulher como eu tive, boa, gorda, pacata, amiga do rapé e dos seus cômodos, casar com aquela figurinha saltitante, de olhos pretos, que logo ali, começava a pular-me fora do matrimônio... Estive quase a desmanchar tudo, na hora do recebo a vás... Não faz mal, pensei porém, gosto dela... que diabo! se casar com outra, não poderá suceder a mesma cousa? Vá! é um gosto ao menos. E atirei-me de cabeça no abismo... Matrimônio é assim. A primeira cousa que um marido deve comprometer é a cabeça... Para ficar logo atordoado. Senão, não casa...

Eu cravei um olhar na minha noiva.

Ia divina, num simples vestido roxo, que a vestia como se a despisse. Sorriu-me. Pareceu-me sentir, ao redor de mim, um turbilhão de abelhas douradas, brilhando e zumbindo. Casei-me...

Pois bem, daí para cá, é isto... eu por uma porta, ela por outra, em cabra-cega.

Às vezes, passamos um pelo outro. Ela a caminhar na sua vida, eu, na minha, espiando.

Ela sorri-me; eu disfarço, coro e vou seguindo para adiante.

Ora, meus senhores, não me dirão como hei de pegar minha mulher? ~ isto: Tempo-será-de-min-c-o-có!... Toda a vida.

Quanto a amantes, ela não tem. Isto eu lhes juro...

Vem cá em casa o tipo da igreja, o tal convidado do olhar... Mas eu estou de olho... Ele é bonitote, correto, conversa, graceja, tem uma maneirazinha faceira de não fazer caso de cousa nenhuma, como um filósofo.

Fuma um charuto de primeira qualidade, de linda fumaça azul, que faz letras no ar... Às vezes mesmo, em minha casa, ele recosta-se no terraço e fica a ler com uma expressão faceira, meio adormecido, as letras de fumo na atmosfera calma da tarde.

Até eu fico seduzido e aceito um charuto dos dele, e fico a fumar, ouvindo os bambus, as cigarras... Minha mulher, calada, ao nosso lado, ouve, como eu, as cigarras, e os bambus, conjugalmente. Mas eu conheço que ela gosta mais, extraconjugalmente, de ver as letras azuis do meu amigo. Assim ficamos, os três, recostados nas chaises-longues, bebendo crepúsculo.

Ela é a primeira que se levanta.

— Que insipidez! exclama. Ora a gente aqui calada, a ver fumaça de charuto!

E, então, agita-se como uma pata que sai da água, como um belo cisne, devia eu dizer, que acabasse de sair daquele imenso lago de morbidez em que nos perdíamos.

— Vamos passear! Vamos passear!

E, então, com uma graça que não sei com que comparar, põe-se a desfazer com o leque as letras azuis dos charutos.

Ah! a diabinha adorável! e não haver meio de eu encontrá-la!... Ora, será porque eu não lhe agrado? Mas há agrado que eu, mesmo de longe, não lhe faço... Será porque eu não sou bastante?... Mas, que diabo! ela daquele tamaninho...

Mas, reatando, o tal amigo, das letras azuis, namora-a, namora-a, não há dúvida: mas é só namoro garanto-lhes... Depois, depois...

Depois eu estou de olho...

Não tenho repartição que me prenda... não tenho obrigação de hora certa... tenho os meus prédios... Posso espiá-la dia e noite... Não! amante ela não tem, posso afirmar... Pois se nem a mim mesmo ela quer!... É o seu mal... Quanto ao mais, é só passear, passear. O que a perde é o passeio.

Mas por que não nos encontramos nós no matrimônio? Por que diabo ela quebra esquina, quando me vê em frente e deixa-me com cara de burro em plena rua-da-amargura, em plena rua-do-sacramento, devera eu dizer?!...

Já visitei uma sonâmbula:

Por que não há meio de encontrar minha mulher?

— Espie, disse-me ela.

— Tenho espiado... Ainda, outro dia, entrou ali numa modista, onde vai muito... Perguntei por ela. Acabava de sair pelo outro lado. A casa tem duas frentes. Examinei... O lugar mais sério deste mundo!... Daí a pouco, um amigo, (o mesmo das fumaças, por sinal) disse-me que tinha estado ali com ela, que a vira ensaiando um chapéu...

Contei à cartomante a nossa vida, mais ou menos, a minha vigilância...

A tal pitonisa era uma esperta gorducha, de bochechas vermelhas e grande pasta de cosmético na testa como uma aba de boné... Sorriu-se. Retirou-se a deitar cartas, num gabinete obscuro. De volta, falou-me simbolicamente, com alguma pimenta de malícia na voz.

