Fonte: Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos

LITERATURA BRASILEIRA

Textos literários em meio eletrônico

Café, de Mário de Andrade


Edição de Referência:

Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987

ÍNDICE

Café – Concepção melodramática (em três atos)

Primeiro ato

Primeira cena – Porto parado

Segunda cena – A Companhia Cafeeira, S. A.

Segundo ato

Primeira cena – Câmara-ballet

Segunda cena – O êxodo

Terceiro ato – Dia novo

Café – tragédia secular – O poema

Primeiro ato

Primeira cena – Porto parado

I – Coral do queixume

II – Madrigal do truco

III – Coral das famintas

IV – Imploração da fome

Segunda cena – A Companhia Cafeeira, S. A.

I – Coral do provérbio

II – A discussão

III – Coral do abandono

Segundo ato

Primeira cena – câmara-ballet

I – Quinteto dos serventes

II – A embolada da ferrugem

III – A endeixa da mãe

Segunda cena – O êxodo

I – Coral puríssimo

II – Coral da vida

III – Coral do êxodo

Terceiro ato - Dia novo

I – O parlato do rádio

II – Cânone das assustadas

III – Estância de combate

IV – Estância da revolta

V – Fugato coral

VI – Segundo parlato do rádio

VII – Grande coral de luta

VIII – O rádio da vitória

IX – Hino da fonte da vida

Apêndice

Primeira versão pra ser musicada

Segunda versão pra ser musicada


 

CAFÉ

CONCEPÇÃO MELODRAMÁTICA

(Em três atos)

a Liddy Chiaffarelli

São Paulo, 1933 – 1939 – 1942

PRIMEIRO ATO – PRIMEIRA CENA

PORTO PARADO

Desde muito que os donos da vida andavam perturbando a marcha natural do comércio do café. Os resultados foram fatais. Os armazéns se entulharam de milhões de sacas de café indestinado. E foi um crime nojento. Mandaram queimar o café nos subúrbios escusos da cidade, nos mangues desertos. A exportação decresceu tanto que o porto quase parou. Os donos viviam no ter e se aguentavam bem com as sobras do dinheiro ajuntado, mas e os trabalhadores, e os operários, e os colonos? A fome batera na terra tão farta e boa. Os jornais aconselhavam paciência ao povo, anunciavam medidas a tomar. Futuramente. A inquietação era brava e nos peitos dos estivadores mais sabidos do porto parado, numa hesitação desgraçada, entre desânimos, a cólera surda esbravejava, se assanhavam os desejos de arrebentar.

A orquestra, de supetão, está agitadíssima, desagradável, quase tão irrespirável como o turbilhão que agita interiormente os estivadores. O pano se ergue rápido no armazém do porto. O armazém está sombrio, apenas no fundo a fresta da vasta porta de correr. As pilhas de sacas de café sobem até o teto no fundo, dos dois lados. Na frente, as sacas se amontoam mais desordenadas, às quatro, às três, outras sozinhas. Sobre elas, deitados, sentados, aos grupos, os estivadores quase imóveis esperam. Mais deixam raivar o turbilhão que têm do peito do que esperam, esperar o quê! A um lado, junto à ribalta, um grupo deles no chão quer matar o tempo no jogo do truco. A vestimenta de todos é a mesma, calças escuras, largas, e as camisas de meia com listas vivamente coloridas, vermelho e branco, azul marinho e branco, amarelo e roxo, verde e encarnado. Esta calça de veludo cor-de-charuto denuncia um espanhol, assim como a boina que ele traz. Estes bigodes no estivador gordo, denunciarão o português. Tem a palheta de banda deste rapaz amulatado, e dois negros de cabeça ao vento, enormes, luzindo.

Na fresta da porta do fundo entra mais um estivador. Vem desanimado, lento, lerdo, se arrastando até o centro da cena. O jornal que tinham mandado ele buscar não trouxe notícia nenhuma, e ele o arrasta no chão, da mão pendida. Todos os estivadores se interessam pelo que dirá o recém-chegado, mas ele nem fala, coitado, faz um gesto só: amar- fanha o jornal de parolagem e o atira com nojo no chão. E o desânimo agora abafa a todos, mais completo. Aqueles homens enormes, forças brutais, se sentem feito crianças na decisão a tomar. Como será possível que aquela terra deles, sempre tão altiva, tão generosa também, tenha perdido assim o seu porte de grandeza?... O que fazer, agora que o café está baixo, sem valor. E manso, melancólico, sofrido o queixume daqueles homens fortes enche o bojo sombrio do armazém. E morre num abafamento implacável. Talvez fosse milhor morrer... E os estivadores se estiram por aí, na fraqueza vil da pasmaceira. Os jogadores voltam ao seu truco disfarçador. Fosse domingo, iriam ser sugados totalmente de suas forças morais, no futebol apaixonante, que isto, os generosos donos da vida não se esquecem de arranjar. E ainda um italiano e o rapaz da palheta se adormecem no jogo da morra. E parece que nada vai suceder.

Mas eis que duas mulheres de repente espiam pela fresta da porta. São eles sim, são os companheiros que elas andaram buscando pelos botequins do cais. Mas o portuga do boteco deu o basta do fiado e ele vieram ali. As mulheres raivosas, correm a porta do armazém em toda a extensão. E agora se enxerga bem nítido o porto parado, a linha reta do cais vazio, o verde gasto do mar vazio, e um céu claro, branquiçado, sem nuvens, da mesma impassível desolação.

E o grupo agitado de umas vinte mulheres corre para o centro da cena. Estão quase delirantes, não podem mais, os filhos choram em casa pedindo pão, elas também estão famintas, e os maridos, os companheiros, o que fazem? Os seus vestidos femininos de fazendas lavradas, botam uma nota turbulenta e multicor no ambiente. “Eu quero o meu pão!” que elas gritam, quase desvairadas. Mas aqueles homens, amolentados ainda pela indecisão, num desalento cínico não têm mais esperança em nada. “Quem pode dar pão!”, eles murmuram, ecoando em cinza de eco, o grito vivo das mulheres.

Quem pode dar pão?... O café pode dar pão. Sempre dera o pão, a roupa e a paz relativa dos pobres. Mas agora aquele companheiro generoso de outros tempos, jaz ali, inútil, vazio de força, como o cais, como o porto: vazio. E as mulheres e os homens, numa alucinação, contemplam as pilhas mudas de sacas. Eles amam, sempre amaram aquele café paterno, que agora parece falhar. Mas ainda há-de estar nele a salvação de todos. As mulheres se aproximam das sacas, se abraçam com elas, contando os seus segredos de miséria, acarinham o grão pequenino que não falhará. E o grão pequenino lhes segreda o segredo que eles não se animavam a se revelar. Aquela fome que eles sentiam não era apenas uma fome de alimento, mas outra maior, a fome milenar dos subjugados, fome de outra justiça na terra, de outra igualdade de direitos para lutar e vencer.

E o pano desce lentamente, dando tempo a que o segredo que a cena revelou, se grave pra sempre no coração de todos os oprimidos.

 

SEGUNDA CENA

A COMPANHIA CAFÈEIRA, S. A.

Também noutras partes daquelas terras a fome e a angústia vai feroz. A orquestra, muito triste e abafada chega coleando, fazendo esforço pra saber o que será da existência. Mas eis que se aclara porque o pano sobe nos dando o céu claro dez horas da manhã, cafezal pleno. A cena mostra uma encruzinhada de carreadores, árvores já taludas, com oito anos, saias grandes pousando na terra-roxa. Na ponta dum dos carreadores está uma laranjeira carregadinha de fruta madura. É o único gesto de altura, vivo de cor, variando os horizontes longínquos, largos, levemente ondulados no célebre cafezal da Companhia Cafeeira S. A.

Os colonos estão por ali, terminando de almoçar. É fácil de perceber idade e condição deles pela roupa. As moças solteiras estão de vestido vermelho, cor sexual de quem deseja homem na vastidão dos campos. Os rapazes já não querem mais a casa das camisas bordadas com que os pais deles chegaram da Europa bestial das aldeias. Estão de azulão vivo, e algum já terá seu chapéu de caubói, aprendido no cinema. As mulheres casadas, relembram a “Colona Sentada” de Cândido Portinari, a saia de um vermelho já bem gasto e lavado, aquela espécie de mantinê largo de um azul quase cinza, bem neutro, e o lenço também de vermelho gasto, protegendo os cabelos. Os seus maridos, calças de brim cinzento que aguenta a semana, camisas brancas, sem brancura. As velhas estão de preto completamente, e os velhos estão ridículo, com suas calças grossas, muito largas, pardacentas, e aqueles blusões de cores que foram vivas, rosadas, amareladas, esverdeadas. As meninotas de vermelho, e os meninos da cor do chão.

Pois um destes não se conteve. Percebendo que todos estavam distraídos na arrumação dos badulaques do almoço, roubou uma laranja da árvore, a furou com o dedinho e vai chupa-la. Uma velha viu, mostra o menino a outra. Aliás vários colonos viram, mas fingem que não: que o animalzinho aprenda por si. E o menino, se imaginando livre de olhares, chupa a fruta com ansiedade. Faz uma careta e joga a laranja longe, enquanto velhos e velhas caem na risada. Agora o bobo vai ficar conhecendo pra sempre o provérbio da terra: “Laranja no café, é azeda ou tem vespeira”.

Mas a mocidade e os casados, menos filósofos pra se divertirem com os provérbios da experiência, já agarraram no trabalho da colheita. Nada dispostos, aliás, mecanizados, fatalizados apenas pela obrigação. O almoço foi insuficiente, já de muito que os colonos não recebem pagamento, o café para nas estações do trem de ferro, os armazéns não fiam mais. A visão da fome espia nas esquinas dos carreadores. Os velhos enfim se decidem a trabalhar também. Mas imediatamente lhes volta a dureza da realidade e um deles, num assomo de desabafo ao menos físico, coça a cabeça com raiva e dá um pontapé na saia da árvore que devia colher.

