Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

"Caixa d'Aço", de Harry Laus. In: Ao juiz dos ausentes. Organização de R. Laus. Tijucas, SC: Centro Cultural Harry Laus, 2002. Caixa d'AçoHarry Laus

Prelúdio

Tudo bastante confuso para os doze anos de Helinho. Debruçado à soleira da janela do quarto, olha o vulto das pequenas árvores do jardim, indefinidas na escuridão da noite. Latidos de cães ao longe, um carro cantando os pneus na curva da rua, o apito do guarda noturno. Lembra-se de fumar. Se a mãe descobrisse os cigarros escondidos atrás dos livros da estante... Ao voltar-se para dentro, Helinho vê duas camas mal delineadas como os canteiros no jardim. O primo Luiz todo coberto, uns fiapos de cabelo negro esparramados sobre o lençol branco. Pela respiração forçada, era capaz de jurar que também ele estava acordado.

— “Deixa de ser criança.”

— “Criança és tu.”

— “Eu tenho doze anos e tu só tens onze. Quem é a criança?”

A discussão tola foi suficiente para que os dois não falassem mais pelo resto do dia. Helinho nem se lembra mais como começou a briga, talvez por causa da bicicleta, ou foi pela vara de pescar?

Acostumado com o esconderijo do maço de cigarros, a mão vai certeira no desvão dos livros. Os fósforos fazem um leve ruído dentro da caixa. Helinho volta à janela e, ao estouro da chama, um halo amarelado recorta sua figura contra o negrume da noite. Ao escutar o rangido da cama de Luiz, tem de se controlar para não olhar para trás. Puxa uma tragada. Forçando a vista, começa a identificar as flores: hibisco, azaleia, minerva, as rosas. Mas não pode descobrir o motivo de sua inquietação, a falta de sono, a preocupação com o primo dormindo, ou fingindo dormir.

Distraído com a brincadeira de reconhecer as plantas, a mão com o cigarro apoiada à soleira, sente uma carícia suave entre os dedos. Não, não é uma carícia, é o cigarro deslizando sorrateiro pelos dedos como uma cobra entre a grama. Compreende com um tremor no corpo que é o primo, mas não se volta. Chega a ouvir o chiado do cigarro nos lábios de Luiz, sente a fumaça passando ao lado de seu rosto. Aguarda imóvel alguma palavra. Nada. Apenas a cobra sorrateira enfiando-se lentamente entre seus dedos. Logo depois, novo ranger da cama.

Helinho olha as estrelas do céu. A insônia, a perturbação... Procura a lua: não se pode vê-la onde está. As estrelas, a lua invisível, as flores. Se quisesse mesmo ver a lua, era só ir à janela da sala: ela estaria brilhando lá no alto. Longe, porém visível. E dentro dele, que espécie de lua, flor ou estrela está germinando? A brasa vermelha vibra pela última vez na boca do menino. O dedo médio, mola contra o polegar, lança a bagana sobre os arbustos, cintilando fagulhas contra o pé de manacá.

Volta para a cama ao lado da outra, cobre-se com o lençol, o braço caído ao chão como por descuido. Agora – tem certeza – a cuidadosa pressão sobre seus dedos parece um apelo envergonhado, uma carícia. Mas a carícia morna cessa de repente. Helinho levanta-se, tateia pelo quarto sem acender as luzes, vai ao banheiro, abre a calça do pijama, não tem vontade de fazer nada daquilo, abotoa a calça, nem lava as mãos, retorna à cama.

Agora é vez de Luiz deixar o braço pendido para fora das cobertas, quase tocando o chão. O corpo de Helinho começa a tremer, tem mesmo que apertar os dentes para não ficarem batendo uns nos outros. Luiz recolhe o braço num movimento pausado e descobre o corpo, escura sombra sobre o lençol. Helinho também se descobre, senta-se na beira da cama. Coisa estranha: uma força qualquer, talvez a mesma que o fez tremer, impede que se levante, que vá para a cama do primo. Deseja voltar à janela para ver as flores, as estrelas, ou iria até a sala para ver a lua? Não se lembra de ter sentido nada semelhante na vida. Não é medo, como se encolhe antes que a mãe lhe puxe as orelhas, nem aperto no coração quando a namorada passa por ele e finge não vê-lo. Também não seria o prazer de brincar com sua cachorrinha, os dentinhos mordendo sem morder, ou a alegria do vento no rosto com a velocidade da bicicleta, a tristeza de ver o peixe escapando do anzol. Nada disso. Talvez uma coisa mais física: o sabonete fazendo espuma no peito, nas coxas, no sexo. Ou a indefinida sensação do mesmo sexo ao escorregar pelo tronco da goiabeira. Muito mais grave e misterioso o sentimento presente. Por que o tremor? Que força o impele e o impede de ir para a cama do primo?

— “Deixa de ser criança.”

— “Criança és tu.”

— “Eu tenho doze anos...”

Escorrega para o chão, dá uma volta no corpo, apoia os cotovelos no colchão da cama de Luiz. Se viesse uma chuva, a lua e as estrelas desapareceriam, as flores receberiam a messe para um desabrochar mais rápido. E sobre ele, dentro dele, que efeito teria a chuva? E se nunca mais chovesse, nem a lua voltasse, nem as estrelas viessem dar sentido ao infinito das distâncias, será que sem tudo isto lhe seria mais fácil compreender-se? As flores têm a terra e da terra vem a seiva. Ele, sem raízes, tem no solo apenas um vago apoio que não limita sua liberdade. Mas como usá-la?

Helinho suspende o corpo até sentir o calor do primo tocar-lhe as costas. Vira-se rapidamente, estende-se ao lado de Luiz que também treme. O contato quente das pernas, das coxas, a respiração descontrolada, os dois corpos estremecendo de desentendimento.

Como estão de mal, ficam o tempo todo em silêncio, um sem saber o que fazer com o corpo do outro, ou se seria preciso fazer alguma coisa, se aquilo era tudo, se faltava chuva para as pétalas se abrirem... Ou seria ainda preciso semear um grão desconhecido?

Ambos adormeceram com a imprecisão do mesmo sentimento.

Quando o sol pôs cor em todas as flores, apenas uma coisa estava esclarecida entre eles: os dois se prometiam mais uma vez nunca brigar nem discutir, fosse pela bicicleta, a vara de pescar, ou pela namorada que um tentasse roubar do outro.

Porto Belo (SC) – 1984

A Visita

Era manhã, o céu azul, a areia ainda úmida de sereno, quando saímos, eu e minha irmã Liana. Lembro-me do sol: aos poucos, foi esquentando-nos as costas e a roupa leve. E quando estávamos para chegar, ele ia alto e quente, nossas cabeças louras pediam sombras e corríamos sempre que víamos uma árvore atirando os galhos para a rua.

Quando minha irmã disse “lá está a casa”, parei e ela me puxou pela mão e fomos os dois de mãos dadas, em silêncio. De longe, a casa me pareceu triste como um pássaro morto e pensei em meu pai como sendo ele que o matara.

Liana falou: “Será que ele está?” e passou a mão pelos sarrafos da cerca fazendo barulho de cabo de chicote em roda de carroça. Entramos pelo portão do lado e vimos fumaça saindo pela chaminé. Senti-me melhor e procurei a imagem de meu pai mas não consegui refazer sua fisionomia. A boca, os olhos, o cabelo, mas tudo solto, um de cada vez. Então subi na meia-porta da cozinha e espiei. Ninguém. “Como será ele?” Liana rodou a tramela e entrou. Chamou por meu pai. Comecei a distinguir um assobio, depois os passos aumentando o ruído e foi a partir daí que revi sua face, antes mesmo de aparecer diante de mim. Meu pai atravessou a despensa, vindo da varanda, abaixou-se e nos abraçou, beijando-nos os cabelos e o rosto. Seus carinhos eram como o passar da brisa ondulando plantações de aveia, e me senti bem como na sombra das árvores onde a areia da rua não queima a planta dos pés e o sol abandona nossos cabelos. Acariciava-nos as mãos com as suas, trêmulas e de veias grossas, e encostava a face às nossas, espetando-nos com as pontas da barba. Lembrei-me de roças queimadas, eu passando por cima, os pés ardendo. Murmurava palavras doces e ternas: “Meu menino está grande”; e dizia: “Tu já estás uma moça, de travessa no cabelo” e fazia momentos de silêncio. Depois o murmúrio era igual ao das chamas do fogão, confundia-se com elas, tinha o mesmo calor. Falava: “Pensei que não se lembrassem mais de mim. Pois eu sempre penso em vocês, quando me acordo de manhã e encontro a casa vazia. Parece até que todos estão brincando de esconder, e chamo o nome de cada um, baixinho, só para eu ouvir”. Nós em silêncio e ele continuando, a voz fraca e as palavras molhadas de lágrimas do fundo do coração: “Depois digo para mim: ah! estão todos viajando, mas voltarão um dia; e tenho razão, não é? pois estou abraçado a vocês dois de quem gosto tanto!” Os olhos de Liana estavam baixos, ela imóvel, o rosto fino e pálido. Meu pai tinha os olhos vermelhos e reparei nas veiazinhas enredadas como esqueleto de folha seca. Sorri tão triste que desviei o olhar para a chaleira cuja tampa sacudia-se sobre a água fervendo. Levantou-se e disse: “Olha, a água está pedindo, vamos fazer café? Quem se lembra aonde está a lata do pó?” Liana correu à despensa e veio rindo com a lata nas mãos. Ele me olhou: “E tu? Aposto que não encontras o açúcar!” Fiquei parado enquanto Liana desapareceu na direção da varanda. Meu pai disse-me baixinho no ouvido: “Corre, o açucareiro está na prateleira da despensa”. Quando ela voltou, nós dois começamos a rir, eu com o açucareiro na mão. “Não faz mal, eu achei o café e tu não sabias onde estava”.

Sentei-me no monte de lenha e vi meu pai fazer o café. “Por que não será sempre assim?” pensei. Eu sofria por não compreender as coisas. Me deu raiva da decisão dos meus irmãos maiores, e me convenci naquele momento que não mais deixaria meu pai sozinho. Cheguei bem perto do fogo e abracei-lhe as pernas. “Cuidado, não vai queimar a palha de milho!” disse ele se referindo aos meus cabelos. Então fui para a porta olhar as galinhas e me sentei com as mãos no queixo. Mas não via galinha nem nada: eu queria compreender aquilo, onde a razão de tudo? Por que separado de um pai tão bom? E comecei a chorar baixinho e a soluçar não sei por quanto tempo. Quando dei conta de mim, estava rindo de um pinto pelado querendo pegar uma minhoca. Chamei Liana e rimos alto, às gargalhadas, e o pinto saiu correndo e mais dois atrás dele para roubarem o achado.

Não havia pão em casa e meu pai saiu para comprar. Botou o chapéu amassado na cabeça e disse que voltaria logo. Liana foi com ele até o portão e eu corri para o fundo do quintal a ver se encontrava frutas. A parreira brotava e um ramo grosso e retorcido me pareceu o braço de Cristo crucificado da Igreja Matriz. Fiquei com medo, pois achei que era pecado pensar assim. Corri para longe e era como se cada galho fosse um braço querendo me pegar. Vi o pessegueiro todo florido e me deitei debaixo, olhando o cor-de-rosa das pétalas. Nenhuma nuvem no céu. Lembrei-me de meu pai: cada nesga de céu era um pedaço da camisa azul dele, e as flores eram bonitas como as palavras que murmurava ao me abraçar.

Liana chegou e disse: “Ainda não tem pêssego, seu bobo”. Não falei, então sentou-se comigo: “Lá no céus está Nossa Senhora”. “Aonde?”, perguntei. “Como é que queres ver? Seu tolo, está depois do azul, com o Menino Jesus no colo”. Puxou-me os cabelos e saiu correndo: “Tu não me pegas, tu não me pegas”, e corri atrás dela até a cozinha.

Meu pai levou o bule de café para a mesa, sentamo-nos os três e minha irmã contou o que estava aprendendo no Grupo Escolar. Ele ouvia e comentava. Comecei a fazer boneco com o miolo de pão e não ouvi mais nada, senão quando ele me tocou no braço para botar mais café na caneca. Reparei nos cabelos grisalhos subindo nas orelhas, os olhos agora tão alegres. Bebi o café todo de uma vez, respirando dentro da caneca; o nariz molhou-se de suor e comi a casca do pão doce imaginando como seria bom viver sempre ali. Liana estava outra vez de olhos baixos; pegou a colher e riscou uma roda na toalha.

No instante seguinte meu pai respirou fundo. Olhamos para ele. Levantou os olhos aflitos para o teto e saiu da mesa apressado, derrubando a cadeira. Sem saber o que pensar, corri para junto de Liana e agarrei-me a ela desesperado. Ao chegar à porta da despensa, meu pai caiu no chão. Gritei alto. Minha irmã fugiu pela porta da varanda. Fiquei agarrado ao pé da mesa, sem o mínimo de movimento, olhando o corpo de meu pai se debatendo. Da boca borbulhava uma espuma esbranquiçada que escorria para o chão. Dos olhos só aparecia o branco. Os cabelos estavam empastados de sangue manchando a testa, as mãos crispadas batiam no assoalho, as pernas tremiam e o choque dos joelhos eram pancadas secas e surdas. Os chinelos haviam saído dos pés que mostravam solas amareladas de cadáver.

Apoderou-se de mim extremo pavor. Não pude fugir. Sentia-me fraco, o coração batendo forte, os braços e as pernas como se não existissem. Aos poucos meu pai foi ficando imóvel e minhas pernas começaram a tremer. As lágrimas corriam-me pela face e, no silêncio que se fez, ouvia soluços mas não queria acreditar que fossem meus. Escorreguei sobre as pernas e amontoei-me no chão, escondendo o rosto entre os joelhos.

Liana chegou com os vizinhos e levaram meu pai para o quarto. Levantaram-me, deram-me água e me abraçaram estreitamente dizendo coisas que eu não compreendia. Depois fiquei sozinho na varanda, sem coragem de olhar para o lugar onde ele caíra, nem a porta por onde o levaram. Ouvi conversa no quarto em voz baixa. Liana voltou-se e sentou-se no patamar da escada. “Tinha um prego na parede; ele pisou a cabeça”, disse. Revi o sangue na testa e a espuma na boca. Desejei estar longe, junto dos irmãos mais velhos, e me arrastei para perto de Liana.

No jardim, uma árvore seca.

