Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Ao Juiz dos AusentesHarry LausA Ruth Laus

Crime

O bar Salvaterra (quatro mesas na calçada), pequena loja de artigos para homens e uma engraxataria definem o lado direito da praça. Ao fundo o cinema, à esquerda um armarinho e a barbearia. Nem árvore, nem bancos. Por que praça, não se sabe. A necessidade de dar nome às coisas, como poderia chamar-se largo ou beco. Equivale ao picadeiro de um circo, porém quadrado. Jamais exibiu-se ali o equilibrista, a mulher do arame rodando sombrinha japonesa, o palhaço de cara verde e bengala torta; exibem-se noite após noite a moça de azul e sapatos novos, o bancário, o sargento do exército, estudantes, funcionários públicos - todos vão ao cinema. Já esqueceram, não comentam mais o que se passou ali há duas semanas.

De tarde. A luz ou desluz do sol dirigindo tudo, também aqui é o ponto de partida para a história:

O caixeiro-viajante chegou ao bar Salvaterra e pediu um conhaque.

– Sem gelo, é claro.

Quando o garçom pôs o cálice na mesa, olhou a mão do homem. Grossa, dedos amarelos de nicotina, um coração roxo no indicador.

– Rubi?

– Ametista.

Lábios, língua, faringe, esôfago, o conhaque iluminou os olhos do caixeiro numa careta de desgosto. Mas pediu outro. E esse era para render, sorvido às gotas. O âmbar ou topázio do conhaque, o belo contraste com a ametista do dedo.

Praça deserta, bar vazio, o sol cintilando um ponto na calçada. Medalha de Nossa Senhora das Graças. Igual à do filho do caixeiro-viajante, mas por certo não foi motivo de discussão, como em seu caso. Ele queria cordão de prata, a mulher, de ouro.

– Prata vai deixar o pescoço do menino todo preto, Augusto.

Acabaram pendurando a medalha num cordão de nylon.

Quando havia uma solução intermediária, voltava o entendimento e a paz. O caso do aspirador de pó foi mais difícil porque só havia duas marcas na cidade. Uma semana de discussões, sempre à mesa, para arreliar a Lia, o sogro, as crianças. Do aspirador passavam à comida, ora sal demais, ora insossa, os filhos que não estudavam, as contas a pagar e – fatalmente – as lágrimas da mulher encerrando a cena. Levantar-se, vestir o casaco, ir para a loja. Viajar novamente?

– Para Minas está bem.

Eis uma forma frequente de se amargurar a vida. Nenhuma grandeza no espírito do caixeiro-viajante. “Que pode fazer um homem para ser alegre?” – essa a pergunta que mais o entristecia, pondo-o no mundo a vender fazendas, de cidade em cidade, de hotel para hotel, no balcão tentando convencer o freguês.

– Veja a marca na ourela. Fio inglês.

Aos bares ia pouco. O garçom estranhou o pedido; conhaque com um calor desses. “Não deve ser homem de bebida”. Despesa pequena, gorjeta menor, meteu-se atrás do balcão e limitou-se ao jornal. Por isso não viu como se passaram os fatos e seu depoimento no inquérito foi inútil.

– Não olha que é feio, minha filha

O viajante ouve e ainda pode ver a senhora puxar a menina pelo braço e desaparecer na esquina. Em frente, próximo à barbearia, está a coisa feia que a criança não deve olhar. Dois cães. Quando ela compreender o que estão fazendo há de concluir que também nasceu de um alo feio - considera ele. E lembra se de sua mãe: “Estão juntos porque são aleijados, nasceram assim”. “Em quarenta anos- intervalo entre “estão juntos porque são aleijados” e “não olhe que é feio” – nenhuma evolução” – e molha os lábios no conhaque morno. Enxuga o suor da Lesta, afrouxa a gravata, procura melhor posição na cadeira.

Os animais ainda estão ali, submissos, aguardando a dissolução do compromisso. (A briga com o colega de ginásio. Corno podiam jogar pedra nos bichinhos?) A cadela impacienta-se, o cão rosna, deslocam-se para a poria da barbearia.

– Fora daqui!

Os animais permanecem.

– Fora!

O barbeiro chega à poria, bale os pés. Imperturbáveis, os cães limitam-se a olhá-lo. O homem irrita-se, desaparece para voltar em seguida. Ganha a rua, chega aos animais. Um só golpe! A navalha não luze e mancha-se de sangue. O cão desabala ganindo e a cadela, os olhos ternos, abana a cauda.

Da barbearia as gargalhadas, da mesa do bar os tiros. Gente surge de toda a parte. Perplexidade. Ninguém vê o caixeiro-viajante guardar o revólver no coldre. Acompanham a desajeitada rotação do corpo do barbeiro e seu baque no cimento.

Vozerio, passos na calçada, a pequena praça reanima-se.

– Foi ele.

O caixeiro-viajante não pensa em levantar-se, em fugir, está confuso, paralisado. 0 que o traz à realidade é um bater compassado e leve no peito do pé. Um pombo bicando arroz em seu sapato? Olha. O conhaque escorrendo da mesa, gota a gota.

Segredo

O enterro de Juvenal sairá dentro de quinze minutos.

A viúva olha para fora – o céu, goiabeira no quintal, galinheiro – para de chorar e volta-se para a essa. Juvenal, branco, roupa ruça do casamento, tranquilo como o surpreendera a seu lado na primeira noite.

Na sala um pigarro, arrastar de sapatos nos ladrilhos, o menino coçando o braço por cima da camisa, Nenhum vizinho apareceu. Juvenal tem a seu redor os pais, sogros, um cunhado que apenas o cumprimentava, dois filhos, o maior de onze anos e a menina de perfil pálido igual ao que emerge das flores. Dois motivos para as flores: tradição e necessidade de ocultar o ferimento na cabeça, causador da morte.

Jandira pensa nos filhos. Seis. Os menores mandou para a casa da mãe. “Não é bom ver o pai morto, não digam como morreu”. – Lembra-se do casamento, mesma sala, toda a vizinhança, alegria. O corpo de Juvenal substitui garrafas de guaraná, pratos de doce, bolo de noiva em três degraus – presente da patroa.

– Vais fazer tolice, criatura

– Tolice nada, dona Amélia, gosto dele.

Doze anos juntos, a casinha melhorando aos poucos, que Juvenal foi o melhor pedreiro da cidade. Seu último objetivo, inacabado: pôr água encanada para descansar Jandira e as crianças das idas ao poço.

– Gente pobre não precisa de conforto – dizia ela.

Mas o marido dava solução a tudo: forro para a cozinha, telheiro no tanque de lavar roupa, construção do galinheiro. Até doces para os meninos comprava. Um dia aparece com uma paisagem de neve em moldura preta.

– Coisa feia, Juvenal, preto é cor de defunto.

– Olha a lua. E esta montanha branca, o riacho – a casinha não parece a nossa?

Paisagem na parede, marido no caixão, novamente volta-se para o quintal e enxuga os olhos com os dedos.

Dez minutos para o enterro.

Na véspera, Juvenal ainda se encontrara com o delegado. Assunto de sempre, a reforma da cadeia.

– A cela não dá mais jeito. Quando é que você acaba o serviço?

Ele prometia:

– Na semana que entra.

Certo é que o trabalho ia para quatro meses sem pagamento.

– Dinheiro do Estado demora – justificava o delegado. Mas já foi tudo empenhado, fim do mês você recebe.

Promessa por promessa, Juvenal roubava tempo para biscates e – dinheiro do Estado – construiu seu galinheiro com material da prisão, trazido aos poucos com a ajuda do filho.

– Tua mãe não precisa saber.

Ela nem desconfiou. Gostava de ouvir o carrinho de mão anunciando a chegada dos dois à noitinha.

Pai e filho trabalhavam em casa aos domingos.

– Falta muito, papai?

– Só duas fileiras. O telhado sai mesmo de meia-água que é mais ligeiro.

Para pôr água encanada não havia material na prisão. Mas Juvenal não suportava ver a esposa curvada ao peso dos baldes. Encontrou a solução no depósito da Casa Aliança. De noite, nenhum vigia, pulava o muro e servia-se: torneiras, joelhos, conexões, na vez dos canos o proprietário começou a dar pela falta.

Jandira ignorava tudo porque os acessórios eram escondidos no fundo do cercado, entre as bananeiras, depois do poço. “Quando estiver completo, digo que comprei à prestação” – resolveu ele. Mas o projeto interrompeu-se em quarenta segundos, tempo que levou para saltar o muro, aproximar-se da pilha, puxar um cano. Exatamente na cabeça. O sangue espirrou e o Juvenal desmanchou o monte de ferro num eco ao tiro da espingarda.

– Está na hora – diz o irmão de Jandira.

– Faltam cinco minutos.

– Não vem ninguém – acrescenta impaciente. E pensa nas desculpas dos vizinhos: muito trabalho, hora imprópria, doença em casa.

– Conte comigo para a missa.

O cunhado olha o chão, a paisagem na parede, evita o perfil do morto. “Sempre achei que não prestava”. – Mas nunca soubera por quê. As circunstâncias da morte, dando-lhe razão, reconciliavam-no, subitamente, com Juvenal. Se estava com pressa de enterrá-lo era para aliviar o sofrimento da irmã, para escondê-lo do olhar de estranhos – como se faz a um vivo que envergonhou os outros. E sentia ódio do delegado, do comerciante. Por que não contratar um vigia? O conselho do delegado foi mais econômico:

– O senhor não tem espingarda? Faça uma armadilha. Só prender a arma no barrote, alongar um arame do gatilho ao monte de canos, deixar o ladrão castigar-se.

Fazendo sinal aos outros, o cunhado levanta-se e, auxiliado pelo pai, fecha o caixão. As mulheres retomam o choro. Jandira, imóvel à janela. Os velhos seguram as alças da frente e o cunhado maneja, as outras para descer o fardo. O filho de Juvenal se aproxima e agarra uma das alças.

– Força!

O garoto, braço fino garantindo sua parte, olha sério para o tio.

– Vamos embora.

Jandira vê a mãe e a sogra tomarem a menina pelas mãos, saírem para a rua encerrando o cortejo. Fecha as janelas, detém-se um pouco a olhar a mesa vazia na penumbra da sala, atravessa o corredor e entra no quarto. Em frente ao espelho, corre o pente distraidamente pelos cabelos.

O Zelador

Como fosse muito longe, tomamos um carro.

– Vai chover – disse Emília.

Olhei o céu cobrindo-se de nuvens e pensei no convite para o almoço.

– Ela quer que vejas os livros – explicara Emília. Somos muito amigas, mas não a visito há bastante tempo.

– Com quem mora?

– Sozinha. Vive lá um preto que é zelador, para quando deixa a cidade.

Em frente da casa brinquei:

– Mas é uma ruína!

Jardim sem flor, paredes no tijolo puro, portão baixo em madeira crua, explicação desnecessária de Emília:

– Está em construção.

O zelador, calção verde, descalço, abriu a porta e sorriu:

– Pensei que não viessem mais.