Ora sucedeu que justamente no instante do pontapé, chegavam pela boca esquerda da cena, os donos da Companhia Cafeeira S. A. e os comissários Ex-donos aliás, porque se vendo na possibilidade de curtir alguns anos gastando o que já tinham amontoado, eles acabaram de entregar a fazenda aos comissários, como pagamento de dívida. Ê gente bem vestida, está claro, vestindo brim do bom. Só que os comissários estão de “brim de linho S,120”, como se diz, branco, corte de cidade, pra luzir nos escritórios e na bolsa. Os donos ainda trazem o brim cáqui, de fazenda, calça de montar, polainas bem engraxadas, chapéus largos, panamás legítimos.

Esquecidos de que a fazenda já não lhes pertence mais, ficam indignados com o velho e a colheita distratada, passam pito. Os colonos vão pra baixar a cabeça, mas as mulheres, sempre a mulher que é mais perfeita, intervém irritadas, desesperadas, a discussão cresce rápida, se azeda. Tem um momento em que tudo está pra estourar. Os colonos vão perder o tino, vão “amassar” aqueles senhores impiedosos que não arranjam nada, não querem pagar os ordenados de meses, pouco estão se amolando com a fome dos pobres. É um instante bravo de silêncio aquele da decisão, E os donos se preparam também pra brigar, buscando sem disfarce os revólveres no bolso traseiro da calça ou na cinta. Qual, assim não vai mesmo nem adianta: o milhor é abandonar a fazenda, desistir daquela espera improvável, ir buscar pão onde ele se esconder. E os colonos anunciam que abandonarão a fazenda. Não era isto exatamente o que os senhores queriam. Queriam era a submissão, a sujeição total. Em todo caso livraram as epidermes, e aproveitam a decisão dos colonos pra fugir dali, um bocado apressadinhos não tem dúvida, mas bancando gestos de indignação.

E agora os colonos estão sós. Então consigo de novo, e a orquestra com eles, cai na realidade terrível. Acaso não teriam sido precipitados por demais?... É o desemprego, é o caminhar nas estradas do acaso, é o bater nas portas, é o mofar na impiedosa indiferença das cidades. Se sentem inermes, desprotegidos, incapazes. Têm a noção muito vaga ainda de que tudo é um crime infame. Não poderão gritar. A poeira dos caminhos vai secar a voz nas gargantas. Ou poderão gritar! Não sabem, não conhecem, não entendem. Parece que tem momentos nesta vida dura em que a gente se revolta, não é porque queira decididamente se revoltar, mas porque uma força maior move a gente e se fica sem capacidade mais pra não se revoltar. As velhas já partiram em busca da colônia, arranjar seus trastes, suas trouxas. As mulheres casadas principiam partindo também. Melancolicamente. E o pano cai depressa, bem depressa.

 

SEGUNDO ATO – PRIMEIRA CENA

CÂMARA–BALLET

É bem difícil explicar o que teria levado o autor à invenção subitânea deste “Câmara-Ballet”, que até pelo nome, já denuncia a sua intenção de vaia. É possível se crer, se deve crer numa humanidade tão civilizada que permita a existência de câmaras eficazes. E afinal são sempre câmaras a cachimbada dos Velhos na tribu e as salas improvisadas dos sovietes. Por isto, a intenção de “Câmara-Ballet” se limita, é vaia, mas por tudo quanto de falsificação e de ridículo, os anões subterrâneos do servilismo, fizeram das câmaras que a história conta. Ineficientes, traidoras e postas ao serviço dos chefes.

Estamos em plena farsa, e até o pano “farseia”, não querendo subir, caindo de repente. Os personagens são vários, pois o enredo cai em cheio numa sessão de câmara de deputados. A mesa da presidência está na boca da cena, bem junto do ponto, e por trás dela se vê as bancadas numa inclinação leve, de maneira que presidente, vice, e os secretários da Mesa dão as costas ao público, ao passo que os deputados nos encaram de frente. E mais ou menos a meia altura da cena, atrás, estão as galerias da assistência pública. Quando a reunião não é secreta.

A sala de sessões é bem chique, todos os moveis, mesa, bancada, parapeito das galerias, até o chão, tudo branquinho, d’um branco alvar. Ao passo que todos os personagens da câmara estão de preto, Mesa e deputados de sobrecasaca, e um plastron gordo com uma enorme pérola branca de enfeite. Os serventes também de preto, com os botões de prata no dólmã. E os jornalistas? Si os serventes são cinco, de pé, do lado direito da cena, na mesma linha da Mesa, na mesma linha ainda da Mesa, mas do outro lado, os jornalistas também são cinco, sentados em cadeiras enfileiradas, uma atrás da outra. Sucede que as cadeiras jornalísticas estão de perfil pro público, não deixando por enquanto ler o título do jornal a que cada uma pertence, por honra e graça inusitada e inusada dessa força enorme e tão facilmente servil que é o jornal. Ora os títulos dos jornais da terra, que se erguem do encosto das cadeiras, são “O Patativa”, “Diário da Luz”, “O Clarim”, “O Presidente” e o “jornal das Modas”. Os jornalistas também se vestem seriamente de preto, mas não usam sobrecasaca mais, são modernos. Usam um palitozinho curto, calças apertadas ainda mais curtas acabando um palmo acima do tornozelo, deixando ver as lindíssimas meias brancas de seda e os escarpins de verniz. E quanto a gravatas airosamente, os jornalistas só aceitam enormes gravatas cor-de-rosa, com um laço borboleta bem pintor, são lindos. Francamente, esse tal de jornalista é um amor.

Como se vê, tudo é branco e preto. O que vai variar de colorido muito é o pessoal das galerias, que será o mais berrantemente colorido possível. Repete-se as camisas-de- meia dos estivadores, o azulão proletário, dólmãs, quépis, o cáqui de um soldado-raso. Mas as mulheres, muitas e também com tons vivos, serão fazendas lavradas, fazendas de ramagens, fazendas “futuristas” com desenhos abstratos de muitas cores berrantes. Nada de tecido duma cor só, logo se perceberá por quê.

E da mesma forma que o presidente e o Vice, alguns personagens têm seus nomes distintivos. Tem, por exemplo, Deputado do Som-Só, o Deputado da Ferrugem, o Deputado Cinza e o Secretário Dormido.

Quando ergue o pano, está falando o Deputado do Som-Só, um escolado velhusco, que já sabe que se falando num som só, todos dormem e as falcatruas se fazem com mais facilidade. Tem o discurso escrito num papel gigantesco, difícil de manejar de tamanho. Como era de esperar todos dormem, toda a Mesa, os vários deputados, todos os jornalistas, e até um único operário que está nas galerias e ronca de papo pro ar. Só os serventes à direita é que parolam suas intriguinhas de oficio, problemas de gorjetas, intercâmbio de amantes de deputados, chamados de magnatas e banquetes oficiais — a vida deles. É o Quinteto dos Serventes.

E este é que acaba musicalmente porque o Deputado do Som-Só não acabaria nunca, si não fosse entrar o Deputadinho da Ferrugem, muito novo ainda, filho de chefe político não há dúvida, com ar de quem descobriu a pólvora. Não vê que tendo estudado direito e se formado em nove anos rápidos, percorreu o Corpus Juris e toda a legislação existente, e com assombro (lá dele) descobriu que ainda ninguém não legislara sobre o ínclito fenômeno da ferrugem nas panelas de cozinha. E decidiu salvar a pátria. Se fechou seis meses a fio num cabaré, só saindo pra comer dinheiro público na câmara, e escreveu um discurso de embolada maravilhoso sobre o dito assunto. Ele é que entrou pimpante, na emoção gavotística da estreia felicíssima que os jornais já elogiaram. Está claro, durante todo o bailado é um entra-e-sai de deputados que não se acaba. Ao passo que as galerias vão se enchendo pouco a pouco e quando arrebentar a bagunçona, estará repleta.

Pois o Deputadinho da Ferrugem está louco pra falar, mas quem disse o Deputado do Som-Só dar fim ao lerolero. Agora todos acordaram, menos o Secretário Dormido, sempre de bruço, sonhando sobre a mesa. O resto não, quer escutar a estreia do Deputadinho da Ferrugem. Os jornalistas aspiram tomar muitas notas. Pegam do chão, ao lado, os seus maços de papel pra notas, que pelo maço e o tamanho servem também pra outra coisa, e os lápis, que lápis! desses gigantescos, feitos pra anúncio nos mostradores das papelarias. Mas vamos ter o discurso, porque entrou um polícia muito lindo, até polainas brancas, bateu no ombro do Som-Só e fez pra ele parar. Ele para que é só pra isso mesmo que ele existe e principiará dobrando o discurso, dobrando que mais dobrando até o fim do “Câmara-Ballet”.

O Deputadinho da Ferrugem fala enfim. Fala bem, fala verdade, e é tão gostosa a fala “andantino grazioso” dele, que entre aplausos e gostosa satisfação toda a câmara entra no movimentinho suave se movendo pendularmente de cá pra lá, de lá pra cá. Menos o povo das galerias que procura saber o que se decide da vida. Um operário não se contém afinal. “Praquê falar em ferrugem de panela, si não tem o que cozinhar!” ele estoura. Outros querem que se trate do problema do café. Os deputados se contrariam muito, o presidente bate no sinão enorme. Ora, no princípio do discurso da ferrugem, o Secretário Dormido, que já estava cansado da posição, se aninhara no colo do secretário seu vizinho e lhe dormira no ombro. Meio que acorda com a baguncinha do povo, muda de posição outra vez. Se ajoelha no chão, com a bunda nos calcanhares e se debruça no assento da sua própria cadeira, aí pondo sobre os braços, a cabeça dormida.

Ora nos bastidores estava esperando que o discurso acabasse o Deputado Cinza. Não que pretendesse fazer o discurso também, não vê que ele ia se comprometer. Mas o Deputado Cinza é desses uns que gostam muito de estar bem com todos. Eu cá sou pelo que é justo, como eles dizem. D’aí se vestirem completamente de cinzento, que é a cor neutra por excelência. Pois do que mais ele havia de se lembrar! Industriou bem (pensou que industriou) a Mãe, uma colona cheia de filhos, fez ela decorar um discursinho bem comodamente infeliz, contando que os filhos tinham escola dada pelo Governo, roupa de inverno dada pela Liga das Senhoras Desusadas e muito feijão com arroz que o Ministério da Abastança iria plantar no ano que vem. Remédio então era mato, remédio, dentista, calista, manicura, boninas, water-closet e balangandãs. A Mãe decorou, decorou, custava decorar aquele final dizendo que a vida estava triste e o Governo era muito bom, não havia jeito de lembrar as palavras! Mas enfim estava ali nos bastidores com o Cinza, esperando muito nervosa, diz-que era pra ela falar naquele meio de tanta gente elevada tão limpa. De forma que quando, amedrontado com a baguncinha o Deputadinho da Ferrugem acabou, uf! ela não quis entrar e o Deputado Cinza teve que arrastar a infeliz pro recinto lustroso da câmara. E a Mãe entra chamando a atenção de todos. Coitada, botou o único vestido completo que ainda possuía. É aquele vestido todinho encarnado vivo, duma cor só. Na cabeça, escondeu os cabelos destratados no lenço de cetineta verde vivo. E traz consigo os três filhinhos que não tinha com quem deixar. Os dois maiores, que andam, se agarram horrorizados na saia dela. O recém-nascido lhe dorme no braço, envolto no xale amarelo cor-de-ovo. E de cor-de-ovo estão também os outros dois, fazendinha que sobrou de incêndio. E a Mãe com os filhos botam a cor do alarma no recinto. Que será! que não será! E o Deputado Cinza gesticulava pra ela: Fala, diabo de mulher! Mas a Mãe estava horrorizada, queria, pedia pra sair, fugir dali. “Fala, diabo!” que ele gesticulava.

Então a Mãe se viu perdida. Numa espécie de delírio que a toma, se evapora todo o discurso decorado. Sem resolver, sem decidir, sem consciência, sem nada, apenas movida por um martírio secular que a desgraça transmite aos seus herdeiros, ela se põe a falar. Não são dela as palavras que movem-lhe a boca, são do martírio secular. São palavras duma verdade não bem sabida, não bem pensada, são palavras bobas. Muitos deputados vão-se embora pra não perder tempo. Outros adormecem. Falar nisso: o Secretário Dormido mudou de posição outra vez. A cadeira estava incômoda decerto. O fato é que ele a empurra e sempre de joelhos, põe os braços no chão e sobre eles descansa a cara dormida agora se amostrando ao público, e a bunda ao vento, erguida como parte principal dos secretários de câmaras.

Bom, os demais não estão muito se amolando com a fala da Mãe, só as galerias lhe devoram as palavras. E aos poucos, deputados, jornalistas, serventes, a Mesa, todos esses anões subterrâneos do servilismo, utilizados pelos gigantes da mina de ouro, todos, pra não escutar tanta besteira, se botam recordando o maravilhoso discurso sobre a ferrugem das panelas de cozinha. E o mesmo ritmo balangado de antes volta aos poucos e afinal se afirma franco, quando as palavras alucinadas da Mãe se tornam insuportáveis de ouvir. Tudo se mexe, tudo cantarola, tudo dança na câmara. Os jornalistas montaram a cavalo em suas cadeiras e com pulinhos vão formando roda, afinal mostrando os títulos dos jornais ao público. Os serventes também dançam de roda, se dando as mãos. O que fez o presidente? É que, não podendo mais escutar os gritos lamentosos da Mãe, mas correspondendo a ele, a galeria, realistamente se move, se revolta, insulta, berra, diz nomes- feios com razão. E o presidente, movendo o sino engraçado, não vê que se esqueceu da vida e está brincando com o sino, jogando ele no ar. Também o Deputado Cinza, quando viu a bagunçona estourar, disse consigo: Bem, cumpri com o meu dever, agora lavo as mãos. Lavou mesmo. Lavou na água astral do cinismo, e para enxuga-las, puxou do bolso aquela espécie de lenço de Alcobaça, lenço não, lençol vasto, de todas, mas todas as cores. De todas as cores.

Mas isto não se aguenta mais, é o cúmulo! Onde se viu agora o povo querer ter opinião! Onde se viu nunca as Mães falarem! Aqui é que entra o destino precípuo da polícia dos gigantes. Isso entram corvejantes nas galerias uns polícias, tiram os sabres com realismo cru, e principiam chanfalhando o povo. Como reagir, ainda somos poucos, a coisa inda não se organizou num destino unânime. Ainda não surgiu do enxurro das cidades, o Homem Zangado, o herói moreno que os há-de anular na erupção coletiva final. E o povo fogem, as galerias se despovoam, enquanto mais dois polícias que entraram no recinto da câmara, levam presa aos empuxões aquela doida. O pano cai com violência, sem achar mais graça nenhuma na farsa.

 

SEGUNDA CENA

O ÊXODO

São os ritmos de uma marcha pesada, arrastada, fatigadíssima já. Sons tristes, sons lastimosos, se diria de marcha fúnebre. Estamos numa dessas estaçõesinhas de trem-de-ferro, postadas nos vilejos de três, quatro casas, pra serviço de embarque da grande indústria do café. Até lhe puseram o nome “ESTAÇÃO PROGRESSO”, que se lê na tabuleta de início da plataforma, que começa no meio do palco. A estaçãosinha mesmo quase não se vê. Apenas, na direita da cena, o princípio do edifício e quase meia porta apenas. É a tardinha. Pra cá da plataforma e do edifício passa a linha do trem. No lusco-fusco rosado, os trilhos ainda colhem um resto mais franco de luz. A paisagem do fundo ainda se percebe, cafezal, cafezal, o cafezal infindável, no ondular manso dos morros. Nada mais.

Só aquela marcha pesada que vem chegando. Primeiro chegam os moços. São os colonos, aqueles mesmos colonos da famosa Companhia Cafeeira S. A. que vimos despedidos no primeiro ato. Na frente vieram os moços, mais fortes, que podem andar sem a ajuda de ninguém. Rapazes e raparigas, cada qual vem por si, e param por aí, na espera do trem de segunda classe, que ninguém sabe a que horas será composto. Não há mais vagões de segunda classe. É que de todas aquelas terras felizes, agora tornadas invivíveis, o povo está fugindo. Onde vão parar? São estes os que vão parar desocupados nas esquinas das ruas, no parapeito dos viadutos, nos crimes da noite urbana, roubando quando podem esmolando, matando pra roubar. São os criminosos. Não os criminosos-natos, são os criminosos-feitos.

Pois os moços se arrancharam por aí, na espera do trem. Brincam, são moços. Os namorados aproveitam pra namorar, se separando aos pares. Mas os outros passam o tempo com brinquedos ásperos de colonos, se atiram coisas com intenção de machucar um pouco, sem machucar não é brinquedo, meio que se generaliza esse brinquedo, até que aquela rapariga mais perigosa teve a ideia milhor. Tirou da trouxinha um alimento, uma última banana que toma o cuidado de mostrar bem. Todos ficam logo desejando e ela atira a banana bem no meio da cena. Isso, os rapazes todos se atiram sobre a fruta boa, até os namorados se esqueceram que amavam. Ê aquele bolo humano, pernas, braços, tombos, se mexemexendo no chão. Um consegue a banana e com brutalidade se destaca do grupo, triunfante. Vai pra comer, mas ainda com tempo se lembra da proprietária. Lhe põe a banana na boca que ela morde com vontade, enquanto ele devora o resto. Ninguém mais está com vontade de brincar. Uns sentam no chão, outros na plataforma. Fazem silencio, mudos, pensativos, e se escuta outra vez o ritmo lamentoso da marcha, na orquestra.

Agora são os casados que chegam. Estes veem aos pares, braços dados, se ajudando. E também se ajeitam por aí, sem mais nenhum ar de brinquedo. Não sabem brincar mais. O coração está apertado com aquela solução de vida. Pois não venceram tantos trabalhos, tantos sacrifícios, não aguentaram tantas omissões? Agora já estavam bem regularmente arranjados na vida. Tinham enfim conquistado as graças daquela cidade terrível, postada como sentinela impiedosa na abertura dos caminhos de serra-a-cima, dona das sete doenças do frio, não deixando ninguém passar. Mas eles tinham conseguido vencer a ciumenta de serra-acima e então ela os tomara pelas suas próprias mãos e os trouxera para aqueles chãos felizes. E eles tinham amado tanto aqueles chãos. Ali a vida era boa, e trabalho sadio, muitos enriqueciam e se passavam para o bando dos gigantes... Eles amavam aqueles chãos e quem disse pensar em partir outra vez! Haviam de viver e de morrer ali. Mas aqueles chãos felizes e a cidade legítima foram traídos, a ruina chegara, o café apodrecera no galho. E como o fumo ácido afugenta os insetos de beira-rio, eles também partiam de seus chãos, afugentados pela fumaça torva do café queimado.

É quase noite já. A cólera ronda aquele troço de infelizes. O ódio aos gigantes da mina fareja sangue no ar. Tudo está escuro, muito escuro já. Apenas na fímbria do horizonte uma faixa encarnada violenta denuncia a existência de um sol. A orquestra marcha cada vez com mais dificuldade, se arrasta aos socos pesadíssimos de pés exaustos. Muito longe se escuta um rumor estranho, feio. Parecem uivos lamentosos, parecem, choros de morte. E o rumor aumenta pouco a pouco, aumenta. Agora se distingue bem: são uivos, são lamentos humanos, são gritos horríveis de imprecação. E os colonos tapam os ouvidos, escondem os olhos, se agitam, não suportam aquela visão horrível que vem chegando. E vem chegando os grupos de velhos e crianças. Parecem monstros, pencas de monstros, aos três, aos quatro, se ajudando em grupo, que ninguém pode consigo mais. O chefe da Estação Progresso surgiu da meia porta. Atravessa a cena, e bem aqui na frente, na ribalta, pendura um cartaz que trouxe e lhe põe uma lâmpada por cima, pra que todos saibam que

TREM DE SEGUNDA CLASSE NÃO HAVERÁ MAIS

É o que diz o cartaz. E naquele estrondar de uivos, de lamentos lancinantes, os grupos vão atravessando a cena toda e desaparecem. Ritmo cadenciado, lento, aos empuxões pesados. Ritmo de coisa que marcha por desgraça, ritmo de supliciados. E o pano cai ainda mais lento, como sem cair, enquanto os grupos marcham, se arrastam, se morrem naquela marcha monstruosa.