Porto Alegre (RS) – 1949

A Procissão

Ester me chamou e disse: “Te arruma e vai esperar a procissão. Quando a primeira embarcação aparecer na curva do rio, vem me chamar”.

Vesti minha camisa de tricoline branca, botões de madrepérola e gola redonda, a calça curta de flanela azul-marinho, e saí descalço, o cabelo loiro caindo em franja pela testa.

Fui andando pela areia solta, enterrando os pés a cada passo porque o calor do chão queimava e fazia arder os dedos e o calcanhar. Por baixo era mais fresco e a areia clara que se amontoava no peito do pé eu a jogava com força para frente; e ela abria como tarrafa que se lança no rio. Logo depois da esquina, uma faixa estreita de grama enfeitava a margem do caminho. Então fui por cima dela até que os espinhos das rosetas começaram a me espetar a sola tantas vezes, obrigando-me a parar a cada instante para tirá-los, que desci novamente para o areal e fui saltando num pé só. Mas logo me cansei e o suor molhou-me o cabelo na testa e as têmporas latejavam tão forte que pensei que não parassem mais. Diminuí o passo. Uma baforada quente de vento formou um redemoinho com papéis sujos e cascas de arroz. Fui pela sombra do descascador e um resto de vento pregou poeira no suor do meu rosto. Ao passar a manga fofa da camisa pela face, fiquei muito triste porque voltou amassada e escura, como se eu a tivesse esfregado no chão.

De longe, vi o porto do Agostinho cheio de gente. Apressei-me, com medo de que já viesse a procissão, mas, ao me aproximar, verifiquei que todos esperavam calmamente, uns sentados à sombra das árvores, outros encostados às pilhas de madeira e muitos passeando ao longo do cais.

As tendas estavam cheias de melancia e parei, vendo como eram bonitas as fatias vermelhas com os colares de sementes negras aparecendo. Fiquei com sede e molhei meus lábios de saliva. Meninos do meu tamanho vendiam broas de polvilho em bandejas de metal com toalhas de renda dentro. Uma tenda mostrava o balcão cheio de bolos de milho, assados em folhas de bananeira, e pensei que ninguém comprava aquilo, pois parecia sujo e mal feito. Mais uma vez estive junto das melancias, que espalhavam um cheiro doce por toda a parte; depois corri para a beira do rio e, sentado no barranco do cais, mergulhei os pés na água e comecei a balançá-los até formarem tantas ondas que perdi a conta. De repente, tive medo que uma traíra me mordesse os dedos e abracei os joelhos de encontro ao peito, fitando a superfície do rio correndo tão devagar que parecia pronto a parar a qualquer instante.

A margem oposta era plana e verde. Depois vinham as árvores, seguidas de elevações cada vez mais altas que iam mudando de cor até que a última recortava-se azul-escuro contra o céu sem nuvens. Mas, para leste, o céu estava coberto de branco e procurei em vão descobrir um aeroplano que se anunciava debilmente pelo ronco. “É um anjo perdido” – pensei.

Quando todos se aproximaram do porto, ouvi um foguete explodir no ar e olhei a curva do rio. Lá vinham as embarcações embandeiradas. As frases dos hinos rolavam tranquilas por cima das águas e eu ouvia baixinho, sem compreender as palavras, mas achando suave e triste como as canções de ninar. Atrás de mim comprimia-se o povo, uma menina roçando-me os cabelos com o vestido de organdi. Outro foguete estourou mais forte e acompanhei a vareta riscando o espaço e sumindo no rio. Belos fogos de lágrimas pingaram o céu de verde e vermelho, e corri os olhos para a procissão que se aproximava aos poucos.

O primeiro barco era grande e levemente lilás. Com a vela completamente inflada de vento, deslizava soberbo, enfeitado de guirlandas de flores que desciam para as águas. Mocinhas devotas, vestidas de branco, rodeavam o altar da santa e cantavam um hino que falava em céu, nas estrelas, nos anjos. Agora o veleiro passava por mim e um cordão de bandeirolas subia da proa até o cimo do mastro, descendo em seguida para trás. O andor inclinava-se para um lado, para o outro, e o diadema da Virgem tremia e brilhava ao sol. Pensei que a santa fosse cair e levei a mão ao peito onde o coração batia forte.

Seguiram-se as embarcações menores, todas enfeitadas com bandeiras de papel crepom de todas as cores, os botes, as canoas rasas, os batéis cheios de gente contrita, rezando em voz alta ou entoando os cânticos que já chegavam apagados do veleiro mestre. Por fim, as bateiras sem hinos nem bandeiras dos que aumentam o cortejo e conversam e sorriem, abanando para a gente da margem. Uma delas fazia água: as mocinhas riam e derramavam canecas cheias pelos lados, e a cada balanço da embarcação lançavam gritos nervosos e abafados.

Passada a última bateira, ouvi ou choque de pequenas ondas nas tábuas do cais e reparei como estava encrespada a superfície. Mas o estrondo de um foguete atrasado ficou ressoando em meus ouvidos e dizendo: “Quando a procissão aparecer na beira do rio, vem me chamar”. A lembrança de Ester fez-me levantar e correr em direção ao povo, abrindo passagem. Senti sua mão quente me apertando as orelhas. Vi o caminho toldado em minha frente e dei conta das lágrimas me enchendo os olhos. Não deixei de correr. Nem me lembro de haver sentido a quentura da areia escaldante, mas ainda me vejo, com a pressa da carreira, tropeçar na minha própria perna e cair ao chão, sujando toda a camisa branca. Olhei para os lados. Não vi ninguém. E quando me limpava, tirando os grãos de areia do rosto e da boca, aumentou-me o pranto e fui sacudido por tantos soluços que me sentei na terra e assim fiquei algum tempo, levantando-me depois e retomando a corrida.

Da esquina, olhei ansioso para a casa, mas não vi minha irmã na janela. Imaginei-a escondida, olhando-me pelas frestas do postigo. “Ela me espera, nem me deixará falar” – pensava, e não tinha sequer uma palavra para justificar minha falta. Sofria não só pelo castigo mas também por uma tristeza infinita que me dominava ao saber que ainda faltava um ano inteiro para outra procissão igual àquela, e que por minha culpa Ester não a tinha visto.

Sentei-me à calçada sem coragem para entrar. Então ouvi o som de vozes e me admirei vendo Ester, com as vizinhas, voltando pelo caminho que eu acabara de fazer. Chegou e disse sem rancor:

— Bonito moço de recado, hem? Não fosse o menino do lado, eu não teria visto nada da festa.

Recomecei o pranto. Pois, embora feliz por ter minha irmã podido, como eu, extasiar-se com a beleza da procissão, nascia em meu coração um profundo desgosto ao dar-me conta de que outra criança pudera voltar em tempo com a mensagem.

Porto Alegre (RS) – 1949

A Chave

Em frente ao espelho, via-se um menino louro, triste e só. Viera de uma cidadezinha estendida ao longo de um rio que entregava, incessantemente, sua água para o mar; e trocara o som distante das ondas pelo rumor de palavras novas e estranhas que não compreendia nem decifrava: antes, sonhava com elas. Arandela, por exemplo, lembrava-lhe uma princesa de contos de fada. Plafonier era o príncipe encantado. E o vilão chamava-se Enxufe. Compunha histórias ingênuas com estas personagens. Outras palavras, no entanto, nada lhe sugeriam: isolador-capanema, receptáculo, fio-conduíte, toma-corrente.

Era um menino pobre. E sem saber como, viu-se despojado de todos os carinhos, viajou de ônibus, de trem, e alguns dias depois amanheceu numa terra fria e desconhecida. Era a vida. Pois lhe diziam sempre: “Tens que começar cedo a pensar na vida!” – Mas pensava era no tempo em que corria descalço pela rua de sua cidade de quatro igrejas e aquela ponta enorme e negra sobre o rio.

Veio, pois, e começou a trabalhar cedo na loja de seu tio. Aos poucos foi-se acostumando a lidar com os fregueses, a medir fios elétricos que lhe deixavam os dedos pretos e ásperos. Muitas vezes chegavam eletricistas pedindo uma porção de suas “personagens”. Olhava a prateleira sem saber em que gaveta estariam encerradas, apesar de haver uma amostra presa na frente. O homem ajudava:

— É aquilo ali, alemão.

— Eu sei. Eu não sou alemão – zangava-se ele.

Morava com o tio num quarto aos fundos da loja. Aprendeu a fazer o café pela manhã e a tomar conta do leite para não derramar. O tio era bom, tratava-o bem, levava-o ao cinema domingo de tarde e, para não acordá-lo, entrava todas as noites pelo corredor entre a loja e a casa vizinha, onde funcionava um bar, e pulava a cerca de divisão dos terrenos para apanhar a chave da porta da frente que o sobrinho deixava no umbral da porta do quarto. Uma providência simples evitaria essa dificuldade. Mas nunca se lembrava de mandar fazer uma cópia da chave.

— Não passa de amanhã – resolvia, ao saltar de volta o muro com a chave na mão; mas os serviços do dia seguinte faziam-no esquecer a intenção. Tudo se complicava com a falta de fechadura na porta dos fundos. Tentara convencer o sobrinho para que a deixasse encostada, mas ele não dormiria de medo que um ladrão entrasse por ela. E se o próprio tio não voltou ao assunto é porque havia certo fundamento nesse temor: o bar, de noite, transformava-se em casa de jogo e era frequentado por gente de toda espécie.

Muitas vezes, o menino ficava só e sentia profundas saudades de casa, sofrendo por não ter quem tratasse melhor de si, de suas roupas. Escrevia então longas cartas mal definidas. Cartas de pranto. Pranto de solidão e de medo, porque seu pequeno corpo de criança perdia-se nas dimensões da loja que os armários e estantes espelhadas tornavam imensas. Sentia-se bem quando todos os lustres de cristal e de bronze estavam acesos: imaginava-se príncipe. Mas, na hora em que fechava as vitrinas e apagava tudo, fantasmas espreitavam-no de todos os lados, nasciam dos espelhos, penduravam-se nos lustres, e ele, correndo, dirigia-se para o quarto, punha a chave na entrada debaixo da porta e deitava-se depressa, deixando a luz acesa. Se o tio reclamasse, esconderia sua fraqueza dizendo que se esquecera de apagá-la. Deitado, ouvia por um tempo o rumor das vozes e fichas na casa do jogo; lembrava-se do homem que ali fora assassinado; o terror aos fantasmas crescia, lembrava-se mais uma vez de casa... e adormecia, o sono tão forte que nunca viu o parente chegar.

Quando já estava quase acostumado com a nova vida, um acontecimento perturbou-lhe de tal forma o espírito que o tio mandou fazer imediatamente a duplicata da chave. É que não havia uma noite em que o sobrinho não desejasse espiar o que se passava na casa vizinha. Bastaria abrir a porta do quarto que dava para o pátio, caminhar um pouco até a cerca de madeira e olhar pelas frestas. O tio lhe proibira:

— Não tens nada que olhar para lá. Só tem gente que não presta.

Mas certa noite, depois de apagar as luzes da loja, um desejo extremo dominou-lhe os sentimentos, ao pôr a chave no lugar de sempre. Tirou o pino da tranca de ferro, puxou-a lentamente para baixo, e a porta, sem fechadura, encostou-se contra a folha que cedera. Logo depois, silêncio. Apena o gotejar das fichas sobre a mesa. Numa resolução brusca, afastou-se a e fez girar a porta que, ao abrir-se, atirou sobre as pedras do pátio sua sombra comprida no retângulo de luz. Desceu, misturou a sombra com a escuridão da noite e aproximou-se da cerca, procurando uma fresta maior por onde pudesse ver bem o atraente mundo desconhecido.

A uns três metros de si, abria-se uma porta larga para uma sala em que muitos homens rodeavam mesas de jogo. Prendeu sua atenção uma mesa grande em que o olhar de todos acompanhava o girar de uma roleta. Pilhas de fichas coloridas apareciam entre as pessoas. Desejou brincar com elas. Mas um grito fê-lo estremecer: era o banqueiro anunciando o número do dado. Quase ao mesmo tempo, antes que se refizesse do susto, percebeu um soldado de farda amarela à porta de entrada com os olhos negros fisgados na fresta por onde olhava. Aterrorizado, afastou-se da cerca e teve a certeza de que o soldado avançava para si, como se seus passos puxassem os dele. Num esforço tremendo, correu e entrou no quarto, repondo a tranca e encostando-se frio na porta, o coração acelerado no peito. Quando se dispunha a afastar-se, ouviu o barulho do soldado saltando a cerca. O medo paralisou qualquer ação. A cabeça pendeu no peito e viu, entre seus pés, a chave que ainda estava onde a deixara havia pouco. Mas antes que tivesse forças para executar um gesto simples que o salvasse, viu a chave desaparecer num segundo, como uma pequena lagartixa que fugisse.

Não sentia mais as mãos, os pés, as lágrimas escorriam de seus olhos e era como se houvesse uma enorme aranha agarrada a seu pequeno coração. De repente, ocorreu-lhe uma possibilidade de salvação: fugir para a rua antes que o soldado entrasse. Correu pelo quarto, atravessou o escritório, desviou-se dos móveis na loja e atingiu a porta. Outra dúvida para atormentá-lo: estaria a porta chaveada? Rodou a maçaneta e verificou alegre que poderia sair. Escapou rápido, bateu a porta atrás de si, e recebeu no rosto a pancada forte de uma lufada de vento gelado. Atônito, indeciso, sem saber o que fazer e a quem recorrer, aconteceu-lhe o mais embaraçoso incidente da noite: a pergunta clara e natural de seu tio:

— Como é que estás aqui fora, se acabo de apanhar a chave lá nos fundos?

Juiz de Fora (MG) – 1953

A Viagem

Cheguei ao ponto de partida do ônibus às quatro horas da tarde, trinta minutos antes da saída. Ele já estava lá, e havia alguns passageiros dentro, enquanto os empregados transportavam a bagagem para a tolda. Pus a capa e a pasta sobre o assento número 10, conforme a passagem, e fiquei observando o trabalho. Depois fui ver o mar que batia furiosamente na amurada do cais. Soprava vento sul; ameaçava chuva. Voltei ao ônibus, troquei umas palavras totalmente desnecessárias com um passageiro desconhecido e resolvi entrar, sentar-me e ler alguma coisa. Retirei uma revista da pasta e comecei a folheá-la a ler curiosidades, até que o veículo estava prestes a partir.

Todos os lugares ocupados: eu me levantara para dar passagem a uma senhora que se sentou a meu lado. Restavam apenas cinco dos oitos assentos incômodos existentes entre as poltronas, os “assentos do meio”, como são conhecidos. Foi então que entrou um homem e sentou-se no assento do meio, a meu lado esquerdo, deixando dois desocupados à retaguarda. Depois entrou uma senhora bastante idosa, cabelos brancos, trajes antigos: um vestido comprido até os pés, um casaco de casimira. Sentou-se e então notei um cachorro, peludo, cinzento e branco que trazia ao colo.

Acompanhava-a um rapaz de uns onze ou doze anos, talvez seu neto, de físico mirrado e aspecto doentio: olhos estupidamente abertos, nariz recurvado e dentes sempre à mostra num sorriso sem fim. Causava medo e pena. Ficou de pé em frente à senhora e segurou-se à barra de ferro que liga a tolda ao banco, deixando ver um bracinho fino e pálido que parecia prestes a se quebrar.

Logo que a velha sentou-se no banco incômodo e sem encosto, senti que eu não faria boa viagem sem lhe oferecer meu lugar. Mas a indecisão veio contrariar meus bons sentimentos, mostrando os inconvenientes dessa boa ação. E começou uma forte luta interior que procurei combater abrindo a revista em busca de algo para ler, mas não consegui fixar o pensamento sobre as linhas do papel. Finalmente, entraram o motorista e o cobrador, que fechou a porta, e o ônibus saiu em marcha lenta. O barulho do motor deu-me alívio. A senhora velha segurou-se, também, onde o rapaz se apoiava e com a outra mão acariciava o cachorro que eu quase não podia ver. No meu íntimo continuava a luta: bastaria eu estender o braço, tocar nas costas da velhinha e oferecer-lhe o lugar. Por certo o aceitaria; não podia estar satisfeita com aquele banco duro. Eu, moço e forte, comodamente recostado como se estivesse em paz meu espírito, enquanto a pobre sofria a cada solavanco do carro. Tentei novamente ler, mas a trepidação não permitia.

— Porque não ofereço de uma vez o lugar para continuar a viagem sossegado? – pensei. Mas, afinal, levantei-me tão cedo e apressei-me a ir à agência para conseguir um bom lugar... Essa velha devia ter feito o mesmo. Mas quem sabe não se viu obrigada a seguir hoje, talvez por motivo de saúde. Não, não é possível. Como se justificaria, então, minha pressa para conseguir um lugar confortável? Se em todas as viagens fosse ceder meu assento, para que essa preocupação de ir cedo à agência? O melhor que eu teria feito era comprar um assento do meio: estaria livre dessa luta interior. Mas, por quê? Há tantos passageiros: esta senhora a meu lado... Absurdo. Aquele velho... Não. Há passageiros moços nos bancos de trás; com certeza esperam que eu, que estou à frente, lhe dê o meu. Talvez todos estejam pensando que vou dar o lugar na próxima parada. Que devo fazer? Depois de tanto tempo, dirão: “Esse estúpido só agora é que se resolveu; deve ter estado a medir suas conveniências”. É melhor pensarem que estou alheio ao que se passa aqui. A senhora que vai a meu lado já pensou isso, pois olhou-me de soslaio e, como não visse possibilidade de conversa, virou-se para fora e aprecia a paisagem. Que pensará ela? Por certo me recrimina. Se ela me encarar e me perguntar por que não ofereço meu lugar à velha – que direi? Ficarei sem resposta e sentirei o sangue esquentar-me as faces. É melhor eu evitar isso, oferecendo meu lugar. Ela sorrirá, vira sentar-se onde estou e pedirá para eu levar seu cachorro no colo... e terei que aturar o sorriso perene do neto. Não.

Pus a mão no bolso para que uma força superior à minha vontade não fizesse com que eu batesse no ombro da velha. O ônibus ia velozmente. A revista descansava sobre meus joelhos. Passei os olhos pelos passageiros dos quatro bancos que havia à minha frente. Foi só então que notei um padre sentado junto à velha, num banco confortável. De guarda-pó branco e chapéu preto, gordo e vermelho, conservava um livro preto entre as mãos, fechado, e olhava para a frente. Por que não cede ele o lugar? Como não reparei nele antes... Sim! o padre, o ministro de Deus, o pregador das palavras de Jesus, o filósofo do bem e da boa vontade, ele é que necessita executar essa boa obra e não eu. Mas está completamente abstraído... ou finge estar, como eu. Isso mesmo: ele é que deve cumprir o que prega do púlpito para os homens crerem e executarem seus ensinamentos. Além disso, está precisamente ao lado da velha, sente seu ombro batendo no dela, vê melhor seu sofrimento.

— Mas como? Tu que pregas as boas obras, que conheces a doutrina de Cristo, será possível que não vais executá-la? Será um exemplo a ser comentado, todos os passageiros contarão – senti vontade de dizer ao padre.

Um solavanco forte fez-me notar o cobrador que, sentado de frente para os passageiros, ao lado do motorista, olhava penalizado para a pobre senhora e para o garoto que se firmava à coluna de ferro, A cada solavanco parecia que seu braço se despedaçaria. O cobrador chamou a atenção do rapaz:

— Lá atrás tem um lugar; não queres sentar?

O sorriso abriu-se ainda mais; apareceu toda a gengiva inchada e vermelha como o miolo de uma goiaba madura e os dentes amarelos e separados. O rapaz dirigiu-se à velha e disse:

— Vó, ele disse que tem um lugar para mim lá atrás.

A senhora olhou para trás e respondeu:

— Quando o ônibus parar. Agora vais incomodar muita gente.

O garoto olhou para o cobrador e este sorriu contrafeito. Percorreu com o olhar os passageiros e ficou me olhando. Um segundo apenas, mas vi que me censurava. Desviei o olhar, mas notei que reparava em mim. Procurei distrair-me para não trair meus pensamentos. Comecei a olhar as montanhas, a vegetação, as curvas da estrada. Num trecho em que era estreita, o carro passou devagar, pude ver um quadro pendurado à parede da sala de uma casa: Jesus no Jardim das Oliveiras. Lembrei-me do padre, olhei-o. Estava com o livro aberto e lia; era a Bíblia.

— Tu que lês a Bíblia, que a estudas para compreender as palavras de Jesus, ainda não encontraste nessas páginas nada que te induza a praticar o bem, uma boa obra? – tive vontade de perguntar. Ele certamente responderia:

— Sim, já encontrei. Por que perguntas?

Então eu sentiria um prazer imenso ao dizer:

— Não vês esta pobre senhora tão mal acomodada a teu lado? Eis a oportunidade de praticar uma boa obra.

— Irmão, eu meditava, não reparei nisso. Agora, se me permites perguntar, por que não cedeste tu o teu lugar?

Que responderia eu? É melhor eu ficar calado. Quem sabe não argumentou como eu: deve ter ido muito cedo à agência, pois reservou um lugar mais à frente do que eu.

Um murmúrio veio arrancar-me o pensamento. Era a velha que acariciava o cachorro. Ele esticou o pescoço, fechou os olhos e sujeitou-se prazerosamente aos carinhos daquela mão magra, escura e cheia de veias salientes. Fiquei profundamente emocionado. Lembrara-me de minha mãe. Senti desejo de ser o próprio cão. E essa lembrança e esse desejo vieram agitar ainda mais meu interior. Se fosse minha mãe, ou minha avó, como ficaria agradecido se soubesse de alguém que se privou de um conforto para oferecer-lhe. Sim, meu desejo é ceder o lugar. Por que não o ofereço, então? Agora, com uma hora ou mais de viagem, o que não diriam os viajantes; quantas acusações mudas leria em seus olhares. Mas, talvez, todos me elogiassem mudamente. Entretanto, Jesus disse: “Cuidado para que não pratiques as tuas obras diante dos homens, com o fim de seres visto por eles”. Quem sabe é por isso que o padre não faz agora este ato tão digno... No livro que tem às mãos encontrará estas palavras, mas não será este o sentido que lhe dará, pois, se medita sobre esta parte, há de encontrar mais adiante a Parábola do edifício e quererá ser o homem que edificou sobre a pedra.

O ônibus parou. Um passageiro do último banco veio saindo pelo corredor. O homem a meu lado levantou-se, a velha levantou-se e o cachorro ganiu. O passageiro saltou. O homem a meu lado e a velha sentaram-se e o cachorro parou de ganir. A senhora sentada junto a mim tirou uma carta da bolsa e antes de começar a ler olhou-me para certificar-se de que eu não estava olhando. Senti uma grande tentação mas dominei-me e olhei para a frente. Todos olharam para a frente, até o cobrador, mas o garoto continuava com os olhos arregalados a sorrir seu sorriso sem fim, virado para trás. O sacerdote fechara o livro, conservando um dedo entre as folhas para marcar o texto. Tudo parecia a coisa mais natural do mundo. Abri a revista e novamente fechei: não conseguia afastar a velha de minhas cogitações. Todas as ponderações me voltaram à mente. O cobrador virou-se outra vez e notei que me encarava. Não tirava os olhos de mim; eu o observava sem o encarar. Foi então que reparei num sorriso que veio aos poucos a seus lábios e demorou-se neles até que ouvi um riso abafado atrás de mim. Virei-me bruscamente e dei com uma moça loura e sorridente: eis porque o cobrador olhava tanto.

Acalmei-me um pouco com isso e mesmo porque já estávamos perto de chegar. Aproximava-se um grupo de casas. A velha tocou no braço fino do rapaz e apontou as casas. O rapaz conseguiu construir um sorriso simpático, seus olhos brilharam e disse:

— Estamos chegando!

A vovó remexeu-se no assento mal estofado e eu respirei profundamente, para espanto da senhora a meu lado que me olhou surpreendida.

O ônibus parou em frente a uma casa pequena com jardim. O cobrador desceu, a velha levantou-se e soltou o cachorro que saiu correndo e, saltando alegremente, entrou pelo portão aberto. O rapaz do sorriso perene também desceu correndo.

Grande surpresa me estava reservada: o cobrador abraçou a velha, beijaram-se e ele falou:

— Minha mãe, venho passar o sábado e o domingo com a senhora. – E subiu para o ônibus que começou a movimentar-se lentamente.

A mãe do cobrador disse em voz alta:

— Boa viagem para todos! – e abanou a mão escura e fina.

Todos agradeceram quase a um só tempo. Fiquei mudo. Mas minha mão estendeu-se e ficou abanando até que a poeira da estrada cobriu a figura da senhora idosa. Só então notei que a moça dos cabelos louros me olhava muito espantada: eu olhava para trás e ela jamais poderia entender porque meus olhos estivessem cheios d’água.

Agulhas Negras (RJ) – 1946

O Adolescente

Ela me esperava. Vesti-me com essa certeza, ainda que a tarde nada apresentasse de anormal, talvez apenas um aguaceiro para dali a duas horas. No entanto, era certo que ela estivesse contando os minutos, pensando em mim, alimentando a esperança de que eu não faltasse. Sentava-se na banqueta da penteadeira namorando seus próprios olhos na imagem do espelho, achando-se moça ainda e convencendo-se disso pela cor negra dos cabelos, os dedos mergulhando neles com cuidado e voltando com perfume de flores que trazia cenas de infância para dentro do quarto. Isto eu podia perceber em seu sorriso que se demorava no rosto até eu perguntar o que havia. Então contava e eu não gostava de ouvir, mas ouvia por displicência, deitado, correndo os olhos pela parede e sentindo o desejo inútil e cabotino de que a fachada da casa cedesse e o mundo lodo descobrisse nosso segredo.

Ela vivia entre sombras: o quarto, escurecia propositalmente com uma cortina na porta, outra à janela, de um verde quase negro; e a volta aos acontecimentos do passado chegava a ser mórbida, procurando dessa forma conservar a mocidade no pensamento, já que o tempo não lhe permitia mantê-la em seu corpo.

Perguntei-lhe: “Não tens medo de envelhecer?” — “Tenho raiva” – respondeu em seguida, sem embaraço, acostumada a se dizer constantemente isto. Não se ofendeu com minha pergunta nem se referiu à minha grosseria. Pergunta e resposta foram como se tivéssemos parado de conversar para ouvir o barulho de uma pedra que se atira na água, recomeçando depois sem se haver perdido o assunto. Falava sempre olhando-se ao espelho. Não que estudasse expressões ou fizesse frases: dirigia-se a si mesma, e o fazia na minha presença para poder falar em voz alta coisa que sozinha lhe pareceria ridícula. Não seria também por narcisismo: sabia os pontos em que era irremediavelmente feia e, sendo inevitável, conformava-se. Como se quisesse ver o tempo passar por ela, gastá-la, e acostumar-se a essa sequência de instantâneos descrevendo uma curva harmoniosa, em vez de abrupta.

Saí, os olhos nas nuvens ficando sempre mais escuras pela noite e pela chuva que viriam. Andei, e me surpreendi com a mão suspensa para apanhar uma flor azul dependurada no muro: o pensamento de um filho que leva rosas à mãe. Senti-me ridículo imaginando Clotilde cheirar a flor e beijar-me a testa agradecendo. Não que ela fosse velha: se eu não alcançava os vinte anos o dobro não seria velhice, por certo. Tudo corria para que eu recebesse as mesmas experiências que ela e me ilustrasse com isso, ficando em condições de transplantá-las a outro corpo. Compreendíamos o que se passava e eu aceitava tudo friamente. Clotilde empenhava sentimento onde apenas o cálculo pretendera manter. Por isso sofria, um sofrimento quase doce, não completamente desabrochado, mas cultivado com carinho, de início, por parecer frágil e desprotegido. No fundo de seus olhos, no entanto, já se via de relance um receio de que esse sentimento viesse a ser uma pedra nascida do grão de areia que rolou do monte. Sua primeira tentativa de amor havia sido forjada pelos outros; esta, inteiramente sua, surgida com cuidado, lentamente, como lentamente se forma o feto nas entranhas, tinha o valor de um sonho longamente aspirado e finalmente obtido. Julgá-lo completo, definitivo, imóvel, seria matá-lo com o sadismo do colecionador de borboletas; ampliava-o, então, ainda que viesse a perdê-lo por isso.

Entrei na rua onde morava e comecei a receber a chuva nos cabelos e a roupa foi ficando escura nos ombros e na gola. Quase noite. E a chuva facilitava-me entrar sem ser visto, pois ninguém estaria às janelas. Estranho: não me sentia culpado de nada. Minha consciência era uma vela branca no mar. Mas Clotilde tinha um pouco de onda revolta, nos gestos, nas palavras, nas profundas olheiras dos olhos castanhos. Arrependimento não seria, nem identificação com o erro, mas um estado próximo do desespero de não ter sido livre para escolher o primeiro amor e de reconhecer o segundo como proibido. Por isso, o período de seu desengano não figurava em suas recordações orais em frente ao espelho. No entanto, seus gestos denunciavam a experiência de outrora e sentia prazer podendo ensinar: “Vivi antes de tu viveres; e se pensas estar te igualando a mim, enganas-te, pois estou mais uma vez me antecipando a ti, quando te ensino”.

Cheguei. Abriu-me a porta e sorriu. Entramos no quarto e confessou ter esperado o dia inteiro a hora em que eu viria. Beijou-me o rosto e, fechando os olhos, deixou escorregar maciamente os dedos pela minha face como se tivesse que me reconhecer depois de cega. Abriu os olhos: eram líquidos de paixão e imaginei as órbitas vazias se lhe sacudisse a cabeça com força. Afastei esse pensamento absurdo e ela riu de mim, mas não perguntou nada. Nunca me perguntava nada. Ausente, pintava-me como desejava que eu fosse; era suficientemente esclarecida para não me identificar em todos os sentidos com o modelo e, assim, quase não me deixava falar.

Amamo-nos e ela partiu, como sempre, para a penteadeira. Desprendeu os cabelos e vi seus braços saltarem brancos e flácidos para fora das mangas azuis, quando levou os dedos à testa, as pontas desaparecendo entre os cabelos. Pareceu-me mais velha, a carne mole, os seios escorridos que o espelho deixava ver. Meu aturdimento dos primeiros encontros impedira-me de observá-la. Agora que os gestos se repetiam, sobravam claros de tempo em que o pensamento analisava a situação. Mesmo assim eu preferia demorar os olhos sobre seus movimentos vagarosos de se vestir, de pegar a pluma branca e bater no rosto; ouvir sua voz de timbre puro, um pouco calculada, talvez, querendo encher com ela todos os cantos para eu não encontrar nada além daquele som modulado para me distrair.

Eu carregava comigo certa vergonha do primeiro dia e evitava pensar nele demoradamente. Era natural que, para mim, a vida tivesse sido iniciada com esse acontecimento. Antes dele, tudo fora apenas a sua preparação, por isso ele era um marco anunciando o ponto mais alto e ao qual se chega cansado, mas de um cansaço voluntário que nos faz esquecer completamente as dificuldades da subida. Esse sentimento de vergonha era novo demais para eu julgá-lo fora de propósito e esquecê-lo: foi a surpresa ridícula de me ver abraçado e beijado por ela inesperadamente. Notou meu embaraço e o demonstrou, justificando o ato: “É tão útil para ti como necessário a mim”. Naturalmente existira algo de tensão interior em nossas relações anteriores e seus olhos eram um constante atestado disso, brilhantes, apaixonados, fundos nas órbitas, a pele escurecida ao redor, eles emergindo como mãos crispadas. Mas deste ponto à realização, desdobrava-se um vale diante de mim – e ela o transpôs com um só gesto. Era lógico que o sentisse; parecia-me absurdo que o praticasse.

Clotilde tirou o olhar de sua imagem e voltou-se para mim, despido sobre a cama, a colcha branca despejada no chão. Não parou de falar e contou como gostava de se embrenhar pelo mato, quando criança, ver-se ferida pelos espinhos, sentir-se aflita com a ideia de perder-se e vagar até a noite sem encontrar saída. “Mas seria impossível” – dizia – “porque era um bosque pequeno. Mesmo que eu fechasse os olhos, não conseguiria; no entanto, usava da melhor maneira a minha liberdade”.

Comecei a vestir-me. Abotoou minha camisa abraçando-me pelas costas enquanto eu passava o pente pelos cabelos. Colou seu rosto ao meu e nos olhamos no espelho. Reparei em seus lábios firmes e comparei nossas faces, sentindo o morno de sua carne encostada à minha. Afastou-se bruscamente e entregou-me a gravata sem me encarar. Por certo trazia escondida a convicção de perder-me, mas enquanto fosse possível retardaria esse momento. Gastara noites estudando o meio de trazer-me a ela quando, vizinhos, passávamos um pelo outro e nos cumprimentávamos. Conseguira introduzir-me em sua casa porque soube do meu amor pela música e possuía um piano fechado na sala. O piano foi a parte visível do plano oculto que nos ligava, fazendo-me voltar a ela mesmo depois que fui para outra rua.

Pronto para sair, atravessamos abraçados a sala e adivinhei o piano no canto, como se aquela porção de sons, um ao lado do outro, esperasse alguém para os debulhar no escuro. Era noite e pensei numa pessoa aparecendo de repente e batendo na porta em que estávamos encostados. “Se ele aparecer?” – perguntei. “Não virá mais. Nos primeiros tempos cheguei a esperá-lo; agora sei que se enganou tanto comigo como aqueles que me jogaram em suas mãos”. Não falava com rancor. Fora desprezada, abandonada – diziam – mas era segredo seu que ele partira por não suportar vê-la tolerando-o apenas, como a uma roupa que se usa enquanto não se tem melhor, e até o dia em que a teremos. Justamente esse sentimento de utilidade temporária fazia-o abater-se dias inteiros. “Assim,” – concluía ela – “foi-se como chegou: indesejável”.

Beijamo-nos ainda, ela tateando depois meus lábios com a ponta dos dedos. Tudo escuro, mas eu sabia que ela conservava os olhos fechados. E quando saí foi com a impressão de ter em meus lábios um pássaro pousado, fugindo aos primeiros pingos da chuva.

Ela me amava. Não como a um homem, talvez, mas como a um princípio pelo qual achava-se responsável. Essa certeza começava a ferir-me, porque eu me sentia dependendo de alguém, incompleto, sofrendo o desejo de vê-la, o compromisso de lhe corresponder os sentimentos. Por que sujeitar-me assim a um plano preestabelecido? Ser uma asa inativa, uma onda imobilizada; parar enquanto o sangue continua correndo e exigindo ação; não ser ‘eu’ mas permanecer o ‘seu’ sonho. E os pensamentos cresciam aos poucos, sem pressa – inadiáveis. Eram como eu: um ser procurando fixar limites. Lutei então pela coragem de me decidir, antecipar-me a ela pelo menos uma vez. E tomei a resolução, ferido por sabê-la sofrendo, mas evitando meu próprio sofrimento. Abandonei-a.

Porto Alegre (RS) - 1949

Caixa d’Aço

Céu luz sol dia cor mar sal nau asa ave Paz.

Osmar, aos dezesseis anos, era conhecido em todo o bairro da Prainha, em Florianópolis, como Marzinho. Por sua gentileza com os mais velhos, a lealdade com os amigos, a dedicação aos estudos. Sobretudo pela beleza que só as mulheres reconheciam de viva voz. Tez morena, cabelos negros, olhos de um verde profundo, quando, no fim da tarde, entrava no bar para uma partida de sinuca, todos queriam ser seu parceiro. Os outros bebiam cerveja sem tirar os olhos daquele corpo ágil de felino, manejando o taco como uma bandarilha de toureiro, um arpão de pesca submarina, certeiro na jogada como a seta no alvo e o arpão no peixe.

Marzinho era displicente nos gestos mas não nas ideias. Queria ser arquiteto, como o pai, mas enquanto não era chegado o momento, arquitetava palavras de três letras. Quando ficava por demais abstraído em busca dos triângulos gráficos que lhe enriqueciam a imaginação, a mãe reclamava:

— Marzinho, volta à realidade.

Ele sorria e seus dentes claros formavam uma bandeira com os olhos verdes. Talvez a mãe interrompesse a concentração do filho para ver esse belo contraste.

— Bobagem, esta mania de procurar palavras. Qualquer professor de escola primária faz isto, ou pelo menos fazia, no meu tempo. Quem vive à procura de palavras são os poetas.

— Todo arquiteto é um poeta, mãe. Quem domina as palavras, domina as formas. Já viu os poemas do pai?

A mãe muda de assunto:

— Amanhã cedo vamos a Porto Belo.

Pai, mãe e filho único chegaram de carro no balneário pelas nove da manhã, em casa de Lincoln e Suzana, amigos do pai de Osmar. Uma hora depois estavam no iate branco de Lincoln para um passeio marítimo: três casais de argentinos, outro tanto de brasileiros, algumas crianças, verão no auge, a esteira de espumas que o iate deixava rasgando o pensamento de Marzinho em busca de uma comparação invulgar. Em vão. Desistiu de procurá-la e chegou-se a Alírio, o timoneiro, que lhe explicou como manejar a embarcação, deu nome e sentido a todos os controles do painel de instrumentos. Depois passou a nomear as pequenas enseadas, a ilha – “Tem o nome de um cara, mas todo mundo chama de Tartaruga” – o Iate Clube à direita.

Marzinho não tirava os olhos das grandes rochas que protegiam as encostas, mergulhando no mar, algumas cobertas por gaivotas em repouso.

Os argentinos deslumbrados:

— Como é lindo o Brasil... Que beleza...

Depois da praia do Araçá, nova enseada bastante fechada: Caixa d’Aço. De aço, d’aço, intrigou Marzinho. Suzana explicou:

— Essa contração veio de Portugal. Porto Belo foi fundado por um grupo de casais portugueses. No começo chamou-se Nova Ericeira, de onde vieram, depois passou a chamar-se Enseada das Garoupas, acabou sendo Porto Belo, porque é belo, não é?

Marzinho apaixonou-se por Caixa d’Aço. Aço com três letras. O verde profundo de seus olhos era igual ao do mar de Caixa d’Aço. Suzana percebeu:

— Marzinho, tu não podes ver uma coisa que estou vendo.

— Onde?

— Em ti.

O menino perturbou-se.

— Teus olhos. São da cor do mar, aqui em Caixa d’Aço.

Marzinho hasteou novamente a bandeira dentes-olhos em seu rosto.

Rua som eco voz bar sim não bem mal rum Lua.

Que bom seria ver a lua em Caixa d’Aço. Bares, namoradas, nem a Praia da Joaquina, com surfistas e tudo, tirava a enseada fechada de Caixa d’Aço dos desejos de Marzinho. Licença do pai, mil recomendações da mãe, almoçou cedo no domingo, vestiu o traje negro de napa, subiu na moto vermelha, pôs o elmo dourado na cabeça e rumou para a BR-101.

Apesar de menor de idade, sua estatura representava um adulto. Nenhum policial-rodoviário o pararia, e se o parasse, quando a viseira fosse levantada, os olhos de Marzinho pagariam qualquer multa.

Atravessou Porto Belo sem parar – a igreja, os restaurantes, a prefeitura, a pracinha, o Clube Sabala – logo depois da Pesqueira Pioneira tomou o caminho à esquerda, passou pela Araçá, viu a minúscula grandeza de Caixa d’Aço à sua disposição. Parou, desceu, empurrou a moto por entre as árvores, trancou-a. O bornal com dois sanduíches feitos pela mãe, algumas manjubas para isca conseguidas na peixaria da Prainha, um caniço articulado, o cantil cheio de rum. Tomou o pior gole: o primeiro.

De bermudas brancas sobre uma pedra achatada junto ao mar, a figura do menino sondando as águas quebrava a natureza agreste que o cercava. Incipiente como pescador, pensou que à primeira fisgada já viria o mais belo peixe do mundo: o anzol luziu de volta no espaço, sem a isca. Outra manjuba, novo arremesso, uma dose de rum, uma mordida no sanduíche, ao mesmo tempo que outro peixe mordia a isca. Esperou alguns segundos e quando julgou que estava fisgado, puxou a linha com rapidez e violência. Brilhou no ar uma garoupa que a menos de um metro das águas soltou-se do anzol e voltou ao mar.

— Merda.

Mas não perdeu as esperanças. Toda a operação recomeçada, o rum descia agora com a suavidade de um trenó nas neves. Sanduíche acabado, resolveu deixar o outro para mais tarde, lembrou-se do pai, que iria rir dele se nada levasse da pescaria solitária. E da arquitetura. As enormes pedras à sua frente, no outro lado da enseada, são construções mais autênticas do que tudo o que os grandes arquitetos do mundo haviam imaginado. Osmar não se cansava de ver os livros do pai, com a obra de todos eles. Mas nenhum conseguiu estabelecer a pureza e a grandiosidade da paisagem em Caixa d’Aço.

Já triste e decepcionado, prendeu com todo o cuidado mais uma isca. A recompensa veio sob a forma de um lindo robalo prateado, um traço escuro em cada lado do corpo, de fora a fora, o focinho comprido como o de um galgo. Outra vez a bandeira armou-se no rosto feliz de Marzinho, o brilho dos olhos verdes ecoando pelas verdes águas de Caixa d’Aço.

Outras investidas foram vãs. Marzinho subiu as pedras e procurou um lugar à sombra para descansar, deixando o peixe a seu lado. Mais um gole de rum e o sono apagou Caixa d’Aço de seus sentidos.

Avô avó pai mãe tio tia pão mel chá uva Lar.

Noite fechada quando Marzinho abriu os olhos. Levantou-se, mas não havia luz alguma que o orientasse. Nuvens cobriam a lua, sentiu frio, não tinha coragem de se mover na escuridão para procurar a roupa. Comeu o outro sanduíche, bebeu o resto de rum, acariciou o peixe. Chorava. Não por medo, mas uma dolorosa saudade de casa, remorso pela preocupação que estava dando à mãe, aos outros parentes. Por que nenhuma lâmpada acesa para guiá-lo? Talvez um defeito na iluminação pública, tão comum em Porto Belo.

— Robalo, que pena, amanhã nem vou te levar para casa. Decerto não vais prestar mais.

O pranto aumentou: o remorso crescia por haver tirado o peixe, inutilmente, de seu ambiente para a morte. Na escura solidão, qual o sentido da companhia do robalo? Se fosse um cão vivo, poderia latir, ganir, até mesmo orientá-lo até a moto. O robalo, não. Morto e se decompondo, não passava de uma presença incômoda. Osmar pegou-o pelo rabo e jogou-o longe. O ruído contra o tronco de uma árvore, o baque no chão coberto de folhas secas.

Assim que amanhecesse – céu luz sol dia – vestia a roupa, pegava a moto e tocava rápido para Florianópolis – rua som eco voz – onde a mãe chorava pelo filho único – pão mel chá uva – e o pai não trocaria palavra com ele, fingindo-se zangado.

Quando a claridade despertou Marzinho e ele conseguiu orientar-se, o calor era tão grande e tão grande o apelo do mar que resolveu dar um mergulho, antes de voltar para casa. Saltou da grande pedra para as águas. Mais forte que o arremesso do corpo sobre as ondas que o cobriram foi o impacto de sua cabeça contra a rocha submersa. Uma papoula de sangue subiu à tona e desfiou-se na espuma.

Nunca mais poderá ser hasteada a bandeira na face morena e altiva de Marzinho. Os peixes roeram o pedaço de mar, roubado de Caixa d’Aço para seus olhos, e o sorriso, extinto, foi ceifado para sempre.

Ato oco bem vil fel ser dor til sem véu Fim.

Porto Belo (SC) - 1983

A Joia

Era um bar com atmosfera de pinacoteca ao entardecer, estreito, duas filas de mesas grudadas nas paredes enfumaçadas, onde viviam pinturas em cores mortas, apagadas pela penumbra da sala. Do lado de fora, nada de especial que distinguisse aquela porta úmida de qualquer outra da mesma rua. Os homens entravam por ela como por instinto; entravam, sentavam e bebiam sem algazarra, sem conversa, solitários.

Enfim, era uma igreja aquele bar, aonde se vai procurar um momento de paz, enquanto o órgão encontra notas pungentes e nos transforma em raios de luz, ligando-nos com sonhos de céu – ou enterrando mais fundo os problemas pesados que carregamos.

Mas lá não havia música. O silêncio aumentava com as horas do dia, para de noite ser pesado e denso como a fumaça azulada que envolvia tudo, bruma imperturbável de pensamentos estáveis aos maiores ruídos do recinto. Cada frequentador construía seu próprio silêncio com problemas insolúveis, e conservava aquela joia, que muitas vezes nada mais possuía senão valor estimativo, como se fosse o mais valioso de todos os diamantes encontrados: aberto o estojo e apresentado o pensamento, talvez fosse desprezado pelo mais leigo indivíduo por ser “um simples pedaço de vidro colorido”. Mas não eram para vender, nem para mostrar: cada um trazia lacrado seu estojo e muitas vezes tinham tentado abrir, em vão. Resolveram pois, sem conhecer perfeitamente o valor da joia, conservá-la em segredo, como se fosse... (e aqui teciam o sonho), e viviam um pouco desse valor adicional que seria grande se a pedra fosse falsa, mas ninguém admitia isso.

As mesas separavam-se por paredes baixas de madeira, contendo a intenção de um arabesco caindo para o chão sem ter conseguido nenhuma harmonia de traço. Assim, tinha-se que ir até o fundo do corredor procurar uma mesa vazia. Então encontrava-se o sorriso solícito do garçom, menino de olhos azuis e casaco branco, imagem de uma infância perdida. Ficava por detrás do balcão enrolando o cabelo nos dedos, as mãos brancas e as unhas sujas, mas o rosto e os olhos sempre limpos naquele sorriso grato: “não sei quem tu és, não sabes quem sou eu, mas é justamente por não nos conhecermos jamais que podemos sorrir assim um para o outro”. Um velho gordo esquecia-se sentado junto à máquina registradora e plantava os olhos nas teclas combinando números nas mais fabulosas somas que imaginava: “pesar meu peso em ouro! viajar pelo mundo inteiro!”

Apertava sensual os botões numerados e trocava notas voluptuosamente, sentindo perfumes e calores que as cédulas nunca tiveram porque sempre andaram às pressas, de mãos em mãos.

Havia pouca luz no bar. De dia, as meias paredes de separação das mesas contribuíam para a obscuridade. Numa claraboia emendavam-se vidros de cor onde se dependuravam sombras lilases e verdes que iam confundir ainda mais as cores das pinturas. De noite, triângulos mortiços de luz subiam sem forças pelas paredes.

Por isso, nunca se podia saber ao certo o que quiseram dizer os que decoraram as paredes do bar. Mas um dia... – e foi pouco depois de eu havê-lo conhecido, foi justamente por esse dia que resolvi “voltar amanhã”, desde então não seria possível faltar, como se houvesse um compromisso sagrado cuja quebra importasse numa grande desgraça para mim – nesse dia, entrei sem precisar procurar a porta, meus próprios passos aprenderam o caminho, inconscientemente. Talvez tivesse mesmo que ser assim, pois das duas vezes que saíra de casa para entrar “naquela porta”, tivera que passar três vezes por ela para, enfim, encontrá-la. Surpreendi-me lá dentro, parado, uma flor roxa pousada de leve em minha mão: a luz da claraboia; e dali refletia-se num canto da parede onde um céu cinzento escuro abrigava misteriosas e minúsculas nuvens intensamente brancas. Da terra parda subiam montes de trigo arroxeados pelo reflexo, e um segador de mãos vermelhas mostrava em sua expressão o desamparo dos que nasceram para viver a sós e que, não obstante sempre lutam por alguém. Sua roupa era quase como a terra parda, e da penumbra saltavam seus olhos, as espigas e as manchas das nuvens brancas. Procurei uma mesa e sentei-me sem deixar de olhar o canto. Ninguém aproximou-se de mim, não me apercebi de que as sombras cresceram e as luzes elétricas foram acesas. Na verdade, outra pessoa não estaria vendo o trigal, porque não seria possível com tão pouca luz, agora que minha mão não contribuía com o reflexo, mas eu sentia em mim perfeitamente as espigas de pinceladas bruscas e precisas, aquele insondável céu sem sol, e o olhar angustiado do segador.

Quando me retirei, foi com uma sensação de perigo afastado, algo como uma dor que não tememos recordar porque sabemos estar livres dela para sempre. E percebi que esse barzinho não era como todos os outros, quem sabe nem viravam as cadeiras em cima das mesas para varrer, já que tudo ali era como a imagem de um instante sempre à nossa espera, paciente e amigo. Não pude compreender, então, como não havia descoberto isso antes. Mas, ao mesmo tempo, ficava feliz por desconhecer também a causa que me fez voltar logo no dia seguinte ao do primeiro encontro, em que entrara casualmente, para comprar cigarros. Não terá sido simplesmente por tê-los encontrado, mas é que foram tantos os motivos... As pessoas, por exemplo, que não levantaram os olhos quando entrei. Havia pouca gente, àquela hora da tarde, mas do meio do corredor estive para voltar, com a certeza de haver entrado em porta errada; depois acercou-se de mim o pensamento de que eu perturbava o recolhimento de quem se escondia do mundo exterior para poder melhor resolver o seu próprio mundo de dúvidas e mistérios; por fim me arrependi de todos estes sentimentos e avancei resoluto, falando alto demais para pedir o cigarro. Senti os olhos de todos morderem-me o pescoço – agora compreendo que ninguém terá escutado minha voz, a não ser o menino, sorrindo com os olhos azuis de minha infância, que me notou o embaraço e disse “até amanhã”, quando lhe voltei as costas. Percebi cores estranhas pelas paredes, sem ter noção perfeita do que pudesse ser, mas retirei-me apressado, como se sai de um museu que vai fechar e de cujas salas poderão ressuscitar figurar tenebrosas.

Não sei, portanto, o que precisamente me fez retornar, mas voltei no dia seguinte e sentei-me à terceira mesa à direita, e fiquei surpreso ao verificar mais tarde que era aquela em que todas as vezes me sentava e de onde melhor poderia ver o canto onde morava o segador, que apenas se podia adivinhar, na semiescuridão da sala.

Procurava entrar em horas várias, mas a atmosfera conservava-se a mesma, dia e noite.

Quis reencontrar a flor da claraboia e entrei certa vez lentamente, com as mãos numa atitude de abandono estudado diante do corpo, esperando vê-las tornarem-se roxas a cada momento. Entretanto, não mais encontrei o reflexo. Da parede escura voltava-me à lembrança a pintura que minha imaginação ia involuntariamente renovando e transformando. Por mais que me esforçasse, não conseguia reconstituir a expressão do segador e pouco a pouco foi-se esvaindo, do primeiro plano passou ao segundo, desapareceu, por fim, para dar lugar a feixes dourados de trigo, arrancados da terra roxa e apresentando espigas avermelhadas, cheias de luz. O próprio céu era quase verde, sugerindo um espantoso sol que reverberava sobre a paisagem inteira – e o quadro passou a ser um rosto que se vê por entre lágrimas: trêmulo, indeciso, sofredor.

Por tudo isso, não mais levantei os olhos de meu copo. Não mudavam o sorriso do garçom menino e os gestos voluptuosos do caixa: mas, assim como se teme encontrar e desiludir-se de uma pessoa que não vemos há muito tempo e a quem perdoamos todos os defeitos para adornar a saudade dela com boas qualidades apenas, assim temia eu rever o quadro da parede e não mais reconhecê-lo.

Seria essa a joia que eu prendia em meu estojo? Tentei pela primeira vez fazer um confronto meu com os demais frequentadores: de minha mesa só via uma, a da parede oposta, e lá estava um homem vestido como eu, as mãos enterradas nos cabelos negros, nariz fino e branco, lábios descorados, olhos invisíveis na penumbra do bar – indecifráveis. Voltei a mim – “seria essa a joia?” – e retornando a ele: “que lhe pesará na mente?” Mas não pude conservar por mais tempo essas perguntas e retirei-me com a terna saudade que experimentamos ao nos afastar de um ser amado que está para partir em breve, sem querermos demonstrar essa certeza, e sem conhecermos precisamente sua razão de ser. Algo como uma inaceitável intuição que desprezamos e tememos ao mesmo tempo – inevitável.

Saí e andei pelas ruas como animal desconfiado de perigo, ou agiota temeroso de roubo em sua fortuna escondida sob as tábuas do assoalho. E como essa classe de homens, eu também tinha confiança absoluta em minha inteligência de haver descoberto o esconderijo perfeito. Mas havia, inseparável, o temor ao desconhecido, ao sugerido por um sentido especial, cheio de argúcia pronta a despertar de um profundo sono conseguido a força de entorpecente.

Depois de um dia, voltei angustiado para a rua do barzinho de uma porta só, garçom menino de olhos azuis e brancas mãos de unhas sujas e desprezadas.

Anoitecia. O céu mostrava pedaços de azul esperando estrelas entre os edifícios. Aproximei-me, os olhos não vendo mais nada desde a esquina que encontrava a rua do bar. Entrei na rua cheia de gente, o vai e vem para todos os lugares. Então, não sei bem o que vi primeiro, mas ouvi um grito dentro de mim, depois um rumor de onda quebrando ao longo de uma praia imensa, e senti a tristeza de ver uma criança morta: não mais existia o bar. Alargara-se a porta estreita com a queda da parede da frente. Desmontara-se, pelas chamas, o teto de claraboia envidraçada de verde e roxo. Das paredes laterais, agora negras, subiam fumaças indolentes como gestos de feras saciadas.

Teriam vindo os mesmos bombeiros que apagam todos os incêndios, com os capacetes de sempre, preto e dourado brilhando. O fogo teria queimado com a mesma cor, mais rápidas as chamas porque a madeira velha assim o exigiria.

Fiquei do outro lado da rua, incapaz de um pensamento, lamentando o vale de ruínas que os bombeiros tão bem souberam fazer, isolando as outras casas, e vendo a noite enchê-lo de sombras, lembrando a joia perdida: “teria sido aquela, afinal, a joia que o silêncio me reservou?”

Agora, se ouso falar sobre ela é porque está sepultada sob os escombros, para sempre, e na minha imaginação não será jamais “um pedaço de vidro lapidado”, mas o maior diamante perdido do mundo.

Caxias do Sul (RS) - 1948

Como Sempre

Mais uma vez, sentou-se na cadeira de balanço da varanda.

— Até quando?

Acendeu um cigarro. A estrada tinha a mesma curva de todos os dias. Diferente, só um cachorro de pelo muito claro, os olhos separados por uma lista negra, tentando decifrar o mistério de um siri morto, azulado na poeira do caminho. Como o siri já cheirasse mal, foi-se embora com o passo lerdo.

— Até quando?

Dentro de casa, a mulher fazendo café e o filho dormindo.

— Que será dele?

Forte, bonito, os olhos amarelados, sem vontade para estudar nem trabalhar.

Como todos os dias, dali a pouco a mulher ia chamar o marido:

— Vicente, o café está pronto. Não vais acordar Roberto?

A obrigação diária de gritar para o filho:

— Levanta, está na hora.

Na hora de quê? Roberto se levantava, ia ao banheiro, saía com a toalha nos ombros, olhando o céu pela janela:

— Será que vai dar praia hoje?

Ninguém respondia. Dona Lurdes pegava o bule de louça, enchia a xícara do filho.

— Não quero leite.

Gomo todos os dias, a mãe repetia como se falasse a um ausente:

— Este menino vai ficar fraco. Onde se viu café preto e pão sem margarina!

O rapaz servia-se de açúcar, mexia lentamente o café, vendo do lado de fora o barranco vermelho ao lado da casa. O velho e a velha, dois idiotas que o botaram no mundo para ir à praia e namorar as meninas nas pedras. Alta madrugada, as mãos cansadas de bolinar seios e coxas, entrava no quarto, tirava a roupa, admirava-se em frente ao espelho do guarda-roupa. Uma lâmpada vermelha derramava sangue em cima daquele corpo quente, rijo, pronto para enfrentar a vida. Tinha vontade de gritar:

— Morram logo, seus velhos filhos da puta! Quero vender as terras e sair pelo mundo.

Mas não saía nem de Porto Belo. Cada ônibus que passava – Itajaí, Tijucas, Florianópolis – comprimia seu desejo de aventura. Sabia ler, escrever, somar, multiplicar. Raiz quadrada, nunca conseguira aprender. Que serventia, saber a raiz quadrada? O pai, com mais de sessenta anos, nunca a aplicou. Não era costurando para fora que a mãe iria saber a raiz de 15.625.

— Qual será a raiz quadrada de 15.625?

Dona Lurdes olhou para o filho. Imaginou-o morto, os olhos fechados, o corpo duro e frio. Ela poderia vender as terras, convencer o marido a pegar um navio e irem correr mundo.

O velho Vicente queria ver-se livre dos dois. Tinha todo o itinerário na cabeça: Casablanca, Ibiza, Barcelona, Gênova, Veneza. Casara-se com mais de quarenta anos para ter a emoção de um filho. De noite, por um pequeno furo na parede de madeira, olhava Roberto despir-se. Completo em sua nudez de dezenove anos. O tornozelo, a curva da perna, as coxas grossas, aquele músculo bonito na cintura – como seria o nome? – as costas largas, mancha alguma na pele dourada de sol, o sol daquele olhar amarrado no espelho.

— Que fazer desse desejo?

Dona Lurdes fingia dormir. Um olho pregado no velho olhando pelo buraco na parede, outro imaginando o filho nu. Por que ser proibido amar o próprio fruto? Chorava ao vê-lo nadar, chorava quando ele vestia a calça desbotada, a camisa azul-claro, resplandecente como o luar. Tê-lo no convívio mais íntimo seria fechar um ciclo. Seria ver Vicente como nunca o vira, jovem, belo, atleta saltando barreiras. Não esta coisa morna jogada a seu lado, olhando a beleza do filho. Aceitara a proposta de casamento na madureza porque Vicente era simpático, gentil, bem situado na vida. Um acordo tácito selou e garantiu a harmonia da convivência: o marido jamais quis saber do passado banal da mulher, para não revelar os equívocos e desilusões de seu próprio passado vulgar.

Então, chegou o dia de Vicente ir a Florianópolis receber a aposentadoria. Vestiu o terno velho, botou a gravata engraxada, beijou Lurdes por obrigação, não chamou Roberto.

— Deixe ele dormir mais um pouco, para compensar o café preto com pão puro.

Quando esperava o ônibus em frente à igreja, apareceu uma bicicleta com um cesto de peixe e seu amigo Armando.

— Vais à Capital? Podes me fazer um favor?

Pois sim, pois não, o favor era levar dois peixes para a filha de Armando.

— Não dá muito trabalho, ela mora naquela rua que sobe da Rodoviária, tu sabes, aquela do City Hotel.

Vicente segurou o pacote com dois robalos, enrolados numa primeira página de jornal: – “Morreu o Papa João Paulo I”.

Mortos como o Papa, os dois peixes iriam acompanhá-lo, acomodados no depósito de embrulhos em cima da cabeça de Vicente. Parada em Santa Luzia, outra em Tijucas, gente sai, entra gente, senta no banco da frente uma senhora com um pente espanhol fincado nos cabelos.

— Será de Barcelona? Se Lurdes fosse bonita como ela!

Conhecera a mulher quarentona, quando foi nomeado para a Coletoria Estadual, em Porto Belo. Da mocidade de Lurdes, só as fotografias num velho álbum desbotado.

— Como tu eras linda!

— Não sou mais?

Vicente acariciava os cabelos da esposa, beijava-lhe o rosto, a ponta do nariz.

— Claro que és.

Fingia a maior convicção para não ouvir dela:

— Tu também estás velho e feio.

A lembrança de Lurdes, buquê de casamento nas mãos, troca-se de repente pela imagem do filho, o mesmo buquê nas mãos, o vestido branco cobrindo a rigidez de seus músculos.

— Não posso.

A senhora do pente espanhol olha Vicente, o ônibus dá um grande solavanco, os peixes de Armando desmoronam no colo da espanhola. Gritos, freada brusca, o dia para na BR-101 porque dois peixes caíram no colo de uma mulher com pente espanhol nos cabelos.

— De quem são?

Ninguém se acusa.

Vicente agrava seu compromisso: agora terá de comprar novos peixes porque o motorista jogou-os pela janela, engatou a primeira e retomou a viagem.

Em Florianópolis, substituir os dois peixes. Antes, era preciso receber a aposentadoria. Recebeu-a e foi ao mercado.

— O tamanho está de acordo, mas a cor...

Acabou escolhendo dois, talvez não exatamente iguais mas bastante parecidos. Embrulhou-os numa folha de jornal: não se tratava mais de João Paulo I. O importante agora era a visita de Giscard d’Estaing.

— O café está pronto. Não vais acordar teu filho?

Como todos os dias.

A pequena casa de madeira permaneceria como um cenário montado, sem personagem à altura do drama. Lurdes morreria virgem do pecado maior, Vicente se cobriria de terra antes de satisfazer o inútil desejo. Nenhum dos dois seria capaz de um ato de grandeza, mesmo negativo. Sobraria da mediocridade o fruto, correndo sua beleza pela praia branca.

Porto Belo (SC) - 1977

O Estivador

Mulato e semianalfabeto, Aldo supria as poucas letras com a abundância dos músculos.

Criança, perdia horas na amurada do cais de Santos, acompanhando a entrada e saída dos navios, imaginando os portos de escala. Tinha um álbum de postais e recortes coloridos de portos de todo o mundo. Santos, nem se fala: páginas e páginas. Com os pais e cinco irmãos, morava num barraco que um temporal derrubou, levando o álbum com seus sonhos de viagem. Adulto, acabou sendo estivador, como o pai.

Ninguém como Aldo para levantar e carregar fardos. Era de se ver a facilidade, a elegância e sincronia de movimentos com que se apossava dos pesados volumes – como uma criança apanha uma fruta. O passo corrido e balanceado completava as dezenas de viagens diárias que fazia, nunca olhando o monte de onde tirava as sacas, e sim a altura que ia surgindo como resultado de seu trabalho.

Pouco falava. Recebia as ordens, inteirava-se do serviço, calculava o tempo necessário ao transporte da carga e cumpria a tarefa sorrindo, às vezes assobiando, disputando em silêncio a eficiência própria com a dos outros, cuidando em suplantá-los em método e agilidade. Permitia-se, durante o trajeto do carregamento, comparar seu físico com os demais e, se algum novato lhe parecia mais forte, partia para o teste de liderança: a queda de braço. Ninguém, por mais corpo e tatuagens tivesse, o vencia nesse esporte. Era o único momento em que o estivador se misturava aos companheiros, ganhando um dinheirinho extra com as apostas e alegrando o ambiente pesado de suor, cansaço e pouca liberdade.

Ao fim do expediente, tentava dar ao passo um andamento normal sem o balanço dos ombros, procurando abandonar a contração muscular dos braços e pernas exaustos. A ducha fria, seguida de massagens por todo o corpo, depois alguns minutos estendido sobre a cama larga, deixavam Aldo em condições ideais para recomeçar tudo no dia seguinte. Menos aos sábados, quando o banho era mais demorado, a massagem mais cuidadosa, o costumeiro repouso substituído pelo empenho em alisar o cabelo, botar perfume, vestir o roupão de seda cor de sangue que ganhara na disputa de braço com um marinheiro sueco.

E esperava.

Aldo chamava de “meu apartamentinho” o quarto com banheiro aos fundos, em cima de um açougue próximo às Docas, para onde subia por uma escada lateral de uns quinze degraus, janela única dando para a rua quieta nos fins de semana.

Na decoração, a velha mania de guardar recortes passara por uma transformação: agora eram fotografias de Greta Garbo, Norma Shearer, Joan Grawford, coladas às paredes com grude de farinha de trigo e água. Uma pilha de discos a 78 rotações ao lado do toca-discos; geladeira portátil cheia de frutas, refrigerantes, queijo e mortadela; fogãozinho a gás de duas bocas; pequeno armário com poucas panelas e louças, enfim, tudo modesto porém indispensável a quem vive só. E a cama de espaldar de ferro trabalhado, encontrada ao acaso num ferro-velho. Arrumá-la, seu maior desvelo. Depois de alisar todas as pregas da colcha de cetim floreado, segurava com amor a boneca de feltro e a colocava bem no centro da cama, sentada, espalhando com os dedos o rodado da saia.

— Fica quietinha, assim, ajeita esses babados, esconde a combinação... fica mais alegre, sua tola, hoje é dia de visita.

A voz doce mal encontrava saída entre a musculatura do estivador. As mãos calejadas e grossas sentiam-se bem no contato suave com a seda, o feltro, compensando a aspereza da lona e da aniagem dos carregamentos nas Docas.

Esperando a companhia das noites de sábado – já iriam comemorar seis meses de convivência – Aldo impacientava-se com a demora. Retocava o cabelo no espelho do banheiro, sorria para ver se os dentes estavam bem claros, piscava brejeiro, desfazia mais uma ruga da colcha ao passar pela boneca.

— Demorando, não é, meu bem?

Nem sombra de gente na rua pouco iluminada. Ocupar-se com os sanduíches, encher o baldinho de gelo, os copos azuis um ao lado do outro, o litro de rum. Coca-cola botava na hora, para não esquentar. Faltava escolher um disco.

— Este aqui, o último de Cármen Miranda.

A metamorfose completava-se com a chegada do soldado. Um sanduíche, o soldado sem túnica; Dalva de Oliveira, o primeiro cuba-libre; tira as calças, Isaurinha Garcia; mais sanduíches, outro cuba, os dois de calção para o mergulho no colchão macio. A musculatura de Aldo, inerte aos caprichos do soldado. O estivador era um fardo manipulado, abraçado, criança rolando sobre a relva. Acostumado a levantar pesos, o corpo do soldado sobre o seu era uma nuvem.

Mas o soldado se atrasara, comemorando pelos bares do Gonzaga a baixa do primeiro contingente. Chegou embriagado.

— Tira a roupa, bem.

— Tiro porra nenhuma.

Abriu o cinto, a túnica, meteu o gorro sob a platina do ombro, sentou-se na beirada da cama.

— Cuidado com a boneca.

— Me dá um cuba. Mais gelo. Capricha, pô.

A princípio, Aldo divertia-se com o rapaz, o corpo balançando como um barco, as pernas bem afastadas para manter o equilíbrio, o copo quase entornando.

— Não me suja a colcha.

Pelo terceiro cuba-libre, os olhos do soldado quase se fechando de sono, Aldo aproximou-se e começou a soltar os cordões da botina, acocorado.

— Sai pra lá, veado.

Com o impulso forte e inesperado da botina do soldado em seu peito, o estivador caiu para trás, batendo com a cabeça na parede. Com as mãos no assoalho, puxou o corpo até ficar sentado, as costas cobrindo recortes com artistas de cinema.

Fora de si, o rapaz levantou-se da cama e, em poucos segundos, a desorganização do quarto era total. Discos e copos quebrados, cadeiras viradas, blocos de gelo rolando pelo chão. Sob a pressão dos dedos e das unhas, as páginas das revistas coloridas iam sendo arrancadas e jogadas por toda parte. Num giro brusco o soldado defrontou-se com a cama e inclinou-se sobre ela.

— A boneca não!

Ao grito juntou-se o gesto violento de Aldo, arrancando a boneca com a mão direita enquanto a outra caiu pesada na cara do soldado. Antes de poder defender-se, recebeu outro soco, mais um, procurou a porta meio às cegas, um último empurrão o jogou contra o balaústre da escada. Conseguindo aprumar-se o soldado desceu os degraus aos saltos.

Aldo sentou-se aturdido na cama, as mãos pesadas e nodosas cobrindo-lhe o rosto. Depois abaixou-se para juntar os cacos de vidro, as lascas dos discos, os recortes rasgados.

Quanto tempo para refazer um relacionamento como aquele? Procurar disfarçadamente pelos bares, aproximar-se, nas primeiras palavras o máximo cuidado para conquistar a simpatia, a confiança, convencer que aquele monte de músculos servia apenas para carregar sacos, a menos que houvesse necessidade absoluta de defender-se, de defender – como acabara de fazer – sua muda confidente.

Aldo abraçou a boneca e começou a acariciar sua cabeleira.

— Não chora, sua boba... Olha aquele navio. Como é bonito, todo iluminado. Vai sair pela barra de Santos e vencer o mar sozinho...

Porto Belo (SC) - 1984

A Primeira Bala

Para Christian Bouthemy

Florianópolis – São Paulo, primeira etapa. No hotel onde ficaria antes de seguir viagem, a figura de um amigo apareceu-me nítida na lembrança: nesse mesmo lugar ele esteve hospedado uma vez. O remorso passou a acompanhar-me.

O porteiro estava lendo um jornal e mal me respondeu, passando-me a ficha de hóspede para eu preencher. Depois, o rapaz da portaria perguntou pela bagagem.

— Só esta sacola!

Acompanhou-me ao quarto, abriu as cortinas claras, e o barulho dos carros no asfalto da rua entrou como contraponto às minhas recordações.

— Feche isto, por favor.

— Desculpe, senhor, são normas da casa.

Ligou e desligou a televisão e o ar condicionado, acendeu e apagou todas as luzes para mostrar-me os interruptores.

Distraído, puxei uma nota do bolso e a estendi ao rapaz. Por sua alegria, percebi que havia exagerado, mas era tarde para recuar.

— Qualquer coisa é só me chamar, senhor. Meu nome é Alfredo.

Tinha as faces encovadas e os olhos negros, brilhantes, um cão à espera de nova ordem.

— Está bem, Alfredo. Para começar, traga-me uma garrafa de whisky e bastante gelo. Dentro de meia hora. Enquanto isto, vou tomar banho e pôr-me à vontade.

Os carros buzinavam com insistência, no fim da tarde. Vidraças e cortinas cerradas não conseguiam apagar aquele ruído irritante. Entrei no banheiro, fechei a porta, abri o chuveiro. A última discussão com Maíra insistia em voltar a meu pensamento. Comecei a assobiar enquanto me banhava. “Entre eu e ela, tudo consumado.”

Ao puxar o pijama da sacola, o revólver caiu no chão. Escondi-o sob o travesseiro da cama próxima ao telefone e fui atender Alfredo que chegava com a bebida e o balde de gelo.

— Mais alguma coisa, senhor?

— Não. Se precisar, eu chamo.

Pensei em dizer-lhe que ninguém sabia da minha presença naquele quarto de hotel, que ninguém poderia procurar-me, que eu iria passar a primeira noite só, depois de sete anos com Maíra. Em vez disso, dei-lhe as costas, porque a lembrança de Maíra encheu-me de súbita tristeza e aquele rapaz não tinha o direito de partilhá-la.

Por certo haveria melhor solução do que ficar me martirizando, bebendo, recordando cada frase de Maíra, por exemplo, uma coisa banal a que emprestava o mais profundo sentido: “A vida é uma só. Não suporto mais esta convivência.”

Eu procurava, em vão, a minha culpa. “Tu és carinhoso demais, solícito demais, não me deixas tempo para qualquer iniciativa, sinto-me inútil perto de ti.” Pois não é isto que as mulheres querem? Sempre procurei adivinhar seus pensamentos para atendê-la e ela vingava-se de minha dedicação. Bastava tocar em mim, na cama, para eu servi-la. “Não, hoje não” – passou a dizer. As negativas foram-se repetindo até que contei tudo a Alexandre. Uma tarde em que ficamos bebendo além da conta no bar da esquina, disse-me o que sabia: Maíra tinha outro, encontrava-o de tarde, enquanto eu trabalhava.

— Viaja – disse Alexandre. — Quem sabe um tempo de ausência pode fazê-la sentir tua falta?

— E deixar o campo livre para o outro?

Para reconquistar Maíra, decidi nada dizer-lhe. Passei a mandar flores, como no tempo de noivado. “Isto não tem mais sentido; prefiro as flores no jardim, que duram mais”. E a flor acesa que eu lhe oferecia na cama murchava sem vaso, a seiva desperdiçada no chão frio do banheiro, como nos tempos da adolescência.

Quando Alexandre mudou-se com a família para Florianópolis, fiquei sem confidente. Maíra continuou me repelindo, não escondendo uma expressão de nojo se eu tentava acariciar-lhe a mão ou beijá-la no rosto, ao sair para o trabalho.

— Ou você vai embora, ou eu volto para a casa da mamãe!

A pressão contínua das discussões, durante mais de um ano, foi-me cansando ao ponto de eu acabar concordando com a separação, preferindo que voltasse para os pais.

— Eu levo as crianças – decidiu Maíra.

Ela agia com tanta frieza que eu não mais a reconhecia. Toda a doçura dos primeiros tempos era agora uma terra seca. Ou cansada da mesma colheita, necessitando plantação diferente? E eu ali sozinho, num quarto de hotel, sem coragem de voltar para a casa vazia.

Depois da quinta dose, procurei o revólver sob o travesseiro. Suspeitei que Alfredo o tivesse surrupiado enquanto estive no banheiro e ele preparava o primeiro drinque. A arma estava lá, carregada, a morte contida nos seis cartuchos, pronta a servir-me contra Maíra, o outro, ou a mim mesmo.

O sono e a bebida acabaram por vencer-me. Acordei estendido no sofá, a garrafa pela metade, um cheiro insuportável dos cigarros amontoados no cinzeiro.

Como se me esperasse na porta do apartamento, Alfredo chegou mal eu acabara de desligar o telefone, chamando alguém para limpar tudo.

— Dormiu bem, senhor?

Ele viu as camas arrumadas como na véspera e olhou-me intrigado.

— Bebi demais.

— O primeiro dia de férias é sempre assim. Num instantinho arrumo tudo.

Entrei para o banheiro. Ao sair, Alfredo não estava mais. Corri para o travesseiro. O revólver na mesma posição, todas as balas intactas: uma para Maíra, duas para as crianças, outra para o homem, a quinta para mim. E a sexta?

Tomei café no salão do hotel, depois saí a passear pela manhã de sol como se nunca tivesse visto a cidade. Senhoras conduziam seus cachorros, os patos deslizavam sobre as águas do lago da praça, duas crianças passaram correndo por mim, uma tentando pegar a outra. No meio da calma da manhã, meu coração estremeceu. Sentei-me num banco escondido entre as touceiras de bambu: o verde dos troncos confundiu-se ante meus olhos. Tangidas pela brisa suave, as opções da morte que eu podia provocar fugiam pelas frestas do bambuzal.

Pouco antes da hora do almoço, encontrei Alexandre, que viera a São Paulo tratar de uma viagem à França. Contei-lhe por alto o que se passava, exagerando os sinais de depressão para forçá-lo a ir ao hotel, no fim da tarde.

— Não prometo, mas se não puder resolver tudo hoje, pode contar comigo.

A viagem comportava uma escala no Rio e outra no Recife, antes de sair do Brasil. Pensar em meu amigo aliviava-me a monotonia do voo, embora me fizesse sentir mais responsável pela tragédia que foi notícia em todos os jornais.

Depois do Recife, o avião avançou em direção à noite para ultrapassá-la e chegar a Paris ao amanhecer. O voo trouxe-me à lembrança uma viagem que fiz a Assunção, no Paraguai.

Como um turista, resolvi visitar o Jardim Zoológico. Havia uma onça indiferente a tudo o que se fizesse em torno dela. Acomodada no chão de cimento enfiara o focinho entre as grades como se o ar fosse mais puro fora delas. Seus olhos estavam perdidos numa cisma infinita, decerto sonhando com a floresta de onde foi roubada. A sexta bala poderia ser para ela, pensei. O mal que eu lhe fizesse viria a ser um bem. Ou seria um bem maior deixá-la morrer à míngua de liberdade, satisfazendo a curiosidade dos outros?

Num cercado de grades, duas ariranhas rolavam pelo pequeno lago com tal alegria como se nunca tivessem visto águas maiores. Lembrei-me dos canários que condicionam sua liberdade ao mísero espaço de uma gaiola: se forem soltos morrem pela incerteza do voo no excesso de espaço. Como peixinhos de aquário se forem postos num rio. Mas como pode alguém saber se esses peixinhos dourados morrem de liberdade?

O riso das crianças divertindo-se com as surpreendentes evoluções das ariranhas fez-me voltar à jaula da onça. Continuava na mesma posição, à espera da sexta bala, agora de olhos fechados, ausente. Sem a visão das pessoas talvez pudesse melhor imaginar-se na selva, o andar cauteloso entre as árvores, nenhuma folha seca denunciando-lhe os passos. As manchas escuras em seu pelo amarelado passavam tranquilas entre a folhagem verde, como um barco deslizando pelas águas dos igarapés. Não como as agitadas ariranhas, desperdiçando forças naquele exercício de falsa liberdade.

Outra vez no hotel, a solicitude de Alfredo.

— Vou trazer gelo, senhor.

— E outra garrafa de whisky.

— Mas ainda está pela metade, senhor.

Olhei irritado para ele.

— Desculpe, senhor, eu pensei...

O rapaz estava desconcertado. E eu começava a aborrecer-me com aquele “senhor”, a propósito de tudo, como se fosse uma vírgula, um ponto e vírgula.

— Outra garrafa, e ponto final.

— Está bem, senhor.

— E pare de me chamar de senhor. Meu nome é Felipe. Seu Felipe, me chame de seu Felipe.

— Muito bem, seu Felipe.

— Espero um amigo, Alexandre. Quando ele chegar, mande-o subir, por favor.

Voltei a procurar o revólver. O dia inteiro fora do hotel e ele ainda estava lá, os cartuchos intactos. Talvez Alexandre pudesse me ajudar a definir as opções da morte, a ordená-las ou, quem sabe, afastá-las para sempre de minha ideia.

O toque da campainha encheu-me de esperanças. Alexandre poderia sugerir alguma coisa que meu pensamento negava-se a imaginar. Mas era Alfredo com o pedido.

— Achou meu revólver bonito? – perguntei.

— Que revólver, seu Felipe?

— Aquele, embaixo do travesseiro.

— Não foi preciso arrumar a cama, seu Felipe, por isso não vi revólver nenhum.

— Pois está lá, dormindo onde eu devia ter dormido.

Por que revelar a existência da arma? “Agora sei que ele sabe.” Mas se Alfredo ou alguém o roubasse, como poderia provar que o tinha se nada declarei ao chegar? Feliz a onça que tem garras e dentes para sua defesa, para matar e alimentar-se. Eu ali, com a sobrevivência garantida por meu trabalho e sem ninguém a temer, por que socorrer-me de um instrumento de morte para resolver um problema de vida?

Ao fim da primeira garrafa, nada de Alexandre.

Não sei quantas vezes manuseei a arma, retirando e repondo as balas. De repente, a água que suava pelo copo abriu um veio estreito sobre a mesa e um fio brilhante de luz escorreu até encostar-se no bojo do tambor. Tirei o lenço do bolso, enxuguei o revólver, alisei a maça de mira com os dedos trêmulos.

Como havia mudado de poltrona, minha figura no espelho acompanhava todos os movimentos. Mudei de assento. Não queria ver meus olhos, meus gestos: ter a imagem refletida era dividir a emoção, ou reprimi-la. Enquanto não chegasse Alexandre, eu não queria repartir nada com ninguém, nem com meu próprio corpo. Queria ver-me por dentro, sem nada que lembrasse minha presença. Onde estariam meus erros? Ser abandonado por amor, por excesso de amor, doía-me tanto, parecia-me tão absurdo que refazer meu afeto, torná-lo frio e dissimulado, equivaleria à perda de mim mesmo.

Abri a segunda garrafa.

Confundir a razão, buscar forças na falta de forças para, afinal, decidir. A onça ou as ariranhas? Que espécie de liberdade ou sujeição estaria em causa?

Em Paris, tomei outro avião para Saint-Nazaire.

Vendo a cidade clara, o porto, as comportas, a grande ponte sobre o Loire, pensei mais uma vez em meu amigo. Conhecer outras terras, outras pessoas, comparar problemas e soluções... Talvez tivesse impedido o alastramento do desespero a que se entregou, a ponto de virar o revólver contra seu peito.

Ao chegar à “Maison des Écrivains Étrangers”, comecei a escrever “A Primeira Bala”.

Saint-Nazaire, França, 1988

Revelação

O Fusca azul de Abel é um bicho-preguiça sobre o arco da ponte cheia de carros. Tenso e atento ao volante, ele tenta alinhar as rodas pela marcação da pista; a linha dança de um lado a outro e o carro mal avança. Não há como escapar daquele préstito de fim de tarde para soltar-se na velocidade da estrada. Fora mais fácil desvencilhar-se da multidão: passado o espanto, ninguém conseguiu encontrá-lo, tal a pressa como fugiu no Fusca azul com as janelas trancadas.

Imaginou que seria seguido por uma caravana de carros, buzinando em seu encalço, mas a caravana que o acompanha são imagens alternadas, confusas, desde a conversa com Bento até o aparecimento da mulher na porta da casa, o olhar altivo, a camisola branca denunciando as formas do corpo, os seios saltando pelo decote largo. Pontuando o silêncio dessas visões, a intensidade do grito de Ciro para que todo o povo escutasse.

Na saída da ponte, quando acelerou a marcha, pareceu-lhe que a voz grossa e insegura de Bento estava a seu lado:

— Vais entrar pela frente ou pelos fundos?

Se entrasse pela frente, teria que atravessar o vestíbulo, a sala de visitas, deixar de um lado a biblioteca e do outro a saleta da televisão, seguir pelo corredor; a porta de trás dava direto na cozinha, depois a copa, a sala de jantar, o corredor. Se o objetivo era o quarto de casal, que diferença fazia? Abel encontrou nas duas alternativas um pretexto para dilatar sua indecisão. Melhor seria que a casa não tivesse portas.

— Pelos fundos é melhor – disse Bento. – Ninguém vai ver tua entrada.

A frase ficou no fundo do copo que Abel esvaziou de uma só vez. Não saberia dizer quanto havia bebido naquela tarde quente de feriado, enquanto jogava boliche e conversava com os amigos, contando vantagens sobre mulheres. Teria ficado com eles até a noite, não fosse o telefonema de Bento marcando encontro no bar.

Quando Abel saiu de Camboriú num Corcel verde negociado às pressas pelo Fusca, a estrada não estava livre como uma cancha de boliche mas ele ultrapassava carro por carro, na ânsia de derrubar todas as balizas e apagar a voz de Bento que rolava insinuante:

— Hoje é um dia ideal, está todo mundo na praia.

O mar seria uma coberta para esconder Abel, já que a noite custa tanto a chegar. As sombras que ele julgara iminentes ao livrar-se do trânsito cerrado da ponte conspiram contra si: a claridade bastante vaga do sol persiste arroxeada na linha sinuosa das montanhas e essa mesma linha traz-lhe à mente um mar agitado, coroado de espumas no quebrar das ondas. Imobilizadas sobre o capô, estão prontas a arrebentar sobre ele e este carro que não corresponde a seu desejo de mais e mais velocidade.

O que Abel não entende é como não percebeu os olhares de todos, ao entrar e sentar-se à mesa do bar onde Bento o esperava.

— Uma geladinha – pediu ao garçom.

A cara redonda de Bento junto a seu ouvido, a voz pastosa mal articulando palavras em tom de segredo:

— A casa, fechada como um túmulo. Mas o teu tesouro está lá dentro...

A gargalhada de Bento, em contraste com a confidência, só agora adquire sentido no pensamento de Abel. Então, todo o bar já sabia? Numa manobra arriscada em plena curva, garante outra ultrapassagem perigosa, enquanto a gargalhada do amigo mistura-se ao grito estridente de Ciro.

Ao chegar a Barra Velha, a noite havia anulado todos os contornos da paisagem. Num posto de gasolina, Abel troca o Corcel e um cheque gordo por um Passat branco e parte com mais audácia pelo asfalto. Pensa em sua mulher Adélia, namoro e noivado recatados, a festa de casamento, três anos de convivência. Tão bom passear com ela, muito bem vestida, uma beleza de causar inveja a todos os amigos. Bento sempre a elogiava, fazendo brincadeiras de mau gosto que ele fingia não escutar. Quando Bento falou em tesouro, Abel teve a impressão de que uma arca se abria em sua frente e Adélia surgia como uma estátua de ouro, coberta de joias.

— Eu vi quando Ciro entrou em tua casa – disse Bento.

Abel pediu outra cerveja.

— A esta hora ele já saiu – falou Abel, servindo os copos.

Bento riu mais alto ainda. Abel compreende agora que o amigo duvidava da coragem de Ciro em sair da casa com aquele povaréu em torno. Pois a notícia não foi apenas espalhada pelo bar: a mulher e os filhos de Bento alertaram toda a vizinhança, além de telefonarem aos conhecidos de toda a cidade.

— É preciso lavar tua honra! – insistiu Bento.

Essas palavras pareceram vir de longe, ressoando aos ouvidos de Abel como notas soltas de órgão pelas naves de um templo, até se incorporarem noutra frase: “Honrarás pai e mãe”. A lembrança dos pais foi mais forte que qualquer instigação de Bento.

Recordando este momento da tarde tumultuada, Abel alivia por instantes o pé do acelerador. Lembra-se que repetiu em voz baixa:

— Honrarás pai e mãe.

E levantou-se da mesa do bar.

— Vamos!

Bento segurou-o forte pelo braço.

— Coragem!

Apoiados um no outro, seguiram inseguros pela rua, encontrando cada vez mais gente que se incorporava à procissão do desagravo, sem qualquer deserção possível para Abel, acompanhado pela freguesia do bar que não queria perder o espetáculo.

A partir deste ponto, por mais que se concentre, Abel não consegue refazer a sequência dos fatos. O vozerio em redor dele, o incômodo suor frio, o lenço a cada instante tirado do bolso para secar as mãos e o rosto... A porta da casa se abrindo!

A visão paralisou o povo como uma fotografia. Adélia surgiu na aragem da tarde, o corpo modelado sob a camisola ampla, os seios acompanhando a modulação da brisa. Um deserto seria menos silencioso do que a rua, naquele momento. Ciro apareceu em seguida, os braços envolvendo Adélia, escudo e troféu de uma batalha. Com um brilho intenso nos olhos, gritou:

— Virgem!

Abel fechou os olhos. Não sentiu mais o apoio de Bento. Caberia apenas à Adélia a vingança da insatisfação de três anos, ou ela e Ciro, acuados pela multidão, deliberaram a denúncia daquilo que ele tão ciosamente ocultava?

— Ela ainda era virgem! – tornou a gritar Ciro.

Abel atravessou a fronteira de Santa Catarina sobre a moto mais potente que encontrou em Joinville. Mas a velocidade e o barulho da máquina não conseguem diluir nem a metade do eco ainda vivo do grito exato de Ciro.

Florianópolis (SC) - 1988

Sem Resposta

Para Claire Cayron

Sentada na poltrona da sala fechada, Laura olhou os pés inchados dentro dos chinelos, as varizes subindo azuis pelas pernas claras. Nunca reparou se elas escalavam as coxas, tão cobiçadas quando era jovem e amarrava a saia na cintura para molhar-se até o joelho. Não permitia que as ondas chegassem à saia: se isso acontecesse, a água iria modelar as coxas e atiçar o desejo de Almiro. E dos outros. Mas ela só se preocupava com o olhar de Almiro, lambendo seus tornozelos, o pedaço da coxa que aparecia quando ela cruzava as pernas, sentada no banco da praia ao lado dele. Laura puxava o vestido porque aquele olhar parecia uma agulha tentando furar-lhe a carne.

— A primeira noite vai ser difícil – disse-lhe Rosália. Queres que eu fique contigo?

Laura falou que tinha Romão por companhia. A prima deu graças a Deus porque preferia ficar em casa com o marido e o filho, em vez de passar a noite em claro. Imaginava que Laura fosse vagar pela casa chorando, rezando em voz alta, clamando por Almiro. Mas Laura só pensava em estender-se na cama e dormir. Antes, porém, precisava encontrar Romão.

Depois que Rosália saiu, evitou olhar a grande mesa no meio da sala, entrou no quarto e viu a cama coberta com a velha colcha de crochê, desbotada pelas lavagens de mais de vinte anos de uso. Poída dos lados, as franjas com algumas falhas e, bem no centro, o trançado das linhas desfazendo as pétalas de uma flor que ela jamais soube identificar, uma mistura de dália e crisântemo que havia no pequeno jardim da casa. Apertou na mão o lenço que carregara o dia inteiro para secar as lágrimas que não davam descanso a seus olhos. Abriu-o com as duas mãos, em frente ao rosto: estava amarrotado e sujo; jogou-o a um canto e pareceu- lhe ouvir um ruído na cozinha. Igual ao que fazia o marido ao chegar um pouco tarde, se ficava jogando cartas em casa de amigos.

Aos olhos de Laura, a flor da colcha reanimou-se. Passou as mãos pelo cabelo, ajeitou um pouco a saia, tentou um sorriso como se tivesse outra vez dezoito anos e correu para a cozinha, passando pela sala sem mesmo lembrar-se da mesa. Não era Almiro. Nem Romão. A pia estava cheia de xícaras por lavar, a garrafa térmica virada e seca: únicos sinais de que a casa estivera cheia desde as primeiras horas da manhã, quando a notícia espalhou-se pela cidade.

Ao entreabrir a porta para que Romão entrasse ao chegar, Laura viu que a claridade do dia estava amortecendo. Era a hora em que Almiro trancava-se no banheiro e cantarolava velhas canções enquanto se banhava. Romão aproveitava essa pausa nos trabalhos de Almiro para estirar-se no banco da varanda. Ela abriu um pouco mais a porta, o tanto para ver o banco. Romão não estava lá, nem se ouvia o canto desafinado do marido. Ao apertar as mãos, sentiu falta do lenço. Enxugou os olhos na toalha da louça e, mecanicamente, lavou xícara por xícara, deixando-as escorrer emborcadas sobre o canto da pia. Acendeu o fogão, botou água a ferver e só então lavou a garrafa térmica. Depois do banho, Almiro gostava de tomar um cafezinho novo.

A água começou a chiar na chaleira e Laura apagou o fogo: não havia mais razão para fazer café. Novo ruído, vindo do escritório do marido, fê-la reacender o fogo, botar duas colheres de pó no coador, preparar tudo para inundar a casa inteira com o cheiro de café recém-passado. Era uma isca para que Almiro interrompesse o trabalho antes do almoço e reclamasse:

— Quantas vezes já te disse que o café deve ser coado depois do almoço, enquanto a gente conversa?

Ela fazia aquilo de propósito, só para que o marido viesse falar-lhe, espiar as panelas, abraçá-la pelas costas, passando o rosto mal barbeado por seu pescoço.

— Não faz assim que sinto cócegas.

Bem que ela gostava. Depois de vinte e cinco anos de casados, era o carinho que lhe dava maior prazer. Claro que havia a cama e a entrega maior, no entanto, a ausência de filhos acabou por tornar a repetição em hábito, com tão poucas novidades como os pratos que preparou ao longo de todo esse tempo. Ao passo que aquela carícia furtiva lhe recordava os beijos tímidos do noivado, quando Almiro chegava no maior silêncio e ela fingia não perceber. Estremecia a seu abraço e recebia a flor que ele nunca esquecia de trazer:

— Põe no cabelo para ficares mais bonita.

Laura apagou outra vez o fogo e foi ao escritório. A escrivaninha ainda estava com os papéis espalhados, o lápis caído ao lado, o cinzeiro cheio, tudo igual ao momento em que ela encontrou o marido com os braços derreados ao longo do corpo, a cabeça caída sobre as últimas folhas escritas. A correria aflita de Romão pela casa, como se tivesse visto um fantasma, foi o sinal de que algo de anormal estava ocorrendo. Ele sempre ficava na poltrona à frente de Almiro, atento a seus movimentos e palavras, acompanhando com o olhar a consulta aos livros, folheados à procura de essências vegetais cuja combinação possibilitasse a descoberta de novos medicamentos, preparados em provetas e tubos de ensaio que enchiam o balcão improvisado junto a uma pia. Por alguns instantes, Laura debruçou-se sobre as páginas cobertas de símbolos e números que por certo correspondiam ao conteúdo de uma infinidade de vidrinhos com líquidos de todas as cores, cobrindo duas prateleiras ao longo da parede dos fundos. Em outra estante, os livros. Enquanto ela ficava na sala com a televisão ligada, o som bem baixinho para não perturbar o marido, ele resmungava, dirigia palavras estranhas a Romão e, algumas vezes, cansado das pesquisas, queria deixar tudo para o outro dia.

— Vamos dormir, minha velha.

Mas acordava-se de madrugada, saía furtivamente da cama e esquecia-se das horas no escritório, Romão mal se contendo de sono, até que os galos anunciassem a aurora.

— Estou quase descobrindo, Laura. Com esse xarope, ninguém mais vai morrer do coração.

Quem iria decifrar as garatujas das fórmulas que só Almiro entendia e que haviam curado tanta gente? Laura fechou a janela do escritório, voltou-se para a sala e chamou:

— Romão, Romão!

Ao passar à sala escura, escutou o risinho safado do marido quando lhe fazia cócegas no pescoço e procurou suas mãos em torno da cintura.

— Não faz assim...

Saudosa, esgueirou-se da lembrança com um meneio de corpo, como se dançasse.

— Romão!

Nada além da voz de Laura no silêncio da casa, logo quebrado por batidas na janela.

— Quem é?

— Sou eu, a Inácia do Paulo.

Laura abriu a porta.

— Por favor, dona Laura, o Paulo está passando mal, será que Seu Almiro pode dar uma chegada lá em casa?

Então não era verdade? Claro que era mentira: não acabara de ouvir o riso do marido e sentir o carinho no pescoço? Se fosse verdade, como poderia alguém ignorar? Almiro era conhecido de todos, tratava de todos. Mesmo do filho de Inácia, quando teve uma pneumonia que os remédios da farmácia não davam jeito. Três dias depois das poções de Almiro, o menino corria em desabrida pela praia, puxando o fio de uma pandorga verde e amarela contra o céu azul. E a festança dos cinquenta anos de Almiro! Três barris de chope, um terneiro e dois perus recheados foram pouco para todo mundo que veio cumprimentar o “doutor”. Ele recusava o título: “Doutor é gente da química; eu sou da natureza”.

— Almiro saiu, Dona Inácia.

— Vai demorar?

— Não sei, não disse aonde ia. Pergunte à Rosália. Isto mesmo, a Rosália sabe. Mora na segunda casa à direita.

Outra vez só, Laura resolveu varrer as pétalas de flor e folhas murchas que havia pelo chão.

— Essas visitas sempre sujam a casa da gente – murmurou.

A vassoura foi reunindo tudo junto à porta da cozinha e quando ela ia procurar a pá de lixo, escutou alguém chamando-a do lado de fora. Reconheceu a voz de Rosália.

— Tu estás bem, Laura? Dona Inácia foi me procurar...

— Ela quer que Almiro vá ver Seu Paulo.

— Tu sabes que não é mais possível, Laura.

Rosália acompanhava a prima que só interrompera a limpeza para abrir a porta. Depois de despejar os restos de flores e folhas, apoiou o queixo no cabo da vassoura e ficou olhando o chão da cozinha.

— Tenho que limpar aqui também.

— Por que não vais descansar? Amanhã cedo venho te ajudar.

Laura continuou a varrer e, de repente, apoiou-se outra vez na vassoura. Como se estivesse sozinha, sorriu:

— O corpo não quis mais ajudar.

— O quê?

— Nada. Estava pensando em Almiro.

— E Romão?

— Também ainda não voltou.

Rosália olhou-a preocupada.

— Não queres mesmo que eu passe a noite contigo?

— Não. Preciso ficar sozinha.

Quando a prima saiu, Laura pegou dois ovos, uma panelinha meia de água e ligou o fogo. Examinou a limpeza da casa e entrou no quarto, começando a despir-se frente ao grande espelho do guarda-roupa. Menos de cinquenta anos, os seios derreados e flácidos. Reparou que as varizes começavam a avançar pelas coxas, formando duas teias azuladas logo acima dos joelhos. Vestiu a camisola e, através do espelho, viu a cama vazia. Não conhecera outro homem além de Almiro, nem iria conhecer. A missão principal de seu corpo estava finda, embora sem frutos. Dobrou cuidadosamente a colcha de crochê, colocando-a sobre uma cadeira, como fazia todas as noites. Puxou as cobertas e os dois travesseiros surgiram estufados, as fronhas bem esticadas, nenhum sinal da última noite que passou com Almiro. Melhor imaginar que ele tenha ido jogar baralho.

Um cheiro de queimado fez Laura correr à cozinha. Os ovos estavam rachados, casca e clara começando a torrar na panelinha seca. Mesmo assim, procurou um pires, descascou lentamente os ovos, borrifou um pouco de sal sobre eles e começou a comê-los sem qualquer prazer. Se Almiro estivesse em casa, haveria de caçoar dela:

— Estás ficando esquecida como uma velha.

Laura parou de comer, jogou fora o resto, lavou o pires, verificou se a porta continuava entreaberta para Romão entrar e assustou-se com novas batidas na janela.

— Seu Almiro, Seu Almiro!

Era um pescador dizendo que sua mulher estava se torcendo de dores no peito.

— Sei que Seu Almiro tem um remédio bom para isto.

— Ele viajou.

— É um xarope cor de laranja, ele me receitou uma vez.

— Só quem pode saber é o Romão.

— Ele não está?

— Também saiu.

Laura foi fechando a porta devagarinho para forçar o homem a retirar-se.

— Maria está sofrendo tanto, dona.

A mesa parecia ocupar todo o espaço da sala, encobrindo tapete, móveis, a televisão. Coberto de dálias e crisântemos colhidos por ela própria enquanto Rosália e o marido aprontavam o corpo no caixão, ali esteve Almiro o dia inteiro, deitado em silêncio, indiferente a tudo. Laura concluiu que aquela mesa tão grande, comprada para a algazarra das crianças que nunca vieram, tinha encontrado, afinal, uma serventia. Romão, como se esperasse ainda a definição da receita para os males do coração, permaneceu a um canto sem tirar os olhos do caixão negro, debruado de galões dourados. No momento de maior desespero de Laura, quando deu o último beijo no rosto frio do marido e alguém fechou o caixão, ela percebeu o grande salto de Romão pela janela. Seu pelo negro estriado de amarelo e branco traçou um jato brilhante do chão escuro à luz do dia, como um corisco na tempestade.

— Romão! Romão!

Agora Laura chora por ela, por Paulo, por Maria, por todos que Almiro não pode mais curar. Sem se preocupar com as lágrimas que correm pelo rosto, encostou-se na parede e escorregou o corpo até sentar-se no chão. Foi nesse momento que Romão entrou. Ela o viu passar para o escritório, ou está enganada? Primeiro, o ruído seco do lápis caindo; depois, uma garrafa que vira e o líquido escorrendo para o assoalho. Laura imaginou que Romão havia saltado para a prateleira dos vidrinhos coloridos quando o barulho aumentou de intensidade.

— Romão!

Os vidros continuaram a espatifar-se no chão. Laura secou os olhos na camisola e ficou quieta até que os ruídos cessaram. Levantou-se devagar e acendeu a luz do escritório. Os cacos de vidro brilharam no chão, manchado pela mistura de tons de todas as essências de Almiro.

— Romão.

Correu os olhos pelas prateleiras vazias, o balcão com as provetas e tubos também quebrados e outra vez duvidou se realmente vira Romão entrar no escritório.

E como poderia saber? Romão, como Almiro, nunca mais voltou para casa.

Maison de Écrivains Étrangers Saint-Nazaire , 8/8/88 'Esta data, só daqui a 100 anos'