Já o vira de bicicleta, sandálias de couro, chapéu branco de panamá. “É lutador de boxe” – contaram-me. Rosto aberto e moço, riso claro na face negra, a liberdade do traje e. dos gestos compôs a primeira nota desconcertante do almoço.

– Fiquem à vontade. Aceitam whisky?

Cumpria a deliberação de ser agradável, “Querem ouvir uns discos?”, de não dar tempo a nossas perguntas, “Sentem-se aqui", mas havia a pessoa que nos convidara.

– Está na cozinha – e mostrou as largas espáduas enquanto se afastava da sala.

Emília via o estado dos móveis, poeira, discos amontoados sobre um caixote, livros em desordem pelas estantes, capas rasgadas, invertidos os títulos.

– E analfabeto – disse. E calou-se porque o rapaz voltava com a bandeja, copos, gelo, whisky.

– Pediu para você ir lá dentro – falou para Emília.

– Não bebo, nem fumo – explicou enquanto me servia. Passo o dia em casa, fui eu que fiz tudo - porque sou pedreiro - e mostrava as paredes. Trabalho foi carregar esse montão de livros do apartamento para cá. Viu como tem? O outro gostava muito de ler. Acha que leu tudo isto? Está fraco, não é? Bote mais whisky. Bem disse que ia chover; já começou a cair água.

Não dava oportunidade a que se retrucasse, cioso de encher o tempo com suas próprias palavras.

– Gosta de Sílvio Caldas? Tenho uma porção de disco dele. Ela não gosta. Guarda no quarto as óperas e ouve sozinha, de noite. Fica danada se falo com cia – e riu, mostrando a dentadura perfeita.

Com a chuva, a casa de janelas fechadas trescalava a museu. Escolhi alguns discos e a velha eletrola encarregou-se de tornar mais lúgubre o ambiente, mal iluminado por pequena lâmpada no teto.

– Prepare-me um whisky – pediu Emília.

Estávamos novamente a sós, ela olhando o chão de ladrilhos, eu com um livro nas mãos. Ao entregar-lhe o copo, percebi seus ombros estremecerem. Olhou-me de relance e tornou a baixar os olhos:

– É triste. Queria que visses o apartamento, tudo em ordem, do bom e do melhor.

– Como foi?

– Não sei, não sabia que... O marido é formado, foi-se embora para o Rio, quando vem aqui fica no hotel.

– Ela não vai aparecer?

A apresentação foi na cozinha. Estendeu-me a mão, enxuta às pressas no avental, empregou as fórmulas de sempre, mas sem sorrir, antes com uma ponta de contrariedade nos olhos mortiços que não fixavam os meus. Explicou:

– Atrasei-me um pouco, mas não demora. Emília, leva-o no quarto e mostra os discos. Tem Carmen completa, pode ser que ele goste.

Álbuns no chão, pelas cadeiras, cama desfeita, outra estante repleta de livros. Escolhemos algumas árias que a eletrola reproduziu pondo acento fanhoso na voz dos cantores.

– Pronto – anunciou o zelador, ainda descalço mas de camisa azul e calça branca. Podem vir para a mesa.

Esperamos que ela chegasse e, ao assumir seu lugar, operou-se uma transformação no moço. Nada mais disse, limitando-se a encher os copos. Para ele, guaraná; para os demais, vinho português.

A voz da mulher:

– Emília disse que o senhor gosta de soufflé de camarão. Estes vieram de Santa Catarina.

Serviu-me e continuou:

– Já viu os livros? Os melhores ele levou. Uma porção de dicionários... mas deixou todos os livros de medicina.

Falava com naturalidade, sem trair qualquer sentimento dissimulado. Apenas, na última frase, poder-se-ia imaginar um leve tom irônico, destruído imediatamente pela expressão alheia dos olhos frios, amendoados, sem alegria, saltando do prato à garrafa, aos livros, ao rosto de cada um sem prender-se a nada.

Breves diálogos sobre a chuva, plano de decoração da sala, viagem de uma irmã à Europa, depois o silêncio igualou a refeição à tristeza da casa. As frases não encontravam repercussão, morriam no primeiro comentário. Emília tentou levar a conversa para um tema banal: o filme em cartaz. Ninguém havia visto. Quatro estranhos que se reúnem, por acaso, na mesma mesa de hotel.

O rosto escuro do zelador estava contraído, olhos no prato vazio, mão negra esmagando miolo de pão na toalha.

– Gosta de pêssego? – perguntou a mulher. E passou-me a sobremesa, cobrindo a visão negra da mão do rapaz com a sua, branca e enrugada.

Fixei a cabeleira dura e baixa do homem, pele lustrosa e lisa do rosto, lábios grossos e bem delineados, quando um ruído seco suplantou o barulho dos talheres na mesa. Não foi difícil identificá-lo. Igual ao esfregar de vassoura no assoalho, era o zelador coçando um pé no outro. Rápido, a mulher baixou a mão e o rumor estacou, depois de breve troca de olhares.

– Agora o licor – disse ela. E foi a primeira vez que sorriu.

Afastou-se com Emília para a cozinha e a loquacidade voltou ao moço:

– Vão lavar a louça. Ela cozinha bem, não é? Esse licor francês custou um dinheirão. Ela pode. – Aproximou-se do divã e deitou-se, pés de sola amarela na fazenda. – Aquela poltrona é boa. Ou prefere a rede? Pode dormir, se quiser; a casa é nossa. – E riu.

Sentei-me à poltrona e ele continuou, de olhos fechados:

– Passo o dia aqui dentro. Trabalhando as paredes. Às vezes vou treinar boxe no ginásio. Precisa me ver lutar. Depois volto para levar a velha para casa. Todas as noites vai para a casa da mãe. Dorme lá.

Contou-me o que havia feito no carnaval, descreveu a fantasia de índio – “Todo mundo gostou” – e protestou quando Emília quis despedir-se.

– Muito cedo. Deita aí na rede e vamos conversar.

Emília não lhe respondeu, sequer o olhou, apertou-me o braço:

– Vamos.

– Preciso agradecer o almoço, falar com ela.

Os olhos de Emília estavam vermelhos, explicou que voltaríamos outro dia, outro almoço, ela mandava pedir desculpas por não aparecer que não se sentia bem.

Quando a porta fechou-se atrás de nós, mal conteve as lágrimas para acrescentar:

– Está chorando. Ouviu-o chamá-la de velha.

Tamanduá-Bandeira

Às quatro da tarde, o sol no chão calcário deixa o pátio deserto. Os soldados entram em forma à sombra dos flamboyants. “Para conhecimento do Batalhão e devida execução” – começa o sargenteante. Voz monótona, calor, suplício ouvir a leitura do boletim diário quando só interessam escala de serviço e quarta parte, justiça e disciplina. Desatentos aos mais, inquietos pelo “confere com o original”, fora de forma, descer ao rio para o banho gostoso.

Passa um avião perdendo altura para a aterrissagem. Interrupção na leitura. O sargenteante aproveita para chamar a atenção dos que se mexem em forma. “Parece que nunca viram um avião”.

Do gabinete do comando o Major ouve os motores, imagina-se no Rio, pátio branco transformado em praia. “Quando fizer um ano...” – A sonhada transferência. Cada vez mais difícil suportar a rotina do quartel, calor desde a madrugada, molhando o uniforme de brim. Uma coisa o irrita acima de tudo: o banho de chuveiro, água sempre morna, que o sol dá o dia todo no encanamento.

Algo de anormal sucede no corpo da guarda. Vozerio, correrias, suspensão imprevista na leitura do boletim. Companhias debandam, fardas na brancura do solo. O Comandante assusta-se. “Será motim?” – porque os soldados vêm correndo em sua direção.

Mas o Capitão-Fiscal chega à porta:

– Venha ver, venha ver, comandante.

O Major levanta-se, consegue romper o círculo formado em sua frente e vê. Nunca havia visto. Duas coisas o impressionam: a cabeça e a cauda, ambas terminando em ponta, a primeira um funil recurvo c alongado, a cauda esmiuçando-se em pelos finos, mesclados de cinzento e amarelo, leque de palmeira ressequido.

– Bandeira, comandante.

– Tamanduá-Bandeira.

Acossado, preso pela cauda, o animal não reage. Os cães o denunciaram na horta, ao lado do quartel e o soldado Frederico encarregou-se de laçá-lo sob as vistas do Fiscal, nervoso, dedos comprimindo os óculos contra o nariz.

– Subiu do pantanal com a enchente – explica Frederico. Qualquer dia dá em aparecer mas é onça.

Logo armou-se um cortejo que foi engrossando, o animal arrastado, assobios, gritos, risadas da soldadesca alegre.

– Olha só o tamanho da língua!

– É a cara do cabo Ataliba.

– Come só formiga.

“Os jornais vão noticiar” – pensa o Major. A história na imprensa, seu nome lembrado, transferência mais breve. Comunica sua decisão aos oficiais:

– Vamos telegrafar ao Rio de Janeiro. Como havemos de arranjar alimentação para o bicho? Irá para o zoológico da Quinta.

Quando o secretário trouxe o telegrama para ser assinado, já fora escolhido um flamboyant onde amarrar o animal, nos fundos do quartel e novo serviço apareceu: guarda ao tamanduá. Por indicação do Fiscal, Frederico foi escolhido.

– Não é novidade para ele. O pai tem fazenda no pantanal.

Nos primeiros dias o guarda não tem trabalho. Crianças trazem latas, vidros, pacotes de formigas catadas no quintal de casa. O tamanduá finge indiferença. Permanece deitado, o grande leque da cauda puxado sobre a cara afunilada.

– Não chega perto, menino, cuidado com as patas.

– Parece de gente.

Encostado à árvore, Frederico espanta as crianças:

– Quando pega alguém de jeito, arrebenta os peitos com o abraço.

Impacienta-se com a presença dos visitantes, que retardam o único prazer que lhe trouxe a nova ocupação: ver o tamanduá alimentar-se.

Com um ligeiro tremor, a cauda começa a rebater-se até encostar no solo. O focinho aproxima-se das formigas, vacila entre um pacote, uma garrafa transparente, para junto ao gargalo, o estilete da língua tateia a abertura e mergulha fundo no formigueiro em ebulição. Quando se recolhe negro de insetos, Frederico arrepia-se. “A formiga que trincou azeda no café da manhã”. Observa nova investida do animal, agulha escura e viscosa penetrando lenta na garrafa para voltar transfigurada, volumosa, formigas do gargalo para as vísceras. “Que se passará lá dentro?” – Imagina esôfago, estômago enegrecidos, insetos mordendo a mucosa, relutando em ser triturados. Mas os olhos do tamanduá nada revelam. Continuam fixos no formigueiro, sem a menor contração, enquanto a língua surge limpa e volta repleta, eixo imantado coberto de limalhas.

Uma semana depois, o tamanduá incorporou-se à rotina do quartel e não recebe mais visita. Apenas duas pessoas se preocupam com ele: o comandante e Frederico.

Duas vezes ao dia, o Major atravessa o pátio. Dissimula o destino da caminhada parando nas Companhias, faz rápidas perguntas aos capitães, ou entra na cozinha para saber do estado das refeições. Como esse procedimento é novo nos hábitos do Comandante, que antes do aparecimento do animal pouco saía do gabinete, ninguém ignora que está a caminho do flamboyant onde o tamanduá espera a resposta ao telegrama.

– Já saiu com ele hoje?

Frederico perfila-se:

– Bem cedo, comandante,

– E comeu alguma coisa?

– O senhor não acha que está engordando?

O Major sorri. Já deve estar a caminho a resposta, naturalmente a notícia causou alvoroço no Rio.

Todas as manhãs Frederico atravessa o pátio puxando o bicho à procura de formigueiros.

– Tenho uma novidade para você. Descobri saúvas douradas, devem ser melhores que aquelas pretas, miudinhas.

Ao sair do quartel o tamanduá toma a dianteira.

– Perto do Forte é que tem bastante, você vai ver.

Corda tensa, focinho no chão, o animal improvisa itinerários, volteia, para e crava a língua na terra. O soldado surpreende-se porque não sabia da existência daquele formigueiro.

Na volta, ao passar pelo portão da guarda, Frederico faz a continência mas não olha a sentinela. Poderá estar rindo dele. Pois ganhou um apelido. O sargenteante quis saber porque faltara à chamada matinal e ele informou:

– Estava procurando formiga.

Ao fim do expediente, o Batalhão inteiro chama-o pelo novo nome. – Tamanduá é a mãe – resmunga.

O toque de rancho para o jantar separa o soldado do tamanduá. Frederico espera a noite de calção azul, sentado no passadiço com os companheiros, que falam da enchente – “Na fazenda Castelo o gado está morrendo” – contam anedotas, tocam violão, sonham com a vida civil.

– Diz que a “baixa” sai em junho.

– Isso é “boletim de soldado”.

Frederico pensa em casa, o pai precisando dele para livrar o gado da cheia.

– Está triste, Tamanduá?

Acostumou-se com o apelido, sorri sem responder. O bicho estará dormindo coberto pela cauda, cauda amarrada à corda, corda na árvore... Gomo ele próprio, que não pode voltar para casa.

– Será que tem formiga no Rio de Janeiro?

Recorda-se da pergunta que fez ao tamanduá, enquanto passeavam. O animal parou e pela primeira vez encarou-o. Frederico pressentiu angústia nos olhos miúdos do bicho. Olhou a vastidão do pantanal, o sol inventando lagos entre as árvores.

O Major gostava de ver essas árvores à luz do sol nascente, quando o ônibus entrava na avenida fronteira ao Batalhão. Mas cansou-se da visão imutável. Todos os dias amanhecem com o céu sem nuvens, a claridade mais viva pela brancura do solo... e calor. Calor pelas vinte e quatro horas. No crepúsculo, o sol repete os mesmos tons no outro lado do céu e o Major tranca-se no quarto de hotel para fugir à paisagem e às continências que recebe de metro em metro na única rua central, onde Lodos os soldados vêm passear. Deitado, repassa os argumentos que poderia apresentar para a transferência imediata. Nenhum deles é suficientemente lógico ou honesto. E o tamanduá? – Sorri à lembrança. Duas semanas passadas e a resposta do Rio, pretextando, dificuldades de transporte, põem as coisas no devido lugar: não poderia ter tido ideia mais ingênua. Mesmo que tivessem mandado buscar o animal, que influência poderia ter sobre o espírito do Ministro? – Levanta-se e acende um cigarro. O tamanho do quarto não lhe permite mais de cinco passos, da porta à janela, da janela à porta. Novamente o tamanduá impõe-se a seu pensamento, agora como termo de comparação consigo próprio, trancado no quarto, só faltando uma corda que o prenda ao pé da cama. Mais de dez horas. Pode sair que não encontrará soldados na rua, já se terão recolhido. Atravessa o quarteirão mal iluminado da praça, entra no bar e pede a primeira cerveja, ainda pensando no tamanduá.

Na penumbra do passadiço, Frederico nota a aproximação do sargento de ronda.

– Chega de conversa, já tocou silêncio.

O grupo de soldados se dispersa. Frederico procura a cama na escuridão do alojamento e deita-se na lona pura, que o calor não admite cobertas. “Amarrado a uma árvore...” – Revê a fazenda, o irmão mais moço dormindo a seu lado, os olhos angustiados do tamanduá. Investiga os sentimentos do bicho pelo olhar que aos poucos adquire reflexos avermelhados, brilhantes, como pontos de luz no pantanal. Desvia o rosto para o chão e só vê duas manchas negras na terra. Quando as manchas desaparecem, seus olhos acompanham as evoluções de uma formiga transportando enorme folha verde. O tamanduá aproveita-se da distração do soldado, aproxima-se em silêncio, cuidadoso, escolhe a melhor posição, apoia-se nas patas traseiras e abraça Frederico pelas costas. Unhas cravadas no peito claro, ossos estalando, o soldado se contorce, geme, o sangue escorre pelo ventre.

Frederico acorda todo o alojamento com seus gritos. O cabo de dia vem acalmá-lo, tudo se aquieta, mas ele não consegue dormir. “Cauda, corda, árvore...” – voltam insistentes essas palavras a seu pensamento. Antes que o sol iluminasse o pantanal, estava tomada a decisão. Frederico deixa a cama às escondidas e dirige-se à arvore para soltar o tamanduá.

Desloca-se abaixado, aproveitando os pontos do terreno onde as árvores contribuem com a escuridão da noite. A cada parada olha para trás, para a cozinha onde o pessoal de serviço iniciou o preparo do café da manhã. Por isso não percebe um vulto atravessar a cerca de arame do quartel e chegar ao flamboyant antes dele. Mas ouve distintamente alguém dizer:

– Vai embora.

Um arrepio corre-lhe o corpo. Imobiliza-se de medo, distinguindo uma pessoa que desamarra a corda enlaçada à árvore. Aos poucos acostuma-se à escuridão, o contorno das figuras se define e Frederico descobre ser um civil quem solta o tamanduá, mãos tateando as sombras junto ao tronco.

– Vai embora – repete o homem, levantando-se.

A surpresa tolhe Frederico. Não pode acreditar no que vê. Quem se acha ali, jogando pedras para que o bicho desapareça, é o Major Comandante.

Pelos Olhos de Helena

Não consegue lembrar-se de Helena sem a interferência dos dois outros amores. Até na recordação de um acontecimento isolado sente necessidade de comparar atitudes, prever soluções que leriam sido dadas por Olga ou Alice; ou como teria ele próprio agido se em vez de Helena fosse Olga.

Surpreende-se ao ver corno se alinham com tamanha facilidade esses três nomes – Helena, Olga, Alice – a despeito de tanto sentimento empenhado e todo sofrimento resultante da ligação ou separação. Ele, o centro de três círculos, a ponta-seca do compasso, possibilitando a concentração de tudo em torno de si. Novos círculos poderão surgir, chega a desejar que isso aconteça mas, ao desfazer na memória a convivência ou o desfecho que cada nome representa, sente-se covarde para nova tentativa.

Fecha-se na solidão cada vez mais cruel de seu pequeno apartamento, abre livros ao acaso. A poesia amada nos primeiros tempos leve o encanto dissipado; a leitura de um trecho assinalado pela importância nada mais lhe revela.

Com Alice, a última experiência, a comparação impõe-se. Uma palavra ou um gesto que recorda outro e Gaspar alheia-se. Ela percebe:

– “Está pensando nas outras”.

Nos doces momentos de confissão, quando a mais completa identidade parece envolver os amantes, a confidência expande-se e ele acaba revelando o passado, num ímpeto de honestidade, sem considerar o perigo que isso pode significar nas reações futuras, próprias ou da amante.

Dela, nada deseja saber.

– Vamos começar vida nova – diz.

Revela-se para obter o perdão de possíveis faltas. “Sou assim, aceite-me”. Gomo teme não saber perdoar, prefere ignorar defeitos alheios. Sua condescendência para consigo próprio não vê limites; inverte o valor da tolerância, reforçando a culpa dos outros ao ponto de poder sempre justificar-se: “Agi por provocação”. Assim era em casa com os irmãos, depois com os colegas de serviço. Lentamente torcia e retorcia o acontecimento banal, no pensamento, até vê-lo transformar-se em falta capital de difícil perdão. Não quer que o mesmo se repita nas relações amorosas, por isso evita conhecer o passado das amantes. Mas, depois de Helena, nas próprias relações cotidianas encontra motivos para a elaboração do processo costumeiro.

Quando veio do Sul para o Rio, trabalhar na sucursal de uma editora, inventou o pretexto de que precisava melhorar de vida. Seu verdadeiro intento era dissolver-se na multidão da cidade grande, morar só, ter o sossego sonhado, liberdade de horários e proceder, ausência das pequenas e inúteis discussões com os irmãos. Queria pôr à prova sua condição de adulto. Considerava que só poderia realizar-se inteiramente fora da tutela dos parentes, a mãe teimando em considerá-lo criança.

Escolher móveis, montar o apartamento em Copacabana, pôr ordem nos livros, foi sua ocupação de todas as horas de folga. A grande satisfação de seus dias: chegar à janela para ver a rua e a paisagem sobre os edifícios, ouvir música, ler, ou simplesmente folhear livros, saltando de um autor a outro.

Os contatos humanos no escritório – questões a resolver com escritores, revisores, agentes de publicidade, estabelecimentos gráficos – satisfizeram por algum tempo sua necessidade de comunicação exterior. A própria atividade que desenvolvia criou em torno de si uma série de relações, convites para festas e jantares. Para uma conversa mais íntima dispunha de Afonso, amigo dos tempos de estudo em Porto Alegre, estreita convivência que mais se solidificou com o reencontro no Rio.

Mas, por muito que tudo isto se refletisse em seus pensamentos, havia uma raiz abandonada, exigindo cuidado e tratamento. A princípio, contentou-a com aventuras. Saía das festas acompanhado, ou marcava encontros que sempre resultavam no mesmo final: os dois no apartamento, meia-luz, alguma bebida e a música em surdina apagando-se na eletrola sem que ninguém renovasse os discos.

Helena começou como qualquer outra aventura mas não teve a solução de sempre. Foi a primeira experiência de Gaspar do Lago. A raiz trabalhara por demais seu espírito e nada mais o satisfazia. O desassossego passou a rondar-lhe o espírito, ler ou ir a festas, ver a paisagem... tudo resultava escasso. A desejada solidão, cuidadosamente armada, não mais lhe era o bastante.

Os três amores de Gaspar do Lago expandiram-se por quatro anos, tempo suficiente para que uma pessoa se modifique, se adapte, principal mente quando existe a possibilidade de recomeçar em novo terreno. Essa circunstância, precisa- mente essa circunstância, tem efeito negativo sobre ele. Em vez de transformar-se, ceder, dar de si, mantém-se irredutível. Sob a pressão do passado, oferece o mesmo cenário a dramas diferentes. “Sou assim, aceite-me”. Alice foi o amor mais difícil e o que mais durou. Difícil porque a solução dos romances anteriores mantinha Gaspar em constante sobressalto, temeroso de que uma das versões se repetisse. Mulher de poucas ilusões, não esperava Alice grandes acontecimentos em sua vida. Prendia-se ao banal, valorizando-o. Foi a que melhor o compreendeu e opunha-se com tal sabedoria a seus propósitos - ou despropósitos - que o deixava atônito. Que ele não voltasse uma noite para casa, pouco importava: voltaria com uma flor comprada na feira, de madrugada, ou chegaria de olhos baixos, sério, a discussão pronta a estabelecer-se à primeira provocação. O amor durou porque Alice recebia a flor com carinho, aceitando o seu arrependimento, ou deixava que ele falasse, sujeitando-se aos pequenos desafios contidos nas perguntas.

Vencia-o pela indiferença, mudava de assunto:

– Será tempo de cenouras? Queria fazer um prato ao molho branco.

Gaspar entra no banheiro, passa água no rosto, abre o colarinho e volta reconciliado.

– Fui ao aeroporto deixar um amigo. Embarcou para Natal.

Ela acredita na confissão que pode demorar um dia, não mais. Diverte-se em esperá-la, acompanha a crescente agitação do amante até o momento em que, como se respondesse, esclarece que leve de ir a Campos ou Friburgo.

Desde a primeira noite em que faltou, resolveu aceitar o jogo para não perdê-lo. Pensou nas duas mulheres que a precederam, lembrou-se – ele lhe havia revelado – que o mesmo acontecia no tempo de Olga. Convence-se da ingenuidade das fugas, uma falsa libertação que devolve a ele todo o amor consumido na convivência diária. Consegue transformar o desgosto da ausência em prazer, a noite toda para pensar nele, estudar suas reações, conquistá-lo. Põe todo o empenho em conquistá-lo. Inventa novos carinhos, adivinha-lhe os desejos; na hora precisa silencia ou toma a palavra fluente quando encontra ressonância.

Por um gesto novo, o olhar, até pelo aperto de mão, Alice pode saber se foi traída. Gomo jamais encontrou vestígio algum de outra mulher nas ausências de Gaspar, vê reforçado seu conformismo. Mas ela ignora que as viagens ou o amigo de Natal são inexistentes.

Gaspar do Lago sai do escritório sem coragem de entrar num ônibus. Desce a Rua Riachuelo, para junto aos Arcos e vê passar o bonde iluminado, estremecendo as colunas. Barulho de pratos e talheres no Restaurante Danúbio, grupos de marinheiros, prostitutas. Acaba sentando-se num banco da Praça Paris, imagina Alice com o jornal nas mãos, levantando-se para ver as panelas, medo de que a carne queime, o feijão esturre. Ou indo à janela, impaciente, procurando descobri-lo desde a esquina, ao descer do ônibus. Todos esses cuidados, que no início lhe davam consolo, agora o irritam. No banco da praça não precisa falar, dar ou pedir explicações – Helena impõe-se inteira a seu pensamento.

Quando pressente um casal de namorados à procura de lugar, muda-se para o Passeio Público, lê distraído a placa dos monumentos. No Capela, pede um chope com sanduíche de queijo frito.

Termina a noite sozinho, num quarto de hotel da Mem de Sá. Como é bom acordar-se cedo, banho gelado de chuveiro, o carrilhão da Mesbla dando as seis e os sinos da igreja da Lapa a repeti-las. Tão puro o ar – há pássaros cantando no Passeio Público – a Lapa impura lavada pelos sons do amanhecer, vontade de assobiar, chegar sorrindo ao trabalho:

– Bom dia, pessoal! Dia lindo assim só mesmo no Rio de Janeiro.

Mas é preciso entrar num ônibus, rumar para Copacabana – Alice com a velha camisola de renda a esperá-lo.

– Na última hora o chefe mandou-me a Petrópolis. Precisamos arranjar um telefone.

O cheiro de café novo faz bem a Gaspar. Mas é só. Alice, tão ciosa em disfarçar tudo, não esconde a noite passada em claro. Vem a tristeza perturbar a manhã dos amantes, refeição silenciosa ou o silêncio rompido com frases frias, improvisadas.

– O Flamengo bateu o América.

– Sabes quem morreu? A Flora.

Alice não se interessa por futebol e Gaspar desconhece Flora. As frases permanecem soltas, alguma palavra trabalhando a imaginação, flora são flores e flamengo a ave de plumagem rosada, na ideia de Alice.

Com Olga foi diferente. Ao chegar da segunda noite passada fora, não a encontrou. Um minuto depois, entrava;

– Esperei até meia-noite. Fui dormir com minha tia.

Gaspar fecha-se no banheiro e começa a barbear-se lentamente, para ganhar tempo. Ao sair, encontra Olga à sua espera.

– Ou você manda avisar ou da próxima vez não volto mais.

– Como é que posso avisar? Dão-me sempre as ordens no fim do expediente.

A discussão deixa-o trêmulo, argumenta sem convicção e, ao mesmo tempo que se concede razão, tenta defender-se:

– Desde o começo expliquei, disse que às vezes dormiria fora.

Para Olga, doloroso era ver o tempo correr, comida esfriar, decidir deixar tudo e sair dentro de cinco minutos e, no último instante, resolver esperar mais meia hora.

– Se você avisasse não fazia mal.

Melhor discutir com Olga que descobrir a mão hesitante de Alice servindo o café.

– Amanhã faz oito meses.

A cada mês, encarrega-se de lembrar o tempo da convivência. Gomo se quisesse dizer: “Está vendo, não há nada a temer. Ficaremos juntos para sempre”. Se para ela o tempo significa solidez, conquista, para Gaspar corresponde a capitulação, estar-se deixando envolver pela premeditação que domina os atos de Alice. Aos poucos o próprio aviso, “oito meses, nove meses”, trabalha seu espírito para o rompimento. Pensa em Helena, em Olga e tenta descobrir uma fórmula sem sofrimento para ambos.

Da intenção às pequenas fugas para o quarto de hotel, falha em seus propósitos. Alice sofre com a espera, a dúvida (“Será por minha culpa?”), compreende-se em novo limite da vida. Deixar o apartamento é voltar à casa da irmã, onde o cunhado não cessará de insultá-la com o olhar, o riso de mofa. “Vai acabar se prostituindo” – disse numa discussão com a mulher, sem saber que Alice escutava. E quanto tempo para esquecer o corpo de Gaspar, mãos compridas e morenas correndo-lhe o corpo, olhar parado, a palavra de amor dita às pressas, espontânea. Alice vê diminuir suas resistências – chora – descobre-se apaixonada. A paixão será a perda.

Levanta-se de madrugada e prepara o café, cantarolando para recobrar o domínio de si. Mas Gaspar percebe tudo pelo simples tremor da mão ao levantar obule. Contagiado pelo sofrimento da amante, irrita-se com tudo, desde a demora do ônibus até os menores descuidos dos auxiliares, no escritório. Impacienta-se, resmunga, a imagem de Alice não o deixa. Volta ansioso para casa, compra flores e só descansa ao perceber o sorriso da amante, seus gestos nervosos retirando o celofane e ajeitando os ramos no vaso. Por algum tempo, há o regresso aos primeiros encantos da ligação, cinema juntos, passeios pela praia, abraçados.

-- Amanhã faz dez meses -- lembra-lhe ela.

Novamente o espírito de Gaspar entra em descenso. Só a violência de um desastre ou de uma traição conseguirá separá-lo de Alice -- pensa. A lembrança de Helena toma corpo, refazendo-se como algo de ideal que perdera para sempre. E a voz de Olga -- riso fácil, ruidoso -- entra-lhe pelos ouvidos, as duas xícaras de porcelana branca na beira da pia, desafiando-o...

-- Se você não avisar da próxima vez, não volto mais -- dissera Olga.

Alice jamais diria isso, por mais que ele fizesse. Mas seria capaz de um ato de desprendimento, fruto de decisão amadurecida. As ausências cada vez mais seguidas de Gaspar -- dias inteiros sem aparecer ou dar notícias -- e seu regresso taciturno, transtornado, definiram a elaboração de seu gesto de grandeza, na solidão do apartamento. Escreveu uma longa carta em que explicava tudo o que ambos sabiam. Rasgou-a. Deixou apenas um bilhete de despedida.

-- Se você não avisar... -- Ao ler o bilhete de Alice, Gaspar recorda as palavras de Olga e olha a cama vazia. Depois da ameaça de não mais voltar, ainda a encontrara dormindo, café por fazer.

-- E você? Ontem fui a uma festa em casa de titia. -- Espreguiça-se na cama, provocante. Dancei tanto...

-- Com quem?

Ela imagina o alvo atingido. Volta-se para a parede e traça letras ao acaso nas cobertas, na parede:

-- Com uma porção de gente. Afonso estava lá, perguntou por você.

Procura o olhar de Gaspar mas não o encontra. Entrou no banheiro e abre a torneira.

-- Seu amigo Afonso, ouviu?

-- Ele é muito inteligente.

Olga ouve o comentário feito em tom natural, quase alheio, enrola-sc nas cobertas e começa a soluçar:

-- Você não me liga.

Também essa reação não impressiona Gaspar. Aproxima-se da cama e dá-lhe uma palmada, sorrindo:

– Levante e faça o café, preguiçosa.

– Criada, é isso que você quer que eu seja. “Faça o café”, “passe esta calça” – imita a voz do amante. Para o resto... prefere passar a noite com as outras.

Atingido afinal, Gaspar exaspera-se e revida:

– Ontem não consegui esquecer a outra.

Daí por diante, silêncio, olhares se evitando, necessidade de uma terceira pessoa para facilitar a reconciliação que demora um dia, dois e chega repleta da mais autêntica alegria, o amor influindo na cor do céu, forma das nuvens e soluções de todos os problemas.

A vizinha, embora reconhecida a Gaspar pelo emprego que conseguiu para o filho, evita auxiliá-lo na reconciliação com Olga. Não esconde sua predileção por Helena. Com visitas aparentemente casuais, provocadas por ele, é quase sempre a tia de Olga quem trata disso. De início reservada, a conversa anima-se e, ao fim da visita, tudo está normalizado.

Meio a contragosto, Afonso também se presta a esse papel. “Em nome de nossa velha amizade” – diz. A conversa gira sobre o passado de ambos, em Porto Alegre, ou sobre as constantes viagens de Afonso.

– Ainda não conheço Manaus. Talvez vá no fim do ano.

Olga interessa-se pela conversa:

– E a Bahia?

Afonso descreve a Bahia, diz que deverá voltar lá no próximo mês, a serviço.

– Vamos juntos, Gaspar.

A resposta foi suficiente para que ela novamente se amuasse.

– Tenho que ir a São Paulo, negócios da editora.

Assim que Afonso se retirou, ela empilhou a louça na pia e aprontou-se para dormir.

– Boa noite.

Olga não responde. Gaspar corre a mão de leve por sua cabeleira.

– Estou cansada, quero dormir.

Frase que Helena jamais disse, que não ocorreria a Alice. Ambas tinham o corpo sempre aberto ao amor, a pureza de Helena revelada a cada gesto, luz apagada, palavra alguma, apenas a respiração crescendo aos ouvidos de Gaspar, mãos de seda alisando-lhe as costas até pararem, de repente, comprimindo-lhe os rins – pacificada. Ou os requintes de Alice, perfume inconfundível, monossílabos sussurrados, as unhas crispadas abrindo sulcos em seus cabelos.

Quanto a Olga... “Estou cansada”. Porque compreende o amor de outra forma, deseja conquistá-lo pela recusa – que excita. Ou quer vingar-se da solidão das noites em que o amante a deixa só? Gaspar não sabe que concluir. E a lembrança de Helena é tão recente que muitas vezes a imagina corporificada a seu lado, as pequenas mãos tentando envolver a sua. A presença de Olga, nesses momentos, o impacienta e ofende. Sente que a separação está sendo trabalhada e se aproxima, percebe que Olga também já se deu conta. Mas, impotente, adia o rompimento na esperança de poder amá-la, encontrar-se nela, temendo a solidão que irá restabelecer-se em seu apartamento.

Antes do que ele imaginava, foi resolvida sua viagem a São Paulo. Por uma semana, no máximo, disseram-lhe no escritório. Olga auxiliou-o na arrumação da mala e a despedida, na Estação de D. Pedro II, foi tão amorosa que Gaspar do Lago sentiu Ler de deixá-la.

– É só uma semana.

A separação servirá para reaproximá-lo de Olga – pensa. Antevê a reconciliação perfeita e decide prepará-la por meio de cartas, cartões postais, pequenas lembranças. Ao fim da primeira semana em São Paulo, verifica haver trabalho para mais duas, no mínimo. Reorganizar o escritório da firma, ampliá-lo, selecionar e contratar pessoal para novas funções não eram problemas que pudesse resolver às pressas. Não descuidou a correspondência com Olga, explicava que a demora independia dele. Recebeu apenas uma resposta, na primeira semana. Com o silêncio da amante, redobrava a atividade para ver se conseguia abreviar o tempo da ausência. Mas viu passar-se a quarta semana sem a conclusão dos serviços.

Ao chegar ao hotel, de noite, soube pelo porteiro que, afinal, uma carta o esperava. Subiu impaciente o elevador e viu o envelope branco na mesa de cabeceira. Arrancou a gravata e sentou-se à beira da cama. A carta não era de Olga. “Pelo muito que o considero...” – começava. Gaspar desceu os olhos para a assinatura. Da vizinha. Decepcionado, largou o papel no travesseiro e tirou o casaco. “Que poderá querer de mim?” – De relance, viu o nome de Olga na folha, Retomou a carta, mãos trêmulas, lembrando-se que a mesma pessoa lhe dera o aviso sobre Helena. Mas a versão era outra. Gaspar chegou ao fim da leitura e escondeu o rosto nas mãos. “Pode ser apenas impressão” – acabara de ler – “mas não é estranho que os dois subam para o apartamento às onze da noite?”. E outras minúcias tão precisas que ele não poderia duvidar da ligação entre Olga e Afonso, articulada em sua ausência.

A carta passou a acompanhá-lo como documento de identidade. Parava na rua para ler um trecho, saía do cinema no meio do filme – para descobrir a palavra que lhe escapara em certa frase. A certeza da traição instalou-se em seu pensamento.

Para distrair-se, inventava passeios nas horas de folga, visitava museus, exposições. No Ibirapuera foi conhecer o Planetário. A sala circular estava vazia. Numa poltrona da última fila esperou que a luz se apagasse. “Imagine-se no coração de São Paulo, às oito horas da noite” – falou o explicador. A abóbada começou a iluminar-se de um tom azulado e Gaspar viu a silhueta da cidade recortada em negro na circunferência da sala. As estrelas foram aparecendo aos poucos na calota enluarada. “Vamos ver uma constelação por demais conhecida de todos”. – Uma seta branca riscou o céu e apontou o Cruzeiro do Sul. Gaspar lembra-se de Helena, que gostava de mostrar estrelas e perguntar os nomes.

O olhar puro de Helena. Desde o primeiro encontro reparou na pureza daqueles olhos amarelados. Ela chegou-se e pediu:

– O senhor quer comprar minha entrada? A fila está tão grande.

Gaspar era o quinto para chegar à bilheteria do cinema. Olhou para trás, a fila perdia-se na esquina. Quarenta minutos esperando, não considerava justo alguém lhe fazer tal pedido. Ela aguardava resposta. Tomou o dinheiro que lhe oferecia e deu novo passo à frente.

– O senhor gosta de Katerine Hepburn?

Surpreende-se com a presença da moça a seu lado.

– Pode esperar no hall que levo sua entrada.

Ela sorri e afasta-se, ajeitando o suéter azul. Gaspar olha seu corpo fino, por simples hábito. De vez em quando ela se põe na ponta dos pés para ver se ele já vem. Entreolham-se e sorriem.

– Gosto – diz ele ao entregar-lhe a entrada.

Ela o olha espantada, depois compreende. O “Formidável” decepciona Gaspar. Pede licença e entra no cinema.

Na fila do lotação, reconhece o suéter azul exatamente à sua frente.

– Gostou?

– É o senhor! Não posso esquecer o braço dela dando adeus, no fim, dentro do trem.

A mesma cena impressionara Gaspar, que torna a recordá-la na descrição do Helena. Foi o primeiro ponto de contato estabelecido entre eles. Depois a viagem para Copacabana, despedida na porta do edifício, encontro para a noite seguinte e o romance resolveu-se natural, sem pressa, como tantos que se iniciam diariamente em todo o mundo. Como poderia prever ou imaginar o desfecho?

– “Perto do Cruzeiro formam Centauro e Mosca”. A seta iluminada visualiza as palavras do explicador.

Derreado na poltrona, olhos fixos no firmamento artificial que cada vez admite novo grupo de estrelas, Gaspar do Lago comprime a carta no bolso do casaco. Percebe o azul esmaecer, ofuscar-se e passa a mão nos olhos molhados. De que vale saber que sobre nossa cabeça estão Aldebarã ou Rigel, de que vale lodo um céu estrelado quando só se tem olhos para o que vai dentro de nós, quando se tem a certeza de que nem mesmo todas as estrelas caindo cm nosso peito o coração se alegrará. Gaspar levanta-se e abandona o espetáculo.

Fora, o céu é bem mais pobre de luzes. Escolhe um banco oculto pelas árvores e mais uma vez pensa na carta, em Olga. Sente desejos de reconquistá-la. Como admitir a preterição? – Ansioso por dissolver sua angústia, decide ir ao Rio. Perdão ou desenlace, em poucas horas resolverá tudo.

“Se fosse outro...” – A viagem de avião alonga-se com a lembrança de Afonso. Mesmo que fosse outro, o desespero seria o mesmo. Mas o amigo de infância, do ginásio, convivência no Rio, conhecendo-lhe os problemas, tendo acompanhado a evolução e consolado a desagregação de seu amor por Helena, mais o entristece e atormenta. Concede-lhe a culpa até que Olga se interpõe, insinuante. Que não deveria Ler dito contra ele para que o amigo se apiedasse dela, resolvesse tomá-la a seu cargo, libertá-la. Ou leria sido Afonso que, por conhecê-lo tão bem, soubera apontar suas fraquezas para conquistá-la?

“Perderei a ambos”. Revelar que tudo sabe é perder os dois. Uma amizade tão perfeita e completa... Quantas identidades imaginadas haviam-se revelado concretas, pontos de vista idênticos sobre música, literatura. Horas e horas de conversa no bar, no apartamento. Quando voltasse a ser só, não mais contaria com o amigo. Mais do que perdê-lo, ter a consciência de que existe - com ela, em outro apartamento talvez na mesma rua, construindo a convivência tranquila que ele não soube elaborar.

Por não ter sabido esquecer Helena, Gaspar do Lago ficará novamente sozinho. Mais só, por não poder encarar Afonso. O encontro com ele e Olga deverá ser evitado. Inventar novos itinerários para que esse possível encontro não se realize, ou tarde até que o tempo tenha trabalhado seu pensamento para a aceitação tácita da realidade – que nova constelação tenha tido nascimento em seu coração. A nova solidão haverá de encontrar remédio para a angústia que o espreita no apartamento, cada dobra do lençol lembrando um gesto de Olga, como antes anunciava Helena.

Helena de olhos puros. Nem seis meses de convivência - a valorização de tudo que dissesse, fizesse, sua impaciência em voltar do escritório para estar com ela – e o desfecho brutal. Decepada a alegria num simples telefonema.

– E a sua vizinha. O senhor precisa vir imediatamente. Aconteceu uma coisa horrível.

Enfrentar Olga será menos cruel que ouvir a vizinha contando a morte de Helena, vê-la desfigurada, olhos apagados para sempre, as pequenas mãos sem vida para agarrarem as suas, rosto ensanguentado pela violência do choque.

– O carro fugiu.

Sua excitação aumenta enquanto o táxi se aproxima de Copacabana. Como no dia em que iria encontrar Helena morta, o coração pulsando cada vez mais forte. Ao atravessar o Túnel do Leme, arrepende-se de ter vindo de São Paulo. Que fazer se os encontrar juntos em seu próprio apartamento, aproveitando a noite? Deveria ter avisado para poder discutir friamente a solução.

À porta do edifício, hesita em entrar. Vê-se pálido nos espelhos da entrada, mãos trêmulas. Se em vez do elevador fossem escadas, não se atreveria a subir. Para junto ao apartamento sem coragem de pôr a chave na fechadura. Toca a campainha. Repete o toque duas vezes, encosta o ouvido na porta: nenhum ruído. Deveria ter avisado. Não o fez pela necessidade de solucionar o problema sem demora, desejo mórbido de surpreendê-los juntos. Entra. Modificação alguma: a estante, o guarda-roupa, o eterno pé de antúrios sem flor. Senta-se à poltrona, enquanto os olhos continuam a vagar pelo apartamento. Na beira da pia, duas xícaras sujas de café. “Decerto foi a tia” – pensa. Mas os termos da carta voltam-lhe ao pensamento. “Saíram para o cinema”. Liga o rádio, novamente a dúvida em seu peito. Permanece imóvel, em silêncio, até ouvir a chave rodar na fechadura. Comprime as mãos nos braços da poltrona e vê Olga surpreendida:

– Por que não avisou?

Gaspar examina um a um os traços da amante, olhos castanhos, sobrancelhas muito finas, vermelho vivo e oleoso dos lábios pintados. Apaga o rádio. Nada quer perder do diálogo que há de se estabelecer, apesar de sua incapacidade atual de resposta.

– Podia ter feito jantar e esperado você.

A voz de sempre, carinho na entonação.

– Cansado?

Olga aproxima-se, senta-se no braço da poltrona e acaricia seus cabelos.

– Um mês fora e apenas duas cartas.

Gaspar não quer render-se (foram tantas as cartas...) mas lança a primeira queixa.

– E de você apenas uma resposta.

Mais doce a voz, seios roçando a face de Gaspar, braços em torno do peito:

– Pensava sempre em você, senti muita falta. Escrever... você sabe que não gosto de escrever.

Deve estar sentindo o pulsar do coração de Gaspar – como no momento da posse. Ele entrevê duas soluções: apertar a amante nos braços, beijá-la, ou provocar a revelação, destruindo a dúvida que o subjuga. Sob as mãos de Olga, estala a carta no bolso do casaco.

– Algum dia você teve ciúmes de mim?

Olga ri, um riso breve, mal à vontade.

– Claro. Gostar é ter ciúmes. Quando você passa noites fora, não durmo imaginando quem seja a outra.

– Você sabe que não existe outra.

– Como posso saber? Nunca o segui.

– Pelo que sabes do meu passado.

Ela levanta-se e chega à pia. Gaspar acompanha seus passos lentos e tem a certeza de que as mãos hesitaram antes que a torneira fosse aberta e a louça iniciasse o ruído, xícara de encontro aos pires.

– Nunca traí você.

Como se nada tivesse ouvido, continua a lavar as xícaras.

– Deixe isso para depois. Temos um assunto importante a discutir.

– Se você volta para São Paulo, quero ir junto.

Gaspar lembra-se de que essa alternativa havia sido proposta quando teve de embarcar. “Se a tivesse levado...” – tudo teria permanecido igual, a sensação de propriedade absoluta não estaria debilitada como agora.

Olga deixa a louça e vem sentar-se ao lado do amante. Ele olha as duas xícaras emborcadas, escorrendo.

– Nunca traí você – repete.

– A traição tem muitas formas, Gaspar.

Se ele saía, de casa porque a lembrança de Helena não o deixava – como lhe dissera – não devia ver nisso a ânsia de traí-la?

Gaspar compreende a alusão. Helena está novamente na sala, entre os dois.

– Prestava tanto quanto eu.

Gaspar surpreende-se com o tom irônico da amante. Percebe em seu rosto, fugidia, errante, a mesma ironia da voz, logo dissimulada. A equiparação de valores chocou-o a ponto de decidi-lo a enfrentar o problema imediatamente. Também poderia introduzir outro personagem:

– Como vai Afonso?

O olhar de Olga para no rosto de Gaspar. Ele amplia a provocação.

– Minha ausência não foi inútil...

Pela primeira vez Gaspar oferece-lhe as mesmas armas que tem usado em toda a convivência.

– É seu amigo. Você deve conhecê-lo melhor que eu.

Novamente a certeza esvai-se. Gaspar não encontra o fio que deve manejar. Olga recobrou todo o domínio de si e o encara, pronta para responder. Terá lembrado a condição de amigo para desarmá-lo ou excitá-lo? Ainda há duas soluções para ele: simular cansaço, submeter-se ou ferir o ponto mais sensível.

– Sei de tudo, Olga.

– Que pretende fazer?

Perguntou isto com a máxima naturalidade, cansada de toda a dissimulação. Tanta frieza decepcionou Gaspar que gostaria de ter levado mais longe o debate, vendo cair todas as resistências. Tenta retomar a discussão com uma pergunta totalmente extemporânea.

– Você nunca me amou?

Olga sorri. Tem ante si um pobre menino, provocando declarações de amor.

– Quando encontrei você, precisava de amparo. O amor virá depois, pensei. Ou o hábito. Mas você é muito difícil, Gaspar.

Ele se recorda das noites de amor, a entrega total daqueles momentos, avidez de beijos – onde estaria a falsidade? Gomo se ela também não pudesse fazer essa pergunta, ao lembrar-se de Helena.

– Então, por que as cenas de ciúmes?

Gaspar questionando, se humilhando. Quando tudo estiver terminado, mesmo depois que Alice tenha chegado e partido, não compreenderá como permitiu que Olga dissesse a última palavra, a pior palavra, marco para sempre fincado em suas têmporas:

– É preciso fingir, não é, Gaspar?

Gaspar do Lago tem o Planetário a seus olhos e o coração seco. “O Cruzeiro do Sul fica próximo do Centauro c da Mosca. Esta bela estrela de primeira grandeza é Aldebarã”. Mesmo que todas as estrelas lhe caiam no peito, não há constelação que brilhe mais em sua memória que as duas xícaras na borda da pia, a luz forte da cozinha sobre elas.

– Continuo só. Por mais algum tempo estarei só. Mas eu persisto. Não encontrarei os olhos de Helena ou sua alegria, Olga também não se há de repetir – nem Alice. Mas persisto. Persisto porque a cada experiência eu me renovo e me humanizo.

O Cardápio

Conversávamos duas vezes por dia, no almoço e no jantar. O que primeiro Maria mostrava era a ponta do pé negro, unhas pintadas de vermelho saindo pelas tiras da sandália branca, quando abria a porta da cozinha com a bandeja nas duas mãos, a sopa fumegando no prato. Antes de responder às minhas perguntas, sorria. Dentes fortes e claros, os pequeninos olhos escuros, lábios grossos, tudo acompanhava o sorriso.

-- Moro depois do cemitério São João Batista.

Como se depois do cemitério, Botafogo, Flamengo, a cidade inteira se restringisse a uma rua ou a sua casa. Mas não sabia ou não queria especificar.

-- Vivo com um filho e meu homem.

Aí, sem se dar conta, anunciava duas etapas de vida. O sorriso ampliou-se, nesse momento, e não pude saber se recordava alguma travessura da criança ou os carinhos do amigo. Suas mãos recolheram pratos e talheres com enlevo. Tateava a cabeleira do filho ou o peito do amante? Era uma mulher simples demais para caracterizar em cada gesto um requinte particular.

-- O menino é branco.

Notou surpresa em meus olhos e acrescentou:

– Gostei de um soldado...

Envergonhada com a confidência, contraiu os lábios, fingindo que havia ferido o dedo na ponta do garfo.

– O senhor quer café?

Saiu às pressas. O corpo gordo e pesado desapareceu atrás da porta da cozinha. – Sou do Estado do Rio. Informou sua naturalidade como indicara a residência. Campos, Niterói, Friburgo, Magé, Itaboraí, para Maria existe apenas – Estado do Rio.

Quando lhe perguntei se conhecia Saquarema foi precisa:

– O mar e a lagoa...

Muitas vezes Maria não quer falar. Deixa duas, até três perguntas ressoando na sala de jantar. Ficou em casa algum problema por resolver, o filho doente, discussão suspensa com o amigo? Nada esclarece. Passa às perguntas diárias:

– Já terminou a sopa? – O bife está muito duro? – Quer sobremesa hoje?

Não está disposta a conversar, a falar de si. – Já sabe de tudo – parece querer dizer – nada mais posso acrescentar.

Refaço o quadro de sua vida, revelada aos poucos nos breves diálogos às refeições, onde quase sempre a morte de alguém é que determina novo sentido a seu destino. Primeiro o pai. Sua morte orientou os quinze anos de Maria para o Rio de Janeiro. Mãe e cinco irmãos menores para a casa de uma tia, a mãe lavando roupa para fora, os meninos cumprindo o pobre itinerário da cidade: caixinha de engraxate, fogareiro de amendoim, carregadores de feira, entregadores de loja ou armazém. Depois, Exército ou Marinha. E Maria? Cozinhando em casa enquanto a mãe e a tia lavam roupa. Parece simples e Maria conta sem rancor, conformada, como se realmente não pudesse ser de outra forma. A morte da mãe coincide com várias transformações que Maria não ordena no tempo. Os irmãos já se haviam desprendido de casa, a tia foi morar com o filho mais velho e o corpo de Maria pede amor. Apareceu o soldado. Branco, pobre, do Espírito Santo.

– O menino tem cinco anos.

Assim mesmo. Cenas rápidas, poucas palavras resumindo todo o tempo necessário a um corpo ampliar-se, sofrer, dar frutos, só o presente contando com seu testemunho:

– Tem cinco anos.

Impossível saber em quantas casas trabalhou, quantos companheiros já teve. Informou o motivo por que deixara o emprego anterior com a maior naturalidade:

– A cozinha era muito escura. Nem uma árvore se via. Só roupa secando no arame.

Percebo uma liberdade inconsciente em seus atos. Amar e cozinhar são os dois pilares de sua existência. E essas duas ações correspondem a suas necessidades mais prementes porque lhe dão garantia de vida. Mas não se escraviza. Nem a um homem nem a um patrão. Impõe-se. Tem sabido enfrentar novas portas que não prevalecerão contra ela, pois é forte em sua liberdade adquirida sem favor, com o simples respirar e sofrer de todos os dias.

– Miguel, como o pai.

Guardou do primeiro amor o filho e seu nome e com um misto de ternura e tristeza fala de ambos. Revela uma cicatriz de ferida necessária, como marca de vacina no braço.

– Foi embora porque deu baixa e não tinha o que fazer. Voltou para o Espírito Santo.

Era lavrador, por que haveria de ficar no Rio de Janeiro? E Maria já era doméstica, por que acompanhar seu homem para o interior? – Essa, a sua lógica. Tentar substituí-la, inculcar nova ordem de ideias... Poderá alguém fazer Maria voltar às entranhas de sua mãe?

Os pequenos olhos negros apertam-se e os dentes se enfileiram brancos num sorriso:

– Gostou da comida? E para o jantar?

Terminado o almoço, pensava apenas em tomar a condução e enfrentar meus problemas no escritório. Era-me desagradável imaginar pratos para a noite. E Maria não tinha imaginação. Se nada ocorresse, havia de se repetir: bife, salada de tomates, arroz, feijão. Como o estômago repele a rotina, decidi adotar um cardápio que dilatasse a repetição diária em semanal. A novidade exasperou Maria.

– Nunca fiz cardápio. O senhor precisa me ensinar.

Sem perceber, a partir desse momento, comecei a perder Maria. No dia seguinte colei nos azulejos da parede, sobre o fogão, o cardápio, pratos diferentes para cada refeição da semana, Ela acompanhou meus gestos com interesse, mas em silêncio. Enquanto me serviu o almoço, nada disse e evitou olhar-me. “Novas complicações em casa” – pensei.

Várias vezes, nesse dia, satisfeito por haver resolvido esse problema banal, pensei em seus olhos miúdos, o riso alegre. Não sabia que minha convivência com ela estava por menos de vinte e quatro horas.

Ao voltar, de noite, encontrei Maria em prantos. Sentada em frente ao fogão apagado, panelas vazias, ao perceber minha entrada, soluçou mais forte e apoiou a cabeça no fogão frio. Tolhido pela surpresa, encostei-me à porta sem saber que fazer ou dizer. Até que me saíram as perguntas, uma depois da outra, aumentando o choro de Maria. Segurei-lhe os ombros, sacudi-a de leve.

-- Vou-me embora.

Quando quis saber por que, limitou-se a apontar o cardápio colado aos azulejos.

De nada adiantaram minhas explicações, sugestões, nem mesmo a proposta de rasgar o papel e conformar-me para sempre com arroz, feijão, bife c tomates.

Enxugou os olhos com os dedos e dirigiu-se à saída. Vi a trouxa de roupas no chão. Levantou-a e abriu a porta. No primeiro degrau da escada, olhou-me e gritou que não sabia ler, que eu arranjasse outra.

– “Não sei fazer cardápio, o senhor precisa me ensinar” – lembrei-me.

Nunca mais a encontrei. De tudo quanto é objetivo e prático na vida, sei tão pouco sobre ela. Maria, Estado do Rio, que mora depois do cemitério São João Batista e guarda um Arcanjo em sua casa.

Isabel

O sono foi aos poucos deixando o corpo de Isabel. É verdade que durante o dia, sentada à cadeira de balanço na varanda, mormaço da tarde e rosário nas mãos enrugadas – cochila. O corpo amolece, as contas desprendem-se dos dedos e Isabel cabeceia. Despertando à queda brusca da cabeça, não consegue lembrar-se onde o sono a interrompeu. “Sois vós entre as mulheres” – “o fruto do vosso ventre” – “agora e na hora de nossa morte”. Recomeça, comprime nova conta com força.

– Esse dormir à tarde me prejudica à noite - conclui.

A cadeira balança sozinha, enquanto ela se afasta para tomar um copo d’água. Volta refeita, senta-se devagar, com um suspiro. No “mistério” seguinte, as pálpebras novamente lhe pesam. Vai ao quarto e penteia os cabelos frente ao espelho:

– Estou velha.

De noite, retarda o momento de deitar-se. Acende o fogo e prepara um chá de maçanilha, hortelã, marcela ou mesmo de folha de laranjeira. Não que sinta qualquer indisposição; apenas para a noite diminuir. O mais demorado é o chá de folha de laranjeira. Com a lanterna na mão desce ao quintal e ilumina a árvore. Escolhe cinco ou seis folhas não muito novas e entra apressada, com medo do escuro atrás de si.

Despe-se lentamente. Já preparou a cama larga de casal onde deixou de ser virgem e nasceram suas quatro filhas, onde amanheceu morto o marido.

– Estás com preguiça, José? O padeiro e o leiteiro já chegaram, o café está pronto. Acorda, malandro.

Isabel acaricia os cabelos do marido e encontra sua fronte gelada.

– José! – o grito ainda lhe ressoa nos ouvidos.

A cama. Tão insignificante para conter toda a metamorfose da carne, da cor de seus cabelos.

A camisola de cambraia flutua em torno do corpo murcho. Isabel afasta as cobertas e senta-se à cama. O espelho em sua frente. Desvia os olhos para o guarda-roupa. Esquecera-se de escolher o vestido para a missa do dia seguinte. É com prazer que se levanta: “ainda não é chegado o momento de lutar pelo sono”. Dilata a indecisão entre quatro, três, dois vestidos – todos pretos. Escolhe as meias, combinação, mantilha e põe tudo em ordem sobre a cadeira. Como se fosse fazer uma viagem e temesse perder o trem.

Nada mais a fazer. O dedo comprime o interruptor e Isabel fecha os olhos. Conhece todas as frestas da janela por onde se escoa a luz da rua. Cobriu com papel preto o vidro superior porque, em noites de vento, a sombra agitada das folhas parecia as mãos de José desesperadas. Antes era tão bom. A luz que transpunha o vidro permitia-lhe ver o corpo inteiro do marido. Divertia-se fazendo cócegas cm sua festa com a ponta das unhas, só para ver as caretas dele.

Deixou a cadeira de História, no Grupo Escolar, para casar-se. Nunca se arrependeu. Se faltasse qualquer coisa a José, bastava sua maneira de rir e piscar o olho, quando ela estivesse zangada, para que ludo se suprisse.

As filhas foram, para o casal, beleza, alegria, aborrecimentos. Quanta aflição se uma delas adoecesse. José preocupava-se com os namorados.

– Esse Rafael... sei lá.

Isabel defendia.

– Deixa de implicância, homem. Odete sabe o que quer.

Casaram-se todas e o ciclo vital ampliou-se para Isabel. O dia era pouco para distribuí-lo entre as quatro famílias que nasceram de sua casa, para cuidar de seu marido e tomar conta dos netos, quando uma filha precisava.

O tempo tramou a solidão de Isabel. As filhas mudaram-se de cidade porque os maridos foram transferidos ou queriam tentar novos rumos, mais progresso. Verão, férias, a casa enchia-se de crianças. Desentendimentos, choros, irritação das mães – mas tudo acabava bem e Isabel exultava. Quando todos partiam, o casal ficava calado vários dias, cada qual pensando, recordando a fala, os gestos, as palavras de cada um.

E um dia José amanheceu frio. A confusão alegre das férias entrou em lágrimas pela casa de Isabel. E Isabel querendo ser forte, rejeitando o convite de lodos para ir com eles. Fiel à casa, fiel às lembranças, fiel à cama. Quando chegou ao quarto vazio e viu-se no espelho, compreendeu tudo:

– Estou velha.

Agora, que não precisa mais de tempo porque não tem com quem reparti-lo, há o dia e a insônia para atormentá-la. As cinco da manhã, às vezes antes, o corpo já não encontra satisfação, doem os rins, é preciso levantar-se, receber o pão e o leite das mãos do distribuidor, numa espécie de solidariedade com as profissões da madrugada.

Noites de trovoada, como hoje, que tristes são as horas de Isabel! Se as conversas da rua, o vento um pouco forte nas folhas são o bastante para acordá-la... É como se os trovões rolassem dentro dela. Procura distrair-se com a variação da luz nas frestas da janela, os relâmpagos e a ventania sacudindo a casa. Se não estiar, de que adiantou escolher e preparar a roupa da missa? Isabel inquieta-se: a missa é uma forma de comprimir a madrugada, ludibriá-la.

Quanto tempo não se acordava com o toque da campainha! Seria o leiteiro depondo o leite na soleira da porta, ou o padeiro? Adormecera com o amainar da tempestade. Levanta-se, tem de apressar-se para não perder a missa. Suas mãos envelhecidas descobrem agilidades encobertas e em poucos minutos está pronta para sair. A porta, vacila entre levar o guarda-chuva ou deixá-lo. Sorri. O guarda-chuva sempre lhe recorda Rafael, que conquistou sua simpatia com esse presente, um guarda-chuva esguio, todo de aço niquelado coberto de resistente cetim preto. Nunca descobriu se foi sua filha Odete quem insinuou ao namorado dar-lhe aquilo. Seja como for, ele havia acertado: conseguira um mediador para seu casamento.

Isabel desce os degraus da escada com o guarda-chuva fechado. Não chove, o ar está puro. Por que terão apagado as luzes da rua tão cedo? O céu coberto de nuvens torna a madrugada mais escura. A passos lentos, cuidadosos, Isabel tateia o caminho com a ponta do guarda-chuva. Há lama sobre a calçada e seus pés começam a umedecer-se. Pensa em voltar, mas já está perto, apenas uma quadra.

Um carro aproxima-se e os faróis iluminam o caminho por instantes. Só então pode ter ideia da violência da tempestade: galhos de árvore no meio da rua, um poste de luz inclinado, as águas ainda borbulhando na sarjeta. Logo que o auto passa, vê-se novamente envolta pela escuridão. Para. E se voltasse? Tolice, agora a igreja está muito mais perto que sua casa.

Redobra de cuidados, a ponta do guarda-chuva deslizando sobre a calçada molhada para guiá-la. As vezes a haste prende-se num desvão das lajes e ela assusta-se mas prossegue. E se a tempestade houvesse arrebentado os fios da iluminação? Isabel suspende o guarda-chuva. Cercada pelas trevas, foge-lhe toda a coragem de movimento. “Terá chegado a hora?” – sua vida inteira concentra-se sobre si. Infância, mocidade, as aulas de História, o casamento. A imagem de José volta-lhe à mente, seu modo particular de sorrir e piscar o olho.

Sem dar acordo de si, Isabel retoma o passo na madrugada densa, considerando a inutilidade de seus temores. “Se a hora fosse chegada...”

O sino começa a dobrar e Isabel se benze.

– Que fazer, que fazer senão resignar-se?

Saberia enfrentar os últimos obstáculos, como aceitou e venceu os demais. Está com a vida concluída, a alma pronta para tudo, mas a hora não está em suas mãos.

Ao Juiz dos Ausentes

-- Aos cinco dias do mês de setembro do ano de mil novecentos e cinquenta e oito, no quartel do Décimo-Sétimo Batalhão de Caçadores, a Comissão nomeada pelo Senhor Coronel-Comandante para fazer o espólio dos bens deixados pelo soldado João Lira...

-- O nome todo em maiúsculas?

Sem responder, o tenente aproxima-se da janela e olha o pantanal sem fim, o rio Paraguai escorrendo pacificado, um enorme camalote a descer as águas com as flores azuis dos aguapés marcando a velocidade.

-- Maiúsculas.

O cabo datilógrafo bate o nome e cobre o rosto com as mãos. A face morena de Lira estava dentro de seus olhos.

-- Os jacarés devem estar agora na margem do rio -- fala o tenente.

Dezenove anos, jogador de basquete, o corpo ágil de Lira muitas vezes roçou suado o corpo do cabo, nos jogos pela tarde.

-- Me fez perder a bola, seu Lira.

-- Não enche, cabo, quem manda ser mole.

A discussão parou o jogo. Mas um minuto depois a animação estava outra vez na quadra, Lira apossa-se da bola e faz uma cesta inesperada.

-- Boa, Lira!

O cabo e o soldado se abraçam em movimento, armando o time para novo lance.

– Será que sou transferido e não vejo um jacaré?

O tenente deixa a janela e senta-se na ponta da mesa com o regulamento nas mãos.

– ...falecido a quatro de setembro do ano de mil novecentos e cinquenta e oito, inventariou e arrecadou todos os bens particulares pertencentes ao referido soldado...

– Lira, vamos ver a Santina hoje?

– Vamos, não senhor. A Santina é comigo, tu que te arranjes com a Mercedes.

Santina teve o choque pelo jornal. “O Paraguai rouba outra vida”.

– Ainda na quinta-feira dormiu comigo.

– Não era aquele que vinha sempre com o cabo Peixoto?

– Era. Coitado, tinha tanta ideia...

Disse que quando desse baixa ia trabalhar em Campo Grande, no comércio, parece. Queria ficar rico.

– Quem não quer!

– Ai! Mercedes, não aperta tanto o papelote que está me machucando.

– Já disse mil vezes que você fizesse permanente. Para que ficar juntando dinheiro?

Santina pensou em Lira, que queria enriquecer. Gostava dele. Gostava até ao ponto em que uma mulher de sua espécie pode gostar sem se apaixonar. Se se apaixonasse, a solução seria mudar de cidade, ir para Aquidauana ou Cáceres: um soldado não poderia mantê-la. E mesmo que pudesse... já lhe acontecera duas vezes, sem que conseguisse dar novo rumo à sua vida. Em Cuiabá e Campo Grande. Na primeira cidade o pai do rapaz veio oferecer-lhe dinheiro para que desaparecesse: “Tem noiva, precisa criar juízo e casar-se”. Santina começou a chorar e o velho acrescentou: “Não adianta fazer manha. Se não quiser ir por bem, mando a polícia aqui”. Cedeu, como teria cedido sem ofertas e ameaças. Na viagem para Campo Grande, decidiu submeter-se ao destino, não se deixando mais envolver por ninguém. Três anos depois, nova esperança instalou-se em seus sentimentos Mas não desejava ser outra vez humilhada. Reuniu forças e fugiu. Quanto a Lira, é apenas ternura que sinto por ele - imagina.

Às quintas-feiras o soldado aparecia. Nem vinha ao salão, para não ser convidada por outro homem. Mantinha uma espécie de fidelidade semanal ao corpo quente de Lira.

– Seu cuiabano tolo – dizia.

Ele esfregava os dedos com força em seu pescoço, descendo até os seios e ria com o estremecimento de Santina.

– Tina, Tina, tu me acabas.

– Tina, Tina... Tina não é nome de gente, é lugar de roupa suja.

– Tina me lembra cantina. Nada melhor que um guaraná gelado na cantina, depois do jogo de basquete.

Pensava no quartel, no cabo Peixoto que estava com Mercedes no quarto ao lado, via a cara amarrada do tenente explicando o funcionamento da granada de mão com o mesmo desvelo que sua mãe ensinava a vizinha a preparar recheio de peixe para assá-lo.

O tenente que ainda não vira um jacaré.

– Sucuri já vi uma, quando voltava do estande de tiro. Tinha uns dois metros, se tanto. Achei graça do motorista: parou o jipe e esperou que a cobra se arrastasse para fora da picada, sem o menor comentário, como se houvesse um sinal vermelho no meio do mato.

– Depois de “bens particulares pertencentes ao referido soldado” que é que vem, seu tenente? – pergunta o datilógrafo.

– ...abaixo discriminados: uma caixa de lápis de cor com onze lápis, faltando o branco; um canivete de metal marca Corneta; um caderno para desenho;

– Tinha só um pássaro azul e vermelho na primeira folha.

– uma Gramática Expositiva, de Eduardo Carlos Pereira; um Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa; cinco números de revistas de história em quadrinhos; uma coleção de caixas de fósforos; um embrulho com cartas de casa;

O tenente suspende o ditado. No ano passado lera uma notícia que agora voltava nítida a seu pensamento. Nos Estados Unidos um avião decolou com mais de cem soldados que iam passar as Festas com a família. As pessoas no aeroporto ainda puderam ver o avião incendiar-se no ar e cair despedaçado. Morreram todos.

– Gosta de pescar, cabo?

– Não tenho paciência, tenente.

Logo de sua chegada a Mato Grosso, fora pescar em companhia de outros oficiais, numa lancha a motor. Pouco se interessara pela pesca. Ficou estudando as margens do rio, a paisagem, até que sua atenção fixou-se numa cabana meio escondida pelas árvores. Em frente a ela, três homens divertiam-se com uma mulher. Passava dos braços de um para outro, todos com copos de bebida nas mãos. Na última volta que a lancha deu pela cabana, a mulher veio correndo para o rio, arrancou a combinação e atirou-se n’àgua, perseguida pelos homens.

O mesmo rio que afogou João Lira.

– um pente de osso rajado; uma escova de dentes e um tubo de pasta pela metade; um aparelho de barbear sem lâminas; um sabonete Dorly inteiro; um envelope com duzentos e trinta cruzeiros; um pequeno folheto em mau estado, sem capa, faltando algumas folhas, contendo sonetos e a seguinte inscrição na última página: Terminou este livro de se imprimir aos vinte dias do mês de fevereiro do ano de MCMXXI nas oficinas de Ilustração Portuguesa na Rua do Século da cidade de Lisboa;

Foi a coisa que mais surpreendeu ao tenente encontrar. Talvez porque tenha aberto o livrinho ao acaso, quando fazia o espólio no armário do soldado e houvesse deparado com estes versos:

“No mundo, poucos anos e cansados

Vivi, cheios de vil miséria dura:

Foi-me tão cedo a luz do dia escura,

Que não vi cinco lustros acabados.”

E Lira não chegara a ver quatro lustros acabados.

– Ele gostava de poesia – falou o tenente em voz baixa,

Dezenove anos, quanta coisa poderia fazer – pensa o tenente. Enquanto os companheiros saíam pela cidade – cinema, namoro, caminhadas inúteis – Lira estudava à noite. “Quero ser alguma coisa, tenente”. Até que a notícia da morte chegou ao quartel pelo soldado que o acompanhara ao banho do rio.

– Acho que foi cãibra.

Pálido, assustado, o soldado quase não podia falar. Mas vinham perguntas de todos os lados.

– Veio duas vezes à tona. Desapareceu debaixo do casco. Uma chata da Companhia de Mineração.

A busca durou o dia inteiro e parte da noite. Canoas, lanchas da marinha, o rio negava-se a cooperar. Pela manhã, o corpo boiou e prendeu-se aos cipós da margem, próximo ao Saladeiro. Um pescador o encontrou.

Lira, inchado e negro, foi posto numa mesa da Enfermaria, a face direita aberta num sorriso inatual, podre – porque os peixes se serviram de seu rosto. Como remeter esse destroço à família, que de Cuiabá reclamava o filho?

Os mesmos companheiros que o aplaudiam nas vibrantes jogadas, que o abraçavam no entusiasmo das partidas, agora, para vê-lo, tinham de conservar-se longe, um lenço nas narinas.

Sua agilidade de onça estava anulada.

– Rua do Século, da cidade de Lisboa.

– duas calças de brim verde-oliva, duas cuecas de algodão, duas camisas de campanha, uma túnica engomada; uma lata de Mate Leão contendo carretéis de linha, agulhas, botões de diversos tamanhos, uma tesourinha de unhas e outras miudezas; uma fotografia de mulher, sem dedicatória, tamanho postal, feita pelo Foto Estúdio Carlos;

– Toma, Lira, para se lembrar de mim quando estiver de plantão.

Mal olhou a fotografia, soltou-a na mesinha e abraçou Santina.

– Tina, sabes o que é lustro?

– Brilho, ué!

– Mas é também cinco anos.

– Quê?

– Vi no dicionário: um lustro, cinco anos; dois lustros, dez anos.

– Você tem cada ideia...

– É uma palavra do livrinho que você me deu.

Santina puxou o travesseiro e deitou a cabeça sobre as coxas do soldado. Nunca o havia visto assim, de baixo para cima. O nariz ficava arrebitado, as faces se deformavam, nem parecia o mesmo. Mas o peito estava ali, forte e moreno a subir e descer lentamente, os braços grossos para protegê-la. Aproximou sua mão de unhas vermelhas e apertou a dele. Lira sorriu sem a olhar. Estava longe, no quintal do vizinho, onze anos de idade. Aproximou-se do viveiro, viveiro tão grande que tinha uma pitangueira dentro. Mas ele não se conformava. Abriu a porta. Olhos brilhando, cabelos negros na testa, sentou-se no chão com os pés enterrados na areia. Via extasiado a passarada fugir.

– Em que está pensando?

– Tolice de criança.

– Conta.

Lira contou e os dois se puseram a rir.

– Foi tão bonito que a surra do papai nem doeu.

Levantou-se e olhou a fotografia.

– Mulher é tudo igual – dissera o cabo Peixoto. Amanhã tu morres e ela arranja outro.

– Sei disso. Tu mesmo podes ficar com ela, quando eu der baixa.

Lira guardou o retrato no bolso da túnica:

– Vou pregar na porta do armário e fazer inveja aos colegas.

– dois pares de meias pretas; um par de sapatos pretos; um dito de coturnos regulamentares e, finalmente, um broche fantasia, dourado, com três pedras vermelhas incrustadas.

O cabo parou em “regulamentares”, pensando em Santina.

– Tenente, o senhor pode me dar o broche? Comprei junto com ele, sei para quem é.

– Quem?

– ... A namorada.

Mais uma vez o tenente se levanta da mesa, dá uns passos pela sala.

– Está bem, cabo, depois te dou. Precisamos encerrar o termo. Falta só a conclusão.

Mas não reiniciou logo o ditado. Olhou os móveis, desviou os olhos para a janela e conservou-se quieto, o regulamento e o rascunho entre os dedos.

Caixão preto de segunda classe. O corpo de Lira escondeu-se de seus companheiros num caixão preto, sem galões dourados. Foi preciso esperar que o sol abrandasse um pouco para se fazer sair o enterro. Os corredores da Enfermaria, a rua, os bares próximos, tudo estava cheio de soldados. Quando o coronel determinou a saída, estancou o murmúrio em todas as rodas de conversa.

O comandante e outros oficiais foram os primeiros a carregar o caixão. Desceram cuidadosamente os degraus da escada e vararam a multidão de soldados que aguardava na rua e formou, aos poucos, o acompanhamento.

Os oficiais começaram a suar em suas túnicas de gabardine. O sol, o peso do morto, a poeira branca que subia da rua sem calçamento determinavam a contínua substituição dos transportadores. Quando chegou a vez do cabo Peixoto, próximo ao cemitério, Santina apareceu na sombra de um flamboyant. Notou, sem compreender, certa pressa nos que conduziam o esquife. Ninguém levava flores. Desejou acompanhar o enterro, mas seria a única mulher. Benzeu-se e esperou que todos passassem. Viu quando aquela silenciosa procissão verde imobilizou-se junto ao portão do cemitério. Ouviu as salvas de firo, notou que os homens recomeçavam o movimento e desapareciam de sua vista. “Vão começar a apedrejá-lo” – pensa. E imagina os soldados, um a um, cumprindo o absurdo ritual de atirar torrões secos sobre o caixão.

– E por não haver mais bens a enumerar e descrever no presente espólio, deu-se o mesmo por encerrado, lavrando-se, para constar, este termo, que será remetido ao Juiz de Ausentes, para os devidos fins.

– Pode ser hoje, Santina?

Muito antes do que imaginara, os soldados começam a voltar e a passar por ela.

– Como vai, meu bem?

Ela abaixa a cabeça.

– Não fica triste que só morreu um, ainda tem um Batalhão inteiro.

Santina fecha os olhos e encosta-se à árvore.

Quando ninguém mais passava, sentou-se na calçada.

– “Tina, Tina... – Tina, cantina, guaraná gelado...”

Escondeu o rosto na saia escura e chorou até que a noite confundiu a cor de seus cabelos. Da primeira vez foi escorraçada, de Campo Grande fugiu, agora... E depois?