LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A costela do Grão Cão, de Mário de Andrade
Edição de Referência:
Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987
ÍNDICE
a Murilo Miranda
(1924)
Caminho pela cidade
Sofrendo com mal-de-amor.
Senti que vinha... Seus braços
Era fatal me chamavam,
Parti... Cheio de vontade
E já não tenho vontade,
Percorro a noite, percorro
A noite com mal de amor...
É tarde já... Zero grau.
Hesito mais, indeciso...
Meus irmãos desaparecem
Nos corredores com luz
Donde saltam na calçada
Muitos palhaços de riso,
Até rio... Vaia o jazz.
Caminho pela cidade
Sofrendo com mal-de-amor
Sofrendo com mal-de-amor
Sofrendo com mal-de-amor
Sofrendo. A frase não para
No meio: com mal-de-amor.
Ironia do contraste,
Militares linhas retas,
Praças claustros seculares
Nunca amaste! nunca amaste!
Névoa filha-de-Maria,
Névoa fria... vida fria...
Não vale a pena ficar
Torturando a minha carne
Com o cilício da esperança,
Arrasto gozos perdidos,
Vim buscar os corredores
Os corredores com luz,
E o eco desses braços nus
Resvalando no céu baixo,
Atordoando os meus ouvidos,
Corro cambaleio azoinam
Meu corpo corpos rangentes,
Estalidos de desejos,
Beijos, ecos estridentes
De braços nus me chamando,
Eu quero! eu quero... Seus braços
Teus abraços boca pele
Seios olhos seios dentes
Corro. O eco explode já perto
Muito, perto muito, forte,
Vejo perfume de fome
Muito forte, muito perto,
Agora... Ela me abre os braços
Viro a esquina, estendo os braços,
Meus abraços nos espaços,
Rua reta, rua reta,
Rua reta, que deserto!...
Os lampiões bem regulares
Com um só olho. São ciclopes.
São eunucos dum harém,
Oralisca, o lampião pisca,
Não tem mais nada ninguém...
O sino cai sobre mim.
São três horas já... Percorro
A noite com mal de amor...
Pedaços de minha carne
Pelos punhais das esquinas
Vão ficando, vou caminho
Sigo. . . amor... Sei que não morro,
Vou sigo caminho... é tarde...
É mais adiante! Na esquina!
Já sei que não é... Aquela
Janela sempre acordada,
É uma puta me chamando,
Dez mil-réis, mercadoria,
Alfandega, porto de Santos
Oceano Atlântico, grande
Mar monótono monótono,
As ondas que vão e vêm,
Os cadáveres dos naufrágios
Serão jogados na areia...
E há praias muito bonitas
Com palmeiras guaranis...
As invenções de Alencar
Ficaram muito inferiores
A esses oásis das praias
Tão verdes, tão verdes, tão,
Tão horrível solidão!...
E o mar ondula e desmaia,
Depois me empurra é fatal
O mar me empurra pra areia
Sou atirado na praia
Das palmeiras, minha rua...
Minha rua das Palmeiras...
Vou sigo caminho... Longe
Meu quarto... quarto vazio...
Um vago marulhar de ondas
Sai dos meus ouvidos... O eco
Morreu. Um marulhar de ondas...
A miragem se dispersa.
Os braços nem chamam mais...
Sangue da aurora... O padeiro
Passou.
Última esquina.
Perto
O olho frio do meu quarto...
Nem não tenho carne mais...
Carne mais... Sigo. Caminho...
Destroços de ossos batendo...
Triste triste do andarilho
Carregando para o quarto
Os lábios secos. Inúteis...
(Março de 1926)
Mão morena dele pousa
No meu braço... Estremeci.
Sou eu quando era guri
Esse garoto feioso.
Eu era assim mesmo... Eu era
Olhos e cabelos só.
Tão vulgar que fazia dó.
Nenhuma fruta não viera
Madurando temporã.
Eu era menino mesmo,
Menino... Cabelos só,
Que à custa de muita escova
E de muita brilhantina,
Me ondulavam na cabeça
Que nem sapé na lagoa
Si vem brisando a manhã.
Ê gente que não compreendo
Os saudosos do passado,
Nem os gratos... Relembrança
Porta muito raramente
Nos olhos dos ocupados.
Por isso enxergo sem gosto
A casa da minha infância,
Casão meio espandongado
Onde meu pai se acabou.
Só mesmo o que é bem de agora
Possui direito de lágrima,
Sofrer... pois sim, mas lutando
Pela replanta brotando,
Sofrer sim, mas porém nunca
Sofrer puxando memória
Pelo café que secou.
No entanto quando sucede
Mais braba a vileza humana
Arranhar na minha porta,
Não sei porque o curumim
Que eu já fui, surge e se bota
Assim rentinho de mim.
Será que é um anjo-da-guarda?...
Não sei não... Creio que não.
Ele faz que não me enxerga,
Que não me conhece...
Mão Morena sempre pousando
No meu ombro, aluada muito!
Até o menino interinho
É que nem cousa perdida
E não dá tento de si.
Possui a vida sem vida
Das sombras. É assombração.
Remexe por todo o quarto,
Não desloca nenhum traste,
Se vê bem que não faz parte
Do grupo dos meus amigos...
Volta-e-meia vem e pousa
No meu braço a mão morena...
Ê um silêncio atravessando
O corpo manso das cousas.
Eu também si o reconheço
É só porque sofro agreste,
E embora grudando a vista
No livro, eu faça de conta
Que não reparo no tal,
Minha alma espia o menino
Enquanto a vista devora
Uma sopa de aletria
Feita de letras malucas.
Mas ele não vai-se embora,
E o vulto do curumim,
Sem piedade, me recorda
A minha presença em mim.
Só isso. E por causa disso
Não posso fugir de mim!
Não posso ser como os outros!
Riso não pega de enxerto,
Ser mau carece raiz.
E confessando que sofro,
Não sei si e pela coragem,
Mas tenho como uma aragem
E fico bem mais feliz.
Menino, tu me recordas
A minha presença em mim!
...A primeira vez que veio,
Tive uma alegria enorme,
Gostei de ver que já era
Bem mais taludo e mais forte
Que em pequeno e que possuía
Uma alma aquecida pelo
Fogo humano do universo.
Segunda vez me irritou.
Fui covarde, fui perverso,
Peguei no tal, lhe ensinei
A indecente dança-do-ombro.
Não quis saber, foi-se embora.
E quando não o vi mais,
Sozinho, me arrependi.
A terceira vez é agora
E eu... não sei... não gosto dele
Mas não quero que o rapaz
Me deixe sozinho aqui.
Não danço mais dança-do-ombro!
Eu reconheço que sofro!
Ah! malvadeza brutaça
Dos indivíduos humanos,
Dos humanos desta praça!
Ah! homens filhos-da-puta,
Gente bem rúim, bem odiando,
Homens bem homens, grandiosos
Na sua inveja acordada!
Grandiosos na força bruta,
Na estupidez desvelada!
Que heroísmo sem inocência,
O do sujeito esquecendo
Do remorso e da consciência!
Oh! força reta, bem homem,
De ser talqualmente os mares,
E os movimentos do mundo!
Perversidades solares
Da magrém! ser matapau!
Sucuri, raio, minuano!
Forçura destes humanos,
Iguais na perversidade,
Iguais na imbecilidade,
Na calúnia, iguais no ciúme!...
Conscientemente implacáveis!
Imperiais no riso mau!...
Ota, cabra demográfico,
Jornaleiro do azedume,
Secreção de baço podre,
Alma em que a sífilis deu!
Burrice gorda, indiscreta,
Veneranda... Homo imbecilis,
Invejado pelo poeta...
Viva piolho de galinha!
Eh! home, bosta de Deus!
Menino, sai! Eu te odeio,
Menino assombrado, feio,
Menino de mim, menino,
Menino trelento, que enches
Com teus silêncios puríssimos
A bulha dos meus desejos,
Que nem a calma da tarde
Vence a bulha da cidade...
Menino mau, que me impedes
De entrar também pro recheio
Das estatísticas... sai!
Menino vago, sem nome,
Que me embebes inteirinho
Nesta amargura visguenta
Pelos homens! pelos homens!...
Puxa! rapazes, minha alma,
Comprida que não se acaba,
Está negra tal-e-qual
Fruta seca de goiaba!
Meus olhos tão gostadores
Nem têm mais gosto de olhar!
E pela primeira vez
O murmurejo natal
Desta vida está sem graça,
E eu só desejo uma calma
Que apagasse até meus ais!
Tudo amarga porque os homens
Me amargaram por demais!
Uma tristeza profunda,
Uma fadiga profunda,
E até, miseravelmente,
O projeto inconfessável
De parar...
Menino, sai!
Você é o estranho periódico
Que me separa do ritmo
Unânime desta vida...
E o que é pior, você relembra
Em mim o que geralmente
Se acaba ao primeiro sopro:
Você renova a presença
De mim em mim mesmo... E eu sofro.
É tarde. Vamos dormir.
Amanhã escrevo o artigo,
Respondo cartas, almoço,
Depois tomo o bonde e sigo
Para o trabalho... Depois...
Depois o mesmo... Depois,
Enquanto fora os malévolos
Se preocupam com ele,
Vorazes feito caprinos,
Nesta rua Lopes Chaves
Terá um homem concertando
As cruzes do seu destino.
(1926)
Existirem mães,
Isso é um caso sério.
Afirmam que a mãe
Atrapalha tudo,
É fato, ela prende
Os erros da gente,
E era bem milhor
Não existir mãe.
Mas em todo caso
Quando a vida está
Mais dura, mais vida,
Ninguém como a mãe
Pra aguentar a gente
Escondendo a cara
Entre os joelhos dela.
— O que você tem?...
Ela bem que sabe
Porém a pergunta
É pra disfarçar.
Você mente muito,
Ela faz que aceita,
E a desgraça vira
Mistério pra dois.
Não vê que uma amante
Nem outra mulher
Entende a verdade
Que a gente confessa
Por trás das mentiras!
Só mesmo uma mãe...
Só mesmo essa dona
Que a-pesar-de ter
A cara raivosa
Do filho entre os seios,
Marcando-lhe a carne,
Sentindo-lhe os cheiros,
Permanece virgem,
E o filho também...
Oh virgens, perdei-vos,
Pra terdes direito
A essa virgindade
Que só as mães têm!
(1928)
Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.
Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que para no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida e mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!
Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bagé, piché, chué, oh “xavié”,
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!
Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu cassange!
Você sabe o francês “singe”
Mas não sabe o que é guariba?
— Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.
(1928)
Quando as casas baixarem de preço
Lá na cidade, Laura Moura,
Uma delas será sua sem favor.
Será num bairro bem central,
Pra que o nosso mistério engane mais.
Quando as casas baixarem de preço,
Você há-de ter a vossa, Laura Moura,
Lá na cidade em que trabalho...
Há-de ser bom, pousando o rosto em vosso colo,
Me entediar feito um dono,
Mal escutando as mágoas de você.
Laura Moura viverá bem sossegada,
Me servindo,
Toda puxada pelo Piauí.
Num longing quase bom,
Comendo alimentos comprados,
Laura Moura falará de Teresina
E das boiadas e dos boiadeiros
E da polvadeira seca do Piauí.
Quando as casas baixarem de preço,
Laura Moura, prenda minha,
Uma delas será sua sem favor.
Lá fora a bulha da cidade
Disfarçará nosso prazer...
E a gente, numa rede maranhense,
Ao som dum jaz bem blue,
Balancearemos no calor da noite.
Sonhando com o sertão.
(1929)
O mundo que se inunda claro em vultos roxos
No caos profundo em que a tristura
Tange mansinho os ventos aos mulambos.
A gente escapa da vontade.
Se sente prazeres futuros,
Chegar em casa,
Reconhecer-se em naturezas-mortas...
Oh, que pra lá da serra caxingam os dinossauros!
Em breve a noite abrirá os corpos,
As embaúbas vão se refazer...
A gente escapa da vontade.
Os seres mancham apenas a luz dos olhares,
Se sobrevoam feito músicas escuras.
E, a vida, como viola desonesta,
Viola a morte do ardor, e se dedilha...
Fraca.
(1932)
No outro lado da cidade,
Não sei o quê, foi o vento,
O vento me dispersou.
Viajei por terras estranhas
Entre flores espantosas,
Tive coragem pra tudo
No outro lado da cidade,
Sem tomar cuidado em mim.
Passeava com tais perícias,
Punha girafas na esquina,
Quantos milagres na viagem,
Meu coração de ninguém!
E pude estar sem perigo
Por entre aconchegos pagos,
Em que o carinho mais velho
Inda guardava agressão.
Busquei São Paulo no mapa,
Mas tudo, com cara nova,
Duma tristeza de viagem,
Tirava fotografia...
E o meu cigarro na tarde
Brilhava só, que nem Deus.
Fiquei tão pobre, tão triste
Que até meu olhar fechou.
No outro lado da cidade
O vento me dispersou.
(outubro de 1933)
No meu enorme corpo fatigado,
Todo mole com as almofadas,
Você se aninha sem beijar.
Estou sem forças feito um caos.
Você é uma Via-Láctea errante
Que não desejo mais valorizar.
Paz. A falsa paz vacila disponível
Enquanto à sombra da cheia fruteira
Os bichos se alimentam sem cessar.
Um desespero me arde, eu te repilo.
E a arraiada que vem, é o sol imundo
Que vai mostrar a bicharada
Aos emboléus, vinda do caos.
(14-X-33)
Que beijos que eu dava...
Não tigre, vossa boca é mesmo que um gato
Imitando tigre.
Boca rajada, boca rasgada de listas,
De preto, de branco,
Boca hitlerista,
Vossa boca e mesmo que um gato.
Nas paredes da noite estão os gatos.
Têm garras, têm enormes perigos
De exércitos disfarçados,
Milhares de gatos escondidos por detrás da noite incerta.
Irão estourar por aí de repente,
Já estão com mil rabos além de São Paulo,
Nem sei mais si são as fábricas que miam
Na tarde desesperada.
Penso que vai chover sobre os amores dos gatos.
Fugirão?... e só eu no deserto das ruas,
Oh incendiária dos meus aléns sonoros,
Irei buscando a vossa boca,
Vossa boca hitlerista,
Vossa boca mais nítida que o amor,
Ai, que beijos que eu dava...
Guardados na chuva...
Boiando nas enxurradas
Nosso corpo de amor...
Que beijos, que beijos que eu dou!
Vamos enrolados pelas enxurradas
Em que boiam corpos, em que boiam os mortos,
Em que vão putrefatos milhares de gatos...
Das casas cai mentira,
Nós vamos com as enxurradas,
Com a perfeita inocência dos fenômenos da terra,
Voluptuosamente mortos,
Os sem ciência mais nenhuma de que a vida
Está horrenda, querendo ser, erguendo os rabos
Por trás da noite, em companhia dos milhões de gatos verdes.
(15-X-33)
Me pus amando os gatos loucamente,
Oh China!
Mas agora porém não são gatos tedescos,
Tudo está calmo em plena liberdade,
Se foram as volúpias e as perversões tão azedas,
Eu sou cravo, tu és rosa,
Tu és minha rosa sincera,
És odorante, és brasileira à vontade,
Feito um prazer que chega todo dia.
Mas eu te cresço em meu desejo,
Ai, que vivo arrasado de notícias!
Murmurando com medo ao teu ouvido:
Oh China! oh minha China!...
Tu te gastas sob o meu peso bom,
Teus lábios estão alastrados na abertura do reconhecimento
Teus olhos me olham, me procuram todo.
Mas eu insisto em meu castigo, oh China.
Como um gato chinês criado através de séculos de posse e de aproveitamentos,
Para meu gozo só, pra meu enfeite só de mim,
Pra mim, pra mim, tu foste feita, oh China!
Estou te saboreando, és gato china que apanhei vagamundo na rua,
Oh China! oh minha triste China,
Estarei pesando, te fazendo pesar sem motivo
Estou... estava, oh minha triste sina,
Até que fui guardar nos teus cabelos perdidos
Lágrima que não pude sem chorar.
(15-X-33)
(a)
No caminho da cidade,
Oh vós, homens que andais pelo caminho,
Olhai-me, cercai-me todos, abraçai-me,
Abraçai-me de amor e de amigo, na meiga caricia indecisa,
Cegos, mudos, viris, na imperfeição irremediável.
(b)
No caminho da cidade
Meus olhos se rasgam na volúpia de amor,
Torres, chaminés perto, notícias, milhões de notícias,
Dor... Este profundo mal de amar indestinado,
Como a primavera que fareja a cidade através do sol frio.
(c)
No caminho da cidade
Que estranha ressonância, frautas, membis, andorinhas:
Tudo alargou, tudo está ereto de repente,
Minhas mãos penetram no ar reconhecidas,
Desfaleço, meus olhos se turvam, me encosto.
(d)
No caminho da cidade
Mas não posso esquecer!
Oh meu amor, este grito avançando através das idades...
Me beija! me sufoca nos teus braços!
Que eu só desejo ser vencido logo
Para te perfurar com a cadência do dia e da noite
E sermos aulados numa paz sem colisão...
(Outubro de 1933)
Vosso corpo seria encontrado nos desertos.
Sois tão linda... você é a Lei!
Você é tão mal contrária a essas mil leis humanas
Que avançam cegas insensíveis sobre o horror...
Você é tal-e-qual, bem polida,
Sem erros, cadencial.
Oh besta fera maldita,
Você é mas é um braço esfomeado terminando em faísca de gládio,
Caindo aqui, varrendo além,
Voando, cego braço, aterrissando no meio das turbas,
Matando gente, depredando gente, inventando orfanatos,
Bandos de caravanas de lperosos,
Exílios pra judeus, pra paulistas, pra estudantada cubana,
Eu te amo de um amor educado no inferno!
Te mordo no peito até o sangue escorrer
Me dando socos, chorando, chamando de bruto, de cão,
O Grão Cão é o Mildiabo educado sozinho no inferno!
Nos debatemos, o braço esfomeado braceja,
Golpeia aqui, matou centenas de operários,
Queima cafezais, trigais, canaviais, desocupados
Quebra os museus grandiosos,
Usa a lei de fugir pra estudantada cubana,
E no esforço subrosso colhendo com o gladio o subsolo da Europa,
Abaixo os tiranos! abaixo Afonso XIII!
O mar fez maremoto, e convulsivos
Nos odiando no mesmo abraço confundidos,
Eleitos, desesperados na febre de amar
Jorramos em lucilações fantásticas tremendas,
Todo o nosso ardor vai se esgotar na seiva!
Você é lindíssima! E polida e cadencial feito uma lei!
Mas eu sou o Grão Cão que te marquei um bocado com o crime dos mundos!
E agora nem de perdão carecemos
No mesmo abraço desaparecidos.
(15-X-33)
A cidade está mais agitada a meidia.
As ruas devastam minha virgindade
E os cidadãos talvez marquem encontro nos meus lábios.
Minha boca é o peixe macho e derramo núcleos de amor pelas ruas.
Que irão fecundar os ovários da vida algum dia.
Eu venho das altas torres, venho dos matos alagados,
Com meus passos conduzidos pelo fogo do Grã Cão!
Mas pra viver na cidade de São Paulo escondi na corrente de prata
A inútil semente do milho, a maniva,
E enroupei de acerba seda o arlequinal do meu dizer...
E agora apontai-me, janelas do Martinelli,
Calçadas, ruas, ruas, ladeiras rodantes, viadutos,
Onde estão os judeus de consciência lívida?
Os tortuosos japoneses que flertam São Paulo?
Os ágeis brasileiros do Nordeste? os coloridos?
Onde estão os coloridos italianos? onde estão os turcomanos?
Onde estão os pardais, madame la Françoise,
Ergo, ego, Ega, égua, agua, iota, calúnia e notícias,
Balouçantes nas marquesas dos roxos arranha-céus?...
Não vos trago a fala de Jesus nem o escudo de Aquiles,
Nem a casinha pequenina ou a sombra do jatobá.
Tudo escondi no caminho da corrente de prata.
Mas eu venho das altas torres trazido ao facho do Grã Cão,
Lábios, lábios para o encontro em que cantareis fatalmente,
Ameaçados pela fome que espia detrás da coxilha,
A dor, a caprichosa dor desocupada que desde milhões de existências
Busca a razão de ser.
(27-XII-33)
A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais si gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.
Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar... Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado... Horrendo
Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.
Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.
(abril de 1937)
O vento corta os seres pelo meio.
Só um desejo de nitidez ampara o mundo...
Faz sol. Fez chuva. E a ventania
Esparrama os trombones das nuvens no azul.
Ninguém chega a ser um nesta cidade,
As pombas se agarram nos arranha-céus, faz chuva.
Faz frio. E faz angústia... É este vento violento
Que arrebenta dos grotões da terra humana
Exigindo céu, paz e alguma primavera.
(10-XII-1937)
Vem a estrela dos treze bicos,
Brasil, Coimbra, Guiné, Catalunha,
E mais a Bruges inimaginável
E a decadência dos Almeidas.
E sobre a estrela dos treze bicos
Pesa um coração mole
De prata coticada trezemente,
Em cujo campo há-de inscrever-se
“Eu sou aquele que veio do imenso rio”.
E sobre o campo do meu coração,
Todo em zarcão ardendo,
Ha em ouro a arca de Noé com vinte-e-nove bichos blau,
E a jurema esfolhando as folhas derradeiras
Sobre Mestre Carlos, o meu grande sinal.
E a seguir a trombeta, essa trombeta
Insiste pela Catalunha,
Mas desta vez eu que escolhi!
Oh, meus amigos,
Perdão pelos séculos pesados de cicatrizes infinitas,
Perdão por todas as sabedorias,
Pela esfera armilar das conquistas insanas!
Essa trombeta eu que escolhi, toda de prata,
Com treze línguas de fogo na assustadora boca,
E a inscrição “Que-dele eles?”,
Eles, os bandeirantes
E falta o boi Paciência, o boi que pertence a Armida,
Traz por guampas os cornos da luna
E um peitoral de turmalinas.
Mas esse vem no outro coração mole,
Não se mostra a ninguém.
O boi Paciência serão treze preguiças assustadas,
No porto do imenso rio esperando,
Esperando pelos treze caminhos
Das mil cavernas das quarentas mil perguntas.
Ai, que eu vou me calar agora,
Não posso, não posso mais!
(dezembro de 1937)
Aceitarás o amor como eu o encaro?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.
Tudo o que há de milhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
Que grandeza... A evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.
(Rio, 20-IX-38)
Terras bruscas, céus maduros,
Apalpam curvas os autos,
Ai, Guanabara,
Serão desejos incautos,
Ancas pandas, seios duros
Senti as curvas dos autos
Nas praias de Guanabara.
Penetro as fendas dos morros,
Desafogos de amor, jorros
De sensualidades quentes,
Ai, ares de Guanabara,
Sou jogado em praias largas,
Coxas satisfeitas feitas
De ondas amargas.
Não posso mais... Nunca ousara
Pensar cajás, explosões
De melões,
Mulatas, uvas pisadas,
Ai, Guanabara,
Tuas noites fatigadas...
Me derramo todo em sucos
Malucos de ilhas Molucas.
Manhã. Brisas intranquilas
De volúpias mal ousadas
Passam por ti,
Num gosto naval de adeuses...
Há deusas...
Há Vênus, há Domitilas
Fazendo guanabaradas
Por aí...
Mas as palmeiras resistem.
Na deformação dos raios,
Templos, gentes, esperanças
Em desmaios
E transposições de níveis...
Só as palmeiras resistem
Como consciências incríveis!
As noites não são bem noites,
As músicas são cansaços,
Açoites
De convites, bocas, mar,
Ai, ares de Guanabara,
Vou suspirar...
Meus olhos, minhas sevícias,
Minha alma sem resistências,
A Guanabara te entregas
Sem Deus, sem teorias poéticas.
Os aviões saltam dos trilhos,
Perfuram morros, ardências,
Delícias, vícios, notícias...
Aiái, Guanabara!
Que todo me desfaleço
Por cento e dez avenidas,
Pela mulher de em seguida,
Por teus cheiros, por teus sais,
Pelos aquedutos, pelos
Morros de crespos camelos
E elefantes triunfais!
Eu não sei si mais gozara,
Iáiá, Sereia do Mar,
Si achara nalma outra clara
Glória rara sol luar
Aurora uiara
Niágara realeza
Suprema, eterna surpresa,
Guanabara!...
(Rio, dezembro de 1938)
Olha o balão subindo!
Mas quem foi o louco varrido
Que em novembro se lembrou de o soltar!
— É o luar, é o luar!
E as casas! olha os arranha-céus,
Parece que estão se movendo,
Com tantas janelas a chamar?...
E este céu cor-de-cinza,
E este mar cor-de-prata,
E o Cristo do Corcovado!
Olha! parece uma palhaço,
Parece um filósofo, parece até Cristo mesmo
Erguido no altar?...
E estas minhas mãos inquietas,
E o vento alcoolizado,
E as carícias das ilhas...
E as narinas cheirando ofegantes,
E essa vela das praias do norte,
E um desejo de falar besteira,
De dançar por aí feito maluco,
Esquecido de amar?...
— É o luar, é o luar!
É o luar que inventa novas árvores e morros,
Vence as luzes da enorme cidade,
Vence a noite, vence os homens,
Vence as tristezas e os mandos do mundo...
Não acredita não, José Correia,
Que vais te perder, e esquecer, feito estátua,
A imensa dor multissecular.
(Rio, 22-XII-1940)
... de árvores indevassáveis
De alma escusa sem pássaros
Sem fonte matutina
Chão tramado de saudades
À eterna espera da brisa,
Sem carinhos... como me alegrarei?
Na solidão solitude,
Na solidão entrei.
Era uma esperança alada,
Não foi hoje mas será amanhã,
Há-de ter algum caminho
Raio de sol promessa olhar
As noites graves do amor
O luar a aurora o amor... que sei!
Na solidão solitude,
Na solidão entrei,
Na solidão perdi-me...
O agouro chegou. Estoura
No coração devastado
O riso da mãe-da-lua,
Não tive um dia! uma ilusão não tive!
Ternuras que não me viestes
Beijos que não me esperastes
Ombros de amigos fieis
Nem uma flor apanhei.
Na solidão solitude,
Na solidão entrei,
Na solidão perdi-me,
Nunca me alegrarei.