#
BIBLIOTECA DIGITAL DE LITERATURA
NuPIL/LAPESD/nuLIME
Universidade Federal de Santa Catarina
#
Ipês, de Ricardo Gonçalves
Edição de Referência:
GONÇALVES, Ricardo. Ipês. São Paulo: Monteiro Lobato e Companhia, 1923.
ÍNDICE
Na lama da estrada, ao pé da porteira, uma orla de pétalas cor de ouro — flores de ipê? — engrinaldam as pocinhas d’água cor de telha.
Mas ao chape-chape do cavalo que se aproxima, ó linda revoada de borboletas amarelas dentro de cujo arabescar eu passo!
Tontinhas!...
Como me veem afastar sossegam, e uma a uma pousam de novo, asas a prumo, imóveis, como flores de ipê dispostas em grinalda.
A saudade comenta dentro em mim:
— Um soneto de Ricardo...
* * *
De bruços no remanso de um poço à sombra de ingazeiros, de cuja galhaça pendem bainhas retorcidas — peludos escrínios duma polpa que furtou à neve a cor e ao veludo o macio — contemplo um grupo de guarás espiando, ressabiados, uma “vaquinha” de élitros verde-gaio, que caiu na água e boia pernejando.
Um joão-bobo tocaia-me de perto, inclinando a cabecita.
Rumoreja longe o rio, na corredeira.
Bisbilhos, cicios, tentativas de som grifam o silêncio sombrio da grota.
E a saudade “pensa" dentro em mim:
— Versos de Ricardo..,
* * *
Bordejando a ilha das Palmas desliza a canoa no berilo líquido da costeira.
Manuel rema à popa, Juvenal à proa.
Como é loquaz o Manuel!
Não tem fim a história da tintureira que embicheirou um dia, lá pelas alturas da Moela.
Afia o mar como um seio de menina agitado dos primeiros sustos de amor.
Está calmo, está macio.
Sopram brisas de sudoeste.
Duas gaivotas, imóveis, na laje do Major, longe, descansam juntinhas, como pombas...
Só uma nuvem no céu... E a diluir-se, estirada em frouxel de paina...
— As tainhas!
Volto o rosto.
A boreste, línguas de prata, às dezenas, emergem do líquido, cintilam, instantâneas, à luz do sol, num salto, e caem de chapa na água azul.
— Que lindo!
Não tarda muito, rebola um boto na esteira do peixe.
E outro boto.
E outro.
Somem-se as tainhas.
Somem-se os botos.
E o mar fecha aos nossos olhos a chacina sangrenta que lhe vai no bojo.
Fementido!
Todo plágios do céu por fora, todo dramas de carnagem por dentro...
— Manuel, Manuel, diz a minha saudade, está faltando aqui um companheiro, o Ricardo...
— O Ricardo Pequeno, da praia do Góis?
— Não, o outro, o grande — Ricardito...[1]
* * *
A casa onde mora aquela
Menina cor de açucena
É uma casinha pequena,
Casa de porta e janela.
Ricardo mede versos na mesinha em desordem.
As janelas enquadram a paineira florescida do Minarete.[2]
A espaços, uma flor se destaca e cai, girante. Godofredo Rangel, às voltas com a máquina de café, resmunga contra o Nogueira[3]. Não é que o patife passara a noite a ler um Zola à luz azul da chama do álcool, depois de consumido o último coto de vela?
A-ca-son-de-mó- ra-qué...
— Não há combustível, senhor poeta!
— Acende estes Dez contos[4].
— Pegarão fogo?
— Experimenta. A-ca-son-de-mó...
E as flores, uma a uma, caíam, girantes...
E as rimas, uma a uma, ajeitavam-se no verso...
E os contos, um a um, ardiam sob a cafeteira...
Passos na escada. Um grito.
— Ricardo! Rangel!
— Vé, Bompard![5] respondem de cima.
Era o Cândido[6] que chegava, e o Raul[7] e o Arthur[8]. A cainçalha[9] integrava-se e a uma voz estrugia, num desafio a Baucaire[10] o nosso hino de guerra:
Dé brin o dé bran
Cabussaran...[11]
Mal agonizavam as últimas notas do “hino do Minarete”[12], da mesinha em desordem evolava -se um novo:
A-ca-son-de-mó-ra-qué...
Porque nunca mais deixaram de associar-se, em meu espírito e em minha saudade, a Poesia e o Poeta, tais os conheci um dia, no Minarete — ele medindo versos na mesinha em desordem, ela a revelar-se nas flores cor de rosa que, aos beijos da brisa, caíam, girantes, da nossa grande paineira florescida...
MONTEIRO LOBATO
A casa onde mora aquela
Menina cor de açucena,
É uma casinha pequena,
Casa de porta e janela.
Tão pequenina e singela!
Ao vê-la, a ideia me acena
De quebrar o bico à pena
E fazer uma aquarela.
Pintar a casa, a colina,
Mas sobretudo a menina,
O ar sossegado e feliz,
Dando relevo à pintura,
Numa ridente moldura
De cravos e bogaris.
A D. Olga
Arrepanhando o vestido
De chita azul, nhá Carola,
Põe feijão na caçarola
Para o almoço do marido.
Dorme um cachorro estendido
À poria da casinhola;
Gritam galinhas de Angola
No terreiro bem varrido.
Enquanto chia a panela,
A moça vai à janela,
A ver se o marido vem.
Mas entra logo zangada
Porque na volta da estrada
Não aparece ninguém.
Preso à cintura o vestido,
Mostrando a perna trigueira,
Junto de um ipê florido,
Bate roupa a lavadeira.
Sol de brasa; ouve-se o ruído
Cantante da corredeira;
Vozes ao longe, um latido...
O baque de uma porteira.
Súbito, em coro, as galinhas
Cacarejam nas vizinhas
Moitas de macega, em baixo.
E ouve-se o guincho estridente
Que no ar sossegado e quente
Solta um gavião de penacho.
Ao Monteiro Lobato
Em doce transparência cor de opala,
Expira a tardezinha; o sol descamba,
E o Zé da Ponte enfia-se num pala,
Monta a cavalo e toca para o samba.
Toca depressa, mas um loro estala,
Foge-lhe o pé direito da caçamba,
E o socado, com a silha um pouco bamba,
Pelas ancas, precípite, resvala.
E o Zé da Ponte, cabra destorcido,
Pião mascota, segundo a voz do povo,
Para longe da sela foi cuspido.
“Dianho de sorte má!” Caiu sem fala,
Perdeu a pagodeira e um ponche novo,
Naquela tardezinha cor de opala.
Noite; silêncio lúgubre e completo.
No rancho de paredes barreadas,
Uma velha caipira conta ao neto
Coisas de assombração e almas penadas.
Correm as lagartixas pelo teto,
E o pequeno, as pupilas dilatadas,
Ouve a história macabra do esqueleto,
Que foi visto a dançar pelas estradas.
Na rede, os olhos fitos na fogueira,
Uma bela morena feiticeira
Sonha com sapateados e fandangos.
Mas a velha se cala de repente,
Porque lá fora ouviu, distintamente,
Um soturno queixume de curiangos.
Vagas constelações de pirilampos
Ponteiam de oiro a densa noite escura.
Há um trágico silêncio na espessura
Dos matagais e na amplidão dos campos.
O batuque dos negros apavora.
Anda o saci nas moitas, vagabundo,
E almas penadas, almas do outro mundo,
Passam gemendo pela noite em fora.
Só, no ranchinho de sapé coberto,
Encosto o ouvido à taipa esburacada,
E ouço um curiango que soluça, perto...