 

TERCEIRO ATO

DIA NOVO

O que eu chamo de “Dia Novo” é o dia da vitória da revolução que afinal acabou estourando mesmo. Chegara enfim o tempo em que o povo não tivera capacidade mais pra não se revoltar, se revoltara. Vai haver luta, briga brava em cena, que estamos num desses tentáculos de guerra com que a revolução se espraiando pela cidade convulsionada, a dominara afinal. As mulheres, no cortiço em que a cena se desenrola, são mulheres de operários, as mesmas vestimentas vivas das mulheres dos estivadores do primeiro ato. Os soldados da situação governista estarão num cáqui acinzentado bem neutro, contrastando com as cores vivas dos revoltosos. Estes, carece fazer todos eles vibrar muito no colorido. São operários, estivadores, ascensoristas em vermelho, rapazes estudantes com suas blusas de esporte, uniformes civis, empregadinhos. E alguns soldados também, mas dólmãs abertos, lenço encarnado no pescoço, libertados de seus quépis.

O pano subiu vagarento num completo silêncio musical. E noite, não se divisa nada no escuro, apenas umas luzinhas vão se abrindo muito longe e talvez, no fundo uma pequena mancha rubra. Um clarão de incêndio talvez. O palco está vazio. Depois de um meio minuto decorrido assim, mais para o fundo do palco, se ilumina um lampeão de rua. Luz bem fraca, desses lampeões destratados de bairro pobre, não permitindo perceber ainda o pano do fundo, jogando apenas a sua mancha branquiçada sobre o muro que lhe está na frente e separa o pátio do cortiço em que estamos, da rua que faz o fundo do palco. Como que despertado pela iluminação do lampeão, um instrumento grave na orquestra principia rondando entre as tonalidades, numa voz indecisa.

Eis que bem na frente, junto à ribalta, no canto direito de cena se acende uma lâmpada e o espectador ainda pega a operária com os dois braços erguidos, no ato de fazer a ligação elétrica. E a lâmpada nova apenas ilumina esse interior de casinha, uma das várias que dão para o pátio do cortiço. Mas como a janela da casinha está aberta, uma réstea larga de luz vai morder o chão do pátio. Pátio naturalmente vazio, sem plantas, sem nenhum prazer. Bem no centro dele, junto do ponto quase, está o poço, que naquele bairro pobre e longínquo ainda não chegou a rede de águas e esgotos.

Mas naquele pedaço pequeno de casinha operária, a mulher está meia inquieta, meia sem quefazer. Vem à janela e fica espiando as bulhas da noite. A orquestra, soturna sempre, está se arripiando toda de frasinhas angustiadas. A luz da casinha mostra apenas, mais para a frente a mesinha do rádio, talvez um banco, e mais no fundo um colchão no chão, onde já dormem duas crianças- bonecas de três e cinco anos. Mas a mais velha, seus sete anos, está acordada, muito entretida em mexer com o rádio. Afinal consegue obter uma ligação e na soturnidade do ambiente, o espíquer agudo principia contanto coisas da revolução. Meio parece parolagem o que ele diz, cheio de frases-feitas. Diz que a revolução está vencendo mas isso toda a gente diz, faz três dias que o marido dela não aparece, e esta coisa não se acaba nunca! Irritada a mulher fecha o rádio. Mas a orquestra agora já se completou, e divaga, cheia de bulhas soturnas, arripiada de frasinhas de ansiedade, um caos inquieto, de interrogações e ameaças.

É neste instante que se abre a porta duma das casinhas do cortiço, de outro lado da cena. Ê mais uma luz de lâmpada elétrica que morde o vazio do pátio. Um meninote surgiu, seus dez anos. Se escuta um grito atrás dele. E o menino foge atravessando o pátio todo e vindo, por instinto, na direção da outra luz, da casinha iluminada. Mas vem atrás dele a mãe correndo com angústia, o persegue, o consegue alcançar já bem próximo da janela luminosa que o chamou, o esconde nos braços, o protege com o corpo, não vá alguma bala perdida destruir aquele filho. Com o grito, a mulher da casinha se precipitou para a janela. Porém não foi ela só que escutou o grito. De todas as casinhas, as portas se abrem, jogando jatos retos de luz no pátio. E surgiram por elas mulheres, mulheres moças casadas, algumas velhas trôpegas, vêm saber, querem saber, correm todas pra junto da mulher e seu filho, estão assustadíssimas, o grito ainda as desarvorou mais naquela inquietação medonha da espera, estão juntinhas umas das outras, e se contam o seu susto, um cânone veloz, que as ideias e os sentimentos de todas são sempre os mesmos e lhes encurtam numa corrida desesperada o pensamento e o coração.

Um grito de alarma rasga a cena. Passou um homem fugindo pela rua, atrás do muro. A orquestra zanga, esbravejando muito, e em bulhas abafadas na rua, por detrás do muro, se percebe que um grupinho de homens persegue fugitivo. Há um pequeno choque de armas. Um tiro, um soluço de dor, um tombo pesado. Batem com fúria no portão do cortiço. As mulheres estarrecidas nem se mexem, como que até se unem mais, um bloco humano apavorado. Mas a menina da casinha sabe lá agora o que é revolução! Estava mexendo no rádio outra vez e consegue ligar de novo. E o rádio, como falara mesmo, enquanto espera notícias frescas pra comunicar, está no lerolero duma varsa besta, bem “hora da saudade”, em pleno choro de sensualidades fáceis. A varsa chega a tocar seu bom minuto, porque a mulher, ainda muito tomada de pavor, à janela, junto das outras, não pusera reparo na festa. Mas afinal percebe, faz um gesto de desesperado, vem, fecha o rádio, empurra a menina pra longe.

Mas corre à janela outra vez. Não recrudesceu na rua, e não tem dúvida mais, a revolução chegou no bairro afastado, e agora é um grupo grande que está brigando na rua. O som parece agradável, que os soldados governistas estão mudos, mas a voz clara, entusiasmada, viril dos revolucionários vai cantando, com o som da música animando os corações. Mas batem com violência, batem muito no portão. A luta parece que vai cessar outra vez, cessar não, vai passar, continuar subindo a rua, já deve ter virado a esquina longe, o silêncio volta, mais claro, porque era visível, os revolucionários é que vinham perseguindo os situacionistas.

Tam... tam... tãtam, batidas convencionais no portão. Isso uma mulher se destaca do grupo, corre feito doida, amalucada, corre rapidíssimo até o centro do pátio, não sabe o que fazer, gira sobre si mesma na indecisão, morde uma mão com a outra e afinal se atira ao portão e abre. O abre a meio, e pelo vão entram rápido dois operários arrastando um chefe revolucionário, visivelmente no dólmã aberto uns galões de sargento e na camisa mancha rubra do sangue. Está gravemente ferido e vai morrer. Mas agora as mulheres perdem o medo, o esquecem, chamadas ao seu destino de mulher. Entram nas casinhas, saem, trazendo água, panos, uma almofada bem cor-de-rosa pra encostar o moribundo. O qual, carregado pelos dois rapazes e a esposa, veio ser sentado na borda do poço. Mas ele não tem forças mais, escorrega para o chão, enquanto a mulher o aninha no seu peito pra morrer, escorregada com ele. Os dois rapazes operários não têm mais nada que fazer ali, o chefe está em milhores mãos. Um parte rápido e vai abrir o portão, agora ficará junto deste, pra abrir si necessário. Mas o outro fica, meio esquecido da luta, é o chefe do esquadrão dele que morre. Em pé, ereto, o rapaz sofre muito e mesmo num momento, num gesto raivoso de vergonha limpa com as costas da mão a lágrima. Mas o chefe se estertora na morte. Chega a visita da saúde. Para de tremer, vai erguendo o pescoço, se soergue nos braços da mulher que não existe mais pra ele, nem sabe que ela está ali, não saberá mesmo? Os sentidos são muitos. Na aparência o moribundo apenas com os olhos desmesuradamente abertos e o ouvido à escuta colhe e devora os ruídos da luta que recrudesceu na rua. Então o chefe repara no operário ali inútil, vendo ele morrer. Faz um gesto raivoso de ordem. O operário vai pra obedecer, hesita, volta, beija a testa do chefe e parte, desaparecendo pelo portão. O chefe soergue mais o torso, dá um sorriso de esgar vitorioso e cai morto. A mulher chora soluçado sobre o corpo dele.

As coisas se precipitam. A luta está completamente generalizada por detrás do muro. As mulheres, dignificadas pela morte do chefe, reagem, se entranhando na sanha da luta. Só a menina, completamente de alma azul, está mexendo no rádio outra vez. Por vezes, em cima do muro há um reflexo de baioneta. O portão às vezes é violentamente sacudido. Os cantos se sucedem, coléricos, em fuga, vem os gritos insultuosos dos soldados governistas, reagindo cegos, feito anões. São anões. E o canto dos revolucionários se torna cada vez mais firme e pertinaz. Não é agitado mais, nem rápido. É firme. É obstinado. É pertinaz. “Fogo e mais fogo! Fogo até morrer” cantam num fugato feroz. A bulha da luta aberta é alastrada pela orquestra. Se abre, muito no longe um clarão de incêndio mais forte. E aos poucos irá, nos clarões rubros dos incêndios, se delineando a paisagem vasta do fundo. Estamos num subúrbio alto e todo o pano de fundo, sem nenhum céu, é a vista da cidade. No longe, batido pelos incêndios, é o centro da cidade com seus arranha-céus formidáveis. Mais próximos, são as casas de um, de dois andares de bairro, com as janelas de perto suficientemente largas pra se abrirem, aparecer gente nelas.

O portão foi de novo sacudido com ansiedade. E o soldado fugitivo surgiu no alto do muro, trepado. Ao ver o grupo das mulheres, agora decididas, eretas, enérgicas, hesita. Mas sempre a um fugitivo governista um grupo de mulheres soará menos perigoso que gente bêbeda de revolução, o soldado pula no pátio. Mas logo atrás dele um revolucionário, um estudante apenas, seu blusão de esporte, tem dezenove anos, vem perseguindo o covarde, apenas com um pau na mão. Pula no pátio. Um clarão fortíssimo de um segundo ilumina toda a cena. Foi uma granada que arrebentou bem perto, mas que a música, por elevação de arte, desdenhará fazer soar. E o covarde, atemorizado com a criança que lhe vai bater de pau, como ele apenas merece, atira a carabina ao longe e se joga de joelhos aos pés das mulheres, pedindo a vida. Elas caem sobre eles e o estraçalharão sem piedade, sanhudas. O rapazelho troca o pau pela carabina do soldado, abre o portão, se engolia na luta, agora enfim entrevista pelo público. E o canto enorme de guerra, nota contra nota, harmônico, sem grafinagens mais de polifonias, unânime, coletivo, se alastra largo e potente pelo teatro todo. É guerra! É guerra! É revolução!... É de parte a parte fogo na nação!... É hora, é hora, é hora! Chegou! chegou! Chegou!... Uma das mulheres agarra o pau abandonado pelo estudantinho, corre ao portão, se engolfa no bolo de morte, batendo, mordendo. A menina conseguiu ligar o rádio outra vez, que agora está berrando as últimas notícias. O presidente da nação já fugiu do palácio e se escondeu no quartel da polícia. Os revolucionários já estão de posse dos Correios e Telégrafos... No Bairro Dourado os gigantes da mina do ouro resolveram morrer com muita aristocracia, bancando Maria Antonieta, marias-antonietas de borra, em grande tualete, se embebedando que nem gambás. “Patrão! Patrão! Patrão!” invocam os soldados governistas, pedindo água pra anões subterrâneos. E fogem pelo pátio, entram pelas portas das casinhas, fugindo. Os revolucionários, os perseguem sem piedade. Um novo clarão vivíssimo, mais vivo, mais próximo que o primeiro cega a cena toda, o muro cai com a explosão. As mulheres estão lutando também. O rádio grita, berra, estronda. Vitória! Vitória! O presidente foi preso, o Bairro Dourado está em chamas. Os clarões dos incêndios agora clareiam toda a cidade longínqua, lambendo as paredes dos ilustres arranha-céus, as pombas enlouquecidas se agarram nas marquesas dos arranha-céus. Piedade! Piedade! berram os soldados jogando longe as armas d e aluguel. Perdão! Perdão! perdão! Mas os revoltosos, cegos, impiedosos, que piedade nada! “Café! Café! Café!” gritam desvairados, café! café! Vitória! Vitória! E vêm, quem são! são os palhaços, são anões subterrâneos, são apenas um magote de deputados de negro, vêm, são as primadonas da vida, vêm, junto da ribalta, entre a casinha iluminada e o poço, vêm, e com gestos de primadona, botando as mãos no peitinho, caem mortos, formando um bolo de cadáveres divertido. E vêm, vêm também numa revoada, um ramilhete de aristôs de ambos os sexos, casacas, decoletês, vidrilhos, garrafas de uísques, de champanha, de fine, vêm até a ribalta, do lado oposto ao dos deputados e caem mortos noutro bolo engraçado de esqueletos podres, emborcado pela última vez as garrafas desonradas.

E vem, mas até parece outra, no delírio da vitória, vem a Mãe no seu vestido vermelho estraçalhado, um seio todo à mostra, o lenço verde da cabeça caindo num dos ombros, vem completamente louca, delirando, com uma enorme bandeira vermelha e branca nas mãos. Avança, corre, seguida de muitas mulheres tão selvagens como ela, tão assanhadas, tão doidas, manchadas de sangue, rasgadas, muitos revoltosos as seguem cercando o grupo feroz. Ferozes, ferozes, todos rindo em esgares horríveis, caras numa exaltação primária, são monstros admiráveis, irracionais, faz medo olhar. Todas as janelas de fundo estão abertas, iluminadas, com gente incitando os vitoriosos. Os incêndios tomaram tanto a cidade que tudo está claro agora, violentamente clareado numa luz vermelha. A Mãe trepou no poço. Tem aos pés o chefe que morreu, tem as irmãs em torno, os revolucionários cercando, todo o palco cheio de vitória. Os camarotes, frisas do proscênio são invadidos por mais gente da vitória com suas enormes bandeiras vermelho-e-branco oscilando. Só a menina, depois que o rádio acabou de falar, já cansadinha foi dormir com os manos no colchão.

A calma desce do ar, a calma forte, já agora mais sadia e humana da vitória, e a Mãe se imobiliza. Todos são dominados pela grandeza augusta daquela mulher. E ela entoa o hino da vitória da vida, que todos repetem. Eu sou a fonte da vida, Força, Amor. Trabalho, Paz!... Os holofotes estraçalham as últimas escurezas esparsas no ar. E o povo berra imensamente vasto! Paz!... O pano cai com estrondo.

Eu me sinto mais recompensado de ter feito esta épica. Dei tudo o que pude a ela, pra torna-la eficaz no que pretende dizer, lhe dei mesmo com paciência os mil cuidados de técnica, pra convencer também pelo encantamento da beleza. Mas duma beleza que nunca perde o senso, a intenção de que devia ser bruta, cheia de imperfeições épicas. Nada de bilros nem de buril. Pelo contrário, muitas vezes a perversidade impiedosa da ideia definidora por exagero, fiz acompanhar da perversidade tosca da voluntária imperfeição estética.

Me sinto “recompensado” eu falei, não tive a menor intenção, nem sombra disso! de me dar por feliz. Como eu tenho uma saudade incessante dessa paz, dessa “PAZ” que os vitoriosos invocaram para um futuro mais completado em sua humanidade. Eu tenho desejo de uma arte que, social sempre, tenha uma liberdade mais estética em que o homem possa criar a sua forma de belezas mais convertido aos seus sentimentos e justiças do tempo da paz. A arte é filha da dor, é filha sempre de algum impedimento vital. Mas o bom, o grande, o livre, o verdadeiro será cantar as dores fatais, as dores profundas, nascidas exatamente desta grandeza de ser e de viver.

Há-de ser sempre amargo ao artista verdadeiro, não sei si artista bom, mas verdadeiro, sentir que se esperdiça deste jeito em problemas transitórios, criados pela estupidez da ambição desmedida. Um dia o grão pequenino do café nunca mais apodrecerá largado no galho. Nunca mais os portos de todos hão-de se esvaziar do dos navios portadores de todos os benefícios da terra. Nunca mais os menos favorecidos de forças intelectuais estarão nos seus lugares, porque não tiveram ocasião de se expandir em suas realidades. Não terão mais de partir, na busca lotérica do pão. Então estarão bem definidas e nítidas para todos as grandes palavras do verbo. Terá fraternidade verdadeira. Existirá o sentido da igualdade verdadeira. E o poeta será mais verdadeiro.

Então o poeta não “quererá” ser, se deixará ser livremente. E há-de cantar mandado pelos sofrimentos verdadeiros, não criados artificialmente pelos homens, mas derivados naturalmente da própria circunstância de viver. Me sinto recompensado por ter escrito esta épica. Mas lavro o meu protesto contra os crimes que me deixaram assim imperfeito. Não das minhas imperfeições naturais. Mas de imperfeições voluntárias, conscientes, lúcidas, que mentem no que verdadeiramente eu sou.

São Paulo, 15 de dezembro de 1942.

MÁRIO DE ANDRADE

 

CAFÉ

Tragédia Secular

O POEMA

 

PRIMEIRO ATO – PRIMEIRA CENA

PORTO PARADO

(A cena representa o interior de um armazém de café, no porto. Os estivadores na entre-sombra)

 

I

CORAL DO QUEIXUME

Os Estivadores:

Minha terra perdeu seu porte de grandeza...

O café que alevanta os homens apodrece

Escravizado pela ambição dos gigantes da mina do ouro.

O café ilustre, o grão perfumado

Que jamais recusou a sua recompensa,

Nada mais vale, nada mais.

Que farei agora que o café não vale mais!

Essa força grave da terra era também a minha força.

                               - me ensinava

Ela era verde e    - desenhava                   o futuro

      - me desvendava

Ela era encarnada e audaciosa

Era negra e aquentava o meu coração.

Foi ela que deu à minha terra o seu porte de grandeza

E hoje nada mais vale, nada mais.

Café! Café! Eu exclamo a palavra sagrada (no deserto)

Café!... O seu fruto me trazia o calor no coração

Era o cheiro da minha paz, o gosto do meu riso

E agora ele me nega o pão...

Que farei agora que o café não vale mais!

Porte de grandeza, odor da minha terra, força da minha vida,

Que farei agora que pra mim não vales mais!

 

II

MADRIGAL DO TRUCO

Um jogador solista (parlato):

— Truco!

       (cantando):

Arreda porteira, aí vai

Os peitos de Zé Migué

Laranja não tem caroço

Jacaré não tem pescoço

Truco de baralho velho!

O grupo madrigalista:

Seis papudo! Sai tapera

Seis, seu cara de tatú

Seu portão de cemitério

Arapuca de bambu

Toma seis que três é pouco!

Saia do caminho porqueira

Toma nove, seis é pouco

E diga porque não quer

Quem não pode não me espera

Seu cara de jacaré!

Truco mesmo! Sai perneta

Reboco de igreja velha

Esteira de bexiguento

Sapicuá de lazarento

Sumítico, arrisque o tento!

Trucou, aguenta a parada.

Carrapato é bicho feio

Tem cabelo até no joêio

Mosquito não leva freio

Pernilongo não se capa!

(O compositor poderá, si quiser, intercalar, ajuntar com o truco, mais dois cantores jogando a morra, um italiano e um preto, porque assim o ariano cantará “Trè”! “Cinque”! etc., lá na língua de Dante, e o tizio cá bem na língua nossa de Camões, secundando “Dois”! “Oito”!)

 

III

CORAL DAS FAMINTAS

(As companheiras dos estivadores interrompem abruptamente pela cena).

Frases à escolha, cantadas aos grupos:

— Porto parado! mar vazio! sangue à vista!

— Eu tenho fome! Meus braços já se armam na ordem fatal da maldição!

— Eu tenho fome! Na minha boca nasce a palavra da decisão!

— Não sou mais eu! Chegou a hora da destruição!

Tutti das Famintas:

Não aguento a fome

Não há mais perdão

Deus dorme nos ares

Os chefes nas camas

Acordo no chão

Eu quero o meu pão!

Não aguento a fome

Lei no coração:

Malditos os homens

Maldito este tempo

Maldita esta vida.

Eu quero o meu pão!

Eu quero o meu pão!

Não aguento a fome

Nesta maldição

Ordens nos ouvidos

Sangue nos meus olhos

Ódio em minha boca

Eu quero o meu pão!

Eu quero o meu pão!

Eu quero o meu pão!

Os estivadores (pianíssimo, depois da orquestra se melancolizar, repetindo a mesma frase melódica final das Famintas):

— Quem pode dar pão!...

 

IV

IMPLORAÇÃO DA FOME

(Os estivadores e suas mulheres, à última pergunta, olham para as pilhas de sacas de café, e extáticos, amorosos, como que delirando, invocam o café)

Os Estivadores e suas Mulheres (coral misto):

Oh grão pequeno do café, escuta o meu segredo

Grão pequenino

Não te escondas assim no silêncio infecundo

Grão pequenino

Não dorme na paz falsa da morte, a fome indica os caminhos

A fome vai fatalizar os braços

Grão pequenino do café!

Pois não escutas o rebate surdo das ventanias?

Grão pequenino

Não vês o clarão breve dos primeiros fogos

Grão pequenino

Logo eu te acordarei da paz falsa da morte

E tu reviveras, razão da minha vida,

Grão pequenino do café!

EU SOU AQUELE QUE DISSE:

Eu tenho fome! eu tenho muita fome!

Grão pequenino

É uma fome antiga, de milhões de anos que renasce

Grão pequenino

Nem todo o trigo do universo feito pão

Acalmava esta fome antiga e multiplicada

Fome de fome

Fome de justiça

Fome de equiparação

Fome de pão! FOME DE PÃO

 

SEGUNDA CENA

COMPANHIA CAFEEIRA S. A.

 

I

CORAL DO PROVÉRBIO

(Os colonos estão colhendo com má vontade, maltratando as árvores justo quando aparecem os Donos e os Comissários. Aliás, pouco antes um meninote colheu uma fruta madurinha da laranjeira que nasceu em pleno cafezal, foi pra chupar e jogou fora. Velhos e velhas sorriram melancólicos, coralizando brevente sobre o provérbio paulista: “Laranja no café — É azeda ou tem vespeira.” Donos e Comissários entrando.)

 

II

A DISCUSSÃO

Os Donos (solenes):

— A ordem é de expulsar o que maltrata as árvores inocentes!

Colonos homens (melancólicos e mansos):

— Malvado o que abusou da inocência do fruto, o encarcerando nos armazéns insaciáveis, o queimando queimando nas caieiras clandestinas da madrugada!

Os Donos (ásperos):

— Tonto é o que fala sem saber as altas leis da História!

Colonas (se abespinhando, a várias vozes amontoadas):

— História! A ignorância do humilde, a esperteza do sábio!

Colonos (irritados, entrando na resposta das mulheres):

— Ainda o último verão não secava os caminhos, e já me interrogavam as manhãs... A fome vem chegando...

Os Donos (muito a gosto):

— Lavamos nossas mãos: eis vossos donos novos! (Com o gesto Imponente aos Comissários): Falai, donos finais!

(Estupor geral da coloniada)

Colonas:

— Mas quem paga! quem paga! quem paga!

— Não posso mais! Não posso mais (ter, ad libitum)

— “O homem não é propriedade do home”!

Os Comissários (querendo acalmar, em uníssono mecânico de quem já sabe de cor o que vai falar):

— Oh fecundos trabalhadores rurais! Vóis sois a fonte de toda a grandeza de nossa querida pátria! Falafalar é prata, mas a paciência é oiro! Ora sulcamos o oceano encapelado duma crise mundial que ameaça subverter a santa ordem das cousas...

Colonas (interrompendo irritadíssimas):

— Quem paga! Quem paga! Quem paga! (ad libitum)

— Fome chegou! (bis, ter, ad libitum)

— Não pode ser! (bis, ter, ad libitum)

Comissários (imperturbáveis):

— ...a paciência é a maior virtude do operário! Os respeitáveis pais-da-pátria já garantiram ufanos que nem bem findo o próximo verão, secador de caminhos, as Câmaras alvorotadas cuidarão do enigmático problema do café! Fé!... Fé!...

Colonos e Colonas (amontoados):

— O ano que vem! (Sempre estas frase poderão ser repetidas ad libitum)

— Dia de São Nunca!

— Não posso mais!

— Quem paga! quem paga! quem paga!

Comissários e Donos:

— Mas senhores fecundos trabalhadores rú...

A Coloniada (em hochetus):

— Isso é conversa...

— ... pra boi dormir!

— Palavras ocas,

— ...ouvidos moucos!

Comissários e Donos (em hochetus):

— Calai-vos, brutos!

— Respeitai os chefes!

Colonas (avançando dois passos):

— Mas tendes fome! tendes fome!

Comissários e Donos (depois de leve hesitação):

— Mas estamos profundamente tristes.

Colonos velhos:

— Tristeza não paga dívida!

Os rapazes (avançando dois passos, feito as Colonas)

— Triste, de barriga cheia!

As moças (caçoando amargas):

— Vou fazer um vestido com a chita tristeza!

As casadas (avançando mais um passo, coléricas):

— Vou dar pra meu filho só leite tristeza!

Casados e velhos (avançando também mais um passo, coléricos):

— Eu pago armazém com dinheiro triste

Comissários e Donos (inocentérrimos)

— Mas que quereis vós que façamos nós!

Colonos (tutti):

— Pagar!

Comissários e Donos:

— Pagar não podemos!

(Ou apenas: Não podemos!)

Colonos:

Pagar!

Comissários e Donos:

— Pagar não podemos!

(Bagunça coral a várias vozes mistas, sobre palavras a escolher: “Unha de fome!”; “Eu não aguento mais”; “Avarentos e avaros”; “Mentira!”; “Maldição!”; “Quem paga! quem paga! quem paga!”)

Comissários e Donos (uníssono):

— Paciência! Pagar não podemos, se arranjem!

(Silêncio súbito total. Os colonos oscilam pra frente no desejo de avançar; Comissários e Donos se postam na defesa, levando a mão aos revólveres. E numa rajada de orquestra:)

Colonos (tutti):

— EU SOU AQUELE QUE DISSE: Não fico mais neste pouso maldito! Eu parto! Eu parto! Eu vou-me embora!

(Donos e Comissários aproveitam pra sair, meio com excessiva rapidez. Dois colonos que, durante a discussão, tinham mordido laranjas sem reparar, atiram as frutas com raiva, enquanto ecoa pianíssimo na voz das velhas, o provérbio do início.)

 

III

CORAL DO ABANDONO

Os Colonos (coral a seis vozes mistas, ou quatro):

Um tremor me alucina o pensamento...

Nos meus pés indecisos vão rolar as estradas

A minha voz de porta em porta

Há-de implorar o direito de vida...

A cada volta do caminho

Na poeira vermelha que me embaça os olhos

E apaga a minha voz

Me sentirei morrer nessa morte ignorada

Que o sol dos verões seca logo

E a poeira cobre eternamente.

E nada ficará como prova do crime insensato.

No túmulo das estradas estão escondidos

Milhares de mortos de bocas abertas.

Qual a culpa que me castiga

Na eternidade desta boca aberta?...

Esta boca aberta que ninguém responde,

Boca aberta que o sol dos verões seca logo

A que a poeira apaga a voz.

Povo sem nome das terras aradas

Tu vais morrer na poeira das estradas

Mas uma voz te mandará do espaço

A lei maior te fataliza o braço

Muitas vezes a gente se revolta

Não que falte a paciência de lutar                   (da pobreza)

Muitas vezes a gente se revolta

Por incapaz de não se revoltar.

                                                                    (Pano)

 

SEGUNDO ATO – PRIMEIRA CENA

CAMARA-BALLET

(A cena representa uma sala de Câmara de Deputados.)

 

I

QUINTETO DOS SERVENTES

O Deputado do Som-Só (num som pedal que durará todo o quinteto):

—   ... plaplaplá chiriri cocô, pum. Blimblimblim tereré xixi pum. Furrunfunfum furrunfunfur. Pipi pipi pipi pipi a caridade, popô. Zunzum zunzum zunzum baile das rosas lerolero lerolero lerolero lerolero lero-lero! Cacá cacá cacá cacá cacá cá-pum? Pois tataca teteca titica totoca tutuca! Pum!... Cocô pum!... Xixi pum!... Pipi pum!... Sclá sclá sclá sclá sclá sclá sclá sclá Dem-dem pum!... pum!  Tereré tereré tereré tereré a ilustre Dama, popô. Bois sacré railway Tobias Barreto patati lenga-lenga, fonfom, pum. Sclá sclá scláá!... Sclááááá!... Scláááááááááááááá!... Sclááááááááááááááááááá!... Xi!... Xi!

(O polícia bate no ombro dele, dizendo pra parar e ele obedece com mansidão. Todos dormiam, mas agora acordam curiosos porque é a estreia do Deputadinho da Ferrugem, filho de papai.)

 

II

A EMBOLADA DA FERRUGEM

O Deputado da Ferrugem:

Sobre a ferrugem

Das panelas de cozinha

Do pais maior mistério

Diremos uma cousinha

O assunto é sério

Que as cozinheiras já rugem

Coléricas com a ferrugem

Das panelas de cozinha.

Sobre a cozinha

Com ferrugem na panela

Tragédia gloriosa e bela

Desta pátria queridinha

Ouvide! embora

Nossas palavras que surgem

No tremedal da ferrugem

Das panelas de cozinha

Porque as panelas

Com ferrugem, meus senhores,

Na cozinha são penhores

De vitamina mesquinha

Pois a verdade

Não se oculta com a babugem

Da Oposição: tem ferrugem

Nas panelas de cozinha

Dizer que não

Há ferrugem quem dirá

Nas panelas de cozinha

Garantimos que isso há

Dizemos que há

E os maus não tugem nem mugem

Pois bem sabem que há ferrugem

Nas panelas de cozinha

E tantas provas

Da cozinha não encobrem

Que as panelas se manobrem

Com essa ferrugem daninha

E si quiserdes

Damos provas de lambujem

Garantindo que há ferrugem

Nas panelas de cozinha

E si a ferrugem

Não sairá sem mais aquela

Da cozinha na panela

Por ser cousa comezinha

O que propomos

É deixar que se enlambuzem

Nossas bocas com a ferrugem

Das panelas de cozinha

(Durante a embolada, pelo seus dois terços o estivador nas galerias gritou irritado: - Praquê panela si não tem o que cozinhar! O grito provocou uma pequena barafunda coral, em que as geleiras entram em cheio, atrapalhando o refrão em movimento continuo com que os deputados desde o início estão fazendo um fundo coral delicado à embolada. As frases para o Stretto das galerias serão: “Vá carregar piano!”; “Comigo não, violão!”; “Conversa pra boi dormir!”; “Tereré não resolve!”; “Deixa de lero-lero!”; e talvez, é muito apropriado, um ritmo-refrão único: “Café, café café...” dito quanto for preciso.)

 

III

A ENDEIXA DA MÃE

(Entrou, durante o barulho o Deputado Cinza, puxando a Mãe, e insiste com ela pra que fale. Aliás um discurso mui hábil que ele mesmo escreveu pra ela decorar. Ela se amedronta, quer fugir, mas se vendo perdida esquece tudo que decorara e delira.)

A Mãe:

Depois que o grão apodreceu no galho

A miséria chegou com seus dias compridos

E as noites curtas por demais que a fome acorda.

Nunca mais o meu filho fugiu da horta

Amassando na boca as alfaces.

Os peitos das mães já secaram

Caíram as cercas das hortas

Vendeu-se a vaca, fugiu o sabiá dos pomares

E muitos homens jazem podres

Nos botequins de beira-estrada

Nos armazéns do cais vazio

Nas grunhas do conluio da noite.

Falai si há dor que se compare à minha!...

Nos caminhos da noite pressaga

Os infelizes vêm chegando, vêm chegando

Conduzidos pela estrela da cidade.

São todos os que abafaram o sonho, meninos

Todos os que só amaram no susto e no arrependimento

Os que se viram já velhos sem ter o que recordar.

São os famintos, são os rotos, são os escravos,

São os mil e um cativos da vida em procissão.

Falai!...

Falai si há dor que se compare à minha!...

No avanço lerdo dos bois

Os desgraçados vêm chegando, vêm chegando

A sentinela avançada de serra-acima

Se erriça toda de estátuas, de espantalhos, de estafermos doentios

Movidos pelo rito da esmola e do furto.

Acaso não vedes que o ponteiro está chegando na hora?

As estátuas comungarão fatalizadas no crime hediondo

Acaso não vedes que o ponteiro chega na hora do crime hediondo?

Os peitos da Mãe se enrijarão no escudo seco de aço

Ruirão por milagre os muros, ruirão fortalezas e forças

A guerra vai passar com seu rancho de peste e de morte

Varrendo tudo na batucada infernal.

Falai!... Falai!...

(VERSÃO EXCLUSIVAMENTE LITERÁRIA)

Falai si há dor que se compare à minha!...

Oh gigantes da mina do ouro

Oh anões subterrâneos da servidão

Oh magnatas com seus poetas laureados, galões e galinhas

Pasteis, pastores, professores, jornalistas e genealogistas

Oh melancias e melaços, burros borras, borrachas, molhos pardavascos

Oh grandavascos e vendidavascos

O vosso peito ladrilhado com pedrinhas diamantes

É concho e vazio feito a bexiga do Mateus

Monstros tardios sem olhos sem beijo sem mãos

O que fizeste do sentido da vida!

Oh vós gigantes da mina e vós anões subterrâneos

Falai!

O que fizestes, o que fizestes do sentido da vida!...

EU SOU AQUELA QUE DISSE:

Raça culpada, a vossa destruição está próxima!

Já Já o pato bravo avoou na escuridão na escuridão

  da noite

                                                               no escuro  

E as gaivotas gritam no alarma lunar da praia!

Pois não vedes que os seres do campo e da rua

Aparvalhados, rangentes, se entrepilham na malhada da praça (praceana)

Já indiferentes ao chamamento passivo do ninho!...

Raça culpada, a vossa destruição está próxima!

A aurora feito um gato verde se assanha por trás da cidade

E rompe antes do dia as barras triunfais do dia! (do Dia Novo)

(Os polícias estão chanfalhando o povo nas galerias. Levam a Mãe presa.)

(Pano)

 

SEGUNDA CENA

O ÊXODO

(Na estaçãozinha do trem de ferro. Vêm chegando os colonos ao apelo da cidade. Primeiro chegam os moços, estão esperançosos, brincalhões. Contentes de viver na cidade.)

 

I

CORAL PURÍSSIMO

Os solteiros:

Quero trabalho

Firme nas ancas

Sede na boca

Força no braço

Brinca esperança

No peito cheio

Quero o trabalho

Quero alegria

Mão na cintura

Canto na boca

Braço no braço

Peito batendo

De amor ardente

Quero alegria

Quero descanso

Cintura grossa

Rizo na boca

Filho no braço

Sopa cheirosa

Calma de todos

Quero descanso

 

II

CORAL DA VIDA

(Agora vêm chegando os casais. Estão fatigados e ardentes. Sérios. Os moços se finam com os recém-chegados que sentam por aí. A tarde se avermelha.)

Casais e Solteiros:

Cafezal grande na calma fatigada da tarde..

Uns homens de fala vagarenta e de nariz furão

Conquistaram estas paisagens, os chãos mais felizes da terra

Para sobre eles plantar o oceano da esmeralda

E eu vim à chama vermelha do grão pequenino.

Porém[PC1]  no princípio dos chãos está postada a cidade terrível

Grandiosa e carrancuda, histórica e completa,

Cheia de passado e futuro, inimiga cinzenta do estranho,

Dona das sete doenças irascíveis do frio.

No seu rumor resmungam as animosidades desconfiadas

Dos seus boeiros brota o sentimento da solidão.

A cidade terrível repudiou o mar facílimo

E se escanchou grimpada no penedo mais alto de serra-acima

Gritando a todos o seu gélido e agressivo quem vem lá!

Eco fora de Cena:

— Quem vem láááá!...

Mas eu entrei na cidade inimiga e os meus pés não queriam andar de saudade

E a Terrível riu seu riso de garoa (pervertida)

E me fez punir as sete provas.

Ela me fez passar pelas sete provas da promissão.

A primeira foi obedecer mas eu me opus.

A segunda foi mandar e então eu obedeci.

A terceira foi sonhar mas eu me equilibrei num pé só e não dormi.

A quarta e a quinta foram roubar e matar

Mas eu, cheio da fragilidade, beijei de mãos abertas.

A sexta, a mais infamante de todas, foi ignorar.

Mas eu, chorando, provei o pó amargo da rua e (me) alembrei.

Então a cidade insidiosa, cheia de música e festa,

Passou a mão de bruma nos meus olhos, me convidando a esquecer.

Mas eu com uma rosa roubada na abertura da camisa

Gritei no eco do mundo: EU SOU!

Eco fora de Cena:

— EU SOOOU!.. . EU SOOOOOOOOU!...

Pois então a cidade se fez mãe e eu descansei nela uma noite e um dia.

Ela é a mãe do trabalho, mãe do pensamento,

Ela é a mãe carinhosa do lar fechadinho bem quente

E nas suas noites graves todos dormem sem sonhar.

[PC2]  na lucidez do seu frio ácido

Só nela se pode beber o vinho generoso de corpo grosso

Só nela é permitido bailar sem vertigem

Só nela é possível querer sem miragem

Só nela, feiosa e leal, se erriça na boca do homem

O sal da verdade da hora

Sem se tornar salobro à gloria do passado.

E depois que eu descansei a noite e o dia

A cidade boa me levou para os chãos mais felizes da terra

Onde tudo é carícia no seio dos morros mansos

Onde o calor é ouro no dia coroado por noites de prata.

Oh cafezal! cafezal grande na magua sangrenta da tarde,

Oh sonhos de tempos claros, gosto de um tempo acabado, será permitido sonhar?...

Raça culpada, raça envilecida maldita,

Os gigantes da mina com os seus anões ensinados

Traíram a cidade e os chãos felizes.

E tudo foi, tudo será desilusão constante

Enquanto não nascer do enxurro da cidade

O Homem Zangado, o herói do coração múltiplo,

O justiçador moreno, o esmurrador com mil punhos

Amassando os gigantes da mina e peidando para os anões.

O urro da tempestade acorda no seio alarmado do horizonte

De cada planta o cafezal distila o veneno verde do ódio.

Em cada mão comichona a volúpia da morte.

O meu passo deixou rastro de sangue no caminho,

O céu se embebedou de sangue, o meu suor cheira sangue.

O herói vingador já nasceu do enxurro das cidades.

Ele é todo encarnado, tem mil punhos, o olhar implacável

Todo ele comichona impaciente no desejo voluptuoso da morte

Neste momento ele está vestindo a armadura de ouro e prata

O seu chapéu de aba larga é levantado na frente

Ele tem uma estrela de verdade bem na testa

Ele tem um corisco no sapato

E um coração humano no lugar do coração.

 

III

CORAL DO ÊXODO

(Agora de longe vem dominando os ares um lamento medonho de uivos, gritos de dor, imprecações. E surgem enfim, horríveis, os velhos, as velhas e as crianças, aos grupos se arrastando. E passam, passam, atravessando a cena, na escureza profunda, só cortada por um listrão largo encarnado do último sol.)

Velhos e Crianças:

— Aáaai... Aiáaaaai!...

— Ai, meu Deus!...

— Vuúuuuuu... Vuúuuuuuuuuu...

(Estes três gritos devem ser usados obrigatoriamente durante todo o coral. Mais outras frases episódicas possíveis, à escolha:)

— Não posso mais! (bis, ter, ad libitum, como os seguintes)

— Quero viver!

— Quero morrer!

— Adeus, adeus!

— Eu sinto frio!

— Eu tenho fome!

(Etc.)

(Quando esses fantasmas do êxodo aparecem no palco os Moços e os Casais não se aguentam em desgraça tamanha, tomados de delírio, e ajuntam a sua voz à lamentação.)

Solteiros e Casados (entrando no coral):

Eu não fui criado do abraço noturno dos pais e das mães

Meu nome foi dito primeiro nos sulcos da terra profunda

Os ventos dos ares entraram nos sulcos da terra profunda

O beijo das águas baixou sobre os sulcos da terra

Sou a fonte da vida.

Que mando fatal me encaminha?

Quem sangra os meus olhos? Quem arma o meu braço?

Quem age por mim contra o meu próprio horror de matança?

É a fonte da vida

Que ordena vingança

Vingança!

 

TERCEIRO ATO

“DIA NOVO”

(A cena representa o pátio de um cortiço num subúrbio alto da cidade. É noitinha. A revolução convulsiona a cidade).

 

I

O PARLATO DO RÁDIO

Um rádio entra a falar:

— Alô alô!... Alô! alô!... Prezados ouvintes, alô, alô!... O Rádio é nosso! o rádio é inteiramente nosso! urra!... Alô alô!... A revolução está prestes a se tomar vitoriosa!... Prezados ouvintes! patriotas devotados desta nossa grande pátria vilipendiada, nós somos o maior exemplo de civismo do mundo! já tomamos todas as estações de rádio da nossa magnífica capital. Também... alô, alô! estou recebendo notícias! alô!... urra! os Correios e Telégrafos acabam de cair em nossas mãos! uuuuurraa!... Tomaram-se os Correios e Telégrafos! os Correios e Telégrafos uuurraaaaaa!... Ainda se luta com violência no Bairro Dourado, onde os gigantes se encurralaram nos seus palácios confortáveis, defendidos pelos anões subterrâneos!... Guardem os rádios ligados! prezados ouvintes! estou recebendo notícias!... Vamos agora executar a “Valsa do Coração Perdido”, enquanto esperamos notícias...

 

II

CÂNONE DAS ASSUSTADAS

As mulheres o Cortiço (tomadas de susto, a um canto):

Chegou, chegou, chegou!

É hora, é hora, é hora!

Meu homem combate na rua

Que susto, susto, susto!

Eu tremo, tremo, tremo!

Mas EU SOU AQUELA QUE DISSE:

Parti! Parti! Parti!

Adeus! Adeus! Adeus!

Chegou, chegou, chegou!

É hora, é hora, é hora!

Estou nesta espera de angústia

Eu sofro, sofro, sofro!

Que medo, medo, medo!

Mas EU SOU AQUELA QUE DISSE:

Parti! Parti! Parti!

Adeus! Adeus! Adeus!

Chegou! Chegou! Chegou!

É hora! É hora! É hora!

 

III

ESTÂNCIA DE COMBATE

(As lutas estão se alastrando pelo subúrbio. Se escuta brigas parciais por detrás do muro do cortiço.)

Os Revolucionários (invisíveis, cantando baixo, sacudido, com sanha):

É o moço da estrela na testa que vem

Eu disse: Ele traz um corisco no pé

É um chefe mais bravo que a tigre ferida

Perverso que nem cascavel

Fatal como a onda do mar.

 

IV

ESTÂNCIA DA REVOLTA

As mulheres e os Revoltosos (invisíveis):

EU SOU AQUELE QUE DISSE:

O segredo da paz se fez guerra!

Chegou! Chegou! Chegou!

O momento dos filhos da terra!

O momento dos filhos da terra

Chegou! chegou! chegou!

V

FUGATO CORAL

Revoltosos e Governistas (ainda invisíveis) e as Mulheres:

Fogo e mais fogo!

Fogo até morrer!

(Texto e música folclóricos, dos muito conhecidos no Brasil todo, ocorrentes em várias danças dramáticas.)

(O andamento indicado é o folclórico)

 

VI

SEGUNDO PARLATO DO RÁDIO

O Rádio:

— Alô! alô!... urra!... Estou recebendo notícias! notícias! alô! alô! o presidente já fugiu do Palácio, buscando abrigo no Quegê da Polícia!... O presidente Papai Grande já fugiu! já fugiu!... Está escondido no Quegê da Polícia!... Alô, alô!... prezados ouvintes! guardem sempre o rádio aberto! urra pela revolução!...

 

VII

GRANDE CORAL DE LUTA

(Uma bomba destruiu o muro do cortiço. A luta, na fase final, se generaliza por toda a cena. As Mulheres entram nela.)

Todos os coristas em cena:

É guerra! E guerra!

É revolução!

Ê de parte a parte

Fogo na nação!

(Textos e música folclóricos, conhecidíssimos, pertencentes a várias danças-dramáticas.)

 

VIII

O RADIO DA VITÓRIA

O Radio (rapidíssimo, gritadíssimo):

— alô! alô!... vitória! VI-TÓ-RIA!... O Bairro Dourado caiu! caiu! os gigantes morreram!... Alô-alô! Patriotas! patriotas! o presidente suicidou-se, o Quegê se entregou, se entregou! os anões se converteram à grande causa pública! a vitória é completa! Vitória! VI-TÓRIAAA!... VIII-TÓÓÓÓÓ-RIIII-AAAAA!

(A menina displicente fecha o rádio e vai dormir. Que durma sossegada e viva dias novos milhores.)

(VIII-Bis)

(Gritos possíveis de enchimento, para auxiliar os diversos corais e cenas de luta.)

De Revolucionários:

— Café! Café! Café! (sempre número de vezes ad libitum)

— É hora! É hora! É hora!

— Chegou! chegou! chegou!

— Vitória! Vitória!

De Soldados Governistas:

— Patrão! Patrão! Patrão!

— São ordens! São ordens!

— Prisão! Prisão! Prisão!

(Na derrota final):

— Perdão! Perdão! Perdão!

— Piedade! Piedade!

 

IX

HINO DA FONTE DA VIDA

(Apoteose final, em grande quadro imóvel.)

A Mãe em solo e todo Coral misto:

Eu sou a fonte da vida

Do meu corpo nasce a terra

Na minha boca floresce

A palavra que será.

EU SOU AQUELE QUE DISSE:

Os homens serão unidos

Si a terra deles nascida

For pouso a qualquer cansaço.

Eu odeio os que amontoam                    (reservam)

Eu odeio os esquecidos

Que não provam deste vinho

Sanguíneo das multidões.

É deles que nasce a guerra

E são a fonte da morte

Eu sou a fonte da vida:

Força, amor, trabalho, paz.

E si a força esmorecer

E si o amor se dispersar

E si o trabalho parar

E a paz for gozo de poucos

EU SOU AQUELE QUE DISSE:

Eu sou a fonte da vida

Não conta o segredo aos grandes

E sempre renascerás.

FORÇA!... AMOR!... TRABALHO!..

(Pano)


 

APÊNDICE

(PRIMEIRA VERSÃO PRA SER MUSICADA)

Falai si há dor que se compare à minha!...

Oh gigantes inflexíveis da mina do ouro

Oh anões subterrâneos da servida

Magnatas com seus poetas laureados, galões e galinhas

Pasteis, pastores, professores, jornalistas e genealogistas

Oh melancias e melaços, burros borras, borrachas, molhos, pardavascos,

Oh grandavascos e vendidovascos

O vosso peito ladrilhado com pedrinhas diamantes

É concho e vazio feito a bexiga do Mateus

Monstros tardios sem olhos sem beijo sem mães

O que fizestes do sentido da vida!

Oh vós gigantes da mina e vós anões subterrâneos

Falai!

O que fizestes, o que fizestes do sentido da vida!...

FRATERNIDADE!...

Onde os irmãos nas avenidas!...

Falai!...

Falai!...

IGUALDADE!...

Onde os irmãos entre os palácios!...

Falai!...

Falai!...

EU SOU AQUELA QUE DISSE:

Raça culpada, a vossa destruição está próxima!

Pois não vedes o sangue dos crepúsculos!

Não vedes o dia novo das auroras!...

Falai!... Falai!... Falai!... Falai!...

(Os polícias estão chanfalhando o povo nas galerias. Levam a Mãe presa.)

(Pano)

SEGUNDA CENA

“O ÊXODO”

(Na estaçãozinha do trem de ferro. Vêm chegando os colonos ao apelo da cidade. Primeiro chegam os moços, estão esperançosos, brincalhões. Contentes de viver na cidade.)

 

(SEGUNDA VERSÃO PRA SER MUSICADA)

Falai si há dor que se compare à minha!...

Oh gigantes inflexíveis da mina do ouro

Oh anões subterrâneos da servidão

Magnatas com seus poetas laureados, galões e galinhas

Pasteis, pastores, professores, jornalistas e genealogistas

Oh melancias e melaços, burros borras, borrachas, molhos pardavascos,

Oh grandavascos e vendidovascos

O vosso peito ladrilhado com pedrinhas diamantes

É concho e vazio feito a bexiga do Mateus

Monstros tardios sem olhos sem beijo sem mãos

O que fizestes do sentido da vida!

Oh vós gigantes da mina e vós anões

Falai!

O que fizestes, o que fizestes do sentido da vida!

FRATERNIDADE!... IGUALDADE!...

Onde os irmãos nas avenidas!

Onde os iguais entre os palácios!

Falai!...

Falai!...

EU SOU AQUELA QUE DISSE:

Raça culpada, a vossa destruição está próxima!

Pois não vedes que o ponteiro está chegando na hora?

Pois não vedes o sangue dos crepúsculos?

Não vedes o dia novo das auroras!...

Falai!... Falai!... Falai!... Falai!...

(Os polícias estão chanfalhando o povo nas galerias. Levam a Mãe presa.)

(Pano)

SEGUNDA CENA


 [PC1]Quebra de página no livro impresso.

 [PC2]Quebra de página no livro impresso.