Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Texto literários em meio eletrônico

Mares e campos, de Virgílio Várzea


Texto-fonte:

Virgílio dos Reis Várzea, Mares e campos: quadros da vida rústica catarinense,

Florianópolis: Editora Insular, 2003.

SUMÁRIO

O mestre de redes

O molho de lenha

A pesca das tainhas

A última fornada

Na ilhota

Os bois xucros

A vela dos náufragos

A cabra-cega

O velho Sumares

História rústica

O André canoeiro

Página simples

Miss Sarah

Separação

À beira-mar

Na roça

Mar grosso

O alemão doido

Núpcias marinhas

Romance de um rapaz

A bordo do steamer

Manhã na roça

Canção eslava

À alma simples dos

marítimos e roceiros catarinenses

A Arte é um recanto da

Natureza visto através de um temperamento.

Émile Zola

O mestre de redes

A Araújo Figueredo

I

Ah! é o inglês, o Tagus!

E a voz grossa e rouca rompeu do caminho, rente à praia, dentre piteiras verdes que lançavam ao céu gloriosamente, do meio da corbeille das folhas, as longas hastes finas, lembrando grandes paus de bandeira nalgum chão de cidadela remota, abandonada à beira d'água, invadida pela verdura espessa.

Então de um grupo palrador de pescadores e roceiros que ali se juntavam sempre pelas manhãs de calmaria, quando fora da faina das redes, alguns rapazes se ergueram gritando:

É o seu Santos. Aí vem ele. Está decidida a teima...

E um vulto baixo, reforçado, tisnado, os cabelos alvejantes, apareceu, avançando, trôpego, num movimento balançado de ombros, destacando vigorosamente no descampado da restinga, que se abria, ali, num pequeno planalto gramoso dominando a vasta baía, daquele lado do continente.

Desde muito, aqueles homens, ali reunidos ao amanhecer, esperando o sinal dos vigias, discutiam com ardor, em frases rudes agressivas, às vezes em conjunto, e tumultuariamente, sobre coisas do mar, manobras de navegação, navios que singravam — quando um steamer apontou além, na barra, todo negro sob a neblina argêntea. Alguns, apenas o fixaram, deram-lhe um nome. Mas outros, obstinados, na presunção de conhecer bem os vapores, discordaram, indicando outras designações, soltando nomes em profusão, no enleamento da controvérsia, nomes estrangeiros, confusos e estropeados:

— É o Finance, o Equateur, o Orénoque, o Polosi...

Outros opunham-se, protestavam:

— Que não! Qual! Aqueles transatlânticos eles conheciam bem. Não! Esse que ali vinha era da Mala Inglesa.

Até que afinal o João Bernardo, um pescador e proprietário de redes, considerado, que possuía o sangue calmo, e se conservara até ali calado, imóvel e taciturno como sempre, sentindo-se irritado com “aquelas baboseiras”, resolveu intervir:

— Que diabo estão vocês para aí a dizer? Ninguém os entende. Deixem vir o seu Santos, que lidou no mar, lá por fora. Ele é quem sabe. Para isso ninguém como ele...

Os outros, então, satisfeitos da ideia, num alvoroço, romperam:

— É verdade, o seu Santos é que vai decidir. Que homem! Conhecia os navios como as palmas das mãos, conhecia-os às léguas...

E estranhavam que o homem ainda não tivesse aparecido ali no alto da restinga, onde era sempre o primeiro.

— Talvez estivesse dando a última na rede do Porfírio, a que só faltavam os chumbeiros. Era um tresmalhão de encher. Não havia segunda. Aquilo, lá fora, ia matar muito peixe...

Mal tinham concluído, quando o velho, que de longe ouvira o berreiro e descortinara o vapor, assomou no alto, exclamando:

Ah! É o inglês, o Tagus!

Efetivamente era o Tagus que, agora, mostrava-se em todo o comprimento, monstruoso, bem em frente à restinga, as grossas chaminés fumegantes, aproado para o fundo da baía, mugindo poderosamente num tom vibrantíssimo de basso profundo, chamando as lanchas da visita...

Aquela hora da manhã, nessa véspera de domingo, o sol enchia todo o céu com o seu velário de ouro. Do pequeno planalto avistava-se, aqui e além, todo o longo recorte da costa, numa desenhação muito nítida. Para um lado, ao norte, destacando num relevo alteroso, a Boa Viagem, branquejando ao alto a sua ermida, os morros da praia das Flechas e os menhirs de Icaraí, evocando saudosamente certos recantos pinturescos da Armórica, povoados de rochas druídicas: e a praia imensa, até ao Canto do Rio, resplandecia nos panos cegantes das areias alvíssimas. Para o outro lado, ao sul, faiscando magnificentemente, como topázio e mica, os grandes lagos azuis e dormentes do Saco de S. Francisco e Jurujuba, onde começa a rudez do longo costão basáltico de Santa Cruz, com o seu perpétuo estendal de escomilha: e estendendo-se em frente, a perder de vista, o mar, manso, majestoso e profundo, achatando-se numa vastidão infinita.

II

O seu Santos é um velho marinheiro que rolou dezenas de anos no mar, ora em navios de vela, ora, mais modernamente, em paquetes, em viagens de longo curso, ou na pequena cabotagem. De uma descendência de pescadores e criado à beira-mar, onde nasceu, na curva branca e arenosa da pitoresca enseada de S. Francisco, bem tenro ainda começou a lutar contra as ondas, cruzando ao longo das praias em pequenas canoas veleiras. Embarcou, porém, pela primeira vez, para o mar alto, aos doze anos, num antigo patacho — o Jovem Princesa. A viagem era para os Estados Unidos e, metido o carregamento, o navio arrancou, uma manhã, por um ardente e dourado janeiro. À barra, quando o casco aproou para o norte, com todo o pano ao vento, e o mar abriu-se, numa vastidão infinita e deserta, para além, para além, e ele viu, popa afora, à distância, ir pouco a pouco esmorecendo a cidade, as serras e a outra banda em frente, com a sua costa risonha, as curvas brancas das praias onde a sua infância cantara e resplandecera — desceu-lhe uma imensa melancolia, uma nostalgia da família, dos que deixara ali, e desatou a chorar sobre a borda, numa intensa saudade inexprimível, que lhe apunhalava o peito. Mas a faina rija de bordo estancou, dentro em pouco, esses sentimentos, e Santos voltou à sua têmpera resistente, de menino afeito a trabalhos, no meio do rumor das manobras, sob o ranger da cordoalha sonora, nas amuradas balouçantes que as vagas lambiam. Ao anoitecer, toda a longa costa saudosa perdera-se de vista, e o mar e o céu foram-se cobrindo ricamente de um azul ferrete, onde apontava, numa vasta e profusa rutilação, a cravação palpitante das estrelas...

Foi nessa primeira viagem que conheceu todos os furores do oceano bravio, quase perdendo a vida. Havia já três semanas que o navio velejava feliz, desde que deixara o Rio. Porém uma noite, num mar agitado e crivado de ilhas, chamado pelo capitão das Antilhas, um tufão de sudoeste caiu de repente, sob uma trovoada sinistra. A princípio o patacho aguentou-se valentemente nas águas, em meio dos vagalhões que o cobriam. Mas um mastaréu rebentou inesperadamente, numa rajada mais rija. Houve um clamor, imprecações e gritos, e logo após, num tumulto gigantesco, a submersão do navio. Toda a companhia, a bem dizer, perecera, salvando-se apenas ele e dois companheiros, no fim de uma batalha tremenda, a que teriam de sucumbir, se não fora a passagem, no outro dia, de um lúgar inglês, que ia para o Mississipi... Voltara depois ao Brasil, continuando de novo a sua vida de embarcadiço, na boêmia do mar, ora em navios de vela, ora a soldadas por mês, em vapores. Fora também, durante muitos anos, boteleiro, no tráfico do porto, e empregara-se longamente na pescaria, quer fora do barra, quer nas águas da baía. Agora, já velho, com oitenta anos, é mestre de redes, guia todos na grande arte, e vive dessas pequenas parcelas que ainda lhe dá o mar. A sua vida presente é madrugar, levantar-se ainda escuro, na disciplina de marítimo, agravada pela insônia de velho, tomar a sua boa caneca de café na cozinha, olhar a criação no terreiro e fazer algumas braças de rede, logo às primeiras horas do dia.

Sentado num mocho, no vão de uma janela, o cesto dos novelos de fio ao pé, as primeiras malhas presas de um prego no portal, voltado para a luz, com o seu velho cachimbo nos beiços, fumegando e cuspindo, Santos move continuamente a agulha de madeira com uma destreza de artista. E o belo tecido louro, cheirando a gravatá, alonga-se e avulta, de instante a instante, por uma multidão de laçadas que ele faz e arranca à malheira polida, ora vestindo-a, ora despindo-a de fios. Depois, deixando o trabalho, encaminha-se para o mar, para o ponto costumado, um alto de restinga, de onde trilhos de cabra feitos a pés, descem até a praia, em que canoas repousam, puxadas, umedecidas pela maresia. Daí, desse alto, que é seu domínio, o Observatório, fumando e palrando arrastadamente, nada lhe escapa — uma vela que passa, lanchinhas ofegantes, pássaros, a cor do mar, das nuvens, os longes neblinosos e vagos...

Em volta dele reúnem-se logo os pescadores e roceiros vadios, para lhe ouvirem as pitorescas histórias de viagens e os bons conselhos sobre a navegação e as pescarias. Porque o Mestre de Redes é infalível no prognóstico do tempo e faz previsões de dois a três dias.

Quando alguém quer fazer com segurança uma viagem, consulta-o como a um oráculo. O velho responde convictamente, peremptoriamente:

Pode ir à cidade, tem quatro horas; antes disso o tempo não cai.

É de admirável exatidão em coisas marítimas. Conhece bom número de paragens litorais do globo, e retém no espírito, em desenhos vivos e nítidos, paisagens e marinhas encantadoras de vários países, e de toda a costa do Brasil até o Maranhão. As águas e o litoral rendilhado da baía do Rio não têm para ele um só ponto desconhecido, desde as enseadas, os canais, até as ilhas e os rios. De longe, de um só golpe de vista, assinala os lugares, caracteriza-os, estabelece a distância. Nunca se engana.

Mas a nota mais viva, frisante, característica, do Mestre de Redes, é o pendor, a obstinação pela crítica, em matéria da grande arte náutica e em todas as coisas. Tem a observação pessimista para a universalidade do existente, um pessimismo de velho, de profissional antigo, julgando a sua época e a sua pessoa superiores à atualidade. É incoercível e inexorável na análise universal, sempre descontente, ralhando sempre, na sinceridade da sua nobre paixão cândida, na despreocupação da sua alma simples. E exerce a crítica longamente, constantemente, a propósito de tudo, de um modo infinito.

Ora é um escaler que passa, cantando nas toleteiras:

— Não vai lá nem em duas horas... Vão esfregando, vão esfregando... Olha o sebo nesse patilhão e nessa quilha!

Se um bote corre à vela: “Nem bolinar já sabem!”; ou um vapor singra para a barra: “Chega-te bem ao costão, e o resto saberás...”. E firmando a vista: — “Não conheço o casco, mas é francês, é dos novos.” E franze ironicamente os ombros, porque tem um desdém pelos steamers novos.

Todo o dia vive falando para si, resmungando, remoendo as próprias críticas...

Os navios velhos, os conhecidos, são para ele uma boa amizade, porque muito bem os conhece. E mirando amorosamente o Trent: — “É um pássaro, um espagão. Vejam aquelas linhas, aquelas saídas d'água. Aquilo, nem um peixe!” Porque, para ele, os navios possuem um caráter e vida espiritual.

O Mestre de Redes, o Santos, é de um aspecto agradável, sadio ainda apesar da idade, com a barba e os longos cabelos cobertos da neblina, da cerração da velhice. A sua larga fisionomia, de uma estrutura leonina, atrai pela rudeza veneranda das linhas, a pele dourada pelo sol dos tombadilhos, mas enrugada, pelancosa, de octogenário. Tem os olhos apagados, enevoados, dos marítimos velhos, porém cheios ainda de acuidade. E a longa boca rasgada, de lábios finos, dá ainda uma ideia da sua antiga e poderosa energia de lobo do mar. Possui numerosa família, filhas casadas e solteironas, que trabalham por si, lavando e engomando para fora, como mouras; ele pouco pode dar. Mas é extremoso por algumas, e adora os netos principalmente um deles, que fez criar em casa, o João.

Apesar de velho, cansado, as pernas trôpegas e os braços já um tanto delgados pela atrofia dos músculos, atira-se ainda algumas vezes ao mar, correndo a vela, guiando da popa as redes, ou patrolando uma grande canoa que vai, de tempos a tempos, carregar na Capital para uma venda da Jurujuba. E é do mar que ainda lhe vem a vida, sendo o pequeno alto, o Observatório, o seu governo, de onde domina as praias, as canoas, os pescadores e os peixes, na atividade constante dos vigias.

III

No meio da alegre algazarra dos pescadores e roceiros, companheiros de redes, o Santos foi sentar-se, como de costume, à sombra de umas velhas aroeiras que dominam, a um canto, o Observatório, com os seus rijos troncos torcidos pelo vento, as suas ramas finas, cobertas de continhas de lacre como gotas de sangue vivo. De um lado, touceiras de cardos, gravatás e ananases do mato expõem os seus seios hostis, armados em guerra, como sabres agudos e denteados, e clavas antigas, eriçadas de pontas, numa ferocidade agressiva e áspera ao meio ambiente. E, em toda a extensão da praia, a restinga, unida, de uma só altura, cuidadosamente aparada, por cima, pelo vento, como uma cerca colossal de jardim antigo, clássico, torturada, alinhada pelo decote da cultura, no tempo de Luiz XIV.

E, por instantes, os olhos claros e pequeninos do Mestre de Redes, ficaram parados, luminosamente embebidos na suntuosidade augusta e na majestade serena da baía.

Era pelo meio-dia. O sol, no zênite, vertia a luz a prumo. Pairava no ar morno uma poeirada diamantina. Perto, a praia de Icaraí debruava a água azul com a sua larga barra de giz. Em baixo do Canto do Rio, sobre as rochas alagadas, o marulho, o arfar contínuo da maré viva. Dilatando os pulmões, o aroma salubre da costa, misto de alcatrão, musgo e algas marinhas, nas primeiras lufadas da brisa.

Então o velho gritou para os homens:

— Olha a viração aí. Que belo dia para um bordejo!

Todos concordaram, numa alegria:

— É verdade, belo dia pra uma corrida!

E, desviando os olhos, o Santos pousou-os próximo na longa faixa da praia faiscante, onde uma saia de chita vermelha perseguia uns rapazinhos. E reconhecendo-a:

— Lá anda a Constança às voltas com os filhos, uns demônios, que a martirizavam, com toda a sorte de tropelias! Garotos, não trabalhavam, não iam à escola, só sabiam vadiar pelos caminhos. E a mãe que se escanzurrasse, a mourejar noite e dia. Também desde que lhe morrera o marido que era aquela lida, pobrezinha!

Os outros voltaram-se a olhar a Constança, que se ocultava agora no sopé da restinga, bradando, numa voz chorosa, irada, muito aflita:

— Ó estupores! ó malditos!

Mas um ruído breve e seco de tamancos rebentou na estrada que atravessava o alto para o lado do Saco de S. Francisco.

E uma rapariga magnífica apareceu, vestida de chita em cassa, toda rubra do sol, com o pretensioso de um samburazinho na mão. Era a filha do Rego, uma morena carnuda, de amplos quadris, seios túrgidos, virgens, cara larga, poderosa. Parecia um encanto, nas suas vestes simples, roliça e apetitosa ante o olhar aceso da matutada.

Ao aproximar-se do Observatório, colheu-a, festejando-a, uma graçola paternal e petulante do velho:

— Ó Marica! ó feitiço!

— Mamãe está doente, seu Santos.

— De quê? fez o velho.

— Da maldita. Aquilo não a deixa mais...

E passou, na luz forte, na exuberância das suas carnes juvenis, fecundas, deixando no ar uma sublevação de desejos...

O Mestre de Redes voltou de novo a contemplar o mar, quando de repente avistou um bote apontando na altura da Boa Viagem.

Vinha fazendo bordadas na linha do vento, em direção à Jurujuba. Mas manobrava mal, muito metido, carregado de gente. E, por vezes, nas viradas, as maretas mais altas, embatendo de popa, alagavam-no. No entanto, as vagas cresciam, espumavam. O vento, na ponta, dava de rajadas. O latino do bote, muito alto e caçado, vergava, e o casco esguio adornava fortemente, deitando a borda n'água.

O Mestre de Redes ergueu-se, olhando-o sempre; os outros, também de pé, cercavam-no, atentos, fixando igualmente o pequeno casco.

A embarcação agora, na volta de terra, afogava-se numa bolina escassa. Governava mal, às guinadas, e, por instantes, num risco, viu-se-lhe de fora o fundo alcatroado.

O Mestre, então, exclamou:

—  Nem sabem dar uns bordos! Já mostraram duas vezes a quilha!...

E à proporção que o bote aproximava-se:

— O bote vira, o bote vira, o bote não aguenta aquele pano! É chegar à ponta e está virado!...

Nesse instante, o bote, em cheio na rajada, voava num turbilhão de espuma. De repente o latino desapareceu nas águas...

O Santos saltou, e numa autoridade:

— Ó gente, vamos lá, vamos ver aquilo!

E descendo tropegamente um dos trilhos de cabra do Observatório com os remadores das redes, tomou uma canoa de voga que estava puxada na praia e, em multiplicadas remadas nervosas, chegaram à ponta, quando já o bote palpitava vencido, afundado até as toleteiras, vazio de passageiros.

A um sinal do Mestre, os homens lançaram-se ao mar e, sufocados, bufando, cuspindo grosso a água salgada, iam jogando para dentro da canoa os náufragos, já desacordados, sob o comentário faceto do velho:

— Escaparam de boas, escaparam!...

Assim retornaram à praia, num total salvamento, com o casco virado a reboque.

E quando, depois de despertos, os passageiros rolavam já num carro em direção a S. Domingos, o Santos, do alto do Observatório, cercado de povo, que eletricamente viera saber, ver, se possível fosse, o desastre, as novidades, bramava:

— Não há mais polícia, nem da Capitania do Porto! O que esses remadores do bote precisavam era de uma boa cadeia e muita chibata para cima daqueles lombos!...

A tarde fenecia melancolicamente, na serenidade espiritual de um poente do Norte, coando-se por um vitral gigantesco de igreja. No alto, o Azul, empalidecido e saudoso, parecia feito da seda murcha e gloriosa de um antigo velário. Toda a linha recortada da costa começava a esbater-se docemente numa sombra azulada. O vento forte do largo extinguia-se, amainava pouco a pouco, em bafejos exaustos. E o mar, o vasto mar poderoso e profundo, reluzia olimpicamente, para além, para além, numa pulverização roxa e sanguínea de acaso.

Rio, fevereiro de 94.

O molho de lenha

Desde meia tarde que o Manuel Felismino batia o campo atrás do Russilho, um belo animal que trocara havia semanas nas Aranhas, pelo seu Alazão. Em camisa, chapéu de palha à nuca, calças arregaçadas, uma corda de embira no braço, e numa das mãos um punhado de milho verde que agitava para os animais pastando ao longe, percorrera tudo embalde para os lados de baixo — o rio do Brás, a Tiririca, as Piçarras. Tomava para cima, em direitura às Coivaras, quando avistou três cavalos galopando à distância, para a banda dos Morretes, parecendo-lhe um deles o Russilho. Botou-se então a toda disparada, gritando:

— Tome! Tome!... Tome! Tome!...

Da roça do Juca Isidro, porém, avistou já os animais cortando a passo para as picadas e, atravessando o caminho do Salvador, foi atacá-los junto ao Capão do Meio. Corria como um desesperado, quando de repente meteu um estrepe no pé, que o fez estacar num berro de dor. Os cavalos, agora numa desfilada, ganhavam o Campo da Coroa, desaparecendo por entre as grandes macegas de riachão.

O Manuel, todo coxo, sem poder firmar-se sobre o calcanhar ferido, arrastou-se penosamente para um velho tronco de árvore que encontrou. Em seguida, cruzando uma das pernas, com a ponta da faca que trazia à cinta começou a extrair, desjeitosamente, magoando-se, a lasca aguda de pau. Mas, numa pressa e nervoso, vendo que não pegaria mais o cavalo, quando tinha de ir sem falta à cidade pela madrugada, praguejava furioso — e seus dedos grossos e calosos tremiam, retardando a operação.

— Agora, ficava ainda a farinha por vender! refletia. E tão necessitado que estava! Só pelo diabo! Mal andara em se desfazer do Alazão, ao menos não saltava cercas como aquela peste do Russilho, que não parava no pasto. Todas as noites era aquilo, desde que o trocara...

E continuava a esfuracar o calcanhar, dolorosamente, com um manejo pesado e áspero de operador rude, quando lhe arrebatou a atenção uma vaga algazarra erguendo-se dentro do mato. Deteve-se, escutando. De instante a instante, risadas límpidas, frescas, cristalinas, esfuziavam, esparsas, no seio oculto das ramagens: subitamente cessavam, e só se ouvia o ramalhar das folhas às rajadas do vento: logo após voltavam, entrecortadas de gritinhos vivos, alegres como um trinar de pássaros: outra vez emudeciam, e se ouvia então um contínuo e sonoro quebrar de galhos secos...

De cabeça erguida, investigando as sebes espessas, cercando o pequeno descampado, a ver se descortinava alguém, o Manuel murmurou:

 — Ah! são as raparigas que andam à lenha, talvez tivessem visto passar os cavalos...

Inclinando de novo o pescoço, apressava-se, às voltas com o pé, já sangrando sob o escarafunchamento brutal da lâmina de aço, brandida rudemente. E súbito, arrancando o estrepe ensopado em sangue, que arrojou para longe, exclamou num alívio, respirando alto:

— Arre! Vai—te, estupor!

Ergueu-se, procurando alguma coisa para envolver a ferida, de onde saía um filete de zarcão, e dando com umas folhas de mamona à beira do mato, entre uns cipós finos como barbante, enrolou cuidadosamente o pé experimentando-o sobre o chão. E, tomando a corda e as folhas de milhos que atirara à grama, internou-se pelas ramarias. Mas as raparigas já estavam longe, porque ele não as encontrou, nem as ouviu mais...

Varejada toda a mata, caiu na planície imensa, do outro lado, onde o campo tem uma amplidão de oceano. O sol, no poente, barrava o céu de lacre. E para cima, o Azul, arqueando-se magnificamente sobre os campos, tinha uma nitidez imaculada. Ao norte e ao sul, as montanhas, recortando-se no horizonte de uma cor esmaecida e saudosa de esmeralda, retinham ainda, sobre as altas encostas, ângulos louros de luz, lembrando uma terra de milho maduro. Embaixo, o gado aglomerava-se, aqui e ali, sob as grandes árvores isoladas ou junto às orlas dos capões, erguendo-se como ilhas, em jatos colossais de folhas no meio da planura verde. Num recanto além, para onde o campo abre, o mar, muito manso, com um clarão baço de espelho. Entre o mar e a planície, os cômoros, em linhas paralelas, como gigantescas coxilhas de giz em pó. Ao longe, na estrada da Cachoeira, um carro chiando monotonamente, carregado de lenha. E cortando o ar, para as bandas da Rua Velha, o som doce e melancólico de uma cantiga.

O rapaz quedou-se, um momento, a contemplar o campo, numa imensa nostalgia, sob o crepúsculo golfando sangue. Distante, nas planícies do Bom Jesus, uma manada de cavalos seguia lentamente para o Campo da Coroa. Então meteu-se de novo a caminho, costeando o mato da Caeira, que percorria toda a frente do campo, do lado da freguesia. Mas, muito preocupado com as raparigas, pois lhe viera de repente à lembrança a Chiquinha Dutra, por quem era louco, e que decerto andava também entre elas, parecia sentir, de vez em quando, como um meigo rumor de risadas. Parava por instantes, mas só ouvia o ciciar queixoso da aragem nas folhas. Depois punha-se de novo a toda, com o seu tome! tome! vibrante. Ao chegar à estrada real, cortando a mata para o interior desde a beira mar estacou de chofre, porquanto a manada tomara outra direção, e ele ouvia, agora, distintamente, para os lados de cima, estalarem as risadas.

Eram as raparigas retirando, com os seus molhos de lenha — as filhas do Manuel Bernardino, a Chiquinha Dutra e as da Luíza Théa. Tinham ouvido a voz dele atravessando o campo, e como estavam sozinhas, temendo a presença de um homem sob as sebes fechadas, saíram logo para a estrada. Mas a Chiquinha ficara ainda lá dentro, num pastinho, a amarrar o seu molho, e elas, inquietas, muito assustadas, com vontade de correr, entraram a chamar:

— Ó Chiquinha! Ó Chiquinha! Apressa-te, rapariga! Olha que aí vem o Manuel Felismino! Corre, mulher, senão ele nos apanha...

E sentiam, avançando sempre para elas, ao longo da estrada, aquele grito contínuo, dolente e saudoso, como um chamamento em vão:

— Tome! tome!... Tome! tome!...

Mas a outra tardava, e as raparigas entreolhavam-se incessantemente, aflitas, os olhos muito abertos, acesos de temor, esquadrinhando a encruzilhada lá embaixo, de onde lhes parecia ia irromper, de súbito, o vulto grosso e possante do rapaz.

A Chiquinha, dentro do mato, conhecera também a voz do Manuel vibrando ao longe, e ficara de repente nervosa, atônita. Espavorida, numa atarantação, não conseguia atar o molho, porque as achas, reunidas à pressa, atabalhoadamente, fugiam, espalhando-se, sob os seus dedos trêmulos. Quando ouviu os chamados das amigas, teve um desatino: sem poder mais amarrar a rebelde lenha, abarcou o feixe inteiro com os braços e, num último esforço, precipitado, deitando-o às costas, largou a correr. Mas, desorientada, cheia de perturbação, em vez de tomar para a estrada, enfiou pelo carreiro da Estiva, e nunca mais encontrou as outras que, sem a ouvirem, e desconfiadas da tardança, já haviam rompido a caminhar a toda...

O Manuel Felismino, não ouvindo mais as risadas, detivera a marcha junto a uma grande figueira, que sombreava a estrada com a sua linda e gigantesca umbela verde de folhas. Aí entrou a considerar para que lado teriam tomado as raparigas, quando se lembrou de repente de ir até a Estiva. Talvez andassem por lá!

Antes de retomar o caminho, porém, para não dar mais passadas em vão, resolveu subir a árvore, de cujo cimo se descortinava tudo para aquelas bandas; e mal galgara os primeiros galhos, planando já acima dos arbustos em torno, o pasto da Roça de Baixo se lhe estendera à vista, muito verde ainda à luz fria e cinzenta da tarde. Então, esticando-se todo para a frente, agarrado à extremidade de um ramo, lançou um olhar para além envolvendo a paisagem inteira na sua grande visão. De repente, viu surgir na fita branca de um estreito carreiro uma saia de chita vermelha, cujo corpete desaparecia sob um molho de lenha. E fixando o vulto por instantes exclamou ruidosamente:

— A Chiquinha! A Chiquinha!

Imediatamente jogou-se tronco abaixo e rompeu a correr naquela direção.

A rapariga, agora, morta de cansaço, as pernas trêmulas, as costas a doerem-lhe, parara esbaforida: sentara-se, ofegante, sobre a lenha que arrojara ao chão, olhando a crescente sombra invadindo os maciços de folhagem e a superfície reluzente de um banhado ao pé, onde parecia ficarem congelados, numa placa polida de estanho, os últimos clarões do poente... Mas a agitação em que estava e os sustos contínuos, com a ameaça aterradora da noite a cair, levaram-na logo a erguer-se. Tentava juntar de novo a lenha, que se esparramara sobre o capim, quando sentiu um rumor mais forte nas folhas. E, com um brilho louco nos olhos, espavorida, desvairada, deitou a fugir, abandonando tudo, rasgando-se e arranhando-se toda pelas sebes do caminho. Corria numa alucinação, como perseguida, os cabelos no ar, aos gritos...

Ao varar a Estiva, o Manuel já não a via mais, encontrando unicamente o molho de lenha, abandonado no chão. Tremia também, agora, ouvindo a repercussão nostálgica daqueles gritos, ecoando pelas matas, abalando, perturbando a doçura melancólica das ave-marias. Receava que fossem ouvidos lá em cima, na freguesia. E timidamente, num temor ingênuo de alma casta e primitiva, arrependido de ter seguido a rapariga — teve subitamente um movimento de fuga com medo de que alguém acudisse. Mas vendo o molho de lenha, ali de rojo sobre as ervas, susteve-se, refletindo. E, enternecido, pensava na falta que aquela lenha não faria na casa da tia Sebastiana, a mãe da Chiquinha, que quase não se podia mover, paralítica das pernas, havia anos, numa viuvez desolada. A filha é que lhe fazia tudo, com a sua robustez de novilha — plantava a roça, acarretava a água e a lenha, desde menina, numa tarefa penosíssima, sempre alegre, entretanto, com o seu lindo rosto rosado e os cativantes olhos magníficos.

— Mas a culpa era dela! exclamava, numa emoção íntima, os olhos rasos d'água. Sempre a fugir dele, a arisca! Nunca se vira uma coisa assim! Havia quase um ano que era aquilo! Ele sempre a afagava, a segui-la, numa ternura de cão; ela sempre a repeli-lo, com um desprezo esmagador! Já no outro dia, na fonte, quando se lhe aproximara, pedindo-lhe que o ouvisse, porque já não podia mais — ela voltara-lhe as costas desdenhosamente, fugindo! Uma noite, no engenho do Marcelino, brincando o Tempo-será, despedira-se só porque ele aparecera! Ah! era horrível! Mas ele ia mostrar-lhe agora o mal que lhe queria...

Então, amarrando a lenha e pegando-a às costas, começou a caminhar. Muito feliz, com aquela carga amada onde ela deixara como o perfume das suas carnes virgens que ele sorvia arrebatado, rompeu a cantar.

Anoitecia. Os furos de alfinete das estrelas começavam a reluzir, cor de prata, no céu negro e macio. Na encosta escura, aqui e além, lumes ardiam, nostalgicamente, entre a verdura. E pelas moitas altas da estrada, o cri-cri fino e metálico dos grilos.

Chegando ao terreiro, o Manuel, sem ser pressentido, atravessou para os fundos, indo depositar a lenha de encontro à parede da cozinha, onde flamejava o braseiro. Por uma fresta, lobrigou a Chiquinha fazendo a ceia, agachada no chão, junto às chamas vermelhas, enquanto a mãe, muito magra e nodosa como uma velha palmeira, cruzada sobre um roto pedaço de esteira, fiava o gravatá rodando destramente o fuso nos dedos. Ali ficou longas horas, a olhar ternamente aquele recanto de lar, doce e humilde, ao qual queria bem pertencer...

No outro dia, pela manhã, a Chiquinha Dutra teve uma grande surpresa, ao deparar com o molho de lenha no terreiro. Calculou logo que tinha sido o Manuel, e, pela vez primeira, ficou pensativa, num enternecimento, num enlevo, invocando o nome dele. Perdia-se num tropel de recordações. Via-o, pela imaginação, aproximar-se dela, terno, sincero e bom, implorando-lhe ansiosamente o seu amor, numa voz meiga o trêmula, acariciadora, como no dia em que lhe apareceu junto às pedras da fonte. Mas já não fugia, fascinada e tonta, presa à luz viva dos seus olhos penetrando-lhe o coração. E concluía, meigamente, numa grande piedade, os olhos cheios de pranto:

— Que devia corresponder-lhe... Sim! corresponder-lhe, entregando-lhe as sua alma! E ser só dele, devotadamente, e para sempre!...

E, intensamente abalada por essas reflexões, na sinceridade e na emoção profundíssima do seu primeiro afeto, entrou em casa soluçando...

Daí por diante, todas as tardes, quando ele passava da rede, ela ia esperá-lo à porteira, sob a fronde das velhas laranjeiras murmurosas, à hora em que o sol cai no acaso, ao reluzir das primeiras estrelas...

Rio, 1893.

A pesca das tainhas

A Manoel Curvelo

I

Do lado de leste, do mais alto cabeço da penedia, o vigia rompera a acenar com a sua camisola vermelha. Era um magote de tainhas que negrejara ao longe, à superfície do mar verde, caminhando na direção de terra.

No rancho do Amaro, a muitas braças distante, estavam as duas canoas grandes, carregadas de redes, puxadas de popa até meia praia, sobre grossos rolos enormes, com as suas proas finas e alterosas de gôndolas que cortam as vagas iradas. Voltadas para o mar, na maré que subia às vezes arrancavam por si mesmas, investindo contra o oceano, na arrebentação espumosa. Então os tripulantes, camaradas e ajudantes das redes, que se achavam deitados, à espera que o peixe aparecesse, fumando e palrando à sombra do rancho que o vento do mar refrescava, acudiam correndo e, atirando-se às ondas revoltas que os enchiam até a cintura, voltavam com elas de rastos, praia acima, segurando-as pelas toleteiras e bancos, todos curvos e rubros naquela rude aplicação muscular.

De repente, o Delfino, um dos proprietários das redes, que estava de pé sobre um cômoro, a fixar o mar e vários pontos da costa com os seus olhos de grande visão, deparou com a enorme manta de peixe, ao mesmo tempo que dera com o sinal do vigia: e no atabalhoamento constante de nervoso, os braços no ar, botou-se a toda para o rancho, a gritar:

— Lá estão abanando! Lá estão abanando! Repontou agora, na altura dos Ganchos, uma manta de peixe que é um Deus nos acuda! Corram! Olha as canoas que larguem. Depressa!...

Todos ergueram-se a uma, olhando o mar, com as mãos arqueadas sobre os olhos. Gritos estrugiam de todos os lados:

— É verdade, que alentada que era, Nossa Senhora! Nunca se vira tanto peixe assim! Eram para mais de cem mil! Aquilo ia coalhar tudo...

Além, de pé, sobre a rocha alta, o vigia continuava a acenar.

As canoas largaram imediatamente para as bandas da Ilhota, afogadas em rolos de espuma que rebentavam ruidosamente à proa, levantando-as no ar. O pessoal das redes deitou a correr por terra, abanando também. O peixe vinha pouco a pouco acostando, entre a ponta do Rapa e as Feiticeiras. Aí as canoas aportaram por instantes, largaram em terra o calão, que um camarada segurou logo e fizeram-se ao largo, contornando por fora, em perpendicular à praia, o magote inteiro, agora mais conglobado na volta da enseada.

À proporção que se afastavam as canoas, o patrão, à popa, ia dando cabo — e a beta negra desenrolava-se, o chicote em terra, o seio a riscar as águas balançantes. Depois, lá fora, além, as embarcações descreveram uma curva em direção ao Canto das Pedras e as cortiças redondas começaram a flutuar, espaçadas na tralha, como um cordão de enigmáticas reticências, que os vagalhões sacudiam e desalinhavavam no seu dorso espumoso.

As canoas aportaram de novo, vazias, alagadas das invasoras ondas hostis, conduzindo a outra ponta da beta, que traçava sobre o mar como o desenho gigantesco de uma ferradura.

Naquele dia era esse o primeiro lanço.

Os ajudantes e camaradas, arrumados em duas turmas, uma a cada ponta do cabo, entraram a puxar as redes em fila, a um de fundo, com os pés fincados no chão, caminhando de costas, num esforço lento e poderoso de bois de canga, como se estivessem a arrancar alguma pesada, invisível riqueza do fundo torvo do mar. Mas parecia trabalharem esterilmente, porquanto o serviço não avultava senão em rolos infindáveis de cabo, que rapazinhos arranjavam, aqui e ali, por sobre a faixa branca da praia.

Entretanto o enorme disco preto de ferradura diminuía aos poucos e as cortiças balançantes se aproximavam mais...

II

Era em princípios de junho, um domingo de tarde. No alto, o céu límpido e azulado arqueava-se numa translucidez magnífica. À margem das estradas arenosas e brancas os coleiros dobravam nas ramagens altas. Sopravam leves aragens de norte, cálidas ainda neste começo de inverno. Os cafezais tufados cercam as casas de basta verdura carinhosa, e os laranjais estrelados de frutos de ouro murmurejam e lançam perfumes capitosos, que enlanguescem as lindas raparigas alegres que perpassam, aos grupos, faceiras e de mãos enlaçadas, convidando-as a amar pelos caminhos agrestes. Os campos de Canasvieiras verdejam e criam, com os seus altos capões de mato, banhados de sol, adormecidos e cheios de silêncio numa paz luminosa.

As filhas do Amaro, como haviam combinado pela manhã, na missa, com as primas da Cachoeira, estavam já à espera, sentadas ao paredão do terreiro, com os seus paletós brancos bordados, vestidos de chita em cassa e fitas azuis no cabelo. Iam até a praia ver as redes cercar, porque o dia estava admirável. Tinham-se juntado as duas redes, a do pai e a do Delfino, da Várzea de Baixo. Depois o Justino, o primo da cidade, o filho da tia Josefina, havia chegado na véspera à noite, com uns moços, para o batizado do filho do Chico Abreu e, segundo tinha dito, na igreja, talvez fosse até a praia, de tarde, com os companheiros, que desejavam assistir ao lancear das redes.

E as raparigas do Amaro tinham logo ferrado namoro com dois dos rapazes, apesar de uma delas, a Candoca, achar-se comprometida com o Zé Souza, um rapaz moreno e robusto que era patrão das redes.

Eles já tinham passado, os rapazes, pois que a Rosa do Albino os avistara lá do morro, quando fora mudar a vaca.

As primas chegaram dali a instantes; mas antes mesmo de se beijocarem, as outras, que já estavam inquietas, romperam a se queixar da tardança:

— Ave Maria, que tempo levaram! Já pensavam que não vinham! Tanta demora! O que tinham feito até aquela hora, as preguiçosas?...

As primas atalharam logo, sorrindo:

 — Cruzes, mulheres! Que impaciência! Pois a que horas queriam que viessem? Aquilo também não era sangria desatada...

E todas juntas desceram a escada de pedra, apressadas, a cochichar ao ouvido umas das outras, com risadinhas sonoras: tomaram à direita, muito alegres, pela estrada a fora, com as fitas ao vento, numa palração animada.

Homens a cavalo, vindos de longe, das Aranhas, dos Ingleses e das Capivaras, passavam por elas, dando-lhes “boas tardes”, trotando. As raparigas não respondiam quase, gracejantes, tolhidas por ondas de riso torrencial, zombeteiro e cristalino, riso perene e roceiro das moças em bando. E prosseguiam, enchendo o caminho de gorjeios e sonoridades inefáveis, a se beliscarem entre si, aos empurrões e aos saltos, sentando-se às vezes na areia clara a repousar por instantes, outras disparando loucamente, numa inquieta expansão adorável. Assim chegaram à praia.

O sol ia rolando no poente dourado: a praia branca faísca e um canto de mar reluz fantasticamente, coalhado de ouro, com intensas espelhações cor de brasa.

III

Os camaradas e ajudantes das redes colhiam, agora, com admirável trabalho de destreza, as primeiras malhas. O peixe sentindo-se em seco, entrou a saltar, aos milhares, com relâmpagos cor de prata, indo caído outro lado da tralha, com um ruído de mancheias de pedras arremessadas à água. Cavaleiros, homens a pé, mulheres, crianças, afluíam, correndo de toda a parte. E o peixe começou a alastrar a praia, numa onda viva e colossal de corpos fulgurantes, torneados, polidos, como formados de aço, a se debater, aos roncos, numa angústia e convulsão de morte, as bocas abertas, ofegantes, como exalando almas. Eram tainhas do corso, de mais de meio metro, lançadas ali aos milhares, de barriga argêntea e dorso verde negro, a cabeça alentada, a chicotear tremulamente, com as escamosas caudas de prata, o pó alvo, granulado da areia. As redes rojavam agora, em desordem, naquele pedaço da costa, com o seu esburacado tecido de malhas, à maneira de velhas bambinelas rasgadas, sacudidas à babugem e lixaria das praias.

Mas os remadores das canoas volveram logo a cuidar das redes, lavando-as e embarcando-as com prodigiosa atividade, enquanto o resto do pessoal pegava as tainhas no lagamar e sacudia-as ao alto da praia, contando-as aos pares, num. enorme montão que aumentava.

— Cem mil! gritou o Zé Souza, erguendo-se e mandando botar para baixo o canoa que patroava.

As filhas do Amaro e as primas olhavam, de cima de um cômoro, palrando alegremente, ao lado do Justino e dos outros rapazes, que comentavam com admiração o prodigioso lanço. Filhos da cidade, assistiam pela primeira vez, encantados, àquele belo espetáculo. Só o Justino, que ali nascera e ali se criara até os quatorze anos, havendo capinado outrora a sua terra e puxado a sua rede e o seu carro, e que, não fazia muito tempo, deixara o sítio para se ir empregar na cidade — mostrava-se indiferente a tudo aquilo. Contudo, às vezes, nos momentos de desânimo, que de saudades! dizia. Os outros afirmavam que aquela vida era incomparável, não havia melhor. E diziam querer envelhecer e morrer, serenos e cheios de paz, em um sítio como aquele, com uma rede de pesca, uma roca, um cavalo de montaria, uma junta de bois e um jarro, numa casinha branca, com o engenho da farinha ao lado, entre pomares, ouvindo os sabiás cantar nas laranjeiras em flor.

As moças riam, replicavam :

— Qual! Era o que eles diziam. Não havia nada que se comparasse à cidade. Aquilo era um deserto, cheio de tristeza e miséria. Nem bailes havia! nem festas! nem procissões! nem nada! Bem o podiam dizer elas, que ali passavam a vida...

Mas o Zé Souza dera com as raparigas e ficara a espreitar um bocado, surpreendido, por trás de uns cavaleiros apeados — roído de ciúme, com uma palpitação repentina e relâmpagos de ira no olhar. Já desde a véspera, à noite, em casa do tio Amaro, na varanda, quando chegara e encontrara aqueles pacholas, tinha notado que a Candoca não tirava os olhos de um deles. Marcara bem o sujeitinho, muito disfarçado, a rir e a contar proezas. Aborrecido, quisera-o rebentar a murros, logo à saída de casa, mas não o fizera por atenção ao Justino, que era seu amigo, mesmo porque pensara, que a história não fosse adiante, pois eles retirar-se-iam naturalmente após o batizado. Mas ali estavam ainda — ele muito tolo, ela muito derretida, a lambisgoia. O rapaz que não se fiasse, entretanto, e se pusesse bem com Deus, porque ele já se ia azedando e era muito capaz de lhe acabar com a casta.

Com efeito o Zé Souza andava triste, sombrio passara a noite em claro e amanhecera desfigurado, cavado, com uma grande agitação.

Os camaradas, que haviam notado o transtorno perguntavam-lhe :

— Oh! Zé, o que é que tens, rapaz? Olha que estás hoje com uma cara... Vá se ver que te fizeram por ali alguma!

O Zé Souza desculpava-se :

— Que não! Nem sempre se estava para rir. Depois era melhor que o não incomodassem...

Os amigos não lhe tornaram a falar mais nisso, mesmo porque a faina das tainhas, absorvendo-os, apagara de todo aquelas impressões...

Mas na canoa, que estava a largar, os tripulantes entraram a gritar pelo Zé Souza. Ele voltou-se de súbito:

— Já lá vou!

Em seguida, de um pulo, galgou o espelho da popa, e caiu em pé no paneiro, governando a canoa, que saltava na vaga — intrepidamente, com agilidade de profissional e de artista.

A outra canoa já se fizera também ao mar.

Iam dar o segundo lanço. Mantas de peixe sucessivas vinham demandando a costa, à aproximação da noite.

Na praia, havia agora uma aglomeração de povo. A notícia das cem mil tainhas mortas à tarde — o maior sucesso da pesca naquele ano, no lugar — levada de boca em boca para o interior, despertara a boa gente dos sítios, entediada e vazia nesse longo dia de descanso. E a população das freguesias mais próximas parecia vazar-se toda para ali, à maneira desses pequenos riachos que a baixa-mar entope, mas que nas grandes marés abrem foz e se expandem para o mar.

IV

O sol desfalecera de todo, entre púrpuras luminosas, quando teve lugar o segundo lanço das redes e desta vez cento e cinquenta mil tainhas foram arrancadas ao seio inesgotável do oceano. Imensos montões de peixe juncavam a praia, semelhando prateadas dunas, que nesse instante imergiam na poeirada negra e invasora do crepúsculo. Uma aragem fria agitava os palmeirais e o céu no alto começava a se dourar de estrelas.

As raparigas do Amaro e as primas, alegres e palradoras naquele prazer e bom humor que o namoro produz, acompanhadas pelo Justino e os amigos, tinham-se ido recolher ao rancho, onde o velho pai se achava e ardia o lume confortante e doce de uma fogueira. Aí acomodaram-se todas, e mais as da Luíza Théa, que iam chegando, em duas pequenas canoas que havia, enquanto os rapazes ficaram à porta, encostados ao esteio grande da frente.

O Delfino tinha dado ordens para que fossem à Rua Velha arranjar os carros para a condução do peixe. As redes já estavam a enxugar, recolhidas aos varais. E as canoas grandes de voga carregavam, prontas a seguir para a cidade, pela madrugada.

Mas o Zé Souza, que seguira tenazmente do mar, da alta popa da sua canoa, num ódio surdo, oculto e oprimido no peito como o explosivo das bombas, o triunfo do rival, sentindo o coração amantíssimo num despedaçamento supremo à ruinaria daquela paixão que era a alegria e o encanto de toda a sua vida — mal largara o trabalho, viera encostar-se sorrateiramente a uma das empenas do rancho, do lado dos fundos, a espreitar, por entre a tiririca espessa do teto achaletado e baixo, a fim de melhor certificar-se daquela imerecida traição que o alanceava e torturava tanto. E vendo a maneira por que o rapaz e ela se entreolhavam e sorriam, cheios de ternura, à chama saudosa daquele fogo, que estava para ali a arder, entrou a sentir um grande dolorimento e uma grande saudade do tempo em que fora tão querido e tão amado por ela que, muitas vezes, se encontravam sozinhos, aos abraços e beijos, à sombra dos laranjais...

Acometeu-o uma horrível aflição, que lhe traspassava o peito com um regelamento de gume afiado, quase a sensação arrepiante e mortal de mil lâminas elétricas, espetando-lhe furiosamente as carnes. Veio-lhe um acesso de lágrimas, e enterrava nervosamente as unhas no esteio onde se apoiava para poder sofrear os soluços contínuos que lhe estrangulavam a garganta. E, por instantes, os objetos em volta começaram a dançar-lhe sob os olhos alagados, onde toda uma fileteação de cristal lhe raiava as imagens, roubando-lhe a nitidez da visão. Muito perturbado, a esfregar desesperadamente as pálpebras, com a cabeça a latejar de dor sob o acelerado martelar das artérias, que uma forte circulação produzia, teve de repente uma ideia cruel de vingança — esbofetear ou destripar ali mesmo, em presença de todos, o miserável que ousava destruir os seus afetos e perturbar a paz do seu coração. E alucinado, investiu para a porta do rancho. Mas estacou de chofre, porque os rapazes haviam agora entrado, e o tio Amaro estava lá dentro para impedir o plano. E mordendo os beiços, numa fúria e numa medonha irritação animal, resolveu aguardá-los, mas sem ser visto, do lado de fora, firme e de pé como uma sentinela.

Vinham chegando os primeiros carros, que faziam uma volta perto do rancho, rolavam para trás, indo encostar o arcavero de encontro aos montões de peixe. E ouvia-se no escuro a voz grossa do carreiro:

— Eh Cativo! Eh Estrela! Fasta... fasta...

Os homens das redes entraram então a jogar o peixe para dentro das sebes, sobre o estrado do carro, aos trambolhões, numa faina de mil diabos. E de tudo aquilo exalava-se um cheiro acre de maresia.

O Amaro saiu então a dar ordens, enquanto o Delfino, por outro lado, despachava a multidão de compradores de peixe, repartia o quinhão dos ajudantes e dos camaradas, jubiloso e risonho, continuamente a bracejar e a falar, na sua grande animação, daquela pesca opulenta. Na escuridão, ora mais condensada, havia um movimento ruidoso, uma completa confusão de silhuetas que se cruzavam fantasticamente, como num pesadelo dantesco. E através de tudo, ouvia-se, de vez em quando, um intenso rosnar de cães esfomeados, que disputavam o sustento.

Era uma lufa-lufa. Todos queriam ser simultaneamente servidos. Uns apossavam-se dos quinhões dos outros e vice-versa. Ninguém se entendia.

O Delfino então protestava, opunha-se :

— Que esperassem, os diabos! Que esperassem...

As raparigas e os rapazes acudiam à matinada, iam deixando o rancho, quando o Zé Souza saltou de repente de um canto, segurou o rival pela garganta, meteu-lhe um joelho no peito, sacudindo-o longe, por cima de um montão de peixe. Em seguida cavalgou-o, crivando-lhe a cara de punhadas hercúleas, sob as quais o sangue espirrava, em jorros...

Todos então correram, gritando

— Não o mates! Não o mates!

E seguraram o Zé Souza, que debalde se debatia, rosnando:

 — Deixem-me! Deixem-me! Quero ensinar este cão!

O Amaro e o Delfino intervieram também:

— Tu estás doido, ó Zé? Toma juízo. Tu não tens vergonha?

O Zé Souza afastou-se então, de cabeça baixa, silenciosamente, metendo a camisa para dentro das calças. O outro, cercado pelos amigos, levantou-se, tonto, todo sujo, a cara devastada, ensanguentada, empastada de areia, os cabelos revoltos, à procura do chapéu.

As moças, acometidas de grande susto, muito nervosas, tinham-se refugiado no rancho, sem terem podido perceber bem o barulho — e permaneciam ainda inquietas, trêmulas, todas pálidas, a perguntar:

— Que fora? Que acontecera, Virgem Maria?

O Amaro apareceu ao momento, com o seu rijo carão severo:

— Andem! Vamos! Só tinham vindo ali para aquilo... E até aquelas horas!...

As moças, muitos sérias, muito tristes, puseram-se a caminho, sem uma palavra.

A multidão principiava a retirar-se.

Os carros, completamente atulhados, rolavam já pela praia acima, os rodeiros enterrados na areia, chiando monotonamente. Os carreiros, na frente, a aguilhada ao ombro, iam cantando a Tirana. E além vinha despontando a lua, redonda e branca, a iluminar tudo com a sua luz fria e de prata.

Rio, 1891.

A última fornada

A João Ribeiro

Naquele dia era uma lufa-lufa no engenho do Rosas. Desde meia tarde que aquela boa gente trabalhadora algazarrava expansiva, na doce alegria bem ganha de uma rude tarefa acabada.

A mandioca daquele ano — abundante que nem erva, Jesus! — dava quinhentos alqueires e estava toda reduzida a farinha, e farinha torrada e clara, parte ensacada e parte empaiolada já, a que era para negócio e a do gasto da casa. À boca da noite, quando o nordeste de junho, mais afiado e cortante, assobiava e gemia na palha do engenho e nas laranjeiras em redor, após o desfalecimento radiante do sol — fora retirada a última fornada, em largas cuias de meio alqueire. E a família da casa, e moças parentas que tinham vindo ajudar a farinhada, peneiravam umas, numa pequena gamela bem limpa, massa para beijus, enquanto outras a conduziam já para o forno, aglomerando-se em roda e distribuindo-a aos punhados que, dispostos em ordem sobre a chapa escaldante, tomavam logo, na sua brancura, a forma achatada e redonda de pequenas luas.

Nessa encantadora e feminil tarefa, a Mariquinhas Rosas, uma das quatro filhas do velho lavrador, a terceira, a mais graciosa delas, pela adorável vivacidade dos olhos negros rasgados, pela alvura alinhada dos dentes sãos e pelo arrebitado atrevido mas tentador de narizinho curto, era a mais empenhada e adestrada de todas na feitura dos beijus, sobretudo nos de folhas, cuja massa é tomada em maior porção e preparada nas mãos, entre duas folhas tenras de bananeira, à semelhança dos bolos de milho grandes.

No engenho, havia até aos mais remotos cantos um largo e confortante calor de estufa, que vinha da boca do forno em brasas, colocado a um ângulo, e de onde irrompia um grande clarão vermelhante, de uma iluminação intensa e rubra de ciclope, ao sair do braseiro, e branda, esmorecedora e suave no teto e para os outros pontos afastados onde a escuridão agonizante tinha, por vezes, audácias indômitas, tentando invadir tudo quando o fogo desfalecia nas achas. As varas finas da cumeeira, os caibros, o grosso pião a pino, a roda grande dentada, a de cevar, ou bolandeira forrada de uma chapa de folha, límpida e reluzente como prata, toda eriçada das saliências hostis que devoram as raízes, o cocho grande da lavagem, o da escorredura e a imensa almanjarra em arco, que volteia e movimenta tudo no pescoço rijo e impulsor dos bois de canga trabalhadores — destacavam-se como o arcabouço estranho e rude, monstruoso de um animal primitivo, àquela luz enternecedora e saudosa, companheira fiel do trabalho honrado e humilde, e que se ia extinguir, dali a instantes, para sobreviver um ano depois!

Logo que a primeira série de beijus foi retirada do forno, a Mariquinhas, tendo tudo disposto para entrarem as outras, deixou as alegres companheiras e afastou-se dali, apressada, num provocante cadenciar de ancas virgens, porque a mãe a chamara para arrumar o resto da roupa no balaio, enquanto ia, por outro lado, cuidar do trem de cozinha e depois dar uma chegadinha às Areias, ao José Marcelino, que ficava a cem braças.

Era a um canto do engenho, no mais vasto, onde se acomodava toda a família — um lugar dividido apenas em dois por alguns fragmentos das sebes velhas dos carros e dos paióis, postas ao alto e unidas em cima nos caibros, sendo um lado ocupado pelo velho casal e outro pelas raparigas em comum, filhas, parentas e moças da vizinhança, toda essa adorável e ingênua gente dos sítios que, à noite, se reúne e dorme pelos engenhos, na quadra das farinhadas.

O cocho grande, que era o primeiro depósito onde se despejava a farinha já pronta, feito de uma velha e enorme canoa, ficava também desse lado, correndo na direção dos dois quartos, justamente para onde dava a abertura. As últimas fornadas o repletavam já, fazendo no centro um elevado cocuruto de uma brancura de neve, que ia descendo e diminuindo sensivelmente para as extremidades, tal qual um cômoro de areia solta. Desse lado, onde o clarão do forno esmorecia de todo, e sentada na extremidade aberta, numa beirola da madeira, com uma antiga candeia de quatro bicos ao pé, que mal alumiava o obscuro recanto — estava a rapariga muito bem a arrumar a roupa, quando, pela porta dos fundos, surgiu de repente o Manuel Rita, o endiabrado e moreno rapaz que era os seus feitiços, e que, acercando-se logo, como um namorado querido, começou a bolir-lhe nas mãos, no queixo, nos cabelos e nos seios, de olhar aceso e vivíssimo, com as suas costumadas graçolas e cócega. Em seguida, arredando o balaio, e caindo junto aos joelhos da rapariga, que o fixava silenciosamente, com uns olhos meigos e úmidos, cheios de um brilho inefável, extasiada e passiva ante as suas másculas e vencedoras carícias, totalmente entregue aos seus braços grossos e viris, que lhe enlaçavam docemente a cintura — prorrompeu a falar-lhe baixinho, com uma grande doçura. E ia apertando-a contra si, estonteando-a e vencendo-a com o seu hálito morno, a sua voz terna e súplice, trêmulo, resfolegante, febril. Ela, sem forças para se lhe opor, na sua profunda paixão, murmurava apenas, quase indistintamente:

— Não!... Não!...

E desfalecia sobre o montão de farinha nevada, como entre os lençóis puros de um tálamo...

Para os lados do forno, reinava ainda a faina feminil dos beijus, numa algazarra alegre e vivaz, cortada às vezes de cristalinas risadas.

De repente, lá fora, no terreiro, uma voz grossa berrou:

— Ó Manuel Rita, ó diabo! Olha os bois pra canga!

E o rapaz, então, assustado e tremendo, deitou a correr, sem ser visto, para a janela da empena, que galgou de um salto.

— Eh lá, Simão! Já lá vou...

E enveredou para o pasto, cantando o Querido bem, numa toada sonora e vibrante, cheia de notas álacres de triunfo.

Nesse instante, a tia Ana Rosas chegava. Estivera com as do José Marcelino. Lá ainda se raspava e forneava que era um Deus nos acuda. Não era por aqueles seis dias que haviam de acabar. De mais a mais, o José Marcelino, coitado, estava com as maleitas...

As raparigas tinham acabado de torrar os beijus, recolhendo-os em montes e arrumando-os num pequeno cesto. O Simão e o pai, fora, defronte à porta grande de engenho, punham a sebe no carro, que estava já com o cabeçalho suspenso, sobre o muchaco, a canga e os cansis prontos para abrochar os bois.

A velha Ana, com a costumada atividade de mulher magra e trabalhadora, mal entrou da rua, voltou ainda a remexer pelos cantos, do lado do fogão, no caixão do trem, pelos tipitins vazios, pela mesa da prensa, por trás dos cochos, por tudo, à cata de algum objeto esquecido, dando as últimas ordens:

— Andem! Ande! Vejam se não esquecem nada. Olhem que já vai ficando tarde...

O velho Rosas, então, gritou “que o carro estava pronto, que não perdessem tempo, embarcassem. Já era também embromação demais! A que horas iam chegar à casa, Santo Deus!”

As moças enfiaram logo para o terreiro, a pequenas carreiras, aos saltos, aguilhoadas pelas palavras sibilantes da velha, que ralhava esganiçadamente, na precipitação da partida. E quando iam todas a subir para o carro, deram por falta da Mariquinhas, que entraram e chamar alto, censurando-a pela tardança :

— Oh! Mariquinhas! Mariquinhas!

E a qualificavam de “moleza, pamonha, tansa”.

A velha, furiosa, entrou a descompor:

— Anda daí, diabo! Olha que eu lá vou e esfrego-te! Ora espera, ora espera...

E já ia para descer, quando a rapariga apareceu, arrastando-se vagarosamente, de olhar no chão e chorando, com o balaio da roupa debaixo do braço. Ainda de preto, por causa do tio Quincas, que morrera há três meses de barriga d'água, trazia impresso pelas costas, desde a cabeça até à orla do vestido, como um véu transparente de tule. E assim, como quem vai para um estranho noivado, subiu para o carro, contrariada, abatida, sob as suas vestes lutuosas e nupciais.

Os bois puxaram. O Simão, à frente, a aguilhada ao ombro, soltou uma cantiga melancólica. O carro, as cunhas desapertadas, rolava em silêncio pela estrada branca. E no alto, a noite azulada e límpida, como em geral as noites tropicais de inverno no Brasil, tinha um grande esplendor sideral, inteiramente pespontada de ouro.

Rio, 1891.

Na ilhota

A Santos Lostada

Nessa Noite de S. João, em Canasvieiras, tudo gelava. Mas, desde o escurecer que o estreito e arenoso caminho da praia, nos outros dias, silencioso e deserto, cobrira-se de gente, enchera-se de animação e ruído. Eram famílias da freguesia e circunvizinhanças que se encaminhavam para o mar, até à Ilhota, onde havia os festejos de todos os anos, em casa de João Monteiro. A festa lá, nessa noite, ia ser boa, porque coincidia com as festas da chegada do Manuel Lemos, o capitão do Estrela, o noivo da Mariazinha, que vinha da costa da África, por onde errara longos meses, sem se saber dele, na última viagem: e a sua volta, depois de tanto tempo, derramava uma grande alegria no seio da boa gente do Monteiro e por todo o sítio, onde era muito estimado.

Choviam os comentários com o regozijo inesperado do aparecimento do navio que já contavam perdido, lembrando-se do Gaivota que, de uma feita, indo para a Costa, desaparecera por esses mares de Deus! E o Chico Helena, que fora nessa viagem, coitado! ninguém mais soubera dele ! Felizmente ao Manuel não lhe sucedera aquela desgraça...

O navio do Manuel Lemos era um magnífico brigue, há poucos anos reconstruído, e que se chamara outrora o Galgo. Valente nos temporais, muito seguro, era célebre pela velocidade da marcha no tempo do tráfico dos africanos, em que, mesmo nas situações mais arriscadas, soubera sempre, com êxito, em meio dos vagalhões encapelados do Atlântico, fugir à proa perseguidora e temerosa dos cruzeiros ingleses. Contavam-se dele, dessa época, episódios heroicos, lendas que o sol dourara e o oceano embalara em seus braços gigantescos, faltando-lhe apenas as narrações de Fenimore Cooper. À popa, à bolina ou a um largo não havia então quilha que o vencesse. E isto fazia agitar, muitas vezes, a calma habitual dos oficiais ingleses que lhe davam caça, perseguindo-o, tenazmente, por longos dias azuis de céu e mar. Uma bela tarde o barco velejador sumia-se no horizonte ao fechar de um poente vermelho... O gajeiro bretão, no arco da gávea, não o avistava mais com o longo olhar verde e descortinador... O cruzeiro virava na bordada de terra, e a cólera dos capitães das ilhas de ouro e ferro da Mancha estrugia com desesperação, pondo a prêmio a bela cabeça branca do velho Sumares.

O Estrela estava fundeado no estreito canal de águas muito seguras que existe entre a Ilhota e a Ponta das Pedras; e ao cerrar-se a noite, na densa escuridão que se alastrava em torno e afogava a paisagem em redor, só o seu farol luzia, como um olho de sangue que espreitasse sinistramente o canal, riscando as ondas com um trêmulo fio de nácar.

As famílias que desciam, algumas vindas lá dos Ingleses e das Aranhas, um rancho de moças, rapazes, velhos e velhas, palradores e expansivos naquela noite de S. João, de tantas recordações meigas e amorosas que a tradição vem projetando, com a rubra iluminação de uma fogueira, até aos nossos dias, do fundo remoto dos Séculos — tiveram quase um arrepio, em presença das ondas, que se quebravam algidamente contra a praia estendendo-se e cercando-a de carícias de espuma. Havia, a essa hora, uma calada vasta e taciturna, vagamente açoitada pelo ruído rouco e sonoroso, multo longínquo, do mar, lá fora, a despedaçar-se continuamente sobre os costões rochosos. Tremia-se de frio, mas nem por isso as gargalhadas das moças deixavam de cantar, límpidas no ar, de envolta com as vozes tumultuosas dos rapazes em festa.

Então, na Ilhota, foguetes numerosos rasgaram o escuro, subindo em hastes escarlates que feriam o céu verticalmente, estalavam, pondo lágrimas de luz, que desciam lentamente, em cachos. E, em seguida, avistaram um largo clarão manchando a noite, por detrás do pequeno platô das Feiticeiras, iluminando de través as águas do Porto do Norte. A paisagem, aí, desenhava-se numa esmorecida luz avermelhada e enternecedora, em cuja faixa vacilante cenografavam-se feericamente massas negras de verdura, abertas em crivo, todas rútilas de pedraria fantástica. Da vasta iluminação da água, onde tremiam escamas de prata límpida, sob as primeiras rajadas do sueste que caía fresco, erguia-se, mal contornado, no fundo daquele céu de nanquim, o casco colossal do navio, aproado ao vento, o gurupés alto e aguçado, a cordoalha retesa, muito ereta a alta mastreação artística. A sua sombra, meio caída à ré, dançava a um bordo, em tremuras elásticas, na ondulação viva, e as vergas, os mastros e os mastaréus cheios de guinda lançavam, na vaga claridade, como um estranho, gigantesco tecido de malhas. De bordo, um bote impelido a remos, largou na direção de terra. A sua mancha esguia e fina, onde se moviam bustos, avançava, numa esteira de espuma, por entre o ranger das toleteiras rijas e o compassado chiar das remadas.

A um e outro lado, na costa, pedaços de praia límpida alvejavam, quando a fogueira erguia mais alto as suas chamas.

Todos esperavam a embarcação com impaciência. Vinha já muito próxima, entre fosforejantes olhões de ardentia, abrindo-se à superfície da água, no mergulhar dos remos. A três braças de terra, disseram: leva! — e o proeiro salto no paneiro de proa. O escaler encalhou, então, com um ruído de onda espraiada, dando um raspão na areia. Lançaram logo uma prancha. E o embarque efetuou-se cheio dos gritinhos de temor das moças e das grossas risadas dos rapazes.

Na Ilhota os foguetes continuavam a subir, a esfuracar o céu com filetes de zarcão. Já na Prainha, metida entre duas pontas de pedra, onde o mar escachoa noite e dia fustigado pela aspereza das nortadas, o Monteiro e as filhas esperavam os convidados.

II

Logo ao atracar do bote as meninas do Monteiro romperam em exclamações de alegria, ao mesmo tempo que as outras, que chegavam: e foi toda uma confusão festiva e musical de gorjeios femininos, por entre o reboliço do desembarque. E após seguiram-se os abraços, falando sempre, estalando muito os beijos nas faces.

Tomaram todos o pequeno caminho que conduzia à habitação. A casa, lá no alto do terreiro, branquejava, fantástica, por detrás das labaredas, lembrando incêndios em cenografias célebres de dramalhões e óperas, num desenlace trágico, de muita sensação. Cantava cristalinamente, em vozes límpidas, desprendendo-se de pulmões e gargantas frescas, uma revoada de meninos, cujos perfis inquietos de diabinhos dançavam em redor das chamas, como numa alegoria do Inferno. Uma gaita, ronceira e triste, lançava até as ondas, num som roufenho e monótono, notas incompletas de uma polca. Homens descalços, rapazes e mulheres das proximidades, com crioulos forros que vadiavam, grupavam-se à porta da rua, arregalando os olhos curiosos. Quando as moças aproximaram-se, abriram alas, dispersando no escuro, sob os cafeeiros.

Na sala principal, então, houve toda uma alegre balbúrdia de saudações.

A família do Chico Maria e a do Viana, que moravam perto, já lá estavam com um pelotão de filhas moças, garridas e planturosas, assinalando bem a proliferaridade amplíssima das populações da beira-mar.

Na onda dos recém-chegados vinha também a tia Clara, uma velha professora da roça dos bons tempos, de poucas letras e muitas virtudes, insigne nos trabalhos de agulha e sabendo curar por benzeduras, que a fazia venerável e sobrenatural no sítio. Era cunhada do Monteiro e comadre dele três vezes, tendo-lhe batizado dois filhos logo no começo de casado e, ainda nos últimos anos, uma menina, a mais moça, a quem dera, por pedido dos pais, o seu nome. A tia Clara era viúva há treze anos Tinha duas filhas moças — a Eugênia e a Guiomar. A primeira, já trintona, não era bonita, a pele murcha e desbotada, os lábios tristes, os olhos apagados pelas desilusões; mas a última, mais moça dez anos, prendia e fascinava, com um florescimento juvenil de roseira agreste, as formas amplas e virgens, o rosto lindo, onde os olhos faiscavam.

O Manuel Lemos, que estava sentado na saleta próxima, teve uma grande impressão quando a viu entrar, e subitamente levantou-se, fazendo cessar de chofre a conversa que travara, momentos antes, com um velho roceiro esquelético, engelhado e de grandes barbas brancas que, vendo o outro afastar-se, deixá-lo bruscamente, sem um gesto, sem uma palavra, ergueu em redor uns olhos espantados, mastigou baixo frases e voltou-se tristemente para o pequeno altar ao fundo, coberto de uma toalha alva e bordada, onde se alumiava um registro de S. João, colorido e encaixilhado em madeira. Duas velas de cera, de seis em libra, aos lados, erguiam as suas chamas lívidas e fumarentas. Palmas de Santa Rita e molhos de rosas ostentavam-se, colocados devotamente em copos meios de água; e, no alto da moldura, enfeitando-a, cravos vermelhos desprendiam a fragrância dos seios sangrentos...

De fora, continuamente, entrava gente para a sala, quase apinhada junto à porta, onde se acumulavam homens. A um canto, em um mocho, ao pé de uma janela em que cabeças desgrenhadas debruçavam-se, olhando com grandes olhos vagos, a boca aberta, num emparvecimento, o tocador de gaita, um mulato anguloso, chupado, com uma pera satânica de Mefistófeles, um lenço de chita ao pescoço, rouquejava uma quadrilha.

Mas as danças não tinham ainda começado: tiravam-se sortes, palrava-se.

No meio de um grupo de moças, o Manuel Lemos, agora, empunhava o Livro do Destino, uma remota e esfrangalhada brochura, sem capa e sem cantos, enegrecida e ensebada do chulo manusear de muita gente, durante anos, nos três dias de Santo Antônio, S. João e S. Pedro, e toda cosida a pontos na lombada. O Manuel oferecia os dados — uns grandes dados antigos e desquinados onde mal se podiam ler os pontos — e as moças os sacudiam entre as mãos fechadas, arriando-os depois sobre as próprias páginas do livro, rindo muito, muito interessadas. Contavam : cinco, quatro, doze, dezesseis... “Ande lá! Leia lá!” E o rapaz folheava logo, procurando a página onde vinha a quadra que correspondia ao número indicado: e lia, recorria ao índice, dizia os assuntos: Se o seu amante é fiel ou não, se alguém lhe ama em segredo, se morrerá cedo ou tarde, se terá felicidades, se o seu bem está presente, se se casará... Outras raparigas, de temperamento aventureiro e inquieto, mais cheias de imaginação e fantasia, queriam saber se os seus noivos viriam de fora, e de que banda seria. Corriam até à praia e lançavam à água uma casca de laranja cavocada, com um biquinho de vela aceso dentro. Punham-se depois a olhar o rumo que levavam as luzinhas sobre as ondas. Se uma ia para o norte, o esposo que a sorte lhes reservava viria sem dúvida do norte, e assim as que tomavam outra direção. Mas se a luz soçobrava, ou dava à costa, ou apagava, então o noivo não vinha de fora; era dali mesmo, do lugar, ou a dona da candinha não viria a casar e morreria solteira... Algumas apelavam para a sorte da clara de ovo num copo meio d’água, para uns pedacinhos de papel com um nome de homem, enrolados como bilhetes de rifa e que se expõem ao sereno para abrirem... Velhas, mesmo, pediam sortes, mas queriam das “bonitas”, das “boas”; e as suas predileções dirigiam-se especialmente para as coisas de riqueza: Se se deve contar com a loteria, que ventura terá nos negócios, se virá a ser rica...

Mas alguns rapazes entraram a dizer que já chegava de sortes, que era melhor começassem as danças. E gritaram para o tocador pedindo o sinal de quadrilha.

III

Havia agora um grande ruído na sala. Rapazes cruzavam-se em todos os sentidos, dirigindo-se às moças enfileiradas em bancos corridos ao longo das paredes. Ajustavam-se pares.

De todos os lados moças erguiam-se, enfiadas aos grossos braços dos roceiros, alegres, com os lábios risonhos onde os dentes branquejavam, olhos límpidos, cheios de carícias luminosas. Paradas, aguardando a quadrilha, davam toques ao cabelo, às rendas, às fitas; voltavam-se, revendo a toalete por detrás, ajeitando, com pancadinhas rápidas de mão, as saias amarrotadas.

E, pouco a pouco, na vasta sala de telha vã, aquecida pela multidão dos convidados, ia-se formando um enorme quadrado de gente perfilada. Reinava uma animação zumbidora de colmeia. E o Manuel Lemos, que fora o último a tirar par, a uma das cabeceiras, com a Mariazinha pelo braço, a larga face tisnada pelo sol do oceano num raso tombadilho de navio, ria alto, expondo os seus ricos dentes sãos, claros como a espuma das vagas, e batia palmas para que o tocador rompesse a tocar.

De fora, entrava a gritaria infrene das crianças, saltando as chamas da fogueira, cujo clarão vermelho, iluminando tudo, abria ainda mais às rajadas do vento.

Aos primeiros sopros trêmulos da gaita, a quadrilha rompeu, abalando o soalho, onde os corpos adiantavam-se e retrogradavam, com mesuras e enlaçamentos rápidos. De espaço em espaço as palavras do marcante desprendiam-se, elevavam-se, desapareciam sob as telhas, num entusiasmo, confusas, em pedaços, comidas pelo chiar contínuo e arrastado dos pés. Mas, de repente, entre as mãos magras do tocador o instrumento emudeceu, encolhendo-se, e o quadrado que os seus sons desmancharam há pouco, numa confusão de corpos em movimento, restabeleceu-se. Daí a instantes, sacudida por novos sons, a muralha humana quebrava-se, tomava novas disposições, reconstruindo-se incessantemente. E a quinta parte, o Manuel Lemos, que não tirara quase os olhos da Guiomar, durante toda a quadrilha, acabou-a enlaçado a ela, sentindo-lhe o coração aos impulsos do galope final.

A Mariazinha, que bem notara tudo, sendo dos primeiros pares que se sentaram, amuou a um canto, tomada de ciúmes, e não podendo mais sofrear a mágoa, recolheu-se à outra sala, com o beicinho a tremer, os olhos toldados por uma névoa de lágrimas. As amigas correram logo, buscando consolá-la. A mãe, que vira tudo do quarto, com os olhos vigilantes e zeladores pregados sempre no Manuel, através das marcas da contradança, acudiu imediatamente, muito branca, numa aflição. Desde a madrugada, ao levantar-se, que sentira como uma coisa oprimir-lhe o coração. Pareceu-lhe que ia haver contrariedades, um grande desgosto, como a entrada do tinhoso em casa, naquele dia, tão feliz sempre para todos. Mas isso fora momentâneo porque as meninas, como nunca, levantaram-se trinando na manhã cheia de sol. Depois, lá fora, o céu festinava, magnífico, muito azul e sem mancha; e a criação, abrindo as asas, no terreiro, acudia ao grão, num alvoroço e cacarejando sob a luz que esquentava. E, já desoprimida e serena, lavando a louça para o café, à janela da cozinha, pensava na Mariazinha, que ia casar por aquela semana, e sorria, saturada da felicidade das coisas, abençoando o destino como no dia em que lhe puseram a grinalda e o branco véu nupcial...

Mas as amigas, vendo que as lágrimas da rapariga pareciam não querer cessar, rebentando, mais frequentes, sob os mimos que a cercavam, entraram a dizer:

— Que não fosse tola, ele não estava namorando a prima, era falso. Lá podia ser! Olhe que a Mariazinha... Também assim... Que mulher!... Andasse para a sala, que era melhor, e se deixasse daquilo... Podiam reparar, e era uma vergonha... E logo naquele dia, Nossa Senhora!

O Manuel Lemos observava tudo de longe, mas fingia-se alheio inteiramente àquilo, mandando tocar uma valsa e, nesse momento, único par na sala, colhia a atenção de todos, volteando ritmicamente, aos compassos ondulantes da música, com a Joaninha Pinheiro. E era tal a galanteria de ambos, desenrolando, unidos e a prumo pelo soalho, os passos cadentes da valsa, que ninguém mais se arriscou...

Quando a gaita emudeceu no meio do aplauso matuto da sala, todos os rapazes, ainda os mais indiferentes, remoíam em silêncio um despeito surdo, como uma afronta. E o Chico Rufino, que se tinha por dançador de fama do lugar, chocado com o sucesso do outro, de pé, na varanda, em meio de um grupo de amigos, afirmava com paixão:

— Que o Manuel não era grande coisa para a dança, não era... Nem tinha posição capaz: muito arcado, as pernas abertas que até podia passar um carro por baixo... Aquilo então é que era a fama? Olha o pachola! Raios o partissem se ele, Rufino, não dançasse dez vezes melhor!... Depois, com a Pinheiro quem não dançava... Que lhe não dissessem! Para ele, o Manuel não valia nada... Grande paspalhão!...

A Mariazinha, agora mais resignada, voltara à sala. O noivo, que acabava de sentar o par, agradecendo, vitorioso, muito risonho, veio, logo colocar-se ao pé dela. E longamente se fizeram confidências, voltados um para o outro, como dois pombos movendo as cabeças amorosas. Perderam assim quadrilhas, polcas... E a moça, mais consolada decerto, sorria já com os seus grandes olhos melancólicos.

IV

Daí por diante, as danças despenharam-se ainda, mais entusiásticas e ruidosas. Os cangirões de concertada e garrafas de vinho e aguardente eram esvaziados pelos homens, avidamente, no final das quadrilhas.

Na varanda, completamente indiferentes ao que ocorria em redor, os velhos, sentados, as pernas cruzadas sobre uma larga esteira estendida no chão, jogavam o nove, agasalhados nos seus grossos capotes de inverno. Moedas de cobre faziam montinhos, aqui e ali, ao lado de cada parceiro. Outras acumulavam-se ao centro, num bolo, em cima de um meio alqueire emborcado, onde uma vela de sebo ardia, com uma chama esguia e trêmula, num castiçal de folha de Flandres. A um ângulo, onde a luz desfalecia, sobre a mesa de jantar, as garrafas, os copos e as xícaras desprendiam vagas cintilações de pedraria e tinidos finos de cristal.

Pela madrugada, o terral de noroeste, com a vergasta glacial, pusera em total debandada as caras espionas, obrigando a fechar as janelas e portas. Fora, no terreiro, ficara só a fogueira, expirante, sem chamas já sob o frio, consumindo as brasas cor de sangue. Dentro, a animação recrescia com o fim próximo da festa. Os corpos dos rapazes e das moças desengonçavam-se agora, abraçados, em volteações muito rápidas num frenesi. E eram, algumas vezes, nos mais desajeitados, esbarradas e encontrões violentos. Havia gritinhos, queixas sonoras, risadas; mas tudo se perdia logo no arrastar contínuo dos passos...

E às mãos destras e febris do tocador a gaita arquejava, sem descontinuar.

O Manuel Lemos, por fim, com uma grande ponta de álcool, o olhar reluzente e ávido, abandonara de todo a noiva e declarara abertamente paixão à Guiomar, prendendo-se a ela escandalosamente nas danças finais. A Mariazinha, o resto da noite sentada, ia seguindo tudo atentamente, atirada a um canto, suspirosa e pálida, sentindo que se lhe quebravam todas as cordas do coração sob aquele abandono brutal. De repente, porém, levantou-se, com os beiços lívidos, toda trêmula, a sufocar: lançou os braços ao ar, num grito, e caiu sobre o chão, desmaiada.

Houve então um imenso alarido, uma emoção apavorada. As danças imediatamente cessaram; e da varanda os velhos acudiram, espantados.

As duas irmãs — a mulher do Monteiro e a Clara — então, engalfinharam-se de repente, numa rixa medonha, lançando-se injúrias cara a cara. O Monteiro, perdida a calma, trêmulo e gaguejante, procurava intervir, interpondo-se entre as duas mulheres:

— Ó senhora! Ó senhora! Que desgraça!...

Famílias, os convidados, retiravam-se já, sem se despedirem, numa atordoação.

A gaita emudecera definitivamente...

Na praia, o embarque efetuou-se numa lufa-lufa, atarantadamente, às apalpadelas. E daí a instantes as primeiras claridades da manhã subiam no céu, alegres e triunfais.

Rio, 1892.

Os bois xucros

A Eduardo Salamonde

I

Eram princípios de agosto. Nessa noite começavam os terços do Bom Jesus em casa do Nicácio. Às ave-marias entrara a afluir para ali, aos poucos, toda a boa gente das circunvizinhanças. No céu saíra já a rondar a lua, iluminando tudo com a poeira sutil da sua luz fria de grande lâmpada incandescente de Brush. As pequeninas casas de S. Francisco branquejavam, afastadas umas das outras, entre sebes, cafezais e laranjais murmurosos, como ovelhas, espalhadas pelos socalcos e inclinações de uma encosta.

II

Desde meia tarde que as raparigas da Maria Veríssima — a Berta, a Bernardina e a Clara — curricavam pela casa das amigas, gárrulas, alvissareiras e alegres, a comunicar as novas ocorridas, durante o dia, na freguesia. Contara-lhas o irmão, o João, que andara na rede, lá fora. — Era o casamento, no dia seguinte, de José Alexandre com a Maria Luísa Rosas, a do patacão. O escândalo do Manuel Téa pegado ao romper do dia, com a Maricota Sodré, lá no sítio do Claudino, na casinha do carro — forte pouca vergonha! O Maurício esbofeteado pelo Joaquim Valente, no caminho do campo, por umas histórias de ciúmes. O filho da Leandra, o magricela, que era caixeiro e usava casaco comprido, como de padre, que chegara pela manhã da cidade. O Antônio Rego, que viera dos Ratones com uma tropa de bois xucros: o Justino já tinha apartado um para a vara; era um bagual, o raio, procurava a gente que nem um cachorro e, na Cachoeira, segundo diziam, partira dois laços só de um tirão!... Mas, de tudo, o que mais as encantava era o do Nicácio, desde muito esperado, que ia afinal começar e que só acabaria oito dias depois, conforme o velho lavrador prometera quando estivera de cama, quase a espichar, com as sezões.

— Ia ser do fino o terço do Nicácio! exclamavam elas, numa balbúrdia adorável. Uma semana inteirinha! Ai-ai! ia doer de bom!...

E combinaram com as do Chico Pereira para irem juntas, com a mãe, assim que anoitecesse. Mas careciam da companhia de um homem, por causa dos bois xucros. Quem havia de ser? Tinham tanto medo de bois xucros, Nossa Senhora! O pai andava fora, pelas alturas do Arvoredo, na pescaria do mar grosso, e nesse dia não voltava; o João, esse, não servia para nada, não prestava mesmo, o galinha, não valia o comer que comia, pois se tinha mais medo de almas do outro mundo que elas próprias, coitadas, umas pobres mulheres! Mas quem havia de ser então?... E na pressa de se ajustarem, para se irem logo arranjar, não achavam quase um conhecido, um amigo, um parente que as acompanhasse.

— Quem havia de ser? refletiam. Eram raros os rapazes daqueles lados, e os poucos que havia andavam azeitando lá para as Coivaras, onde também se rezava o terço, no Luiz Boião, para as bandas do porto. Os primos das Areias também não vinham, por terem piorado das febres. Só se fossem os do Luiz Maria e os do Rufino, que não perdiam nada, principalmente no Nicácio que era ainda contraparente deles.

Assentaram, definitivamente, em aguardá-los, ir com eles, de companhia. Mas debalde esperaram. Entrou a noite, fez-se o luar, e nada dos rapazes! Estavam já num desespero, numa inquietação, aflitas, quase a chorar. Para os lados do Nicácio, de vez em quando, um filete de luz rubra erguia-se, varava o ar, estourava numa explosão de faíscas.

— Lá atiçam foguetes! Lá atiçam foguetes! Murmuravam. Já principiou! Não! Ninguém podia perder aquele tercinho da alma ! ...

De instante a instante, davam uma chegadinha ao Caminho Novo. Nada! Ninguém!

E entraram a pedir à mãe para irem assim mesmo.

— Também isso de medos era uma bobagem! Tanta gente na estrada! A noite tão clara! Que tolice! Depois, os bois não iam sair do pasto àquela hora!...

E convenceram a velha que, carinhosamente, resoluta mas supersticiosa, enfiou para a rua de xale na cabeça:

— Olhem, depois não se queixem se vier por ali alguma!...

E puseram-se em marcha, numa algazarra vivaz, cheias de risos onde transparecia a animação da alegria — as mais audazes adiante, as mais tímidas atrás, cosidas umas às outras.

A estrada desenrolava-se branca, deserta, aqui e além malhada de sombras pelos espinheiros e bananais das margens. O curvo azul dos céus resplandecia, muito alto, cheio de um misterioso encanto. Numa vasta paz mística que as gargalhadas perturbavam sonoramente.

III

O Sebastião e o Vicente, companheiros inseparáveis das correrias noturnas, famosos quebras que vagavam toda a noite pelos sítios, em endemoninhadas aventuras, metendo-se atrás das porteiras ou das moitas da estrada para dar sustos às mulheres vinham repontando na encruzilhada da praia, quando ouviram de repente, no vasto silêncio, para os lados da Ponte Velha, gritinhos de moças, exclamaçõezinhas, risadas. Pararam, puseram-se à escuta: queriam reconhecer as vozes... Ah! eram as da Maria Veríssima e outras, que iam para o terço! E combinaram-se logo para lhes pregar um susto.

— Havia de ser com os bois xucros... Elas tinham muito medo dos bois xucros... A tropa toda estava no pasto do Constâncio...

E, já descalços, com os tamancos nas mãos, largaram à disparada pela picada que dava para lá. Esconderam-se numa roça de cana, do lado da porteira, junto à cerca de espinhos. Aí, de vez em quando, chegava-lhes aos ouvidos a alegria ruidosa do terço do Nicácio.

A casa ficava a algumas braças, logo passando o riacho, num alto, do lado do morro. Pelas janelas abertas saía uma iluminação muito viva, que dourava a verdura circunjacente manchando a fria dealbação do luar. No pequeno terreiro em frente, silhuetas escuras, microscópicas, moviam-se, apinhadas, à flamejação das luzes. E vozes frescas e agudas de crianças brincando, punham na noite silenciosa e albente uma zurzinada festiva.

Mas os dois quebras terríveis não queriam saber de nada, com o ouvido assestado para os lados de baixo. Daí a instantes sentiram de novo as risadas das raparigas que, pouco a pouco, avançavam para eles, tornando-se mais nítidas, com o seu timbre alegre e cristalino. Depois fez-se um estrépito claro de passos e vozes femininas.

Eles, erguendo a cabeça, puderam enxergar, por entre o crivo das ramagens, já próximo à porteira, à esquerda, o bando das moças, todas de branco, e lindas, ao luar, como visões de baladas: vinham pela banda de cima, agarradas umas às outras, rente à cerca, aterrorizadas, num fru-fru de saias engomadas e roçagantes, estacando, às vezes, com gritinhos e saltos, à proporção que enfrentavam o pasto:

— Ninguém fale!... ninguém fale!... ciciavam elas. Lá estão os bois, Virgem Maria!...

E prosseguiam sempre, cautelosamente, sutilmente, como sobre um tapete, por cima da grama das beiradas. Já tinham passado a porteira quando os rapazes lançaram-se às carreiras dentro do canavial, levantando, por entre a folhagem, a matinada de um gado em tropel, e gritando:

— Arreda! arreda! Aí vêm os bois xucros!...

As raparigas dispararam, estonteadas, aos gritos, num pânico, numa corrida de desastre, precipitando-se dentro do pequeno rio, ou arranhando-se ao contato brutal dos espinheiros da estrada...

Da casa do terço acudiram logo, homens e mulheres, correndo:

— O que era aquilo, Jesus?!... O que era aquilo?!...

E vieram encontrar as raparigas numa lástima, molhadas, feridas, descompostas, empastadas de lama. Socorreram-nas logo, levando-as em braços para a casa do Zé Rocha, que ficava para dentro de um cafezal, muito perto dali. Aí mudaram de roupa, todas nervosas, a tremer, quase a chorar...

No caminho, os curiosos, apenas conhecido o fato, entraram a dispersar. Um velho, que chegava a cavalo, vindo do mar, e que soubera de tudo exclamava, brandindo o relho, com cólera:

— Não tinha que ver, aquilo tinha sido obra dos rapazes da praia, os canalhas! Ah! que se os pegasse... Lanhava-os! Grandíssimos cães!...

E, teso na sela, com a nobreza de um cossaco, deu de rédea irado e partiu a galope, num impulso vingador.

Os rapazes então, que tinham saboreado tudo agachados ainda entre as canas para não serem espancados, saltaram para a estrada, a toda, e irromperam às gargalhadas na noite clara...

Santa Catarina, 1889.

A vela dos náufragos

Ao Dr. Gama Rosa

I

A lestada amainara após seis dias de fúria tremenda, em que o pequeno arraial dos Ingleses jazera, agachado e tranzido, sob as bátegas diluviais e os espessos nevoeiros. A costa toda, desde a Lagoinha até a Ponta Grossa, estivera abandonada e deserta, sob a ação aterradora dos vagalhões revoltos, estourando, dia e noite, em cachões espumantes, que alagavam as praias, os baixios e os cômoros, turbilhonando ululantemente sobre os mais altos cabeços. Tudo ficara abandonado, parado ao Deus dará por aquela semana; nenhuma rede se arriscara no meio da tormenta; cessara de todo o trabalho. E a pobre e laboriosa população do lugar, condenada à inação, permanecera penosamente durante esses dias, que se arrastavam longos e cheios de miséria, tomada de tédio, encolhida, apinhada em casa, tremendo de frio em rodados braseiros em chamas.

Mas voltara o bom tempo. Uma madrugada de ouro, uma dessas maravilhosas madrugadas catarinenses no litoral atlântico, vinha resplandecendo feericamente. O céu, no alto, arqueava-se todo azul, do azul ideal e transparente de uma velha faiança holandesa. As praias límpidas e curvas, e os cordões sucessivos dos cômoros extensos, destacavam magnificamente à luz, numa alvura cegante de trigo. E a planura verde do mar, levemente ondulada, na estagnação de uma vasta calmaria, estendia-se para todos os lados, aqui e além mosqueada de altos relevos de ilhas encravadas em grandes anéis movediços da espuma. A costa inteira tinha de novo a alegria e o alvoroço das manhãs de bonança: pelos ranchos, reuniam-se já, numa ruidosa algazarra marítima, os pequenos grupos de roceiros e pescadores do sítio; canoas grandes de rede, carregadas e prontas, tomada a palamenta, aguardavam a faina, sobre grossos rolos de madeira; velas curvas em bojo cruzavam ao longe, num voo branco, como grandes asas ligeiras; e uma embarcação maior, um iate, que parecia o Andorinha, do Joaquim Patesca, bordejava a todo pano, em direção ao porto, na altura do Arvoredo.

Então, a Maria Virgínia, que esquadrinhava minuciosamente o mar desde muito cedo do alto do pequeno terreiro da casa, seguindo atentamente o navio, mal o viu aproximar-se, na atitude de dar fundo, começou a descer apressada a encosta até à venda do Lemos, a colher notícias do Espadarte, o brigue onde andava o marido, o Manuel Siqueira, e que arrancara para o Rio Grande na véspera da medonha tormenta. Estava abatida, emagrecida, desfeita, a pobre rapariga, que ainda há três anos era a primeira beleza dos Ingleses. Tinham-na posto nesse estado os dois filhos que criava, dois hercúleos fedelhos rosados, de um louro rembrandtesco, e os cuidados, os temores e as aflições daquela semana, em que a sua alma não tivera sossego, a se debater, à noite, em meio de pesadelos horríveis, em que, por vezes, flutuavam, como num quadro estranho de Doré, um casco de navio perdido e a imagem amada do marido, abandonada e náufraga, num desespero, sobre as ondas do mar em fúria. Percorrendo nervosamente o tortuoso atalho vermelho, que se torcia entre a verdura espessa, ela não tirava, um instante só, o olhar ansioso de sobre as vagas verdes onde, agora, um pequeno batelão a remos vogava a toda para terra: estugava o passo com esforço, para colher as notícias dos próprios marinheiros, falar-lhes, perguntar-lhes de onde vinham, e se tinham apanhado a tormenta. Mas o atalho deprimia-se aí até cair na estrada do rei, distante ainda muitas braças dos cômoros, e o batelão, já contra a costa, sumira-se-lhe da vista que, nesse instante, apenas alcançava uma esteira branca de espuma smorzando saudosamente para além...

No porto, um grupo de homens aglomerava-se já em torno da pequena embarcação, em que vinham dois tripulantes do iate e o contramestre Pedro, um rapaz dos Morretes, que lidava no mar de menino e era muito conhecido e estimado em toda aquela vizinhança. De pé, à popa do batelão, o grosso tórax possante atacado numa ampla camisa de flanela azul, com belo peito escarlate em forma de lira e ornado de bolso, o boné carregado sobre os olhos, gritou:

— Ó gente, cá estamos de novo! Tudo a salvamento... Felizmente, desta vez, ainda o mar rejeitou-nos!

De um pulo destro saltou, distribuindo aqui e ali apertos de mão, falando a um e outro, todo risonho, numa rude expansão de marítimo; e avistando o Lemos à porta da venda, rotundo e rubro na sua camisa de algodão grosso:

— Olá! Olha uma bela pinga da branca!

E rompeu, praia acima, a fortes passadas gigantes, que faziam cantar vivamente, sob as solas das botas, a alva areia escaldante.

A Maria Virgínia chegou à praia exausta, ofegante, as pernas trêmulas, quase a cair de fadiga. Quando entrou na venda, o contramestre Pedro, cercado de povo, a fisionomia animada, loquaz e gesticulante, perorava, com ardor, sobre o temporal.

— Havia muito tempo, dizia, não se sabia de tamanha borrasca ao sul. Nem na costa de Laguna, nem em Itajaí, nem na barra do Rio Grande... Fazia já vinte anos que ele se batia com o mar, em inúmeras latitudes, sob aguaceiros e trovoadas medonhas, mas jamais vira tanto vento e tamanhos vagalhões. Verdadeiras montanhas d'água, deslocando-se, esbarrando-se numa fúria dos demônios... Bordejava para fora, na Barra Velha, quando a lestada caiu. A princípio, aguentou-se com pouco panovela grande nos rizes e bujarrona, — a ver no que dava aquilo. Mas o iate era um cabrito — saltava, empinava-se, investia na vaga ameaçando ir a pique. Tentou uma arribada, porém a costa toda sumira-se: nevoeiros densos amortalhavam tudo, carregados de cinza. Então pôs-se à capa, e toca a rolar para aí... Seis dias e seis noites vogou perdido, aos tombos, no redemoinho das águas. Ninguém parava, ninguém dormia, numa faina incessante. Até que, naquela manhã, a borrasca amainara de todo e, sem saber como, por um acaso imprevisto, quase um milagre, avistou terra, por barlavento, à distância de milhas. Reconheceu logo o Arvoredo, os Ingleses, e puxara todo à bolina. E ali estava, graças a Deus, são e perfeito, com aquela casca de noz do Andorinha e toda a sua companhia...

Quando ele acabou, a Maria Virgínia, que ouvira tudo atentamente, imóvel e muito pálida, o coração palpitante, acercou-se, por entre os homens; e, saudando-o, numa voz doce e trêmula, cheia de emoção:

— Então, por aqui, depois de tantos trabalhos, hein? Que desgraças por esse mar! E que grande lestada, nem o temporal de Março de que falava a mãe! Nunca se vira uma coisa assim! Ali, no arraial, fora uma calamidade, parecia que era o fim do mundo! E como ele escapara, com tantos perigos, tantas aflições? Só por Deus, só por Nossa Senhora dos Navegantes!...

— É verdade, Marica, graças ao Pai do Céu, escapamos...

E, num gesto da sua mão hercúlea, descobriu-se, deixando ver a bela testa tisnada, toda aureolada de espessos caracóis castanhos.

Em seguida, ela contou-lhe, num grande abalo íntimo, em frases entrecortadas e soluçantes, os lindos olhos negros arrasados de pranto, que o que a levara até ali fora a profunda ânsia em que estava por “alguma nova” do Siqueira, que se fizera ao mar um dia antes de cair aquele “inferno de tempo”. De certo, andara rolando também, aos trambolhões, por esses mares de Deus... E quem sabe o que lhe teria sucedido sobre as ondas em sanha?... Desde que aquilo desabara, não parara um instante, inquieta, num desespero contínuo, passando os dias e as noites junto ao oratório, rezando. E não sabia porque, mas, “por dentro”, uma coisa lhe dizia que tinha havido um desastre, alguma desgraça, pois sentia como um “peso” terrível sobre o coração.

E desatou a chorar alto, perdidamente, batida de uma rajada de dor.

O Pedro, com a sua bondade de gigante, sensibilidade incomparável e santa de todos os marujos, cujas almas vivem perpetuamente carregadas de amor, de ternura, da nostalgia sem fim do oceano, ficara logo com os seus grandes olhos azuis mareados de lágrimas; e, atarantado, num enleio, numa perturbação, mal podia dizer meigamente:

— Que, infelizmente, não encontrara um só navio, uma única vela, durante a terrível viagem, mesmo porque era impossível distinguir coisa alguma em meio à cerração. Mas que não se amofinasse, não perdesse a esperança. O Siqueira era um marinheiro às direitas, conhecia o mar como as palmas das mãos. Depois, o Espadarte era navio de aguentar todo o tempo; aquilo era seguro como um rochedo; para ele não havia vagalhão. Certamente a lestada fora de tremer, mas não faltavam recursos para um bom mareante: havia a capa, havia o encalhe em um costão de remanso e, se nada disso se pudesse alcançar, era dar à popa e deixar-se levar sobre as águas, aos trancos... Não! Que ela não pensasse em desgraças! Era uma tolice! O Siqueira, àquela hora, talvez estivesse chegando ao Rio Grande...

Sob estas palavras, que lhe caíam docemente na alma, como um alívio, uma consolação, a Maria Virgínia foi pouco a pouco serenando; mas lembrando-se de repente de que os pequeninos, os filhos, tinham ficado sozinhos lá em cima com a mãe, coitada, que vivia paralítica, a um canto, quase sem se poder mover, despediu-se imediatamente:

— Ora, há de ser o que Deus quiser... E adeusinho, Pedro; até depois. Olha, aparece lá em casa. Assim que puderes, dá uma chegadinha ao morro. A mamãe há de gostar de te ver...

E saiu correndo, num movimento adorável dos quadris cheios, da cinta estreita e do lindo busto alto onde o seu pescoço bem feito e o moreno rosto escultural se erguiam deliciosamente em meio da luz radiante.

II

Daí a quinze dias, pela manhã, espalhava-se por todo o arraial dos Ingleses a lutuosa notícia de que o Espadarte tinha ido a pique, uma madrugada, a vinte milhas do cabo de Santa Marta, tendo perecido nele o contramestre, o gajeiro grande e o capitão Siqueira. Soubera do caso o filho do Patesca, que viera da cidade onde estivera com os tripulantes que haviam escapado, e que de certo chegariam ali pela tarde, porque vinham por terra, de sítio em sítio, em procissão com a gávea, a tirar esmolas para uma promessa à Senhora dos Navegantes. Um deles, o Manuel Figueira, narrara-lhe, na véspera, como se dera o naufrágio.

O navio abrira água, um dia antes do sinistro, com dois mares de través, que o alagaram de popa, ao desfazer de uma capa. Mas, com as bombas a trabalhar incessantemente, aguentara ainda até à noite seguinte, em que a guarnição, já exausta, largou tudo por mão, e o brigue entrou a se sentir mal sobre as vagas. Os marinheiros começaram então a tratar da salvação, ensacando provisões, entrouxando a roupa, arranjando os objetos náuticos mais necessários — remos, velame, cabos — safando ao mesmo tempo as talhas do escaler pequeno e da lancha grande de carga, a fim de os poderem arriar ao primeiro sinal. E as horas corriam, sob o fragor clamoroso do mar e a negrura densa da noite insondável... De repente, um marinheiro, que descera ao rancho, deparou com o porão cheio d'água e, voltando, correra à ré, a dar parte ao contramestre que estava ao leme, enquanto o capitão, a um bordo, contra a balaustrada, com os olhos fisgados na noite e nas ondas, acenava, a espaços, com o braço gritando: orça! alivia! para evitar as montanhas de mar embatendo em assaltos gigantes... Nessa ocasião, já o navio ameaçava soçobrar, em horríveis balanços. Eles, imediatamente, lançaram o escaler e a lancha fora das amuradas, destacando o gajeiro grande para a popa, a prevenir o capitão de que tudo estava pronto a largar. Porém, nisso, um vagalhão terrível inopinadamente rebentou sobre o salto, avançando, carregando tudo num turbilhão formidando... Ouviram-se gritos... O brigue medonhamente enterrava-se, de alheta, erguendo a proa balouçante. Eles, alucinados, num estranho pavor no meio do tumulto infernal, cortaram logo as talhas, e, a toda força de remos, aguentaram para o largo, à distância... Quando o dia alvorou, já em calma, nada mais se avistou sobre o mar, além deles e do disco ermo e nostálgico do horizonte ao longe...

E a viva narração do marinheiro voava de boca em boca, eletricamente, despertando enternecimentos e lágrimas pelas casas, os engenhos e os ranchos, e adquirindo, a cada nova edição oral, cores e linhas estranhas.

À casa da Maria Vírgínia já haviam acudido os parentes, as amigas e toda a vizinhança — e as portas e as janelas cerradas, deixavam escapar desoladoramente, apesar do belo sol da manhã, um coro abafado e lúgubre de vozes soluçantes.

A pobre rapariga recebera o grande golpe aflitivo logo ao amanhecer, quando, como de costume, depois da tempestade, postada ao paredão do terreiro, esquadrinhava, com um longo olhar melancólico, a linha clara do horizonte. Levara-lhe a dolorosa comunicação uma comadre sua, a Josefa Dutra, que passara ainda escuro pela casa do Patesca, onde se detivera a tomar o “aparado” e a descansar da longa caminhada que trazia, desde o cantar do galo, lá do Rio Vermelho, onde estivera em busca de remédios para o marido, caído com as sezões, havia dois meses. Desde esse instante até aquela hora, a Maria Virgínia se debatia, em gritos, numa ânsia e num desalinho, na agitação do desespero, inconsolável, aturdida e perdida no fundo do seu infortúnio. Todos a rodeavam afetuosamente, procurando acalmá-la com palavras meigas e enternecidas, que envolviam uma imensa consolação de carinhos — palavras deliciosas, palavras santas, que são, na desgraça, como um vasto manto aconchegante de plumas e um suave, incomparável bálsamo bendito!...

A casa inteira parecia também envolta na rajada sinistra, em meio à desolação: de todos os lados, de todos os cantos, erguia-se, funerariamente, na desordem das coisas, como uma levada tumultuosa de sofrimentos, que se desprendia do choro inconsciente das criancinhas órfãs e do soluçar rouquejante da pobre avó paralítica. Até na cozinha as velhas pretas da casa faziam um coro vivo de pranto. E a imensa aflição deste lar humilde ecoava lutuosamente por aquelas cercanias onde, como em todos os sítios, a vida corre docemente enlaçada, na solidariedade fraternal de uma mesma família, compartilhando igualmente as alegrias e as privações.

Mas o dia encaminhava-se para a tarde e a luz desbotava lentamente num dourado esvaído. Pelos morros, distinguiam-se os grandes lençóis coloridos das rocas, onde predominavam intensamente o verde negro da mandioca e o louro seco dos milhos. E na serenidade do ar erguia-se, por vezes, um vago trêmulo amoroso de campesinas cantigas. Pela costa, canoas de rede, na faina intensa da pescaria, iam traçando incessantemente, sobre a lousa verde do mar em calma, longos hieróglifos de giz. Pequenas velas ao longe abriam melancolicamente o triângulo claro e vogador da sua asa alígera. E no horizonte além, a saudosa neblina de pérola das águas longínquas...

De repente, vozes frescas de rapazes estalaram lá embaixo, no caminho:

— Olha uma vela de navio! Olha uma vela de navio! E a gente do Espadarte... Aí vem!...

E logo a notícia de que os náufragos tinham chegado espalhou-se por todo o sítio dos Ingleses.

Efetivamente, na encruzilhada da praia, de onde partia um ramal de estrada branco e arenoso estendendo-se pelo litoral até à Ponta das Canas e a Cachoeiras, um grupo triste de homens descalços, em camisa, o boné sob o braço, as calças arregaçadas, apertadas na cinta escarlate dos marujos, avançava, conduzindo à mão, pelas carregadeiras, o pano grande de uma verga. Molhos de rosas e palmas, deitados decerto por mãos piedosas de roceiras trigueiras — mães, filhas, noivas e irmãs — na passagem pelos sítios, perfumavam, enfeitavam risonhamente aquela velha lona que fora outrora, no alto das mastreações, tão amada do sol e dos ventos do oceano.

O préstito caminhava cantando. Era uma dessas canções embaladas e monótonas, de uma cadência acre da onda em tormenta, implorativas, convulsas, ansiosas, de uma nostalgia sem termo. Cada estrofe dizia, primeiro, o rugir dos ventos, o espumar dos vagalhões em fúria, o despedaçar dos lenhos; depois, os gritos, as pragas duras, blasfemas, os fundos desesperos da marinhagem impotente, em luta brutal com os elementos. Mas o estribilho ritmado e frequente, tinha uma mansidão suplicante, o ansiar resignado de íntimos sofrimentos, a doçura suavíssima de uma prece plangente:

Senhora dos Navegantes,

Amparai-nos lá dos céus:

Que por todos os quadrantes

Acalmem-se os escarcéus.

De vez em quando, em frente às casas, a vela parava, e um marinheiro se destacava, abordando as janelas ou as portas, de barrete estendido, esmolando. E as moedas negras de cobre e os níqueis radiantes surgiam de toda a parte, caindo de mãos femininas e brancas, num rápido gesto espontâneo.

Uma aglomeração de rapazes e homens cercava logo a companhia, e os conhecidos e amigos a inquiriam candidamente, pedindo notícias, pormenores do sinistro.

As famílias dos náufragos que moravam distante, lá para a Lagoinha, desciam em direção à praia, num alvoroço: para abraçar os pais, os maridos e os filhos. Havia por isso, em todo o arraial, um movimento de romaria. E quando algum dos marinheiros avisava os seus entes queridos, o seu lar, o bem maior da sua vida, desprendia-se, por instantes, do lutuoso cortejo, e eram então abraços ardentes, choros de emoção e de alegria, nas porteiras, nos terreiros sob as ramagens verdes dos caminhos...

Mas logo a vela prosseguia, naquela peregrinação dolorosa.

Ao chegar à venda do Lemos, uma multidão de ajudantes, camaradas das redes e alguns tripulantes do Andorinha, que ainda permanecia no porto carregando — correram ao encontro dos náufragos, ruidosamente, num júbilo :

Ó Antonio! Ó Figueira! Ó Constâncio!... Então por aqui, depois de tantos perigos?... Ora sempre Deus era grande e tinha compaixão dos infelizes!

— É verdade, gente. Mas lá ficou o nosso capitão, lá ficaram o Samuel e o Justino, coitadinhos! Quem diria que tornaríamos sem eles! O que era a vida, o que era o destino!

E dos olhos de todos aqueles marítimos, raiados de sangue pela refração solar do oceano, nos tombadilhos, as lágrimas corriam, duas a duas, silenciosamente...

Lá em cima, no morro, a Maria Virgínia, a essa hora mais calma, mais resignada, naquela quase consolação de poder ver ao menos a vela do navio do marido, queria por força descer abaixo, ao caminho. Mas os parentes e as amigas protestavam, opunham-se:

— Que não! Que não! Pois se a vela ia passar por ali, porque tinha de ficar aquela noite na ermidinha da Senhora dos Navegantes! Não! Que tivesse paciência, esperasse um instante. Ela viria...

Com efeito, o pano do brigue ia ser depositado ali até outro dia. O Figueira já falara ao sacristão, e este apressara-se logo a subir à capelinha, cuja porta abria-se agora lá no alto da montanha, dominando as praias, as ilhas, todo o oceano, como nas manhãs claras de missa...

Mas o sol rolava já no horizonte, numa barra sulferina. A planura imensa das águas resplandecia a oeste, maravilhosamente, como um estranho tablado de pedrarias. Canoas ao longe corriam, com velas tintas a zarcão, sob a luz fugidia, evocando feericamente o esquisso luminoso de uma remota marinha fenícia, singrando, num poente vermelho, o cetim do mar de Tiro. E contra a costa arenosa e límpida fechada a um lado pelas rochas altas do Rapa, cobertas agora de uma fascuração sanguínea de mica, o cair lento e melancólico de uma poeira de nanquim, onde se distinguiam, numa eteral agonia, os primeiros lilases e lírios das ave-marias...

Então os náufragos apressaram-se e, arrumados à vela, de onde as rosas e palmas pendiam, já murchas e tristes, como sobre um pano de esquife, tomaram o tortuoso e empinado caminho que levava à ermida. E, de novo, repetidamente, o estribilho sonoro da canção marítima ecoou pelo ar, manso, súplice, pungentíssimo:

Senhora dos Navegantes,

Amparai-nos lá dos céus:

Que por todos os quadrantes

Acalmem-se os escarcéus.

Em frente ao terreiro da Maria Virgínia o préstito estacou. Uma aglomeração de pessoas tomava aí a estrada, numa altitude compungida. E logo, da casa toda aberta e em sombra, rompeu uma orquestração clamorosa de choros e gritos. Dentro, a pobre rapariga debatia-se, numa angústia sem nome, em meio aos braços das amigas, que a conduziam carinhosamente para uma das janelas, procurando impedi-la de sair ao caminho, dizendo-lhe docemente:

— Olha daqui! Olha daqui!

Porém ela, desatinada, convulsa, num nervosismo, retorquia-lhes:

— Não! Não! Deixem-me sair! E com a ideia sempre fixa no marido: — Quero ir beijar ao menos a vela que lhe escutou o último suspiro...

E, desprendendo-se de repente, atirou-se para a rua, como uma louca, por entre a multidão estarrecida.

Foi então uma cena comovente, tristíssima. Todos, em volta, tinham os olhos rasos d'água, as pessoas do povo como aqueles velhos marítimos.

E a Maria Virgínia, de joelhos, abraçada à vela, toda banhada em pranto e agitada por soluços que a sacudiam intermitentemente, beijava a velha lona náufraga, beijava-a, como numa ardente e extraordinária consagração divina. A sua voz, a espaços, debilmente vibrava: trêmula, entrecortada, aflitíssima, no meio do pesado silêncio do céu vespertino:

— Ai! que dor! Ai! que dor!... Virgem Santíssima!...

E como ela se delongava sonambulamente nessa genuflexão de martírio, o rosto desfigurado, muito branco, como quem vai cair numa síncope, os parentes acudiram, arrancando-a piedosamente dali.

A vela, sempre acompanhada de povo, pôs-se outra vez a caminho, embalada pelo ritmo sonoro da canção, cujo agro estribilho aumentava agora de dolência monótona. Nesse instante, o crepúsculo cerrara-se de todo, amortalhando os longes, as montanhas e as águas, com os seus grandes véus mortuários de cinza...

Rio, 1893.

A cabra-cega

A Laudelino Freire

O rosado vivo do crepúsculo esmaiava já numa palidez fria que um azul ferrete invadia, quando o André, depois de arrumado o gado, de porrete em punho e chapéu à banda, encaminhou-se cantando para a Várzea de Baixo, onde o engenho do tio Luiz Dutra, de fornalha acesa, bulhando de alegria, farinhava para todo o ano.

Ia lentamente escurecendo. Um gelado sopro do norte deslocava-se, rijo e sibilante, do pendor alcantilado da serra; e, de vez em quando, fortes rajadas, cortantes como lâminas afiadas, passavam, rastejantes e furiosas, arrepiando as árvores e enchendo de uma zoeira lúgubre a planície. No alto, do amplo azul curvo e esgazeado do Espaço, pendia e cintilava uma prateada e deslumbradora florescência de estrelas, que a Via Láctea brandamente nevava e atravessava em faixa.

Ainda em caminho, já quase ao chegar à encruzilhada que ia dar ao engenho, o André ouviu bem clara no ar a voz melancólica e sonora do forneador, cantando a Bela menina, e as frescas e tilintantes risadas das moças, dentre as quais sobressaía, límpida, simpática e doce, a da Francisca, a filha mais nova do tio Luiz. E, estugando o passo, ansioso por chegar de uma vez, avistou, logo adiante, o clarão avermelhado do forno do engenho, que se projetava através da porta, largo e suavíssimo, iluminando transversalmente o terreiro arenoso e branco, onde dava grandes latidos roucos, ao sentir barulho de gente, o Fila, o velho cão de guarda da casa.

Explodiram de novo as castas risadas das raparigas, que atravessavam aos pulos, com as saias ao vento, a claridade viva da porta.

Brincava-se a cabra-cega.

O André, ao chegar, mal pôs o pé no portal e deu boa-noite a todos, fazendo um gesto de longe com a mão direita aos lábios para pedir a bênção aos tios que peneiravam num cocho massa para beijus, raspou-se logo a ter com as raparigas que se divertiam escondidas pelas ervagens, pelos cafezeiros e laranjeiras próximos, enquanto uma outra, baixota e de grandes ancas carnudas, vendada nos olhos com um lenço arroxeado em volta da cabeça, as procurava por toda a parte, com um tato incerto e desajeitado de cego, estonteada, às apalpadelas.

Então o André gritou que também queria entrar na brincadeira e, disparando em seguida, foi acocorar-se numa das empenas do engenho, dando o sinal de “ticar”, fazendo — uh-uh! E por um descuido e uma facilitação de rapaz adestrado e manhoso, foi-se deixando ficar parado, até que a rapariga, casualmente, o pegou pelas costas, vocalizando sonoramente:

— Está tico; tiquei!

Todos correram então para a canzola, num grande alarido de satisfação; e a Francisca Dutra, a mais galante e desembaraçada da roda, a bela namorada do André, saiu à frente, e desatando o lenço do rosto da Joana o foi atar nos olhos dele, com segurança, a grandes nós rijos atrás da cabeça. Depois, batendo-lhe de mão espalmada nas costas, na atitude inquieta e livre de quem quer fugir, com um aspecto de gazela arisca, deitou a correr com as companheiras para trás do engenho, após ter pronunciado violentamente à grossa nuca do rapaz, com o seu bom hálito quente e perfumoso, as velhas e tradicionais palavras cabalísticas, que a gente sabe tão bem de cor na infância:

— Cabra-cega, de onde é que vens? — Venho do Moinho. — O que é que trazes? — Um saquinho de farinha. — Dá-me um bocadinho. — Não te dou, não!

E ditas estas palavras, muito entrecortadas de riso, sob a pressão suave da derradeira palmada do jogo que manda partir imediatamente os que se vão esconder, o rapaz botou-se, a toda, na direção ruidosa das saias esvoaçantes. Atravessou-lhe então o espírito, como uma lava, uma ideia deliciosa de amor: perseguir a Francisca, a adorada amada e agarrá-la, abraçá-la e beijá-la ali, sofregamente, sob as ramagens...

E, seguindo o fru-fru guiador do seu rastro, com o coração aos saltos sob aquela lembrança inefável, atravessou a correr pelos fundos do engenho, onde estacou subitamente ante a presença embaraçadora de umas sebes altas, que floresciam vigorosamente aí impedindo a passagem por aquele lado. Desesperado, tentou arrancar o lenço, mas não o conseguindo pela segurança com que lho tinham amarrado, começou nervosamente a tatear as ramagens, respirando a longos haustos: e dando de repente com uma aberta na verdura, onde lhe pareceu que um rumor se aninhava, avançou logo precipitadamente, num grande alvoroço...

As bananeiras, perto, farfalhavam melancolicamente, com as franjas tremulando à rajada do vento.

O André, de um ímpeto, rompeu a rebuscar as moitas entrelaçadas, quando esbarrou com um corpo de mulher agachado; e julgando que fosse a Francisca, todo trêmulo e emocionado, as mãos escaldando, numa arrebatação, o foi apalpando e enlaçando carinhosamente — a alma em febre, ofegante, numa saciação frenética de beijos, pela nuca, pelo seio e pela cara.

A mulher, então, desandou a berrar como uma louca, esganiçadamente, e ele, estranhando lhe a voz sibilante e desafinada de velha, soltou-a logo, assustado, nervoso, numa “entaladela”, arrancando o laço dos olhos atrapalhadamente, num pânico, numa perturbação, arranhando a pele do rosto trigueiro com as suas grossas mãos, duras e calosas de lavrador. E ao reconhecer que era a mulher do Domingos Téa, o Cara Feia, como o chamava o povo, pelo acentuado feroz das suas feições, sempre afiveladas numa seriedade carrancuda e hostil de assassino — um bruto que só de um murro matava-o! — abandonou tudo e deitou a correr para a estrada como um cão perseguido.

Santa Catarina, 1886.

O velho Sumares

Ao Almirante J. Justino de Proença

I

O Galgo, tomada a última barcada de negros, fizera-se de vela. Bordejava ao terral da madrugada, na pequena enseada de Ambriz, os faróis apagados para escapar aos cruzeiros ingleses e ganhar o mar alto, onde ninguém o vencia. As primeiras barras do dia começavam a clarear para os lados de terra, e o navio, ainda entre pontas, não conseguia fazer-se ao largo. No tombadilho, passeando de bombordo a boreste, o velho Sumares praguejava, porque o vento ia escasseando. O brigue caturrava lentamente na vaga e ele olhava preocupado o horizonte a oeste, sondando-o com um longo olhar inquieto, através da obscuridade...

II

Das trinta e seis perigosas viagens à Costa, nenhuma lhe custara como aquela. À saída do porto, pegara logo uma lestada que arrebatara um mastaréu, inutilizando-lhe um homem e fazendo-o rolar, durante oito dias, aos trambolhões, à capa. Depois, fora aquele “raio do diabo” do Contest perseguindo-o, na última semana, com uma tenacidade formidável, até a antevéspera, em que conseguira escapar, graças à intensa escuridão da noite, na baía de Biafra. Ainda sentia subir-lhe o sangue à cabeça, numa onda de raiva, à lembrança daqueles sete dias perdidos, de contínuas e trabalhosas manobras, ora escondendo-se nos recantos da costa, ora sumindo-se nos vagalhões do alto mar. E, todas as manhãs, sempre à vista, as velas perseguidoras do maldito cruzeiro! Carregara, durante dois dias e duas noites, num sobressalto, sem arriar ferros, só com um ancorote, pronto a suspender ao primeiro sinal. E, pela primeira vez, sentia-se fatigado dos seus setenta e seis anos de mar.

Porque o velho Sumares nascera no oceano, na altura das Canárias, na câmara de uma galera das Índias, uma alegre manhã atlântica, de mar manso e céu claro. Seu pai, o capitão de bordo, era um famoso náutico, descendente de uma antiga família de marítimos do Algarve. Chamava-se Manuel Sumares, mas ora conhecido, entre os capitães portugueses do seu tempo, pelo Manuel Mastro, em virtude do seu porte teso e agigantado, do excepcional sangue-frio no perigo, da grande força muscular. Nunca tremera diante da tormenta, nem sentira a fadiga das viagens. Piloto muito moço, apenas tirara a carta, começou a comandar. A mulher, que o acompanhava sempre pelos mares, uma robusta filha de pescadores da Póvoa, morena e planturosa, com uns olhos negros esplêndidos, fora criada nas praias, aos ventos salitrosos do oceano e ao cadente rebentar das vagas. Tivera seis filhos homens, dos quais os três mais velhos, ainda muito tenros, começaram a labutar sobre as águas. Casara aos quatorze anos e saíra logo a viajar. Muito forte, muito corajosa e saudável, nas constantes viagens, vivia sempre em cima, no tombadilho, ao lado do marido, acompanhando o movimento das manobras com intrepidez máscula. Isto fazia com que os marinheiros, nas palestras íntimas do rancho, a tratassem sempre pela Velha Náutica.

O Sumares herdara do pai a gigantesca estatura, a calma extraordinária e a possança viril de músculos, coroadas por uma inteligência natural e um incomparável espírito de aventura. Da mãe, recebera a beleza cinzelada do busto e os grandes olhos nanquinados, imprimindo uma radiação e um encanto à larga fisionomia ariana, emoldurada em bela barba basta e numa espessa cabeleira ondeada. Aos quinze anos, todo imberbe, era lindo, forte, escultural, lembrando o filho de um pescador do Pireu, ou um antigo grumete dos Argonautas. Bem novo ainda, com pouco mais de dez anos, entrara a servir, como moço de convés, sob as ordens do pai, revelando desde logo extraordinária, vocação para a vida do mar. Assim fizera numerosíssimas viagens. Foi em Santa Catarina, onde naufragara numa sumaca portuguesa que ia para o Prata, que obtivera o seu primeiro comando, num palhabote da pequena cabotagem. Tinha então vinte anos. As viagens eram para o Rio Grande do Sul, e, em uma delas, o Sumares realizava inesperadamente a sua primeira aventura, salvando, com risco de vida, sob um pampeiro forte, toda a tripulação de uma barca inglesa, naufragada na barra. Valeu-lhe esta “áfrica” uma medalha do governo britânico, acompanhada de um riquíssimo binóculo de master, com uma inscrição e o seu nome nos cilindros dourados, onde se falava da Rainha Vitória e do Almirantado.

Este fato e outros, numerosamente ocorridos em toda a costa durante aquele inverno de tremendas borrascas, deram-lhe, desde logo, nas duas províncias do Sul, uma grande notoriedade. Só se falava então no capitão Sumares. Depois, nos navios de longo curso, que iam continuamente às Antilhas e à América Central, para onde se encarreirara, fez, com o seu imenso prestígio de marinheiro genial, prodigiosas salvações no mar. E, entre todas as viagens ali, era célebre a temerosa travessia sob o estourar dos ciclones no Golfo do México, onde sessenta navios soçobraram, só escapando ele num velho patacho.

Mas a formação da sua estranha biografia, quase inverossímil e lendária, a que a imaginação popular dera cores fantásticas, sobrenaturais, teve lugar, com mais publicidade e ruído, quando capitão dos navios da Costa, no tráfico do escravo onde ocorreram inauditos casos. Aí enriquecera, logo no começo, a dois armadores do Desterro, com magníficas viagens dando resultados consideráveis. Como casara, porém, na família Calado, uma antiga firma comercial, também armadora e agora um pouco atrasada pelas contínuas perdas no mar, nos últimos anos — passou a comandar um dos navios da casa.

Escolhera, entre os quatro restantes, o Galgo, que fizera apenas uma viagem à África, e essa mesma com tanta infelicidade que os ingleses o haviam aprisionado, já na volta, depois de oito dias de singradura larga, levando-o com carregamento e guarnição para Santa Helena, onde o abandonaram. O desastre se dera porque o capitão dessa época, aterrorizado desde um temporal que apanhara pelo equinócio, e que obrigara a correr em árvore seca, durante um dia, aos boléus, sobre os vagalhões irados — tivera medo de puxar pelo barco, por causa do mar e do sul terrível que reinava, temendo-lhe o casco esguio, o enorme pano, a guinda desmesurada.

O navio era novo, de um modelo lindo, uma construção rara. E o novo capitão, ao sair a barra, pela primeira vez, no Galgo, puxando todo, às bordadas, contra o norte duro, reconheceu logo, pela excelente marcha, que aquilo “era uma espada”. Ao botar-se a barquinha, verificava-se sempre oito a dez milhas folgadas — à popa, à bolina, a um largo. Foi nessa viagem que o Sumares começou a série inédita e louca de aventuras que tanto o celebraram entre os capitães costeiros, e das quais se saiu sempre vitorioso até aquela bem cercada agora de maus presságios...

III

Mas claridades róseas começaram a alastrar o céu — e o sol rompeu, num pasmoso esplendor tropical, fazendo destacar, muito vivas, as areias brancas da costa, as florestas à beira d'água e, ao fundo, as montanhas cinzentas da Serra Leoa, sumindo-se além, num esvaecimento nostálgico. A luz de ouro jorrante cobria de inúmeras placas rutilosas a vastíssima amplidão do mar. A oeste, o curvo e imenso horizonte se mostrava agora, deserto e longínquo, numa extensa linha azulada...

De repente, das águas de Benin, dobrando o cabo de Palmas, ao noroeste, velas branquejaram. Era uma embarcação de alto bordo.

O velho Sumares, à amurada, de binóculo em punho, observava atentamente o navio: proava naquele rumo, à grande distância, por isso não podia distinguir bem. Supôs, a princípio, uma galera portuguesa, de torna-viagem às possessões na costa. Mas, ao virar de bordo, reconheceu que era um brigue, trazendo à mezena a bandeira inglesa arvorada:

— Ah! com um milhão de raios, o Contest!...

E mandou logo virar para o sul.

IV

Todo aquele dia seguiu-o, ameaçadoramente, como na última semana, a terrível proa, que só desapareceu ao cerrar da noite, mas cujos faróis acesos brilhavam, através da treva, espreitando-o sinistramente, como os olhos de um felino fantástico. Pela madrugada o vento escasseou, e outra vez avistaram, à doce luz dourada do Levante, quilhando-lhes a esteira branca, sobre as águas de sable, o temeroso casco. A maldita calmaria, tão conhecida naquelas paragens, começava. E o cruzeiro vinha-lhes na alheta, já muito próximo, a menos de três milhas escassas.

O velho Sumares receava agora o alcance da artilharia que montava o navio, mas guardava o sangue-frio habitual, observando o menor movimento do inimigo. O piloto, no arco de gávea, procurava devassar o convés inglês com o seu longo olhar. E a guarnição do Galgo, de cima do castelo, mirava, o sobrolho carregado, a aproximação do brigue.

 Era colossal o vaso britânico, pelo seu comprimento, um enorme pontal, a alterosa mastreação, sendo que só as gáveas e os joanetes podiam dar para todo o pano do Galgo!

 E alguns dos marinheiros, rudes velhos encanecidos no tráfico, que tinham sido aprisionados de uma feita por um dos cruzeiros, lembravam-se ainda, com terror, olhando o monstruoso navio, dos maus tratos e da cruel desumanidade da maruja inglesa. Os que ofereciam resistência nas abordagens ou davam combate eram içados, depois, no lais das vergas, ou passados de mergulho por debaixo do casco ou calabrotados...

— Um inferno! concluía o velho gajeiro Domingos, o mais idoso da companha; só faltava matar-nos, trincar-nos os bofes... Excomungados! E ali estavam a segui-lo! Só se aquele barco, o Galgo, já estivesse com craca, senão os havia de ensinar, aos patifes, deixassem estar! E demais com quem! Com o velho Sumares... Ora, os diabos!...

Os outros, que o ouviam, exclamavam entusiasticamente:

— Quais quê! ao Galgo nem uma bala o pegava! Aquilo era um corisco pra andar! Dessem-lhe vento, que era o que ele queria! E que fossem bugiar os cursários!

 E fixavam o Contest, franzindo o beiço, com profundo desdém, como marinheiros que conhecem o seu barco.

O João Catarina, que subia do rancho para render o homem do leme, e que ouvira o fim da conversa, gritou-lhes também, voltando-se, com uma das mãos à cinta, endireitando a faca:

O que, rapazes? o “carroça”? Não dava pra nada... Pois se aquilo era pior que uma boia!...

Mas, à ré, o velho Sumares não tirava o binóculo do barco. Parecia-lhe, inexplicavelmente, que o outro se aproximava mais, apesar da calmaria. E intimamente pensava:

 — Talvez efeito das correntes, das águas...

Começava a estranhar, porém, o silêncio das baterias já em alcance quando, de repente, o piloto gritou para baixo:

— Fazem sinal para atravessar!... Fazem sinal para atravessar!...

Em seguida, um estampido grosso e rouco de canhão rolou sobre as águas, que o sol a pino o malhava.

— Ah! os miseráveis ameaçam-nos! rosnou o velho Sumares, vendo uma nuvem de algodão que se adelgaçava lentamente, cobrindo o brigue à meia-nau.

Os marinheiros, pelas amuradas, à proa, berravam, numa indignação:

— Olha os estupores! Vão balear-nos! vão balear-nos!

E efetivamente, dali a instante, os tiros repetiam-se, à bala.

O cruzeiro, todo em pano, entrando ainda para vante, estava já à distância de braças. Agora, das enxárcias, dominava-se-lhe toda a vasta tolda: à popa, o comandante e alguns oficiais moviam-se furiosamente, em manobras desesperadas, enquanto outros, às baterias, mandavam o fogo.

Todo o horizonte em torno deserto no seu grande disco nostálgico. E o mar, de altos vagalhões, desviava as pontarias, arrancando pragas aos artilheiros furiosos.

O Galgo, quase parado na ausência dos ventos, parecia entregar-se, numa fatiga de animal cansado, à explosiva fúria inimiga. O velho Sumares, ao catavento, sob as balas cruzando o convés à ré, sem poder corresponder ao ataque, numa íntima e intensa revolta de encolerizado, posto que exteriormente calmo, olhava, em meio do ranger zarro das vergas e dos mastros onde o pano murchava, as evoluções do navio, sacudindo leoninamente a grande barba espessa e a bela cabeça alva.

O Contest, porém, não adiantava mais uma braça, meio atravessado, só atirando com os canhões de bombordo.

Durante duas horas o Galgo não fora atingido; mas, de repente, uma bala atravessou-lhe as amuradas. Foi um choque horrível, seguido de outro que despedaçou a lancha grande, nos picadeiros, sobre as escotilhas fechadas. No porão, nesse instante, correu como a zoada abafada de um gado preso, tumultuando. E guinchos loucos silvaram, entre-vante do mastro do traquete, pelo escotilhão acima. O contramestre, com três marinheiros, arrancou logo o quartel gradeado, e desceram todos, de calabrote em punho...

O velho Sumares estremecia, num desespero brutal, observando todos os movimentos do inimigo contra a balaustrada. E logo grossas vozes de comando irromperam-lhe dos lábios. Os marinheiros acudiram imediatamente, galgando os enfrechates, no meio do fogo gritando de espaço a espaço.

Pela primeira vez, nesse momento, o sangue calmo do velho marítimo sublevava-se naquela tolda rasa, mas sem o trair apesar do grande abalo.

As balas inglesas choviam, entretanto, sobre o tombadilho a jogar, carregando tudo numa devastação formidável — o espelho da popa, a gaiuta, as pipas da aguada...

E toda a companha tinha agora movimentos atônitos, sob o fogo que aumentava.

O piloto porém, à proa, animava-a com a sua rude calma e alegre vozeria, mandando safar os ovéns e brandais que se despedaçavam. Era um rapaz dos Açores, de trinta anos, robusto e vivo, de uma intrepidez colossal. O velho Sumares conhecia-o desde menino e adorava-o pela sua coragem. Fora isso que o fizera, ainda muito jovem, genro e piloto do velho lobo do mar.

Mas a brisa do norte começava a cair fresca, e o Galgo aumentava já a singradura quando acertou-lhe um balázio num mastro. Então, em todo o navio houve como um estremeção geral, num formidando ruído de derrocada — e panos, vergas, mastaréus e mastro entraram a flutuar em roda, desfeitos, aos pedaços, como arrebatados, num temporal. E, subitamente, vinte pulmões vigorosos estrugiram, numa explosão de pragas:

— Má raios os partam!... Covardes!... Má raios os partam!...

Fora o mastro grande que rebentara caindo de través sobre o trincaniz, destruindo a borda falsa.

— Felizmente, ninguém apanhado! gritou o contramestre, que vinha para a popa, branco como a cal.

E o velho Sumares, junto ao leme, berrava, apoplético, a bracejar:

— Salta à ré! salta à ré! Com um milhão de diabos! Safa... safa!...

A gente caiu, numa rajada, sobre os destroços da cordoalha, coalhando todo o convés, por cima da câmara, e rompeu a cortar à machadinha e à faca os cabos, enquanto o navio atravessava batendo as velas de proa.

Sobre os vagalhões em torno, boiavam agora, sinistramente, pedaços de mastro como despojos de um naufrágio.

O Contest, que fora deixado longe, cessara já de atirar.

A guarnição do Galgo, numa faina trabalhosa, safara, em poucos momentos, o convés, e o brigue, estalado o traquete, virara logo, deixando tudo para trás sobre o mar...

Quando o crepúsculo se desenhou a oeste, alastrando o horizonte, numa vaga iluminação dourada, já o terrível casco britânico desaparecera, como soçobrado...

V

Daí a dias, numa esplêndida manhã de sol vivo e mar calmo, o navio, só com um mastro, entrava vitoriosamente o Arvoredo. Fundeara na Ponta das Canas, onde fora lançado o carregamento e no outro dia, à tarde, o velho Sumares seguiu para o Desterro onde, desde o amanhecer, não se falava senão no Galgo.

Por toda parte, nas ruas e nas casas, o nome do célebre mareante cintilava como o de um personagem fantástico, em meio às exclamações e comentários. E durante meses, foi essa extraordinária viagem o assunto mais querido das palestras entre aquelas populações da beira-mar, que têm toda uma simpática predileção pelas lendas marítimas.

O velho Sumares nunca mais embarcou, expirando aos noventa anos de idade, entre os carinhos deliciosos das filhas e dos netos, na sua pitoresca habitação da Arataca. E a história da sua vida rude e aventurosa ainda é hoje relembrada, com inefável ternura, na placidez venturosa dos serões, nos lares.

Rio, 1892

História rústica

À Memória do Dr. Remédios Monteiro

I

Era já noite alta quando o Zé Lírio transpôs a porteira, bêbedo a cair. Recolhia das Areias, do engenho do Gaia, ainda àquela hora aceso e ruidoso, onde uma multidão bailava e ria, numa alegria campestre, celebrando as bodas da Josefina, uma das filhas mais novas do velho lavrador. A rapariga casara ao entardecer, sob um poente de púrpura e o dobrar dos canários nas ramagens dos caminhos. O noivo era um primo, ausente desde anos, longe no Rio Grande do Sul, de onde chegara havia semanas a visitar a família. Moreno e robusto, o rapaz encantava, pelo porte hercúleo, o sorriso límpido, o brilho negro dos olhos, a cor quente e viril do rosto tinto pelo sol do mar. Crescera e se fizera homem como remador, no rude serviço da barra, onde ganhara algum dinheiro, passando depois a contramestre de iate. Mal chegara ao sítio, apaixonara-se pelos cabelos dourados da prima, os seus olhos azuis de longos cílios bastos, os dentes alvíssimos, o corpo alto e primaveril, de amplas ancas virginais. A prima correspondera-lhe logo às carícias másculas, abandonando para sempre o Zé Lírio, coitado, que a adorava loucamente, desde muitos anos. E, ajustado o casamento, tudo se consumara naquele sábado.

E ali, agora, numa angústia, na grande dor do coração apunhalado, o Zé Lírio não pôde dar mais um passo: tropeçante, as pernas trêmulas, agarrando-se às varas da estreita cerca que ia dar ao terreiro separando o vasto pasto ao lado, foi-se arrastando até os degraus de pedra da entrada, onde caiu, preso dos soluços e das lágrimas apesar da carga de álcool, a cabeça pendida, numa atitude alquebrada...

II

Todo aquele dia levara a beber, numa longa inquietação, a cruzar a estrada, por defronte do engenho, onde havia uma animação desusada. Às vezes, sem ninguém o ver, dando volta pela Várzea, metia se no extenso mandiocal da empena, que ia até o campo, e ficava horas e horas a espreitar, agachado sob as ramas verdes tremendo ao vento. Daí, por debaixo das frondes do laranjal e do cafezal em redor, entre os troncos eretos, descortinava as paredes barreadas dos fundos e o terreno arenoso onde a criação se agitava vivamente, cacarejando sob a luz de ocre ardente. Na varanda linguarejava-se, numa algazarra adorável. De vez em quando, raparigas da vizinhança, que tinham ido ajudar os preparativos da festa, e a Josefina, atravessavam, num rumor alegre e chalrando, para os lados da fonte. No cercado da horta, saias brancas engomadas fulguravam ao sol.

Então, enternecido e acometido de dolorosa saudade, entrou a lembrar-se dos tempos felizes em que começou a frequentar o engenho. Fora por umas farinhadas, havia dez anos, tinha ele dezoito. Um dos filhos do Gaia adoecera das bexigas e ele fora ajudar a fornear. Era num inverno de grande geada. Em todos os cantos tiritava-se. E as raparigas, que raspavam a mandioca, logo ao escurecer iam empoitar-se para ao pé do forno, junto às brasas dos toros, cujas labaredas vermelhas e risonhas aqueciam e clareavam a casa, mais que as chamazinhas mortiças das antigas candeias de azeite, ardendo penduradas aos altos paus do aparelho. E a Josefina, que andava ainda pelos doze anos, mas muito desenvolvida, com os seiozinhos nascentes espetando o largo corpete de chita, os lindos olhos de um azul úmido e novo, a cabeça coroada de esplêndidas meadas de ouro caindo-lhe pelas espáduas ebúrneas até a curva deliciosa e escultural dos quadris — entrou a preocupar o seu coração, ainda virgem e são como as estrelas, dominando-o, imprimindo-lhe sensações e sonhos que lhe faziam pulsar mais forte o sangue nas veias. Nascera-lhe então uma grande alegria, uma grande esperança, com estremecimentos nervosos, as impetuosidades meigas dos que acordam para o amor. A rapariga, na intimidade do trabalho e naquele conchego magnífico e constante dos engenhos, pelas invernias bravas, portas fechadas ao leste cortante desde a tardinha olhava-o sempre afetuosamente, sorrindo, admirando-lhe o tórax rijo e socado de roceiro, cujos braços possantes, durante as longas fornadas, moviam a pá sem descanso. Ele olhava-a também, timidamente, furtivamente, numa imensa candura de cão. E todas as noites os seus olhares voavam de um para o outro, com inefável ternura, à luz da fornalha crepitante...

Mas decorreram os meses, a mandioca acabou. O trabalho daquele ano findara. A sua paixão, porém, tornara-se mais intensa, e ele, muito estimado pelo Gaia e a família, não saía do engenho, frequentando-o à noite, nas palestras carinhosas dos serões. No ano seguinte, pelas novas farinhadas, já a afeição de ambos tinha uma reciprocidade mais íntima; falavam-se a sós, sem os acanhamentos, as hesitações dos primeiros tempos; e, a certa hora, de dia, davam-se rendez-vous ingênuos à sombra das ramagens, no pomar, ou junto às pedras da fonte, mutuando confidências infinitas, desviando-se os olhares, num embaraço rústico que os tornava escarlates, apesar da frescura que se erguia do espelho verde d'água onde, muitas vezes, o salto inesperado de uma rã os fazia debandar, num temor.

E fora dentro daquela horta, que ele estava agora a contemplar enternecido, que ela lhe dera o primeiro beijo, uma manhã de festa, quando colhia rosas para Nossa Senhora. Ainda lá estava, cobrindo toda uma parte da pequena cerca, erguida vitoriosamente para o céu nos braços frondentes e altos do cinamomo, com as suas inumeráveis corolas amarelas radiando como astros, a velha roseira da Índia que tanto os cobrira com o seu esplendor e fragrância. Como a sua vida correra plácida e feliz, então!...

E, num desfalecimento e numa angústia, rompia a chorar por momentos; depois erguia-se, numa fúria, os olhos raiados de sangue, os punhos cerrados, ameaçando a casa por entre as verduras. E afastava-se, resmungando, num nervosismo, quebrando brutalmente com os pés a rama tenra que lhe impedia o caminho...

III

À meia tarde, quando começavam a afluir ao engenho os convidados, Zé Lírio encaminhou-se para a venda do Justino, na Rua Velha, por onde tinha de passar o noivado. Nesse momento entravam a se aglomerar à porta os primeiros rapazes para a costumada algazarra da noite. O Zé entrou praguejando, todo sujo, os cabelos emaranhados, chapéu carregado sobre a fronte, as feições amarradas, e, dando “boas tardes” a todos, foi sentar-se a um canto, pedindo cachaça. Tinha a larga face cavada, engelhada, a barba revolta, e os olhos reluziam, negros e inchados nas órbitas, com uma luz desvairada. De repente, recaiu num silêncio e, com o braço apoiado ao balcão, parecia dormitar. Ninguém ousava falar alto, temendo-lhe as amplas espáduas possantes. Apenas alguns, mais afastados, comentavam baixo o “caso” do pobre rapaz, com palavras de compaixão e afeto.

Mas, subitamente, as crianças que andavam a traquinar no terreiro, romperam a gritar, num alarido infantil:

— Olha o casamento! Olha o casamento!

Todos correram para a porta, quando o Zé Lírio ergueu-se, de um salto, de faca em punho, procurando investir para a estrada, aos berros:

— Ah ! que os mato!... Canalha!...

Foi uma debandada, uma balbúrdia de mil demônios. Mas o Justino, que tinha uns músculos de touro, um homenzarrão, outrora tropeiro e domador, pulou-lhe em cima, com uma presteza de gato, e agarrou-o de um ímpeto, enlaçando-o pelo tórax e empurrando-o, aos trambolhões, para o fundo da venda.

Agora, de toda a parte acudiam pessoas.

No préstito festivo, enfrentando a casa já de volta da igreja, houve como um frêmito, uma perturbação que o fez estacar, empalidecendo a todos, em presença do motim. O noivo conservava-se, porém, impassível, hercúleo e ereto no seu fraque preto cheio de dobras, mas a seu lado, a noiva parecia trêmula e de cera, sob o tule tênue do véu.

No ajuntamento que se adensara em volta, vozes clamavam:

Não é nada, gente! É o Zé Lírio com a cana!

O préstito recomeçou a sua marcha, enquanto lá nos fundos da venda o rapaz, num desatino e colérico, tentava furiosamente desprender-se dos braços poderosos do outro.

À noite, já de todo acomodado, o Zé Lírio soltara-se para as Areias. A lua cheia mostrava o disco além, por cima dos montes da cachoeira, lavorada e branca como uma salva de prata, voltada para os campos, vertendo um polvilho de claridade. O rio, lá embaixo, no seio chato da planície, estendia uma larga faixa rutilante de níquel, comida aqui e ali pelo mangal denso das margens. Nos maciços de folhagens, cujos cimos escorriam umidade láctea, a brisa álgida do norte gemia melancolicamente. Do alto espaço azulado, as estrelas lançavam cintilações de diamantes em poeiras inumeráveis. E jamais a profundidade dos céus pareceu conter mais densa nuvem de pó luminoso.

O Zé seguia, de cabeça inclinada, pela fita clara e arenosa do caminho correndo entre sebes, ruminando a sua dor no cruel despedaçamento de todo o seu ser. E essa noite admirável, sob a qual caminhava com o desespero no coração, parecia-lhe pungitivamente uma tremenda ironia da Natureza, sempre indiferente e inabalável às coisas humanas!

Ao descer o Caminho Novo, depois da chama de cólera em que ardera, uma nostalgia sem nome varou-lhe a alma, ao avistar ao longe a profusa iluminação do engenho, destacando saudosamente por entre a verdura. Na encruzilhada, quase ao pé da porteira estacou, ao deparar-se-lhe multidão enorme, homens e mulheres que se apinhavam no terreiro, banhado pelas luzes derramando-se das janelas, de onde lhe chegava aos ouvidos o rumor compassado da dança de envolta com os sons roufenhos de uma gaita. Temendo ser visto, ganhou a picada do Bom Jesus em direção à venda do Teixeira, de onde voltou depois, às guinadas, bêbedo, completamente bêbedo. E, cortando pelo imenso vassoural que ia sair defronte do engenho, varou o caminho, onde errou toda anoite, num esmagamento de derrota, a praguejar desesperadamente contra os que não o ouviam, embriagados também nos arruídos da festa. Afinal, numa última e já cansada revolta, tomando o caminho de casa, pela vez derradeira lançou ao vento este brado angustioso e pressago, que longamente ecoou no ar:

— Desgraçados!...

E desapareceu, aos solavancos e aos tombos, sob a luz silenciosa do luar tocando agora o zênite.

IV

Havia quase um ano que a Josefina abandonara o Zé Lírio, porque ele, desde a morte da mãe, dera em entregar-se à bebida e, em certas ocasiões, desordenava-se, dando que falar no sítio.

A rapariga não o via desde o último coroado no engenho, onde ele, uma noite, muito embriagado, levantara uma rixa, da qual resultou saírem os irmãos feridos e o pai expulsá-lo para sempre, proibindo-lhe as visitas.

Então, profundamente apaixonado com o desprezo em que o lançara a noiva e toda a boa família do Gaia, à qual a bem dizer pertencia, ficara de todo perdido, dando-se abertamente ao álcool. Mas a sua paixão jamais cessara, e ele, embora arredio, andava ao fato de tudo, sabendo dos passos da Josefina. Por isso, desde que lhe disseram do casamento dela com o primo, nunca mais deixara as Areias, rondando o engenho, noite e dia; e naquele sábado, mais do que nunca, os seus pés infatigáveis freneticamente revolveram ali a poeira do caminho.

V

Agora, à porta de casa, bêbedo e exausto, com o coração despedaçado e vazio, num desmoronamento íntimo de todos os afetos, o Zé Lírio sentia como uma grande enervação inteiriçá-lo, sobre os degraus de pedra. Desfalecido, num acobardamento mortal, ali jazia ainda ao ar gelado da noite. Tudo, em volta, permanecia numa mudez de sacrário. As árvores nem sequer farfalhavam de leve nos campos adormecidos, velados pela dealbação do luar. E nenhum outro som no espaço além do ladrar soturno e rouco dos cães, ao longe.

Rio, outubro, de 1892.

O André canoeiro

I

Com os bois por diante — porque o caminho aí corria ainda em declive suave contra a falda do morro — o André, sentado ao cabeçalho do carro, as pernas bamboleando aos solavancos das rodas, a aguilhada em punho reluzindo ao alto o aguçado ferrão, fizera calar de repente a singela cantiga rústica que ia assobiando para olhar embevecidamente, ao longe, sobre o mar muito manso, a rareada casaria da Ponta Grossa, branquejando além, sob o primeiro clarão da madrugada, pelos montes da outra banda.

Era pelo tempo das farinhadas. Vinham chegando as manhãs de Escócia, álgidas, e as noites sem nuvens, esgazeadas, de junho. Colhiam-se as primeiras roças de mandioca, nas planícies, nas encostas e nas altas chapadas. Havia por todos os sítios um labor alegre e cantado. E em todos os engenhos, à beira das estradas claras e debruadas de verdura espessa, no início dos pastos ou junto ao sopé das montanhas, entre laranjais, o rumor doméstico e plácido das famílias reunidas, sob os tetos baixos de palha, em volta dos braseiros de inverno, na faina festival do trabalho.

Naquele arraial dos Ganchos, um dos engenhos que mais cedo começavam a farinhar, todos os anos, era o do velho Eliseu Brito, padrinho do André e um dos mais abastados lavradores do lugar. Chefe de numerosa família, com filhos e filhas casados, cercado de ninhadas de netos, a maior parte habitando conjuntamente o mesmo vasto prédio que havia abrigado durante quase dois séculos a geração forte de seus antepassados, este bom homem obscuro possuía em si o encanto, a doçura, a bondade cândida de um antigo patriarca. Ali e nas circunvizinhanças o seu nome e as suas virtudes exerciam no povo, em geral, como um prestígio e uma fascinação, grandemente corroborados pelas liberalidades benfazejas e fecundas que continuamente recaíam sobre essa boa população. De toda a parte, por isso, nessa época, muita gente acorria ao seu engenho para o ajudar, enxameando sonoramente o enorme edifício situado a algumas braças do mar, na Baixada Grande. E, durante esses meses frios mas encantadores, em que as cevadeiras cantam deliciosamente, uma alegria marulhosa e campestre estalava em redor, panteisticamente, pelas sebes cheias de aves, pelos cafezais tufados que abrigam amores, e pelas laranjeiras frondentes todas salpicadas de ouro. Das pessoas de fora que tomavam parte mais ativa na faina, o André distinguia-se entre todas, porque, a bem dizer, de menino que não saía da Baixada Grande, onde se criara quase até o dia tristíssimo em que o pai perecera, por um descuido desastroso, na moagem da cana. Fora pela festa de S. João. Tinha ele treze anos. E a mãe, muito aflita e coberta de luto, inconsolável na sua grande amargura, nessa mesma noite, com ele, deixara essas terras, para ir morar com uma tia, no outro extremo dos Ganchos. Mas ele vinha sempre, uma vez por semana, à grande habitação do padrinho, para tomar-lhe a bênção e ganhar o costumado quinhão. E as farinhadas, passava-as sempre no engenho, ajudando a gente da casa, numa labuta constante, com a sua índole intrépida e mansa de bom trabalhador, ora acarretando a mandioca e lidando com o gado, ora cevando e forneando.

Assim, ali ia agora, monte acima, pacificamente, cheio de paz e cheio de felicidade, para as primeiras carradas da manhã. E como daquelas alturas já se desvendassem luminosamente, num colorido, o imenso panorama, a longa faixa litoral do continente toda rendilhada de branco, e os cômoros cor de ocre esbatido, e as pontas de rochas em novelos espumantes, da outra costa de ilha, onde ele há muito trazia preso o coração — acometeu-o repentinamente a lembrança deliciosa de que naquele dia, à noite, começavam as primeiras novenas da coroa em casa do João Sant'Ana. E quedou-se a cismar, a meditar intimamente, na chegada que ia dar, ao anoitecer, até à outra banda. Sim, porque não podia perder aquelas novenas, por nada do mundo! Prometera à Terezinha não faltar a nenhuma. Ela o esperava e, decerto, àquela hora, no terreiro alegre de casa, a debulhar milho às galinhas, num alvoroço feliz, pensava nele, toda rosada e sorrindo sob o esplendor glorioso da luz. Não podia, pois, faltar. No entanto, os trabalhos do engenho reclamavam-no.

Que diabo! Mas arranjar-se-ia, como da feita em que o pai da rapariga estivera a decidir da “pontada”, saindo todos os dias, às Ave-Marias, para a Ponta Grossa, na sua bela canoa a Toninha, e voltando sempre alta noite ou pela madrugada. Se Deus quisesse, ele faria o mesmo agora, sem se apertar, porque desta vez coubera-lhe felizmente o serviço dos carros, que findava sempre à noitinha. Quanto à distância e ao mar, isso pouco se lhe dava: tinha bons pulsos para o remo, quando não pudesse velejar. O tempo, esse não o inquietava, não o amedrontava nas águas, porque estava afeito de criança a todas as suas variantes. Depois, contava infinitas travessias, mesmo para o Arvoredo e para o Rapa, sob ventos desfeitos, vagalhões desesperados. No mar poucos o venceriam, tinha uma “boa estrela”, as ondas o amavam... Que chegasse a noite, era o que ele queria, para ir gozar o coroado.

E, embalado nesta ideia, iluminando-lhe e consolando-lhe a alma como uma longa carícia de amante, voltou a assobiar com bravura, expansivamente, as notas amorosas da Tirana. Os animais puxavam, lançando baforadas de fumo na frescura matinal, toda impregnada de aromas. Na frente do carro, presa à haste rija de peroba, a canga rangia, de vez em quando, nas suas grossas guascas de couro. E, sobre os largos lombos arqueados e os pescoços possantes dos bois, cujas cabeças sumiam-se, para além dos canzis, quase rentes com a terra no esforço da subida, as quatro pontas aguçadas dos chifres, oscilando, enfiadas ao ajoujo.

Mas o caminho aí empinava-se numa volta brusca onde se cavava fundo uma grota pedregosa e abrupta, rolando lá embaixo, entre sebes úmidas, a prata viva e viajora de um fio d'água cantante, e o André imediatamente saltou para o chão, tomando a dianteira do veículo. Nessas alturas, o mar perdia-se de vista, porque as chapadas onde estavam as roças voltavam-se todas para a outra banda. Agora descortinavam-se somente as planuras verdejantes das Tijucas, alongando-se para todos os lados, orladas nervosamente de finas barras de tule, que se perdiam e ondulavam à distância. E à proporção que o carro avançava, o terreno se ia horizontando, até que de repente caiu numa esplanada magnífica, toda coalhada de ramas. Era o mandiocal do morro chamado, um mandiocal gigante, o mais custoso de todos pela sua situação, mas o que melhores resultados deixava ao fim de cada ano. O velho Eliseu Brito, quando às vezes ia vê-lo, na sua guecha branca, pelo tempo da capinação, enchia os olhos de gozo e exclamava num júbilo, o belo rosto radiante:

— É o meu tesouro! É o meu melhor quinhão!...

Quando o André entrou a fazer a volta, num perímetro de terreno limpo, onde se erguia uma espécie de rancho para abrigar o pessoal da roça nas longas estadias da colheita e da plantação, o Hortêncio e o Luís Brito, que o tinham precedido ali ainda nem se anunciava a manha para a faina de arrancar as raízes e arrumar a boa rama, gritaram-lhe logo:

— Ó André, ó brejeiro, pois ainda agora, homem! Descanga, descanga esses bois. Olha, amarra-os lá para aquele outro lance. E anda, demônio! que a mandioca já está aqui a “apodrecer...”

O André, que nesse instante colocava o muchaco e desabrochava os bois, volveu lentamente, com a voz constrangida pela aplicação da força:

— Ora aguardem lá, seus quebras! Isto aqui não é ir variar parelheiros lá para o Capão, nem dar as pernas à ufa nos fandangos da Maria Biana... Temos tempo, o dia é grande. Nem tudo vai a matar...

Mas eles romperam de novo:

— E que é dos outros carros, hein? Por onde deixaste o João Candinha e o Romão! Que diabo! Parece que tudo hoje anda levado da breca! Ora queira Deus o velho não lhes passe por aí um sermão!...

— Os outros? fez o André erguendo-se. Ficaram ainda lá embaixo, atrás de um dos bois, o Veludo, que fugira de noite para o campo. Mas decerto já vinham em caminho, pois, ao passar pela grota, lhe parecera ouvir, para os lados do Viana, a toada grossa do Romão cantando a Flor lageana.

E como falara até ali sem dar com os rapazes, lançou os olhos então sobre aquele vasto mar de folhas verdejantes, onde eles arrancavam a mandioca afogados até o pescoço, ora erguendo-se, ora abaixando-se. E a muito custo descobriu-lhes os bustos alvos, vestidos em camisas de algodão, boiando além, no seio da verdura, como os de náufragos nadando. Em volta, por um amplo rombo na rama, perdido nessa superfície infinita ondulando ao vento, negrejavam já ilhotas de raízes, arrancadas de fresco, tortas, empoeiradas e nodosas, à maneira de estranhos montões de répteis. E, pondo a corda nos bois, foi amarrá-los a pequena distância, para um recanto do morro em que havia grama. Daí a instantes voltou correndo, muito alegre, na direção dos rapazes, o belo rosto imberbe corado pelo frio, o largo chapéu de palha à banda:

— Então, seus patifes, vocês não se movem dessa “cocha” da arrancação? Toca a carregar o carro! Pra ali! Vamos! Vamos!...

E atirava-se, aos pinchos, por cima dos montões de mandioca, às gargalhadas, como um escolar de dez anos. Nisso, surgiram na chapada os dois carros, a cuja frente vinham o João Candinha e o Romão. Os rapazes gritaram-lhes logo, a uma, num alvoroço:

— Cheguem, cheguem, rapazes! Isto é uma vadiação. A estas horas já era pra haver mandioca no engenho. A gente lá há de estar furiosa pela raspação...

E enquanto os outros calçavam os carros e arrumavam os bois, eles entraram a carregar os balaios grandes de mandioca, que despejavam ruidosamente no carro do André, armado já de sebe. Dentro em pouco, e com presteza admirável, os veículos estavam pejados até os arcaveiros, fechando no alto os fueiros com densos molhos de rama. Em seguida, com o de André à frente, os veículos romperam em marcha, os eixos chiando sob o peso da carga, morro abaixo, lentamente na descida íngreme.

Eram seis horas. O sol maravilhoso galgava o firmamento, vitoriosamente, derramando por tudo uma morna pulverização de ouro.

II

Caía o crepúsculo esmaecido e dolente por detrás das montanhas longínquas do Cubatão esbatendo-se nostalgicamente no Azul, quando o André parou, com a última carrada de mandioca, no largo terreiro do engenho. Mais atrás vinham chegando também os outros carros, num chiado prolongado e monótono, pelos lados da porteira.

 Em torno, sob o laranjal copado e os cafeeiros densos, em nichos recolhidos de sombra, havia um rumor aninhante de asas, agitando as folhas, em procura dos poleiros. Dentre as moitas baixas, pelo capim ou no meio das sebes bastas, os grilos, retirados já às suas celas de inverno, picavam o silêncio elegíaco das Ave-Marias, com o seu tic-tic de prata. E pelo alto das frondes, abanando ao verto as ramagens trêmulas, por onde espiam as estrelas, sentia-se, aqui e além, um piar gemente de pássaros retardados demandando a paina quente. Pela larga porta do engenho viam-se já arder confortavelmente lá dentro os toros grossos do braseiro. Candeias de quatro bicos, suspensas das traves e dos esteios, a distância umas das outras, abriam, no meio das trevas que se adensavam no alto, sob as vastas telhas, curtas chamas azuis, que iluminavam frouxamente, à maneira dessas lâmpadas que se acendem nas igrejas. No centro de tudo, os grandes paus do aparelho moviam-se continuamente, na sua grossa engrenagem, impelidos pela almanjarra rangente. A um ângulo, mulheres, homens e crianças, de cócoras, junto aos cochos da cevadeira, raspavam destramente a mandioca, numa algazarra animada, de boa gente palreira. Próximo, no recanto do forno, os carregadores de tipitis faziam mover com estrépito os braços fortes da prensa; e, de vez em quando, dominando tudo sonoramente com uma voz de comando, o grito másculo do cevador, espicaçando a lentidão preguiçosa do boi: — Eh, Estrela! Eh, Estrela!

O André agora não parava, numa preocupação, fazendo tudo nervosamente, com o pensamento preso à sua viagem à Ponta Grossa. Já por vezes olhara investigadoramente o céu, que se cobria no alto de flocos brancos espessos. Eram os primeiros sinais do vento sul, prestes a cair. E, após haver destravado as sebes e os fueiros, com os bois pela corda, em direção ao pasto, enquanto os outros carros fastavam à porta do engenho, ia pensando consigo: “É verdade, ainda mais esta! Vento pela proa! Vou tê-la do fino, não há que ver!...”

E voltando, sem mesmo dar “boas noites” e pedir a bênção ao velho Eliseu, como sempre fazia, mal pegara a sua camisola de baeta vermelha que deixara numa das empenas do engenho, tomara às pressas o atalho que levava ao caminho, gritando de longe e para os amigos ainda às voltas com a mandioca no terreiro:

— Ó rapazes, por hoje não contem mais comigo. Tenho muito que fazer. Vou para longe, para a outra banda. Mas pela madrugada, se Deus quiser, hei de estar por aqui rente...

E sumiu-se, no meio dos vassourais das areias, marginando ali a estrada até o Rio de Meio.

Quando entrou em casa — uma meia água situada num recanto da larga praia branca, que virava para a Caeira — o mar apresentou-se diante dele, na sua vastidão imensa, todo plano e em calma, mas com essa reluzência espelhante e argêntea onde se arrastam esfuminhadas negras e frêmitos rápidos de aguaceiros, que precede os grandes ventos.

Mas o André era um canoeiro como não havia segundo naquelas redondezas, e se estava contrariado era só porque a viagem agora ia custar-lhe o dobro do tempo. Quanto ao mais, “o fim do mundo que fosse”, como costumava dizer, não lhe metia medo. Era memorável, ali e em toda a costa catarinense, a travessia arrojada que ele realizara, sozinho na sua Toninha, sob uma lestada terrível, para o farol do Arvoredo, quando a mãe estivera a “espichar”, com as maleitas.

Apenas tomara a bênção à mãe e à velha tia Silvéria, o rapaz fora mudar de roupa e, num relance, com a palamenta às costas, enveredou para o pequeno rancho onde tinha a canoa.

Nesse instante, sobre as águas, ao longe, o cordão branco do vento apontara pelo sul, como uma grossa barra de gesso. Em cima, no céu, grossas felpas das nuvens prometendo mau tempo uniam-se e condensavam-se já, tapando de todo as abertas azul ferretes em que tremiam as estrelas.

Daí a pouco, com a vela branca erguida, como a asa de uma gaivota gigantesca e fantástica, perdida na calma taciturna e pressaga da noite densa, sugestiva de sinistros estranhos e alucinadoras ideações dantescas, o André largou, mar em fora, na sua máscula, inabalável afoiteza...

III

Na Ponta Grossa, a casa do João Sant’Ana, às Ave-Marias, começara a reluzir, toda acesa. E desde essa hora que de toda a parte, em redor, as famílias acudiam, em grupos alegres e palradores, ao longo das Praias e pelas estradas pedregosas dos morros, debruadas de espinheiros. A gente das proximidades, essa, desde meia-tarde, a bem dizer, enxameava a casa, ajudando a arrumação e os enfeites. A sala para as novenas estava arranjada com a mais florida e eucantadora simpleza. Tinha sido a Terezinha quem, com um bando gracioso de amigas e as filhas do Sant'Ana, se encarregara especialmente desses ornamentos, mesmo porque o coroado era também obra sua, pois o ajudara a prometer quando a bexiga, havia meses, caíra sobre o arraial, ceifando vidas e vidas, com uma fúria inclemente.

A adorável rapariga, nesse dia, amanhecera trinante e radiosa e, toda em festa, nas suas vestes frescas, de uma inefável simplicidade roceira, presa às tranças escuras uma bela camélia branca, desde cedo cruzava no terreiro, em pequenas voltas caseiras, alegrando tudo com o seu grande esplendor de morena. Uma ideia encantadora alvoroçava-a na manhã resplendente, e era que dali em diante, durante aquele mês, ia ter ao seu lado, todas as noites, o mais amado dos homens, o escolhido e eleito do seu coração. E depois era por esse tempo que o André ia pedi-la em casamento, como prometera. Ele jurara fazê-lo na última noite do coroado, logo que findasse o terço. Como ela, ansiava por aquele momento, Nossa Senhora! E agora, mais do que nunca, o rapaz lhe não deixava o pensamento. Experimentava como uma emoção e um prazer, só em lembrar-se que, volvidas horas, ia vê-lo aparecer, junto a si, humilde e carinhoso, muito forte e vermelho, com os seus meigos olhos castanhos e o fino buço negro, que lhe ficava tão bem! E parecia-lhe estar ouvindo as suas costumadas palavras, que a entonteciam como beijos, sempre tartamudeadas a medo, em algum recanto isolado: “Então, querida, esse coração ainda é meu?...”

Mas a noite chegara, cheia de nuvens espessas. Para o sul, o horizonte, esgazeado e como batido de uma claridade alvacenta, expunha a temerosa e torva cenografia das mudanças de tempo. Ficara, a princípio, aborrecida, contrariada, mas conhecia bem o André e sabia que por sua causa ele arrostaria tudo, custasse o que custasse. De resto, aquilo talvez não desse em nada, como acontecia às vezes. E, no intuito de verificar se andaria alguma vela lá pela terra firme, em demanda da ilha, convidou as amigas a darem uma chegadinha à Ponta, de onde se descortinava ainda o litoral da outra banda, sob a primeira névoa da noite. Muito tempo, então, no meio da algazarra sonora das raparigas em bando, sobre o alto descoberto e gramoso do velho promontório, erguido num supedâneo de rochas onde o mar escachoa noite e dia turbilhonando, esquadrinhou longamente, com os seus doces olhos melancólicos, a faixa d'água reluzente da enseada dos Ganchos. E como nada descobrisse, sob a cinza crepuscular que aumentava, sepultando cada vez mais os longes, retirou-se silenciosamente com as outras, num desânimo, o peito opresso, sob a ameaça do temporal perturbando o seu amor.

No terreiro do Sant'Anna, onde já muita gente se aglomerava palrando, encontrou o João Veiga, que vinha chegando de Sambaqui pelo morro, e que lhe declarou ter visto, do alto do Maltão, uma canoa largando dos Ganchos. Pela altura em que andava, muito junto ao Recanto, lhe parecera a Toninha, que vinha singrando naquele rumo. E acrescentou, sorrindo maliciosamente:

— Aquilo há de ser o André, que não quer perder o coroado... Mas que loucura, uma travessia daquelas, sob a tormenta pintando-se ao sul! Só mesmo aquele demônio! Você me perdoe, Terezinha, mas eu é que não me arriscava nem por um milhão!...

Ela, mais tranquila e satisfeita, respondeu toda risonha:

— É o que você diz, primo Veiga; eu queria ver aquele tempo do namoro com a Ana. O que isso não foi! E o que não sofreu, o que não se consumiu, para assistir àqueles fandangos aonde ela ia sempre, lá para os lados de Santo Antônio! Pensa que eu não sei! Pois olhe, eu me lembro ainda daquela feita em que você perdeu o alazão, num braço do rio, pisando-se todo e gramando cinco meses de cama...

Ele ainda retrucou, gracejando:

 — Qual! Terezinha; são tolices. Eu nunca fui dessas coisas, Deus me livre! A Ana que te conte...

E desapareceu, por entre um grupo de homens idosos, onde estava o Sant’Ana.

A rapariga, então, numa pressa galante, enfiou-se pela porta com as outras, porque avistara as Teixeiras e as Nunes, que tinham vindo do Ratones: e foi logo todo um trinar amoroso de vozes, por entre os abraços e os beijos.

Pouco apouco a sala inteira encheu-se. Uma aglomeração de homens tomava a entrada, os corredores, a saleta. E assim que o capelão entrou, alguns rapazes, que ainda se detinham a falar no terreiro, correram imediatamente para casa...

Quando a reza começou, lá fora, sobre as águas, o tufão caía, varrendo as ondas, em rajadas doidas. A noite tornara-se medonha. E agora, de espaço a espaço, relâmpagos cortavam a treva, com grandes látegos de fogo.

O prédio todo fechou-se, sob as lufadas rijas. Em volta, envolvia-o lugubremente a zoeira prolongada e monótona do laranjal ramalhando; pelas telhas, peneirando uma frialdade cortante, passava, às vezes, quando o sul rebojava furioso, como um vago rumor de naufrágios, o esfrolar tumultuoso de lonas ao vento.

A Terezinha empalidecera de súbito, num susto, numa palpitação, com o pensamento apegado ao André, rolando agora em meio ao turbilhão; e, baixinho, diante do altar iluminado, onde resplandecia ricamente, sobre um fundo de colcha escarlate, a coroa de prata de Espírito Santo, fazia promessas fervorosas, pelo noivo, à milagrosa Senhora dos Navegantes.

Em roda dela, mulheres e homens comentavam, com palavras piedosas, a tardança do rapaz, naquele instante, colhido pela ventania no seio desabrigado das ondas. O Sant'Ana, a um canto, com o Veiga e o Manuel Secundino, pai da Terezinha, ocupava-se também do André, exclamando apreensivo:

— Ora, queira Deus esse rapaz não vá sofrer por aí alguma! Isso há mar no canal que é uma coisa sem termo... Também atirar-se a uma travessia entre pontas por um tempo daqueles! Só de louco, só de quem perdeu a cabeça...

Os outros apoiavam-no sacudindo os ombros tristemente:

É verdade. O André era aquilo mesmo... Sempre com o diabo das suas afoitezas! Olhe que ainda não havia muito tempo apanhara a do Arvoredo... E não lhe servira de escarmento! Não lhe servira de escarmento!...

Mas o terço prosseguia, na sua melopeia engrolada e monótona, enquanto lá fora, uivava rijo na noite o vendaval desfeito.

IV

Fora pela ilhota, de Anhato-Mirim que a Toninha recebera de proa as primeiras rajadas de vento. Momentos antes vinha ela de pano a bater, em meio à calmaria, e o André, vendo a maré de vazante e a distância a vencer, aguentara duro para o largo, a toda força de remo.

Nessas alturas, quando os ventos berravam do sul, as maretas, deslocadas e erguidas, sacudiam-se em fúria rebentando de través, em novelos roladores de espuma, e as correntes, subindo para o norte com a velocidade de milhas, naquela época invernosa, punham sob um risco constante as pequenas embarcações que singravam ali. O André, porém, não se importava com isso no seu arrojo de canoeiro perito, dominando o mar, afrontando-lhe a cólera desenvolta com uma audácia feliz.

Nessa ocasião, contudo, ao deixar o remanso da ilhota, sob a noite que cerrara de todo, numa negrura espessa, de instante a instante cortada pela iluminação dos fuzis, ficara de repente aturdido, pois não julgara o pampeiro o colhesse ainda ali. Mas isto fora instantâneo, porque a sua grande calma marítima voltara-lhe imediatamente, e ele passou a encarar o perigo com a costumada frieza. E agora, sob a orquestração descompassada da ventania indômita, desmontando tudo sobre a vastidão do oceano, a canoa rolava violentamente numa carreira de desastre, agredida e sacudida incessantemente pelo embate gigantesco das vagas.

Sentado à popa, com o tronco todo para fora da borda, escorando a embarcação na bordada difícil, um dos braços possantes segurando o remo que servia de leme enterrado nas águas, o André, firme e inalterável, deixava o casco correr, às cegas, no meio do nevoeiro denso, sentindo as ondas golfarem, por debaixo da quilha, vertiginosamente. E a Toninha aguentava-se, bolinando como um bote quase na linha do vento, com o seu enorme patilhão corrido, atravessando-a de proa à popa. Veleira e esguia, naquelas águas ásperas do sul, realizava verdadeiros prodígios de singraduras e travessias, que faziam a adoração e o encanto daquelas populações vigorosas e intrépidas de arraiais marítimos. Por isso o rapaz, dentro dela, não se temia de tempo nenhum, atirando-se a tudo sobre o mar, arcando sempre triunfalmente com o vendaval bravio.

Naquele instante terrível, com os vagalhões crescendo de minuto a minuto como imensas dunas movediças sob o simoum marinho, pressentindo a praia ao pé pelo estrépito e o recuo monstruoso da rebentação hostil, preparou-se para a virada, metendo em rumo da terra firme. A vela murchou, então, de repente, num ruído de folhas em ventania, e golpes de mar consecutivos esbarravam tumultuosamente à proa, abatendo-se e desfazendo-se em fofos colossais de escumilha, que tinham uma reluzência fosforejante de barras líquidas de níquel. O casco atravessou aos trancos, todo alagado e sacudindo-se em pinchos rangentes, como um irado corcel que se empina, e quando a rajada formidável caiu sobre o pano frouxo e vazio que a escota prendia, a pequena embarcação arrancou, num ímpeto, deitada a fio nas águas, rasourando as ondas crespas com o seu bojo fugidio. O vento cada vez se tornava mais rijo e a noite mais carregada e retinta, atravessada continuamente pelos relâmpagos recrudescendo em ziguezagues sinistros, clareando instantaneamente o oceano, que se agitava embaixo, num estranho espetáculo de estepe polar, sob a luz hiperbórea e fantástica de um chuveiro de bólides.

Quando a canoa, já beirando a outra costa, virou de novo na bordada da ilha, um aguaceiro despegou-se do alto, no meio de fortes descargas elétricas, que sublevavam a amplidão, com o seu grosso troar de artilharia.

Então, o André, furioso por se achar ao desabrigo e ter de chegar todo molhado à Ponta Grossa, prorrompeu em pragas rudes, sob as grossas bátegas caindo:

 — Diabo! ainda mais este estupor de aguaceiro. Raios partam o caiporismo!...

E considerava, numa contrariedade íntima, como havia de se apresentar no terço, diante de todos, com a roupa ensopada e em desalinho. Era uma vergonha. Mas que havia de fazer, santo Deus! Voltar dali não podia. Com o pé quase em terra! Depois, prometera à Terezinha. Não! Entraria assim mesmo no terço! Ora, todos o desculpariam...

E, enquanto assim se absorvia nessas reflexões recolhidas de espírito, a Toninha voava, saltando as ondas bravas com uma marcha inaudita. De repente, um medonho turbilhão envolveu-a, rolos gigantescos de espuma cobriram-na, fragorosamente, e grandes choques consecutivos abalaram-lhe poderosamente o bojo e a quilha. A vela, presa ainda à escota, abria-se toda sobre as bordas, deixando uma multidão de frangalhos a tremular no ar, contra o mastro partido. E os vagalhões, atirando-se em assaltos bramantes, apossavam-se totalmente da embarcação vencida, fazendo-a rolar aos tombos sobre a penedia.

O André, logo à primeira esbarrada, medindo a situação e tomando o pulso ao perigo, lançara-se ao mar, gritando por entre o torvelinho:

São as pedras da Ponta, são as pedras da Ponta! Malditas!...

E, abandonando a canoa, botou-se a rijas braçadas para o largo, fugindo à rebentação desenvolta, estourando e sacudindo-se clamorosamente sobre a rocha viva. Após alguns instantes de luta vigorosa e renhida, corpo a corpo com as vagas, os seus braços robustos e destros de nadador insigne levaram-no à praia, aonde chegou já exausto, todo roto, o rosto e o peito feridos.

Entretanto o tempo amainava e, em pouco, o André, erguendo os olhos e vendo reluzirem no alto as luzes da casa do Sant'Ana, galgou com esforço e cantando, o caminho do outeiro. Ao chegar ao terreiro, como já houvesse terminado o terço e reconhecessem-lhe ao longe a voz forte e viril, a porta abriu-se e todos correram ao seu encontro, num alarido de prazer. E a Terezinha, com o coração aos saltos, num alvoroço de afeto, foi a primeira que lhe surgiu à frente, exclamando:

— Olha o André aí! Olha o André aí!...

Ele, apertando a mão da noiva fortemente e dando boa noite a todos, penetrou na sala, pálido e desfigurado, o largo tórax ferido, a roupa a escorrer.

Então as pessoas presentes, aglomeradas em torno dele, numa grande admiração, começaram a inquiri-lo

— Mas como escapaste, ó André? Como pudeste vencer a tormenta? Só por um milagre, filho! Só por um milagre de Deus! Olha que chegamos a pensar que morresses!...

O rapaz tentou responder logo, mas a emoção e a fadiga o turbavam fundamente; e, mal articulara algumas sílabas, foi cair sobre um banco, ofegante e quase a desfalecer. E só momentos depois, com a Terezinha ao lado e o coração em êxtase, é que pôde dizer claramente, com o ar vitorioso de um antigo guerreiro:

— É verdade, gente, aqui estou; perdi a canoa, mas, escapei. Desta vez, ainda o mar não venceu!

Rio, 1893.

Página simples

À memória de F. Moreira de Vasconcelos

Desde criança que o Manuel Basta era triste, amarelo e cismático. O seu todo anguloso e franzino, de um raquitismo sofredor, causava uma desolação a todos que o conheciam. A sua longa e profunda anemia dera-lhe ao organismo uma passividade e indolência sem fim, inutilizando-o quase para o trabalho.

Por isso, vivia encolhido; não gostava de estrafegar, correr ou jogar pedradas, como faziam os rapazes da sua idade, ao longo dos caminhos vermelhos e pedregosos, ao entardecer dos dias, quando os boas-noites sulferinam as cercas e alargam expansivamente o recorte alegre das pétalas, de onde se ergue uma aromatização fresca e higienal, enquanto o sol desaparece, saudoso pelo outro lado da montanha.

Nunca a ruidosa brincadeira de “boi” — tão predileta e querida dos companheiros — o atraíra e arrastara, nem mesmo a caça, a bodoque, dos passarinhos estéticos e coloridos que dobram festivamente pelas ramadas, na preciosa liberdade dos campos! Ele era “um moleza”, como o chamavam o Vidal e o Justino, dois rapazes da vizinhança, verdadeiros quebras que viviam a estropear a pedradas os cães e as galinhas dos outros, e a roubar de noite cavalos nos pastos para assistir aos fandangos longínquos, lá para a banda das Aranhas.

A Sebastiana, uma magricela de pescoço comprido e regateira, que morava na encruzilhada do caminho da praia e habituara-se a estar, até muito tarde, de lume aceso na cozinha, sentada ao portal da rua nas noites enluaradas e límpidas, pelo que era tida por “bruxa” no sítio, — quando via os dois madraços passar a galope, agitando a silenciosidade soturna e remansosa daquelas paragens, com um som estriduloso de patas que se perdia pela noite a fora, praguejava, enfurecia-se, chamava-os de “estupores, raios”, desejava-lhes desgraças, uma morte afrontosa. Entretanto, elogiava o Manuel Basta, dizendo-o bem ensinado, obediente à mãe e às pessoas mais velhas, com modos de rapariga que se cria a pancadas.

A vida do Manuel Basta era aquecer-se ao sol todas as manhãs, entorpecido, indolente, sentado em uma pedra, na frente da casa, carpinteirando canoazinhas de cortiça ou fazendo gaiolas e arapucas para agarrar gaturamos, os bons gaturamos da Caieira, de papo amarelo e bico recurvo, que dizem rebentar de cantadores; ou, então, à noite ouvir histórias de feiticeiras almas do outro mundo e lobisomens, acreditando em sobrenaturalidades, medroso, acocorado junto ao brasido confortável e clareante, de mãos abertas, voltadas para a quentura, de olhos arregalados de atenção, pregados na mãe, que fraseava o enredo complicado das lendas noturnas com entonação fantástica e penetradora, esparramada sobre um velho pedaço de esteira, fazendo rodar e zunir dextramente o fuso entre os dedos, na branca fiagem do algodão. Capinava também seu bocado, todos os anos, aguilhoado pelas palavras maternas que, às vezes, perdiam a habitual tonalidade e carinho, e, agressivas e ásperas, num sibilar cortante, o impeliam ao trabalho, desenhando-lhe, aos olhos assombrados, o pavoroso quadro das misérias futuras, em que negrejava o fantasma espectral da fome e a densidão álgida e sem lume das longas noites de inverno. Eram essas capinas em pequenos trechos de terra, nas baixadas úmidas ou no declive seco dos morros, onde ele, nas manhãs festivais de estio, em que o sol jorrava vivamente do Azul, invadido de repente de alegria e ardor, num fluido límpido e sutil de natural poesia, brandia a enxada cantando, sob a poeira de ouro da luz. Pelo tempo das tainhas, em junho, costumava ir à praia ajudar a puxar as redes, que cercam em grandes lanços opulentos, quando sobre a planura olímpica e ondulante do mar, além, rola uma enevoada nostalgia infinita e vão sangrando feericamente, como em apoteoses de mágica, esses faustosos, deslumbrantes ocasos catarinenses.

A mãe desde a madrugada começava a lidar, a movimentar o tear até a noite; e aquele bater contínuo do aparelho, que se ouvia ao longe, à luz amornentadora e vivíssima de um forte sol de aldeia, era como que o grito de vida, a nota sonora da Indústria e do trabalho que saía do pobre lar, incessante, monótona e prolongada, havia urna trintena de anos!

E assim viviam, o Manuel Basta e a mãe, tranquilos na sua penúria, escrupulosos na sua honradez, sem pedir nada a ninguém.

Um dia, porém, o Manuel entrou a perder o seu raquitismo doentio. Parecia engordar. Mas a sua amarelidão constante acentuava-se em tons lívidos de hidropisia: a sua face, outrora engelhada e cavada, ganhava um aspecto redondo e liso, e a sua inatividade e tristeza aumentavam pouco e pouco numa imensa fraqueza entorpecedora. O seu corpo, agora, negava-se totalmente ao trabalho, em espasmos de spleen. Sentia, a todo o momento, um cansaço aflitivo: acometiam-no, de repente, delíquios, dores, agonias. Dominavam-no, à noite, exaustadoras insônias e, pelo dia, uma sonolência invencível. Estava perdido.

A mãe, então, que o observava dia a dia, triste e apreensiva, antevendo-lhe, talvez, um fim próximo, o que às vezes a fazia debulhar-se longamente em pranto — botou-se para a cidade em busca de remédios para tratá-lo, fazendo-o também tomar mezinhas, uns cozimentos caseiros que lhe ensinavam. E, todas as noites, ao deitar-se, nas suas rezas pedia a Deus, ansiosamente, que lhe salvasse o filho.

No entanto o inverno chegava, inclemente. A natureza, em volta, perdera logo todo o seu esplendor e alegria, cobrindo-se de infinita tristeza, velha, estiolada e vencida. Um vento arrepiante e polar, um vento assassino, ululava desoladoramente. E chuvas contínuas despenhavam-se, tumultuosamente, do céu torvo e de cinza. O sustento escasseava de um modo extraordinário e terrível; todas as manhãs, lençóis de neve ostentavam, fora, a branquidão fulgurante e crua de sua frialdade. Na cozinha já não existia o bom fogo consolador de outros tempos, no desalento daquela casa tristíssima. Era uma desgraça, uma infinita desgraça. E o rapaz, que piorava de dia em dia, obesando-se quase a estourar, expirou uma noite, ao monótono tamborilar da chuva sobre as telhas esburacadas e corridas. Então, a velha mãe amantíssima, ao ver-se isolada e sem defesa, ao ataque brutal e desorientante da dor — atirou-se para a estrada, em busca de socorro, escabelada, rota, sem crenças, a blasfemar contra Deus, doida, completamente doida!...

Santa Catarina, 1885

Miss Sarah

A Guilherme de Miranda

I

Foi numa manhã alegre de Março que Miss Sarah chegou ao campo, em companhia de seu velho pai, o bom sir John Callander. Vinha em busca de melhoras para a sua saúde, havia meses abalada: um resfriamento, uma noite de Dezembro, à saída de um baile, após algumas voltas de valsa; na rua, esquecera-se de voltar a gola de seu grosso casaco de pelúcia, e não se enrolara bem no xale. Chegara a casa já com febre, uma pontinha de tosse, a cabeça pesada. Despira-se, agasalhara-se logo, tomando remédios, cercada de todos os cuidados. Melhorara um pouco, mas a tosse continuava, uma tosse seca, que a afligia muito ao deitar-se. Chamaram então o dr. Duarte, médico da casa, um velhinho já trêmulo, todo branco e enrugado, antigo clínico na província, com uma grande nomeada. O doutor examinou-a, auscultou-a, e declarara sorrindo: “que não era nada, uma constipaçãozinha, havia de passar...” Mas Miss Sara emagrecia, perdia as cores, definhava. Sir Callander, que era louco pela filha, inquieto, sobressaltado com aquele abatimento em que a ia afundar-se, já não ia ao Consulado, passando as horas junto dela, a animá-la a acariciá-la extremosamente. Até que um dia o velho médico dissera: “Que era melhor ir para o campo, andar ao sol, respirar o bom ar das montanhas. Melhoraria, voltaria outra. Lá havia a saúde eterna, ali estava, talvez, a morte!...”

Então, o inglês, sem perda de tempo, aterrorizado com as últimas palavras do doutor, mal fizera as malas e um rancho opulento, tomou um bote e, no dia seguinte, pela madrugada, partia com a filha para Canasvieiras, onde um íntimo lhe oferecera a sua propriedade. A viagem fora costa a costa, e durara apenas horas, porque a embarcação, muito veleira, o alto latino inclinado, voava na aragem fresca do sul. Durante a travessia, Miss Sara nada sofrera. Deliciara-a o espetáculo maravilhoso do sol, nascendo a Leste, do seio do oceano, entre véus de bruma argêntea, como um balão de nácar; o aspecto risonho e variado das paisagens litorais, densas e verdes, fugindo a um bordo; o correr das velas, cortando as ondas espumantes; a construção recolhida e humilde das alvas povoações mais amigas do mar. E recordava-se saudosamente de certas aldeias da Escócia, à beira d'água, por onde andara em criança...

O sol já ia alto, inundando tudo de ouro, quando o bote chegou à praia. Miss Sarah, agora mais alegre, sorria, sorvendo a longos haustos o ar oxigenado e puro dos campos.

II

A casa que habitavam sir John Callander e a filha, havia semanas, era uma das melhores do lugar. Fora construída numa encosta suave, entre um vasto laranjal, num alto, de onde se avistava uma volta da estrada real, branca e arenosa, descendo para o Rio Vermelho. Um pequeno atalho, pedregoso e barrento, cavado na verdura basta, como um grande arranhão de arado, sai do lado da habitação e vai ligar-se, lá embaixo, ao largo caminho da freguesia, correndo entre espinheiros tufados. O prédio é de pedra — um antigo casarão de velho senhor de escravos — muito amplo, de grossas paredes laterais recentemente emboçadas e caiadas, tendo na frente seis janelas pequenas e acachapadas, de um metro de altura, os portais verdes envidraçados, olhando para um largo terreiro de lajes cimentadas, onde outrora as colheitas secavam fumegando ao sol. Cobrindo o edifício inteiro um imenso telhado de quatro águas, com um puxado grande aos fundos; formando a antiga cozinha patriarcal, em que, à noite, se reunia a negrada doméstica — crioulas robustas e entroncadas, de grandes mamas túmidas, alimentando as crias. E mais distante, para trás, trepando o morro, os alicerces esboroados já, e invadidos de hera, da vasta senzala, onde se recolhiam, outrora, depois da faina das redes e das roças, como uma manada de gado, os hércules de ébano da lavoura. Em frente, a esplêndida amplidão dos campos, num verdor tropical eterno, renovado todas as primaveras por uma nova força ciclópica e torrencial de seiva, na perpétua possança e rejuvenescência, da Terra. Ao fundo, a montanha empinada, com o longo e alto dorso recortado no Azul, e os declives e as chapadas retalhados pelas culturas de tons verdes graduados...

Aí se declarara logo em declínio a moléstia de Miss Sarah: o rosado fresco e límpido de outrora voltava a tingir-lhe levemente a ebúrnea palidez doentia; a tosse abrandava, pouco a pouco desaparecendo-lhe o desfalecimento e o spleen que a prostravam. Sentia-se enfim renascer, à plena luz, no seio fecundo e restaurador da boa Natureza. Encantava-a aquela vida simples e descuidosa do sítio, ingênua e doce, venturosa e serena, sem paixões e sem lutas, deslizando sempre, livre e obscura, através das matas e sob o céu puro, como a água cristalina das cachoeiras. Pela manhã, era um acordar alegre no vasto casarão campestre: clarins de pássaros a vibrar vitoriosamente no arvoredo em redor, envolta, com o rumor das charruas; à noite, a doçura de um grande adormecimento, sob as estrelas, abrindo em malhas luminosas no Azul, ou o resplandecimento branco do luar, prateando os lagos e os rios com a sua luz de alvaiade.

Miss Sara, desde os primeiros dias de instalação no sítio, ia todas as manhãs tomar leite, fazendo também um passeio, a pé, ao longo da estrada. Era nas primeiras horas do dia. A luz do sol nascente amarelava os morros, caindo pelas planícies, os vales, os terrenos trabalhados das lavouras. A claridade vivíssima fazia ressaltar o frontão caiado das casas dentre os maciços de verdura. Uma larga orquestração irrompia estridentemente da ramaria espessa flutuando à aragem. Carros chiavam ao longe, desaparecendo nas voltas agrestes dos caminhos. O ar cheirava balsamicamente, saturado das emanações do gado, do carvão das coivaras e da fragrância exuberante das rosas, desabrochando pelos cercados. E todo o céu dourado estava cortado de uma alacridade imensa, na vibração deliciosa das cantigas rústicas...

A rapariga caminhava alegremente, pelo braço do pai, ao esplendor feérico do alvorecer estival. E ambos riam, às gargalhadas, trocando frases carinhosas, muito felizes, no eletrismo das manhãs inefáveis.

Geralmente, à tarde, Miss Sarah e sir Callander faziam uma volta a cavalo, percorrendo os engenhos, os campos e as praias. À noite, na sala do velho casarão todo iluminado, após uma leve leitura de Walter Scott e o chá magnífico, que o antigo criado inglês, o bom Evans, servia, pai e filha recolhiam-se aos seus quartos, trocando o afetuoso beijo costumado e murmurando Good night!

E assim, dia a dia, Miss Sara melhorava.

III

Março findara, e a moça numa vivacidade borbulhante, sentindo voltar-lhe a adorável comunicabilidade, quase meridional, de escocesa, iniciara relações com as filhas do Luiz Machado, cuja casa ficava perto, na planície, à beira da estrada. As meninas eram muito meigas — a Cristina e a Eulália — por isso fizeram desde logo intimidade. Miss Sarah, muito insinuante, com os seus lindos olhos verdes leais, que deixavam ver até ao fundo a candidez virginal da sua alma, conquistara imediatamente as raparigas, enlaçando-as numa afeição fraternal. E com elas passava quase sempre as manhãs e as tardes. Quando as duas irmãs arrumavam as costuras e os bordados, iam todas para o parapeito do terreiro, palrar.

Aos domingos, apareciam sempre as meninas do Manoel Luís e as do professor Tomas, que iam visitá-las, — e então era toda uma algazarra esplêndida de vozes adoráveis. Algumas vezes também rebentavam por ali os sobrinhos do Machado, em passeio pela freguesia; juntavam-se-lhes outros rapazes e, entre eles, o Balbino, um latagão ruivo, robusto, entroncado, um remador das redes, sardento e de pele dourada. O rapaz era ainda imberbe, mas tinha para as mulheres uma fascinação irresistível e viril de olhares. E Miss Sara, uma ocasião, na praia, vendo um lanço das redes, onde ele estava, de pé, junto a uma canoa de voga, que ia investir contra o mar, a fixá-la, numa grande e muda admiração de fascinado — ficara impressionada pelos seus olhos límpidos, de uma luz amorosa e doce, ardendo, sob cílios escuros, no largo rosto queimado. Os anéis do seu cabelo louro e basto tremiam ao vento, debaixo do largo chapéu de palha; e da sua pessoa, ereta e alta, de uma elegância rústica, desprendia-se uma irradiação poderosa e máscula, nascendo-lhe da beleza dos membros em correção escultural.

Desde então, a inglesinha conservara por ele uma certa simpatia, e a primeira vez que lhe falou ficara um pouco perturbada. E, dia a dia, sem saber como, sentia que aquela impressão ameaçava dominá-la, devido aos encontros contínuos que tinha, agora, com o rapaz. Mas era britânica, e o seu temperamento calmo de europeia do norte, jamais manifestava os abalos tumultuosos, as tempestades violentas de afetos, que tanto sublevam e desvairam o ardente sangue meridional. Amava, mas com um desses amores raciocinados e cultos de anglo-saxônia, os quais, às vezes, à maneira dessas geisers terríveis ocultas no gelo reconditamente, e sem sinais de explosão ou chamas externas, devastam entretanto as almas.

O Balbino, porém, desde que a viu pela primeira vez, trazia o coração torturado, preso à sua imagem auroral e loura de Deusa; e quando a encontrava, arrastado pelos amigos até a casa do Machado, era como se um sol estranho se lhe abrisse de repente no coração, envolvendo-lhe o destino e a vida numa irradiação sem igual. Mas, jamais ousou aproximar-se dela, dirigir-lhe a palavra, quando na doce algazarra alegre do terreiro — olhando-a sempre de longe, embevecido, tímido, num imenso embaraço.

Nessas reuniões ao ar livre, que findavam logo à primeira cinza da noite — porque Miss Sarah não podia expor-se ainda ao sereno — era ela a mais chalrante e buliçosa das moças, inventando jogos deliciosos, que se executavam num sonoro alarido, às risadas. Ao lado, junto à porta da pequena habitação, com o Machado e a mulher, em amável confabulação, sir Callander acompanhava, com seu olhar azul e nostálgico, todos movimentos da filha, risonho, enternecido, num alvoroço íntimo de pai, por vê-la já salva às garras tremendas da tuberculose. Desde que perdera a esposa e o filho, a última vez que estivera em Inglaterra, (faziam oito anos), toda a sua afeição e carinhos se concentraram exclusivamente naquela filha adorada, único bem da sua vida desventurosa. Por isso sentia-se profundamente feliz, vendo-a trinar alegremente no meio das amigas, sem mais apreensões e cuidados.

E o dias sucediam-se assim, venturosamente, para Miss Sarah.

Abril esmaltava os prados com todo seu esplendor, enflorescendo os arbustos e as árvores. As boas-noites docemente aromavam o ar, à tardinha, salpicando de pingos de púrpura as cercas, ao longo das estradas. E os dias findavam todos, coroados a oeste pela pompa fantástica e tropical dos crepúsculos dourados.

IV

Junho chegava, com os primeiros frios; mas os dias continuavam hilariantes, cheios de azul e ouro no alto.

Miss Sarah ficara completamente boa; engordara, e agora parecia bem outra, com o seu lindo rosto redondo e as suas largas espáduas. A sua pele, de uma alvura rosada, que o sol do campo levemente dourara, confundia-se com a das camponesas robustas. Estava forte, esbelta e rija como uma estátua. Então sir Callander resolveu regressar à cidade. E toda aquela semana — a última que passavam no lugar — pai e filha a consagraram às pitorescas excursões pelo interior e o litoral.

A véspera da partida, porém, Miss Sara levara-a toda em companhia das meninas do Machado e a despedir-se pela vizinhança, onde se relacionara nos últimos dois meses. Com o seu gênio festivo, de uma simplicidade afetuosa, despertara logo as maiores simpatias entre aquela gente amorável; e, nessa noite, ficara até mais tarde com a Cristina e a Eulália, a palrar, em grandes expansões animadas, do que haviam feito e gozado, desde que travaram amizade. As brincadeiras e os jogos no terreiro foram lembrados, então, minuciosamente e com saudade. E às dez horas, quando tiveram de trocar os últimos beijos e abraços, houve uma imensa confusão de adeuses e lágrimas. Sir John Callander, com a sua imensa bondade, experimentara também uma emoção, ao dar o último shake-hands à boa família do Machado.

Toda a noite Miss Sarah levara a sonhar com a viagem.

V

No outro dia, cedo, sir Callander e a filha embarcavam.

O sol vinha raiando sobre o mar muito calmo. Velas cruzavam ao longe, com brancuras triangulares. A praia de Canasvieiras tinha uma grande fulguração prateada. As primeiras redes cercavam já para oslados da ilhota; e no rancho do Cosme havia uma aglomeração de homens, deitando as canoas para baixo.

Miss Sarah, da popa da lancha que largava, olhava agora saudosamente os campos e as montanhas afastadas, lembrando-se vivamente das duas amigas e da boa gente que lá ficavam. Percorria com olhos os cômoros e a faixa de areia do porto onde a luz faiscava, quando avistou de repente o Balbino, de pé, contra um varal onde redes secavam. O rapaz olhava fixamente a embarcação, numa atitude nostálgica. Miss Sarah, que o não via há dias, enternecida, lançou-lhe afetuosamente um olhar, acenando-lhe com o seu lenço de cambraia. Ele aprumou-se, como uma estátua, e longamente abanou também com o seu largo chapéu de palha.

Mas a lancha fez-se de vela, deixando uma esteira sinuosa de espuma estendendo-se nas águas...

E ele, olhando-a sempre, sentia como um vago desejo de chorar; continha-se, entretanto, apertando as pálpebras, porque lá do rancho, agora, todos os rapazes o olhavam. Mas afinal as lágrimas rolaram-lhe pelas faces, quando viu sumir-se a vela branca da lancha sobre o mar azulado...

Rio, 1893.

Separação

Foi uma noite de tristeza e angústia para a Serafina aquela em que o Tomé partiu. Pela primeira vez ele deixava o lar, abandonava tudo, para ir ganhar a vida em terras estranhas. Impelira-o a isso a penúria em que o tinham lançado, nos últimos anos, atrasos sucessivos e, naquele amaldiçoado inverno, as copiosas e contínuas chuvas que haviam inundado as plantações apodrecendo as raízes. A mandioca — tão viçosa nesse ano e que prometia dar enormes resultados, suficientes para reparar as grandes perdas passadas — completamente destruída! Eram roças vastíssimas que ele contemplara, muitas vezes, da janela com os olhos umedecidos de ternura, o coração cheio de esperança, ao sol de ouro jorrante das álacres manhãs de verão! Eram, enfim, quadras esplêndidas de ramas verdes rendilhadas alastrando planuras extensas, trepando declives, avassalando no alto as chapadas dos morros... Mas tudo estava perdido! o sítio hipotecado, a casa, o engenho; a junta de bois vendida, o cafezal queimado pelas longas geadas! Decididamente “ia para trás” aos empuxões cruéis do Destino! E tudo isso fora levantado alegremente, outrora, pelos seus industriosos braços de vinte anos, possantes como vergas, numa época feliz, em férteis anos de bem aplicada mocidade! Já lá se ia esse tempo, tão distante! E agora, velho e fatigado, jamais conseguiria reaver as suas posses, nas estreitezas daquele meio paupérrimo. Por isso saía, ia ganhar a vida longe, no torvelinho e na agitação fremente das grandes cidades...

Só com os filhos — um ainda do peito, a chorar, os dois mais velhinhos agarrados às saias, estrangulados quase por contínuos ataques de coqueluche que lhes arroxeavam os olhinhos macerados — a mulher, coitada, acompanhara o Tomé até a porteira. Aí, sob a poeira fina do crepúsculo que descia lentamente, os seus corações de esposos, tão serenos e satisfeitos há tempos, alagados de sol e cantigas como os campos que os viram nascer, pela primeira vez, ao separar-se, tempestuaram em ondas de profunda amargura, varridos pela desgraça. Longo tempo permaneceram abraçados, num derradeiro beijo, tão intenso e ardente como o primeiro que trocaram, talvez à sombra doce das ramagens, ouvindo o ciciar amoroso do vento. E vivamente as suas lágrimas correram, de envolta com os soluços, como se a profunda afeição de ambos ali se despedaçasse, de uma vez e para sempre! Depois separaram-se.

Então, por instantes, na estrada silenciosa e deserta, correndo entre bastas verduras, estas palavras desoladoramente ecoaram, trêmulas, febris, em pedaços:

— Ad...eus!... Vol... ta... bre... ve!... Ad... eus!...

A paisagem, agora, enlutara-se. A noite triste estendia-se, adensava-se em torno, com o seu domínio inelutável.

A Serafina ficou, por momentos, imóvel, sem voz, esmagada de encontro ao moirão da porteira, no meio do choro aflitivo dos filhos; e quando o marido desapareceu ao longe, na escuridão da espessura, como arrebatado para todo o sempre, sentiu que ia enlouquecer numa onda de dor sufocante, e prorrompeu em gritos, abalando, perturbando a noite calma. Depois, já mais resignada, foi-se arrastando penosamente até a habitação, no meio da treva cerrada de todo, levando consigo os filhinhos que choravam e tossiam sempre, dependurados às saias. O pequenino adormecera tranquilo, embalado nos ensoluçamentos do seu peito ofegante, a cabecinha molhada pelas lágrimas dos seus olhos de Mãe Dolorosa. O velho cão de guarda da casa, o Amigo, compartilhava da aflição de todos, caminhando adiante, lento e taciturno. E assim percorreram o cavado e sinuoso atalho que levava ao terreiro, no meio da planturosa Natureza, sempre indiferente e inabalável.

A porta da casa ficara aberta: dentro, na compacta escuridão da sala, pesava um silêncio lúgubre. De novo, então, a Serafina foi acometida por ondas de pranto forte e, alucinada, deu mais uns passos, indo cair nos degraus de pedra da entrada... Quando voltou a si, achou-se surpreendida de se ver ali, tão só, já madrugada alta, com as crianças a dormirem ao pé e sobre o colo. Ergueu-se, com o pequenino apertado ao seio, e entrou com os outros em casa, chorando...

A noite clareara. A lua surgia por detrás das montanhas, com a sua luz dolorida e doce, cor de flor de laranjeira. Alvuras de praias estendiam-se ao longe, na paz de um vasto adormecimento sepulcral. Nem uma brisa soprava. Apenas no ar, indistintamente, o ressoar vago do mar, longínquo, batendo além, nos costões desertos.

Rio, 1892

À beira-mar

A Lima Rodrigues

I

Lili! Lili!

E o doce nome cantava no silêncio luminoso da tarde, com um timbre de ouro alegre, como o chilrar das andorinhas no telhado. E, de repente, uma senhora esbelta, loura, planturosa, uma mistress de olhos vívidos e moços posto que quarentona, apareceu, descendo os degraus de cimento do jardim, numa casa solarenga da Pedra Grande.

Então, na varanda, entre trepadeiras, cobrindo de um crivo verde de folhas a parede, onde se rasgavam grandes janelas rendilhadas, uma cabeça olímpica surgiu, como uma iluminante aparição astral:

— Espere lá, mamã!

Nesse instante, um rapaz claro, alto, forte, são, com bastos bigodes negros e grossos ombros gigantes, transpunha o vasto portão de ferro, risonho e muito escarolado. A inglesa, que já o esperava junto à moita de rosas jaldes, na longa álea que enfiava até o mar, alva e perfumosa, muito alegre, nas vestes de musselina branca, o rosto e os braços rosados, apertou-lhe a mão com afeto. E desceram ambos, a palrar, sobre o saibro branco e lavado, rangendo sob as solas, até umas pedras à beira d'água.

O mar aí achatava-se para todos os lados, calmo e azulado, com uma vasta rutilância de níquel. A um canto, entre rochas altas, lembrando menhirs, acendiam-se malhas de ouro e nácar, que levemente ondulavam. Longe, ao sul, uma península, com maciços de verdura, árvores frondosas, palmeiras varrendo o céu na aragem. Para as bandas da terra firme, defronte, um ocaso dourado de outubro, alastrando o céu, por sobre o recorte cinzento das montanhas. E, à sombra da costa, aqui e além, cruzando as águas, como gaivotas, voos rasos de velas brancas...

Passos leves e um fru-fru roçagante abriram-se na álea, e Miss Lili chegou, clara e rosada, vestida de azul-marinho, com uma cadelinha ao colo. Os cabelos caíam-lhe do alto da larga e linda cabeça escocesa, em massa ardente de juba espessa ondulante, cor de ouro como um braçado de feno ao sol. Seus olhos célticos tinham a cor, a doçura, a transparência e o brilho d'água das fontes, em matas virgens, nos morros. E seus lábios magníficos, onde a brancura dos dentes rutilava, atraíam os beijos, úmidos, polposos, escarlates.

O rapaz voltou-se logo, num frêmito, o ar gentleman, saudando-a vivamente, com um grande shake-hands. E rompeu em festas à cadelinha, numa doce algazarra.

 A moça, muito corada, ria-se alegremente, em esfusiadas cristalinas.

 O verão começava, e tudo em redor era inefável. No ar límpido e transparente, errava um aroma vivo e penetrante.

Sentados sobre as pedras, ao ruído das ondas espraiando-se em carícias murmurosas, batidas pela brisa do mar gemendo queixosamente por entre os ramos das árvores, que acenam docemente para as embarcações navegando ao longe — os três mantinham uma palração animada, olhando as casas da Praia de Fora, muito brancas, no recôncavo da costa, sob a claridade esmaiada da tarde; as colinas do Estreito, ondulando em planos sucessivos de esmeralda; a paisagem dos Coqueiros, fresca, saudosa e verde-negra, destacando sobre ouro, como linhas fugidias de um oásis. Perto, numa volta da estrada, para onde descem pastagens luxuriantes, lembrando os prados bizarros da Escócia na primavera, grupos coloridos de moças e rapazes perpassavam alegremente, na frescura litoral da paisagem...

Longo tempo ali ficaram, olhando a feérica iluminação do ocaso.

Mas uma meia-tinta azul-ferrete alastrava o céu, barrando os longes os primeiros panejamentos da noite. Uma etérea melancolia pesava, aviventando extintas lembranças, venturas gozadas em tumultuosos instantes, na efervescência do sangue, nos enternecimentos que estuam quando o coração polarizado ama.

Ergueram-se, então, tomados de uma vaga dolência, fixando ainda uma vez as águas tingindo-se de uma negrura brilhante. E, Mistress Mag adiante, foram subindo vagarosamente para casa, onde uma lâmpada belga abria já a sua grande flor luminosa, no salão.

Mas, demorando o passo na álea, sob as frondes murmurosas, o rapaz, numa profunda vibração afetuosa, enlaçando amorosamente a cintura da moça, ia-a beijando, beijando. Ela, vencida e cheia de ternura, reclinava-se toda sobre o seu ombro forte; e de seus lábios úmidos desprendiam-se, trêmulas, entrecortadas e ardentes, estas palavras deliciosas:

— Meu amor!.. Meu amor!...

Nos degraus da entrada pararam um momento, arrebatados pelo esplendor do céu, que se coroava todo de uma prateada florescência de estrelas...

Rio, 1893.

Na roça

Ao Dr. Francisco Fajardo

O Cosme, depois que a tia Sabina morrera, dera-se todo à bebida. Raramente trabalhava já; e a maior parte do tempo levava-a, de manhã à noite, na venda do André, a virar vinténs de aguardente. A sua fisionomia, outrora bela, rosada e límpida, com um riso amável e um resplandecimento juvenil e doce, achava-se agora quase completamente transformada: os olhos, castanhos e transparentes, muito rasgados, e que tinham uma expressão e uma luz tão forte que ascendiam logo nos virgens corações das raparigas afetos desordenados, arrastando-as, às vezes, às fúrias da rivalidade assanhada e dos ciúmes convulsos, que as levavam a descompor-se e a esgadanhar-se impudentemente nos terços — viviam agora sonolentos e cobertos da rubra e desfigurante bruma do álcool.

Sobre o rústico banco de madeira, que corria ao longo do curto balcão da casa, levava as horas a dormir, sentado, com uma das pernas dependurada e a outra erguida sobre a tábua — o pé direito espalhado, mostrando uns dedos nojentos, calosos e deformados, onde os dois braços e as mãos, fechando em círculo a perna em triângulo, desciam e vinham unir-se enclavinhados. A cara, congesta e túmida, apoiava-se a um dos joelhos, e a barba, sedosa e fina posto que maltratada, estava sulcada de grossos fios de baba. O cabelo, inculto e longo, todo emaranhado e ruço daquele triste vegetalizar pelo vício, daquela vida desviada totalmente do bem-estar e do trabalho, exausta já de vigor e brio, dava-lhe à cabeça revolta um ar disforme e velho. No entanto, bem reparadas, as feições guardavam ainda um certo clarão juvenil, um tom vago e fugidio da beleza e virilidade que possuíram outrora.

II

A tia Sabina era mulher dos seus sessenta anos, alta, magra, com os cabelos brancos e um pescoço fino e comprido, cheio do forte sulcamento das veias. Falava pouco e baixinho; era devota, sabia ler e tinha bom coração. Todas as noites, depois de fiar o seu bocado de algodão, ceava e ficava por muito tempo defronte de uma velha cômoda, onde havia um registro colorido do Bom Jesus de Iguape, em pé, com uma palma verde na mão; ficava ali a orar, com o seu longo e encardido rosário entre os dedos, a passar as contas, com um movimento rápido dos lábios murchos que zumbiam levemente, e o olhar, ora vagando pelo teto, ora fixando a imagem pintada; depois ia meter-se na cama, mastigando ainda restos de rezas. Fora casada vinte anos. O marido, havia quatorze, morrera. Era embarcadiço, levava a vida por fora, em viagens, e a última que fizera matara-o, porque desembarcara doente, em braços, a bem dizer morto, com uma pneumonia.

Ela então, necessitada de uma companhia, tomou para si o Cosme, um rapazinho órfão, magro e amarelo, muito tímido e desajeitado, com uma carinha meiga e uns olhinhos grandes e mansos, e que vivia a favor em casa de uma pobre e numerosa família dos Zimbros. O rapazinho não era feio e a tia Sabina, desde que o tomara, que descobrira nele uma bondade — era obediente e calado, muito dócil, alheio a troças, e amigo de fazer as voltas da casa. Por essa razão, tratou logo de dar-lhe umas roupinhas e mandá-lo todos os dias à escola, acompanhado-o até a porteira, e recomendando: — “Sê bem ensinado e bom; e aprende, meu filho, aprende, que é para seres homem”. E ficava ainda depois a olhar de longe o pequeno, que ia caminhando sem se voltar, com o andar preso e atrapalhado, e os pés a doerem-lhe e a escorregarem dentro dos tamanquinhos novos. Tinha então seis anos. Quando ele voltava, ao meio-dia, e vinha tomar a bênção, ela, sentada na caixa grande da sala, com o cesto da costura ao lado, carinhosamente o estreitava ao seio e beijava, tirando-lhe com meiguice o casaquinho e o boné, a alisar-lhe para trás o cabelo com as mãos, perguntando-lhe:

— Então, soubeste hoje a lição?

E sorria, enternecida.

Depois levantava-se, ia tirar a comida: estendia no chão uma esteira, abria sobre ela uma toalhinha muito alva e, com a panela ao lado e uma grande colher de pão, enchia o alguidar do rapaz que, sentado, as pernas cruzadas, remexia e amassava o pirão, mastigando em silêncio.

À meia tarde, o Cosme voltava de novo à escola e ao entardecer regressava, só, afastado dos companheiros, que galhofavam dele, dos seus modos, e que, num alarido desenfreado, corriam, jogavam pedradas para as cercas, onde os cães se iam refugiar latindo e os passarinhos dobravam nas ramagens altas. Quando anoitecia, a velha botava-o adiante de si com o catuto na mão, e desciam ambos para a fonte, a buscar água, por entre o cantar metálico dos grilos e as inquietas brasinhas dos pirilampos.

Assim cresceu o pequeno.

Uma ocasião, já com dezoito anos, meteu-se-lhe em cabeça casar. Na casa vizinha, do lado do morro, havia uma rapariga galante e viva, filha de um pescador do lugar, que desde muito o andava tentando com uns olhos magníficos. A rapariga chamava-se Margarida: era um demônio; havia meses, vinha todos os dias ao caminho esperar o rapaz quando voltava da rede. Então fazia-o parar, começava a contar-lhe as “coisas”, a dizer que o amava, estalando-lhe nas bochechas risadas esplêndidas, jogando-lhe beijos com os dedos, entornando-lhe sobre a cabeça um turbilhão de pétalas!

O Cosme, muito acanhado, fitando-a com os seus grandes olhos castanhos, corava; ficava comovido e satisfeito com aquelas declarações e carícias, e ria-se, ria-se a valer, sem saber o que dizer, sentindo palavras que lhe passavam na imaginação como faíscas, mas que nunca lhe vinham aos lábios! Apenas podia dizer, aparvalhadamente: — “E eu!... E eu!...” Depois, despedia-se e seguia para casa, voltando-se de instante a instante, para ela, que ficava de pé, no terreiro, a acompanhá-lo com os olhos — impressionado, cheio de cismas, com uma doçura sobre o coração. E levava todo o tempo a pensar na rapariga, vendo-a, pela imaginação, airosa, alegre e resplendente, com as mãos nos quadris, sob o abundante ouro do sol. Havia noites que não dormia, porque necessitava pensar nela, tê-la ao pé de si. Achava as horas imensas, intermináveis; e parecia-lhe, tristemente, que não amanheceria mais, que não veria o sol depois. Era uma angústia, uma infinita angústia! Resolveu, então, dizer à tia Sabina que precisava casar-se, senão não poderia mais viver, morreria...

A tia Sabina ouviu-o silenciosa, e muito sensatamente, disse :

— Tu estás doudo, Cosme! Não vês que isto é uma falta de juízo, e tu não tens idade nem meios?...

— Mas eu quero; quero, porque já não posso mais! retorquiu o rapaz.

E ela, melancolicamente, com os olhos no chão, pôs-se a refletir, abanando a cabeça; depois, fitando o Cosme, que estava em pé, no portal, acrescentou:

— O que se há de fazer! o que se há de fazer!...

Daí a meses o rapaz casava. A Margarida, a princípio, mostrara-se muito boa, muito trabalhadeira, e não deixava a tia Sabina fazer coisa algum, sem que ela a ajudasse. A tia Sabina vivia numa satisfação, queria-a muito e chamava-a sempre “santinha”. Mas, decorridos dois anos, levada pelo seu temperamento ardente, irrequieto, revolto, deu em “virar a cabeça” e não fazia mais do que preparar-se e ir todas as tardes, depois do jantar, dar a trela pela vizinhança. À tia Sabina não lhe agradava aquilo; mas, como sempre, permanecia calada, sem lhe dar a entender, mesmo de leve, o seu desgosto por aquelas visitas. Um domingo, porém, uma velha camarada de infância, e sua comadre, a Rita Basília, a da Coivara Grande, que já há tempos não via, e que viera à freguesia para ouvir a sua missa, ao passar-lhe na porteira, encontrou-a estendendo umas roupas molhadas, e falando: —“... É verdade, como vai o Cosme? E a Margarida? Olha, mulher: pois não está tudo cheio que ela é má bisca; que não para em casa, e vive todo o santo dia a curricar, enganando o pobre do marido, coitado! Ó Sabina, anda cá: põe-lhe um “cobro”, vê se a metes em caminho. Olha que é uma desgraça...” E como viesse gente, despediu-se apressada: — “Adeus, vou à missa, que já basta de perder tantas. Logo eu entro; agora não posso, ouviste?” E saiu à pressa, bamboleando as suas transbordantes ancas de mulher madura e pesadíssima, no meio do cadenciado estalar e ranger dos tamancos.

A tia Sabina, estendida a roupa, retirou-se, cabisbaixa, recolhida, com visíveis sinais de aflição no rosto. Quando entrou em casa, ia pensando:— “Vou dizer-lhe tudo, isto não fica bem, não pode ser. Também sair todas as tardes! Já estão surdindo os mexericos... Virgem Maria! Cai na boca do mundo, cai na boca do mundo!...”

E nisto esbarrou-se com a Margarida, que vinha saindo de casa, com uma radiação de alegria no semblante risonho e um grande molho de malmequeres, dálias e perpétuas, direita a ela: — “Tia! Olhe, eu vou até lá ao Amaro; vou levar flores para o terço. Passo lá o dia com a Leandra. Pois não sabe? Hoje é o dia da Conceição. Há terço logo à noite”.

A tia Sabina, com a sua imensa bondade, vendo-a muito alegre e rosada, de uma frescura infantil no seu vestido de chita clara, conteve-se e apenas disse : — “Vai; mas toma cuidado, filha. Não sejas leviana. Olha que já falam...”

E ia para concluir, quando a rapariga, com um modo estouvado e inquieto, pegando-lhe do braço e sacudindo-a, interrompeu-a: — “Você venha também, tia; deixe isso e venha. Eu lhe espero; aquilo vai ser bom. Há dança”.

E saiu correndo, com as longas tranças soltas e um fru-fru de saias engomadas, em direção ao caminho.

O marido não estava. Na véspera, levara a noite inteira na rede. Como o peixe “era mato”, carregara uma canoa, e sem voltar à casa, saíra para a cidade, pela madrugada, e até aquela hora não se sabia dele. À Margarida, porém, não lhe deu abalo isso; já pouco se importava com ele, e até estimava a sua ausência. Entretanto o pobre rapaz nunca fora tão dedicado e carinhoso como agora. Sempre que entrava de fora, ia logo para ela; abraçava-a num contentamento, intimamente envaidecido e orgulhoso por aquela “prenda chibante que ele quase não merecia”. Porém ela enxotava-o, como a um cão ruim, toda séria, empurrando-o para longe de si com os seus braços roliços e cor de rosa, rejeitando assim as francas e leais carícias do rapaz, em cujo peito floriam, esplêndidas, a nobreza e a ingenuidade dos afetos. E, obstinadamente, “secada” repetia sempre: — “Já vem o tolo! o desengraçado! Fosse antes dormir, se tinha sono; mas não a viesse inquietar, o tanso”. E assim vivia a maltratá-lo constantemente.

No terço do Amaro, à noite, depois do capelão engrolar a reza e apregoar o juiz e os mordomos que tinham de fazer a festa no outro ano, começou a dança. Achava-se aí, nessa ocasião, o José Italiano, mascate, que de vez em quando rebentava pelo lugar, onde a sua mercadoria voava, tendo uma fama e possuindo numerosos fregueses. O José Italiano era um calabrês simpático, de uma grande beleza viril, que impressionava e arrebatava as mulheres; mas, atrevido e corrupto, nas casas onde por acaso assistia e se lhe abriam os corações, ria generosa e santa ingenuidade roceira, deixava sempre a desgraça e a desonra.

Diversas famílias, ali, tinham sido arrastadas impiedosamente pelo miserável à corrupção e à miséria.

E a Margarida, já desde muito que andava algemada ao seu olhar elétrico e vencedor, onde bebia as tentações e graças todas as delícias satânicas dos amores ilícitos. Profundamente dominada pelas manifestações e arrastamentos do seu temperamento indomável, estuante de seiva e fartamente embebido em sol — abriu um escândalo desordenado e terrível no meio afetuoso e sereno de toda aquela festa, prendendo-se a noite inteira, nas danças, impudicamente e, sem interrupção, ao braço rijo daquele sujeito audaz, que. fazia timbre em ostentar afrontosamente, em plena estupefação geral dos convivas, a paixão descabelada e cínica daquela rapariga doida. E, pelas duas horas da manhã, por entre o cantar álacre dos galos e o reboliço das despedidas, escapou-se com ele, de tal modo que ninguém os viu mais.

No outro dia, corria insistentemente pelo sítio que ela tinha fugido com o Zé Italiano, para as bandas da Caieira...

O Cosme, mal voltou à casa, soube tudo; ficou fulminado e prorrompeu aos soluços, a arranhar-se e a maldizer-se; e nas intermitências da sua, angústia, quando a realidade desmanteladora e brutal do caso se restabelecia com nitidez, jurava, em altos berros roucos, desfigurado e congesto, convulsamente brandindo a sua aguda faca de roceiro: “Ele há de pagar-me, o diabo!”

A tia Sabina, coitada, que o escutava e estava acabando uma camisola de baeta azul, teve um tremor e uma palidez, mas não disse nada; e, olhando-o docemente, com uma expressão de incomparável. piedade e ternura, desatou a chorar; silenciosamente: grossas lágrimas, como punhos, sulcavam-lhe o rosto engelhado. Agora como que tinha perdido toda a antiga serenidade: um ligeiro estremecimento agitava-a, e o seu rosto, naquele instante, parecia mais abatido e cavado. Quem, melhor do que ela, conheceria a organização daquele rapaz tão ingênua, tolerante e passiva sempre, mas uma vez atacada, completamente outra vingativa, cruel, sanguinária.Ainda trazia bem de memória a história do mulato do Reis, que uma noite o fora esperar no caminho da praia para lhe meter medo, do que resultou perder o Cosme a cabeça e o mulato sair esfaqueado num braço, em risco de morrer. Ela conhecia bem o Cosme...

III

Daí a tempos, dizia-se por toda a parte que o rapaz, tão bom e tão ajuizado dantes, profundamente apaixonado pelo abandono em que o lançara a mulher, dera em beber, e, algumas vezes, chegava a não se aguentar em pé.

IV

Era por uma noite negra e troviscosa de inverno. O Cosme, como sempre, estava na venda do André, sentado num banco, numa modorra, bêbedo, completamente bêbedo. Alguns lavradores, que costumavam reunir-se ali, todas as noites, para a “seca”, algazarravam alegres e expansivos, felizes naquele santo descanso bem ganho aos rudes labores do dia, na cultura das terras, pelas baixadas e morros, sob a bárbara cáustica do sol; ou na pesca da enchova, no mar alto, sob as terríveis e açoitantes cordas dos ventos das tempestades, nos bravios costões do Arvoredo. Falava-se discretamente do Cosmo.

— Como vivia agora aquele pobre rapaz! Quase sempre, bêbedo! Que desgraça! Mas era aquele gosto! E antigamente tão bom que fora! E um bruto que tinha força que nem um touro, e que, de uma feita, ele só, plantara uma roça de mandioca que dera trezentos alqueires!... Nesse tempo, ainda a tia Sabina — Deus lhe dê o céu! — era viva, e a doida da mulher não dera para aquilo!... Também ela só não tinha culpa; pior era ele, aquele cachorro do Zé Italiano, que lá no terço do Amaro — não viram? — levara toda a noite a meter-lhe caraminholas no casco, não se despegando, um instante só, das saias da rapariga, até que “o raio da sem vergonha” deixou tudo por ele... A tia Sabina, que lá estava no bom lugar, é que lhe falou às direitas, quando ele disse que queria casar: — “Estás doudo, Cosme; tu não tens juízo!”...

Nisso, o Cosme, acordando do seu entorpecimento, ouviu ainda algumas palavras, e com um fuzil de cólera nos olhos vermelhos, rosnou:

— Ó Mateus, Que raio! Que diabo estás tu praí a dizer? Deixa lá isso, homem! O que foi, foi...

O Mateus calou-se, e ele tornou a encostar a cabeça aos joelhos.

Lá fora a chuva caía em bátegas; e fuzis contínuos, acompanhados de estrondos, abriam na escuridão súbitos clarões de fogo rubro-violáceo, que deixavam ver, pela porta entreaberta, paisagem fantástica e lúgubre de ópera mágica.

O Mateus então foi até à porta fincou os olhos na negrura espessa, como quem quer ver alguma coisa, olhou para o alto: completamente escuro! e exclamou:

— Temos água!

E, voltando-se para dentro, com os braços cruzados ao peito e os largos ombros encolhidos pelo arrepio da umidade :

— Quem é lá de cima? Na primeira estiada, pronto! Quem se vai, vai! Isto aguenta até dia...

E encostou-se de novo ao balcão, com os olhos pregados na molhadura nesgada que o sudoeste estendia pelo soalho, entrando de través.

Pelo morro do Zefira, que ficava logo adiante, sentiu-se um ruído de patas, que se aproximava. Todos puseram os olhos na porta.

 E logo um cavalo, pintado de largas manchas brancas que o lampião da venda fazia alvejar e luzir, estacou ao portal, com os olhos em brasa, as largas ventas resfolegantes da corrida. Então, um homem de botas, ataçado num grande ponche que escorria ensopado da chuva, alto o moreno, de barba cerrada, tilintando as esporas, desmontou-se; e, enquanto desapertava a cilha do animal para desencilhá-lo, gritou para dentro, em mau português:

Ó André! Quero-te hoje uma pousada e pasto para o cavalo. O tempo está dos diabos, homem!

 Todos exclamaram:

— Ah! É o sô Zé que anda por aí... Nossa Senhora! Era uma lástima aquele tempo!

O calabrês entrou, batendo os tacões, com os arreios de rastos, num tinir metálico de loros e estribos, indo colocar tudo a um canto, por detrás da porta, e, dando “boas noites”, desatacou o ponche e despiu-o, deitando-o sobre o balcão, onde encostou-se pedindo cachaça e dando um forte relhaço nas tábuas.

O André inquiriu:

 — De onde vinha? Com aquele temporal d'água era uma loucura! Apanhara-o muito longe?

 — Que não; pelo Justino. Mas estava fechado, senão ter-se-ia arranjado por lá. Fora ali por causa de umas terras...

 O Cosme despertara com o ruído brutal do relhaço, levantou a cabeça e, ao dar inesperadamente com aquele homem ao pé dele, de costas, roçando-o bruscamente, saltou. Os roceiros olhavam-no. Ele esfregou rapidamente as pálpebras pegajosas e, convulso, transfigurado, arremeteu de pronto contra o italiano, num ímpeto, numa ferocidade bravia, os punhos cerrados, os dentes de fora, os musculosos braços retesos, num medonho aspecto de fúria; depois cingindo-o fortemente e atirando-o ao chão, cavalgou-o, levando uma das mãos à cinta onde costumava trazer a faca.

Os circunstantes correram logo, procurando intervir:

— Chega! Chega! Não o mates! Não o mates!...

Mas o rapaz, subitaneamente, agitou o ferro no ar e, várias vezes, afogou-o no corpo do italiano. Por fim, ao reconhecer que este não fazia mais um movimento, ergue-se, e deitou a correr para a estrada, rosnando, entre alucinado e medroso, num tom indizível:

Matei-o!... Matei-o!...

Santa Catarina, 1887.

Mar grosso

Ao Dr. Ramiz Galvão

Desde manhã que a Isidora e mais duas camaradas estavam nas pedras a tirar marisco.

Corria um verão muito límpido. Uma contínua brisa de nordeste embalava docemente as verduras do pequeno promontório do Rapa. Do alto caía o sol de ouro quente. Embaixo, em volta, achatando-se a perder de vista, cheia de magnificência e de sonhos, a planura verde do mar, faiscando, com os seus grossos vagalhões sonoros, que se estendiam em gigantescos cordões, ao longo das praias, cobrindo-as de largas rendas de espuma. Próximo, os cômoros, com um tom de alvuras oxidadas sob a luz radiante, expunham um retalho desolador de ondulosas areias saarianas. Velas andavam além, com saudosas brancuras.

De lenço de chita pela cabeça, as mulheres, com as costas escaldando, o rosto aberto pelo calor em cor de rosa esplêndido, enchiam os samburás, empoitadas sobre as pedras. As ondas, às vezes, escachoando em véus brancos pela penedia, lambiam-lhes com furor os braços e as mãos rebuscadoras e destras, que apanhavam os mariscos às pencas. Elas então desatavam a rir, cheias de consolação, naquelas luvas de espuma que as deliciavam, e que logo o ar desmanchava.

Nessa doçura e na alegria da farta pesca que a baixa-mar favorecia, iam de pedra em pedra, numa palração que aquecia, em notas muito cantadas, borbulhando, como um veio cristalino, dos lábios frescos e úmidos, de bela polpa escarlate. Sentiam-se felizes, e falavam expansivamente da casa, dos filhos, das roças, da sua criação e do gado, abençoando o destino. Com os samburás já cheios, esqueciam-se agora, num repouso bem ganho, sobre uma laje rasa, das mais de fora, sem reparar na maré que subia. Levaram assim longo tempo, a dar à trela...

De repente, um vagalhão solteiro, um desses tremendos vagalhões, tão conhecidos nas costas de mar grosso, em tempo de bonança, e que fazem revolutear inopinadamente as canoas e submergir as rochas, como numa tempestade, ergueu se e as envolveu de súbito no bojo bramante. Foi um medonho turbilhão de espuma. A laje toda afundou-se, sumiu-se, em grossos rolos fumegantes, como um casco a pique, e, quando a água escoou, gritos dilacerantes partiram da coroa branca das ondas.

A Isidora, robusta e valente que era como um animal de trabalho, com os seus braços possantes e rijos de bater algodão, acarretar água e lenha, e malhar o feijão, no terreiro, ao sol, procurava em rudes arrancos galgar a pedra escorregadia de musgo, que nem ao menos oferecia uma cavidade apoiadora para as mãos náufragas, tentando agarrar-se ao alto, nos constantes empuxões das vagas. Debatia-se heroicamente, com rudeza, num frenesi de salvação, num desespero de leoa. As outras, boiando nas salas enfunadas, aos gritos, num bracejamento indômito de lutadoras, iam levadas para fora, no recuo das águas hiantes...

 Pescadores, que andavam além, deitando as redes, num afastado recanto da costa, acudiam correndo.

 Nesse instante o homem da Isidora, o Manuel Porto, apareceu no alto das pedras, com os dois filhos pela mão, aos berros. Ouvira, lá embaixo, do lado de lá, na Lagoinha, gritos contínuos que voavam daquelas bandas, e atirava-se para ali a toda, num sobressalto, com as crianças, porque recebera de repente uma pancada no coração, ao lembrar-se da mulher, que o avisara, de manhã cedo, que ia às pedras tirar marisco, mais a mulher do Zé Félix e a do Rufino. Do alto das rochas, o pobre homem recebeu logo, no largo olhar rebuscante e ansioso, o sinistro quadro, e sentiu rebentar-lhe o peito possante como uma machadada formidável. Uma enervação súbita inteiriçou-o; quase não pôde respirar; mas quando a reação se fez, despertando-lhe a máscula e poderosa energia de velho leão do mar, desprendeu-se dos filhos, disse-lhes que esperassem, que já voltava, e desapareceu pelas anfractuosidades das fragas, branco, trêmulo, numa angústia alucinadora e suprema. Correu até as últimas pedras, as mais de fora, as mais avançadas nas ondas.

 As duas mulheres já haviam afundado ao largo; mas a Isidora ainda lutava, no imenso torvelinho das vagas, batendo de encontro às rochas. Resistia prodigiosamente, num último combate para a Vida, com o peito atlético e rude de aldeã lacerado, ferido, escorrendo sangue, os cabelos soltos, empastados pela cara, os olhos imensamente abertos, comum brilho vidrado e frio, raiado em sangue, o ar crispado e trêmulo de agonia. Dessa criatura em perigo supremo, desprendiam-se uivos roucos, desoladores, plangentes.

 De um cabeço perto, totalmente impedido de avançar mais, o marido estendia-lhe os braços hercúleos, chamava-a pelo nome, dizia-lhe que se aguentasse um instante só, por Nossa Senhora, que ele a salvaria!...

 E arrancava precipitadamente a camisa para se jogar às ondas.

 Mas a Isidora, coitada, já não o ouvia mais: um vagalhão mais alto envolveu-a, afundando-a para sempre sob as espumas brancas...

 As pedras, agora, possuíam toda uma população, estranhamente crivadas de gente. Crianças, mulheres e homens faziam um alarido selvagem.

No entanto, nem uma só embarcação nas proximidades! Ninguém capaz de arriscar-se naquelas penedias!

O Manuel Porto, então, por momentos, quedou-se espasmado; depois, com os olhos rasos d'água, transido, lançou os braços ao céu, parecendo implorar profundamente de Deus, a essa hora bem oculto e distante, uma salvação, um milagre, para a pobre mulher, que fora sua, ali perdida, agora, no seio torvo do mar!...

Rio, 1893.

O alemão doido

A Bernardino Varela

Ele teria os seus cinquenta anos. Era direito e robusto, cara devastada pela miséria, onde se viam os sulcos que os esgares da loucura faziam. Tinha a barba e os cabelos encinzados de neve. Aparecia quase sempre nos sítios em busca de alimento, a implorá-lo pelos pobres casais dos lavradores, com palavras guturais, numa linguagem acre, pedregosa, que ninguém entendia, metendo pânico às crianças. E satisfeito e risonho com algum minguado quinhão que lhe entornavam nas mãos, partia logo, falando e gesticulando com fúria, a gargalhar estrepitosamente, por instantes, na linha acelerada da sua marcha descompassada e batida, desaparecendo, por dias, nas voltas suaves e floridas dos brancos caminhos agrestes.

 Havia já um ano que ele assim vivia, surgindo intermitentemente pelas estradas, lançando sustos às mulheres e rapazes, que fugiam num temor; às vezes manso, outras agitado, conforme o caso da sua nevrose, mas sempre inofensivo, respeitoso, muito amigo das crianças, gostando de as amimar, de correr sobre as cabecinhas louras e infantis, como numa carícia demorada e paterna, a sua mão calosa e rija.

Na existência agitada desse homem havia, talvez, a tenebrosidade de algum mistério, de algum desastre, porque, frequentemente, deram com ele chorando, sentado à porteira dos engenhos, à hora sombria e triste do anoitecer, quando para aí se encaminham as raparigas alegres e palradoras que vão para as farinhadas.

E assim ia vivendo, o pobre Pitter, entre o receio e a condolência pública, recebendo da imaginação popular cores fantásticas, salientando-se como um ser estranho, quase sinistro.

Às vezes, quando a pausa da moléstia dava-lhe a suavidade e a segurança do discernimento, procurava, para descansar, os ranchos de palha baixa e espessa, abeirados dos rios, que oferecem abrigo e tepidez de ninhos aos desgraçados que erram, sem carinhos e recursos, aos ventos gélidos que sopram pelo decurso desolado das longas noites de inverno. Mas, numa dessas ocasiões, foi agarrado de surpresa, altas horas, pela fúria demolidora, irresistível de uma tempestade, plena de fuzis e de trovões, que fizera transbordar o rio numa inundação devastadora, inclemente...

No outro dia, na serenidade límpida de uma tarde de ouro, dois pescadores que desciam o rio foram encontrar o corpo do alemão numa das brechas que a impetuosidade da torrente cavara fundo, nas barrancas: ali mesmo o sepultaram, socando-o a pés, sob uma indiferença de estranhos!

*

* *

E, ainda hoje, quem passa pelo lugar, olhando à direita, encontra um montículo de terra, estufado como um ventre cheio, a cobrir os ossos do pobre homem; mas nenhum sinal, nenhuma cruz! Entretanto, a alegria da vegetação, na uberdade do solo, dir-se-ia ter-se encarregado dos ornamentos da cova e a porção de grama alta que sobre esta viceja, num colorido vivo e cantante, lembra, decerto, o bando das esperanças que, outrora, na mocidade, tanto alentaram o coração do desgraçado Pitter, e que voltam agora a pousar-lhe piedosamente ali, para o acompanhar no túmulo, à zoeira melancólica das laranjeiras em flor, à noite, e às suavíssimas canções das florestas ao clarear das manhãs!...

Santa Catarina, janeiro de 85.

Núpcias marinhas

A Belarmino Carneiro

I

O pequeno arraial da Ponta Grossa, nessa clara manhã de janeiro, despertara alegre e ruidoso, como nos dias de grande pesca, pelo tempo das tainhas, ao cair das primeiras geadas. Na praia recurva, de areia alvíssima, estendendo-se na distância de um quilômetro, desde o tabuleiro dourado do longo pontal ao sul, até a crista de rochas negras e altas ao norte, onde o mar sacode, noite e dia, em vagalhões espumosos, largas barras de prateada escumilha — remadores das redes, em camisa e calcas arregaçadas, grandes chapéus de palha à cabeça, fumavam e palravam rusticamente, de pé, em volta de duas imensas canoas de voga, alcatroadas de novo, que, postadas sobre grossos rolos de madeira, de proa para o mar, e palamentadas, os beques finos erguidos, esperavam, prontas a investir contra as ondas.

Era o casamento da filha mais nova do Rufino Bastos, a Rosinha, com o João Aguiar, um belo rapaz — vigoroso, Patrão de uma das redes do pai: esse ato ia efetuar-se na igrejinha de Santo Antônio, uma freguesia pitoresca e agreste, que ficava do outro lado, à margem esquerda do Ratones, cortando ali as terras com o seu largo estuário. Devido a esse embaraço do rio e à pobreza do arraial, que nem ao menos possuía uma capelinha — antiga e única aspiração daquela boa gente adorável! —os consórcios e batizados faziam-se sempre por mar, em magníficas monções, sob um tempo límpido e calmo, o que não evitava, entretanto, um ou outro desastre, de longe em longe, quando sobrevinha inopinadamente algum temporal.

O risonho préstito compunha-se de duas ou três numerosas famílias do lugar — a gente do noivo e da noiva, e mais amigos, conhecidos e compadres caminhando alegremente, posto que um pouco contrafeitos naquelas roupas das festas, mas em agradável e animada palestra. À frente de todos vinha a Rosinha, pelo braço do pai, formosa e tentadora, a boca rubra, os pestanudos olhos baixos, as faces vivamente, coradas, e a fronte virginal inclinada sob o véu fino de tule. Seguiam-se as pessoas que iam testemunhar o noivado — pela Rosinha, o tio João Luiz e a tia Ana Mafra, um casal já idoso, com a cabeça alvejada do decorrer dos anos; pelo João Aguiar, o Jacinto Cunha e a esposa, robustíssimo par de lavradores, ainda moços, louros, com um rosto cor de lacre; e as irmãs dos nubentes, as primas e camaradas —um bando de moças, dentre quinze e vinte anos, graciosas, alegres, inefáveis. Mais atrás, num grupo de rapazes, na sua maior parte companheiros de rede e seus íntimos, vinha o noivo, marchando feliz, com os ombros enormes muito apertados num fraque novo de pano, a gravata alva confundindo-se com a camisa tesa de goma, a alta cabeça erguida, os lábios risonhos, os olhos reluzindo, negros, na pele queimada.

Quando chegaram à praia, os tripulantes, que olhavam atentamente o desfilar do cortejo desde o alto da estrada, entraram a botar as canoas para baixo. Então, de popa para terra, palpitando já sobre as águas balouçantes, as embarcações começaram a tomar os convidados. E logo após, sob a força possante dos remos, se afastaram ao largo.

II

Do alto do morro, no parapeito branco do vasto terreiro murado, onde alvejava, caiado de fresco, o frontal largo e acaçapado da casa do Bastos, com as suas cinco janelas abertas aos ventos do mar, deixando entrar amplamente o sol e todos os aromas e rumores da Natureza em volta — pessoas da família, que tinham ficado arrumando tudo para as bodas, olhavam, debruçadas, e num grande enternecimento, o afastar lento e saudoso do cortejo marinho sobre a planura verde e mansa das águas. Dentre elas — na maior parte mulheres e crianças, porque os homens tinham ido todos no préstito — se destacava, venerativamente numa atitude dolente e nostálgica de Mater Dolorosa, a Maria Bastos, a extremosa mãe da Rosinha, que, muito comovida, o rosto rosado e moço apesar dos anos, espiritualizado numa vaga saudade, acompanhava, alheada de tudo, o espumante singrar das canoas. Não sabia bem por que, mas sentia agora como um aperto, um peso enorme oprimir-lhe o coração, ela tão alegre até ali com o casamento da filha. Era inexplicável! Tinha um vago pressentimento de que iam sobrevir grandes tristezas, lutos, uma imensa desgraça... E aquilo a invadira inopinadamente, à maneira dessas trovoadas súbitas; que toldam de repente o puro azul dos céus de verão. Por mais que fizesse, não podia sufocar semelhantes ideias que a deprimiam, a esmagavam angustiosamente. Ninguém mais do que ela desejava aquela união, pois fora a bem dizer pelos seus esforços que conseguira o “sim” do marido para o João, quando este lhe escrevera pedindo a mão da Rosinha. Porque o Rufino, a princípio, ignorando o namoro de ambos, e depois contrariando-o sempre que podia, declarara-lhe logo “que não”. Reconhecia que o rapaz era bom, honesto, vivo, trabalhador, mas não tinha meios e estava ainda muito novo. “Não! que esperasse melhor ocasião”. E calara-se, franzindo os sobrolhos, numa austeridade de velho marítimo, duro e carrancudo como um leão. Ela, porém, a esposa, que sabia do profundíssimo amor que se votavam as duas criaturas, desde os mais tenros anos, e que bem via que aquilo podia talvez trazer a infelicidade para o seu lar, sempre tão cheio de serenidade e doçura, entrou a pedir constantemente, carinhosa e suplicante, o consentimento do esposo, que afinal acedeu, marcando tudo para aquele ano. E fora uma grande alegria para todos!... No entanto, agora, sem saber como, invadia-a estranho pressentimento... Que estaria para suceder, santo Deus?...

As embarcações, vogando paralelamente, separadas por pequena distância, voltavam agora o pontal, caindo no amplo estuário, onde a corrente impetuosa do rio, lutando com o mar invadido, erguia grossos frisos ondulantes de espuma. Os seus cascos, esguios e negros, desenrolando pela popa fora duas imensas faixas de escócia alvadia, iam-se ocultando, pouco e pouco, na sombra de duas ilhas altas e frondentes, emergindo em linha do espelho azul do oceano, como duas esmeraldas gigantes.

As mulheres e crianças, não podendo distinguir mais as canoas naquela posição, já muito diminuídas ao longe, tinham deixado o parapeito e volviam nesse instante à lida da casa, que se enfeitava toda para a volta dos noivos. A Maria Bastos, porém, não despegara, um momento só, do pequeno paredão; e, triste e lacrimosa, isolada e só, perdida nas delicadezas do sublime e inefável afeto de mãe, com o filhinho mais novo ao colo, um bebê lindo e risonho que se lhe debruçava sobre o ombro — olhava ainda aquele “noivado da sua alma”, que lá ia boiando, boiando...

III

No entanto, no cortejo além, sobre o mar, todos iam alegres. Parolava-se vivamente da abundância das culturas e da riqueza da pesca. O ano que findara havia sido, como poucos, da mais ampla fartura. Provera a Deus que o mesmo acontecesse com aquele, cujos primeiros dias iam decorrendo venturosos, com prenúncios de felicidade!

Na canoa grande — a melhor e a mais segura das que faziam o serviço das redes na Ponta Grossa, onde se acomodara o Rufino, com os padrinhos, os noivos e mais pessoas da família, o João Aguiar, que por ingenuidade e acanhamento fora sentar-se quase junto aos bancos de proa, não cessava de contemplar a Rosinha, com os seus belos olhos castanhos, deliciado e feliz, num embevecimento. Ela, por sua vez, olhava-o também, venturosa e cheia de ternura, mas timidamente, furtivamente, a face muito rosada sob o tecido tênue do véu, descendo-lhe pelas costas em longos pregas de bruma. Essas duas almas cristalinas, simples, adorativas e cândidas, que se alvoroçaram uma só vez ao jorrar da primeira paixão, e que viviam sempre, desde a infância, uma pela outra batendo, docemente, ininterruptamente — cruzavam-se em silêncio, nos meigos olhares de ambos, dando-lhes um mútuo e perenal encanto, traspassando-os de um gozo leve e suave, à maneira de um doce fluido magnético, que vibrasse, com igual propulsão, entre os seus peitos amantes. Agora, que iam para sempre unir-se, num mesmo contato e numa mesma palpitação, parecia que se diziam mudamente, numa emoção deliciosa: — “Enfim!... Enfim!...” Por sobre eles rumorejava prazerosamente a voz rouca e grossa dos velhos, em alegre expansibilidade, e estalava sonoramente, em esfuziadas límpidas, o coral de risadas tilintantes das raparigas em festa.

Na outra embarcação, havia também um contentamento ruidoso, sacudindo as almas de bendito esplendor, como os pequenos vagalhões do estuário sacudiam as canoas. E até os remadores — uns oito homens robustos, quase todos rapazes, de tronco atlético e pescoço de touro, o rosto tinto pelo sol do mar — riam-se esplendidamente, com os seus dentes muito alvos, o coração saturado da alegria das coisas, o corpo metricamente balançado no movimento vivo e contínuo dos remos.

IV

O sol já ia alto quando as canoas chegaram à praia, uma longa faixa de areia finíssima, fulgurando numa poeira dourada. As casas de Santo Antônio, beirando em linha ao longo da costa, à pequena distância, estavam fechadas e como adormecidas sob a luz escaldante. No porto, àquela hora batido por uma fraca brisa do norte soprando levemente, não se via vivalma. Tudo permanecia em paz, apesar da gloriosa radiação do céu, sob o silêncio adormecido e vasto dos meios dias nos sítios. As vendas, onde se bebe e algazarra tranquilamente, estavam vazias; e só ao longe, num recanto onde o sol faiscava deslumbradoramente, em escamas de ouro vívido sobre a planície líquida, um grupo de homens se destacava, movendo-se lentamente, na faina da pescaria.

O desembarque efetuou-se magnificamente, e o noivado foi subindo a pequena rua que vai dar num grande largo gramoso onde se acha ereta a igrejinha da freguesia, recolhida e humilde, despida de torres, com o seu frontãozinho amarelo, ao lado direito do qual se erguem toscos paus ao alto, encimados por um travessão, de onde pende um sinozinho.

Ao rumor do préstito atravessando por entre as casas, aqui e ali, cabeças curiosas assomavam às janelas. Um ou outro transeunte parava, pasmando os olhos ingênuos e doces naquele grupo festivo. E magotes de crianças, que costumam vagar pelos caminhos em correrias contínuas, surgiam pouco a pouco, incorporando-se ao cortejo, em zurzinada vivíssima.

Na igreja, o noivo, a noiva e os padrinhos tiveram de aguardar, durante muitas horas, com certa impaciência revelando-se nos semblantes a que a viagem dera um ar de fadiga, a chegada do vigário, um velhinho gordo e catarroso, de cabeça alvadia, que usava óculos, e que era agora, em todos os atos do culto, um retardatário remisso. Os outros, enquanto isso, erravam dispersos pela nave, parando junto às paredes muito caiadas, de queixo erguido, a contemplar, admirativamente e com grandes olhos deslumbrados, os vários Santos mal esculpidos, metidos nos seus nichos, a tábua dos altares, os ramos, os registros coloridos, as toalhas de renda, as flores murchas e os castiçais dourados...

Quando ocorreu a cerimônia era quase meia-tarde. O sol entrara a esmaiar para um amarelo frio, de ocre. Ao sul, sobre as montanhas do Cubatão, grossas nuvens de trovoada começavam a se adensar vagamente num fundo azul esfuminhado e sombrio; e pelo alto do céu, ainda muito transparente e nítido, flutuavam já grandes flocos de algodão, delgados e felposos como longas brochadas de tinta. Eram os conhecidos rabos de galo, que anunciam aos marítimos a iminência de pampeiros terríveis.

Todos, então, sobressaltados com a súbita mudança do tempo — tão comum naquele lugar durante o verão — dirigiram-se para a praia, numa marcha batida. Os intrépidos remadores, que desde muito observavam a aproximação da tormenta, os esperavam já, postados aos remos, prontos a largar ao primeiro sinal. E o embarque realizou-se, numa pressa agitada e confusa, em que as moças, sentiam como uma vaga inquietação, ouvindo os homens gritar pressagamente:

— O pampeiro! O pampeiro!

V

Na Ponta Grossa algumas redes que cercavam, apressavam nesse instante os lanços, receando a fúria do mar, que era ali, sob os tufões, de um efeito extraordinário, porquanto a praia corria em leve curva enviesada, totalmente exposta aos ventos rijos do sul, e os vagalhões, batendo de través, adquiriam sempre proporções brutais. Daí os inúmeros naufrágios que se davam e que tão temida tornava essa ponta de rochas às embarcações do tráfego, cruzando frequentemente aquelas paragens.

Grupos de pescadores, junto aos ranchos de palha, observando o lento condensar da tormenta nos ares, comentavam auguralmente uma má volta para o noivado; e alguns espíritos mais apreensivos exclamavam, abanando a cabeça, como numa previsão de desastre:

— Ora queira Deus que aquela tardança das canoas não desse em alguma desgraça! Também não sabiam o que é que o casamento esperava, que nem sinal!

O temporal estava por um triz! Se eles não abrissem os olhos, tinham que passá-la boa!... Quem sabia o que aquilo ia dar? Logo nesse dia... Pobre do João Aguiar, coitado!...

Mas outros, menos receosos, afirmavam virilmente:

— Que não! Talvez não desse em nada... A trovoada era muito capaz de se desmanchar para longe como tantas vezes se dava também a gente que lá estavanão era “ova”! E depois com o Rufino Bastos... Qual! Eles não largavam do porto sem ver primeiro no que aquilo parava! Estavam bem seguros, deixassem lá!...

E olhavam o mar onde as canoas, nas evoluções do último lanço, giravam com rapidez. Achavam-se ali à espera para recolher as redes, porque naquele dia estava tudo acabado. Fora uma asneira andar a lancear com as águas assim paradas e calmas, pois não haviam conseguido matar nem um peixe!

Nesse momento, no alto da encosta, cercada das pessoas de casa, a Maria Bastos, debruçada de novo ao parapeito do terreiro, numa aflição e quase a chorar, examinava o tempo que escurecia cada vez mais. Tinha o coração, agora, pejado de imensos temores, batendo com pulsação desmesurada. Sentia mesmo, por vezes, como uma ânsia, uma vontade louca de gritar. O rosto, tão fresco horas antes, perdera o seu colorido habitual, mostrando-se profundamente abatido e cavado; e os olhos, com uma luz desvairada, voavam incessantemente, para além, sobre as águas...

VI

Mal as canoas deixaram Santo Antônio, puxando para o largo a fim de montar o pontal, o cordão lívido do vento sul desenhou-se ao longe, nas vasas. Por sobre os píncaros austrais da Serra do Mar o céu tornara-se de um azul apertado e de aço. Nuvens negras e espessas, de bojo carregado, corriam para o norte num turbilhão colossal. Fuzis irrompiam além, dantescamente, em ziguezagues rútilos. O sol desaparecera de todo, sob os primeiros panejamentos da borrasca. Uma luz álgida e sinistra aproximava as perspectivas, dando às coisas em volta um aspecto fantástico. E sobre a vasta superfície do mar, ainda em calma, pesava a solenidade augusta de um silêncio formidável, como se de repente toda a Natureza fosse entrar para sempre na pacificação do Nada!

As embarcações singravam, entretanto, serenamente no meio da grande calina. Pareciam voar, arrancadas possantemente pelos pulsos infatigáveis dos seus tripulantes. A em que vinha o noivado, um pouco sobrecarregada, deixava-se distanciar pela outra, que ia adiante, já quase a dobrar o pontal: muito metida de popa não podia desenvolver maior velocidade; e por isso, os valentes remadores cada vez se esforçavam mais, impulsionando-a a gigantescas remadas. À ré, sobre o vasto paneiro solto, as moças, posto que nervosas e assustadas, mantinham-se contudo em silêncio, todas aconchegadas. Numa das extremidades, a Rosinha, que ficara sentada ao lado do noivo, junto ao grupo onde estavam os padrinhos e o pai, muito pálida e temerosa de algum desastre, levantava a cabeça, de vez em quando, acima da borda, para olhar o mar que cada vez enegrecia mais. O João Aguiar, então, com a sua imensa calma de pescador, criado a labutar dia e noite nas ondas, pegava-lhe carinhosamente das mãos, dizendo-lhe:

— Que aquilo não era nada, que não tivesse medo, pois estavam a chegar...

O pai, ao lado, falava-lhe também, animando-a. E o patrão, um homem baixo e entroncado, ainda moço, a fisionomia rija e grossa de lobo do mar, de pé, ao leme, não cessava de investigar o quadrante do sul, onde crescia a tempestade. De instante a instante, os seus lábios rudes descerravam-se e o seu vozeirão rouco passava:

— É aguentar, rapazes, que o pampeiro não tarda! É preciso montar o pontal quanto antes, senão temos trabalhos!...

Ao vibrar destas palavras, como sob o ferro de um aguilhão, os braços remavam com maior possança e a canoa levava uma impulsão a mais.

Mas, de repente, um siflar monstruoso como uma orquestra de demônios num sabat infernal, explodiu sobre as águas, sublevadas de súbito em vagalhões altos, que se entrechocavam espumando numa fúria inelutável. O oceano cerrara-se em torno. Os fuzis intenseavam medonhamente, abrindo na atmosfera hieróglifos de fogo. Trovões consecutivos rolavam no ar, aos estouros; e um pesado aguaceiro violentamente jorrou do céu bravo.

O patrão, ainda de pé à popa, mandava largar uma das velas menores para fugir às vagas colossais que se quebravam de encontro à canoa sacudindo-a numa dança macabra. As raparigas, tomadas de pânico sob o temporal desfeito, soltavam gritos contínuos, agarradas umas às outras: “Nossa Senhora!... Nossa Senhora!... Que horror!...” Os homens, com a coragem e o sangue-frio dos pescadores, procuravam acalmá-las com palavras animadoras. A embarcação, a borda inclinada, rolava vertiginosamente no torvelinho espumoso. De vez em quando, uma ou outra mareta maior galgava-a, coma sua coroa de rendas. E, hora a hora, o pampeiro aumentava desoladoramente...

Transida de susto, a Rosinha, as vestes amarrotadas e ensopadas da chuva, agarrava-se ao noivo chorando. Ele, forte e valoroso em meio ao vendaval, enlaçava-a meigamente, enchendo-a de consolações que serenavam, por vezes, como uma força salvadora. Era a primeira vez que a sentia toda entregue a si, vencida e humilde como uma corça; e por isso tinha os olhos úmidos de emoção, estreitando-a nos braços, em meio a tempestade.

A canoa não parava um instante, numa singradura louca, toda alagada dos novelos espumosos das ondas. Dois homens no esgotadouro, trabalhando com as duas cuias grandes, já não davam vazão à água que penetrava pelos bordos, pela popa e pela proa. Os paneiros, no fundo, começavam a nadar...

As moças, agora, invocavam com mais ardor os Santos, cujos nomes irrompiam tumultuosamente, às sílabas despedaçadas, de seus lábios brancos; engrolavam rezas confusas na agitação do pavor. Era uma cena angustiosa e tremenda. E o mar, doido e epiléptico, atirava-se subversivamente num estranho clamor!

Ao dobrar o pontal — o lugar mais perigoso da costa, sob as tempestades — o tufão, numa refrega indômita, partiu e arrebatou a vela nos ares. Então, uma horrível confusão espalhou-se por todos. A embarcação entrou a rolar, sem governo no seio da cólera espumante das vagas. Ninguém mais se entendia. E, agarrados uns aos outros na força instintiva do perigo, aflitos e assaltados pela alucinação, começaram a gritar num delírio:

— Socorro!... Socorro!...

Estavam já próximo à Ponta Grossa; mas em meio aos turbilhões da borrasca, ninguém os ouvia. E, de repente, uma volta de mar gigantesca, sinistramente envolveu a canoa que, adornada, revoluteou bruscamente, num reencontro terrível das ondas.

Uma hora depois a tormenta amainava. E os tripulantes, que eram grandes nadadores, apareceram sobre o casco negro da canoa boiando agora, desoladoramente, como um esquife medonho. As moças haviam perecido todas. Os noivos, esses, se afundaram abraçados, unidos indissoluvelmente para toda a Eternidade. Filhos de pescadores, quis o Destino que fosse seu leito de núpcias o oceano revolto.

Rio, 1893.

Romance de um rapaz

À Memória do Dr. Ferreira De Araújo

O Américo partia para o sul, em busca de um lugar onde melhor se ganhasse a vida e se garantisse o futuro. Deixava o sítio onde nascera e medrara feliz, porque os pais estavam velhos, “com os pés para a cova”, e ele precisava ajudá-los e casar-se, como prometera à noiva. E, de saco às costas, o seu lenço encarnado de chita entrouxando a roupa engomada, preso na mão pelas pontas em nó, botou-se a caminho da cidade, para tomar o primeiro vapor que passasse — sob o meridional esplendor de uma clara madrugada azul, em que os pássaros trinavam festivamente pela pradaria aromatizada e colorida e pelos laranjais floridos, que lembram noivados e exalam hálitos de amores, marginando as brancas estradas risonhas.

A mãe, antes dele partir, abraçada, pendurada ao seu grosso pescoço queimado pelo sol na capinação das culturas, depois de lhe beijar as faces cheias e amorenadas, sujas da primeira seda escura e rareada da barba nascente, disse-lhe comovida, engasgada pelos soluços: — “Deus te abençoe e te faça um homem, filho!” e a Leopoldina, que estivera na véspera em sua casa até tarde, e que lhe dera, ao despedir-se, uma trancinha odorante e luzente do seu cabelo escuro e ondeado, cheio de crespinhos esvoaçantes na nuca, fez-lhe também uma recomendação ingênua: — pediu-lhe “que se lembrasse dela e que escrevesse”.

E lá foi o Américo instalar-se no paquete, triste e saudoso de todas aquelas suavidades que ficavam atrás, no seu sítio, e a que havia voltado as costas tão precipitadamente, só pela necessidade de endireitar a vida, de torná-la outra. Na esterilidade daquele meio perdera já a esperança de vir a ser “alguma coisa”, porque não possuía “bens de seu”, nem gado, nem terras de lavoura, nada! Sempre o escasso trabalho “à meia”, não deixando resultado senão para os outros, e lançando eternamente o pobre trabalhador nas desconsolações e faltas do amargo semear em terras alheias. Por isso abandonava tudo, abnegadamente, com sacrifício, para ir ganhar o pão longe, no meio das grandes cidades ruidosas.

E, de repente, acossado pela nostalgia que acomete aos que deixam o lar pela primeira vez, desandou a chorar rijamente, soluçantemente, entalado, por causa dos grandes balanços do mar alto, na estreiteza de um sujo beliche de terceira classe. Mas, dois dias depois, já familiarizado a bordo, conversava, sorria, na alegria e na grande esperança dos que rolam para um destino novo. E, chegado ao Rio Grande, tratou logo de empregar-se e de “fazer-se um homem”, como lhe dissera a mãe.

Escrevia continuamente à família, e recebia desta longas cartas, em garranchos confusos, obscuros, de uma caligrafia impossível, mas de uma expressão doce e carinhosa. Sabia notícias, andava ao fato das coisas. De repente, porém, da parte dos seus, tudo cessou; anos passaram; um longo silêncio se fez. Cartas extensas, anelantes, choradas e escritas tremulamente, à noite, pelo Américo, num temor e numa obstinada apreensão de acontecimentos dolorosos e lúgubres perderam-se, sumiram-se numa mudez sinistra... Mas um dia chegou-lhe uma carta, com um sobrescrito estranho, estreita e tarjada de luto, noticiando-lhe a morte dos pais, e, em seguida, da noiva. Uma desgraça! Teve uma negra amargura. Ocorreu-lhe logo embarcar, regressar ao sítio. Mas naquela ocasião não podia “arredar pé”, sair: perderia tudo. Resignou-se a ficar, sofrer...

Entretanto, os negócios prosperavam e, no fim de alguns anos, o Américo voltou para a terra, triste com a perda dos seus, mas impelido pelo desejo de tornar a ver, nos objetos e nas pessoas, o seu passado, os seus conhecimentos antigos. Logo ao desembarcar, o Alexandre da Praia, que andava botando as redes, correu-lhe ao encontro, e ferozmente torturou-o com intermináveis detalhes do tristíssimo viver da família, necessitada e doente desde o dia da sua partida até ao momento em que “Deus se serviu de chamá-la para si!” “A Leopoldina, pobrezinha! que tantas esperanças tinha nele, estava também debaixo da terra; morrera das bexigas, já lá iam bastantes anos.” E o Alexandre acentuava: “Parecia que a estava a ver, fria, toda negra, envolta em folhas de bananeira e amortalhada num lençol, deitando mau asco. Fora por uma noite álgida e enluarada de Agosto...”

O Américo, esmagado por essas ideias pungentes e lutuosas, seguia agora, de cabeça baixa, o carro de bois que levava a bagagem, um verdadeiro carro de bois, tradicional, vagaroso e chiante, que dois bois arrastavam, babando-se, enterrados na areia fina do caminho. Tomou em direção à freguesia, em busca de uma casa conhecida ou de algum parente, para hospedar-se por aqueles dias. Não andara ainda muito quando o agarrou a Fortunata Pereira, uma velha parenta afastada, que o conduziu para casa, onde lhe deu café e agasalho em uma saleta vazia, fazendo muitas perguntas, arrumando a bagagem e dizendo “que em nada a incomodava, que a casa era grande e tinha até lisonja nisso. Pois se ela o tinha visto em fraldinhas, Mãe de Deus!...”

O Américo, naquela semana, não ousou sair, recebendo carinhosas visitas de parentes, de amigos, da família e de alguns camaradas de infância. Mas depois, com as suas constantes vestes de luto, em algumas tardes, ao lento desfalecer do sol no ocaso, subia a ladeira vermelha, e pedregosa, que ia ter à igrejinha do sítio, para lançar um olhar de enternecimento e de saudade ao lugar onde estavam os seus, ao estreito e humilde cemitério, verde e florido como um jardim.

E de pé, sobre o adro gramoso onde se erguia uma grande cruz de madeira preta, deitando um olhar amplo e vago à paisagem em redor, sentia invadirem-lhe o coração, numa revoada, mansa e piedosa, lembranças vivas e luminosas de um outro tempo, alegre, fugidio e cantante. Recordava-se de tudo, das menores coisas que vira em menino; e agora estava ele, ali, tão só, abandonado, numa desolação! O contraste brutal das situações feria-o pungitivamente. E, sob essas dolorosíssimas recordações, pensativo e melancólico, cabisbaixo, descia o adro da igreja, vagaroso e soturno, recolhido, como quem pensa na profundidade e no mistério das coisas.

Santa Catarina, 1885.

A bordo do steamer

 A Gonzaga Duque

Atracado ao trapiche, na ampla baía em calma, sobre espias dando volta em arganéus de ferro fincados nas grossas pedras do cais, um enorme steamer carrega. Metido de popa, a linha d'água imerge já aí, enquanto o vermelhão do fundo, pintado de fresco, se mostra ainda, no casco preto, aberto em nesga, à proa. Em volta, na vasta planura líquida resplandescendo em largos chamalotes de prato, outros navios, em grupos, eriçam o ar de mastros. Pequenos botes, em manchas policromas, singram morosamente, a remos, rente à água, à sombra das bordas altas dos barcos. E lanchinhas fumegantes cruzam-se rápidas, atracando e desatracando, num movimento constante, com os seus vivos apitos, metálicos.

Mas a bordo do steamer vai um alvoroço de dia de saída, uma grande faina, o fremir contínuo e áspero dos guinchos de carga. A mastreação polida, ereta, alta, finca os topes vitoriosos no Azul, entre as enxárcias, os brandais e os estais retezos, onde, em noites tempestuosas, os ventos largos do oceano desferem sinfonias agrestes, plangentes, como numa harpa eólia gigante. As chaminés enormes, por onde respiram as fornalhas ciclópicas do monstro, lançam fortemente ao céu límpido, por entre as cruzes finas das vergas, grossos penachos de fumo. E, à ré, no tombadilho baldeado, asseado, fresco, pautado de negro pela longa costura das tábuas, sob a lona protetora dos toldos brancos, por entre passageiros de vigorosa estatura, hercúleos, de boné sobre os olhos — a cabeça loura e sonhadora de uma estranha Inglesa, talvez alguma lady aventureira e nervosa, doentia e romanesca, passeando uma paixão desventurosa pelos mares, de terra em terra. Debruçada da tolda, em ricas vestes de veludo negro, um resplendor de sol nos cabelos, o belo rosto rosado, de uma olímpica contornação à Stuart, apoiado sobre as mãos alvíssimas, mãos augustas, mãos artísticas, e de longos dedos finos, como para tangerem bandolins de ouro — ela olha embevecida, numa estática contemplação, a alva frota de gaivotas, flutuando popa a fora, nas vagas. Parece alheada de tudo, e nos seus olhos azuis, que as espelhantes águas eteralmente refletem, brilha uma luz de saudade, a dolorosa, infinita tristeza de um bem perdido — quem sabe? — no fundo glauco das ondas... À beira do cais, sozinho, indiferente a tudo, num enlevo, numa fascinação mística de sonho, contemplo incessantemente a loura e escultural cabeça da misteriosa viajante, inclinada melancolicamente para as gaivotas aos balaústres do steamer.

Longas horas assim, longas horas. Mas o vapor dá o primeiro sinal da partida.

Cai a tarde, cor de ouro, para as bandas do oceano.

E logo as poderosas rotações das hélices começam a abalar o steamer e as águas.

O meu olhar ansioso não se despega, porém, um momento, do enorme transatlântico, em cuja balaustrada branca, afastando-se pouco e pouco, a extraordinária criatura do Norte, fixa ainda, enigmaticamente, a frota alva e graciosa das gaivotas boiantes. E, daí a instantes, steamer e Ela, a estranha viajante loura, somem-se, como o sol, nos vagalhões montanhosos do mar...

Rio, 1893.

Manhã na roça

 A B. Lopes

Pleno inverno.

Aqui e além, galos acordam cantando à aproximação do dia. Uma tênue mancha de claridade argêntea recorta em laca a linha ondulada das colinas verdes. Pouco a pouco, uma poeira de ocre transparente, que se esbate para o alto, cobre todo o horizonte, e o sol aponta, deslumbradoramente, como uma gema de ouro flamante. Vapores diáfanos diluem-se lentamente, em meio aos listrões vivos que purpureiam o nascente. Fundem-se no ar tons delicados de azul e rosa, e eleva-se da floresta uma orquestração triunfal. Despertam de súbito, ao alagamento tépido da luz, as culturas adormecidas. Abrem-se as casas.

Pelos terreiros, úmidos da serenada da noite, homens de cócoras, em camisa, de cangirão na mão, brancos de frio, ordenham as grossas tetas das pacientes e mugidoras vacas que criam, amarradas aos finos paus das parreiras, e que, expelindo fumaça no ar frígido, ruminam ainda restos de grama, numa mansidão ingênua de animal digno. Mulheres de xale pela cabeça chamam as galinhas, com um ruído seco de beiço, tremido, fazendo brurrr e sacudindo-lhes mãos cheias de milho e pirão esfarelado.

Um carro atopetado de raízes de mandioca, arrancadas de fresco, empoeiradas de areia, compridas, tortas, com o aspecto e a cor esquisita das plantas que se avolumam e vegetalizam enterradas, chia monotonamente, e aromatizado por florações vigorosas e germinativas, pelas emanações do gado e pelo cheiro acre das laranjas vermelhas, que caem de maturidade. Cantigas rústicas, amorosas, de uma sinceridade ingênua, com toadas prolongadas e vibrantes, misturam-se à alacridade do campo. E pela compridão majestosa e verde dos alagados e das pastagens, o colorido movimentoso e variado das rezes.

Santa Catarina, 1884.

 

Canção eslava

A Horácio de Carvalho

Junto à borda oscilante, sobre a larga tolda do vapor, num recanto isolado dos balaustres de popa, onde se erguia o camarim do comando e o homem do leme fazia girar vivamente as malaquetas da roda, em meio de contínuos balanços, ele olhava tristemente, pela vez derradeira, as formas recortadas e vagas das montanhas da costa, que se esfuminhavam docemente à distância, no azulamento fosco do céu. E, torturado de saudade, o espírito abatido, numa imensa desolação, sob aquele apartamento cruel, que o destino lhe impusera subitamente, com a costumada possança esmagadora, calado, a cabeça pendida, indiferente a tudo e a todos, como num sonambulismo, o pobre rapaz sonhador ia desfiando lentamente em silenciosas convulsões de choro, que o sufocavam por vezes, a romanza enternecedora de todos os afetos, que vicejavam já, em estelar florescência, a primeira estância deliciosa da sua mocidade de ouro.

O crepúsculo caía para os lados da proa, em vasta faixa purpúrea, que se esbatia no alto num cor de rosa saudoso. As águas, aí, nesse limite aparente e longínquo do oceano, estavam sulcadas de longos tuyautés tremulantes de mica. E lá acima, no zênite do firmamento, as primeiras sombras da noite rolavam já, em todas as direções, com a sua gaze leve e flutuante de cinza. Em volta, no convés balouçante, em recantos afastados, alguns passageiros mais rijos, que o enjoo não dispersara ainda, apesar dos vagalhões, olhavam também melancolicamente, numa vaga palração cismadora, ora o esplendor do crepúsculo dolente, ora a barra escura da costa, recuando aos poucos, recuando sempre, ao longe...

E o rapaz, isolado e soturno, cada vez mais alheado de tudo, fixava ainda os lados onde o litoral se afundava, num profundo recolhimento, sob o bando das recordações. Em seu cérebro desolado, bailavam agora, numa pungência nostálgica, todas as queridas visões da sua infância passada. E nesse embevecimento íntimo e nessa dolorosa saudade, as angústias daquela separação pareciam adormecer por instantes, como embaladas na doçura inefável de um carinho ou de uma bênção, no fundo da sua alma sangrando. Mas a noite descia, muda e lutulenta, envolvendo céu e mar num pó denso de carvão. E o ar todo foi-se cobrindo lentamente de uma miríade infinita de pontos de ouro flamante, que riscavam aqui e além dum traço vivo de fogo a cava funda das ondas.

Ele então, debruçado da balaustrada oscilante, ergueu para o alto, instintivamente, os seus olhos melancólicos — e quedou-se a olhar as incomparáveis estrelas, juncando faustosamente o Espaço de pedrarias estranhas.

O seu espírito ficou pairando longo tempo, todo preso no esplendor sideral e numa mística abstração, invadido de um profundo sabaísmo, quando um cântico soou de repente à proa, lá embaixo no convés, por entre-vante da tolda — trêmulo e rouco como uma canção de degredo, ou um gemer arrastado e opresso de almas anelantes. Eram os imigrantes eslavos, cantando em coro uma dessas canções nevoentas e saudosas, mas cheias de uma idealidade afetiva, das suas terras brancas do Norte. Saturados ainda da tristeza da vasta travessia atlântica, a alma pesada de nostalgia, na recordação embaladora e perpétua da Pátria distante, expandiam-se resignadamente, deixando voar para o Azul, para as constelações, numa vaga melopeia rítmica, a sua dor de exilados, que se fundia por vezes desoladoramente, nos sonoros smorzandos, com a plangente sinfonia dos cabos e o ciciar funerário do vento nas vergas.

Arrancado subitamente assim, ao êxtase constelar do seu Sonho rolando pelas estrelas, baixou os olhos tristemente sobre aquela massa fervilhante de gente, apertada entre as amuradas de proa como um humilde rebanho, e de onde se erguia aquele canto dolente que reavivava em seu peito as puas finas da dor. A noite, em redor, tornara-se mais densa na sua negrura de tinta, enquanto no alto as gotas de ouro dos astros radiavam, mais vívidas e trêmulas. O mar todo tinha a suntuosidade trágica de um manto de veludo sinistro, estendendo-se sobre uma planura sem fim e cujas dobras movediças ondulavam continuamente, aqui e além, recamadas de clarões azulinos e de um vago reluzir de lantejoulas.

O canto cessara como alados gemidos sem bênção, e tudo recaiu num leve murmúrio de ondas e nos ruídos esparsos do vapor, singrando vigorosamente para vante, contra a aragem do largo, que aumentava de sinfonia gemente. No horizonte, a Leste, vinha apontando agora uma tênue barra de claridade láctea, que vestia as águas, ao longe, de vastas placas argênteas. E, daí a instantes, a lua surgia maravilhosamente, cobrindo a amplidão com o seu imenso velário de tule.

Então, à proa, junto ao castelo, na amurada de bombordo, onde batia em cheio o luar, uma figura esguia e branca de mulher ergueu-se, do meio da massa negra fervilhante dos imigrantes eslavos: e uma voz suavíssima abriu voo na noite, num ritmo lento e balançado, como um fio de melodia saudosa.

Era uma dessas canções gemedoras de terras rurais nalgum platô do Kerson, onde o homem se bate com o solo, ao vento e à chuva, ao calor e à neve, numa labuta constante. Os versos diziam, na sua cadência vagarosa e lânguida, o custoso revolver da terra ao clarear das manhãs, o sulcar das charruas para as primeiras plantações, a capinação incessante dos terrenos gramosos, o verdejar alegre das plantas, o crescer florescente das hastes, o amadurecer das espigas, o amoroso cantar das ceifeiras e o reluzir profuso dos grãos, em montões alterosos, no meio da palha fofa. Tudo isso de envolta com as alegrias, as esperanças, as tristezas e as desgraças dos pobres mujiques louros. E as estrofes finais davam a emoção psicológica, o esquisso vago e vaporoso de um idílio de campo, na amplidão rasa de uma estepe sem termo, ao badalar plangente do Ângelus numa torre de campanário longínquo, à margem de um rio espelhante, onde dois jovens se enlaçam e beijam enternecidamente, num último adeus de colheita acabada, sob um poente de sangue...

Todos, à ré, já haviam adormecido no silêncio das cabines, sob a sonolência das altas horas de bordo, em meio aos contínuos balanços. Só, sobre a tolda, o rapaz enlevava-se, sonhando os seus amores passados na sua aldeia distante, embalado espiritualmente pelo som acariciador e bendito da campesina canção. E a rapariga eslava, magnífica ao luar, numa alvura de Visão, de pé contra a borda, apoiada às enxárcias, o belo rosto de opala voltado para o céu, como num embevecimento, soltava ao vento e às ondas, apaixonadamente, as notas deliciosas daquela balada branca...

Rio, 1894.