Lambe a fogueira os últimos gravetos,
E pela noite rola, magoada,
A cantiga nostálgica dos pretos.
No trecho em que a estrada vira,
Junto ao mato que farfalha,
Existe um rancho de palha,
Tosca habitação caipira.
Dentro, as panelas, a rede
De dois ganchos pendurada,
Uma espingarda troxada
E santos pela parede...
Ao fundo, a macega esconde
O ribeirão de águas claras,
Onde bebem veados, e onde
Há lontras e capivaras.
É noite. O fogo flameja
No rancho, espancando a treva,
E o caboclo a voz eleva,
Numa trova sertaneja.
E de uma idade já morta
Aspira todo o perfume,
Sentado junto da porta,
Olhando as chispas do lume...
A Godofredo Rangel
Atiro para os ombros um capote,
Monto a cavalo e sigo estrada afora.
Ri-se, corando meigamente, a aurora,
Entre nuvens de fogo e chamalote.
Anda por tudo um frenesi de festa.
Cindindo a bruma leve dos espaços,
Vão-se trêfegos bandos de sanhaços
Para o Te-Deum Laudamus da floresta.
Descem as caipirinhas para a fonte,
Vão-se para a capina os camaradas,
E há cantigas de amor, doces toadas,
Num cafezal que sobe pelo monte.
Penetro numa rústica vereda
Junto às límpidas águas de um regato,
— Trêmula fita rútila de seda —
Que vai torcicolando pelo mato.
O céu azul parece de veludo,
A relva tem cambiantes de ametista,
E o rio, a ponte, as perobeiras, tudo,
Que pábulo divino para a vista!
Encontro um caçador junto ao caminho
Negaceando os “nambus”: má catadura,
A tiracolo a bolsa e o polvarinho,
Chapéu de palha e faca na cintura.
Agora é uma paineira ressoante
Da garrulice matinal dos ninhos,
Em cuja fronde enorme e vicejante
Há flores, borboletas, passarinhos.
Aqui, por uma aberta da espessura,
Vejo dos tangarás a alegre dança,
Uma orquídea de um tronco se pendura,
Um pica-pau num galho se balança.
Depois de uma porteira é um descampado;
Sobe aos ares o fumo de uma choça;
Passa um homem por mim: vai para a roça,
Pés descalços, camisa de riscado.
Caminho mais. O sol abre a pupila
No alto dos céus, e já bem perto avulta,
Entre paineiras altas, semi-oculta,
A branca torre da matriz da vila.
Vêm para a missa grupos campesinos,
Rincha um carro moroso pela estrada,
Enquanto vibra na manhã doirada
O festival repinicar dos sinos.
Antes que o sol, em pleno céu, mais quente,
Esgarçasse da bruma a leve trama,
Eu me quedava preguiçosamente
Sob os lençóis, na tepidez da cama.
Invadiam-me o quarto, pelas frestas,
A doce luz pulverizada e loura,
O matinal sussurro das florestas,
O bulício das terras de lavoura;
Gritos de apelo em prolongado entono,
Carros de bois rinchando nos caminhos,
A cantiga singela de um colono,
A matinada estrídula dos ninhos;
Ladrar de cães e vozes abafadas,
Coinchos, berros, balidos, cacarejos,
E, acompanhando o ritmo das enxadas,
Uma triste canção de sertanejos...
Depois, o sol limpava os céus nevoentos,
E então, fugindo à ardência dos seus raios,
Passavam para a serra, barulhentos,
Taralhando febris, os papagaios.
E eu pensava nas formas tão perfeitas
Daquela esquiva moça veneziana,
Que vira na labuta das colheitas,
E amava, como um doido, há uma semana.
Olhos tristes, saudosos de outros climas,
A boca pequenina — uma framboesa,
Voz de cristal a debulhar-se em rimas,
— Colona, parecia uma princesa!
Não tinha mais frescura a madrugada
Nem mais vivo esplendor que o riso dela
Quando, esbelta, fugia, arrebatada
Na vertigem veloz da tarantela!
E eu punha-me a sonhar: “Ventura a minha,
Se por acaso um dia lhe beijasse
O til vermelho vivo da boquinha,
A cetinosa purpura da face.”
Mas batiam à porta: — “O sol vai alto!
Acorda, preguiçoso”! E, à voz amiga,
Eu, resoluto, erguia-me de um salto,
Gorjeando alegremente uma cantiga.
Neste retiro os longos dias passo,
Sem alegrias e sem dissabores,
Vendo as aves cruzarem-se no espaço
E as paineiras vestirem-se de flores.
Habito, solitário, uma vivenda
De amplos salões, fantástica e sombria.
Em redor, as senzalas da fazenda;
Ao fundo, o vulto azul da serrania.
Á orla do mato virgem misterioso,
No silêncio das tardes pensativas,
Gemem as juritis de volta ao pouso
E trilam docemente as patativas.
Eu vejo, debruçando-me às janelas,
Sobre a monotonia das capoeiras,
Altos ipês de frondes amarelas
E adustas, retorcidas perobeiras.
Depois, no céu de opala se encastoa
A lua merencória. E pelos campos,
Por sobre as águas mortas da lagoa,
Tremeluzem, bailando, os pirilampos,
Há sussurros estranhos pela brenha.
Fora, a noite estival fulge, tão clara
Que, como em prata fosca, se desenha
No píncaro de um monte uma jiçara.
E eu entro. Atiço o lume de gravetos.
E, ouvindo ao longe uns pávidos rumores,
Evoco a dança trágica dos pretos,
Num rufo de atabaques e tambores.
Na mata aromal, que é um templo,
Cheio de sombra e de paz,
Horas perdidas contemplo,
Sobre um relvoso tapete,
Esse engraçado minuete
Que dançam os tangarás.
Canta um sabiá na espessura
A merencória canção.
Limpo de nuvens, fulgura,
Entre o rendilhado crivo
Das árvores, o festivo
Azul de um céu de verão.
E, sob um teto odorante,
Se aduna o bando jovial:
Tem um penacho o marcante;
O córrego sonolento
Murmura o acompanhamento
Com trinclidos de cristal.
Na mata umbrosa, que é um templo,
Cheio de aroma e de paz,
Horas perdidas contemplo,
Sobre o tapete da relva
A maravilha da selva,
A dança dos tangarás.
A Valdomiro Silveira
Cisma o caboclo a porta da cabana.
Declina o sol, mas, rúbido, espadana
Ondas fulvas de luz.
No terreiro, entre espigas debulhadas,
Arrulham, perseguindo-se a bicadas,
Dois casais de pombinhos parirus.
A criação de penas se empoleira;
Come a ração no cocho da mangueira
Um velho pangaré.
E uma vaca leiteira e bois de carro
Pastam junto à casinha, que é de barro,
Coberta de sapé.
Longe, uma tropa trota pela estrada.
E a viração das matas, impregnada
De perfumes sutis,
Traz dos grotões, que a sombra, lenta, invade
O soturno queixume de saudade
Das pombas juritis.
Cisma o caboclo. Pensa na morena
Que vira numa noite de novena
Orando ao pé do altar.
Que vira... e que, por mal de seus pecados,
Tinha os olhos profundos e rasgados
E um riso de matar.
Branco, de fofos, era o seu vestido.
E ele, ao vê-la, sentindo-se ferido
Em pleno coração,
Baixinho suspirou: “Nossa Senhora!
Ai, meu São Bom Jesus de Pirapora
Da minha devoção!”
Depois não se conteve e, num fandango,
Furtou-lhe um beijo aos lábios de morango
O diabo do rapaz.
E ela volveu zangada: “Malcriado!
Seu vigário já disse que é pecado.
Aquilo não se faz!...”
E o caboclo medita. O sol em chama
Como agora há pouquinho não derrama
Ondas fulvas de luz.
O córrego soluça, a noite desce,
E vem dos capoeirões onde anoitece
O trilo vesperal dos inambus.
Ouve essa voz de mística doçura,
A doce voz do sonho em que te agitas;
Beija a legião de loiras cabecitas
Que te circunda a face branca e pura.
Sorri, longe da humana desventura!
O berço azul-celeste em que dormitas,
— Esse ninho de rendas e de fitas —
É o paraíso, ó frágil criatura!
Dorme! Não chega ao berço em que adormeces
O eco da nossa vida, entrecortada
De grandes mágoas e paixões refeces.
Assim, dorme feliz, longe dos gritos,
Longe dos ais que solta na jornada
A caravana imensa dos aflitos!
Ao Roberto Moreira
(Para o teu filhinho)
Eu sei de certos senhores
Que desdenham, sérios, graves,
O doce aroma das flores
E o terno canto das aves.
Rudes, a alma empedernida,
Não sei de emoção que os vença:
Desconhecem — dor imensa! —
O que há de melhor na vida.
Não sabem que às vezes cura
Desalentos, desenganos
A buliçosa ternura
De um querubim de dois anos,
Nem quanta meiguice espelha
O doce riso inocente
De uma boquinha vermelha
Que espera o primeiro dente.
A uma menina
Não fugira da gaiola
O sabiá, se adivinhasse
Todo o pranto que te rola
Pelas covinhas da face.
E contudo as aves... pensa
Que elas têm filhos e ninhos...
Imagina a dor imensa
Dos míseros passarinhos!
Imagina que suplício
Quando ouvem, por uma fresta
Da prisão, todo o bulício
Das alvoradas em festa!
Prendê-las... que crueldade!
As avezinhas, querida,
Precisam de liberdade,
Porque a liberdade é a vida.
Precisam voar pelos ares,
Como eu, criança, preciso
Do sol desses teus olhares,
Do mel desse teu sorriso.
Prendê-las? Ora, avalia
Se teu pai por um momento
Tem a louca fantasia
De encerrar-te num convento.
Vamos, querida, liberta
As aves! Coragem! Vamos!
Deixa a portinhola aberta,
Solta aqueles gaturamos;
Solta esse canário esquivo
Que já não sai do poleiro.
É tão triste ser cativo!
Tão penoso é o cativeiro!
Tira a corrente de prata
Dos pés desse periquito.
Que nostalgia da mata
Não tem ele, o pobrezito!
Assim; agora é preciso
Que também tu soltes, louca,
As patativas do riso
Da gaiolinha da boca.
Graciosa e pequenina,
Que lindo o seu cabelo ondeado e loiro!
A mãe beija-lhe a boca purpurina,
Que a filha, essa menina,
É todo o seu tesoiro.
A graça que tem ela
Unida a uma expressão mimosa e casta!
Olhar em que a bondade se revela;
E a meiguice, pois que para ser bela
A perfeição não basta!
No absconso pardieiro
Triste, que a luz do sol jamais procura,
A pobrezinha canta o dia inteiro.
É como um passarito prisioneiro
Numa gaiola escura.
Como um canário canta,
A sua doce voz beija e consola
E à cantiga que sai dessa garganta,
O sol, um sol piedoso se levanta,
Aquecendo a modesta casinhola.
A santa mãe, que fervorosa prece,
Costurando, solícita, murmura,
Ante a voz infantil que anima e aquece,
Fica extática a ouvir e até se esquece
De que a persegue imensa desventura.
Absorta, os olhos úmidos de pranto,
Escuta a meiga e trêmula bailada:
Ergue-se então e, interrompendo o canto,
Fecha-lhe a boca rubra e delicada
Num beijo sacrossanto.
Mas ah! se ela soubesse
O destino da ingênua criatura
Que os seus dias tristíssimos aquece,
Com que fervor alevantara a prece
Que seu lábio murmura!
E tu, se num olhar doce e profundo
Desses teus olhos — úmidas safiras —
Pudesses ter num rápido segundo
A visão das misérias deste mundo,
Decerto não sorriras!
O pai que fora expulso da oficina
Vivendo na taberna,
A velha mãe tão doente, tão franzina!
Ai! que será de ti, pobre menina,
Quando te falte a proteção materna!
Para as crianças das escolas
Salta do leito e vem cá fora,
Vem ver esta árvore, sonora
De murmurinhos e canções.
O sol nascente a afaga e beija,
E as suas frondes purpureja
Com seus vivíssimos clarões.
Anda-lhe em torno, álacre, um vivo
Zumbir de insetos; pelo crivo
Das folhas verdes fulge o sol;
E entre cortinas viridentes,
Zinem cigarras estridentes,
Tecem aranhas o aranhol.
Depois, a pino, o sol escalda,
E a sua copa de esmeralda
É como um pálio protetor,
A cuja sombra, ampla e divina,
Cantam as aves, em surdina,
Cantos dulcíssimos de amor.
Ama-a! — toda a árvore é sagrada —
Ama esta esplêndida morada
De abelhas de oiro e aves gentis!
Busca entender tanta poesia,
E faze coro à sinfonia
Da natureza, que a bendiz!
Ama-a, na glória matutina,
Entre os vapores da neblina,
Que toda a envolvem, como véus,
Cheia dos prantos da alvorada,
Ou melancólica, estampada
No oiro e na purpura dos céus...
E reza então: “Bendita sejas
Por tuas frondes benfazejas,
Pelos teus cânticos triunfais,
Por tuas flores e perfumes,
Pelos teus pássaros implumes,
Por tuas sombras maternais”.
Para as crianças das escolas
Rio sonoro que as planícies banha
E enche de rumorejos a floresta —
Foi seu berço uma rocha na montanha,
Teve uma origem simples e modesta.
Era, em começo, um tímido regato
De meiga voz e de água cristalina:
Desalterava os pássaros no mato,
Beijava o caule às flores na campina.
As andorinhas leves e graciosas
Molhavam na corrente as asas pretas
E roçavam por ele, buliçosas,
Numa doce carícia, as borboletas.
Vez em vez, uma inquieta saracura,
Saindo, cautelosa, do brejal,
Da sua face luminosa e pura
Mirava-se no límpido cristal.
Assim cresceu, e agora, sem descanso,
Rega os campos, fecunda as plantações
E ora coleia preguiçoso e manso,
Ora estronda em profundos boqueirões.
E rubro — quando o sol tinge o horizonte
Alvo — do plenilúnio à luz tranquila,
Marulha sob os arcos de uma ponte,
Reflete as casas brancas de uma vila.
Leva a abundância ao lar dos pescadores,
Move engenhos, carrega embarcações
E desliza entre bênçãos e louvores,
Através de cidades e sertões.
Para as crianças das escolas
Estamos em janeiro.
É todo um atoleiro
O leito das estradas.
E a chuva cai violenta,
Na terra lamacenta,
Em bátegas pesadas.
Há uma tristeza imensa
Por tudo — e a gente pensa
Que o sol não torna mais,
Após dias inteiros
De rijos aguaceiros,
De rudes temporais.
O olhar pelas alturas
Só vê nuvens escuras...
Exulta o lavrador:
Correi pelas chapadas,
Fecundas enxurradas,
Dilúvio benfeitor!
Justo é que a chuva amiga
O lavrador bendiga:
A chuva lhe vem dar
Mais viço ao arvoredo,
Mais flores ao balsedo,
Mais pomos ao pomar.
Rouco sibile o vento,
Caia do firmamento
A chuva em borbotões;
E desde o vale à serra
Encharque, alague a terra,
Fecunde as plantações.
Nestas rechãs, que agora
A água avassaladora
Cobre como um lençol,
Verdes e farfalhantes,
Os milharais pujantes
Hão de sorrir ao sol.
Justo é que a chuva amiga
O lavrador bendiga:
A chuva lhe vem dar
Mais viço ao arvoredo,
Mais flores ao balsedo,
Mais pomos ao pomar.
À hora em que a treva aos poucos se adelgaça,
Naquele dia, de manhã, bem cedo,
Buscando as fortes emoções da caça,
Rumo da ceva entrei pelo arvoredo.
E, antes que o sol rompesse a bruma escassa,
Fui pôr-me de tocaia, ansioso e quedo,
Ali onde o córrego, ondulando, passa
Entre o maçambará, quase em segredo.
Em breve um ruflo, um galho que estalida,
Um tiro... e após, de uma árvore vizinha,
Cai nas folhas um pássaro sem vida.
E é assim que agora posso dar-te, ufano,
— Mimo de caçador, senhora minha! —
Este vermelho papo de tucano.
Longe, um barco de pesca à vi ração desfralda
A vela, e singra ao sol que rompe a escassa bruma,
Rumo desses ilhéus que o maroiço engrinalda
Com seus flocos de espuma...
Foge... graciosamente enfunada, palpita
No horizonte lilás, como um pássaro exul...
Depois se afasta e é uma asa branca na infinita
Curva do mar azul.
Primeiro amor! sonho formoso de criança,
Cheio de luz, cheio de unção, cheio de graça!
És tu na curva azul de um mar todo bonança
Uma vela que passa...
Sobe em volutas a fumaça.
Em torno a mim tudo descansa.
Tinhas na voz tamanha graça...
Era tão fulva a tua trança...
Por que será que esta lembrança
O coração me despedaça?
Branca, aromal, trajando luto,
Vens do passado. Em brandas queixas,
A tua voz, que treme, escuto.
Beijo-te as fúlgidas madeixas...
Mas porque vens, por que não deixas
Minh’alma em paz, um só minuto?
Sonhos, delírios... a doçura
De uma afeição correspondida...
Raios de sol e noite escura,
Assim passava a nossa vida;
Ora, uma lágrima dorida,
Ora, um sorriso de ventura...
Crepuscular melancolia...
Um vago aroma de verbena.
Ao longe, um sino, que plangia,
Dava o sinal para a novena...
E eu te beijava a mão pequena,
E o teu olhar esmorecia...
Onde esse andar cheio de graça?
Onde o torçal dos teus cabelos?
Como a tenuíssima fumaça,
Que sobe aos ares em novelos,
Os sonhos bons, os pesadelos,
Tudo passou... pois tudo passa.
Há homens, doce amada que me escutas,
Que se vão para longe de seus lares,
Através de tormentas e de lutas,
Através de florestas e de mares.
Partem-se eles em busca de riquezas,
Embarcados em frágeis caravelas,
Sem temerem do mar as incertezas,
Sem temerem a fúria das procelas.
Uns levam dentro d'alma angustiada
Em que soluça o adeus da despedida,
A lembrança da noiva idolatrada,
A saudade da esposa estremecida.
Um, que riquezas e tesouros sonha,
Mesmo através do sonho que o domina,
A paisagem natal bela e risonha
Leva constantemente na retina.
Outros, sem que uma lágrima saudosa
Lhes umedeça a face endurecida,
Deixam por uma vida aventurosa
Uma tranquila e venturosa vida.
E todos têm de rútilas quimeras
A alma povoada; e, águas em fora,
Vão-se as veleiras naus, vão-se as galeras
Para um desconhecido que apavora.
Mares inavegados e bravios, —
A inclemência dos ventos e das vagas,
A princípio; depois... climas doentios
E perniciosos de longínquas plagas;
Fome e sede, calores sufocantes,
Emanações de brejos deletérias,
E a seguir-lhes os passos vacilantes
Um cortejo de dores e misérias...
E vão-se... e um vento fresco de bonança
Trá-los de volta, um dia, à verde enseada,
À verde enseada conhecida e mansa,
Donde partiu a frota empavesada.
E os loucos Argonautas atrevidos,
Que se foram em busca de um tesouro,
Voltam desanimados e vencidos,
A alma vazia, as mãos vazias de ouro.
Também eu fiz-me ao largo, assim como eles,
Na minha escuna pelo mar da vida...
Volto... mas onde os sonhos? onde aqueles
Extraordinários sonhos da partida?
Onde as montanhas de ouro refulgente,
E os bosques de coral e de safira?
Essa região ideada pela mente
Do poeta sonhador que tudo aspira?
Volto, exânime e triste, à bela enseada,
À abra feliz donde parti criança,
E trago a minha nau desarvorada,
Sem a flâmula verde da esperança.
HENRI HEINE
I
Tu tens o estio na face,
O inverno no coração;
Na face, a estação do riso,
No peito, a negra estação.
Mas não tarda que isso mude.
Mudada serás... e então,
O inverno terás na face,
Terás no peito o verão.
II
As violetas do olhar, a deliciosa
Papoula da boquinha perfumosa,
Da face iluminada as açucenas
E o suavíssimo lírio transparente
Das mãozinhas fidalgas e pequenas,
Esses vicejam prodigiosamente,
Pois seco e murcho é o coração apenas.
III
Procurei, minha amada, no jardim,
O lugar em que um dia
Teu mentiroso lábio repetia
Que o nosso amor jamais teria fim.
O peito apunhalado pela dor,
Quis ver esse recanto
Em que desfiaste as pérolas do pranto
E me deste, criança, o teu amor.
Dona dos olhos grandes cor do mar,
Dona dos grandes olhos penitentes:
Venenosas serpentes
Achei nesse lugar.
(I. STECCHETTI)
O crânio se me estala. Estou doente.
Força e vigor já os músculos não têm.
Magro, febril, padeço horrivelmente,
Mas quando penso em ti me sinto bem.
Mas quando penso em ti, doce criança,
Foge-me a dor e volve-me a esperança.
Quisera a morte para não sofrer,
Mas quando penso em ti, quero viver.
(FRANÇOIS COPÉE)
Prometeste-me, pequena,
Para esta noite serena
Um beijo da boca tua,
Por isso bem devagar
Acabo de escorregar
Do céu num raio de lua.
Iremos sem fazer ruído
Pelo atalho percorrido
Tantas vezes — que prazer!
Iremos pelo caminho
Escutando o borborinho
Das correntes, sem as ver.
E para termos um guia
Através da ramaria,
Na paz noturna dos campos
Onde tudo é triste e belo,
— Na noite do teu cabelo
Colocarás pirilampos.
(JEAN RICHEPIN)
Na sombra, junto a mim, há frêmitos de amor.
Traz-me a brisa, entontecedor,
Um bafejo aromal de jasmins e de rosas.
Plangem de manso, no ar, músicas misteriosas,
Cheias de um cálido langor.
Na sombra, junto a mim, há frêmitos de amor.
E ai! é tão longe a terra, as praias tão distantes!
Adeus, adeus, lindas amantes!
Trança em que me prendi — laço cheiroso e brando—
Boca de onde arranquei meu coração sangrando,
Tão longe! Adeus, carnes em flor!
Na sombra, junto a mim, há frêmitos de amor.
A estas recordações meu sangue moço estua.
Aromas, compaixão! Desaparece, ó lua!
Ventre alvo, seios nus, sustai vossa vingança!
Adeus, ó boca! adeus, ó trança!
Adeus, adeus, carnes em flor!
Na sombra, junto a mim, há frêmitos de amor.
(EDMOND ROSTAND)
ATO I, CENA IV
CYRANO
Elegâncias? também as tenho... moralmente.
Se não me enfeito como um fofo peralvilho,
Sou mais limpo, apesar de ser menos casquilho.
Nunca ninguém me viu, tendo, por negligência,
O coração manchado ou manchada a consciência
Levando a Dignidade andrajosa e rasgada,
Ou alguma afronta que não fosse bem lavada.
Sim. Tudo em mim reluz, refulge. Intemerato,
A Franqueza e a Lealdade, eis as plumas de ornato
Que ostento no chapéu. Não é um talhe bem feito:
É minh’alma que eu trago esbelta, que endireito
E aprumo como quem aprumasse a estatura;
Em vez de laços, tenho ações de alta bravura;
E, assim como o bigode, o espírito cofiando,
Os grupos atravesso e, entre eles, agitando
As verdades brutais que tinem como esporas.
II
ATO I, CENA V
CYRANO
Oh! dize que esperança eu posso ter com tal
Super-desmesurado apêndice nasal?
Não me iludo. A minh’alma, às vezes, se enternece
Na hora azul em que a tarde expira e a noite desce...
Penetro num jardim: que perfumes sutis
Haure este malfadado, este pobre nariz!
É abril, o doce mês... passam dois namorados,
Um casal, junto a mim... eu os vejo enlaçados
E penso que também poderia trazer
Suspenso de meu braço um corpo de mulher...
Um vulto feminil que em meu braço descansa...
Um beijo... uma carícia... o aroma de uma trança...
E esqueço-me de tudo, e não sei o que penso,
E, de repente, vejo estampar-se, ai de mim!
A sombra colossal do meu nariz imenso
No muro do jardim.
LE BRET (comovido)
Meu pobre amigo!...
CYRANO
Sim! sou bem digno de dó.
Sentindo-me tão feio, às vezes, e tão só!
Tu não podes saber quanto sofro... que de horas
Amargas e cruéis! que suplício!
LE BRET
Tu choras?
CYRANO
Não, chorar, isso não! seria tão grotesco
A lágrima a rolar no dorso gigantesco
Do meu pobre nariz!... Jamais consentiria
Essa enorme abjecção, tamanha grosseria!
A lágrima! não há nada mais belo, nada,
E eu não quero que em mim provoque a gargalhada.
III
ATO II, CENA IV
RAGUENEAU
Tortazinhas de amêndoa e modo de as formar
Batam-se bem alguns ovos
— Inda novos;
Nas ondas que a espuma trouxe
De cidra o sumo se deite,
Grosso leite,
Bom leite de amêndoa doce.
Passe-se dentro da lata
Fresca nata
Em formas de bom-bocado;
De damasco a borda peje-se;
E despeje-se
Gota a gota, com cuidado,
Tudo na forma, de forma
Que essa forma
Vá para o forno; e, rendendo-a,
Sigam-se as outras; saindo,
Venham vindo
As tortazinhas de amêndoa.
IV
ATO III, CENA VIII
CYRANO
Mas que fazer então?
Buscar um protetor poderoso, um patrão?
Ser como a hera que enlaça o carvalho robusto,
E lambe-lhe a cortiça e trepa então sem custo?
Usar, para atingir o cimo desejado,
De astúcia em vez de força? Oh! não, muito obrigado.
Entrar para o canil dos poetas rafeiros,
Como eles dedicar versos aos financeiros
E fazer de bufão para que um potentado
Haja por bem servir? Oh! não, muito obrigado.
Almoçar cada dia um sapo sem ter nojo,
Rustir o ventre por andar sempre de rojo,
Ter a rótula suja e fazer menos mal
Prontas deslocações da coluna dorsal?
Obrigado. Trazer o incensório suspenso
A um ídolo que viva entre nuvens de incenso,
Ganhar celebridade, aplausos e coroas
Num círculo de trinta ou quarenta pessoas?
Navegar, tendo em vez de remos madrigais
E, a tufarem-me a vela, os suspiros fatais
Das velhas, num derriço? Obrigado, obrigado.
Ganhar fama de autor por haver publicado
Meus versos, mas pagando o livro aos editores,
Obrigado. Viver de esmolas e favores,
Ser papa nas reuniões que, em baiucas sem nome,
Fazem alguns sandeus? Ver se alcanço renome
Com um soneto, se tanto, em vez de fazer mil,
Achar muito talento em qualquer imbecil?
Obrigado. Ter medo aos jornais, ser amigo
De elogios, dizer de mim para comigo:
“Ah! se o meu nome vier no Mercúrio francês!...”
Calcular, ter na face impressa a palidez
Dos poltrões, preferir fazer uma visita
A bordar, carinhoso, uma estrofe bonita,
Ser da matilha, hedionda e vil, dos pretendentes,
Redigir petições e mendigar presentes?
Obrigado. Obrigado. Obrigado. Obrigado.
Mas... cantar, mas viver num sonho alcandorado,
Calmo e feliz, o olhar seguro, a voz vibrante,
De quando em vez, e, por capricho, petulante,
Pôr de través o feltro, e, por um quase nada,
Dar um beijo na Musa ou dar uma estocada.
Nem um verso escrever que a mim me não pertença,
E, apesar disso tudo, uma modéstia imensa:
Pagar-me com uma flor, ou um fruto apetecido,
Contanto que no meu pomar seja colhido.
E, em suma, desdenhando a hera vil que se esconde,
Não conseguindo ser o roble, cuja fronde
Mora perto do Azul e distante do pó,
Subir pouco, mas só, completamente só.
V
ATO III, CENA X
CYRANO
Um beijo? Mas que vem a ser um beijo ao certo?
É um juramento feito um pouco mais de perto,
É uma confissão de amor, que bem depressa
Queremos confirmada. O beijo é uma promessa,
É um segredo que toma a boca pelo ouvido,
Momento divinal, que faz como um zumbido
Caridoso de abelha. O beijo, meu amor,
É uma comunhão, tendo gosto de flor,
Maneira deliciosa e maneira inebriante
De haurir-se todo o aroma a um coração amante,
E de gozar-se uma alma, à flor de uns lábios quentes.
(LECONTE DE LISLE)
Olha, amigo: este mar, que ora assim vês tão manso,
Bateu, como um aríete, um dia, sem descanso,
Os promontórios; foi aos saltos, em cachões,
Escalando, subindo as rochas e sobre elas
Estendeu a bramir, no fragor das procelas,
O espumoso lençol dos negros vagalhões.
Agora o encrespa a fresca brisa matutina.
A beleza do sol as águas ilumina
E longe, em direção desse horizonte infindo,
Onde passam, nadando, embarcações remotas,
Vai-se da costa azul, o páramo cindindo,
Em trêmula revoada, um bando de gaivotas...
Ali boiam, porém, contornando os ilhéus,
Destroços de naufrágio; e esses que os escarcéus
Assassinaram vão, sob as ondas pesadas,
Lívidos, a sangrar, de costas ou de bruços,
A boca aberta transbordante de soluços,
Olhos vítreos, olhando as águas sossegadas.
Meu coração é como esse mar que, tranquilo,
Beija as praias agora em doce murmurilo.
Também chorou, rugiu como ele... Sem descanso
Contra as rochas lançou-se em tremendos embates,
Todo um dia cruel de insânia e de combates.
Vês? — Agora reflui apaziguado e manso;
Sem desejo ou temor de nova tempestade,
À carícia do sol a voz mal se lhe escuta,
Mas o gênio, a esperança, a força, a mocidade,
Ei-los mortos na espuma e no sangue da luta.