— Meu senhor, o coração da mulher é uma cousa complicada. Não se pode estudar e definir de uma só maneira, mas no ponto da sua consulta, eu creio que não erro, com esta exposição da minha experiência: Há corações fechados que são como portas de que se perde a chave. Ninguém lhes entra, sem que um milagre da sorte ensine como. Então, é a imensa ventura. Há corações de uma só porta, como as casas seguras, onde a gente entra, sem custo instala-se, faz família dentro, e aí chega a netos tranqüilamente. Há corações de duas portas, que dão entrada a um afeto pela frente, diante da sociedade; a outro afeto pelos fundos, diante da indiscrição da Candinha e seus filhos. O segredo destes amores de acordo é possível; mas, às vezes, mesmo sem segredo eles são felizes. Há corações hotéis, onde todo o mundo entra, escandalosamente, quase simultaneamente, pagando à parte o seu cômodo, sem grande intriga, nem ciúmes. Há corações bodegas, que é um horror...

Mas, há uma espécie curiosa de corações, um produto das sociedades desenvolvidas, para a qual chamo a sua atenção: é o coração volante, e o coração rodante, que aceita amor, mas que não fixa, daqui para ali, a tanto por hora, a tanto por mês, o coração tílburi de praça, que aceita o passageiro em qualquer canto, que dobra a esquina, que corre, que pára, que vem, que desaparece, que passa pela gente às vezes, juntinho, sem que se possa ver quem vai dentro...

Eu compreendi vagamente. A cartomante queria chamar minha mulher de tílburi. Ora minha mulher um tílburi!...

Pedi que esclarecesse.

— Nada mais lhe digo. Saiba entender...

Ora bolas!... E, fiquei na mesma, com a metáfora da consulta e com a minha querida mulher que eu não tenho, que é entrar eu por uma porta ela sair por outra, como um fim de história de meninos.

 

ÚLTIMO CASTELO

(Dramas Fluminenses)

Álvaro, o grande Álvaro devia realmente sucumbir, esmagado sob as ruínas d'alguma das soberbas construções levantadas à força de imaginação, em meio da noute dos seus sonhos.

Passava através da vida, absorto em concepções estranhas, olhar vago, observando sempre uma aparição espantosa, que ninguém via e que, para o sonhador, brotava do chão, viva, colorida, vibrante; e voava-lhe em torno, às vezes como um bando de pombas risonhas e festivas, às vezes como tristes pterodátilos infernais de pesado vôo e vastas asas negras! Com a variedade das aparições, variava igualmente a expressão do semblante do poeta, ora doce sorriso inexplicável de louco satisfeito, ora profundo pavor de visionário em êxtase de contemplações horrendas...

Pobre Álvaro!

A rua do Ouvidor conhecia bem os esgares extravagantes, os bracejamentos exagerados, espécie de caricatura violenta e inimitável de alta tragédia, que o saudoso Álvaro desempenhava febricitante em qualquer esquina, ao correr da palestra, como um desalmado, tomando os assuntos pelos cabelos, apunhalando-os no ar, com a fúria de uma eloqüência sanguinária, funambulesca, apoplética e atirando-os afinal, remoídos exangues, aos pés dos ouvintes, horrorizados e deslumbrados.

Álvaro dispunha verdadeiramente de um gênero de elocução como nunca se conheceu.

Criticava os dias e os fatos, evocando brutalmente as concepções poéticas do passado e os heroísmos arcaicos adormecidos nos museus da história. Verberava um ministro, atroando-lhe os ouvidos com o fragor épico das armaduras de Homero, ou pegava-lhe nas abas douradas do fardão e o lançava por cima de uma boa distância de séculos, coberto de motejos, ao riso escancarado dos crocodilos de Ganges.

E não somente nessa eloqüência tempestuosa irrompiam os vulcões do seu espírito. Ele era um poeta trovejante e indomável, que sabia talhar estrofes imortais em blocos de lava ainda quente, transpirando ainda a vitalidade renitente da ignição das crateras!

Liam-se aqueles versos, como se o livro escaldasse, como se as linhas do poema exalassem incêndio; e o leitor ofegava, sentindo na fronte a cálida irradiação da estranha obra, simultaneamente maravilhado e exausto.

Um cérebro construído desta sorte não pode necessariamente fraternizar com a parvoice poderosa e grosseira das misérias da vida. Há de viver em esfera superior, à parte, ou sucumbir, afogado em vulgaridade, nessa vulgaridade uniforme, imensa, que enche o quadro social e que é rasa como um pântano, estéril como um deserto...

