Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Livro azul, de Mário de Andrade


Edição de Referência:

Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987 

 

ÍNDICE

Rito do irmão pequeno

Girassol da madrugada

O grifo da morte

 

RITO DO IRMÃO PEQUENO

a Manuel Bandeira

(1931)

I

Meu irmão é tão bonito como o pássaro amarelo,

Ele acaba de nascer do escuro da noite vasta!

Meu irmão é tão bonito como o pássaro amarelo,

Eu sou feito um ladrão roubado pelo roubo que leva,

Neste anseio de fechar o sorriso da boca nascida...

Gentes, não creiam não que em meu canto haja siquer um reflexo de vida!

Oh não! antes será talvez uma queixa de espírito sábio,

Aspiração do fruto mais perfeito,

Ou talvez um derradeiro refúgio para minha alma humilhada...

Me deixem num canto apenas, que seja este canto somente,

Suspirar pela vida que nasceria apenas do meu ser!

Porque meu irmão pequeno é tão bonito como o pássaro amarelo,

E eu quisera dar pra ele o sabor do meu próprio destino

A projeção de mim, a essência duma intimidade incorruptível!...

II

Vamos caçar cotia, irmão pequeno,

Que teremos boas horas sem razão,

Já o vento soluçou na arapuca do mato

E o arco-da-velha já enguliu as virgens.

Não falarei uma palavra e você estará mudo,

Enxergando na ceva a Europa trabalhar;

E o silêncio que traz a malícia do mato,

Completará o folhiço, erguendo as abusões.

E quando a fadiga enfim nos livrar da aventura,

Irmão pequeno, estaremos tão simples, tão primários.

Que os nossos pensamentos serão vastos,

Graves e naturais feito o rolar das aguas.

III

Irmão pequeno, sua alma está adejando no seu corpo,

E imagino nas borboletas que são efêmeras e ativas

Não é assim que você colherá o silêncio do enorme sol branco,

O ferrão dos carapanãs arde em você reflexos que me entristecem.

Assim você preferirá visagens, o progresso

Você não terá paz, você não será indiferente,

Nem será religioso, você... oh você, irmão pequeno,

Vai atingir o telefone, os gestos dos aviões,

O norteamericano, o inglês, o arranha-céu!

Venha comigo. Por detrás das árvores, sobrado dos igapós,

Tem um laguinho fundo onde nem medra o grito do cacauê...

Junto à tocaia espinhenta das largas vitórias-régias,

Boiam os paus imóveis, alcatifados de musgo úmido com calor...

Matemos a hora que assim mataremos a terra e com ela

Estas sombras de sumaúmas e violentos baobás,

Monstros que não são daqui e irão se arretirando.

Matemos a hora que assim matamos as sombras sinistras,

Esta ambição de morte, que nos puxa, que nos chupa,

Guia de noite,

Guiando a noite que canta de uiara no fundo do rio.

IV

Deixa pousar sobre nós dois, irmão pequeno,

A sonolência desses enormes passados;

E mal se abra o descuido ao rolar das imagens,

A chuva há-de cair, auxiliando as enchentes.

Sob a jaqueira no barranco ao pé da sombra

As pedias e as raízes sossegadas apodrecem.

Havemos de escutar o som da fruta caindo n’água

 E perceber em toda essa fraca indigência,

A luminosa vaga imperecível lentidão.

V

Ha o sarcástico predomínio das matérias

Com seu enorme silêncio sufocando os espíritos do ar

Será preciso contempla-las, e a paciência,

Irmão pequeno, é que entreabre as milhores visões.

Nos dias em que o sol exorbita esse branco

Que enche as almas e reflete branqueando a solidão da ipueira,

Havemos de sacrificar os bois pesados.

O sangue lerdo escorre das marombas sobre a agua do rio,

E catadupa reacendido o crime das piranhas.

Só isso deixará da gente o mundo tão longínquo...

As nossas almas se afastam escutando o segredo parvo,

E o branco penetra em nós que nem a inexistência incomparável.

VI

Chora, irmão pequeno, chora,

Porque chegou o momento da dor.

A própria dor e uma felicidade...

Escuta as árvores fazendo a tempestade berrar.

Valoriza contigo bem estes instantes

Em que a dor, o sofrimento, feito vento,

São consequências perfeitas

Das nossas razões verdes,

Da exatidão misteriosíssima do ser.

Chora, irmão pequeno, chora,

Cumpre a tua dor, exerce o rito da agonia.

Porque cumprir a dor é também cumprir o seu próprio destino:

É chegar àquela coincidência vegetal

Em que as árvores fazem a tempestade berrar,

Como elementos da criação, exatamente.

VII

O acesso já passou. Nada trepida mais e uma acuidade gratuita

Cria preguiças nos galhos, com suas cópulas lentíssimas.

Volúpia de ser a blasfêmia contra as felicidades parvas do homem...

São deuses...

Mas nós blefamos esses deuses desejosos de futuro,

Nós blefamos a punição europeia dos pecados originais.

Ouça. Por sobre o mato, encrespado nas curvas da terra,

Por aí tudo, o calor anda em largado silêncio,

Ruminando o murmulho do rio, como um frouxo cujubim.

Na vossa leve boca o suspiro gerou uma abelha.

E o momento, surripiando mel pras colmeias da noite incerta.

VIII

O asilo é em pleno mato, cercado de troncos negros

Em que a agua deixa um ólio eterno e um som,

Só uma picada fere a terra e leva ao porto,

Onde entre moscas jaz uma pele de uiara a secar.

As maqueiras se abanam com lerdeza,

Enquanto a voz do cotcho uma toada se esvai.

Ela foi embora e nós ficamos. Não há nada.

Nem a inquieta visão dessa curiosidade que se foi.

IX

A cabeça desliza com doçura,

E nas pálpebras entrecerradas

Vaga uma complacência extraordinária.

É pleno dia. O ar cheira a passarinho.

O lábio se dissolve em açúcares breves,

O zumbido da mosca embalança de sol.

... Assurbanipal...

A alma, à vontade,

Se esgueira entre as bulhas gratuitas,

Deixa a felicidade ronronar.

Vamos, irmão pequeno, entre palavras e deuses,

Exercer a preguiça, com vagar.

X

A enchente que cava margem,

Roubou os barcos do porto,

A agua brota em nosso joelho

Delícias de solidão.

Trepados na castanheira

Viveremos sossegados

Enquanto a terra for mar;

Pauí-Pódole virá

Nas horas de Deus trazer

A estrela, a umidade, o aipim.

E quando a terra for terra,

Só nós dois, e mais ninguém,

De mim nascerão os brancos,

De você, a escuridão.

 

GIRASSOL DA MADRUGADA

a R. G.

(1931)

I

De uma cantante alegria onde riem-se as alvas uiaras

Te olho como se deve olhar, contemplação,

E a lâmina que a luz tauxia de indolências

E toda um esplendor de ti, riso escolhido no céu.

Assim. Que jamais um pudor te humanize. É feliz

Deixar que o meu olhar te conceda o que é teu,

Carne que e flor de girassol! sombra de anil!

Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril

Em que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.

II

Diga ao menos que nem você quer mais desses gestos traiçoeiros

Em que o amor se compõe feito uma luta;

Isso trará mais paz, por quanto o caminho foi longo

Abrindo o nosso passo através dos espelhos maduros.

Você não diz porém o vosso corpo está delindo no ar,

Você apenas esconde os olhes no meu braço e encontra a paz na escuridão.

A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados

Enquanto o nosso par aguarda, soleníssimo,

Radiando luz, nesse esplendor dos que não sabem mais pra onde ir.

III

Si o teu perfil é puríssimo, si os teus lábios

São crianças que se esvaecem no leite,

Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,

Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro:

Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes

Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos

És grande por demais para que sejas só felicidade!

És tudo o que eu aceito que me sejas

Só pra que o sono passe, e me acordares

Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.

IV

Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,

De-dia não seremos nada e as ambições convulsivas

Nos turbilhonarão com as malícias da poeira

Em que o sol chapeará torvelins uniformes.

E voltarei sempre de-noite às tuas carícias,

E serão búzios e bumbas e tripúdios invisíveis

Porque a Divindade muito naturalmente virá.

Agressiva Ela virá sentar em nosso teto,

E seus monstruosos pés pesarão sobre nossas cabeças,

De-noite, sobre nossas cabeças inutilizadas pelo amor.

V

Teu dedo curioso me segue lento no rosto

Os sulcos, as sombras machucadas por onde a vida passou,

Que silêncio, prenda minha... Que desvio triunfal da verdade,

Que círculos vagarosos na lagoa s na lagoa em que uma asa gratuita roçou...

