Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Um cacho de mortes, de Horácio Nunes


Texto-fonte:

Horácio Nunes Pires, Teatro selecionado,

Seleção, atualização, introdução e bibliografia por Lauro Junkes,

Florianópolis: Ed. da UFSC:FCC, 1999.

UM CACHO DE MORTES

Comédia crítica em 1 ato

Personagens

Gertrudes                        40 anos

Lucrécia                          24 anos

Fernando                        25 anos

César                             30 anos

Salomão                          50 anos

Autor                             40 anos

Ponto                             24 anos

Contra-regra                    25 anos

Aguadeiro (preto)             35 anos

Esta comédia é uma ligeira crítica aos dramalhões em que o punhal e o revólver horrorizam o público.

Em tais dramalhões, os autores escolhem títulos assus­tadores para os atos, assim como: O envenenamento, O assassi­nato, O enforcado, e outros semelhantes. Nós escolhemos para as cenas desta comédia os seguintes modestos e suavíssimos títulos para assustar crianças.

Ato único

Sala pequena. Duas portas ao fundo. Porta à esquerda. Janela à direita. À direita, uma mesa. Sobre a mesa, um casti­çal com vela acesa. Poucas cadeiras simples.

CENA I — A SUSPEITA!

FERNANDO

(Sentado, com os cotovelos apoiados sobre a mesa e o ros­to oculto nas mãos. Momento de silêncio. Levanta vagarosa­mente a cabeça e percorre a cena com a vista. De repente dá um murro sobre a mesa e levanta-se hirto. Sombrio e com voz so­turna.)

Há bastante tempo, uma terrível desconfiança me rasga o coração!... Quantas noites tenho passado em vigília, pensan­do nisto!... (Dando um passo, tragicamente.) Ah! se eu descubro que ela me engana... com que feroz alegria a matarei!... com que requintes de perversidade vê-la-ei estorcer-se a meus pés, com os olhos esbugalhados, com a língua um metro fora da boca!... (Pausa.) Preciso verificar quanto antes se são fundadas as minhas suspeitas... (Vendo entrar Lucrécia da esquerda, à parte.) Ei-la... Dissimulemos.

CENA II — DISSIMULANDO!

FERNANDO, LUCRÉCIA

LUCRÉCIA – Vais sair?

FERNANDO – (Desconfiado.) Tens, por acaso, a preten­são de adivinhar? Por que perguntas isso?

LUCRÉCIA – Se estás com o chapéu na cabeça!

FERNANDO – (À parte, levando a mão ao chapéu.) E eu que já não me lembrava! (Alto, incomodado.) É boa! Querias, talvez, que pusesse o chapéu nos pés!... Vou dar um pas­seio, sim.

LUCRÉCIA – Por que não vais jogar uma partida de bilhar?

FERNANDO – (À parte.) Quer afastar-me, a hipócrita! (Alto.) É verdade: lembraste bem. Vou jogar uma partida. Até logo, Lucrécia. (Sobe.)

LUCRÉCIA – (Sentando-se.) A que horas voltas?

FERNANDO – (À parte.) Quer saber a hora! (Alto.) Não voltarei antes das onze ou meia-noite.

LUCRÉCIA – Mas toma cuidado. Em vez de ires para o bilhar, não vás te meter por aí...

FERNANDO – (À parte.) Espera, que eu te ensino. (Alto.) Até logo, Lucrecinha. (Sai.)

CENA III — O SINAL!

LUCRÉCIA

(Levantando-se.) Graças a Deus, saiu. Agora, façamos o sinal. (Vai à janela e agita o lenço.) Com que ansiedade o meu César espera este sinal!... (Continua os sinais.)

CENA IV — DEBAIXO DA CAMA!

LUCRÉCIA, FERNANDO

FERNANDO – (Sutilmente aparecendo ao fundo.) Vou es­conder-me debaixo da cama... (Sai pela esquerda.)

CENA V — A PECADORA!

LUCRÉCIA

(Agitando o lenço.) Vem, meu querido César... Há dois dias que não te vejo, e morro de saudades... (Descendo.) Meu Deus! Como eu amo o César, e como o César me ama! Se a gente adivinhasse, eu não teria certamente casado com o lorpa do Fernando... Um tolo, que não serve para nada! E no entre­tanto, quem o vir com as suas valentias de mata mouros há de pensar que aquilo é um homem!...

CENA VI — O AMANTE!

LUCRÉCIA, CÉSAR

CÉSAR – (Ao fundo.) Lucrécia, Lucrécia!

LUCRÉCIA – (Correndo a ele e abraçando-o.) Meu querido César!... Como te demoraste!...

CÉSAR – O meu serviço no quartel é uma prisão... E seu marido, esse "trouxa", que não nos deixa gozar livre­mente os nossos amores!... (Fardado de policial, com divisas de cabo.)

LUCRÉCIA – Saiu. Foi jogar ali no bilhar da esquina.

CÉSAR – Não está lá, porque de lá venho eu. Quem sabe se o bruto já desconfiou?

LUCRÉCIA – Não sei. É verdade que há pouco notei-lhe...

CÉSAR – O que foi que lhe notaste?

LUCRÉCIA – Uns modos muito esquisitos.

CÉSAR – Então o melhor é safar-me. Não vá ele estar por aí a espiar-nos.

LUCRÉCIA – César, que amores sobressaltados os nos­sos!... Ai! se o Fernando morresse!...

CÉSAR – Era uma pechincha! Como nós seríamos feli­zes! Com que alegria eu deporia a teus pés estas divisas de cabo de polícia, dizendo: – "Estas divisas, que conquistei fa­zendo faxina e rondas, montando guardas e metendo gatunos no xilindró, são tuas, pertencem-te; faz delas o que quiseres!"

LUCRÉCIA – Fernando é um trambolho que deve desa­parecer.

CÉSAR – Mas enquanto não lhe damos destino, vou ver se está realmente no bilhar. É uma medida de segurança.

LUCRÉCIA - Pois vai, meu querido; mas não te demo­res, sim?... Enquanto te espero, vou ferver água para o café.

CÉSAR – Até já. (Sai pelo fundo. Lucrécia sai pela esquerda. Cena deserta um momento.)

CENA VII — A CARTA FATAL!

FERNANDO

(Da esquerda, com um papel na mão. Amarelo, trêmulo, ar­repiado e coberto de cal e teias de aranha. Declamação trágica.) Ah! Mulher infame! Mulher sem coração! Mulher sem alma! Mu­lher sem fígado! Mulher sem bofe!... Estão justificadas as minhas suspeitas! Enganar-me com um cabo de polícia!... Desonrado... apontado ao dedo com um... um coisa!... Ah! mas esta traição indigna merece uma punição estrondosa!... Vou matá-la... que me importa a cadeia?... Ao menos, no fun­do negro de um cárcere terei para consolar-me das minhas agonias a doce lembrança de que pus em gravetos uma infi­el!... Mulher desleal! Mulher indigna... soou a tua última hora!... (Chamando.) Lucrécia! Lucrécia! (Descendo.) Uma Lucrécia fim de século... como o cometa do doutor Falb!... (Mete as mãos nos bolsos e começa a passear, gesticulando nervosamente.)

CENA VIII — ENVENENADA!

FERNANDO, LUCRÉCIA

LUCRÉCIA – (Da esquerda, muito alegre.) Já de volta? (Reconhecendo o marido, à parte.) Jesus! Pensei que era o César! Que entalação!

FERNANDO - (À parte.) Encalistrou... Aqui há coisa. (Alto, com voz surda.) Já de volta, sim.

LUCRÉCIA - Mas com que cara me dizes isso!

FERNANDO - Deixe a minha cara. A minha cara não é da sua conta. Ouça-me, e resigne-se à sua sorte!

LUCRÉCIA - Estás dramático hoje. Olha que eu gosto de ver cenas no teatro, mas não cá em casa. Fica sabendo.

FERNANDO - Pois é justamente uma cena de teatro que a sra. vai ver e representar ao mesmo tempo!

LUCRÉCIA - Estás tolo!

FERNANDO – (Com explosão, pondo-lhe o papel diante dos olhos.) Conhece esta carta, senhora?

LUCRÉCIA - (Recuando.) Esta carta!... (À parte.) Meu Deus! Como foi ele descobri-la debaixo da tampa do... coisa!

FERNANDO - Responda, senhora... Conhece?

LUCRÉCIA – (A tremer, com voz de choro.) Eu... eu...

FERNANDO - Ouça o que diz esta carta infame!

LUCRÉCIA - (Suplicante.) Fernando!...

FERNANDO - (Gritando.) Silêncio! (Lê.) "Adorada Lucrécia" - (Trágico.) Adorada Lucrécia! Infâmia!... Pouca ver­gonha. (Lê.) "Adorada Lucrécia. Ontem estive impedido no quartel, e não pude ir ver-te; mas hoje não te esqueças do sinal, quando o malandro do teu marido sair". (Trágico.) Ma­landro! Malandro é ele, cachorro! (Lê.) "Estou no bilhar da esquina. Teu do coração. César Gralha, cabo da 'primeira'" (Amarrota a carta e atira-a à cara de Lucrécia.) O que me diz a isto, senhora?...

LUCRÉCIA - (Chorando alto.) Mas, Fernando...

FERNANDO - Aqui não há Fernando, nem Fernandinho, nem Fernandão! Há um tigre sedento de sangue, uma pantera famulenta, um leão raivoso dos desertos da África, farejando a vingança, como o cão fareja o gato que mia no telhado!...

LUCRÉCIA - (À parte.) Como ele está danado!

FERNANDO - Encomende-se a Deus, porque soou para si a trombeta do juízo final!

LUCRÉCIA – (Tapando o rosto, a tremer.) Jesus!

FERNANDO - Vamos! Ajoelhe-se!

LUCRÉCIA - Perdão, Fernandinho!... Eu prometo não fazer outra e mandar o César passear!

FERNANDO - Para a senhora não há perdão, não há piedade, não há compaixão, não há misericórdia! Há o diabo, porque vou fazer o diabo! Ajoelhe-se!

LUCRÉCIA - Fernando!

FERNANDO - (Obrigando-a.) Ajoelhe-se! Já disse!

LUCRÉCIA - (Caindo de joelhos.) Meu Deus!

FERNANDO – (Tirando um embrulho do bolso.) Engula isto, sra.!

LUCRÉCIA - O que é isso?

FERNANDO - É estricnina!

LUCRÉCIA - Estricnina! Misericórdia! O veneno com que matam os cachorros, de manhã, no mercado!... Socorro! Socorro!

FERNANDO - Engula!

LUCRÉCIA - Não engulo! Eu nunca engoli isto!

FERNANDO - Ah! não quer engolir por bem, engolirá por mal! (Aperta-lhe a garganta.)

LUCRÉCIA – (Fazendo caretas.) Ham! ham! ham!

FERNANDO – (Depois de despejar-lhe na boca o conteúdo do embrulho.) Engoliu! A senhora há de engolir o que eu qui­ser! (Mostrando o papel do embrulho.) Pronto! Neste mundo en­gole-se tudo e a senhora não é mais pintada do que as outras que têm engolido também!

LUCRÉCIA – (Levantando-se, a fazer contrações.) Meu Deus! Socorro!... Vou morrer!... (Sai pela esquerda. Ouve-se o ba­que de um corpo e um grito.)

CENA IX — NINGUÉM ESCAPARÁ!

FERNANDO

Está morta! Enganava-me: matei-a! E hei de matar todos que queiram tomar-me o caminho! (Olhando para a esquerda.) Lá está estendida no chão, sem movimento, hirta, com os olhos vidrados! Ah! aquela Lucrécia não era a Lucrécia filha do Salomão Batata! Era a Lucrécia filha de Alexandre VI.

CENA X — SUFOCADO!

FERNANDO, AGUADEIRO

AGUADEIRO – (Ao fundo, com um barril à cabeça.) Aqui está a água, patrão.

FERNANDO - (À parte.) Ah! o desgraçado vai ver o ca­dáver! É preciso que também morra para não descobrir o meu segredo!...

AGUADEIRO - Oh! patrão, aqui está a água.

FERNANDO - Vá despejá-la no pote.

AGUADEIRO – Cá vou. (Encaminha-se para a esquerda.)

FERNANDO – (À parte.) Acabemos com isto! (Corre a ele, por trás, e aperta-lhe o pescoço com as duas mãos. – O Aguadeiro estorce-se. – O barril cai para dentro da porta. – Luta entre os dois. – O Aguadeiro, afinal, cai para dentro da porta.) – Estás morto! Le­vas contigo meu segredo, e os cadáveres não falam! Tiremo-lo daqui. (Sai pela esquerda.)

CENA XI — ELE!

CÉSAR

(Entrando pelo fundo.) O tipo não estava no bilhar, e vol­tei para tornar a ver a minha adorada Lucrécia... Como eu a amo! Todas as noites, no quartel, deitado nas tábuas duras da tarimba, mordido pelos percevejos, devorado pelas pulgas, sonho com a Lucrécia... penso vê-la me abraçando, dizendo mil palavras de amor!... Mas, de repente, acordo-me em so­bressalto, nervoso, tremendo, com medo do marido! (Subin­do.) Mas onde estará ela?... Ah! deve estar fazendo o café. Va­mos à cozinha. (Vai sair pela esquerda.)

CENA XII — O TIRO!

CÉSAR, FERNANDO

FERNANDO – (Da esquerda, recuando.) Ah! o amante!

CÉSAR – (Recuando, ao mesmo tempo.) Ah! o marido!

FERNANDO – O que vem fazer aqui, senhor?

CÉSAR – (Com medo.) Entrei por engano; mas já me retiro...

FERNANDO – (Segurando-o pela gola.) Não! não entrou por engano! O senhor é um canalha!... Vinha vê-la, pensando que eu não estava em casa! Pois bem, senhor... vai vê-la pela última vez!

CÉSAR – (Tremendo.) Mas, senhor... (À parte.) Ah! se eu tivesse trazido o meu chanfalho...

FERNANDO – Nem uma palavra! (Leva-o à porta da es­querda.) Veja a sua obra, senhor! Ali a tem, morta pela estricnina, o tempero com que se apimentam as bolas para os cachorros!

CÉSAR – (Recuando e tapando os olhos.) Horror! Horror! Assassino! (Quer fugir.)

FERNANDO – (Tomando a porta do fundo e engatilhando uma pistola que tira do bolso.) Nem mais um passo, ou morres como um gato!

CÉSAR – (Recuando.) Perdão, senhor! Perdão!

FERNANDO – Sim, miserável, canalha, bilontra! Vais morrer como um gato! (Dá o tiro.)

CÉSAR – (Caindo.) Ah! socorro! socorro!...

FERNANDO – Mais um cadáver! Vamos pô-lo ao lado dos outros! Aquilo já não é um corredor: é um cemitério! (Sai pela esquerda, arrastando César.)

CENA XIII — A SOGRA!

GERTRUDES

(Do fundo.) Oh! menina! Oh! Lucrécia! (Reparando.) Como! Não há ninguém em casa! Mas então saíram, deixando a porta aberta! É célebre! (Pausa.) Talvez estejam lá para dentro, fa­zendo alguma coisa... Não os incomodemos... Eu também, logo que me casei com o Salomão, tinha tanto em que cuidar, que andava sempre numa roda-viva!

CENA XIV — AS PUNHALADAS!

GERTRUDES, FERNANDO

FERNANDO — (Vai entrar, e recua. À parte.) Minha sogra!

GERTRUDES — Boa noite, meu genro. Como vai isso?

FERNANDO — Chegou fora de propósito, minha sogra. Não devia ter vindo cá hoje.

GERTRUDES — Por quê?

FERNANDO — Mas a fatalidade assim o quis, e ninguém foge à fatalidade. Foi a fatalidade que a trouxe.

GERTRUDES — Não entendo.

FERNANDO — Entendo-me eu, e é quanto basta!

GERTRUDES — Mas onde está a Lucrécia?

FERNANDO — (Pulando.) A Lucrécia!

GERTRUDES — Sim, minha filha. Pois então!

FERNANDO — Não me fale nela! Não me fale nela!

GERTRUDES — Por quê?

FERNANDO — Porque perco a cabeça! Porque só vejo sangue! Porque tenho gana de matar a todos.

GERTRUDES — Oh! meu genro, você está maluco? (À parte.) Ora, querem ver que o canalha meteu-se na chuva!

FERNANDO — Compreendo o seu pensamento; mas es­tou no meu juízo perfeito.

GERTRUDES — E então?

FERNANDO — Então... sua filha está morta!

GERTRUDES — Morta! A minha Lucrécia morta!

FERNANDO — Sim! Matei-a, como os fiscais da câmara municipal matam os cães! Matei-a com estricnina! Um fiscal que mata um cão, comete um "canicídio"; um homem que mata outro, comete um homicídio; um pai que mata um filho, co­mete um "filhicídio"; um filho que mata a mãe, comete um "matricídio"; um rapaz que mata um gato, comete um "gaticídio"; eu, que matei uma Lucrécia, cometi um "lucrecicídio"!...

GERTRUDES — Oh! meu Deus! O senhor está brincan­do... Isso é impossível!

FERNANDO — Impossível! (Leva-a à porta da esquerda.) Veja!

GERTRUDES — (Desorientada.) Um! dois! três! Três de­funtos!... Assassino!... Quem acode! Quem acode!...

FERNANDO — (Segurando-a.) Silêncio! Eu bem lhe disse que foi a fatalidade que a trouxe hoje cá. Compreende a im­portância do segredo que acaba de descobrir?

GERTRUDES — (Forcejando para fugir.) Ai! ai! Largue-me! Largue-me!...

FERNANDO — É um segredo terrível... um segredo que só o túmulo pode guardar!... Ajoelhe-se e reze, porque tam­bém vai morrer! Vou matá-la sobre o cadáver de sua filha, da­quela segunda edição da Lucrécia Bórgia! O mundo há-de aplaudir-me, porque liquidarei mais uma sogra!...

GERTRUDES — Socorro! Socorro!

FERNANDO — (Tirando um punhal da cava do colete.) Vamos! Não me faça esperar!

GERTRUDES — Perdão, meu genro! Eu não digo nada, mas não me mate!

FERNANDO — Que não a mate! Quer então que a deixe viver para denunciar-me! O tempo dos tolos já passou! Vou matá-la, sim! Vou cometer um "sogricídio"! (Sai levando-a pela esquerda, levando-a segura pela ponta do nariz.)

GERTRUDES — (Fora.) Jesus! Não me mate! Não me mate!

FERNANDO – (Fora.) Silêncio! Primeira punhalada – na barriga!

GERTRUDES — (Fora, com um grande grito.) Ai!

FERNANDO — (Fora.) Segunda punhalada — nas costas!

GERTRUDES — (Fora, com um grito mais fraco.) Ai!

FERNANDO — Terceira punhalada — no coração! (Ouve-se o baque de um corpo.)

GERTRUDES — (Com voz quase extinta.) Ai! quem me aco­de! (Momento de silêncio, Estampido de dois tiros de pistola. Ouve-se um cão ganir e um gato miar fortemente.)

CENA XV — O INFANTICÍDIO!

FERNANDO

(Da esquerda, com uma criança nos braços.) Matei também o gato e o bucica! É preciso que morras tu também, pobre cri­ança, porque, em vista dos autos, eu não sei o que te diga! Morre, morre, infeliz rebento da árvore do Salomão Batata, da Lucrécia Batata, e de outras batatas que não conheço, e vai fazer companhia à tua mãe! Estes horrorosos sucessos provam que as melhores batatas são as inglesas, mas que essas mes­mas dão muitas vezes dores de barriga... (Esgaçando a criança.) Adeus, Batatinha! Até a eternidade! (Sai pela esquerda.)

CENA XVI — O SOGRO!

SALOMÃO

(Entrando pelo fundo.) Mas onde se meteria a Gertrudes?... Entro em casa para tomar café, e tomo o dissabor de encontrar a casa deserta! E isto me aborrece seriamente. A Gertrudes, no seu tempo, foi ventana, e é capaz de andar por aí fazendo das suas... Na cidade há tantas casas de tirar sortes!...

CENA XVII — O ENFORCADO!

SALOMÃO, FERNANDO

FERNANDO — (Da esquerda, recuando, à parte.) Meu so­gro! Horror! Mais uma vítima... mais um "sogricídio"!

SALOMÃO – Olá, meu genro, como vai essa bizarria?

FERNANDO – Esta bizarria vai mal. Obrigado. (À par­te.) Deste pobre diabo é que eu tenho pena... mas não há remédio!

SALOMÃO – Mal? Por quê?... Em que tom me diz isso!

FERNANDO – Meu sogro, acho bom que se raspe quan­to antes. A sua presença aqui pode dar lugar a mais uma des­graça! Saia! Saia!

SALOMÃO – Mas sair, por quê? Oh! criatura, você está doido ou na pinga?

FERNANDO – Na pinga... na chuva... bêbado... no pifão... antes estivesse!

SALOMÃO – Mas o que é que há? Que atitudes tão trá­gicas são essas, não me dirá?

FERNANDO – Senhor meu sogro, a situação assim o exige. Saia! Saia!

SALOMÃO – Ora, bolas! Não saio!

FERNANDO – Saia, senhor! Saia!

SALOMÃO – Mas, com mil diabos! Explique-se, se quer que o entenda! É boa! Venho ver se a Gertrudes está aqui, e...

FERNANDO - (Furioso.) A Gertrudes! Horror! Horror!

SALOMÃO - (À parte.) Está num pifão "onça", coita­dinho!

FERNANDO - A Gertrudes! Quer ver onde está a Gertrudes?

SALOMÃO - Atrás dela ando eu.

FERNANDO - Vai vê-la mas pela última vez!...

SALOMÃO - Como é lá isso?... (À parte.) E não é que eu estou ficando com medo!

FERNANDO – (Levando-o à porta da esquerda.) Venha vê-la. Olhe!...

SALOMÃO - (Tapando o rosto.) Misericórdia! Sete cadá­veres... inclusive o bichano e o bucica!... (Descendo, furioso.) Vou denunciá-lo à polícia! Há de ser enforcado!

FERNANDO – (Laçando-lhe o pescoço com uma corda, que tira do bolso.) Não terás tempo! Vais morrer também! (Arrasta-o para a esquerda.)

SALOMÃO – (Sufocado, a forcejar.) Ham! ham!

FERNANDO - Hás de morrer, desgraçado! Ao menos dou-te uma boa morte, porque dizem que os enforcados mor­rem com sensações deliciosas!

SALOMÃO – (Já à porta esquerda.) Ham! Ham!

FERNANDO – Vá mais este fazer companhia aos ou­tros!... (Sai arrastando Salomão, e volta logo.) Oito defuntos... com o cachorro e o gato! Oito assassinatos!... Oito crimes horroro­sos!... Como poderei eu viver, perseguido pelo remorso, atormentado pelas sombras das minhas vítimas! Oh! não! não!... Prefiro morrer também!... (Apunhala-se e cai.)

CENA XVIII — A NAVALHADA!

CONTRA-REGRA

(Em mangas de camisa, com um livro na mão direita, uma vela acesa na esquerda, e um apito pendurado no pescoço.) E esta! E assim compromete-se um pobre contra-regra, que está cumprindo o seu dever! Pois o danado não trocou a deixa! (Vendo o corpo.) Jesus! Com o peito furado! Pois o patife não se matou às deveras!... Que se matasse no fim, como está no drama, vá lá; mas antes do tempo, para comprometer o efeito da peça!... (Vai sair pela esquerda, e recua.) Misericórdia! Que mortandade!... Se me pegam no meio de tanto defunto, enforcam-me como assassino! Fujamos, fujamos! (Vai sair pelo fundo. Rumor dentro. Voltando.) É já a polícia, sem dú­vida!... Ah! só um recurso me resta: é morrer também! Meu Deus! Tem compaixão da minha alma! (Apunhala-se com a vela e cai.)

CENA XIX — A CABEÇADA FATAL!

AUTOR

(Sem ver os corpos.) Mas que silêncio!... Onde está esta gente?... (Ao público.) Autor dramático, escrevo uma peça sen­sacional, confio-a a meia dúzia de pataqueiros, e enterram-me a coisada!... Isto não se suporta!... Nem uma palma, nem um bravo!... Pois olhem que já tenho visto representar outros dramalhões no mesmo gosto, e o público desmancha-se em aplausos! (Vendo os corpos.) Como! O que é isto?... Dois defun­tos! (Vai sair pela esquerda, e recua.) Ah! sete cadáveres em penca!... E se a polícia me encontra agora aqui?... O cárcere por toda a vida, quando estou inocente como uma virgem! O que fazer?... Devo morrer também... Mas não tenho nem um canivete comigo... Ah! parto a cabeça em uma parede, e está tudo acabado! Antes isto, do que ser pendurado em uma for­ca! (Dá com a cabeça na parede e cai.)

CENA XX — APOPLEXIA!

PONTO

(Saindo da concha, com um livro debaixo do braço. Em man­gas de camisa e de chinelos.) Ah! a coisa é esta! Não há mais nin­guém para morrer?... Pois morro eu de uma apoplexia fulmi­nante! Mas antes de dar a alma a Deus, tenho de dizer duas palavrinhas. (Ao público.) Meus senhores a peça que acaba de representar-se não é mais do que a reprodução dos dramalhões tenebrosos de certos autores sanguinários, tão apreciados e tão aplaudidos por muita gente que diz que o drama não presta, quando não tem, pelo menos, dez envenenamentos, vinte adul­térios, trinta punhaladas e quarenta tiros de revólver. Os se­nhores, para serem coerentes com as suas próprias opiniões sobre o assunto, não devem deixar de aplaudir uma peça como esta, em que nem o próprio autor escapa. Vamos lá: quero morrer, ouvindo as pipocas das palmas! (Deita-se.) Podem aplaudir... que já estou morto! (Pausa. Sentando-se.) Ah! não aplaudem?... Pois declaro-lhes que não lhes dou o gostinho de morrer, e que vou mandar descer o pano sem a surpresa final! (Gritando, sempre sentado.) Desça o pano!

CENA XXI — RESSURREIÇÃO!

TODOS OS PERSONAGENS

TODOS – (Entrando uns e levantando-se outros.) Não des­ça ainda! Não desça ainda!

FERNANDO – (Profundamente admirado.) Como!... Pois ressuscitaram todos?...

AUTOR – Como sucede em muitos dramas em que os sujeitos morrem num ato e aparecem de saúde perfeita no ou­tro sem darem satisfações ao respeitável público. Mas fique descansado que o César não o incomodará mais. Foi um ajuste que fez com a Lucrécia no outro mundo, e um ajuste entre defuntos é sagrado.

FERNANDO – Então, oh! Lucrécia, filha do Salomão Batata!...

SALOMÃO – (À parte.) O diabo que o jure! A Gertrudes era tão ventana!...

GERTRUDES – (Requebrando-se.) Oh! Salomão, parece quando a gente ressuscita torna a ficar moça!... Eu sinto o san­gue correr-me nas veias como se fosse azougue!...

SALOMÃO – (Empertigando-se.) E eu sinto o meu san­gue transformado em chumbo derretido! Gertrudes, vamo-nos embora!

FERNANDO – (À Lucrécia.) Venha de lá um abraço, e solenizemos a nossa ressurreição com um maxixe de obrigar o respeitável público a cair também na coisa! Vamos lá! (Todos, formando duas alas, cantam o coro final; caindo num maxixe danado no intervalo de cada estrofe.)

CORO FINAL

Nesta troça que aí fica.

sem sabor de assuntos vários,

tão somente se critica

os dramalhões "sanguinários"!

Do teatro devem logo,

por sediços e ordinários,

ser expulsos mesmo a fogo,

os dramalhões "sanguinários"!

Viva o drama realista,

que com seus encantos vários,

mata, em lúcida conquista,

os dramalhões "sanguinários"!

FIM