O grande Álvaro, devia acabar, esmagado pelos escombros rodianos d'algum dos castelos da sua imaginação...

Álvaro sonhara muito, mesmo porque sonhará sempre. E vira muitos dos seus sonhos, sem mais a tinta azul e os nevoeiros da simples idealidade, palpara muitas das suas visões, acorrentando com uma força de vontade exaustiva e rara as dificuldades brutas do mundo hipogrifo possante da imaginação que possuía...

Uma vez, saciado da boêmia, sonhou ardentemente as alegrias do lar, as doçuras da família, os poemas vivos do amor conjugal, a paternidade e todos os enlevos que advêm...

Foi este castelo o mais rico que lhe agitou o espírito em toda a sua vida... Ter uma filha, que lhe dissesse a cada instante: papai! papai!, saltando-lhe aos joelhos, vestidinha de branco, com uma fita ao cabelo, ruidosa como as aves e meiga como os anjos!... Ter uma esposa adorável e adorada, que lhe prometesse, através de uma crepitação de beijos, outras filhinhas, uma ninhada de criaturas como a primeira... E toda aquela multidão de louros pequenos, cercando-o com o seu amor e com as suas risadas cândidas, bulhentas!

Álvaro entrou em campanha, para concretizar este sonho. Foi uma campanha memorável de ardor e entusiasmo.

E triunfou!

Uma bela manhã, as folhas noticiaram o casamento do poeta, desejando todas, uníssonas que, diante dos passos dos felizes noivos, houvesse sempre, interminável e franca, uma estrada de rosas e prosperidades.

Veio realmente a estrada; houve muitas rosas, muitas prosperidades...

Álvaro gozou a suprema doçura de ter um filho, um lindo filho corado e forte. Não se descrevem as explosões do poeta, os delírios, as febres que lhe acendeu n'alma aquele acontecimento. Já tinha um filho!...

Cada vez que narrava o caso a um amigo, uma ode faiscante fugia-lhe dos lábios, espantando os transeuntes, como o escândalo dum meteoro.

Infelizmente passaram as rosas, deixando apenas a coroa de espinhos dos entrelaçados galhos; e das prosperidades, apenas a saudosa recordação...

Álvaro descobriu que a esposa adorada o traía...

Pela primeira vez em sua acidentada existência o expansivo e estrepitoso rapaz conteve natural tendência do temperamento. Encarcerou heroicamente, no fundo do espírito, a tempestade rábida do desespero. Todas as erupções foram refreadas e passou-se no íntimo do poeta a convulsão incalculável que se daria, se um vulcão engolisse para as entranhas da terra os vômitos de fogo que lhe ferviam na boca.

Foi uma espécie de calcinação pelo abrasamento concentrado. O poeta sucumbiu.

A loquacidade vertiginosa do pobre Álvaro extinguiu-se de súbito. Sobre a mobilidade dramática do seu rosto, passou uma refrega de vento glacial, que lhe fixou na fisionomia um rictos congelado de espanto inalterável, profundo, e uma palidez fantástica de morto.

Ninguém houve que penetrasse o mistério daquela transformação. Álvaro sepultara em sua alma a desventura, como o cadáver duma ilusão trucidada. E os vermes deste cadáver roíam a vida ao poeta, e o poeta ocultava as dores no silêncio absoluto, como sob a discrição duma lápide de mármore.

Macerava-lhe, sobretudo, o espírito a fatalidade que resultava da catástrofe.

Sonhara viagens extraordinárias ao Egito, à Palestina, às Índias; e as tinha realizado; visitara as areias amarelas, cálidas e sem termo da planície africana, por onde trota o camelo, fustigado pelo sol, aspirando sôfrego as emanações do oásis distante; fora às florestas da Ásia, que o elefante percorre, dominado pelo cornaca, levando adiante a tromba poderosa, como uma serpente colossal cativa; vira o teatro das grandes cousas do passado, nas ruínas venerandas do oriente!... Sonhara deleitosas amantes, que soubessem abraçar como os polvos e como as deusas, amando e devorando, sequiosas e insaciáveis; sonhara o luxo europeu, abundante e caprichoso, o convívio dos grandes espíritos, a supremacia literária; e tudo tivera à mão, concreto e tangível...

Só aquele doce ideal da família, das venturas tranqüilas da paternidade, o mais santo enlevo do seu espírito sonhador e altaneiro é que havia de degenerar miseravelmente, numa vergonha atroz; só este ideal lhe havia de cair aos pés como um anjo prostituído!

Álvaro, desalentado, pediu socorro ao vício. Era mister aturdir-se. O jogo, a crápula, o vinho, qualquer cousa que atordoasse e aniquilasse! Contanto que lhe não fosse dado assistir em si mesmo ao desmoronamento que lhe destroçava as boas ilusões antigas.

Abandonou a casa. Vinha só de tempos a tempos, abraçar o filho.

Mais desembaraçada, então, dos tropeços que sempre aduz a presença do cônjuge, a esposa dava largas aos seus instintos alegres de borboleta.

Raciocinava, em satisfação à consciência, que era bien triste o marido. E tinha melancolias. Alguns amigos do tirano, compadecidos até à lágrima, dispensavam à vítima a mais terna e desinteressada proteção...

Extenuado de excesso e sofrimentos, o infeliz Álvaro enfermou gravemente. Foi bater a um hospital.

— Tem família? perguntaram-lhe.

— Não tenho família!

Numa triste enfermaria, povoada de gemidos e emanações infectas, esteve o doente algum tempo. Tinha delírios, de quando em quando, durante os quais relampeava por momentos um ou outro clarão do seu espírito, mortiço reflexo,. apenas, de sol posto.

E lá morreu.

Antes de morrer, ergueu-se; quis abandonar o leito. Contiveram-no. Estava mais branco que os lençóis, crescido os cabelos, a barba abundante. Barba e cabelo cercavam-lhe o rosto d'uma moldura negra, contrastando fortemente com o alvor da cútis e acentuando mais aquela palidez espantosa.

Olhou em roda do leito, movendo a cabeça, mas com os olhos parados.

Os enfermeiros em grupo observavam com assombro a atitude do extraordinário doente.

Álvaro sem articular um som, fez grande gesto com a mão, imperioso e solene, mandando embora os enfermeiros.

Os empregados do hospital afastaram-se dous passos e continuaram a ver.

O enfermo levantou a fronte, baixou-a depois lentamente, cravando um olhar, de través, terrível, num ponto do espaço; encolheu os ombros, contraiu os braços, crispando medonhamente os dedos. E descarregou toda essa violenta retração muscular num gesto único e supremo...

...............................................................

Ficou assim longamente, o braço direito, estendido para a frente, hirto, rijo e inexorável, apontando com o indicador nodoso e descarnado aquele objeto invisível que o seu olhar magnetizava e fulminava!...

Corte, 1884.

 

VIOLETA

Romance original brasileiro

... Étre maitre du bien et du mal, régler la vie, régler la societé, resoudre à la longue tous los problèmes du socialisme, apporter surtout des bases solides à la justice, en résolvant par l'expérience les questions de criminalité, n'est ce pas là étre les ouvriers les plus utiles et les pias moraux du travail humain?

E. ZOLA (Le Roman Experimental)

I

Um dia, sumiu-se a pequena Eva.

O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.

Tempo perdido, esforço baldado.

Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.

Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:

— Sabe da Vevinha?...

Já ia perguntar isso mesmo...

E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.

Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma cousa que... devia contar ao sobrinho.

Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.

O marceneiro não se apercebia disso.

O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.

Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre. Estava abatido.

Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.

Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.

A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.

— Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!

Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido.

A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.

Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muchocho, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.

Entretanto a dor de Eduardo era maior.

O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.

A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro.

Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.

A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:

— De que ri-se?...

Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.

A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.

Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida.

Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.

Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia.

Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:

— Como sabe, minha tia?...

— O meu moleque viu...

— Será possível?...

— ... Viu...

Ah! se isto é verdade!

— ... O moleque viu...

O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dous parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:

— Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...

— Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.

— Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...

— Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua...

O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...

O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.

Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.

— Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...

E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.

Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:

— ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...

— Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...

— Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..

— Como?... perguntou-lhe esta.

— Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...

— O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...

— Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...

— Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...

— Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginásticos furtando uma criança, fraca, imprestável!...

Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.

— Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...

— Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos.

O que está dizendo é um insulto.

— Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor?

Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...

— Então, cale a boca... Se o seu moleque...

— ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...

Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!...

Não me demoro nem uma hora!...

Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja.

O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.

— São minhas! murmurou.

Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...

E fez um gesto com o punho cerrado.

II

No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma cousa curiosa. Depois da filha, o pai...

O que teria sucedido?

Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...

Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses.

Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.

Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia inda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.

— Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.

Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.

Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.

Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha.

Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio.

Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.

Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.

Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.

— O Eduardo partiu...

Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito.

Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.

Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regímen) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.

Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro?

O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se cousa inútil.

Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:

"Querida Juliana."

"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.

Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...

Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos.

Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...

Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.

Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...

A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!

Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.

Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me tr9uxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.

Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha."

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística