Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A Conceição, de Tomás Antônio Gonzaga


Edição de Referência:

Tomás Antônio Gonzaga, A Conceição, introd. e transcr. de Ronald Polito de Oliveira,

São Paulo: EDUSP, 1995.

A CONCEIÇÃO

Canto 1°

Venturosos aqueles, sim aqueles,

que a vista levantando a toda parte,

vêem os grossos chuveiros, vêem as ondas,

as ondas furiosas que se espraiam,

que inundam as campinas, que submergem

as serras levantadas; que não poupam,

que não respeitam nada: mas divisam

uma arca mais extensa, e mais segura

que foi a de Noé, em que se metam,

e suas vielas salvem, bem que a onda,

umas vezes descendo, outras subindo,

umas vezes os leve ao baixo fundo

que tem o mar cavado, e outras vezes

sobre si os levante, até que cuidem

que sobem a tocar nos próprios astros.

Venturosos aqueles que descobrem

esta arca salvadora, mui distante

das terras em que vivem: mas que podem

gozar do seu amparo, apenas queiram

para ela encaminhar ligeiros passos:

mas inda mais ditosos os aflitos,

que querendo salvar-se de um naufrágio,

que sobre erguidas serras já se espraia,

sem largas diligências, sem fadigas

a podem encontrar em toda parte:

em qualquer parte sim, aonde estejam,

e levantem aos céus, que a todos ouvem,

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que te ergueram em Chipre, mais em Pafos;

sobre as infames piras, onde o filho

as chamas devorantes ascendia

com o vento da boca, e mais das asas.

Ainda isto, que disse, é tudo pouco:

queimei o coração, que é mais que tudo,

e dei ao pé de ti suspiros tantos,

tão fortes, tão ardentes, que puderam

fazer incendiar os frescos ares.

Quantas vezes a mãe do cego infame

vendo tantos extremos, invejosa

só para não os ver, voltou a cara?

Quantas vezes se irou com o seu filho

porque era disto a causa, e lhe pedia

que a sua honra vingasse, e me ferisse

com outra penetrante, oposta farpa?

Quantas vezes o filho por mostrar-lhe

a falsa submissão lho prometia,

e depois de voltar à mãe as costas

a todas as promessas lhe faltava?

Verti sangue, verti; queimei as reses.

Provera o pio céu que o não vertesse,

provera o pio céu que as não queimasse!

Ah como estou diverso! Muitas vezes

depois da feia noite tormentosa

aparece a manhã serena, e limpa,

seguida por um sol ardente, e claro.

Muitas vezes aquele que se via

já quase moribundo, vê seu corpo

vigoroso, e robusto, e só por isso

que morto se julgava, e que reputa

a vida, e a saúde um bem celeste

que não tem outra dita a quem se iguale.

Venturoso daquele, que já pode

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Canto 3º

A protetora Palas, que não pode

sofrer a corrupção dos Portugueses,

a quem pelo valor, que ousados mostram,

como um povo de heróis estima e preza.

Esta Deusa propícia receando

o encontro segundo que ajustaram

com as ninfas de Vênus, que só buscam

nos peitos acender-lhes vivas chamas,

a fim de que se esqueçam de vitórias,

de tesoiros, conquistas, e de palmas,

que são os bem sublimes, por que sempre

os peitos Portugueses se abrasaram.

Esta Deusa que sabe que um veneno,

bem que ele seja fraco, repetido

por diversas porções, inficiona

o sangue pouco a pouco até que mata:

intenta socorrer os Portugueses

com empenho tão forte, que cogita

quando isto necessário, defendê-los

lutando com a mesma Deusa Vênus,

que perdê-los intenta, braço a braço.

Quanto tem de formosa a sã virtude!

que até quando se esfria ainda encontra

no peito protetor o forte amparo

dirigido a que as forças já perdidas

de novo se restaurem, ou que ao menos

essas pequenas forças que inda restam

com repetidas quedas não se acabem.

Apenas viu a Deusa que os guerreiros

alegres se aprontavam por que fossem

à vizinha cidade atrás do encanto

e fingidos prazeres que esperavam.

Ela muda o seu rosto, e muda o traje;

toma o traje modesto, mais o rosto

de um seu próprio ministro douto, e grave,

que os expostos guerreiros acompanha.

Mal mudou o semblante foi meter-se

no meio dos já prontos navegantes.

O semblante carrega, e apenas fita

nos seus rostos a vista assim lhes fala.

Que é isto, Portugueses? Vós correndo

aos prazeres de Amor? A uns prazeres

que afrouxam dos heróis as fortes almas?

que voltam os leões, e mais os tigres

numas pombas cobardes, que não podem

fazer outro serviço que não seja

o conduzir da mãe o torpe carro?

Quem entrega os seus braços às cadeias

que lhe bota a beleza inerme e fraca

pode ter a constância que é precisa

para se expor aos riscos de um combate?

Para ver junto aos muros altos montes

de corpos inda quentes palpitando,

de amigos, e parentes; uns vertendo

aos borbotões o sangue; outros sujos

de negro pó a dar finais arrancos,

sem que feche de horror os olhos turvos?

Sem que volte também ao sítio a cara?

Pois isto, Portugueses, inda é pouco?

Terá, terá valor, terá virtude,

para correr ao muro, e sobre o corpo

até do próprio pai firmar a escada?

Subir, e já disposto a que não deve

deixar os seus degraus, sem que consiga

o muro cavalgar, ou sem que dele

precipitado caia, dando aflito

o último suspiro sobre os ares?

Os jardins, Portugueses, só produzem

as flores sem valia. O loiro, a palma

que servem para insígnias do heroísmo

só se cortam nos sítios que se regam

com rios de suor, e mais de sangue.

Enquanto a Protetora assim dizia

os fortes portugueses increpados

se olhavam confundidos, e as rosetas

que a vergonha levanta lhes subiam

sobre as modestas faces: então Palas

que via estes efeitos da virtude

que estava adormecida, conhecendo

que ainda as suas vozes poderiam

ter forças de cautério que avivassem

os brios outra vez das frouxas almas,

fitando com mais força a vista neles

reforça, e continua desta sorte

a interrompida fala. Portugueses:

Cupido fez de Aquiles zombaria

fazendo com que Aquiles se assentasse

no estrado das belezas, que o cercavam?

que despindo o arnês vestisse a saia?

que pusesse à cintura a roca indigna

tirando da cintura a mesma espada

e vós, Portugueses (com que custo

este nome vos dou), vós, Portugueses,

julgais que podereis chegar às chamas

sem que elas vos abrasem? Por ventura

vós sois melhores do que foi Aquiles?

Tendes almas mais fortes? Sois mais sábios?

Os vossos Patriotas, que inda existem,

Portugueses no nome, e mais nas obras,

estarão combatendo os inimigos

vertendo o ilustre sangue, e vós, Lusos,

gastais o vosso tempo a enfeitar-vos

para ir, quais Narcisos, às campanhas

de Vênus, e Cupido? Estareis surdos?

Estareis insensíveis? Não vos movem

as vozes dos amigos, e parentes

que ao socorro vos chamam? Portugueses,

para gozar deleites, para estardes

nos braços das belezas, carecíeis

cortar os tormentosos, verdes mares?

Não há também belezas em Lisboa?

Não tem, não tem recreios vossa pátria?

O valor, Portugueses, não se alcança

por serem nossos membros só nutridos

com nervos de serpentes, e tutanos

dos ursos, e dos tigres: quem pretende

ter valor, e virtude é necessário

ganhar essa virtude e valentia

por meios concernentes: sim, ó Lusos,

não deve obrar ação sem que primeiro

a sua ação conheça, e sem que faça

nas leves conseqüências que ter pode

maduras reflexões em tudo sábias,

abrindo o coração a quanto pode

a virtude excitar: fechando o peito

a tudo quanto pode corromper-lhe

os são desejos que residem n'alma.

Enquanto a protetora discorria

desta maneira forte, os Portugueses,

pondo no chão os olhos, não diziam

unia palavra só, e muitas vezes

sentidos suspiravam, forcejando

por que a sábia Deusa não sentisse

os ardentes suspiros que eles davam.

A Deusa, que isto observa, continua

desta sorte o discurso. Portugueses,

se quereis ir aos brincos tão impróprios

do guerreiro caráter, ide embora:

porém debaixo ao menos de um disfarce.

Imitai, imitai o bravo Aquiles,

depondo os ferros, e vestindo as saias.

Eu irei procurar os bons patrícios,

eu assim lhes direi... Valentes Lusos,

não olheis para a barra. Os companheiros

ficarão engolfados nos prazeres

próprios das frouxas almas. Ide à guerra.

Combatei os guerreiros que vos chamam,

fiai-vos no valor dos próprios braços:

vencereis, e tereis a glória toda,

que os vossos patriotas não pretendem

entrar na partição das vossas palmas.

Repartiu-se a campanha: a vós pertence

soldados combater, soldados homens,

inimigos da pátria: a eles toca

os peitos combater de inermes damas.

E de damas vencidas, sim daquelas

que buscam nas vitórias os remédios

que lhes curem do peito as vivas chagas.

Uma vitória destas, bem que fosse

na verdade vitória, só faria

ao peito generoso muito infame.

Quando a honra tivermos de dobrarmos

ante o trono os joelhos, mostraremos

ao nosso Augusto os peitos; porém como.

Os nossos peitos nus, cobertos todos

de feridas honradas; e os seus peitos

cobertos com as fardas nunca rotas

e de mimosas flores enfeitadas.

Fujamos, Portugueses. deste Porto,

que é um porto empestado: sim fujamos.

Não queirais que correndo atrás da glória,

só venhamos buscar a nossa infâmia.

Apenas isto disse, a Deusa os cobre

com seu brilhante escudo, que trazia

sem que os guerreiros vissem, no robusto,

no firme esquerdo braço. Neste instante

os tentados guerreiros recuperam

o seu quebrado esforço, qual a planta

abatida do sol, que mal recebe

os orvalhos que nutrem, se levanta:

ou qual vergôntea nova, que se inclina

à violência do peso, e apenas sente

o peso de si fora, já se move,

de novo se apruma sobre os ares.

A Deusa, que lhes nota o novo alento,

o seu semblante alegra, e já risonha

lhes fala desta sorte. Portugueses,

a virtude dos homens é sujeita

a despenhar-se em faltas. O sol mesmo

não brilha sempre igual: as suas luzes

que são no meio-dia tão intensas,

quando nasce, e se põe, já são mais fracas.

Os justos também erram:: mas dos erros

só tiram argumentos da fraqueza

que os fazem mais prudentes, e mais sábios.

Os Deuses são somente os que são justos

em todo o tempo, e parte. Aquele peito

que menos vezes erra é entre todos

quem se mostra em segui-los mais exato.

Fujamos, Portugueses, deste sítio:

que se hoje inda podemos fugir dele

amanhã pode ser que a enfermidade

as forças nos consuma, e não possamos,

qual o enfermo que corre à sepultura

se o seu mal no princípio não se atalha.

Os Lusos navegantes que isto escutam

na já frouxa virtude mais se inflamam:

os deleites desprezam, e se haviam

à cidade correr, depõem as galas.

Uns sobem para as vergas, e desferram

os enrolados panos: outros correm

ao grosso cabrestante, e nele enrolam

a corpulenta amarra. O lenho vira,

põe para a barra a proa, e já navega

rompendo sossegado as mansas águas.

Ó Deusa valerosa! que proteges

os da minha nação, e mais a quantos

os buscam imitar no esforço d'alma!

Eu não tenho cem toiros, que degole

nos teus santos altares; porém posso

cantar os teus louvores, que isto vale

muito mais do que vale o sacrifício

em que se alaga o chão de quente sangue.

Vênus, que tudo observa, em iras arde,

corre à vizinha praia, busca o nume

que no porto preside e assim lhe fala.

Já não me chames Vênus; nem ainda

como Deusa me trates. Noutro tempo

bastava o ver meu rosto para ver-se

o mar; em que nasci, envolto em chamas.

Tenho vencido os Deuses; mas agora

já não tenho poder sobre os humanos.

Queria mais dizer: mas os suspiros

lhe cortam as palavras. A Deidade

que preside no porto, surpreendida

deste estranho sucesso nunca visto,

pretende consolá-la: mas debalde,

que quanto mais o busca, mais excita

a força impia do corrente pranto,

qual menino mimoso, que suspira

inda mais, quando a mãe lhe faz afagos.

Apenas o tormento lhe permite

um pequeno repouso, o Deus do porto

com sentido semblante assim lhe fala.

Que é isto, ó grande Vênus? Tu suspiras?

Tu aflita desmaias? Porventura

no céu, aonde habitas, também pode

entrar motivo que produza a mágoa?

A Deusa lhe responde: Sim, no Império

também entra o ultraje, e há de sempre

entrar no céu o crime, enquanto Jove

o castigo poupar do ousado humano.

O Nume se horroriza e assim lhe torna.

E Jove já não tem ardentes raios?

Ou se os tem. já não quer punir ofensas

que aos mesmos céus ultrajam? Quem te insulta

ao ver que um tal delito não tem pena,

não pode aos seus insultos animar-se?

Esse peito insolente, que te ultraja,

é livre do furor e da justiça

do teu potente braço? Dize, aonde

está o teu Cupido? As suas setas

só têm poder nos peitos inocentes;

para punir os peitos que te insultam

não têm mãos, não têm forcas, não têm armas?

Os ultrajes da mãe não são ultrajes

que ao filho honrado abraçam? Vênus, dize,

quem é, quem é o monstro, que te falta

ao devido respeito. A ser daqueles

que estão nas minhas águas, te seguro

um desagravo tal, que servir possa

de freio e de escarmento aos mais humanos.

Assim; ó grande Deusa, assim o juro

pela sagrada Esfinge, a quem não falta

nem o supremo Jove. Eu também tenho

na tua ofensa parte; pois ainda

que sejas uma Deusa de outra esfera,

nasceste como nós também das águas.

A Deusa assim responde. Eu bem conheço

que tens um coração em tudo digno

de ser o coração da Divindade

que manda as águas deste porto extenso.

Se tu assim não foras, não viera

buscar agora em ti o desagravo

da minha própria ofensa. Aquele, aquele

que ali vês ancorado é o navio

que excita a minha raiva. Enquanto a Deusa

estas vozes dizia, com o dedo

apontava o navio Marialva.

Eu quero, eu quero ver este navio

(continua a dizer) naquelas pedras

em vingança quebrado. Aqueles homens

ao meu favor ingratos se atreveram

a voltarem as costas aos prazeres

que eu mesma lhes buscava. Que mais queres

ouvir da minha boca? Sou Divina,

estou queixosa deles. Este agravo

pede a justa vingança, e isto basta.

Se os homens não temerem os celestes,

dentro em mui pouco tempo não teremos

nem templos, nem altares. Isto é pouco:

pararão sobre a terra os sacrifícios,

e talvez se convertam nos ultrajes.

O Nume lhe responde. Ó Deusa! Os Lusos

são senhores do porto, e eu os amo.

Mas isto nada Importa. A tua ofensa

deve ser preferida, pois que vence

sem menor exceção os outros males.

Nem pode ter valia o sacrifício

se a mão, que ao ar levanta o ferro agudo,

as reses avalia em pouco, ou nada.

Apenas isto disse, as águas fere

com o cetro, que traz: as águas correm

com força nunca vista, e arrebatam

o grande Marialva sobre as pedras,

que rodeiam a ilha dilatada,

que da grande cidade está defronte,

e é uma fortaleza guarnecida

que da Ilha das Cobras tem o nome.

O navio se salva por influxo

da protetora Palas: vai dar fundo

num lugar à saída acomodado,

que o Poço se apelida: novamente

as águas o arrebatam e vão pô-lo

em cima da restinga pedregosa

que parte como uma ilha inculta e breve

que o nome tem dos Ratos. Toca o leme

na encoberta restinga, e se levanta.

A gente, que o guarnece, se perturba.

Corre à popa da nau a grande Palas:

põe os olhos acesos na corrente;

a corrente parou, no mesmo instante.

O leme levantado cai e torna

ao primeiro lugar aonde estava.

O navio do sítio se retira,

dá fundo noutro sítio mais seguro,

de mais fundo, e mais limpo, e desta sorte

deste segundo risco enfim se salva.

Apenas o navio lançou fundo

em lugar oportuno, a justa Deusa

ao portaló se chega. e estas vozes

soltou do fundo peito ardendo em raiva.

Ministros desse Nume, que perturba

deste porto o sossego, moderai-vos.

Dizei ao vosso Nume que repita

a essa injusta Deusa, a quem agrada,

este fiel recado. Quem procura

os caminhos da glória, só merece

das mãos dos altos Deuses, que são justos,

benigna proteção, e não estragos.

Que se isto a meio modera, que eu lhe digo

que ponha as suas forças por que busque

dos Lusos a desgraça; pois as minhas

estarão vigilantes a salvá-los.

Que se ela é uma Deusa, eu sou o mesmo,

E sendo ambas iguais, bem poderemos

medir as nossas forças braço a braço.

O navio levanta finalmente

o grosso unhado ferro: os mares corta,

e sai do porto infausto. Tu, ó Palas,

defende os Portugueses, que eles correm

atrás do seu naufrágio. Sim, que as Deusas,

inda que Densas sejam, são mulheres:

mulheres que não deixam que se curem

as chagas do rancor, quando elas nascem

da injúria da beleza, bem que corram

depois da chaga aberta os longos anos:

os anos sim, os anos, que consomem

as mais profundas chagas, que se abriram

pelas ousadas mãos dos mais agravos.

Valerosos Guerreiros, animai-vos:

que os peitos virtuosos, que padecem

em ódio da virtude, por fim podem

dos males triunfar, e quando chegam

os dias do triunfo, ó quanto, ó quanto

formosos lhes parecem os trabalhos!

Não é digno das ditas quem não pensa

que as ditas são uns bens que os céus fizeram

para prêmio dos peitos sofredores,

que mostram os seus rostos sempre inteiros

no fundo abismo dos maiores males.

Canto 4º

No dia, que era o sexto da viagem,

a ofendida Vênus determina

tomar vingança nova: sobe ao carro

que puxam brancas pombas: rompe os ares,

a Éolo procura, mal o encontra,

lhe fala deste modo... Ó Rei potente,

de cujo arbítrio pende a sorte toda

de quem o mar navega. Escuta, escuta

as queixas de uma Deusa maltratada;

dá-lhe o remédio que te pede, e pronto.

Eu tenho imensas ninfas, e na terra

não acharás belezas que se possam

com elas comparar. Se me servires

no que te peço agora, eu te concedo

o número de nove, e também deixo

só na tua eleição a sua escolha.

O Rei assim lhe diz ... ó Deusa bela,

a paga, que me ofertas, é mui grande

mas por isso, que é grande, eu a contemplo

à honra injuriosa. Dize, ó Vênus,

para que eu te obedeça é necessário

que tu me incites c'o valor do prêmio?

Eu hei de, ó grande Vênus, comprazer-te

sem olhar para a paga; pois não quero

que ela tire o valor ao meu serviço

mudando o meu serviço em vil contrato.

Contudo, grande Vênus, não me exponho

a que te persuadas que eu desprezo

vaidoso a tua graça. Sim, eu quero,

eu quero que entre nós se aperte o laço

de uma estreita amizade; entrar na conta

daqueles que compõem a tua casa.

Alcançando este bem, não tenho, ó Deusa,

mais outro bem igual, aonde possa

bater o meu desejo ás suas asas.

Escolhe entre essas ninfas que me ofertas

aquela que quiseres; que eu procuro

fazer-te um sacrifício mais completo

dá rendida vontade: à que me deres

sem reparar qual seja, eu hei de dar-lhe

por ser escolha tua alegre está alma.

A Deusa lhe responde - Ó Rei, eu tenho

uma ninfa que é bela, conhecida

pelo nome que tem de Danopéia.

Não te quero afirmar que a todas vence

na beleza, e nas graças; que estes dotes

não têm nos olhos todos igual peso.

Só te afirmo que ela é entre as mais todas

a quem mais amo, e prezo. Danopéia

será, será, ó Rei, aquela ninfa

que deste feliz dia para sempre

com dobradas prisões nos una, e prenda.

O Rei assim lhe torna. Eu já me abraso

nos ardentes desejos dessa posse;

porque sendo esta escolha escolha tua

não pode escolha haver mais digna e nobre.

Mas nós, ó grande Deusa, depusemos

de parte o teu negócio. Vênus, Vênus

este insulto perdoa; e por que possas

perdoar-me este insulto, ah tu repara

que a causa dele não foi minha toda!

Deixemos os ajustes, Deusa, fala,

que quando se cogita da vingança

que procuras tomar aos teus insultos,

não é, não é decente, ó grande Deusa,

que o tempo se consuma em tais contratos.

A Deusa o modo atento lhe agradece

e prossegue a queixar-se assim dizendo.

Aqueles Portugueses que navegam

no leve Marialva, me fizeram

uma afrontosa ofensa. Mal chegaram

à corte do Brasil, busquei fazer-lhes

alegres seus trabalhos. Fui eu mesma...

O Rei, que estas palavras escutava,

lhe interrompe o discurso assim dizendo.

Suspende á voz, ó Deusa, que eu não posso

consentir que me contes teus sucessos

sem que nisso te ofenda. Se eu quisesse

saber os teus agravos para dar-lhes

castigo equivalente, me faria

desta sorte o juiz dá tua ofensa.

Tu és só o juiz, e és só por isso

quem à pena lhe arbitra: a mim só toca

fazer executar qualquer sentença;

e em ser executor do que mandares

já tenho glória, que não é pequena.

A Deusa novamente lhe agradece

uns tão puros desejos, que se fazem

mais dignos de valor por se explicarem

por tão urbanos termos. Depois disto

seus desejos explica assim dizendo.

Despede, ó grande Rei, o vento irado;

açoita este navio: agita os mares

e bate o seu costado: faz nele

os estragos maiores; mas não mandes

que estes estragos passem ao excesso

de o fazer submergir nas verdes ondas.

Não cuides, grande Rei, que o meu pedido

assenta em piedade; pois assenta

nos desejos ardentes que me abrasam

de querer despicar a minha afronta.

Eu quero que estes Lusos não acabem;

porque quero acabá-los pouco a pouco

ao peso sucessivo dos trabalhos,

que é mal inda pior que a mesma morte.

O Rei assim lhe torna... ó Deusa, espera,

espera um breve instante por que vejas

que o teu pedido é ordem, e tal ordem,

que bem que o coração se oponha a ela,

tem sempre execução inteira, e pronta.

Apenas isto disse, o cetro move;

fere um grande penedo que servia

de robusto postigo a uma cova

onde encerrados tem os ventos todos,

por que dela não saiam sem que tenham

para saírem dela expressas ordens.

Mal tocou o penedo com o cetro,

retirou-se o penedo ao lado um pouco,

e mal se afasta a pedra, sai bramindo

o furioso Noto. Os outros ventos

no profundo da casa se revolvem,

e vêm como em tropel também correndo

para a pequena porta. O Rei previsto

o seu cetro maneia, e com a ponta

fere a pedra de novo; a pedra corre

e caminha a tapar a negra cova.

O Rei se vira ao Noto, que inda firme

as ordens esperava, e carregando

o rosto respeitoso assim lhe fala.

O que Vênus mandar, que tu lhe faças,

isso deves cumprir exato, e pronto:

reputa os seus preceitos os meus próprios.

Não digo bem. Reputa os seus preceitos

que os meus próprios preceitos mais forçosos,

que eu posso perdoar se me faltares;

faltando a ela perdoar não posso.

A Deusa e mais o Noto vão seguindo

O rumo do Brasil, e já descobrem

o grande Marialva que rompia,

como quem de tormenta não pensava,

com todo o pano cheio as mansas ondas.

Apenas viu a Deusa o Marialva

subiu-lhe a cor as faces, e apontando

para ele com o dedo, ao vento o mostra,

e soltando um suspiro assim lhe fala.

Aquele é o navio em que navegam

os loucos Portugueses que me ultrajam.

Despica, pois é tempo. a minha afronta:

agita os mansos ares, que lhe rompam

as velas desrinzadas; move as ondas,

que açoitem seu costado. Veja o mundo,

que se tem atrevidos que me insultem,

eu tenho também ondas, e mais ventos,

que vinguem meus ultrajes; e se forem

outros meios precisos, terei inda

os ministros do céu, que são os raios.

Apenas isto disse a Deusa busca

do sitio retirar-se: talvez fosse

para evitar impia que os lamentos,

mais os humildes rogos dos aflitos,

não pudessem fazer que se abrandasse

o fogo em que se abrasa o duro peito.

Mal do sítio se aparta, o fero Noto

a vingança começa: alarga, e enche

as rugosas bochechas; curva o corpo,

põe na cintura as mãos: respira, e sopra.

As águas pouco a pouco se encapelam;

E dentro em pouco tempo está formada

a tormenta medonha. O bom piloto,

ao catavento firme, agora manda

que o leme se alivie: agora ordena

que se meta de encontro. Os joanetes

e

mais as grandes gáveas já se arriam

para assim se quebrar do impulso a força.

Os punhos do traquete e mais da grande

ligeiros se carregam; os mancebos

pelas escadas sobem por que ferrem

as já descidas velas que, batendo,

os mastaréus açoitam: quais se fazem

em mais velas partidas, quais rompendo

as bem atadas cordas que as seguram

as longas vergas pelos ares voam.

Não se escutam senão sentidas vozes

de quem manda, e trabalha, e o sussurro

do Noto furioso, que assobia

nos moitões e nas cordas, misturado

c'o sussurro também das bravas ondas.

Uma onda se levanta mais crescida

e se deixa cair com toda a força

na proa do navio. O grande beque

depois de levantar-se sobre as nuvens

desce ao profundo infernos já vem outra

mais forte que a primeira, nele bate,

e o grande beque treme: já se enrolam

a terceira, e a quarta, e não podendo

o beque resistir a tanta força

um grande estalo deu e fez um rombo

apesar das cavilhas, que o sustentam.

Com a vitória o Noto mais se alenta:

aperta os beiços outra vez de novo,

ajunta mor porção na. funda boca

dos comprimidos ares; quer soltá-los

e neste mesmo instante ao mal acode

a Deusa Protetora. Corre, e chega

ao portaló que está de barlavento,

e toma o seu semblante. Aqui se mostra

já como Deusa Palas, aos contrários,

ao mar embravecido, e ao fero Noto.

O Noto mal conhece a grande Deusa

turbado se confunde, e sacudindo

as negras asas, deste sítio foge.

Mal o vento se ausenta, os verdes mares

aplacando se vão, já se convertem

em mares de bonança e já parece

que de cansados dormem. O Moreira

um só pequeno instante não sossega,

e sem que perca o tempo determina

que se passe a fazer aos graves danos

que a tormenta causou, o necessário,

o possível conserto. A ordem sábia

com prontidão se cumpre, e sem falência.

Ao beque já se lançam duras cordas

que o fazem reduzir ao velho estado.

Depois de reduzido se lhe pregam

firmes castanhas, três de cada parte.

que fortes o sustentam Pela proa

sai o deitado mastro, e este mesmo

também solto ficou, porque faltara

o beque a que se prende. Já lhe passam

uma forçosa trinca, que o segura

ao beque consertado, e além da trinca

o seguram também com grossos cabos.

Depois que o mar serena se descobre

uni mui formoso carro que voava

sobre as já mansas ondas, mais ligeiro

que as setas voadoras. Ele vinha

puxado por Delfins, em cuja conta

não entrava o Delfim astuto e sábio

que ajustou de Netuno o casamento

com a bela Anfitrite, que este em prêmio

está nos altos céus mudado em astro.

Em cima deste carro majestoso

se assentava Anfitrite, e o seu semblante

enchia de prazer o ar em torno,

enchia de prazer também os mares.

As ninfas, que este carro acompanhavam,

mil círculos faziam sobre as ondas

só por darem prazer à sua Deusa;

umas vezes nas águas mergulhavam

as erguidas cabeças e surgiam

dos rostos apartando os seus cabelos.

Outras vezes corriam à porfia

as águas dividindo com os peitos.

