Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

A costela do Grão Cão, de Mário de Andrade


Edição de Referência:

Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987 

 

ÍNDICE

A costela do Grão Cão

Reconhecimento de Nêmesis

Mãe

Lundu do escritor difícil

Melodia moura

Momento

Toda

Grã Cão do outubro

I – vinte e nove bichos

II – Os gatos (a)

II – Os gatos (b)

III – Estâncias

IV – poema tridente

V – Dor

Quarenta anos

Momento

Brasão

Soneto

As cantadas

Luar do Rio

Canção

 

A costela do Grão Cão

a Murilo Miranda

(1924)

Caminho pela cidade

Sofrendo com mal-de-amor.

Senti que vinha... Seus braços

Era fatal me chamavam,

Parti... Cheio de vontade

E já não tenho vontade,

Percorro a noite, percorro

A noite com mal de amor...

É tarde já... Zero grau.

Hesito mais, indeciso...

Meus irmãos desaparecem

Nos corredores com luz

Donde saltam na calçada

Muitos palhaços de riso,

Até rio... Vaia o jazz.

Caminho pela cidade

Sofrendo com mal-de-amor

Sofrendo com mal-de-amor

Sofrendo com mal-de-amor

Sofrendo. A frase não para

 No meio: com mal-de-amor.

Ironia do contraste,

Militares linhas retas,

Praças claustros seculares

Nunca amaste! nunca amaste!

Névoa filha-de-Maria,

Névoa fria... vida fria...

Não vale a pena ficar

Torturando a minha carne

Com o cilício da esperança,

Arrasto gozos perdidos,

Vim buscar os corredores

Os corredores com luz,

E o eco desses braços nus

Resvalando no céu baixo,

Atordoando os meus ouvidos,

Corro cambaleio azoinam

Meu corpo corpos rangentes,

Estalidos de desejos,

Beijos, ecos estridentes

De braços nus me chamando,

Eu quero! eu quero... Seus braços

Teus abraços boca pele

Seios olhos seios dentes

Corro. O eco explode já perto

Muito, perto muito, forte,

Vejo perfume de fome

Muito forte, muito perto,

Agora... Ela me abre os braços

Viro a esquina, estendo os braços,

Meus abraços nos espaços,

Rua reta, rua reta,

Rua reta, que deserto!...

Os lampiões bem regulares

Com um só olho. São ciclopes.

São eunucos dum harém,

Oralisca, o lampião pisca,

Não tem mais nada ninguém...

O sino cai sobre mim.

São três horas já... Percorro

A noite com mal de amor...

Pedaços de minha carne

Pelos punhais das esquinas

Vão ficando, vou caminho

Sigo. . . amor... Sei que não morro,

Vou sigo caminho... é tarde...

É mais adiante! Na esquina!

Já sei que não é... Aquela

Janela sempre acordada,

É uma puta me chamando,

Dez mil-réis, mercadoria,

Alfandega, porto de Santos

Oceano Atlântico, grande

Mar monótono monótono,

As ondas que vão e vêm,

Os cadáveres dos naufrágios

Serão jogados na areia...

E há praias muito bonitas

Com palmeiras guaranis...

As invenções de Alencar

Ficaram muito inferiores

A esses oásis das praias

Tão verdes, tão verdes, tão,

Tão horrível solidão!...

E o mar ondula e desmaia,

Depois me empurra é fatal

O mar me empurra pra areia

Sou atirado na praia

Das palmeiras, minha rua...

Minha rua das Palmeiras...

Vou sigo caminho... Longe

Meu quarto... quarto vazio...

Um vago marulhar de ondas

Sai dos meus ouvidos... O eco

 Morreu. Um marulhar de ondas...

A miragem se dispersa.

Os braços nem chamam mais...

Sangue da aurora... O padeiro

Passou.

Última esquina.

Perto

O olho frio do meu quarto...

Nem não tenho carne mais...

Carne mais... Sigo. Caminho...

Destroços de ossos batendo...

Triste triste do andarilho

Carregando para o quarto

Os lábios secos. Inúteis...

 

Reconhecimento de Nêmesis

(Março de 1926)

Mão morena dele pousa

No meu braço... Estremeci.

Sou eu quando era guri

Esse garoto feioso.

Eu era assim mesmo... Eu era

Olhos e cabelos só.

Tão vulgar que fazia dó.

Nenhuma fruta não viera

Madurando temporã.

Eu era menino mesmo,

Menino... Cabelos só,

Que à custa de muita escova

E de muita brilhantina,

Me ondulavam na cabeça

Que nem sapé na lagoa

Si vem brisando a manhã.

Ê gente que não compreendo

Os saudosos do passado,

Nem os gratos... Relembrança

Porta muito raramente

Nos olhos dos ocupados.

Por isso enxergo sem gosto

A casa da minha infância,

Casão meio espandongado

Onde meu pai se acabou.

Só mesmo o que é bem de agora

Possui direito de lágrima,

Sofrer... pois sim, mas lutando

Pela replanta brotando,

Sofrer sim, mas porém nunca

Sofrer puxando memória

Pelo café que secou.

No entanto quando sucede

Mais braba a vileza humana

Arranhar na minha porta,

Não sei porque o curumim

Que eu já fui, surge e se bota

Assim rentinho de mim.

Será que é um anjo-da-guarda?...

Não sei não... Creio que não.

Ele faz que não me enxerga,

Que não me conhece...

Mão Morena sempre pousando

No meu ombro, aluada muito!

Até o menino interinho

É que nem cousa perdida

E não dá tento de si.

Possui a vida sem vida

Das sombras. É assombração.

Remexe por todo o quarto,

Não desloca nenhum traste,

Se vê bem que não faz parte

Do grupo dos meus amigos...

Volta-e-meia vem e pousa

No meu braço a mão morena...

Ê um silêncio atravessando

O corpo manso das cousas.

Eu também si o reconheço

É só porque sofro agreste,

E embora grudando a vista

No livro, eu faça de conta

Que não reparo no tal,

Minha alma espia o menino

Enquanto a vista devora

Uma sopa de aletria

Feita de letras malucas.

Mas ele não vai-se embora,

E o vulto do curumim,

Sem piedade, me recorda

A minha presença em mim.

Só isso. E por causa disso

Não posso fugir de mim!

Não posso ser como os outros!

Riso não pega de enxerto,

Ser mau carece raiz.

E confessando que sofro,

Não sei si e pela coragem,

Mas tenho como uma aragem

E fico bem mais feliz.

Menino, tu me recordas

A minha presença em mim!

...A primeira vez que veio,

Tive uma alegria enorme,

Gostei de ver que já era

Bem mais taludo e mais forte

Que em pequeno e que possuía

Uma alma aquecida pelo

Fogo humano do universo.

Segunda vez me irritou.

Fui covarde, fui perverso,

Peguei no tal, lhe ensinei

A indecente dança-do-ombro.

Não quis saber, foi-se embora.

E quando não o vi mais,

Sozinho, me arrependi.

A terceira vez é agora

E eu... não sei... não gosto dele

Mas não quero que o rapaz

Me deixe sozinho aqui.

Não danço mais dança-do-ombro!

Eu reconheço que sofro!

Ah! malvadeza brutaça

Dos indivíduos humanos,

Dos humanos desta praça!

Ah! homens filhos-da-puta,

Gente bem rúim, bem odiando,

Homens bem homens, grandiosos

Na sua inveja acordada!

Grandiosos na força bruta,

Na estupidez desvelada!

Que heroísmo sem inocência,

O do sujeito esquecendo

Do remorso e da consciência!

Oh! força reta, bem homem,

De ser talqualmente os mares,

E os movimentos do mundo!

Perversidades solares

Da magrém! ser matapau!

Sucuri, raio, minuano!

Forçura destes humanos,

Iguais na perversidade,

Iguais na imbecilidade,

Na calúnia, iguais no ciúme!...

Conscientemente implacáveis!

Imperiais no riso mau!...

Ota, cabra demográfico,

Jornaleiro do azedume,

Secreção de baço podre,

Alma em que a sífilis deu!

Burrice gorda, indiscreta,

Veneranda... Homo imbecilis,

Invejado pelo poeta...

Viva piolho de galinha!

Eh! home, bosta de Deus!

Menino, sai! Eu te odeio,

Menino assombrado, feio,

Menino de mim, menino,

Menino trelento, que enches

Com teus silêncios puríssimos

A bulha dos meus desejos,

Que nem a calma da tarde

Vence a bulha da cidade...

Menino mau, que me impedes

De entrar também pro recheio

 Das estatísticas... sai!

Menino vago, sem nome,

Que me embebes inteirinho

Nesta amargura visguenta

 Pelos homens! pelos homens!...

Puxa! rapazes, minha alma,

Comprida que não se acaba,

Está negra tal-e-qual

Fruta seca de goiaba!

Meus olhos tão gostadores

Nem têm mais gosto de olhar!

E pela primeira vez

O murmurejo natal

Desta vida está sem graça,

E eu só desejo uma calma

Que apagasse até meus ais!

Tudo amarga porque os homens

Me amargaram por demais!

Uma tristeza profunda,

Uma fadiga profunda,

E até, miseravelmente,

O projeto inconfessável

 De parar...

Menino, sai!

Você é o estranho periódico

 Que me separa do ritmo

Unânime desta vida...

E o que é pior, você relembra

Em mim o que geralmente

Se acaba ao primeiro sopro:

Você renova a presença

De mim em mim mesmo... E eu sofro.

É tarde. Vamos dormir.

Amanhã escrevo o artigo,

Respondo cartas, almoço,

Depois tomo o bonde e sigo

Para o trabalho... Depois...

Depois o mesmo... Depois,

Enquanto fora os malévolos

Se preocupam com ele,

Vorazes feito caprinos,

Nesta rua Lopes Chaves

Terá um homem concertando

As cruzes do seu destino.

 

Mãe

(1926)

Existirem mães,

Isso é um caso sério.

Afirmam que a mãe

Atrapalha tudo,

É fato, ela prende

Os erros da gente,

E era bem milhor

Não existir mãe.

Mas em todo caso

Quando a vida está

Mais dura, mais vida,

Ninguém como a mãe

Pra aguentar a gente

Escondendo a cara

Entre os joelhos dela.

— O que você tem?...

Ela bem que sabe

Porém a pergunta

É pra disfarçar.

Você mente muito,

Ela faz que aceita,

E a desgraça vira

Mistério pra dois.

Não vê que uma amante

Nem outra mulher

Entende a verdade

Que a gente confessa

Por trás das mentiras!

Só mesmo uma mãe...

Só mesmo essa dona

Que a-pesar-de ter

A cara raivosa

Do filho entre os seios,

Marcando-lhe a carne,

Sentindo-lhe os cheiros,

Permanece virgem,

E o filho também...

Oh virgens, perdei-vos,

Pra terdes direito

A essa virgindade

Que só as mães têm!

 

Lundu do escritor difícil

(1928)

Eu sou um escritor difícil

Que a muita gente enquizila,

Porém essa culpa é fácil

De se acabar duma vez:

É só tirar a cortina

Que entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,

Com teia caranguejeira

E enfeite ruim de caipira,

Fale fala brasileira

Que você enxerga bonito

Tanta luz nesta capoeira

 Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,

Mas gaúcho maranhense

Que para no Mato Grosso,

Bate este angu de caroço

Ver sopa de caruru;

A vida e mesmo um buraco,

Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil,

Porém culpa de quem é!...

Todo difícil é fácil,

Abasta a gente saber.

Bagé, piché, chué, oh “xavié”,

De tão fácil virou fóssil,

O difícil é aprender!

Virtude de urubutinga

De enxergar tudo de longe!

Não carece vestir tanga

Pra penetrar meu cassange!

Você sabe o francês “singe”

Mas não sabe o que é guariba?

— Pois é macaco, seu mano,

Que só sabe o que é da estranja.

 

Melodia moura

(1928)

Quando as casas baixarem de preço

Lá na cidade, Laura Moura,

Uma delas será sua sem favor.

Será num bairro bem central,

Pra que o nosso mistério engane mais.

Quando as casas baixarem de preço,

Você há-de ter a vossa, Laura Moura,

Lá na cidade em que trabalho...

Há-de ser bom, pousando o rosto em vosso colo,

Me entediar feito um dono,

Mal escutando as mágoas de você.

Laura Moura viverá bem sossegada,

Me servindo,

Toda puxada pelo Piauí.

Num longing quase bom,

Comendo alimentos comprados,

Laura Moura falará de Teresina

E das boiadas e dos boiadeiros

E da polvadeira seca do Piauí.

Quando as casas baixarem de preço,

Laura Moura, prenda minha,

Uma delas será sua sem favor.

Lá fora a bulha da cidade

Disfarçará nosso prazer...

E a gente, numa rede maranhense,

Ao som dum jaz bem blue,

Balancearemos no calor da noite.

Sonhando com o sertão.

 

Momento

(1929)

O mundo que se inunda claro em vultos roxos

No caos profundo em que a tristura

Tange mansinho os ventos aos mulambos.

A gente escapa da vontade.

Se sente prazeres futuros,

Chegar em casa,

Reconhecer-se em naturezas-mortas...

Oh, que pra lá da serra caxingam os dinossauros!

Em breve a noite abrirá os corpos,

As embaúbas vão se refazer...

A gente escapa da vontade.

Os seres mancham apenas a luz dos olhares,

Se sobrevoam feito músicas escuras.

E, a vida, como viola desonesta,

Viola a morte do ardor, e se dedilha...

Fraca.

 

Toda

(1932)

No outro lado da cidade,

Não sei o quê, foi o vento,

O vento me dispersou.

Viajei por terras estranhas

Entre flores espantosas,

Tive coragem pra tudo

No outro lado da cidade,

Sem tomar cuidado em mim.

Passeava com tais perícias,

Punha girafas na esquina,

Quantos milagres na viagem,

Meu coração de ninguém!

E pude estar sem perigo

Por entre aconchegos pagos,

Em que o carinho mais velho

Inda guardava agressão.

Busquei São Paulo no mapa,

Mas tudo, com cara nova,

Duma tristeza de viagem,

Tirava fotografia...

E o meu cigarro na tarde

Brilhava só, que nem Deus.

Fiquei tão pobre, tão triste

Que até meu olhar fechou.

No outro lado da cidade

O vento me dispersou.

 

Grã cão do outubro

 

I – vinte e nove bichos

(outubro de 1933)

No meu enorme corpo fatigado,

Todo mole com as almofadas,

Você se aninha sem beijar.

Estou sem forças feito um caos.

Você é uma Via-Láctea errante

Que não desejo mais valorizar.

Paz. A falsa paz vacila disponível

Enquanto à sombra da cheia fruteira

Os bichos se alimentam sem cessar.

Um desespero me arde, eu te repilo.

E a arraiada que vem, é o sol imundo

Que vai mostrar a bicharada

Aos emboléus, vinda do caos.

 

II – Os gatos

(a)

(14-X-33)

Que beijos que eu dava...

Não tigre, vossa boca é mesmo que um gato

Imitando tigre.

Boca rajada, boca rasgada de listas,

De preto, de branco,

Boca hitlerista,

Vossa boca e mesmo que um gato.

Nas paredes da noite estão os gatos.

Têm garras, têm enormes perigos

De exércitos disfarçados,

Milhares de gatos escondidos por detrás da noite incerta.

Irão estourar por aí de repente,

Já estão com mil rabos além de São Paulo,

Nem sei mais si são as fábricas que miam

Na tarde desesperada.

Penso que vai chover sobre os amores dos gatos.

Fugirão?... e só eu no deserto das ruas,

Oh incendiária dos meus aléns sonoros,

Irei buscando a vossa boca,

Vossa boca hitlerista,

Vossa boca mais nítida que o amor,

Ai, que beijos que eu dava...

Guardados na chuva...

Boiando nas enxurradas

Nosso corpo de amor...

Que beijos, que beijos que eu dou!

Vamos enrolados pelas enxurradas

Em que boiam corpos, em que boiam os mortos,

Em que vão putrefatos milhares de gatos...

Das casas cai mentira,

Nós vamos com as enxurradas,

Com a perfeita inocência dos fenômenos da terra,

Voluptuosamente mortos,

Os sem ciência mais nenhuma de que a vida

Está horrenda, querendo ser, erguendo os rabos

Por trás da noite, em companhia dos milhões de gatos verdes.

 

(b)

(15-X-33)

Me pus amando os gatos loucamente,

Oh China!

Mas agora porém não são gatos tedescos,

Tudo está calmo em plena liberdade,

Se foram as volúpias e as perversões tão azedas,

Eu sou cravo, tu és rosa,

Tu és minha rosa sincera,

És odorante, és brasileira à vontade,

Feito um prazer que chega todo dia.

Mas eu te cresço em meu desejo,

Ai, que vivo arrasado de notícias!

Murmurando com medo ao teu ouvido:

Oh China! oh minha China!...

Tu te gastas sob o meu peso bom,

Teus lábios estão alastrados na abertura do reconhecimento

Teus olhos me olham, me procuram todo.

Mas eu insisto em meu castigo, oh China.

Como um gato chinês criado através de séculos de posse e de aproveitamentos,

Para meu gozo só, pra meu enfeite só de mim,

Pra mim, pra mim, tu foste feita, oh China!

Estou te saboreando, és gato china que apanhei vagamundo na rua,

Oh China! oh minha triste China,

Estarei pesando, te fazendo pesar sem motivo

Estou... estava, oh minha triste sina,

Até que fui guardar nos teus cabelos perdidos

Lágrima que não pude sem chorar.

 

III – Estâncias

(15-X-33)

(a)

No caminho da cidade,

Oh vós, homens que andais pelo caminho,

Olhai-me, cercai-me todos, abraçai-me,

Abraçai-me de amor e de amigo, na meiga caricia indecisa,

Cegos, mudos, viris, na imperfeição irremediável.

(b)

No caminho da cidade

Meus olhos se rasgam na volúpia de amor,

Torres, chaminés perto, notícias, milhões de notícias,

Dor... Este profundo mal de amar indestinado,

Como a primavera que fareja a cidade através do sol frio.

(c)

No caminho da cidade

Que estranha ressonância, frautas, membis, andorinhas:

Tudo alargou, tudo está ereto de repente,

Minhas mãos penetram no ar reconhecidas,

Desfaleço, meus olhos se turvam, me encosto.

(d)

No caminho da cidade

Mas não posso esquecer!

Oh meu amor, este grito avançando através das idades...

Me beija! me sufoca nos teus braços!

Que eu só desejo ser vencido logo

Para te perfurar com a cadência do dia e da noite

E sermos aulados numa paz sem colisão...

 

IV – poema tridente

(Outubro de 1933)

Vosso corpo seria encontrado nos desertos.

Sois tão linda... você é a Lei!

Você é tão mal contrária a essas mil leis humanas

Que avançam cegas insensíveis sobre o horror...

Você é tal-e-qual, bem polida,

Sem erros, cadencial.

Oh besta fera maldita,

Você é mas é um braço esfomeado terminando em faísca de gládio,

Caindo aqui, varrendo além,

Voando, cego braço, aterrissando no meio das turbas,

Matando gente, depredando gente, inventando orfanatos,

Bandos de caravanas de lperosos,

Exílios pra judeus, pra paulistas, pra estudantada cubana,

Eu te amo de um amor educado no inferno!

Te mordo no peito até o sangue escorrer

Me dando socos, chorando, chamando de bruto, de cão,

O Grão Cão é o Mildiabo educado sozinho no inferno!

Nos debatemos, o braço esfomeado braceja,

Golpeia aqui, matou centenas de operários,

Queima cafezais, trigais, canaviais, desocupados

Quebra os museus grandiosos,

Usa a lei de fugir pra estudantada cubana,

E no esforço subrosso colhendo com o gladio o subsolo da Europa,

Abaixo os tiranos! abaixo Afonso XIII!

O mar fez maremoto, e convulsivos

Nos odiando no mesmo abraço confundidos,

Eleitos, desesperados na febre de amar

Jorramos em lucilações fantásticas tremendas,

Todo o nosso ardor vai se esgotar na seiva!

Você é lindíssima! E polida e cadencial feito uma lei!

Mas eu sou o Grão Cão que te marquei um bocado com o crime dos mundos!

E agora nem de perdão carecemos

No mesmo abraço desaparecidos.

 

V – Dor

(15-X-33)

A cidade está mais agitada a meidia.

As ruas devastam minha virgindade

E os cidadãos talvez marquem encontro nos meus lábios.

Minha boca é o peixe macho e derramo núcleos de amor pelas ruas.

Que irão fecundar os ovários da vida algum dia.

Eu venho das altas torres, venho dos matos alagados,

Com meus passos conduzidos pelo fogo do Grã Cão!

Mas pra viver na cidade de São Paulo escondi na corrente de prata

A inútil semente do milho, a maniva,

E enroupei de acerba seda o arlequinal do meu dizer...

E agora apontai-me, janelas do Martinelli,

Calçadas, ruas, ruas, ladeiras rodantes, viadutos,

Onde estão os judeus de consciência lívida?

Os tortuosos japoneses que flertam São Paulo?

Os ágeis brasileiros do Nordeste? os coloridos?

Onde estão os coloridos italianos? onde estão os turcomanos?

Onde estão os pardais, madame la Françoise,

Ergo, ego, Ega, égua, agua, iota, calúnia e notícias,

Balouçantes nas marquesas dos roxos arranha-céus?...

Não vos trago a fala de Jesus nem o escudo de Aquiles,

Nem a casinha pequenina ou a sombra do jatobá.

Tudo escondi no caminho da corrente de prata.

Mas eu venho das altas torres trazido ao facho do Grã Cão,

Lábios, lábios para o encontro em que cantareis fatalmente,

Ameaçados pela fome que espia detrás da coxilha,

A dor, a caprichosa dor desocupada que desde milhões de existências

Busca a razão de ser.

 

Quarenta anos

(27-XII-33)

A vida é para mim, está se vendo,

Uma felicidade sem repouso;

Eu nem sei mais si gozo, pois que o gozo

Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo

Disso, persisto em me enganar... Eu ouso

Dizer que a vida foi o bem precioso

Que eu adorei. Foi meu pecado... Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,

Que me sinto completo e além da sorte,

Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,

Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte

Com o mesmo engano com que amei a vida.

 

Momento

(abril de 1937)

O vento corta os seres pelo meio.

Só um desejo de nitidez ampara o mundo...

Faz sol. Fez chuva. E a ventania

Esparrama os trombones das nuvens no azul.

Ninguém chega a ser um nesta cidade,

As pombas se agarram nos arranha-céus, faz chuva.

Faz frio. E faz angústia... É este vento violento

Que arrebenta dos grotões da terra humana

Exigindo céu, paz e alguma primavera.

 

Brasão

(10-XII-1937)

Vem a estrela dos treze bicos,

Brasil, Coimbra, Guiné, Catalunha,

E mais a Bruges inimaginável

E a decadência dos Almeidas.

E sobre a estrela dos treze bicos

Pesa um coração mole

De prata coticada trezemente,

Em cujo campo há-de inscrever-se

“Eu sou aquele que veio do imenso rio”.

E sobre o campo do meu coração,

Todo em zarcão ardendo,

Ha em ouro a arca de Noé com vinte-e-nove bichos blau,

E a jurema esfolhando as folhas derradeiras

Sobre Mestre Carlos, o meu grande sinal.

E a seguir a trombeta, essa trombeta

Insiste pela Catalunha,

Mas desta vez eu que escolhi!

Oh, meus amigos,

Perdão pelos séculos pesados de cicatrizes infinitas,

Perdão por todas as sabedorias,

Pela esfera armilar das conquistas insanas!

Essa trombeta eu que escolhi, toda de prata,

Com treze línguas de fogo na assustadora boca,

E a inscrição “Que-dele eles?”,

Eles, os bandeirantes

E falta o boi Paciência, o boi que pertence a Armida,

Traz por guampas os cornos da luna

E um peitoral de turmalinas.

Mas esse vem no outro coração mole,

Não se mostra a ninguém.

O boi Paciência serão treze preguiças assustadas,

No porto do imenso rio esperando,

Esperando pelos treze caminhos

Das mil cavernas das quarentas mil perguntas.

Ai, que eu vou me calar agora,

Não posso, não posso mais!

 

Soneto

(dezembro de 1937)

Aceitarás o amor como eu o encaro?...

...Azul bem leve, um nimbo, suavemente

Guarda-te a imagem, como um anteparo

Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de milhor e de mais raro

Vive em teu corpo nu de adolescente,

A perna assim jogada e o braço, o claro

Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo

Também mais nada, só te olhar, enquanto

A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... A evasão total do pejo

Que nasce das imperfeições. O encanto

Que nasce das adorações serenas.

 

As cantadas

(Rio, 20-IX-38)

Terras bruscas, céus maduros,

Apalpam curvas os autos,

Ai, Guanabara,

Serão desejos incautos,

Ancas pandas, seios duros

Senti as curvas dos autos

Nas praias de Guanabara.

Penetro as fendas dos morros,

Desafogos de amor, jorros

De sensualidades quentes,

Ai, ares de Guanabara,

Sou jogado em praias largas,

Coxas satisfeitas feitas

De ondas amargas.

Não posso mais... Nunca ousara

Pensar cajás, explosões

De melões,

Mulatas, uvas pisadas,

Ai, Guanabara,

Tuas noites fatigadas...

Me derramo todo em sucos

Malucos de ilhas Molucas.

Manhã. Brisas intranquilas

De volúpias mal ousadas

Passam por ti,

Num gosto naval de adeuses...

Há deusas...

Há Vênus, há Domitilas

Fazendo guanabaradas

Por aí...

Mas as palmeiras resistem.

Na deformação dos raios,

Templos, gentes, esperanças

Em desmaios

E transposições de níveis...

Só as palmeiras resistem

Como consciências incríveis!

As noites não são bem noites,

As músicas são cansaços,

Açoites

De convites, bocas, mar,

Ai, ares de Guanabara,

Vou suspirar...

Meus olhos, minhas sevícias,

Minha alma sem resistências,

A Guanabara te entregas

Sem Deus, sem teorias poéticas.

Os aviões saltam dos trilhos,

Perfuram morros, ardências,

Delícias, vícios, notícias...

Aiái, Guanabara!

Que todo me desfaleço

Por cento e dez avenidas,

Pela mulher de em seguida,

Por teus cheiros, por teus sais,

Pelos aquedutos, pelos

Morros de crespos camelos

E elefantes triunfais!

Eu não sei si mais gozara,

Iáiá, Sereia do Mar,

Si achara nalma outra clara

Glória rara sol luar

Aurora uiara

Niágara realeza

Suprema, eterna surpresa,

Guanabara!...

 

Luar do Rio

(Rio, dezembro de 1938)

Olha o balão subindo!

Mas quem foi o louco varrido

Que em novembro se lembrou de o soltar!

— É o luar, é o luar!

E as casas! olha os arranha-céus,

Parece que estão se movendo,

Com tantas janelas a chamar?...

E este céu cor-de-cinza,

E este mar cor-de-prata,

E o Cristo do Corcovado!

Olha! parece uma palhaço,

Parece um filósofo, parece até Cristo mesmo

Erguido no altar?...

E estas minhas mãos inquietas,

E o vento alcoolizado,

E as carícias das ilhas...

E as narinas cheirando ofegantes,

E essa vela das praias do norte,

E um desejo de falar besteira,

De dançar por aí feito maluco,

Esquecido de amar?...

— É o luar, é o luar!

É o luar que inventa novas árvores e morros,

Vence as luzes da enorme cidade,

Vence a noite, vence os homens,

Vence as tristezas e os mandos do mundo...

Não acredita não, José Correia,

Que vais te perder, e esquecer, feito estátua,

A imensa dor multissecular.

 

Canção

(Rio, 22-XII-1940)

... de árvores indevassáveis

De alma escusa sem pássaros

Sem fonte matutina

Chão tramado de saudades

À eterna espera da brisa,

Sem carinhos... como me alegrarei?

Na solidão solitude,

Na solidão entrei.

Era uma esperança alada,

Não foi hoje mas será amanhã,

Há-de ter algum caminho

Raio de sol promessa olhar

As noites graves do amor

O luar a aurora o amor... que sei!

Na solidão solitude,

Na solidão entrei,

Na solidão perdi-me...

O agouro chegou. Estoura

No coração devastado

O riso da mãe-da-lua,

Não tive um dia! uma ilusão não tive!

Ternuras que não me viestes

Beijos que não me esperastes

Ombros de amigos fieis

Nem uma flor apanhei.

Na solidão solitude,

Na solidão entrei,

Na solidão perdi-me,

Nunca me alegrarei.