Tive quatro amores eternos...

O primeiro era a moça donzela,

O segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,

O terceiro era a rica senhora,

O quatro és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados

VI

Os trens-de-ferro estão longe, as florestas e as bonitas cidades,

Não há sinão Narciso entre nós dois, lagoa,

Já se perdeu saciado o desperdício das uiaras,

Ha só meu êxtase pousando devagar sobre você.

Oh que pureza sem impaciência nos calma

Numa fragrância imaterial, enquanto os dois corpos se agradam,

Impossíveis que nem a morte e os bons princípios.

Que silêncio caiu sobre a vossa paisagem de excesso dourado!

Nem beijo, nem brisa... Só, no antro da noite, a insônia apaixonada

Em que a paz interior brinca de ser tristeza.

VII

A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados

Num vago rumor confuso de mar e asas espalmadas,

Eu, debruçado sobre vossa perfeição, num cessar ardentíssimo,

Agora pouso, agora vou beber vosso olhar estagnado, oh minha lagoa!

Eis que ciumenta noção de tempo, tropeçando em maracás,

Assusta guarás, colhereiras e briga com os arlequins,

Vem chegando a manhã. Porém, mais compacta que a morte,

Para nós é a sonolenta noite que nasce detrás das carícias esparsas.

Flor! flor!...

Graça dourada!...

Flor...

 

O GRIFO DA MORTE

a Lúcio Rangel

(1933)

I

Milhões de rosas

Para esta grave Melancolia,

Milhões de rosas,

Milhões de castigos...

Milhões de castigos,

Imperfeita grávida,

Quem foi? foi o vento

Que fez-te imperfeita,

Milhões de aratacas!

A toca fendeu

Para esta grave Melancolia,

Milhões de castigos,

Milhões de aratacas...

Salta o bicho roxo,

Depois ficou rúim,

Depois ficou roxo,

Depois ficou rúim,

Depois ficou roxo,

Rúim-roxo, rúim-roxo,

Milhões de bandeiras!

Os camisas pretas,

Os camisas pardas,

Os camisas roxas,

Rúim-roxo, rúim-roxo,

Milhões de bandeiras!

Milhões de castigos!

Quem foi! foi a rosa

Dos ventos da amarga

Desesperança...

Ei-vem a morte

— rúim-roxo... —

Consoladora...

Milhões de rosas,

Milhões de castigos...

II

Retorno sempre

A cada volta do caminho

À lagoa imóvel.

Superfície juncada

De mãos-postas negras

Que afundam sempre.

Meus olhos são moscas,

Única vida grave

Esparsa no silêncio.

O silêncio avança

Que nem um navio,

Não penso, estremeço.

Tremor sem razão

Que termina em meio

Nem bem principia.

A boca desdenha

As palavras ásperas,

Evitando a vida.

Mas... dor, periquito,

Novamente rufa

Da serrapilheira,

Sobe no alto no alto,

Vai dormir nas casas

Além da floresta.

III

Mocidade parva,

Dor sem pensamento,

Oh cálido futuro

De brilho estonteante,

Fechando o presente

No punho cerrado

Com as unhas aduncas,

Ferindo a munheca

De onde o sangue escorre

Gravando o caminho

Com rasto facílimo

Em que a fera acode.

Lá no rombo escuso

Te pega nas garras,

Explode o suspiro.

Escurece aos poucos

Teu corpo auroral.

IV

Quando o rio Madeira

Fica inavegável,

A corredeira clara

Junto ao trem-de-ferro

Vai rasa entre as pedras

Da margem deserta,

Suspensa no charco

Imenso da morte.

A claridade vasta

Guasca Mato Grosso,

Filtrada da nuvem

Que de tão exausta

Se apoia na crista

De espuma do rio.

O calor mais branco

Esturrica as pedras

E tange o Grão Chaco

Pros altos dos Andes,

Onde as almas planam

Sem fecundidade,

Na terra sem mal,

Sem fecundidade.

V

Silêncio monótono,

Calma serenata

Na monotonia,

A alma sem tristeza

Pouco a pouco vai

Desabrochando

O instante do lago.

Morte, benfeitora morte,

Eu vos proclamo

Benfeitorai, oh morte!

Benfeitora morte!

Morte, morte...

Se escuta no fundo

A sombra das aguas

— calma serenata... —

Se depositando

Para nunca mais.