(LECONTE DE LISLE)
O areal infinito é como um rubro oceano,
Que resplandece, mudo, em seu leito espraiado.
Ondula, imoto, o céu cor de cobre, do lado
Do horizonte em que habita o formigueiro humano.
Nem rumor e nem vida... O leão, farto, descansa
No antro afastado, em meio aos matagais infindos.
Vai beber a girafa esguia à fonte mansa,
Que a pantera conhece, ao pé dos tamarindos.
Dorme tudo. Sequer um pássaro no ar quente,
No ar em que gira um sol de fogo, um sol em chama...
Às vezes, com volúpia, a dormida serpente
Faz ondular, morosa, a rutilante escama.
O ar inflamado queima. O calor é mais denso.
E, bamboleando a massa — intrépidos viajantes,
Rumo do ermo natal, pelo deserto imenso,
Vão-se, num bando escuro, os tardos elefantes.
Vêm eles do horizonte ensanguentado e quieto,
Vêm levantando o pó, que em nuvem grossa ondeia,
E, para não sair do caminho mais reto,
Desmoronam com a pata os cômoros de areia.
Velho chefe, talvez, é o que à frente caminha:
Rugosa como um tronco a pele do seu dorso;
É um rochedo a cabeça... O arco imenso da espinha
Dobra-se, com violência, ao mais pequeno esforço.
Os passos não estuga e também não lerdeia
Que os passos pelos dele o bando inteiro marca.
E, deixando após si fundos sulcos na areia,
Seguem todos, atrás do velho patriarca.
Seguem, levando a tromba apertada entre os dentes,
As orelhas em leque. O ventre bate e fuma...
E o suor deles produz uma ligeira bruma
No ar cheio de tavões e de insetos ardentes.
Mas, que importam a sede e o calor sufocante?
Que lhes importa o enxame importuno que esvoaça?
Vai o bando a pensar numa selva distante
— Primeira habitação da primitiva raça.
Vai rever uma selva umbrosa o escuro bando...
E a caudal em que nada o hipopótamo enorme,
E onde, brancos de luar, iam beber, quebrando
Os juncos marginais com a grande pata informe.
Lá vão... E a linha escura e fantástica ondeia...
Lá vão eles, molgando as juntas, lentamente,
Mas passam... e depois fica imóvel a areia,
Passam... e depois fica o deserto somente.
NOTA
Ricardo Gonçalves nasceu em 1883 e muito cedo revelou-se poeta, Aos quatorze anos já deu fortes mostras da sua sensibilidade estética em versos imperfeitos quanto à forma embora dos mais ricos em poesia espontânea. As produções reunidas neste apêndice são dessa época e para elas chamamos a atenção simpática do leitor que poderá adquirir uma ideia perfeita da sua evolução poética.
Densa neblina envolve a serrania.
Vem nascendo a manhã. Débeis rumores
Partem da mata em férvida alegria,
Partem da mata a transbordar de flores.
Canta na roça, onde a araponga pia,
A alegre turma dos capinadores.
O sol de maio, rútilo, irradia,
E faz da terra um prisma de mil cores.
Gorjeiam aves, sacudindo o orvalho,
Cortam do espaço o límpido arrebol,
E vão pousar bem longe, noutro galho.
Da névoa o manto dissipou-se agora;
Cheio da messe a lourejar ao sol,
Rechina um carro pela estrada afora.
1903.
Vamos pelos atalhos divagando.
Vamos bem devagar, tão de mansinho
Que, em nos vendo passar, a ave do ninho
Ponha a cabeça fora e fique olhando.
Que as borboletas, num iriado bando,
E o buliçoso e arisco passarinho,
Em nos vendo passar pelo caminho,
Continuem nas moitas adejando.
Iremos, passo a passo, olhar perdido,
Tu, segurando a cauda do vestido,
Eu, aparando a palha de um cigarro.
E na volta, se virmos casualmente
Com seu carro de bois o tio Vicente,
Voltaremos de pândega no carro.
1901.
Nesta chapada verde em que teu vulto impera,
Hoje de cada moita uma voz se levanta
Para cantar a vida; e a vida em cada planta,
A vida em cada arbusto, esplêndida, exubera.
Porém, tu já morreste. Embalde a primavera
Volta e, para saudá-la, a natureza canta.
Que importa se teu vulto a passarada espanta!
Que importa, velho rei, se o machado te espera?!
Morreste! Nunca mais, como nos tempos idos,
Verás na primavera os teus galhos floridos,
Terás como tiveste arvoredo copado.
E tu já foste rei de uma antiga floresta,
E hoje, inválido e só, nem ao menos te resta
Um sabiá que te cante as canções do passado.
1900.
Os colonos na faina da capina
Cantam além, num cafezal formado.
Rincha um carro de bois. Vem do intrincado
Seio da mata o som de uma buzina.
Com virginais alvuras de noivado,
Na encosta pitoresca da colina,
Fulgem ao sol, que a todas ilumina,
As casinholas brancas do povoado.
Bimbalham sinos religiosamente
Na capelinha branca. Há muita gente
De rosto compungido em cada porta.
E, à luz do sol, que rútilo cintila,
Vai pela rua principal da vila
O esquife branco de uma noiva morta.
1900.
O sabiá titubeante e a juriti plangente
A rola e o tangará, no seio redolente
Da mata secular, em prazenteiro bando,
Cantam ao vir do sol ou quando o sol no poente
Vai aos poucos tombando.
Depois, se a noite chega, e ao longo dos caminhos
Soluçam noitibós, as aves de seus ninhos
Vão buscar o aconchego e a tepidez macia,
Sem ver que a chuva cai... felizes passarinhos!
É que a noite é sombria.
Lá fora o vento agita as franças do arvoredo,
E a mata é silenciosa e o céu é torvo e tredo;
A rola está em seu ninho, os filhotes lá estão,
Pode a chuva cair, que as aves não têm medo
Da chuva e do tufão.
Nasce o dia porém e acordam na floresta
Mil rumores sutis num frêmito de festa.
O sol aponta ao longe, além da serra, além...
E o grito dos anuns e os da araponga mesta
Anunciá-lo vem.
Rumores de cascata à sombra hospitaleira
De alto jequitibá, de frondosa mangueira,
A frescura da mata e o livre espaço infindo,
Que existência feliz... que existência fagueira,
Ai que viver tão lindo!
Mas o pequeno mundo de pequenos entes,
De avezinhas gentis que vivem tão contentes,
Vê afinal com terror chegar à mata um dia
De caçadores vis — monstros surpreendentes —
Luzida companhia.
Soluça a juriti, canta a araponga mesta,
Cheias da inspiração que a luz do sol empresta.
Saltitando gentil e sacudindo o orvalho,
Uma pobre viuvinha, uma viuvinha lesta
Voa de galho em galho.
Mas, súbito, o arrulhar tão doce e apaixonado
Da juriti, que chama o companheiro amado
Para as lutas do amor, ressoa além... distante...
E o pombinho feliz, gentil Romeu alado,
Parte no mesmo instante.
Parte, bem longe paira. O doce arrulho cala.
Reboa de repente um estampido e a bala,
Que parte do fuzil, vai ríspida esfuziando,
Folhas derruba ao ramo e rápida resvala
Num corpo miserando.
E agora do pombinho inanimado jaz
O delicado vulto. E nunca... oh! nunca mais,
A floresta há de ouvir o seu cantar saudoso
Quando, à tardinha, vão as aves, aos casais,
Em busca do seu pouso.
1900.
Um dia, pelo inverno, os passarinhos
Aos primeiros palores da alvorada,
Abandonam em doida revoada
A tepidez plumosa de seus ninhos.
Deixam a antiga habitação, de arminhos
E de penas finíssimas forrada,
E vão-se para longe dos caminhos,
Através da floresta embalsamada.
Ó aves descuidosas e felizes
Que o benéfico sol da primavera
Demandais noutros climas e países,
Aves de arribação, trêfego bando,
Eu também vou partir... mas quem me dera,
Mas quem me dera ir como vós cantando!
1904.
Pela janela um céu de maio. Leve
Perfume de jasmins. Rechina um carro.
Contemplo o rendilhado que descreve
No espaço o fumo azul do meu cigarro.
Lá fora, aos bambuais segreda o vento
Uma doce bailada comovida.
Oh! repousa afinal meu pensamento:
Não penso em cousa alguma desta vida.
Tenho uma ideia negra? Logo a varro
Do cérebro e de súbito ela passa
Como passam as nuvens do cigarro.
Dolce far niente! O pensamento agora
É leve como as nuvens de fumaça,
Como as nuvens do fumo se evapora.
1903.
(Valsa de Besucci[13])
Porque será que as doces melodias
Que brotam do teclado,
Levam minh’alma aos venturosos dias,
Aos venturosos dias do passado?
Vem-me de longe mágica fragrância
Que a um tempo venturoso me transporta,
Doce ilusão da minha doce infância,
Doce ilusão há tanto tempo morta!
Ouço na igreja o bimbalhar do sino.
Perseguem-se andorinhas no telhado,
Ó meus dias felizes de menino,
Ó santas ilusões do meu passado!
Para onde foi esse viver risonho,
Essa ave de oiro que em meu peito havia,
A repetir baixinho, noite e dia,
A cavatina módula do sonho?
De amores tive o peito constelado:
Eu era pequenino, ela pequena
Ó santinha do altar do meu passado,
Ó perfume das noites de novena!
E as lembranças dulcíssimas da infância
Para minha saudade redivivas,
Surgem nos horizontes, a distância,
Como um bando de pombas fugitivas.
1900.
Teus grandes olhos pretos e formosos,
Teus grandes olhos são como dois lagos,
Onde nadam desejos voluptuosos,
Onde boiam volúpicos afagos.
Na travessia destes procelosos
Mares da vida, escuros e pressagos,
Teus grandes olhos pretos e formosos
São para mim a estrela dos Reis Magos.
Sol, auroras, crepúsculos e luares
Recebem sua luz dos teus olhares,
Que são a luz dos meus febris sonetos.
E eu, se ainda tenho risos para a vida,
É que eu a vejo, doce flor querida,
Pela pupila dos teus olhos pretos!
1900.
A asa que passa, num celeste arpejo,
O nome teu repete, ó linda for!
E conta a história do primeiro beijo
À luz do sol, ao doce aroma e à cor.
Primeiro beijo do primeiro amor,
Que acalentar as nossas almas veio,
Mas, que partiu depois, partiu... Maldade
Maldoso amor! deixando-nos no seio
O áspide venenoso, que é a saudade.
A serpe venenosa e traidora
Abandonou-se em lânguido repouso.
Dorme agora
Em nossos corações fartos de gozo.
Porém, oh sim! há de acordar um dia,
Quando sentirmos a asa do desejo
Cantar numa celeste melodia
A doce história do primeiro beijo.
E então, nesse momento, a asa que passa,
E a luz do sol, e o doce aroma, e a cor,
Repetirão talvez com terna graça
A louca história do primeiro amor.
1898.
Que noite, santo Deus! A espaços relampeja,
E retumbam trovões. Colo o rosto à vidraça:
Na rua cenagosa e triste ninguém passa,
Atra melancolia o céu plúmbeo poreja.
E eu, tão longe de ti... sozinho, no remanso
Da alcova, em quanto fora estronda a tempestade,
Sinto dentro do peito, a soluçar, de manso,
Queixoso, o bandolim de uma estranha saudade!...
1904.
Na rósea nuvem de um sonho,
Chegas. Minh’alma te vê...
Mas, a visão doce e casta
Rapidamente se afasta,
Sem que tu saibas por quê...
Foge... e logo sobre a alma
Pesado manto de treva
A dor estende minaz.
E essa nuvem que te traz,
A mesma nuvem te leva...
Não quero que me visites,
Meu descorado jasmim,
Quando nesta luta insana,
Feroz alcateia humana,
Vocifera junto a mim...
Mas só, no meu quarto, à noite,
Fico instantes que nem sei...
Haurindo o aroma celeste
Das flores que tu me deste
E dos beijos que te dei.
1899.
Quando a alma é todo um tesouro
De ilusões, de sonhos belos,
Erguendo airosos castelos,
Amaste um príncipe louro!
Como um pajem das bailadas
Era esbelto e sobranceiro,
Tinha a altivez de um guerreiro
E usava esporas douradas.
Mas tu, radiosa criança,
Com ele não foste à igreja,
Pois que nunca a gente alcança
Aquilo que mais deseja.
E eu disse num tom profundo:
— “Oh! devaneios cruéis!
São muito raros no mundo
Os príncipes e os donzéis.
Donzel do louro cabelo,
Áureo sonho de menina,
Que nunca a sorte mofina
Te converta em pesadelo!”
Depois, tendo o peito em lavas,
Amaste furiosamente
Um dandy bem diferente
Do príncipe que sonhavas.
Mas o “leão” que era o mais lindo
Mancebo da fina roda,
Morreu mais tarde vestindo
Um fato fora da moda.
E eu disse num tom profundo:
“Amai, amai, corações!
Ao mundo das ilusões
Não chegam vozes do mundo.
Ó peralvilho modelo,
Sonho de moça e menina,
Que nunca a sorte mofina
Te converta em pesadelo!”
Passou-se algum tempo. Os fados
Levaram-te, flor querida.
Ontem meus olhos pasmados
Encontraram-te na vida.
Não vinhas só. Compassado,
Um sujeito narigudo,
Giboso, torto, ventrudo,
Vi caminhando a teu lado.
Era uma figura suína,
Um monstro informe, um camelo,
O teu sonho de menina
Convertido em pesadelo.
1905.
Fumo um cigarro, acompanhando atento
As espirais macabras da fumaça,
Que sobe para o teto, e se adelgaça,
E perde-se afinal pelo aposento.
E enquanto ulula, fora, a voz do vento,
Seguindo o rendilhado que ela traça,
No coração não sei o que se passa,
Mas adormeço as mágoas um momento.
Oh! quantos sonhos, quantas maravilhas
O perfumado fumo das Antilhas
Faz-me sonhar em noites hibernais!
Dá-me de novo o que eu perdido havia,
Dá-me de novo os sonhos e a poesia
Daqueles tempos que não voltam mais.
1902.
Modesta cruz de pau numa clareira,
Onde pipilem trêfegos sanhaços;
Modesta, sim, mas que uma trepadeira,
Para enfeitá-la, cinja-lhe os dois braços.
E que eu repouse ali, na hospitaleira
Sombra do bosque, livre de cansaços,
Como quem, pelas horas da soalheira,
Foge da estrada aos cálidos mormaços.
Ei-lo o túmulo simples que ambiciono
Para deitar a carne fatigada,
Para dormir o derradeiro sono.
Como serei feliz no meu jazigo!
Aves, flores, a mata embalsamada,
E eu a dormir, eu a sonhar contigo...
1905.
[1] Ricardito, era como o tratavam na intimidade a família e os amigos.
[2] O Minarete... Quantas saudades!...
Um pequeno chalé amarelo, no Belenzinho, fronteiro à Rua Cesário Alvim.
Inda existe, conservando bastante do caráter primitivo; é a casa número 372 da rua 21 de abril.
Ocupávamos o andar superior, composto de dois compartimentos apenas, e como das janelas se dominasse a cidade de todos os lados, batizamo-lo — o Minarete. Os “muezins” eram Ricardo, eu e Godofredo Rangel, autor, mais tarde, dessa obra-prima que é Vida ociosa. Muezins, porque “oficiávamos nas aras da arte” e pregávamos aos povos a “verdade estética”... Os povos não nos ouviam, nem sabiam da nossa existência, mas tudo era sonho em nossa vida.
No quintal da casa, muito amplo, visto que naquele tempo a cidade morria ali e as ruas, hoje construídas, não passavam de simples arruamentos, cobertos de mato, com trilhos de vacas e sebes marginais de roseira silvestre, erguia-se a “nossa” paineira. Objeto de perene contemplação para Ricardo, ora nua de folhas e apendoada de frutos oblongos, ora recamada de flores róseas que atraíam todos os colibris da vizinhança, era essa paineira a nossa árvore querida, a musa vegetal do poeta.
[3] José Antônio Nogueira, esse a quem hoje devem nossas letras o Amor imortal e o País de ouro e esmeralda, formosíssimos compêndios de ideias sob forma de romance.
Nogueira aderira ao nosso grupo, logo após a crise mental que o arrancou ao seminário mineiro onde estudava para padre. A eterna história. Caíra-lhe nas mãos um Voltaire, um Renan, um raio de racionalista qualquer e toda a igrejinha da crença, haurida no berço e “escolastizada” no seminário, desmoronara fragorosamente.
Incapaz de mentir a si próprio, deixou a teologia e veio espiar do Minarete o mundo. Tudo em S. Paulo era para ele novidade e assombro, o burburinho das ruas, as mulheres galantes, a eletricidade, o sorvete... Jamais saído de Minas, com a meninice e a juventude asfixiadas no “in-pace” da educação jesuítica, estranho espetáculo oferecia esse ressurreto, alto, magro, anguloso, cheio de braços, cabelos em desalinho, olhos de espanto, roupas inda dos “Pools” de Três Corações do Rio Verde, espécie de profeta bíblico posto de súbito em plena Cosmópolis. Era Nogueira um montão de escombros em procura dum novo sistema de equilíbrio mental.
Reconstruía-se, restaurava as ideias devastadas pelo tufão da crítica. Lia furiosamente, esgotava a lista inteira dos sublimes excomungados do “Index”.
Não conseguia, porém, vencer o vinco do misticismo e sob a obsessão das causas primárias chamava-nos de contínuo à liça.
Cortávamos-lhe a frase com risadas céticas, e piávamos:
— Inda estás em Volney, homem? Que rabada! Olha que já todos aqui vogamos em alto Nietzsche...
— Mas a verdade já brilhava no Ramayana. Valmiky... Novas gargalhadas.
— A verdade! Só aqui no Minarete há três — as “nossas” verdadezinhas...
Nogueira não se afazia ao espetáculo da população da Pauliceia burburinhante na labuta mundana; queria-a contemplativa, na meditação diurna e noturna das causas primárias (não dizia Deus), e chegou a pensar na fundação de um credo novo, misto de catolicismo e ciência. Ricardo cochichava para os visitantes espantados que o viam assim fatal e soturno:
— Caluda! Está incubando o decálogo da religião nova que vai fundar no Brás...
Nessa época travara Nogueira relações com Zola. Atirado à cama, a grenha desfeita pela testa abaixo, o ar feroz, taciturno, devorava um Zola por dia, lançando as brochuras sugadas para debaixo da cama. Às vezes entrava a leitura pela noite adentro, até consumir-se o último toco de vela. E se o lance empolgava, à falta de vela recorria ele à garrafa de espírito de vinho que Rangel trazia sempre ao lado da cafeteira e continuava a ler à luz vacilante da chama azul do fogareiro...
[4] Livro medíocre de um literato de barbica no queixo muito popular em S. Paulo naquela época de pobreza literária.
[5] Houve um período em que Ricardo e seus companheiros de minarete “viveram” o Tartarin de Tarascon, de Daudet. Sabiam de cor o livro e como levavam a vida ao ar livre, em intermináveis passeios pelos campos dos arredores, tudo propiciava essa estranha maluquice. Ricardo era o Tartarin; Rangel, Bezouquet; Cândido Negreiros, Bompard; Arthur Ramos, Pascalon. Havia até o “chameau” — aquele camelo que acompanhara Tartarin à França; era um meninão frangote, filho do inquilino do andar térreo, que tinha a mania de rentar a Ricardo, sem dizer palavra. Viver um romance, um romance daqueles... Pois vivemo-lo, meses a fio. Muitos anos mais tarde, da última vez que perambulei com ele em S. Paulo, antes de dobrar uma esquina, lá nas Perdizes, Ricardo, recordando-se do tempo feliz, entreparou, na atitude defensiva de Tartarin e exclamou olhando para mim com o olhar truculento:
— ”Eux“
E pela última vez nos rimos, com uma saudade infinita do período de ouro da nossa vida...
“Vé! Té”! Ainda reminiscências do Tartarin. Sempre que nos encontrávamos a saudação era essa.
— Vé, Bompard!
— Té, Bezouquet!
Quando algum dos companheiros que moravam na cidade vinha ao Minarete, mal transpunha o portão do jardim já levava a mão à boca, em porta-voz, e desferia o “Vé”! Surgia logo à janela um dos muezins, que retrucava com soleníssimo “Té”!
[6] Cândido Negreiros, o primeiro desertor da rodinha de Ricardo. Faleceu na Suíça em 1909 deixando no grupo um vazio impreenchível.
[7] Raul de Freitas, companheiro inseparável de Ricardo cujos versos sabia todos de cor. Muitas vezes, em nossos passeios, quando o poeta, a recitar, perdia o fio, Raul retomava-o, como memória de sobressalente que era de Ricardo.
[8] Arthur Ramos, outro companheiro de Ricardo, por quem tinha um verdadeiro fanatismo. Companheiro fiel de todas as horas, sobretudo das dolorosas e das perigosas.
[9] O grupo de Ricardo denominou-se um dia — “a cainçalha”. Ricardo era o cão que ladra à lua; Raul, cão de colo, cachorrinho de estimação; Lobato, “bull-dog”; Lino Moreira, cão que ladra e não morde; Tito Brasil, cachorro; Nogueira, cão de frade; Albino de Camargo, o Cunegundes (um cão de rua, vagabundo, que nessa época vivia em S. Paulo pelos cafés), e por aí além.
[10] Como no romance de Daudet havia a rivalidade velha entre Tarascon e Baucaire, os vivedores do romance criaram também uma Baucaire: o Brás, cidade infame onde pontificava o literato de barbica e mais uma caterva de “incompreendidos” cuja imbecilidade corria parelha com a presunção.
[11] Grita de guerra dos tarrasconeses, que quer dizer, suponho eu: — por bem ou por mal serão despejados da janela de Tarascon para dentro do Ródano.
[12] Rangel compôs uma toada para o hino do Minarete, o qual outra cousa não era senão a grita de Tarascon com leve alteração no fim.
Dé brin o dé bran
Cabussaran
Dou fenestroun
de Tarascoun
Dedins lou Rose
Em vez “dou fenestroun de Tarascon dedins lou Rose” o nosso himno rezava: “dou fenestroun de Minaroun dedins lou Tetiose”.
Em vez de Rose entrava o Tetiose, provençalização do Tietê, em cujas águas sujas a cainçalha jurára afogar a pandilha inteira dos vates do Brás...
[13] O nome do compositor é, de fato, Becucci (Ernesto).