Quais depois de cansarem se apegavam

ao carro de Anfitrite; quais imóveis

nas águas se sustinham e formavam

uma bela alcatifa matizada

da cor do mar e corpos, branca, e verde.

Os peixes sobre as águas se moviam

saltando de contentes, e as famintas

gaivotas, que voam, não desciam

dos ares mansos a pegarem neles.

Até os mesmos peixes inimigos,

amigos se mostravam, nem os grandes

sustentar-se buscavam nos pequenos.

A esta Deusa segue um vento brando

que os ares refrescava; e muitas vezes

pasmado na beleza do semblante

se esquecia bater as leves asas.

Move-se o catavento: os navegantes

desferram o seu pano, e vão seguindo

o rumo para as costas Africanas

compensando com esta nova dita

todo o desgosto dos passados males.

Os Lusos navegantes atravessam

o cabo Tormentoso, a quem diria

que houveram de passar com mansos mares

um sítio, a quem chamaram tormentoso

à triste custa de desgraças tantas.

Aqui se aprontam todos para verem

o deforme gigante, que pôs medo

ao mesmo ousado Gama; porém ele

só de longe aparece, e levantando

sobre o sereno mar o corpo imenso,

em profético sorri assim lhes fala.

O que fazer não pude farão outros,

que eu tenho quem despique o meu ultraje.

O deforme gigante que preside

neste medonho cabo é um gigante

de uma estatura imensa. Os seus cabelos

são limos estirados que lhe descem

pelo grosso costado, e são de limos

também as suas barbas, que lhe pendem,

e tocam da cintura muito abaixo.

A testa é espaçosa, e atrás cingida

com folhas de espadana: as sobrancelhas

compridas e fechadas. Os seus olhos

acesos, e rasgados: beiços grossos;

como troncos as pernas, pouco menos

os dois nervosos braços. O seu corpo

tão forte, e tão fornido, que pudera

suster o céu inteiro, se o céu todo

nos seus fornidos ombros se assentasse.

Traz na direita um pau, em que se encosta,

que formado não foi de um grande ramo;

mas de um crescido tronco. Se levanta

a sua rouca voz o ar impele,

vence o rijo trovão que o mundo assusta,

e faz estremecer o inteiro monte.

Os Lusos navegantes se perturbam

mal ouvem tão funesto vaticínio:

intentam aplacar o Deus Netuno

com puros sacrifícios: não degolam

os enfeitados toiros; mas derramam

nas águas do seu mar o puro vinho.

Netuno o sacrifício não aceita,

que Vênus enfadada é como filha

e a quantos animais beber puderam

das águas com o vinho borrifadas,

para o ódio mostrar tirou as vidas.

Não pára nisto a força do seu ódio.

Ele leva o navio sobre a costa

da Ilha São Lourenço, aonde espera

que o dano não evite: pois que corre

sem que saiba que corre, e sem que possa

prever, e acautelar tão certo risco.

A protetora Palas, que vigia

sobre os amados Lusos, não sossega.

A ilha vai buscar, e sobre a praia

acende uma fogueira. Os navegantes,

mal este fogo avistam, estremecem.

Conhecem que estio perto desta praia.

Arreiam prontamente as soltas gáveas,

com que só navegavam, e conservam

todo o resto da noite a nau à capa.

Com esta prevenção prudente, e justa

apesar dos desejos de Netuno

do naufrágio iminente a nau se salva.

Ó Deusa sem igual! Ó grande Palas!

Tu sim, tu sim proteges a Virtude:

és uma Deusa de ser Deusa digna

por isso mesmo, que a virtude amparas.

Portugueses, correi pelo caminho

da honra, e do valor: correi afoitos,

como sempre correstes. Desta sorte,

não tendes que tremer a dura sanha

dos peitos inimigos, bem que sejam

muito mais que os humanos. Portugueses,

se uma mão se levanta contra o justo,

há outra mão talvez mais forte ainda,

que o dano, que ela busca, lhe repara,

e não só lho repara: mas às vezes

os trabalhos permite, por que o leve

as ditas, e às venturas, que ela mesma

por estes úteis meios lhe prepara.

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística